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“A lei fcou louca”: A Lei Maria da Penha e os

efeitos da incondicionalidade da lesão corporal no


trabalho policial em duas DDM de São Paulo1

beatRiz accioly lins


Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v22i22p289-300 would have impacted the practice and discourse of


police ofcers in two Women’s Police Stations in
resumo Em 2006, foi promulgada a Lei nº 11.340, São Paulo, investigating the interaction of the police
Lei Maria da Penha, com o propósito de criar meca- ofcers with the new law and the changes it brings,
nismos para coibir a violência doméstica e familiar the meanings attributed to it, and more specifcally
contra a mulher. Viso compreender de que maneira the efects of the decision of the Supreme Court, in
tal mudança teria impactado a prática e falas poli- February 2012, to transform the ofense of bodily
ciais em de duas Delegacias de Defesa da Mulher da harm, within the context of domestic violence, cri-
cidade de São Paulo, investigando a interação das minal investigation despite the wishes of the victim.
policiais com a nova lei e as mudanças nela previs- keywords Maria da Penha Law; Women’s Police
tas, os signifcados que lhe são atribuídos, e mais Stations; Domestic violence; Police
especifcamente os efeitos da decisão do Supremo
Tribunal Federal, de fevereiro de 2012, de transfor- Te decisions of street-level bureaucrats, the
mar o delito de lesão corporal, dentro do contexto routines they establish, and the devices they
da violência doméstica, em ação pública incondi- invent to cope with uncertainties and work
cionada, isto é, retirando da mulher a decisão de pressures, efectively become the public policies
transformar o registro da ocorrência em investiga- they carry out.
ção e instaurando o inquérito policial a despeito da Michael Lipsky, Street Level Bureaucracy
vontade da vítima.
palavras-chave Lei Maria da Penha; Delegacia de Diariamente, diversas mulheres dirigem-se à
Defesa da Mulher; Violência doméstica; Polícia uma das nove Delegacias de Defesa da Mulher
(DDM) em atividade na cidade de São Paulo
“The law went crazy”: Maria da Penha law visando registrar denúncias ou buscar orienta-
and the effects of the ‘incondicionalidade’ ções sobre situações de violência doméstica e
of bodily harm crimes in police work in two familiar que vivenciam ou testemunham. Em
Women’s Police Stations in São Paulo uma quantidade signifcativa das vezes, os ca-
sos levados às DDM são agressões físicas que
abstract In 2006, law No. 11.340, also known as deixam marcas evidentes não só nos relatos e
Maria da Penha Law, was enacted in Brazil, with sentimentos expostos, mas nos corpos que tran-
the purpose of creating mechanisms to prevent do- sitam pelos corredores e espaços das delegacias.
mestic and family violence against women. In my Entre falas, choro e perguntas, é comum que os
research, I seek to understand how such a change balcões de atendimento das delegacias reúnam

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mulheres que trazem em si os indícios de rela- saber que não são todos os Boletins de Ocor-
ções afetivas e familiares turbulentas e agressivas rência (BOs) registrados em uma DDM que se
na forma de hematomas, arranhões e machuca- transformam em inquéritos policiais. A princí-
dos. Desde agosto de 2012, conduzo uma pes- pio, um BO é apenas um registro - nem sempre
quisa etnográfca em duas Delegacias de Defesa criminal - realizado na instância policial, que
da Mulher da cidade – localizadas no centro e pode ou não ter consequências jurídicas para os
no extremo sul periférico de São Paulo.2 Em envolvidos. São as policiais que decidem, anali-
ambas as delegacias, os casos de agressões físicas sando os relatos das pessoas que buscam a dele-
que deixam marcas nos corpos são, invariavel- gacia, quais narrativas poderiam ser classifcadas
mente, tratados como denúncias de lesão corpo- como crimes, e em quais tipos criminais cada
ral3 (art. 129 do Código Penal) e registrados em caso relatado será registrado. Em se tratando
ocorrências que, desde fevereiro do mesmo ano, de relatos passíveis de serem qualifcados em ti-
se confguram como ações incondicionadas, isto pos criminais, as ocorrências mais comuns nas
é, transformam-se imediatamente em inquéri- DDM costumam ser divididas, pelas policiais,
tos policiais, investigações preliminares enviadas em duas categorias: os casos de violência domés-
para a instância judicial responsável pelos casos: tica, registrados na lei 11.340/06 (Lei Maria da
os Juizados de Violência Doméstica e Familiar Penha) e casos de estupros, que podem ser regis-
contra a Mulher (JVD). trados como simples ou de vulnerável.4
Este artigo tem como foco a busca por uma Nos casos enquadrados na categoria de vio-
compreensão mais aprofundada das nuances e lência doméstica, as ocorrências registradas nas
dos signifcados do trabalho policial no cotidia- DDM geralmente observam três tipos criminais
no dessas duas Delegacias de Defesa da Mulher principais: a lesão corporal (art. 129 do Código
a partir das mudanças trazidas pela Lei Maria Penal), a ameaça (art. 147) e a injúria (art.140).
da Penha, com atenção especial para os efeitos Para além da nomenclatura, o enquadramento
da uniformização da incondicionalidade da lesão dos relatos das vítimas em cada uma dessas na-
corporal. Em minha experiência de campo, o turezas determina o tratamento jurídico-policial
fato de a denúncia ter passado a se transformar posterior desses BOs tanto na polícia quanto
em investigação e processo criminal a despeito nos juizados, e as diferenças entre os possíveis
da vontade da vítima trouxe efeitos signifcati- destinos das denúncias, embora possam escapar
vos para o trabalho nas delegacias, gerando um às vítimas, são extremamente relevantes para as
aumento substancial na quantidade de inquéri- saídas jurídicas – e punições – posteriores.
tos e criando diferentes estratégias policiais para Neste momento, é preciso aventurar-se por
o tratamento dos casos atendidos. mais uma tecnicidade jurídica. Em se tratando
da Lei Maria da Penha, atualmente, as ocorrên-
cias de lesão corporal5 são “ações públicas incon-
Separando o joio do trigo: a dicionadas”, o que signifca que uma vez feita
qualifcação dos casos de violência a denúncia, esta se transforma em investigação
doméstica e os efeitos jurídico-penais policial e será encaminhada à justiça indepen-
de seus encaminhamentos dentemente da vontade da vítima. A ameaça,
por sua vez, é uma “ação pública condiciona-
Para entender o efeito da recente alteração de da”, e para se transformar em uma investigação
tratamento dos casos de lesão corporal, é preciso policial e em processo criminal, depende que a

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vítima expresse intenção de processar o acusa- 2012, nos cartórios das DDM acompanhadas,
do, comunicando à polícia sua decisão de fa- os inquéritos são majoritariamente oriundos
zer uma representação daquela queixa. O prazo de ocorrências de lesão corporal, devido, sobre-
para representar uma ameaça é de seis meses a tudo, à incondicionalidade do crime, embora
partir da data dos fatos registrados. Embora as também se encontre algumas representações de
policiais se esforcem para esclarecer as vítimas a ameaças. São poucos os casos de investigação
respeito dessa signifcativa diferença entre ame- em se tratando de injúrias.
aças e agressões, nem sempre parece fcar clara
a importância desta distinção para o tratamen-
to jurídico-policial das ocorrências registradas. “Agora é lei”: antes e depois da
Nesse sentido, o procedimento da representação Lei Maria da Penha e os efeitos de
parece ser bastante confuso para as mulheres fevereiro de 2012
que buscam as DDM. Em diversos momentos,
tive a impressão de que algumas deixavam o Em sete de agosto de 2006 foi promulgada
plantão carregando diversos papéis e algumas pelo governo federal a Lei nº 11.340/2006, co-
orientações, mas sem a clareza das consequên- nhecida como Lei Maria da Penha, responsável
cias de suas escolhas. pela defnição da primeira norma jurídica visan-
Se é comumente difícil que as vítimas en- do à punição e à prevenção à violência doméstica
tendam as nuances e tecnicidades do linguajar e familiar6 contra mulheres no Brasil. Promul-
jurídico para distinguir lesões de ameaças, nos gada no mês anterior, a lei surgiu tanto como
casos de injúria a incompreensão parece ser uma resposta tardia a articulações de diferentes
ainda mais generalizada. Injúria é o tipo cri- demandas de organizações de defesa dos direitos
minal no qual são geralmente enquadrados ca- das mulheres que reivindicavam medidas mais
sos de ofensas, xingamentos e agressões verbais austeras contra os autores de violência contra as
relatados pelas vítimas. Destaca-se que o que mulheres, assim como uma tentativa do Estado
é considerado ofensivo pode variar profunda- brasileiro de se adequar à diversas convenções
mente de acordo com cada profssional. Em internacionais dos quais é signatário,7 amplian-
geral, privilegiam-se como injúrias termos que do o acesso à justiça para suas cidadãs.
agridam a moral sexual da mulher, como “vaga- O texto da nova lei tipifca como crimes he-
bunda”, “vadia” ou “puta”. Diferentemente da diondos delitos que, até então, encontravam-se
lesão corporal e da ameaça, a injúria é uma “ação em uma alçada de legislações genéricas conside-
privada”, e necessita que a vítima, para além radas mais vulneráveis às reproduções das desi-
de realizar o registro policial, procure pelos ser- gualdades de gênero; e pune de maneira rigorosa
viços de um advogado e, também, entre com confitos que costumavam ser trivializados e tra-
uma queixa-crime no fórum criminal, para, só tados condescendentemente pelo sistema de jus-
assim, transformar a ocorrência em um pro- tiça brasileiro. A partir de 2006, o Agora é lei se
cesso contra o acusado. As policiais enfatizam transformou em um importante jargão daqueles
para as mulheres essa hierarquização no caso que lutaram pelo aumento do rigor punitivo
das ofensas, esclarecendo que, juridicamente, para autores das agressões contra mulheres, pelo
xingamentos seriam inferiores a agressões. menos em âmbito doméstico e familiar.
No período em que tive acesso aos proces- No entanto, apesar do tom majoritaria-
sos criminais das delegacias, isto é, a partir de mente positivo, parecia ser também generaliza-

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da cautela que chamava atenção para o fato de De maneira fortuita, minha pesquisa de
que, para além das inovações normativas que a campo teve início durante um período de tran-
Lei Maria da Penha anuncia, seriam necessárias sição para as duas DDM acompanhadas. Tal
altas dose de atenção, vigilância e paciência até mudança foi oriunda de diversas críticas feitas
que a nova lei fosse absorvida e efetivamente a obstáculos e entraves que a Lei Maria da Pe-
aplicada em casos reais levados à justiça. Após nha continuava a encontrar entre os operado-
a vitória, restou a dúvida: seria a lei aplicada de res do direito, uma vez que, sendo necessária a
fato ou as diferentes esferas da justiça responsá- vontade da vítima para que os casos registrados
veis pelo seu tratamento encontrariam formas nas delegacias se transformassem em investi-
de subutilização ou até mesmo de boicote ao gações, na maior parte das vezes os BOs não
que está estipulado em seu texto? seguiam adiante e não traziam consequências
Visando sanar tal limitação, entendeu-se para os acusados ou para as vítimas.
ser vital mobilizar esforços para investigar a Visando responder a esta limitação, em fe-
inserção da Lei Maria da Penha dentro das ins- vereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal
tâncias responsáveis pela sua aplicação, em es- (STF) brasileiro decidiu tratar, uniformemen-
pecial as Delegacias de Defesa da Mulher e os te, os casos de lesão corporal – registrados den-
recém-criados Juizados de Violência Domésti- tro do contexto da violência doméstica – como
ca e Familiar contra a mulher (JVD). Dentro “ações públicas incondicionadas”. Anterior-
deste contexto, buscando sinalizar possíveis mente à decisão do Supremo, não havia con-
incongruências entre a lei enquanto norma e senso sobre a necessidade de representação nos
a lei enquanto prática, pesquisadoras teceram casos de lesão corporal, dependendo do juiz da
importantes críticas e ressalvas quanto à efe- vara a decisão acerca do seguimento do proces-
tiva aplicação da lei, isto é, sua existência de so (ZAPATER & PERRONE, 2010). Apesar
acordo com a normativa estabelecida a partir de, à primeira vista, a tecnicidade do linguajar
das interpretações conferidas por profssionais jurídico não deixar evidente, tal decisão repre-
do sistema de justiça.8 sentou uma signifcativa mudança no trata-
Tais análises, em geral, apontam para os mento de alguns casos de violência doméstica
obstáculos e entraves que a lei teria passado a que chegam à esfera jurídico-policial.
enfrentar dentro do próprio sistema de justiça, Nas duas DDM, em que realizo minha pes-
começando com a atuação da polícia nas dele- quisa, a alteração foi sentida de maneira drástica.
gacias, passando pelos demais órgãos da rede de Antes de fevereiro, de maneira geral, optava-se
atendimento e culminando na atividade de pro- por instaurar inquéritos de lesão corporal somen-
motores, defensores e juízes dentro dos juizados te se as vítimas expressassem intenção de proces-
especializados. Grosso modo, observou-se que sar os acusados ou se as delegadas entendessem
antigas ressalvas feitas ao trabalho de profssio- a necessidade de uma investigação do ocorrido.
nais que lidavam com mulheres em situação de Nos demais casos, o trabalho policial se limita-
violência doméstica continuavam pertinentes, va ao registro da ocorrência. Nesse sentido, a
tais como o descaso e a desconfança para com decisão do Supremo teve efeitos quantitativos
os relatos das vítimas e a permanência de práticas relevantes no volume de trabalho destas DDM,
que infuenciavam negativamente a aplicação da em especial no aumento expressivo do número
lei, gerando possibilidades de burlar a norma e de inquéritos instaurados, fazendo com que as
assim, auxiliando a perpetuar a violência. policiais destas delegacias considerem esta mu-

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dança mais signifcativa do que a própria pro- em investigação/processo e que seria necessá-
mulgação da Lei Maria da Penha. ria uma audiência com um juiz para resolver
Se a promulgação da Lei Maria da Penha o caso. Muitas dessas mulheres se mostravam
foi interpretada por alguns grupos militantes frustradas e insatisfeitas com a mudança na lei.
como uma mudança positiva no tratamento Também foram recorrentes as situações em que
da violência doméstica em âmbito jurídico- mulheres compareciam às delegacias buscando
-policial, no dia a dia do trabalho policial das retirar as queixas, e ao serem informadas da im-
DDM, as poucas policiais que viveram a tran- possibilidade entravam em confito com as po-
sição nas DDM acompanhadas – devido à alta liciais.10 Como explica uma delegada: a decisão
rotatividade de alocações na Polícia Civil de do STJ é complicada, pois a mulher perdoa, volta
São Paulo –, perceberam a alteração como ape- para o cara e o inquérito fca correndo, o que gera
nas um ajuste nos procedimentos burocráticos uma nova crise na relação conjugal.
realizados na delegacia. Uma das delegadas me Na tentativa de dar conta do repentino au-
explica que a Lei Maria da Penha não mudou o mento de processos em seus cartórios, as policiais
dia a dia do nosso trabalho, foi só uma adaptação. encontram saídas e interpretações distintas para
Só que, quando veio a mudança para incondicio- lidar com os dilemas trazidos pela incondicionali-
nada, quase tudo que registramos vira inquérito, dade. Há divergências signifcativas, por exemplo,
a gente não dá conta. Sua colega escrivã concor- por parte das policiais, a respeito da possibilidade
da e acrescenta: Ainda por cima temos que lidar de informar ou não as vítimas da especifcidade
com as mulheres que pedem para retirar a queixa, dos casos de lesão corporal. Para uma parte das
que fazem escândalo. Isso só piorou o trabalho. profssionais com as quais convivo, deve ser dada
No entanto, a partir de 2012, como ressal- às mulheres a opção de não registrar a ocorrência,
tou uma escrivã, a lei fcou louca, o volume de uma vez que não há mais como retirar a queixa,
trabalho aumentou consideravelmente, sobre- e se a mulher desistir do processo, o inquérito
carregando, em especial, as escrivãs de cartório, continuará existindo, criando um problema para
responsáveis pela condução dos inquéritos, a vítima e para as profssionais. Outras policiais de-
emissão de intimações e depoimentos de víti- fendem, de forma oposta, que não se informe as
mas, autores e testemunhas. Do ponto de vista vítimas a respeito do caráter incondicional dos
numérico, por exemplo, em uma das DDM casos de lesão corporal, justamente para que não
acompanhadas, o número de inquéritos instau- haja a possibilidade de não realização do registro.
rados passou de 554, em 2011, para 1126, em As policiais do primeiro grupo geralmente
2012. Na outra DDM em que conduzo minha avisam inicialmente as mulheres que agressão
pesquisa, o número passou de 366, em 2011, vira processo e costumam enfatizar a necessida-
para ostensivos 1780 em apenas doze meses.9 de de ter certeza sobre o desejo de processar
No dia a dia das DDM, percebe-se que a o acusado no momento da denúncia. Você não
incondicionalidade da lesão corporal também pode mais voltar atrás, aconselha uma das in-
afetou consideravelmente a postura das mulhe- vestigadoras responsável pelo pré-atendimento.
res diante da decisão de transformar agressões Estas profssionais argumentam que haveria
em ocorrências. Acompanhei diversos casos de uma quantidade relevante de inquéritos nos
mulheres que optaram por não registrar a quei- quais as mulheres não mais buscam a punição
xa uma vez que tomavam conhecimento de que judicial do autor, mas que, devido à decisão do
a denúncia se transformaria automaticamente Supremo, continuam a existir e a exigir pro-

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vidências policiais, criando problemas para as para o homem: se me bater de novo, eu vou lá e
funcionárias das delegacias. Nesses casos, na processo. As mulheres tinham esse papel, o BO, que
percepção das policiais, seriam as vítimas – e dava um poder de peitar o cara. Agora acabou.
não a polícia – que encontrariam maneiras de As percepções das policiais a respeito das
burlar a normativa estabelecida na lei, ao não expectativas das vítimas são confrmadas em
realizarem procedimentos obrigatórios para algumas experiências na delegacia. Para uma
a condução dos inquéritos, como o exame de boa parte das mulheres que buscam as DDM,
corpo-delito e depoimentos, ou até mesmo es- a incondicionalidade da lesão corporal também
condendo de seus companheiros as intimações trouxe frustrações de diferentes naturezas. Uma
policiais e evitando a colheita de oitivas. parcela signifcativa das mulheres se reconcilia
Por outro lado, mesmo que discordem da com companheiros, namorados, maridos ou
incondicionalidade, há policiais que defendem outros familiares após terem realizado o regis-
a não prerrogativa das vítimas de registrar ou tro da ocorrência e reclama do fato do processo
não casos de agressão física. Para estas profssio- continuar existindo a despeito de sua vontade.
nais, avisar as mulheres acerca da transforma- Estou morando com ele, e ontem chegou uma inti-
ção da ocorrência em processo corresponderia a mação, aí que ele fcou bravo mesmo e vai me ba-
desencorajá-la a buscar auxílio na justiça. Nesse ter de novo, reclamou uma das vítimas à escrivã.
sentido, as vítimas não teriam a prerrogativa de Há casos também em que a vítima, ao pres-
utilizar ou não a lei, uma vez que já procuraram tar depoimento na delegacia no momento da
os serviços da polícia. Como explica uma dele- oitiva, reitera seu desejo de não dar prossegui-
gada: eu entendo a questão da incondicionalidade mento ao processo, uma vez que o motivo da
na medida em que as mulheres têm medo e não queixa não mais existiria, seja porque o autor
têm força para sair desse ciclo de violência. Nós deixou de agredi-la ou porque teria havido
não podemos dar a opção, ela não vai querer se de- uma separação ou afastamento. Para essas mu-
fender. Se nós vemos uma mulher chegar machu- lheres, a persistência do processo policial tam-
cada e não registramos, somos nós que a estamos bém signifca um importante constrangimento
violentando novamente. É negligência. em uma situação em que a violência deixara de
A despeito de divergências de práticas e opi- ocorrer. Nesses casos, cessa-se a violência, mas
niões, de modo geral, a mudança no tratamento não os procedimentos burocrático-policiais,
dos casos de lesão corporal gerou insatisfação em gerando transtornos emocionais e práticos.
quase todas as funcionárias das duas DDM em No entanto, a insatisfação mais comum
que acompanho o expediente. Para as policiais, a por parte das mulheres que procuram as
incondicionalidade teria aumentado desumana- DDM para registrar casos de violência do-
mente a carga de trabalho nas delegacias, impos- méstica em relação a não possibilidade de
sibilitando que os inquéritos sejam conduzidos “retirar a queixa” em casos de lesão corporal se
em uma velocidade considerada razoável, sobre- expressa no medo de que o denunciado passe
carregando o trabalho das escrivãs, diminuindo a ter a fcha suja,13 isto é, antecedentes crimi-
a qualidade das oitivas11 e tirando a possibilidade nais que o impeçam, sobretudo, de conseguir
da vítima de negociar com o autor da violência postos de trabalho. As policiais favoráveis à
através da prerrogativa da representação. Como escolha da vítima quanto ao registro da ocor-
explicou uma escrivã: antes a mulher fazia o BO, rência costumam enfatizar esse elemento em
tinha seis meses para representar e fcava falando suas orientações às mulheres. Ele vai ter f-

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cha criminal, não vai conseguir emprego. Você Lei é lei, minha flha, ele não pode te
depende dele fnanceiramente? Vai precisar de bater13: a lei é dura, mas é a lei?
pensão?, costuma perguntar uma das escri-
vãs. Outra forma de tentar baixar o acervo de Dentro das delegacias, a relação das policiais
inquéritos da delegacia, encontrada pelas po- com a lei não é despida de contradições e am-
liciais, seria desencorajar que mulheres que biguidades. Para muitas policiais, a norma ju-
tenham registrado ameaças decidam represen- rídica não seria necessariamente legítima e elas
tar e transformar aquele BO em inquérito. admitem que algumas leis – em especial a Lei
Nesses casos, percebe-se a preocupação com Maria da Penha – contradiriam alguns de seus
o volume de trabalho nos cartórios e a pos- valores pessoais. Não concordo, mas tenho que
sibilidade de que este inquérito se torne um aplicar, é uma fala comum a algumas funcioná-
problema administrativo. rias das delegacias acompanhadas. Uma delega-
Dentro das DDM, sobretudo para as es- da explicou mais detidamente: Eu faço o BO de
crivãs (responsáveis por tocar os inquéritos Lei Maria da Penha sempre. Às vezes não é o meu
policiais), o sucesso e a resolução de um caso entendimento jurídico, a minha verdade jurídica,
são medidos pelo relato do inquérito, isto é, mas, para evitar problemas, eu sempre faço.
sua conclusão na fase policial. Se aquela de- Percebe-se que, nessa perspectiva, embora ju-
terminada investigação obedeceu todos os ridicamente sinalizada como crime, a violência
procedimentos obrigatórios (em geral, o lau- doméstica contra mulheres, em muitas situações,
do e oitivas de vítimas, autores e testemunhas) não é vista como moralmente condenável para
em prazo ideal para que fosse concluída, ela estas profssionais. Muitas falas e práticas são de-
fca somente o tempo ideal na delegacia, logo masiadamente ambíguas quando se trata da con-
seguindo para a instância judiciária responsá- denação ou não de práticas violentas em relações
vel por sua resolução. Por outro lado, quando íntimas e familiares, e oscilam de acordo com
um inquérito não segue adiante, as policiais determinadas circunstâncias. Ao mesmo tem-
apontam impedimentos impostos pela vítima po, mesmo com discordâncias, as policiais reco-
- como a não realização do exame no Instituto nhecem serem compelidas a cumprir as normas
Médico Legal ou a impossibilidade de encon- estipuladas. Nesse sentido, embora as leis sejam
trar e ouvir em depoimento as partes envol- criticadas como manipuláveis, burláveis e por
vidas – como entraves à boa condução e ao vezes em desacordo com crenças pessoais, elas
sucesso de seu trabalho. Assim, inquéritos rela- também teriam um caráter inviolável, superior
tados e enviados à justiça parecem ser a medida e incontestável. Assim, o discurso direcionado a
da efciência do trabalho dentro das delegacias. outras funcionárias, ao público e a mim, também
Em outras palavras, no trabalho com a violên- poderia adquirir a forma da defesa da aplicação
cia doméstica, as policiais indicam considerar efetiva da lei a despeito das opiniões pessoais. Lei
seu trabalho efcaz e bem realizado na medida é lei, não tem essa de aplicar ou não, me contou
em que concluem burocraticamente as inves- um investigador. Eu, às vezes, acho que a mulher
tigações. Nesse sentido, as demandas e experi- está exagerando, que ela quer mais é se vingar do
ências relatadas pelas vítimas são substituídas cara, mas pelo sim ou pelo não, a vítima tem sempre
pelo cumprimento de normas e procedimen- razão e eu faço o BO, reiterou uma delegada.
tos burocrático-policiais na avaliação da efci- A força superior e inquestionável da lei é
ência do trabalho policial. constantemente enfatizada em falas que privi-

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legiam o caráter de lei da Lei Maria da Penha, e solta o agressor, reclama um investigador. Você
isto é, sua aplicação a despeito dos compor- que pesquisa já viu algum homem ser preso pela
tamentos e valores de cada pessoa. Com a lei Lei Maria da Penha?, indagou uma escrivã.
Maria da Penha não é mais a casa da mãe Joa- Ao mesmo tempo em que a Lei Maria da
na, costuma afrmar um investigador. Não pode Penha pode ser “cavada” para conseguir puni-
mais bater na sua mulher, os tempos mudaram, ções e tratamentos mais rigorosos, ela também
também avisa uma escrivã aos autores. pode ser “manipulada” no sentido inverso. As
No dia a dia das DDM testemunhei a uti- profssionais sabem que o enquadramento de
lização da Lei Maria da Penha no registro de fatos na normativa jurídica não é ingênuo ou
casos que poderiam, à primeira vista, fugir de simples. Elas argumentam que entre a norma, a
uma defnição pautada em papéis de gênero realidade do trabalho policial e a complexidade
mais tradicionais (como marido e esposa ou das relações sociais há muitos elementos que
pai e flha). Apesar da maior parte das ocor- impedem uma adequação perfeita entre atos e
rências serem entre companheiros ou cônjuges, autos. Muitas vezes, na polícia, a gente vê que,
nos plantões são registradas como ocorrências na prática, a lei é diferente daquilo que imagina-
de violência doméstica casos de agressões, ame- mos na teoria. Não dá para ser exatamente igual
aças e ofensas em relações homo afetivas entre na realidade, afrma uma delegada.
mulheres, namorados, pessoas que haviam se A possibilidade de utilizar a lei de diferen-
envolvido sem constituir uma relação amoro- tes maneiras é reconhecida pelas policiais. Na
sa, familiares (cunhados, sogras, sogros, tios) e busca por lidar com o aumento signifcativo
vizinhos. Eu uso Lei Maria da Penha para tudo dos inquéritos trazido pela incondicionalida-
por ela ser mais rigorosa, senão vai para a cesta de da lesão corporal muitas profssionais ad-
básica. Se eu puder cavar uma Maria da Penha, mitem outras possibilidades de qualifcação,
eu cavo, afrma uma das delegadas. evitando a realização da investigação e do
Nesse sentido, a Lei Maria da Penha é com- processo contra o acusado:
preendida como uma ferramenta positiva para
conseguir punições mais contundentes. As po- Se for um tapa, por exemplo, pode ser vias
liciais costumam indicar como elementos posi- de fato, no qual devemos instaurar inquérito,
tivos justamente a possibilidade da prisão em ou injúria real, que precisa de representação.
fagrante e a existência de medidas protetivas Aqui somos orientados a seguir com injúria
de urgência que visam afastar vítima e autor,14 real para evitar inquéritos, porque vias de fato
ambas entendidas como sinalizações de maior é incondicionada (Escrivã).
rigor no tratamento da violência doméstica.
Neste aspecto, a Lei Maria da Penha é enuncia- A discussão acerca do que seria a fgura da
da sempre como um grande avanço em relação injúria real elucida alguns pontos importantes
aos tratamentos jurídicos anteriores. Contudo, sobre práticas policiais e os vieses do direito. Na
mesmo mais rigorosa, a lei não sacia totalmente orientação para as escrivãs, algumas delegadas
a sanha punitiva presente em algumas policiais, alegam que injúria real envolveria uma violên-
que questionam a possibilidade do pagamen- cia física que não deixasse marcas, como tapas e
to de fança nos casos de fagrantes e as penas empurrões. Outra maneira de registrar violência
previstas na condenação na esfera judicial. O doméstica é a fgura das vias de fato (art. 21 da
problema é ser afançável, a própria mulher vem Lei de Contravenções Penais), em geral envol-

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vendo agressões mútuas que também não teriam Nas delegacias, os casos de violência domés-
deixado hematomas. Segundo as delegadas, le- tica entendidos como lesões são tratados como
sões necessitariam de comprovações e indícios mais importantes e graves no que diz respeito
físicos do ocorrido, senão não terão valor como à violência sofrida pelas vítimas. Já o crime de
provas da violência. Por esse motivo, então, elas ameaça, por exemplo, gera opiniões divergentes
tenderiam a evitar registros de casos em que não entre as policiais justamente por ser compreen-
haveria marcas como lesão corporal. Além disso, dido como difícil de materializar nos corpos das
os casos de injúria real cairiam na rubrica da in- mulheres. A fgura da ameaça enquanto crime
júria e não se transformariam em inquéritos, o é demasiadamente ambígua no dia a dia das
que ajudaria no cotidiano da delegacia. DDM. Se na percepção de algumas policiais
A importância da materialidade da agressão seria comum que, em brigas, pessoas ameacem
para o seu enquadramento como lesão se evi- umas às outras sem que isso se transforme em
dencia nos laudos do IML enviados para a de- ação – afnal, quem fala, não faz –, outras pro-
legacia, que apenas descrevem marcas deixadas fssionais enfatizam justamente o inverso, ao
por agressões nos corpos das vítimas, tais como afrmarem que a ameaça estaria mais próxima
“edemas”, “escoriações” e “lesão lácero-contu- de um real risco à vida da vítima, uma vez que
sa”. Laudos só confrmam violências quando quem diz que vai matar, mata. Em ambos os
estas se materializam em “ofensas à integridade casos, apesar de aparentemente contraditórios,
física ou à saúde do examinado”.15 A materia- confrma-se a importância de noções objetifca-
lidade é uma questão central no direito, que das de violência operacionalizadas pelo sistema
opera com noções objetivadas de violência16 e jurídico, pois a gravidade de uma determinada
traz consequências importantes no tratamento situação parece ser avaliada de acordo com pos-
dos casos entendidos como violência domésti- síveis desfechos físicos para as vítimas.
ca que transitam nas delegacias. Um caso de violência considerado extrema-
mente grave de maneira mais generalizada en-
tre as policiais seria uma tentativa de homicídio
O que dói mais? Algumas (art. 121 do Código Penal). Muitas policiais
considerações enfatizam a raridade dessas ocorrências nas de-
legacias especializadas. Podemos argumentar,
Busquei, neste artigo, delinear alguns ele- entretanto, que sua raridade pode derivar do
mentos e questionamentos iniciais que têm fato da polícia evitar registrar casos de violência
aparecido em minha pesquisa de mestrado. doméstica sob esta rubrica. A decisão de regis-
Como se trata de um momento de organização trar um ocorrido como tentativa de homicídio é
e refexão acerca de minha experiência de cam- extremamente polêmica e depende, sobretudo,
po, trago resultados parciais, ainda em elabora- da interpretação da delegada presente no plan-
ção. Nesse sentido, é difícil apontar conclusões tão. Eu aprendi que é tentativa de homicídio se
e fnalizações. Opto nesta seção, portanto, por for uma facada no peito. Estrangulamento pode
indicar outras pistas que procuro seguir na ten- ser só apertar o pescoço, daí registro como lesão.
tativa da compreensão dos usos e signifcados da Nunca registrei tentativa de homicídio aqui, me
Lei Maria da Penha no contexto das delegacias explicou uma das delegadas.
especializadas, em especial a hierarquia na qual Nas delegacias, os casos de assassinatos são
os casos atendidos são, muitas vezes, inseridos. percebidos como extremamente raros, quando

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não inexistentes. No entanto, isso talvez se deva ressarcimentos e punições nas esferas jurídico-
mais à profunda desconexão entre os órgãos -policiais. Para o autor, o direito positivo teria
da Polícia Civil do quê à sua real ausência. Se grande difculdade em entender as dimensões de
uma mulher é assassinada em um contexto de indignação e ressentimento presentes nas vítimas
violência doméstica, o crime deverá ser inves- de insultos, uma vez que esta agressão, embora
tigado pela divisão responsável por homicídios fra a dignidade moral da vítima, não se explicita
(DHPP) ou pelo distrito policial responsável de forma material em corpos ou objetos.
pela área dos fatos. Mesmo que haja um in- Nas falas das mulheres que buscam os servi-
quérito ou uma ocorrência em uma das nove ços das DDM torna-se evidente a insatisfação
DDM da cidade, ou que a mulher até mesmo entre, de um lado, as vítimas e, de outro, as pos-
tenha medidas protetivas concedidas pela jus- sibilidades dadas pelo direito e utilizadas pela
tiça, é muito improvável que tais informações polícia no tratamento dos insultos. Nos plantões
cheguem à delegacia especializada. e nos depoimentos que acompanho, é comum
As profssionais da DDM não costumam que mulheres salientem o sofrimento causado
tomar conhecimento do desfecho dos casos pelas agressões emocionais e ofensas morais que
que por ali transitaram, seja do ponto de vista sofrem em âmbito doméstico como mais – ou
judicial – nas decisões do Juizado –, seja suas tão – angustiantes e inaceitáveis quanto violên-
consequências para as partes envolvidas. Em cias que se expressaram em seus corpos.
uma das delegacias, acompanhei o caso de uma Nesse sentido, parece haver uma inversão
mãe que avisou às policiais que sua flha havia entre a escala de prioridades do Código Penal
sido morta pelo ex-namorado. A moça havia brasileiro e os valores de algumas mulheres em
registrado ocorrência de ameaça e recebido me- situação de violência que apostam em uma saída
didas protetivas de urgência naquela delegacia, jurídico-policial para seus problemas ao procu-
mas o desfecho trágico não foi evitado. Se a rar pelas delegacias. Se, dentro da delegacia, a
mãe não tivesse vindo aqui, nunca iríamos saber, injúria é um crime menos importante, sendo
me confessou consternada uma das escrivãs. necessário inclusive que um advogado entre
As injúrias, por sua vez, por serem enten- com um processo diretamente na instância ju-
didas como casos que não envolvem riscos fí- diciária para o prosseguimento da acusação – e a
sicos à integridade das vítimas, costumam ser lesão corporal aparece como um crime mais grave
tratadas como algo menos relevante pelas po- e automaticamente transformado em investiga-
liciais. Não é só a polícia, contudo, que parece ção –, para uma parte das mulheres que busca
desmerecer os casos de ofensa, uma vez que na as DDM parece acontecer o oposto: seriam os
própria escala de nosso Código Penal, o crime insultos e as ofensas as faces mais nefastas e dolo-
de injúria ocupa lugar menos importante do rosas da violência doméstica. Cicatrizes na alma
que outros delitos. são eternas, comentou uma vítima ao descrever
Cardoso de Oliveira (2008), ao estudar a de- sua relação conjugal. Nesse sentido:
manda por reparação a insultos nos tribunais de
pequenas causas, chama atenção para o fenôme- A literatura antropológica ressalta que a noção
no do insulto moral, espécie de violência imate- popular de justiça não coincide necessariamen-
rial e emocional, ligada aos sentimentos, difícil te com a noção de Justiça defnida pelos marcos
de traduzir em termos jurídicos e que tende a ser legais. Esta parece distante e, muitas vezes, inin-
tratada como menos importante e menos apta a teligível às pessoas que recorrem a ela (BRAN-

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DÃO, 2006). Do mesmo modo, nem sempre classifcação, mas por ser o termo utilizado no lingua-
jar de minhas interlocutoras.
a punição prevista para um determinado crime
7. O Brasil ratifcou dois tratados internacionais: a Con-
corresponde ao que os personagens envolvidos venção da ONU sobre Eliminação de todas as formas
imaginam como castigo. Muitas vezes, espera- de discriminação contra a mulher (1984) e a Conven-
-se um simples “corretivo” (MUNIZ, 1996) e ção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a
não o desenrolar de um processo jurídico, cujos violência contra a mulher (1995).
meandros raras vezes se tornam compreensíveis 8. Ver: Andrade (2012), Lemos (2010), OBSERVE/
UNIFEM (2011), Pasinato (2010), Zapater & Perro-
para os contendores (SARTI, 2012, p. 507).
ne (2010), Santos (2008), Debert & Gregori (2008)
e Pasinato & Santos (2008).
9. A expectativa é que o número continue a crescer em
Notas 2013. Até novembro deste ano, a segunda DDM es-
tudada já contava com cerca de 2200 inquéritos poli-
1. Este artigo foi elaborado, incialmente, como apre- ciais em seus cartórios.
sentação oral para o III Encontro Nacional de An- 10. A prática de utilizar a denúncia policial para “dar sus-
tropologia do Direito, realizado na Universidade de tos” e/ou a subsequente “retirada da queixa” são ques-
São Paulo, em agosto de 2013 e apresentado no GT tões trabalhadas exaustivamente por pesquisadoras
08 – Antropologia e Violência de Gênero. Parte des- anteriores que investigaram a violência doméstica e
te artigo também foi apresentada e discutida no 10º as Delegacias de Defesa da Mulher. Brandão (2006),
Fazendo Gênero, realizado em setembro de 2013, na por exemplo, fornece a informação de que, apesar de
Universidade Federal de Santa Catarina. ilegal, a prática de arquivamento de processos corres-
2. Acompanho todo o expediente policial realizado nas pondia, antes da lei 9.099, a mais de 70% dos casos
delegacias: desde o registro das denúncias, à colhida atendidos nas delegacias especializadas, sendo a sus-
de depoimentos dos envolvidos, à conclusão policial pensão da queixa paradoxalmente censurada e favo-
dos casos e aos demais procedimentos jurídico-buro- recida pelas policiais. Tal prática também se tornou
cráticos efetuados pelas policiais. Por se tratar de re- costumeira durante a vigência da lei 9.099, tanto nas
sultados parciais, optei, neste momento da pesquisa, delegacias quanto nos Juizados Especiais.
por não identifcar as delegacias. 11. Há prazos curtos tanto para o envio dos inquéritos
3. Optei por utilizar em itálico os termos mobilizados para os fóruns com as principais diligências (laudo do
pelas policiais com quem interajo. exame de corpo-delito e oitivas das partes) e para sua
4. O estupro de vulnerável corresponde ao artigo 127-A fnalização (ou relato do inquérito). As delegadas-ti-
do Código Penal, adicionado pela lei 12015, de agos- tulares e escrivãs-chefe são constantemente cobradas
to de 2009, que criminaliza como hediondo qualquer por órgãos superiores, da justiça e da polícia, para que
“conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com inquéritos sejam relatados (fnalizados, concluídos)
menor de 14 (catorze) anos”. em um curto espaço de tempo, o que gera apreensão
5. A lesão corporal pode ser leve ou grave, dependendo do e estresse constantes no trabalho.
entendimento da delegada do plantão ou do resultado 12. É importante ressalvar que não é o mero registro do BO
do exame de corpo-delito. Em geral, as escrivãs regis- de lesão corporal e a instauração de um inquérito poli-
tram os inquéritos como LCD (lesão corporal dolosa) e cial que implicam necessariamente na existência de uma
aguardam os exames para tipifcar a gravidade das lesões. fcha criminal para o acusado. Autores são planilhados
6. Debert e Gregori (2008) chamam atenção para a ou indiciados, isto é, incluídos na base de dados daque-
necessidade de uma refexão mais atenta sobre as di- les com antecedentes criminais, por ordem de juízes ou
ferentes formas de conceituar violências contra mu- em raras exceções em que as delegadas consideram tal
lheres, compreendendo cada noção dentro de seus medida aplicável, como alguns fagrantes.
contextos e limites, e reconhecendo que estas não 13. Fala de uma escrivã à uma mulher que tinha dúvidas
são intercambiáveis. Opto, neste artigo, por traba- sobre realizar ou não a denúncia contra o ex-namorado.
lhar com o conceito de “violência doméstica” não por 14. Costuma-se falar também da criação de uma rede
considerar esta a melhor forma de conceitualização e multidisciplinar de atendimento às mulheres em si-

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tuação de violência. No entanto, a articulação entre a nas Delegacias de Defesa da Mulher e Distritos Policiais
delegacia e outros entes da rede de atendimento ainda da Seccional de Polícia de Santo André. Tese (Douto-
é bastante precária. Em geral, apenas os abrigos estão rado) Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Hu-
em maior contato e mesmo assim há muita desinfor- manas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
mação e decepção entre as partes envolvidas. LIPSKY, Michael. Street level bureaucracy: dilemmas of the
15. Estes termos são encontrados nos laudos de lesão cor- individual in public services. New York: Te Russel
poral emitidos pelo Instituto Médico Legal. Sage Foundation, 2010.
16. Andrade (2012) e Sarti (2012).
OBSERVE/UNIFEM. Identifcando entraves na articula-
ção dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de
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autora Beatriz Accioly Lins


Mestranda em Antropologia Social / USP

Recebido em 08/11/2013
Aceito para publicação em 16/12/201

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