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NOTAS DE AULAS

Termodinâmica

Prof.: Dr. Sebastião Mendanha

Goiânia 29 de julho de 2021


Sumário

1 Equilíbrio e quantidades de estado 1


1.1 Equilíbrio e temperatura - a Lei Zero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
1.2 Variáveis de estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

A Descrição matemática da Lei Zero 13

i
Capítulo 1

Equilíbrio e quantidades de estado

O objetivo da termodinâmica é definir quantida- Em geral, distingue duas classes de quantidades


des físicas apropriadas (quantidades de estado), de estado:
as quais caracterizam propriedades macroscópicas
(a) Quantidades de estado extensivas (aditivas):
da matéria1 e relacioná-las por meio de equações
Estas quantidades são proporcionais à quan-
universais (equações de estado ou Leis da Ter-
tidade de matéria num sistema, por exemplo,
modinâmica). É possível escolher um número
ao número ou massa das partículas. Exemplos
de quantidades de estado (variáveis de estado) de
característicos de propriedades extensivas são
modo que todas as outras quantidades de estado as-
o volume e a energia.
sumam valores os quais dependem dessas variáveis
de estado escolhidas. Entretanto, a termodinâmica (b) Quantidades de estado intensivas (não aditi-
não fornece explicações sobre o porque determi- vas): Essas quantidades são independentes da
nada equação de estado descreve um dado sistema, quantidade de matéria. Tipicamente, quanti-
uma vez que as equações de estado devem ser espe- dades de estado intensivas podem ser defini-
cificadas por meios empíricos. Desta forma, a ter- das localmente; isto é, eles podem variar es-
modinâmica limita-se a fazer algumas afirmações pacialmente. Considere, por exemplo, a den-
acerca das quantidades de estado se a equação de sidade da atmosfera, que é maior na superfície
estado é dada. da terra e diminui continuamente com a altura,
ou a pressão da água em um oceano, que au-
Uma vez que a termodinâmica não pode fazer
menta com o aumento da profundidade.
qualquer afirmação sobre o sistema em seu nível
microscópico, o conceito de calor relacionado ao No momento, porém, nos limitaremos a propri-
movimento térmico estatístico das partículas não edades intensivas espacialmente constantes. Para
é um assunto da termodinâmica. No entanto, só determinar as dependências espaciais de variáveis
vamos entender alguns conceitos se anteciparmos de estado intensivas necessitaríamos de equações
ideias relativas ao regime microscópico. Além adicionais (por exemplo, da hidrodinâmica), ou te-
disso, neste texto estamos preocupados com a ter- ríamos que usar outras equações de estado (sem co-
modinâmica de estados de equilíbrio e por isso não nhecimento exato sobre sua origem). Muitas vezes,
seremos capazes de descrever a evolução temporal nos deparamos com quantidades de estado extensi-
dos processos. vas e quantidades de estado intensivas que essenci-
almente descrevem propriedades físicas muito se-
1
Em nossas descrições, somente no equilíbrio. melhantes. Por exemplo, a energia, o volume e o

1
número de partículas são quantidades extensivas, tura do sistema ou do ambiente. Pode-se usar
enquanto a energia por unidade de volume (densi- a temperatura T , além de N e V, para caracte-
dade de energia) ou a energia por partícula, bem rizar o macro-estado.
como o volume por partícula, são quantidades de
estado intensivas. Variáveis extensivas mudam pro- (c) Sistemas abertos - Esses sistemas podem tro-
porcionalmente ao tamanho de um sistema (se as car energia e matéria com o ambiente que os
propriedades intensivas não mudarem e se negli- cerca. Portanto, nem a energia nem o número
genciarmos os efeitos de superfície), mas isso não de partículas são quantidades conservadas. Se
produz nenhuma nova informação sobre as propri- o sistema aberto está em equilíbrio com o seu
edades térmicas do sistema. entorno, assumem-se valores médios da ener-
gia e do número de partículas que estão rela-
O conceito de um sistema termodinâmico requer
cionados com a temperatura e o potencial quí-
mais especificações. Nós o definimos como uma
mico (definido posteriormente). Pode-se usar
quantidade arbitrária de matéria, cujas proprieda-
a temperatura T e o potencial químico µ para
des podem ser exclusiva e completamente descri-
caracterizar um macro-estado.
tas, especificando certos parâmetros macroscópi-
cos. A matéria em consideração é confinada por
É óbvio que pelo menos o sistema isolado é uma
paredes físicas em relação a vizinhança. Se fizer-
idealização, já que na realidade uma troca de ener-
mos considerações adicionais sobre estas paredes
gia com o ambiente não pode ser evitada no sentido
(isto é, o recipiente), devemos então distinguir cada
estrito. Contudo, por meio de recipientes muito
sistema em:
bem isolados (dewars) os sistemas isolados se tor-

(a) Sistemas isolados - Estes sistemas não intera- nam experimentalmente factíveis com boa aproxi-
gem de forma alguma com o ambiente. O reci- mação. Além disso, se as propriedades de um sis-
piente deve ser impermeável a qualquer forma tema são as mesmas para qualquer parte dele, tal
de energia ou matéria. Especialmente, a ener- sistema é denominado homogêneo. No entanto, se
gia total E (mecânica, elétrica, etc.) é uma as propriedades mudarem descontinuadamente em
quantidade conservada para tal sistema e pode, determinadas superfícies marginais, o sistema é de-
portanto, ser usada para caracterizar o macro- nominado heterogêneo. As partes homogêneas de
estado. O mesmo vale para o número de partí- um sistema heterogêneo são ditas suas fases, en-
culas N e o volume V. quanto as superfícies de separação são ditas limites
de fase. Um exemplo típico para tal sistema é um
(b) Sistemas fechados - Estes sistemas só permi- pote fechado contendo água, vapor e ar. O limite
tem a troca de energia com o ambiente, mas de fase neste caso é a superfície da água. Fala-se de
não há troca de matéria. Assim, a energia não uma fase gasosa (vapor e ar) e de uma fase líquida
é mais uma quantidade conservada. Em vez (água). Em alguns casos, as propriedades macros-
disso, a energia real do sistema irá flutuar de- cópicas de um sistema dependem do tamanho (e
vido à troca de energia com o ambiente. No forma) dos limites de fase. Em nosso exemplo, te-
entanto, se o sistema fechado estiver em equi- remos propriedades macroscópicas diferentes se a
líbrio com seu entorno, a energia assumirá um água cobrir o fundo do vaso ou se for distribuída na
valor médio que está relacionado à tempera- forma de pequenas gotas (névoa).

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1.1. Equilíbrio e temperatura - a Lei Zero

Os sistemas abertos são particularmente interes- que não permitam a troca de energia em nenhuma
santes porque neles vemos uma auto-organização forma com a vizinhança, e também que a posição
espontânea. O exemplo mais espetacular de auto- do pistão esteja firmemente fixa. Cada um dos sis-
organização em sistemas abertos é a vida. Cada temas está fechado. Se agora liberarmos o pistão,
célula viva é um sistema aberto que troca matéria e ele procurará, em geral, uma nova posição. Da
energia com o seu exterior. As células de uma folha mesma forma, se o revestimento isolante for reti-
absorvem energia do sol e trocam matéria absor- rado do pistão fixo, para que energia (calor) possa
vendo CO2 , H2 O e outros nutrientes e liberando O2 fluir entre os dois sistemas, haverá uma redistribui-
na atmosfera. Um sistema biológico aberto pode ção de energia entre os dois sistemas. Novamente,
ser definido de forma mais geral: pode ser uma se furos forem feitos no pistão, haverá uma redis-
única célula, um órgão, um organismo ou um ecos- tribuição de matéria (e também de energia) entre os
sistema. Outros exemplos de sistemas abertos po- dois sistemas. A remoção de uma restrição em cada
dem ser encontrados na indústria; em reatores quí- caso resulta no aparecimento de algum processo es-
micos, por exemplo, as matérias-primas e a energia pontâneo e quando os sistemas finalmente se esta-
são as entradas e os produtos desejados e os resí- belecem em novos estados de equilíbrio e o fazem
duos são as saídas. com novos valores dos parâmetros U (1) , V (1) N (1) · · ·
(2) (2) (2)
Além da energia E, do volume V, do número de e U , V N · · · .O problema básico da termodi-
partículas N, da entropia S , da temperatura T , da nâmica é o cálculo dos valores de equilíbrio desses
pressão p e do potencial químico µ, tais quantida- parâmetros.
des incluem também a carga, o momento de dipolo,
o índice de refração, a viscosidade, a composição
química e o tamanho dos limites de fase. Por outro 1.1 Equilíbrio e temperatura - a
lado, as propriedades microscópicas, tais como as
Lei Zero
posições ou momento das partículas constituintes,
não se enquadram na definição de quantidades de
Sabemos que, se um sistema físico é isolado, seu
estado2 .
estado - especificado por variáveis macroscópicas
De maneira mais formal, o único e abrangente como pressão, temperatura e composição química -
problema da termodinâmica é a determinação do evolui irreversivelmente para um estado invariante
estado de equilíbrio que resulta eventualmente após no tempo no qual não vemos nenhuma mudança fí-
a remoção de restrições internas em um sistema sica ou química adicional. Este é o estado de equi-
composto fechado. Suponhamos que dois siste- líbrio termodinâmico. Tal estado é caracterizado
mas simples estejam contidos dentro de um cilin- por uma temperatura uniforme em todo o sistema.
dro fechado, separados um do outro por um pis- O estado de equilíbrio também é caracterizado por
tão interno. Suponha que as paredes do cilindro e várias outras características físicas que descrevere-
o pistão sejam rígidas, impermeáveis à matéria e mos posteriormente. A evolução de um sistema em

2
direção ao estado de equilíbrio se deve a proces-
Pode ser demonstrado (cf. a regra de fase de Gibbs) que
sos irreversíveis, assim, um estado de não equilí-
o número de grandezas de estado necessárias para uma deter-
minação única de um estado termodinâmico está intimamente brio pode ser caracterizado como aquele em que
relacionado ao número de fases de um sistema. processos irreversíveis estão ocorrendo, levando o

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1.1. Equilíbrio e temperatura - a Lei Zero

sistema ao estado de equilíbrio. estão em equilíbrio térmico entre si possuem uma


Um dos aspectos mais notáveis dos sistemas de propriedade intensiva comum, a qual denotaremos
não-equilíbrio que surgiram no século XX é o fenô- como temperatura. Consequentemente, sistemas
meno da auto-organização. Sob certas condições que não estão em equilíbrio térmico entre si pos-
3
de não equilíbrio, os sistemas podem passar es- suem temperaturas diferentes .
pontaneamente por transições para estados orga- Isso pode ser ilustrado facilmente já que a ex-
nizados, que, em geral, são estados com entro- periência nos mostra que quando três corpos, A, B
pia mais baixa. Por exemplo, sistemas químicos e C, com temperaturas T A , T B e TC , para as quais
de não equilíbrio podem fazer uma transição para T A > T B > TC são colocados em contato, o fluxo de
um estado no qual as concentrações de compos- calor obedece a direção das setas indicadas na Fi-
tos reagentes variam periodicamente, tornando-se gura 1.1. A medida que os corpos A e B entram
assim um ’relógio químico’. Os produtos quími-
cos reagentes também podem se organizar espa-
cialmente em padrões com grande simetria. Na
verdade, pode-se argumentar que a maior parte do
comportamento "organizado"que vemos na Natu-
reza é criado por processos irreversíveis que dissi-
pam energia e geram entropia. Por esses motivos,
Figura 1.1: Representação da Lei Zero.
essas estruturas são chamadas de estruturas dissi-
pativas. Em um sistema aberto, esses estados or-
ganizados poderiam ser mantidos indefinidamente, em equilíbrio, T A = T B > TC e portanto não a
mas apenas às custas da troca de energia e matéria mais fluxo de calor entre os corpos A e B. Con-
e do aumento da entropia fora do sistema. tudo, quando B e C entram em equilíbrio, o fluxo
A temperatura é uma quantidade de estado des- de calor entre eles também é interrompido, e con-
conhecida para a mecânica e para a eletrodinâmica. sequentemente T B = TC . Note que isso implica em
Ela é especialmente introduzida pela termodinâ- T A = T B = TC . Ou seja, não deve haver fluxo de
mica e sua definição está intimamente ligada com calor entre A e C. Isso significa dizer que, se A e B
o conceito de equilíbrio (térmico). A igualdade entram em equilíbrio térmico, e B e C também o fa-
da temperatura de dois corpos é a condição para çam, A e C obrigatoriamente estarão em equilíbrio
o equilíbrio térmico entre esses corpos. Quanti- térmico.
dades de estado termodinâmicas são definidas (e Podemos agora definir precisamente a noção de
mensuráveis) apenas no equilíbrio. Como a experi- temperatura através da especificação de como e em
ência mostra, todos os sistemas que estão em equi- que unidades a temperatura deve ser medida. A
líbrio térmico com outro dado sistema, também es- medição é realizada da seguinte maneira: um sis-
tão em equilíbrio térmico entre si. Esse é um fato tema cujo estado de equilíbrio térmico está unica-
empírico, o qual usaremos como fundamentação mente ligado com uma quantidade de estado facil-
de nossa definição de temperatura. O enunciado mente observável (isto é, um termômetro), é posto
anterior também é conhecido como Lei Zero da 3
Para uma descrição matemática da Lei Zero, ver Apên-
Termodinâmica. Desta maneira, sistemas os quais dice A.

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1.1. Equilíbrio e temperatura - a Lei Zero

em equilíbrio térmico com o sistema no qual a tem- numa marca fixa N, definindo um volume V cons-
peratura deve ser medida. A quantidade de estado tante ocupado pelo gás.
a ser observada pode ser, por exemplo, o volume
de um fluido (termômetro de fluido) ou de um gás
(termômetro de gás).
Como podemos observar, o processo de medi-
ção da temperatura está ligado com uma equação
de estado, ou seja, a relação entre a quantidade de
estado observada (no caso, volume) e a tempera-
tura. Se explorarmos o fato de que muitos tipos de
gases se comportam de forma semelhante quando
estão diluídos, podemos definir a temperatura ter- Figura 1.2: Termômetro de gás a volume constante.
modinâmica T com o auxílio do volume de um gás
diluído conforme
O bulbo é colocado em contato térmico com o
V sistema cuja temperatura se quer medir, e a seguir
T = T0 (1.1)
V0 é medida a pressão p do gás, dada por
para pressão e número de partículas constantes p = p0 + ρgh (1.2)
(este é um resultado experimental conhecido como
Lei de Charles e será explorado com mais detalhes onde p0 é a pressão atmosférica, suposta conhe-
posteriormente). Desta maneira, podemos cons- cida, ρ é a densidade do mercúrio, e h é o desnível
truir escalas na qual a temperatura termodinâmica entre o mercúrio contido no ramo da direita e no
de um dado sistema pode ser expressa. As esca- da esquerda.
las mais famosas são a Celsius (◦ C), a Fahrenheit Sejam p0v e p0g os valores de p no ponto de va-
(◦ F) e a Kelvin (K). Historicamente, a unidade de por e no ponto de gelo, respectivamente, quando
temperatura foi fixada definindo a temperatura do M0 é a massa de gás que ocupa o volume V. Su-
ponto de derretimento do gelo como sendo 0 ◦ C e ponhamos que se repitam as medidas reduzindo a
o ponto de vaporização da água como sendo 100 massa de gás para M1 < M0 (o volume V sempre

C (à pressão atmosférica), dando origem então a permanece constante). As pressões medidas nos
escala Celsius. A conversão para a escala Kelvin é pontos de vapor e de gelo serão agora p1v < p0v
ilustrada no exemplo a seguir. e p1g < p0g . Para uma massa de gás M2 < M1 , os
valores caem para p2v < p1v e p2g < p1g .
Se fizermos um gráfico da razão (pv /pg )V (onde
Exemplo 1. O termômetro de gás a volume cons- o índice V significa que o volume V do gás é
tante está esquematizado na Figura 1.2. O gás, ge- mantido constante) como função da massa M de
ralmente hidrogênio, enche um bulbo e um tubo ca- gás, verificaremos experimentalmente que, à me-
pilar ligado a um manômetro de mercúrio de tubo dida que pg vai baixando, os pontos experimentais
aberto. O tubo flexível permite suspender ou abai- tendem a cair sobre uma reta (Figura 1.3). Para
xar o nível de mercúrio no ramo da direita de tal gases diferentes, as retas são diferentes, mas, se as
forma que o nível do ramo da esquerda permaneça extrapolarmos ao limite pg → 0 (o que equivale

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1.1. Equilíbrio e temperatura - a Lei Zero

o que, com T g dado4 pela (1.5), determina T .

Uma outra forma de se estabelecer a escala ab-


soluta de temperatura pode ser derivada a partir da
Lei de Boyle (Veja o exemplo a seguir). Esta lei
também foi obtida a partir de resultados experimen-
tais e diz que o produto do volume molar pela pres-
são de qualquer gás (ideal) é uma constante que é
Figura 1.3: Comparação com gases diferentes.
função da temperatura. Ou seja,

pv = constante = f (T ) (1.7)
a M → 0 e não pode obviamente ser atingido ex-
perimentalmente), o resultado experimental é que
todas as retas interceptam o eixo das ordenadas no
mesmo ponto, correspondente ao valor ≈ 1, 3661. Exemplo 2. Novamente vamos usar um termôme-
Logo, ! tro de gás e os pontos de vapor e congelamento da
pv Tv
lim = ≈ 1, 3661. (1.3) água como referência. Portanto, ao variarmos a
p0 →0 pg Tg pressão p do sistema, o volume molar v também
Este limite define a razão T v /T g das temperatu- irá variar desde que a temperatura seja mantida
ras absolutas T v e T g correspondentes ao ponto de constante. Com isso, podemos introduzir o valores
vapor e ao ponto de gelo, respectivamente. Para de pv = f (t) para as temperaturas T e T em um
v g
completar a definição da escala de temperatura ab- gráfico como mostrado na figura a seguir.
soluta, também chamada de escala Kelvin, impo-
mos a condição de que a diferença T v − T g , corres-
ponde a 100 graus na escala Kelvin:

T v − T g ≈ 100K. (1.4)

As (1.3) e (1.4) podem agora ser resolvidas para


dar T v e T g como
100 + T g
≈ 1, 3661 → T g = 273, 15 K, (1.5)
Tg
o que dá T v ≈ 373, 15 K. Desta maneira, para me-
dir a temperatura na escala Kelvin com o auxílio Figura 1.4: Derivação da escala Kelvin a partir da Lei
de Boyle.
do termômetro de gás a volume constante, medi-
mos a pressão p correspondente, extrapolada para
4
o limite pg → 0, como o caso da (1.3). A tempera- Em lugar do ponto de gelo, é adotado atualmente como
ponto fixo padrão o ponto triplo da água, em que vapor de
tura absoluta T correspondente é dada então por
água coexiste em equilíbrio com água líquida e gelo. Isto
ocorre para uma pressão e temperatura bem definidas e então
!
p
T = T g lim (1.6)
p0 →0 pg se usar no lugar de T g , T tr = 273, 16 K.
V

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1.2. Variáveis de estado

Como ilustrado na Figura 1.4, existem várias de equilíbrio. Por exemplo, vamos considerar uma
formas (interpolações) de se conectar os dois pon- placa elétrica, que pode ser encontrada em muitos
tos apresentados no gráfico. Contudo, ao escolher- lares. Se alguém colocar uma panela com uma re-
mos a interpolação linear, encontramos uma infor- feição em cima dela, depois de algum tempo, um
mação muito importante. Note que a interpolação estado estacionário será atingido quando a tempe-
linear nos mostra que existe um ponto no eixo das ratura da refeição não for mais alterada. Isso, no
temperaturas para o qual f (t) = 0. Contudo, como entanto, não é um estado de equilíbrio térmico,
f (t) = pv essa função nunca pode assumir valores desde que os arredores tenham uma temperatura di-
menores do que zero, já que pressão e volumes ne- ferente. É preciso fornecer continuamente ao sis-
gativos não tem sentido físico. Desta maneira, aca- tema energia (elétrica) para evitar o resfriamento
bamos de encontrar o menor valor assumido por do prato, que continuamente irradia energia (calor)
f (t), ou seja seu mínimo absoluto. Este valor é co- para o ambiente. Este sistema não é isolado, pois a
nhecido como zero absoluto e pode ser encontrado energia é fornecida e emitida.
como sendo −273, 15 ◦C = 0 K desde que sejamos
capazes de obter os valores numéricos de f (T v ) e
1.2 Variáveis de estado
f (T g ) e de fazer uma simples regressão linear.
Na última seção, tratamos explicitamente da no-
ção central de temperatura. Agora queremos discu-
Já a conversão para a escala Fahrenheit é dada
tir várias outras quantidades de estados. Quantida-
por
des de estado adicionais serão definidas nas seções
5
y[ C] = (x[◦ F] − 32) .

(1.8) a seguir. Em geral, mediremos quantidades de ma-
9
téria em termos do número de partículas N. Como
Do ponto de vista estatístico, entretanto, essa no-
N assume valores muito grandes para sistemas ma-
ção de temperatura produz relações muito simples
croscópicos, muitas vezes usamos múltiplos do nú-
na teoria cinética dos gases. Por exemplo, nossa
mero de Avogadro NA = 6, 0221367 × 1023 . A uni-
temperatura absoluta é diretamente proporcional à
dade de massa atômica u é especialmente conveni-
energia cinética média das partículas de gás e, as-
ente para medir massas de partículas únicas (áto-
sim, alcança um significado microscópico simples
mos e moléculas); e é definida por
e ilustrativo. Em particular, podemos observar que
1 12
não há temperaturas absolutas negativas no equilí- 1u= m C (1.9)
12
brio termodinâmico, pois se todas as partículas es-
isto é, através da massa de um átomo do isótopo de
tão em repouso (energia cinética zero), a energia
carbono 12 C. Esta unidade é muito útil, pois hoje
média é zero e, portanto, também a temperatura.
em dia as massas atômicas são medidas com muita
Energias cinéticas negativas, no entanto, são im-
precisão em espectrômetros de massa que são par-
possíveis. É de grande importância separar a no-
ticularmente facilmente calibrados com compostos
ção de equilíbrio da de estado estacionário. Em
de carbono. O número de Avogadro é apenas o nú-
um estado estacionário, as grandezas de estado ma-
mero de partículas com massa 1 u. que no total
croscópico também são independentes do tempo,
possuem 1 g de massa,
mas esses estados estão sempre conectados com um
1g
fluxo de energia, o que não é o caso dos estados NA = = 6, 0221367 × 1023 (1.10)
1u

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1.2. Variáveis de estado

A quantidade de partículas NA também é chamada nica, bem como com a energia elétrica ou magné-
de 1 mol de partículas. Se um sistema consiste em tica da eletrodinâmica e com a energia química, que
vários tipos de partículas, por exemplo partículas também é de origem elétrica. Na termodinâmica,
N1 , N2 , ..., Nn de n espécies, a chamada fração mo- apenas a energia total de um sistema, que é uma
lar X ′ é uma quantidade conveniente para medir a quantidade macroscópica, desempenha um pa-
constituição química, pel: a energia de uma única partícula não tem
Nj significado, mas a energia média por partícula
X ′j = (1.11) E/N é muito importante. A termodinâmica não
N1 + N2 + · · · + Nn
Como se pode ver na definição, j X ′j = 1. A fra- nos diz como a energia total é distribuída sobre as
P

ção molar, portanto, denota a constituição fracioná- partículas individuais. Como exemplo das formas
ria de um sistema. É uma variável intensiva e pode de energia mencionadas acima, usaremos o con-
assumir valores diferentes em diferentes fases. ceito de trabalho da mecânica em problemas ter-
Por outro lado, a pressão pode ser entendida em modinâmicos. Temos então que
termos puramente mecânicos como uma força que δW = −Fi · ds (1.14)
age perpendicularmente a uma área conhecida A. se Fi é a força exercida pelo sistema ds é um pe-

(1.12) queno elemento de linha. O sinal de menos na


F⊥
p=
A Equação (1.14) é puramente convencional em ter-
Portanto, temos [p] = N · m−2 = Pa como unidades modinâmica: contamos a energia que é adicionada
de pressão. Curiosamente, a pressão tem a mesma a um sistema como positiva e a energia que é sub-
dimensão que a densidade de energia, pois traída de um sistema como negativa. Como exem-
plo para o trabalho realizado em um sistema, consi-
1n · m−2 = 1kg · m · s−2 · m−2 = 1J · m−3 (1.13)
deramos a compreensão de um gás contra sua pres-
Para sistemas específicos, frequentemente des- são interna (Figura 1.5). Em equilíbrio, a força ex-
cobriremos que a pressão está relacionada à den-
sidade de energia principalmente de uma maneira
muito simples. Além disso, a pressão também pode
ser definida localmente, isto é, em um pequeno sis-
tema parcial. Para medir a pressão, coloca-se uma
pequena área de teste (área da unidade) no sistema
e mede-se a força que o sistema exerce em um lado
da área. O outro lado da área de teste deve ser me- Figura 1.5: Trabalho compressional.
canicamente isolado do sistema. Nesse lado, pode
haver uma pressão de referência conhecida p0 . A
diferença de pressão p − p0 entre as a pressão e terna Fa é igual à força Fi = pA, que é exercida
a pressão interna do barômetro causam uma força pela pressão p em um pistão com a área A. Se al-
efetiva que atua na área de teste. guém empurra o pistão uma distância ds ainda mais
Uma quantidade central da termodinâmica (e fí- no volume contra o a força exercida pelo sistema, a
sica em geral) é a energia. Estamos bem familiari- quantidade de trabalho necessária é dada por
zados com a energia cinética e potencial da mecâ- δW = pAds > 0 (1.15)

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1.2. Variáveis de estado

desde que ds e Fi apontam em direções opostas. pode ser escrito como A(T ) = A0 + A1 T , onde A0 e
Contudo, Ads = −dV é o decréscimo no volume A são constantes. A constante, A1 , é negativa para a
do gás dV < 0 no recipiente, e portanto, temos maioria das substâncias, mas pode ser positiva para
algumas substâncias (incluindo a borracha). Com
δW = −pdV (1.16)
isso, o trabalho necessário para se esticar ou com-
Como se percebe prontamente, essa equação tam- primir o sistema pode ser escrito como
bém vale para uma expansão. Observe que po- δW = JdL (1.19)
demos considerar apenas uma quantidade infini-
Além disso, líquidos puros em equilíbrio com
tesimal de trabalho, pois a pressão muda durante
sua fase de vapor têm uma camada superficial bem
a compressão. Para calcular o trabalho compres-
definida na interface entre as fases líquida e de va-
sional total, é necessário uma equação de estado
por. As propriedades mecânicas da camada super-
p(V). É uma propriedade geral da energia adicio-
ficial podem ser descritas por variáveis de estado
nada ou subtraída de um sistema que é o produto
termodinâmicas. A origem da camada superficial
de uma quantidade intensiva de estado (pressão) e
é a distribuição desigual de forças intermoleculares
a mudança de uma quantidade de estado extensiva
agindo sobre as moléculas na superfície. Molécu-
(volume). Podemos ilustrar isso com mais exem-
las no interior do líquido são cercadas e interagem
plos. Se o sistema, por exemplo, contém uma carga
com moléculas de todos os lados. Moléculas na
elétrica e, essa carga gera um potencial elétrico
superfície interagem principalmente com molécu-
φ. Se alguém quiser adicionar outra carga de com
las no líquido, uma vez que a fase de vapor (longe
o mesmo sinal ao sistema, precisará realizar uma
do ponto crítico) é muito menos densa que o lí-
quantidade de trabalho dada por
quido. Como resultado, existe uma forte tendência
δW = φde (1.17) para as moléculas na superfície serem puxadas de
volta para o líquido e para a superfície do líquido
O potencial elétrico definido localmente é a quan-
se contrair. As forças moleculares envolvidas são
tidade intensiva que descreve a resistência do sis-
enormes. Devido a essa tendência de a superfície
tema contra a adição de outra carga, assim como a
se contrair, é necessário trabalhar para aumentar a
pressão é a resistência contra a compressão. O si-
superfície livre do líquido. Quando a área da super-
nal na Equação (1.17) é causado pelo fato de que
fície é aumentada, as moléculas do interior devem
adicionar uma carga positiva enquanto o potencial
ser trazidas para a superfície e, portanto, o trabalho
é positivo corresponde ao trabalho realizado em um
deve ser feito contra as forças moleculares do inte-
sistema.
rior. O trabalho por unidade de área necessário para
Já para um fio ou haste esticada no limite elás-
estender a área de superfície é chamado de tensão
tico, a Lei de Hooke se aplica e podemos escrever
superficial do líquido. Para a maioria dos líquidos
J = A(T )(L − L0 ) (1.18) puros, a tensão superficial não depende da área e a
equação de estado tem a forma
onde J é a tensão medida em [N/m], A(T ) é um  t n
σ = σ0 1 − ′ , (1.20)
coeficiente dependente da temperatura, L é o com- t
primento do fio ou haste esticada e L0 é o compri- onde t é a temperatura em graus Celsius, σ0 é a ten-
mento do fio quando J = 0. O coeficiente A(T ) são superficial em t = 0◦ C, t′ é temperatura expe-

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1.2. Variáveis de estado

rimentalmente determinada a alguns graus da tem- é aplicado, os spins se alinham para produzir uma
peratura crítica e n é uma constante experimental magnetização M (momento magnético por unidade
que tem um valor entre um e dois. Neste o trabalho de volume). O campo de indução magnética, B
necessário para modificar o sistema é dado por (medido em unidades de teslas, 1T = IWeber/m2 ),
o campo magnético auxiliar, H (medido em unida-
δW = σdA. (1.21)
des de [A/m]) e a magnetização estão relacionadas
Quando um campo elétrico E é aplicado a nosso através da equação
sistema termodinâmico (material dielétrico), as
B = µ0 H + M (1.25)
partículas que compõem o dielétrico serão distor-
cidas e um campo de polarização elétrica, P (P é o onde µ0 é a permeabilidade magnética do vácuo
 
momento do dipolo elétrico induzido por unidade µ0 = 4π × 10−7 T · m/A . A equação de estado
de volume), será configurado pelo material. A po- para tal sistema a temperatura ambiente é bem des-
larização está relacionada ao campo elétrico, E, e crita pela Lei de Curie:
ao deslocamento elétrico, D, pela equação
ND
M= H (1.26)
T
D = ǫ0 E + P (1.22)
ond N é o número de mols, D é uma constante ex-
onde ǫ0 é a permissividade elétrica, ǫ0 = 8, 854 × perimental que depende do tipo de material e T é a
10−12 C 2 /N · m2 . O campo elétrico E tem unidade temperatura medida em graus Kelvin. Assim como
de [N/C] e o deslocamento elétrico e a polarização anteriormente, o trabalho necessário para adicio-
elétrica tem unidade de [C/m2 ]. E resulta de cargas narmos outro dipolo ao sistema é dado por
externas e de superfície. A magnitude do campo
de polarização, P, dependerá da temperatura. Uma δW = H · dM. (1.27)
equação de estado típica para um dielétrico homo-
Para completar nossa lista de possíveis realiza-
gêneo é dada por
! ções de trabalho, consideramos o trabalho necessá-
b
P= a+ E (1.23) rio para adicionar outra partícula a um sistema ter-
T modinâmico. Pode-se pensar que isso não requer
para temperaturas não muito baixas. Aqui a e b nenhum trabalho, mas esse não é o caso. Nosso
são constantes experimentais e T é a temperatura sistema deve manter o equilíbrio após adicionar a
em graus Kelvin. Portanto, neste caso, o trabalho partícula; portanto, não podemos simplesmente co-
necessário para adicionar outro dipolo ao sistema locar a partícula em repouso no sistema. Em vez
pode ser escrito como disso, ele precisa ter uma certa energia que seja
comparável à energia média de todas as outras par-
δW = E · dP. (1.24) tículas. Nós definimos

Se considerarmos um sólido paramagnético a δW = µdN (1.28)


pressão constante, o volume muda muito pouco em
função da temperatura. Podemos então especificar como o trabalho necessário para alterar o número
o estado em termos de campo magnético aplicado de partículas por uma quantidade dN. A quanti-
e magnetização induzida. Quando o campo externo dade intensiva de campo é chamada de potencial

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1.2. Variáveis de estado

químico e representa a resistência do sistema con-


tra a adição de partículas. É óbvio que se pode de-
finir e medir o potencial químico com a ajuda da
Equação (1.28), bem como se pode medir o poten-
cial elétrico com a Equação (1.17). Se o sistema
consiste em várias espécies de partículas, cada es-
pécie tem seu próprio potencial químico µ j , e dN j
é a mudança no número de partículas das espécies
i. Isso é válido desde que as espécies de partículas
não interajam. Todos os tipos diferentes de trabalho
têm a propriedade genérica de que podem ser con-
vertidos um no outro sem restrições. Por exemplo,
podemos levantar um peso com energia elétrica ou
obter energia elétrica do trabalho mecânico com a
ajuda de um gerador. Não há objeção de princípio
de que essas conversões não prossigam completa-
mente, ou seja, com uma taxa de 100%, embora os
conversores de energia reais sempre tenham perdas.

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1.2. Variáveis de estado

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Apêndice A

Descrição matemática da Lei Zero

para C1 para fornecer


Como descrito no texto principal, a Lei Zero da
C1 = F AC (A1 , A2 , · · · ; C2 , · · ·)
Termodinâmica descreve a natureza transitiva do
C1 = F BC (B1 , B2 , · · · ; C2 , · · ·)
equilíbrio térmico. Ela afirma que: se dois sis-
temas, A e B, estão separadamente em equilí- (A.3)
brio com um terceiro sistema C, então eles tam-
Assim, se C está separadamente em equilíbrio com
bém estão em equilíbrio um com o outro. Ape-
A e B, devemos ter
sar de sua aparente simplicidade, a Lei Zero tem
como consequência implicar a existência de uma F AC (A1 , A2 , · · · ; C2 , · · ·) = F BC (B1 , B2 , · · · ; C2 , · · ·)
importante função de estado, a temperatura empí- (A.4)
rica T , de forma que os sistemas em equilíbrio es- No entanto, de acordo com a Lei Zero, também há
tão à mesma temperatura. equilíbrio entre A e B, implicando a restrição
Prova: Seja o estado de equilíbrio dos sistemas
fAB (A1 , A2 , · · · ; B1 , B2 , · · ·) = 0. (A.5)
A, B e C descrito pelas coordenadas {A1 , A2 , · · ·},
{B1 , B2 , · · ·}, e {C1 , C2 , · · ·}, respectivamente. A su- Portanto, deve ser possível simplificar a Equação
posição de que A e C estão em equilíbrio implica (A.4) cancelando as variáveis de C. Portanto, a
uma restrição entre as variáveis de A e C, ou seja, condição (A.5) para o equilíbrio de A e B deve ser
uma variação em A1 deve ser acompanhada por al- expressa como
guma variação em {A2 , · · · , C1 , C2 , · · ·} para manter
o equilíbrio de A e C. Denote esta restrição por T A (A1 , A2 , · · ·) = T B (B1 , B2 , · · ·) (A.6)

isto é, o equilíbrio é caracterizado por uma função


fAC (A1 , A2 , · · · ; C1 , C2 , · · ·) = 0. (A.1)
T de coordenadas termodinâmicas. Esta função es-
pecifica a equação de estado, e as isotermas de A
O equilíbrio de B e C implica em uma restrição se- são descritas pela condição T A (A1 , A2 , · · ·) = T .
melhante

fBC (B1 , B2 , · · · ; C1 , C2 , · · ·) = 0. (A.2)

Cada uma das equações acima pode ser resolvida

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