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NOTAS SOBRE COMPORTAMENTO LÍCITO ALTERNATIVO

António Brito Neves*/**/***

Klaus é um homem alto. Conheceu Johana


porque ela olhou por cima de uma sebe verdíssima
e olhou por cima de uma Primavera ainda mais
verde que a sebe. Eles costumavam brincar:
Se tu não fosses tão alto, não te teria visto por
cima da sebe.
E Klaus dizia a Johana:
Se eu não fosse tão alto a sebe seria mais baixa.

Gonçalo M. Tavares, Um Homem: Klaus Klump

SUMÁRIO: Introdução; I. Desvalor da acção e inevitabilidade do resultado; 1. O perigo criado;


2. Desaprovação do perigo; II. Desvalor do resultado: linhas de orientação; 1. O resultado como
elemento típico; 2. Consequências para a aferição do desvalor do resultado; 3. Consequências para a
aferição do desvalor do resultado em casos de comportamento lícito alternativo; III. Casos de
incerteza; IV. Riscos substitutivos; Conclusões.

Introdução
Os casos sobre que se debruça o presente artigo reúnem as seguintes características: um
agente adopta um comportamento genericamente proibido; um bem jurídico, inserível no
quadro de bens cuja protecção é visada pela norma violada, é lesado1; não obstante a
aparente correlação (v. g., a nível causal) entre os dois eventos, a ligação para efeitos de
responsabilização penal é posta em causa pela verificação de que a lesão poderia ter ou
teria certamente ocorrido se o agente houvesse cumprido a norma.

A configuração do comportamento lícito alternativo convoca automaticamente o


problema da relevância de percursos hipotéticos. Com efeito, sendo trazida à averiguação
da tipicidade uma versão dos factos meramente hipotizada, a dúvida sobre (se e) como

*
Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
**
O presente artigo não respeita o Acordo Ortográfico de 1990.
***
Salvo indicação em contrário, todos os artigos citados pertencem ao Código Penal português.
1
Para simplificação, referiremos sempre lesão ou dano, sem prejuízo de o exposto valer, mutatis mutandis,
para resultados de perigo. Com o mesmo fito, não nos preocuparemos em distinguir bem jurídico de objecto
da acção.

1
esta se há-de repercutir no exame da situação real implica esclarecer a questão genérica
do significado de tais hipotizações para os raciocínios jurídicos em causa.

A questão de que partimos é então a seguinte: na averiguação da tipicidade objectiva da


actuação à luz de um critério legal que consagre um crime de resultado, serão importantes
percursos causais hipotéticos?

I. Desvalor da acção e inevitabilidade do resultado


Começamos por examinar se a consideração de percursos virtuais terá repercussões ao
nível do desvalor da acção2. Elas poderão surgir por afectação do juízo de perigo e/ou da
desaprovação do mesmo.

1. O perigo criado
O desvalor da acção sustenta-se na violação (dolosa ou negligente) de uma norma de
cuidado cuja racionalidade é aferida ex ante, com base em propósitos de tutela de
expectativas de acção mediante a delimitação de liberdades de actuar. A inevitabilidade,
no caso particular, do perecimento do objecto de protecção não belisca, desde logo e como
é fácil de perceber, a vinculatividade genérica da norma. Também não prejudica a
vinculação no caso concreto, como fica porventura mais nítido quando tal inevitabilidade
se confirme somente a posteriori. Com efeito, a violação da norma de cuidado capaz de
sustentar o desvalor da acção terá de se traduzir na criação de um perigo desaprovado
para o bem jurídico, inferido desde a perspectiva ex ante de um observador situado na
posição do agente3; tal juízo de perigo não é infirmado pela demonstração ulterior da
fatalidade do resultado, pois a certeza de que outro perigo se teria concretizado deixa
intocada a caracterização da acção como genericamente perigosa.

2
Analisando (e rejeitando) algumas propostas doutrinárias neste sentido, CURADO NEVES, João Luís,
Comportamento lícito alternativo e concurso de riscos – Contributo para uma teoria da imputação
objectiva em Direito Penal, Lisboa: AAFDL, 1989, pp. 105 e ss.
3
BURKHARDT, Björn, ‹‹Tatbestandsmässiges Verhalten und ex-ante-Betrachtung: Zugleich ein Beitrag
wider die "Verwirrung zwischen dem Subjektiven und dem Objektiven"››, in Jürgen Wolter/Georg Freund
(ed.), Straftat, Strafzumessung und Strafprozess im gesamten Strafrechtssystem: Straftatbegriff –
Straftatzurechnung – Strafrechtszweck – Strafausschluss Strafverzicht – Strafklagverzicht, Heidelberg: C.
F. Müller, 1996 (pp. 99-134), pp. 100 e ss.

2
2. Desaprovação do perigo
Poder-se-ia tentar afastar o desvalor da acção em casos deste calibre negando, não já o
carácter perigoso do comportamento, mas a desaprovação do perigo, ao menos quando a
inevitabilidade fosse conhecida a priori. Sabendo o agente, no momento da actuação, que
o objecto está condenado a perecer, fará sentido manter a proibição genericamente
vinculante, ou a consciência de ser inútil respeitá-la para efeitos de garantia da integridade
do objecto da acção retira sentido à proibição no caso particular? A resposta é que o
desvalor da acção se mantém, podendo apontar-se motivos diversos consoante os tipos
de percursos hipotéticos em equação (resumidos a seguir). Não obstante, eles sustentam-
se na ideia unitária de que na aplicação do Direito Penal, não se promove a intangibilidade
dos bens jurídicos, nem se visa prevenir simplesmente o piorar da situação destes pela
acção do agente. Trata-se antes de evitar que os bens sofram danos ou perigos originados
por comportamentos cuja introdução no tráfego social o Direito não permite4. Atentemos
nos diversos grupos configuráveis.

Numa primeira constelação de casos, o dano seria provocado por actuação ilícita de
terceiro. Tome-se o exemplo de A e B, assassinos ao serviço de C; encontrando-se ambos
diante de D, C dá ordem a A para matar D; recusando-se A, a ordem seria dada a B e o
homicídio seria executado do mesmo modo5.

Com argumentações não inteiramente coincidentes, a solução de negar ao


comportamento ilícito (meramente hipotizado) de B relevância no juízo de tipicidade do

4
Rejeitamos assim o princípio da intensificação de SAMSON, Erich, Hypothetische Kausalverläufe im
Strafrecht. Zugleich ein Beitrag zur Kausalität der Beihilfe, Frankfurt am Main: Metzner, 1972, p. 124. V.
tb. as críticas de CURADO NEVES, Comportamento lícito alternativo, (n. 2), pp. 286 e ss.; SOUSA
MENDES, Paulo de, “O problema da relevância negativa da causa virtual em sede de imputação objectiva”,
in António Menezes Cordeiro et al. (coord.), Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira
Ascensão, vol. II, Coimbra: Almedina, 2008 (pp. 1395-14124), pp. 1412 e ss.; cfr. a recensão à obra de
SAMSON por Günter STRATENWERTH, em ZStW, 87 (4), 1975 (pp. 935-944); JAKOBS, Günther,
Strafrecht – Allgemeiner Teil – Die Grundlagen und die Zurechnungslehre. Lehrbuch, 2.ª ed., Berlin/New
York: Walter de Gruyter, 1991, pp. 223-224 e 234 e ss.
5
As discussões destes grupos de casos, por regra, vão (mais ou menos conscientemente) referidas às
questões da imputação do resultado e/ou da existência de desvalor do resultado, não tanto à da afirmação
do desvalor da acção (v., no entanto, FRISCH, Wolfgang, Tatbestandsmäßiges Verhalten und Zurechnung
des Erfolgs, Heidelberg: Muller, 1988, pp. 562 e ss.). Tal não nos impede, naturalmente, de considerar os
motivos avançados tendo em vista o ponto que debatemos.

3
comportamento de A tem reunido consenso6. Parece-nos simples o raciocínio que melhor
a explica: a proibição (de agir para matar) que recai sobre um agente não perde sentido
nem força em virtude de existir outro agente predisposto a desrespeitá-la, pois ela vincula
também esse terceiro. Nestes casos, a validade universal da proibição torna indiferente o
número de criminosos. Chega-se à obviedade disto atentando na derivação absurda da
resposta contrária: bastaria ao agente convencer outrem a acompanhá-lo na execução do
seu plano para que esta se tornasse permitida. Demais, se quiséssemos ligar a vigência da
proibição à aptidão para evitar a lesão, a resposta manter-se-ia: sendo a proibição
respeitada (por A e B), o resultado não ocorreria.

Este raciocínio já não conduz à mesma conclusão na segunda constelação: agora


supomos a ocorrência do dano em virtude de comportamento lícito de terceiro (sempre
meramente hipotizado). Pense-se no caso de A – ao perceber que B, arguido num processo
criminal, se prepara para fugir do país – proceder à detenção de B para o entregar à
autoridade judiciária, prescindindo de alertar as forças policiais, pois sabe que estas
procederiam exactamente do mesmo modo7.

Aqui, o cumprimento da norma já não garante a protecção do bem, pois ele sempre seria
atingido por um comportamento que ela permite8. Ainda assim, a actuação de A deve
manter-se proibida. Sejam quais forem as razões para limitar a autorização de actuar a
certos grupos de pessoas, tal limitação concretiza um propósito normativo inequívoco. A
objecção de que o resultado prático é igual em ambos os quadros é errada, porque parcial.
A igualdade regista-se meramente no respeitante à lesão sofrida quando considerada com
independência do procedimento que lhe deu origem. O modo como essa lesão se veio a

6
Cfr., v. g., SAMSON, Hypothetische Kausalverläufe, (n. 4), pp. 137 e ss.; JAKOBS, Strafrecht, (n. 4),
pp. 232-233; RUDOLPHI, Hans-Joachim, Anotação prévia ao § 1, in Hans-Joachim Rudolphi et al.,
Systematischer Kommentar – StGB, vol. I, 8.ª ed., Köln: Carl Heymanns, 2005 (pp. 1-53), p. 35.
7
O que poderia ocorrer, com base, v. g., no art. 257.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.
8
Isto não é verdade noutros exemplos por vezes apontados. Se A, sabendo que B pretende deitar abaixo
uma árvore a este pertencente, resolve adiantar-se e abater ele mesmo a árvore sem pedir autorização a B,
o direito de propriedade (que compreende o poder de destruir a coisa) não teria sido prejudicado se A
houvesse respeitado a proibição. Mas nestes casos, a argumentação aproxima-se do raciocínio exposto para
a primeira constelação, pelo que nos interessam mais os restantes. Também para efeitos meramente
argumentativos, prescindimos de notar que dificilmente se deixará de poder dizer que com o
comportamento lícito de terceiro, o resultado se teria produzido noutro lugar e/ou noutro momento
[FRISCH, Tatbestandsmäßiges Verhalten, (n. 5), pp. 562-563], pois não é este, para nós, o ponto decisivo.

4
produzir regista, no entanto, diferenças fulcrais (num caso, ela adveio por via legalmente
regulada; no outro, por comportamento ilegal), modificando outrossim o próprio quadro
final. A norma limitadora não está, por assim dizer, tão preocupada com o resultado como
com a via que a ele conduz. Afastar a proibição quando o agente autorizado teria actuado
de jeito semelhante implicaria perverter a norma: quando esta autoriza exclusivamente
certa pessoa a praticar determinado acto, a limitação vale em todos os casos, pois as
razões que a sustentem não dependerão da coincidência fortuita de propósitos entre a
pessoa autorizada e o agente9-10.

Na terceira constelação, a lesão teria tido lugar em virtude de causa natural, ou sem
intervenção directa de terceiro. Imagine-se que A, movido por ódio ao idoso moribundo
B, dispara sobre ele, provocando-lhe a morte.

Mais uma vez, a argumentação anteriormente utilizada para sustentar o desvalor da


acção deixa de valer neste grupo. Outras razões, não obstante, apontam igual resposta.

Em última análise, negar o impedimento da acção de matar em virtude da inevitabilidade


da morte da vítima redundará em deixar cair a proibição de homicídio tout court: só
valeria a proibição de matar imortais. Mas a proibição não é erigida para garantir vida
eterna, e sim para evitar que o seu fim chegue por acção de outrem.

Se cingirmos a discussão aos casos de iminência da morte, levantando a dúvida sobre se


tal iminência poderá ter o efeito de enfraquecer a proibição, soará convincente, para a

9
Podemos acompanhar, assim, JAKOBS, Strafrecht, (n. 4), p. 235, quando, ilustrativamente, afirma: “a
quem vai ser executado garante-se que o será pela pessoa competente” (“Dem Hinzurichtenden ist
garantiert, daß er vom Zuständigen getötet wird”), com a ressalva de que, na nossa perspectiva, tal não se
deve simplesmente ao propósito cego de garantir a vigência de normas de competência, mas sim de, por
intermédio delas, dar cumprimento às razões materiais que as expliquem.
10
Perde importância a distinção que aqui pretende introduzir RUDOLPHI, Anotação prévia ao § 1, (n. 6),
p. 36, entre autorizações vinculadas à situação e autorizações vinculadas à função (do terceiro), desde logo,
porque, como nota ROXIN, Claus, Strafrecht – Allgemeiner Teil, vol. I (Grundlagen – Der Aufbau der
Verbrechenslehre), 4.ª ed., München: Beck, 2006, p. 380, e é reconhecido pelo próprio RUDOLPHI (ibid.),
quando estejamos perante as primeiras, por regra, os pressupostos de facto tornarão lícita a acção do próprio
agente. Mesmo quando assim não seja, aquela distinção só terá sentido no pressuposto (aceite por
RUDOLPHI, ibid., p. 35) de que as normas penais deixam, em princípio, de poder ser impostas quando o
seu cumprimento não preserva o bem jurídico. Não partilhamos deste ponto de partida, como deixámos
explícito no texto e explicaremos melhor a seguir.

5
afastar, um argumento de igualdade: o primeiro sopro de vida e o último suspiro têm igual
valor11. Este argumento fraqueja, contudo, na hipótese – admitidamente só conjectural –
de se comprovar que, por acção da causa hipotética, a morte da vítima ocorreria
exactamente no mesmo momento, não tendo sido acelerada pela acção homicida (real)12.
Se ainda aí vigora a proibição, é porque o princípio da igualdade a impõe – mas não pelo
reconhecimento do igual valor de todas as vidas, com independência dos remanescentes
períodos de subsistência13; impõe-se antes pela garantia de que, em princípio, ninguém
há-de sofrer intromissões lesivas na sua esfera pessoal. A possibilidade de provocar danos
ou perigos na esfera de outrem implica sempre desequilíbrios no plano de igualdade entre
todos os agentes, que se impõe aceitar como ponto de partida, ao menos conjectural.
Existem razões para admitir em certos casos a legitimidade de tais desequilíbrios,
inclusive tratando-se do bem vida (pense-se no direito de legítima defesa). Mas nenhuma
dessas razões vai implicada na inevitabilidade da morte14. Deste modo, fazer recuar a
proibição de matar por a acção homicida não implicar, no caso concreto, encurtamento

11
ROXIN, ibid., pp. 381-382.
12
Deixamos de fora as hipóteses em que a acção do agente, não obstante o intento homicida, acaba por
prolongar a vida da vítima em relação ao que teria ocorrido sem ela. Apesar de importarem pontos
obviamente pertinentes para as nossas considerações, elas exigem a convocação de perspectivas que, por
razões de limitação espacial e temática, não poderemos aqui desenvolver. De todo o modo, por lhes estar
associado um contexto problemático com especificidades de outra ordem, esta abdicação não prejudica o
desenvolvimento argumentativo dos pontos que pretendemos sustentar no presente artigo.
13
Quando ROXIN, ibid., p. 382 (ainda que pensando somente na questão da imputação do resultado
propriamente dita), defende que a punição tem de operar “ao menos nos casos de encurtamento da vida”
(“zumindest die Lebensverkürzung”), denuncia as limitações do seu argumento de base. Com efeito,
precisamente por ser outro o argumento de igualdade decisivo, não há por que limitar a proibição (nem,
como veremos, a imputação) a casos de encurtamento da vida; a proibição mantém-se nas situações
(meramente académicas, mas importantes para clarificação argumentativa) em que a morte teria ocorrido
exactamente no mesmo momento.
14
Não vale contra isto a exclusão da ilicitude em casos de sacrifício de pessoa condenada a morrer para
salvar outras (cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, Direito Penal – Parte Geral, tomo I (Questões
fundamentais – A doutrina geral do crime), 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2019, pp. 533 e ss.; cfr.
FERNANDA PALMA, Maria, Direito Penal – Parte Geral – A teoria geral da infração como teoria da
decisão penal, 5.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2020, pp. 328 e ss. e 374-375). Mesmo admitindo a legitimidade
de tal solução, ela situa-se no plano da justificação, não afastando – antes pressupondo – a proibição típica
de matar, além de nunca bastar a inevitabilidade da morte por si só, sempre devendo acrescentar-se a
referência aos interesses de cuja salvaguarda se trata.

6
do bem vida traduz-se em conferir ao agente um poder de agir que o deixa em posição
inexplicável de superioridade relativamente à vítima: posição que lhe permitiria lesar
impunemente outra pessoa sem que esta, por um lado, representasse qualquer perigo, e
sem que pudesse, por outro, defender-se.

Em suma, o princípio da igualdade concretiza-se na proibição de atingir o bem jurídico


com independência da verificação de percursos hipotéticos como os considerados até
agora. Suposto isto, podemos repetir e reforçar a tese fundamental sustentada: nenhum
destes percursos hipotizados releva para efeitos de aferição do desvalor da acção do
agente, porque este não se baseia em perspectivas de eficácia na salvaguarda de bens
contra quaisquer ameaças, sendo em vez disso inferido do propósito de protecção contra
ameaças provindas de outras pessoas15.

Chegamos à última constelação: o dano ocorreria, já não em consequência de


comportamento de terceiro ou causa natural, mas sim de outro comportamento (de novo:
meramente hipotizado) do próprio agente, transfigurado numa versão em que aparece
como genericamente permitido. Para ilustração, tome-se o caso da novocaína, já clássico
nesta discussão. Em vez de anestesiar o paciente por meio de novocaína, um médico usa
inadvertidamente cocaína, vindo aquele a morrer em consequência da injecção. Exames

15
Temos assim por infundada a invocação que faz ROXIN, Claus, “Pflichtwidrigkeit und Erfolg bei
fahrlässigen Delikten”, ZStW, 74 (3), 1962 (pp. 411-444), pp. 432-433, do princípio da igualdade para
explicar o afastamento da imputação objectiva quando haja certeza de que o comportamento permitido do
agente teria produzido o resultado. Alega o autor que a solução contrária redundaria em impor ao agente
um dever inútil. Ora, parece-nos, em primeiro lugar, que esta argumentação devia levar ROXIN a afastar o
desvalor da acção – pois se o dever se mostra “inútil” e não faz sentido impô-lo, o seu incumprimento deixa
de ser desvalioso –, não, como actualmente defende [id., Strafrecht, (n. 10), pp. 386-387], somente a
imputação do resultado. E isto por mais que se contraponha que se trata de comparar as medidas de
incremento do risco segundo um juízo ex post; pois (e em segundo lugar) não ficando a aplicação das
normas penais, como acabamos de ver, dependente da eficácia absoluta de salvaguarda da integridade do
bem protegido, os comandos e as proibições não estão directamente condicionados pela inevitabilidade do
perecimento do bem. Finalmente, a própria imputação, a ser negada em consequência de tal inevitabilidade,
sê-lo-á apenas se e quando se verificarem factores especificamente atinentes ao desvalor do resultado e ao
juízo de imputação, necessariamente ligados às razões que explicam a exigência do resultado como
elemento típico (examinadas infra, II.1.).

7
posteriores demonstram, contudo, que, dada a constituição física do falecido, a morte teria
ocorrido na hipótese de ter sido empregada a anestesia normalmente indicada16.

A resposta implica transformar a própria formulação do enunciado problemático destas


hipóteses. Em regra, a consciência da produção do resultado lesivo em consequência da
acção (à partida) permitida redunda na proibição do comportamento17. Destarte, se o
médico souber que a novocaína matará o paciente, a solução não é, obviamente, a de
afastar a proibição de lhe ministrar cocaína, mas sim a de a estender à anestesia “correcta”.
Por outras palavras, os conhecimentos especiais do agente tornam o acto em questão
criação de risco proibido, e, assim, tal acto só pode ser designado como comportamento
ilícito alternativo.

II. Desvalor do resultado: linhas de orientação


Afastada a interferência no exame do desvalor da acção, assumirão os cenários
hipotéticos relevância na averiguação do desvalor do resultado? Só poderemos responder
tendo presentes as razões fundamentais por detrás da exigência de verificação de um
resultado para consumação do facto típico e a articulação daí extraída entre desvalor da
acção e desvalor do resultado18.

1. O resultado como elemento típico


Entre os motivos avançados para a exigência de resultado para efeitos de consumação
do crime, ou da existência (como no caso de muitos crimes negligentes) e/ou agravamento
da punição (por comparação, nomeadamente, com a pena aplicável à tentativa),
encontramos com frequência o de que o surgimento do resultado confere maior premência
e urgência às necessidades de política criminal19. Mas se o advento do resultado implica
sempre diferenças significativas nos efeitos psicológico-sociais do facto, tornando mais
premente e urgente a satisfação das necessidades preventivas por meio da punição, ainda
ficam por explicar os motivos para este acréscimo de acuidade.

16
Trazido à discussão pela primeira vez por EXNER, Franz, “Fahrlässiges Zusammenwirken”, in August
Hegler (org.), Festgabe für Reinhard von Frank zum 70. Geburtstag 16. August 1930, vol. I, Aalen:
Scientia, 1969 (pp. 569-597), pp. 587-588.
17
V. CURADO NEVES, Comportamento lícito alternativo, (n. 4), pp. 78-7933-A e 135-136.
18
Cfr. FRISCH, Tatbestandsmäßiges Verhalten, (n. 5), pp. 511 e ss.; CURADO NEVES, ibid., pp. 50 e ss.
19
Cfr., e. g., CURADO NEVES, ibid., pp. 144 e ss.; FRISCH, ibid., pp. 516 e ss.; ROXIN, Strafrecht (n.
10), p. 327. Note-se que estes autores acrescentam outras razões para a exigência de resultado.

8
O dano sofrido pelo bem jurídico redimensiona claramente o questionamento deste: o
que seria fugaz violação da norma de comportamento ganha em intensidade, peso e
perenidade20 (os exemplos da morte ou da destruição da coisa oferecem porventura a
ilustração mais nítida desta afirmação). As consequências negativas têm o condão de
reactualizar a violação da norma, expandindo-a nos seus efeitos simbólicos. Dando-lhe
consistência, impedem-na de desaparecer do plano comunicativo da interacção social.
Além disto, o resultado redefine o comportamento, transformando-lhe a história: uma
narrativa com final feliz e outra com final trágico são talvez parecidas, mas só porque
nada difere mais que o parecido; não divergem somente na conclusão, mas integralmente.
Assim, a ocorrência do resultado densifica a necessidade de reafirmar a validade da norma
e reforçar a ideia de que continua a valer genericamente o plano de delimitação de
possibilidades de actuação – pelo qual o bem jurídico é protegido – delineado no quadro
normativo.

A exigência do resultado não pode ser explicada à luz do propósito de garantir a


protecção do bem contra qualquer perigo, ou seja, de assegurar a sua integralidade tout
court. Os bens não vivem protegidos por redomas de vidro em museus, mas na interacção
social21. Estão, por isso, expostos a desgaste, atritos e perigos. São perecíveis – é o seu
mais claro sinal de vida. Natural é então que nem todas as lesões por eles sofridas
envolvam perturbações para a comunidade a reclamarem reacção punitiva. A necessidade
desta reacção, por seu lado, também nunca se faz sentir automaticamente em
consequência de tais perturbações. Um falecimento por causas naturais ou acidentais
pode causar tanto impacto como uma morte por assassínio. A preocupação preventiva
não é a de precaver quaiquer mortes, mas somente as provocadas por comportamentos
humanos. E, como sugere a imagem das redomas de vidro, não por quaisquer
comportamentos; somente os não permitidos na interacção social. Tal indicia já que o
desvalor do resultado só aparece quando o evento em questão (morte, lesão, destruição
da coisa…) seja concretização da violação de uma norma de cuidado pelo agente. Não há
desvalor do resultado sem motivos típicos para afirmar o desvalor da acção.

20
Mas não necessariamente em gravidade da violação do dever: v. CURADO NEVES, ibid., pp. 143-144.
21
Recorremos à famosa imagem de WELZEL, Hans, “Studien zum System des Strafrechts”, in Hans
Welzel, Abhandlungen zum Strafrecht und zur Rechtsphilosophie, Berlin: de Gruyter, 1975 (pp. 120-184),
pp. 140 e ss.

9
O desvalor da acção integra a violação de uma norma de comportamento. Estas normas
são impostas aos cidadãos tendo em vista possibilitar-lhes o planeamento e organização
do seu quotidiano e opções de acção, de modo que possam evitar interferências
indesejadas nos seus bens, e não estendam a conformação da sua vida para lá da
delimitação de liberdades construída com base no quadro normativo (pensado e
desenhado segundo uma regra geral de liberdade)22. A lesão de um bem jurídico só pode
relevar como resultado típico se reconduzível a uma violação destas normas. Se a
relevância penal da violação da norma de comportamento ou a agravação das suas
consequências se limitam pela verificação do resultado, é precisamente porque e
enquanto este evidencia e redimensiona aquela violação. A punição visa indicar o
comando normativo desrespeitado como válido, só se mostrando adequada como reacção
ao questionamento do mesmo.

O raciocínio exposto conjuga-se com directrizes normativas de outra ordem para


fundamentar uma teoria prática de atribuição de um evento à actuação de um agente.
Precipitando-se em princípios como o da culpa (arts. 1.º e 27.º da CRP) – aplicado à luz
das normas de direitos fundamentais (por referência às quais se delineiam as liberdades
de actuação) –, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP) limita as
possibilidades de punição a casos em que o dano se possa dizer obra do agente, segundo
critérios de liberdade de actuação. A responsabilidade por um resultado (ou agravada por
ele) vê-se, também por isto, condicionada por um juízo (e respectivos critérios) de
imputação.

A imputação, ao menos nos casos de acção, requer base causal. Esta exigência
corresponde a uma das condições necessárias para que, na linguagem social, o resultado
possa (vir a) aparecer como obra do agente. Tal atribuição é, deste modo, limitada a
processos em que a intervenção do agente desemboque no resultado, sendo afastada nos
casos de mera coincidência na verificação das duas ocorrências (violação da norma e
lesão do bem). Mas para lá de se procurar respeitar o princípio da culpa, no propósito de
assegurar a possibilidade de domínio pelo agente da verificação do resultado trata-se

22
A adequação e a validade material das concretas opções normativas são questões a resolver em plano
diverso, mesmo que não desligado daquele em que nos situamos.

10
outrossim de manter a decisão penal referida à objectividade factual e orientada pelo
princípio da legalidade23.

A preocupação de assegurar a ligação entre afectação do bem e comportamento do


agente – por meio, nomeadamente, da verificação de uma relação causal – visa, por fim,
garantir a viabilidade da descrição do evento como obra do agente à luz dos códigos da
linguagem social, o que se revela crucial em alguns dos âmbitos referidos. Em primeiro
lugar, só neste pressuposto poderá o resultado perigoso ou danoso para o bem jurídico
aparecer como ofensa – i. e., como consequência de um ataque ao bem movido pelo
agente, e não como mero infortúnio ou acidente –, e, ademais, evidenciar o
questionamento da norma de comportamento perante os restantes destinatários do
comando legal. Depois, só deste modo se garante que a responsabilização se constrói com
instrumentos (linguísticos) pelos quais o próprio agente pode compreender e reconhecer
o evento como consequência do que fez, e, portanto, como obra sua.

O processo de atribuição não poderá, de todo o modo, bastar-se com a recondução a


qualquer ligação causal. Desde logo porque tal seria insuficiente para explicar a produção
do resultado como obra do autor, já que a ocorrência do evento, mesmo pressupondo a
causalidade, depende amiúde de factores fortuitos, fora do domínio do agente (quando
mais não seja porque causas alheias possíveis poderiam ter mudado o rumo aos
acontecimentos). Por outro lado, a responsabilização do agente pelo resultado só poderá
racionalmente prosseguir efeitos de reafirmação da norma violada quando se limite aos
casos em que ele seja consequência da violação da norma. Só podendo dizer-se típico o
dano quando este constitua realização da violação da norma de comportamento, o
desvalor do resultado é sempre concretização do desvalor da acção e não pode pensar-se
desligado deste24. Fica por aqui implicada a exigência de que a imputação assente numa
ligação comprovada dos elementos indicados. Não lhe basta, portanto, a violação de uma
norma de comportamento somada à causação do resultado; é preciso que nesta causação

23
V. FERNANDA PALMA, Direito Penal, (n. 14), pp. 119 e ss., 121 e ss. e 129.
24
Estas exigências precipitam-se numa concepção pessoal do ilícito: como defendia WELZEL, Hans, Das
Deutsche Strafrecht – Eine systematische Darstellung, 11.ª ed., Berlin: Walter de Gruyter, 1969, p. 62, a
ilicitude nunca se basta com a produção causal de um dano no bem jurídico desligada do autor, tendo a
acção de aparecer como obra deste: a meta prosseguida com a acção, a disposição de ânimo no momento
da actuação ou os deveres a que o agente estava obrigado, tudo isso concorre para determinar a ilicitude do
facto, juntamente com a possível lesão do bem.

11
opere justamente a violação da norma, ou seja, que o resultado não possa ser explicado
sem o desrespeito do comando normativo25.

2. Consequências para a aferição do desvalor do resultado


As considerações do ponto anterior permitem algumas ilações. A inevitabilidade da
ocorrência do dano nunca bastará por si para explicar a negação do desvalor do resultado
ou para afastar a imputação objectiva. Os percursos causais hipotéticos demonstrativos
de tal inevitabilidade só relevarão quando por meio deles seja posta em causa a atribuição
da lesão ao agente como obra sua – questionando-se, nomeadamente, a causalidade –,
e/ou a conexão entre violação da norma de comportamento (ou do dever dela extraído) e
resultado. Na casuística remanescente, eles serão irrelevantes. Por isto, é correcta a ideia
de que a consideração de percursos hipotéticos será inconsequente quando se limite a
demonstrar o que poderia ter acontecido num universo paralelo26. Assumirá, ao invés,
relevância quando permita elucidar o que efectivamente aconteceu. Concretizando estas
linhas por atenção às constelações de casos antes elencadas, temos o seguinte.

Para efeitos de afirmação do desvalor do resultado e do juízo de imputação objectiva do


resultado à actuação do agente, a consideração dos percursos causais hipotéticos mostra-
se irrelevante nos três primeiros grupos de situações. Com efeito, em nenhum deles essa
consideração gera qualquer renuído sobre os pontos apontados como decisivos (a
atribuição do resultado à actuação do agente como obra sua e a explicação do mesmo por
meio da violação da norma). A disponibilidade de B, no primeiro exemplo, para matar a
vítima no caso de A se recusar não nos faz duvidar que foi mesmo A quem matou (i. e.,
quem causou a morte de) D, nem que o fez mediante violação da norma que, no caso
concreto, o proibia de disparar sobre a vítima. Dizer, no segundo exemplo, que a polícia
sempre teria procedido à detenção se houvesse tido oportunidade em nada infirma a

25
Podemos assim concluir que, ao contrário do que pretende KAUFMANN, Arthur, “Die Bedeutung
hypothetischer Erfolgsursachen im Strafrecht”, in Paul Bockelmann/Wilhelm Gallas (org.), Festschrift für
Eberhard Schmidt zum 70. Geburtstag, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1961 (pp. 200-231), p. 223
(v. tb. GIMBERNAT ORDEIG, Enrique, El Comportamiento Alternativo Conforme a Derecho – De la
causalidad a la imputación objetiva, Montevideo/Buenos Aires: B de f, 2018, pp. 40 e ss.), nada tem de
“misteriosa” a conexão que cabe comprovar, para efeitos de imputação, entre violação da norma de
comportamento e dano causado.
26
V., entre outros, CURADO NEVES, Comportamento lícito alternativo, (n. 4), pp. 220-221; JAKOBS,
Strafrecht, (n. 4), pp. 223-224.

12
verificação de que foi A quem deteve B contra vontade deste, nem de que o fez em
violação da norma que proíbe o sequestro. Trazer, enfim, a velhice à colação no terceiro
exemplo não contraria a afirmação de que foi realmente A quem matou o moribundo com
o seu disparo proibido.

A quarta constelação de casos, pelas diferenciações problemáticas que reclama, merece


considerações mais aprofundadas, pelo que a trataremos à parte. Para facilidade de
exposição, recorremos à distinção terminológica habitual entre causa virtual e
comportamento lícito alternativo. Sendo, por regra, negada relevância àquela para efeitos
de (afastar a) imputação objectiva, e, pelo contrário, afirmada ou ao menos discutida em
relação a este, podemos aproveitar qualquer critério de diferenciação de entre os que
permitam arrumar as primeiras constelações como hipóteses de causa virtual (irrelevante)
e tomar a última como reunindo casos de comportamento lícito alternativo
(problemático). Adoptaremos o que situa a distinção na hipotizada origem causal do
resultado: quando se equaciona a produção deste em virtude de causa natural ou actuação
de terceiro, pensamos em causas virtuais. Quando o resultado se teria produzido por
comportamento (ex ante permitido) do próprio agente, como sucede no caso da
novocaína, trabalhamos com comportamento lícito alternativo27-28.

3. Consequências para a aferição do desvalor do resultado em casos de


comportamento lícito alternativo
Os casos da quarta constelação apontada, agora designados de comportamento lícito
alternativo, não importam modificações em relação às linhas de orientação identificadas
para aferição dos desvalores da acção e do resultado, nem, particularmente, do juízo de
imputação objectiva. Se pelo menos em alguns deles concluirmos haver razões para negar

27
Se bem vemos, este critério tenderá a coincidir na arrumação casuística com o que identifica o
comportamento lícito alternativo como o construído com base em raciocínios hipotéticos contrafactuais
(suposições contrárias aos factos), e a causa virtual como assente em processos causais com existência real,
que só por intervenção do agente não funcionaram como causa: SOUSA MENDES, “O problema da
relevância negativa da causa virtual”, (n. 4), pp. 1405 e ss.; ROXIN, Strafrecht, (n. 10), pp. 396-397.
28
Criticando a formulação “comportamento lícito alternativo” por nada acrescentar de útil à questão da
recondução do resultado à violação do dever de cuidado, e por ser susceptível de conduzir a soluções erradas
em casos de factores de risco concomitantes pelos quais o agente não é responsável, ou em que a
possibilidade de evitar o resultado está fáctica ou normativamente limitada, RANFT, Otfried,
‹‹Berücksichtigung hypothetischer Bedingungen beim fahrlässigen Erfolgsdelikt? Zugleich eine Kritik der
Formel vom “rechtmäßigen Alternativverhalten”››, NJW, 37 (25), 1984 (pp. 1425-1433).

13
a imputação, tal não se deverá a mudança nos critérios, mas ao oposto: será a
especificidade problemática das hipóteses em questão a reclamar solução diversa à luz
dos mesmos critérios de decisão.

O comportamento lícito alternativo manter-se-á irrelevante enquanto não for além de


nutrir elocubrações narrativas sobre cursos de acontecimentos imaginados. Terá, ao invés,
repercussões quando condicione os pertinentes juízos sobre o curso de eventos real.
Assim, no caso da novocaína, questão é se a verificação do efeito mortal desta substância
para aquele paciente modifica os nossos juízos sobre a relação causal entre a actuação do
médico e a morte, por um lado, e, no caso de existência dessa relação, a necessidade da
componente proibida do comportamento – i. e., da violação do dever – para explicar o
falecimento, por outro29. A resposta é negativa. Podemos valer-nos de toda a certeza para
apontar o efeito mortal da novocaína; continua a ter sido a cocaína a matar o paciente.
Podemos insistir que a morte teria seguramente lugar por meio do comportamento
permitido; continuamos a precisar do comportamento proibido para explicar a morte
efectivamente ocorrida. Dito de forma mais gráfica: o comportamento lícito alternativo é
aqui irrelevante, porque apenas explica a morte imaginada, nada esclarecendo sobre a
morte real; esta só pode ser explicada trazendo à colação a acção proibida do agente. Por
este motivo, o dano surge como concretização da violação da norma, e, na medida em
que a evidencia e redimensiona, oferece base típica para o desvalor do resultado30.

Quando, diferentemente, a hipotização do comportamento lícito alternativo obrigue a


alterar os juízos sobre algum dos pontos referidos, ou todos, a imputação objectiva terá
de ser negada. Assim sucede noutro caso clássico na matéria: o director de uma fábrica
de pincéis distribuiu pêlos de cabra pelos empregados sem proceder a desinfecção prévia,

29
Voltamos, naturalmente, a pressupor que o médico ignora o efeito mortal da novocaína. Se tivesse
conhecimento deste efeito, a ministração da substância, como vimos, seria configurada como
comportamento ilícito alternativo.
30
Tem assim razão CURADO NEVES, Comportamento lícito alternativo, (n. 2), pp. 213 e ss., quando,
reportando-se ao caso da novocaína, afirma que a negação da referida conexão com base na certeza de que
a actuação permitida teria produzido o resultado se traduz, no fim de contas, em falsear o ocorrido com
base no não ocorrido. Mas já não o podemos acompanhar quando daí conclui que o comportamento lícito
alternativo nunca pode elucidar sobre a real conexão de ilicitude. De isso ser verdade neste caso e em
relação a esta configuração de comportamento permitido não decorre que o seja em todos os casos e em
relação a todas e quaisquer variantes.

14
como lhe era imposto. Alguns trabalhadores morreram em consequência de infecção
contraída mediante contacto com o material em causa. Demonstrou-se, todavia, que a
desinfecção omitida teria sido ineficaz para eliminar a bactéria em questão (até então
desconhecida) e evitar as mortes31.

A demonstração do percurso hipotético, mais uma vez, não põe em dúvida a causalidade
da actuação do agente. Não está em questão saber se o dono da fábrica provocou a morte
dos trabalhadores ao entregar-lhes os pêlos infectados: a resposta é positiva. O segundo
ponto fulcral, contudo, suscita reflexão diversa. Se os trabalhadores morreriam do mesmo
modo, ou seja, com a mesma bactéria, no caso de serem adoptados os procedimentos
devidos, então o comportamento proibido nada acrescenta de relevante às condições a
que temos de nos referir para explicar o resultado. As mortes surgem como consequência
do comportamento do agente, mas não da violação do dever, porque esta não as explica.
Em termos algo simplistas, mas porventura clarificadores, diremos que a acção da
bactéria se insere na componente de risco permitido (ex ante) envolvido na actuação do
agente, não na do risco proibido, pois o cumprimento do dever que lhes desenha a
fronteira não a eliminaria32. Não sendo a observância da norma eficaz para eliminar o
concreto factor de risco que vem a produzir o resultado, a intervenção desse factor torna-
se conceptualmente dissociável da inobservância da norma, podendo assim a produção
do resultado, em conclusão, ser explicada sem o incumprimento do dever. O resultado
deixa de evidenciar a violação da norma e a imputação objectiva tem de ser afastada33.

31
Cf. https://opinioiuris.de/entscheidung/1129.
32
Expressamente contra a pretensão de dividir o risco criado pelo comportamento do agente numa parte
proibida e noutra permitida (e de se analisar depois a concretização do perigo em relação a cada uma),
STRATENWERTH, Günter, “Bemerkungen zum Prinzip der Risikoerhöhung”, in Karl Lackner et al. (ed.),
Festschrift für Wilhelm Gallas zum 70. Geburtstag am 22. Juli 1973, Berlin: de Gruyter, 1973 (pp. 227-
239), pp. 237 e ss.; ROXIN, Strafrecht, (n. 10), p. 393; RUDOLPHI, Anotação prévia ao § 1, (n. 6), p. 40.
33
Julgamos, deste modo, correcta a diferenciação aventada por ROXIN, “Pflichtwidrigkeit und Erfolg”, (n.
15), pp. 439-440, para o caso da novocaína, consoante a morte fosse provocada por efeitos nocivos
específicos da cocaína, ou, diferentemente, se devesse à actuação desta substância como narcótico (causa
em tudo semelhante à que teria lugar com a novocaína). Temos algumas dúvidas quanto à coerência com
que esta diferenciação é introduzida no esquema de soluções de ROXIN. Ao contrário de outros exemplos
por ele usados (ibid., p. 436) para explicar a irrelevância de causas substitutivas – nos quais, por se tratarem
de causas naturais ou comportamentos de terceiros, faz sentido desconsiderar o processo hipotético, por
este nada adiantar quanto ao incremento do risco em comparação com o comportamento permitido –, aqui

15
Uma nota sintética para concluir este ponto: na configuração do comportamento lícito
alternativo, não perguntamos simplesmente se o resultado se produziria, mas se o agente
produziria o resultado; em caso de resposta positiva, perguntamos ainda de que modo o
faria. Ambas as questões são orientadas pela finalidade de comprovar a conexão entre
violação do dever efectivamente ocorrida e lesão do bem.

III. Casos de incerteza


Na configuração dos casos feita até agora, assumimos sempre a certeza de que o
resultado ocorreria como efeito do percurso hipotético. Será susceptível de condicionar
as respostas a dúvida sobre essa ocorrência?

Situemos a questão em mais um caso recorrentemente tratado: um camionista ultrapassa


um ciclista sem respeitar a distância de segurança; à conta do seu estado de embriaguez,
o ciclista vira precipitadamente a bicicleta para a esquerda durante a manobra e acaba
mortalmente atropelado pelo camião; comprova-se que provavelmente (não seguramente)
a morte teria ocorrido ainda que a distância devida houvesse sido respeitada.

A dúvida sobre que teria acontecido no caso de o agente ter adoptado comportamento
lícito tem servido de maçã de Éris na disputa entre as principais correntes que se
debruçam sobre o tema34. A este propósito, cruzam-se argumentos nos quais se precipitam
divergentes orientações de base, não apenas sobre imputação objectiva, mas igualmente
sobre a concretização problemática dos princípios materialmente relevantes e o próprio
papel das normas penais – incluindo o confronto entre a atribuição a estas da finalidade

a irrelevância é mais difícil de perceber, visto que, causasse o efeito por se tratar de narcótico ou por outro
motivo especificamente associado à novocaína, a acção em questão seria sempre realizada pelo próprio
agente, e permitida. Destarte, não vemos razão para ROXIN deixar de usar por igual em relação a ambas
as actuações (uso da cocaína e uso da novocaína) o seu critério do incremento do risco. Adoptando a linha
que nos parece mais correcta, a diferenciação já nos parece facilmente explicável: se a morte for efeito de
incidente narcótico, a componente proibida do comportamento não será necessária para a explicar; ela
também adiviria por incidente narcótico se houvesse sido adoptado o procedimento devido.
34
Isto explica em boa medida porque PUPPE, Ingeborg, “Brauchen wir eine Risikoerhöhungstheorie?”, in
Bernd Schünemann et al. (ed.), Festschrift für Claus Roxin zum 70. Geburtstag am 15. Mai 2001, Berlin:
de Gruyter, 2001 (pp. 287-306), p. 287, refere a decisão do caso pelo BGH como tendo feito História no
Direito Penal (“Die Entscheidung BGHSt 11, 1 hat Strafrechtsgeschichte gemacht.”) e como sendo talvez
a mais famosa e seguramente a mais comentada decisão do Tribunal [id., “Die Lehre von der objektiven
Zurechnung und ihre Anwendung – Teil 1”, ZJS, 1 (5), 2008 (pp. 488-496), p. 495].

16
de protecção de bens jurídicos e a perspectiva que as toma como meras normas de
comportamento ou dever.

Como impulso de partida orientador da argumentação para nós decisiva sobre o tema,
atentemos nos argumentos mais esgrimidos contra a tese do incremento do risco35.

Segundo esta proposta, essencial para a imputação objectiva do resultado a um


comportamento (que já se sabe ser) proibido (segundo juízo ex ante) é verificar se este,
além de causal em relação à lesão, representa, por comparação com a acção permitida e
de acordo com juízo ex post, um incremento do risco de produção do resultado. Este
aumento do risco será um estado de coisas real, comprovado com recurso a métodos
científicos periciais. Na prática, tal verificação paralisará a imputação objectiva quando
se chegue à certeza de produção do resultado pelo comportamento lícito alternativo, mas
não nos casos remanescentes, pois neles o comportamento proibido terá sempre
representado, em relação ao permitido, um acréscimo de risco para lá da dimensão aceite
pelo legislador, passando o agente a acatar a responsabilidade pelos eventos causalmente
provocados.

Dois argumentos têm sido erigidos com particular insistência contra esta tese: ela
implica tratar crimes de resultado como crimes de perigo, e violar o princípio in dubio
pro reo36. Nenhum deles, porém, funciona por si mesmo.

Descontando já o serem alguns crimes de resultado efectivamente crimes de perigo, o


alegado tratamento dos (demais) crimes de resultado como crimes de perigo não é
evidente, pois a aplicação da tese do incremento do risco não dispensa a produção da
lesão no bem (nem a causalidade) nos crimes de resultado e de dano (como não dispensa

35
Tese proposta por ROXIN, “Pflichtwidrigkeit und Erfolg”, (n. 16), pp. 430 e ss.; cfr. depois id., Recensão
a Klaus Ulsenheimer, Das Verhältnis zwischen Pflichtwidrigkeit und Erfolg bei den
Fahrlässigkeitsdelikten, Bonn: Ludwig Röhrscheid, 1965, ZStW, 78 (1-2), 1966 (pp. 214-222) pp. 217 e
ss.; id., Strafrecht, (n. 10), pp. 392 e ss.
36
Cfr., por ex., ULSENHEIMER, Klaus, “Erfolgsrelevante und erfolgsneutrale Pflichtverletzungen im
Rahmen der Fahrlässigkeitsdelikte”, JZ, 24 (11/12), 1969 (pp. 364-369), pp. 366 e ss.; SCHROEDER,
Anotação ao §16, in Hans-Heinrich Jescheck et al. (ed.), LK-StGB, vol. I (Introd., §§ 1-31), 10.ª ed.,
Berlin/New York: de Gruyter, 1985, (pp. 1-99), pp. 87-88; JAKOBS, Strafrecht, (n. 4), pp. 535 e ss.;
FERNANDA PALMA, Direito Penal, (n. 14), pp. 115 e ss.

17
a criação de perigo concreto nos crimes de resultado e de perigo)37. Por outro lado, a
invocação do in dubio pro reo manter-se-á vazia enquanto não se esclarecer o que nela
vai pressuposto, mas se deixa muitas vezes por fundamentar (ou até explicitar): a
obrigatoriedade de confirmar que o comportamento permitido não produziria o resultado.
Por outras palavras, tal argumento só procederá depois de se clarificar porque não estão
satisfeitas as exigências do princípio com a afirmação da causalidade. Com efeito, quem
entenda que esta afirmação basta à observância daquelas exigências concluirá não haver
aqui qualquer problema de in dubio pro reo38.

Outras razões levam-nos, de todo modo, a rejeitar a linha orientadora eleita por esta tese
para averiguar a imputação. Por muito ex post que se revele o exame correspondente, a
verificação do incremento do risco provocado pelo comportamento proibido nada permite
concluir quanto ao juízo de atribuição que procuramos. Como vimos, é fulcral demonstrar
a conexão entre violação do dever e produção do resultado. Não sendo aquela violação
necessária para explicar esta produção, têm de ser negados o desvalor do resultado e a
imputação objectiva. Ora, a verificação do incremento do risco pouco ou nada adianta em
relação à conexão referida39. A assumir alguma relevância, tal verificação só poderia ser
tida em conta na avaliação própria do momento da criação do perigo – do desvalor da
acção, portanto.

A confusão aqui traída transparece, aliás, noutros argumentos habitualmente utilizados


por defensores da teoria em análise. Quando, v. g., se pretende sustentar esta posição
alegando a multiplicação de absolvições resultante da postura de quem afaste a imputação
objectiva em hipóteses de dúvida40, vem à tona o problema básico de qualquer

37
STRATENWERTH, “Bemerkungen”, (n. 34), p. 237; FRISCH, Tatbestandsmäßiges Verhalten, (n. 5),
pp. 540 e ss.; GIMBERNAT ORDEIG, El Comportamiento Alternativo, (n. 25), pp. 55 e ss. Cfr. CURADO
NEVES, Comportamento lícito alternativo, (n. 4), pp. 306 e ss.
38
E quem entenda que também o aumento do risco carece de ser demonstrado não deixará de sustentar que
esse trabalho é de quem acusa, pelo que o ponto se mantém; cf. CURADO NEVES, ibid., pp. 305-306; cfr.
GIMBERNAT ORDEIG, ibid., pp. 79 e ss.
39
PUPPE, Ingeborg, Comentários prévios ao §13, in Urs Kindhäuser et al. (ed.), NK – StGB, 5.ª ed., vol. I,
Baden-Baden: Nomos, 2017, n. m. 205. Já se o aumento do risco for entendido como requisito a acrescentar
à dita conexão, fica por explicar a necessidade desse requisito: cf. ibid., pp. 308-309.
40
Introduz-se amiúde o caso de médicos que provoquem lesões por meio de falhas grosseiras quando haja
incerteza sobre o sucesso do tratamento devido: v., entre outros, ROXIN, “Pflichtwidrigkeit und Erfolg”,
(n. 30), p. 434; id., Recensão, (n. 35), p. 218.; id., Strafrecht, (n. 10), p. 394; GIMBERNAT ORDEIG, El

18
argumentação orientada para as consequências (ao menos aí onde a valoração destas não
reúna unanimidade ou não seja demasiado evidente à luz de critérios constitucionais): a
necessidade de explicar porque é inaceitável a consequência (neste caso, a absolvição).
Por norma, esta explicação fica por dar, ou é simplesmente referida a finalidades de
política criminal, não demonstrada à luz de critérios dogmáticos de aplicação do Direito
Penal. Enquanto assim for, as insuficiências apontadas só poderão ser resolvidas no plano
legislativo, não no jurisprudencial. O propósito de garantir a punição dos agentes –
supondo-o, para efeitos meramente argumentativos, louvável – não justifica perverter os
referidos critérios dogmáticos; não legitima, em suma, a substituição de mecanismos de
imputação (que devem acrescer ao da causalidade) por averiguações respeitantes à
violação da proibição41.

Suscita-nos dúvidas, de todo o modo, o alarme exibido pelos defensores desta tese na
reacção à suposta impunidade dos agentes no caso de a sua perspectiva não ser adoptada.
Mesmo admitindo a negação da imputação em situações de incerteza, tal negação não
operará em todos os casos, e sim apenas quando a incerteza ponha em causa a conexão
entre violação de dever e resultado – algo que, como visto com a análise do caso da

Comportamiento Alternativo, (n. 27), pp. 46 e ss. Algo diversa é a posição de PUPPE, ibid., n. m. 138 e ss.;
id., Strafrecht – Allgemeiner Teil im Spiegel der Rechtsprechung, 4.ª ed., Baden-Baden: Nomos, 2019, pp.
34 e ss., quando, salientando a indeterminação característica de determinados âmbitos sujeitos a
investigação (“âmbitos não completamente determinados”: “nicht vollständig determinierten Bereichen”),
defende que para sustentar aí a imputação, não há remédio senão recorrer a uma lógica de probabilidades
(conducente, de todo o modo e como a autora reconhece, à verificação do incremento do risco). A
indefinição caracterizaria estes âmbitos a ponto de, segundo PUPPE, deixar de ter sentido a invocação do
princípio in dubio pro reo, já que este redunda necessariamente em afirmar falsidades: ibid., p. 35. Se se
quiser resolver a problemática dualidade implicada pela posição de PUPPE no seio da configuração
dogmática dos crimes de resultado estendendo a lógica proposta à generalidade destes tipos de crime, essa
configuração sofrerá inegavelmente alterações substanciais, desde logo porque não se trata de reconfigurar
a causalidade, mas sim de a substituir [neste sentido e também com outras críticas, CURADO NEVES,
Comportamento lícito alternativo, (n. 4), pp. 362 e ss.]. Promovendo-se tais alterações, elas deverão ser
assumidas como tais, e confrontadas com os padrões constitucionais pertinentes.
41
Este tipo de confusões envolvidas nos raciocínios da tese em análise induz-nos a dar razão a FERNANDA
PALMA, Direito Penal, (n. 14), p. 116, quando lhe aponta uma violação do princípio da legalidade. Isto,
note-se, com independência de possivelmente virmos a concluir que os casos de dúvida se devem resolver
mantendo a imputação. Com efeito, o recurso à tese não é legitimado pela conclusão no sentido da
imputação, porque a atribuição do resultado não pode ser afirmada sem base nas averiguações exigidas pelo
princípio da legalidade para estabelecer a conexão de risco proibido.

19
novocaína, nunca decorrerá da dúvida considerada em si mesma, pois a inevitabilidade
da produção do resultado, seja segura ou possível, é em si irrelevante para efeitos de
imputação42. Além disto, afastamento da imputação não equivale necessariamente a
absolvição. Quando haja dolo, sobrevém o regime da tentativa. Quando não haja ou a
tentativa não seja punível, sempre se deverá averiguar se os factos constituem outros
crimes (ou infracções de ordem diversa)43-44.

Insistindo-se, por último, em tomar por insuficientes os regimes de punição para estas
hipóteses (assunção que não vamos discutir aqui), resta opor que se trata de problema a
resolver pela criação (ou adaptação) de normas punitivas da violação da proibição
correspondente, em lugar de forçar a imputação de resultados que não se quer “deixar
escapar”45.

Afastada a linha orientadora básica da tese do incremento do risco, cabe perguntar se é


de afirmar a imputação do resultado quando não haja certeza sobre se o comportamento
lícito alternativo também o produziria. A resposta tem de ser, por princípio, negativa.
Aceitando-se a conexão de ilicitude entre risco e resultado como momento fundamental
da atribuição deste à actuação do agente, sem o estabelecimento seguro de tal conexão
não actuam as razões que explicam o resultado como elemento típico, e não há base para
a imputação. Por outras palavras, a incerteza sobre se o comportamento lícito alternativo
produziria o dano, quando ponha em dúvida a aptidão da violação do dever para explicar
a lesão, bloqueia a afirmação do desvalor do resultado. Se, para efeitos do juízo de

42
Destarte, a objecção de que a invocação do in dubio pro reo se traduz na “consequência totalmente
inaceitável” de potenciar o afastamento da responsabilidade penal consoante seja maior o perigo que
ameaça o bem jurídico (STRATENWERTH, Günter/KUHLEN, Lothar, Strafrecht – Allgemeiner Teil –
Die Straftat, 6.ª ed., München: Vahlen, 2011, p. 83) valerá porventura contra quem queira dar relevância à
produção do resultado pelo comportamento lícito alternativo sem quaisquer distinções, mas não, segundo
cuidamos, contra a nossa posição.
43
No caso dos médicos (n. 40), por exemplo, é pertinente lembrar disposições como o n.º 2 do art. 150.º
No caso do camionista, atente-se no art. 291.º, n.ºs 1, al. a), e, se for caso disso, 3, etc.
44
Parece-nos, por isto, muito pouco rigoroso afirmar que o afastamento da imputação em casos de dúvida
se traduz em desobrigar o agente de quaisquer medidas de precaução [ROXIN, Recensão, (n. 35), p. 218:
“...dort, wo ein Schutz nicht hundertprozentig sicher wirkt, jegliche Abwehrmaßnahme straflos
vernachlässigt werden dürfte.”].
45
Neste sentido, FRISCH, Tatbestandsmäßiges Verhalten, (n. 5), pp. 545-546; JAKOBS, Strafrecht, (n. 5),
p. 237. Criticamente, GIMBERNAT ORDEIG, El Comportamiento Alternativo, (n. 27), pp. 74-75.

20
tipicidade, “matar outrem” mediante acção não se resume a causar a morte, sendo
necessária aquela conexão, os princípios da legalidade e do Direito Penal do facto deixam
a imputação na dependência da certeza sobre a conexão referida.

Resta saber, todavia, se deste modo não introduzimos exigências despropositadas para
possibilitar a imputação. Mesmo descontando as dificuldades levantadas onde
predominem limitações respeitantes aos meios técnicos disponíveis para actividade
probatória, ou nos “âmbitos não completamente determinados” (caracterizados por uma
indefinição de princípio)46, cabe perguntar se pelos óbices apontados à teoria do
incremento do risco não seremos conduzidos a bloquear as vias de imputação de eventos
lesivos por atenção a factores que talvez não tenham aqui lugar. A questão é se a atenção
a estes factores não instala dessintonia entre as proclamações dos críticos da tese do
incremento do risco e a metodologia efectivamente adoptada na generalidade dos juízos
de imputação. Dessintonia explicável nos termos seguintes47.

As normas de cuidado, facilmente se percebe e observa, não se destinam a eliminar por


inteiro os riscos de produção de lesões. A imprevisibilidade associada à utilização de
máquinas com poder destruidor considerável e à interacção com factores atmostéricos,
por exemplo, basta para concluir que as normas do Código da Estrada não são impostas
com a expectativa de eficácia de cem por cento na evitação de lesões ou perigos para bens
alheios. Trata-se somente de disponibilizar aos utentes comandos de acção e de cuidado
que lhes ofereçam possibilidades de planificação dos comportamentos e lhes tutelem as
expectativas relativas às reacções e iniciativas dos demais, de maneira que possam actuar
com (relativa) segurança no quotidiano. É admitida uma margem de risco na interacção
social, porque sem ela, a vida não poderia transpirar, e asfixiaria numa atrofia sem
progresso.

46
V. supra, n. 39.
47
A sua formulação inspira-se na leitura de FRISCH, Tatbestandsmäßiges Verhalten, (n. 5), pp. 546 e ss.
Diversa no enquadramento dogmático, mas próxima nas inferências práticas almejadas, é a observação de
que os críticos da tese do incremento do risco deviam, por coerência, assumir para todos os casos o dever
de comprovar que a acção correcta, com absoluta certeza, não teria produzido o resultado: cfr. ROXIN,
“Pflichtwidrigkeit und Erfolg”, (n. 16), p. 423; GIMBERNAT ORDEIG, El Comportamiento Alternativo,
(n. 27), pp. 42 e ss. e 57-58.

21
A questão surge na sequência destas observações: a atenção ao risco permitido deve
esgotar-se na delimitação do comportamento proibido? A dúvida é a de se no juízo de
imputação ele não há-de continuar a ser tido em conta, não por ser importante, mas por
não o ser. A proibição de um comportamento pode justificar-se pelo incremento de risco
por ele representado em comparação com o risco normalmente envolvido no
procedimento que o agente pretende adoptar. Ora, se aceitarmos que este risco aceite pelo
quadro normativo é desconsiderado à partida quando averiguamos a imputação, ele não
será susceptível de paralisar o juízo correspondente. Por outras palavras: “matar outrem”,
para efeitos de realização do tipo de homicídio, não se traduziria (necessariamente) em
provocar a morte por intermédio de um risco que desapareceria de todo caso tivesse sido
respeitada a norma de cuidado. A imputação não seria impossibilitada pela invocação da
dimensão de risco genericamente implicada pelo comportamento do agente, porque esta
invocação é desconsiderada para efeitos da própria proibição, i. e., para efeitos da
delimitação típica do comportamento, não devendo ser recuperada, em princípio, quando
se tratasse de averiguar a conexão entre violação da norma e ocorrência do evento lesivo.
Tal conexão assenta na confirmação da causalidade; o estabelecimento desta não
reclamaria afastar toda e qualquer dúvida (sobre “o que teria acontecido se...”), uma vez
que para efeitos tanto de delimitação da actuação proibida como de imputação, tomamos
por referência máximas de experiência e regras de orientação de comportamentos na
aplicação das quais abstraímos da (baixa) dimensão de risco inevitavelmente presente.
Aceitando a norma de cuidado (ou a sua observância) como garantia confiável de tutela
do bem em questão – desconsiderando, implicitamente, a dimensão de risco subsistente
nas actuações permitidas pela norma –, envolveria uma contradição recuperar esta
dimensão de risco para negar a imputação, oferecendo-lhe neste momento a relevância
que não teve naquele. A contradição nasceria de esta circunstância, impossibilitando a
atribuição da lesão do bem à violação da norma, obrigar-nos a tomar a própria norma
como sendo afinal inadequada, como garante não confiável, portanto, de tutela do bem;
pois o risco que ela deixa subsistir seria suficientemente importante para impedir a
imputação do resultado ao seu incumprimento. Em resumo, ou se assumiria a relevância
da dimensão de risco genericamente associada à prática do comportamento (e tal obrigaria
à reconfiguração da norma de cuidado); ou se manteria a desconsideração dessa dimensão

22
para efeitos de proibição do comportamento (e permissão de outros), e ela manter-se-ia
irrelevante para a imputação48.

Reconhecemos o mérito de tentar condicionar o juízo de atribuição do resultado pelas


coordenadas axiológica e dilematicamente pertinentes obtidas no perfilamento do
comportamento proibido. Não representa isso mais que desenvolvimento coerente de se
tomar o desvalor do resultado como concretização do desvalor da acção. Mas a orientação
apontada traduz-se, vendo bem, em aplicar a teoria do incremento do risco (mesmo que
de modo selectivo, limitando-a aos casos de mera comparação com o risco genérico e
estatisticamente residual de produção do resultado). Ela sofre, por isto, das dificuldades
já apontadas a esta tese. Perante a dúvida sobre se a lesão concretiza o risco criado com
a violação da norma ou o risco genérico permitido pelo legislador, só poderíamos afirmar
a imputação negando a viabilidade de distinguir os dois riscos (ou as duas dimensões de
risco), e bastando-nos com a verificação ex post do incremento do risco para lá da medida
genericamente admissível (acrescida da causalidade, claro); prescindindo nestes casos,
enfim, de estabelecer entre violação da norma e resultado a conexão que, contudo, já
sabemos ser necessária49.

48
A título ilustrativo, tome-se novamente o caso do ciclista: quando a dúvida (sobre se o atropelamento
ocorreria se houvesse sido respeitada a distância de segurança) se gera com base em factores que
fundamentam um perigo concreto de produção do resultado (como acontecia, no caso, com a embriaguez
do ciclista), impor-se-ia o afastamento da imputação, pois este é um risco não tido em consideração na
delimitação do comportamento proibido, e do qual, por conseguinte, não podemos abstrair no juízo de
imputação; já sendo a dúvida levantada pela referência ao risco geral e estatisticamente residual implicado
em quaisquer ultrapassagens, não haveria motivo para negar a imputação da morte à ultrapassagem em
desrespeito da norma, dado ser um risco do qual abstraímos naquela delimitação: ibid., pp. 549 e ss.
49
Modifiquemos o caso do ciclista e suponhamos sóbria a vítima: na dúvida sobre se o atropelamento
ocorreria houvesse a distância de segurança sido observada, não está afastada a possibilidade de recondução
do atropelamento ao risco geral envolvido numa ultrapassagem permitida. Neste quadro, defender a
imputação não pode já sustentar-se na conexão comprovada entre resultado e violação da norma; ela não é
explicável à luz das razões que esclarecem o resultado como elemento típico, fazendo antes sentido somente
na óptica de quem, para efeitos de atribuição do dano à actuação perigosa, se baste com a verificação do
incremento do risco proibido. Não obstante descortinarmos racionalidade na distinção entre risco
estatisticamente residual (desconsiderado na proibição) e risco emergente de factores concretos presentes
no caso, e admitirmos a sua pertinência para derivações respeitantes à compreensão da lógica subjacente
ao quadro normativo e à aplicação dos comandos e proibições legais, não a cremos, em suma, via pérvia
para chegar aos efeitos apontados no contexto da imputação objectiva.

23
IV. Configuração do comportamento lícito alternativo
Contra a hipotização de comportamentos lícitos alternativos invoca-se amiúde a
arbitrariedade pretensamente implicada no processo. De facto, com frequência se obtêm
respostas divergentes consoante se considere uma ou outra versão da actuação devida;
segue-se daí a dúvida sobre o processo mais acertado para identificar o comportamento
lícito com o qual a comparação deverá ser feita. Alguns autores tomam mesmo como
obstáculo infrangível a todo o propósito comparativo a impossibilidade de avançar
método seguro para a levar a cabo50. Têm razão?

Comecemos por atentar num exemplo em que o óbice nos parece avançado com alguma
desrazoabilidade. Imagine-se que A conduz a 70 km/h numa estrada onde o limite é de
40 km/h, vindo a atropelar mortalmente um peão. Comprova-se que mesmo respeitando
o comando legal, muito dificilmente conseguiria A evitar o atropelamento (chamemos
versão 1 a esta configuração lícita dos acontecimentos). Valerá objectar, com o propósito
de defender a imputação, que (e esta será a versão 2) se A houvesse cumprido o limite,
teria chegado mais tarde ao local e a morte não teria ocorrido?51.

A objecção passa por apresentar uma versão lícita dos acontecimentos diversa da que
situa o agente nos mesmos espaço e tempo. O objector pretende defender uma de duas
ideias: ou que a versão 2 é a correcta; ou que, sendo arbitrária a escolha, nenhuma deve
ser preferida, restando abdicar da indagação sobre o que poderia ter acontecido em
circunstâncias diversas, e cingir o exame ao efectivamente ocorrido. Um argumento de
igualdade, todavia, parece impor preferência pela versão 1, invalidando ambas as
pretensões. Sendo ex ante permitido conduzir a 40 km/h naquele local e àquela hora (até
ao surgimento do peão), não há motivo para desconsiderar esta versão em favor da 2.
Preferir a versão 2 reconduzir-se-ia a proibir o agente de iniciar o percurso mais cedo (i.
e., à hora que, dada a velocidade adoptada, o teria levado a estar no locus delicti quando
a vítima apareceu), o que, está bom de ver, carece de sentido. Desejando prosseguir a
disputa sobre a melhor configuração dos acontecimentos a apreciar, ripostaríamos então
ao objector reformulando a versão 1 (ou, se se preferir, apresentando uma terceira
variante) com a referida modificação do horário do agente. Emaranhamentos, contudo,

50
Cfr., v. g., CURADO NEVES, Comportamento lícito alternativo, (n. 2), pp. 197 e ss.; PUPPE,
Comentários prévios ao § 13, (n. 39), n. m. 202 e 209 e ss.
51
Cf. JAKOBS, Strafrecht, (n. 4), p. 232134.

24
desnecessários. Concretizando o argumento, bastará notar que sendo permitido conduzir
até certa velocidade nas mesmas hora e lugar, não há razão para excluir da comparação a
versão 1; pelo contrário: enquanto variante lícita mais próxima do ocorrido, impõe-se
utilizá-la.

Só em aparência, todavia, bonda o argumento. Vendo bem, ele ajuda a esclarecer o


motivo por que estamos impedidos de desconsiderar a versão 1, mas não oferece ainda
método seguro para identificação da variante mais indicada. Tomemos outro caso, no
qual, segundo cremos, se torna isto mais nítido. Dois peões são atropelados por um
motociclista quando caminhavam pelo lado direito de uma estrada onde se impunha usar
o lado esquerdo; na decorrência do embate, o motociclista morre. Invocaram os arguidos
que se houvessem caminhado pelo mesmo lado, mas em sentido contrário (ou se tivessem
ficado parados), o desfecho seria igual. Foram condenados, pois o Supremo Tribunal
Federal optou antes por comparar os factos ocorridos com a deslocação feita no mesmo
sentido, mas pelo outro lado da estrada – quadro em que o resultado seria evitado52.

O argumento de igualdade exposto não é suficiente para explicar porque se há-de


preferir a versão dos arguidos à do Tribunal. Qual a variante lícita mais próxima do caso
– caminhar no mesmo sentido pelo lado oposto, ou em sentido contrário pelo mesmo
lado? Deparamos até com motivos aparentemente satisfatórios para aceitar a opção dos
juízes alemães quando consideramos o critério do propósito dos agentes. Querendo estes
deslocar-se do ponto A ao B, a configuração lícita dos acontecimentos terá por limite o
agarrarmo-nos a este pressuposto, sendo então de afastar a versão dos arguidos
(construída com suposição da deslocação do ponto B ao A). Em reforço desta linha, haja
vista o seguinte. Que o acidente também ocorreria houvessem os agentes caminhado em
sentido contrário não nos leva a duvidar de que eles o poderiam ter evitado cumprindo a
norma enquanto procediam como desejado: caminhando (na mesma direcção, mas) do
lado correcto da estrada, desaparecia o dano. O Direito oferecia-lhes (literal e
figurativamente) via para fazerem o que queriam sem provocarem a ocorrência.
Demonstrar que o resultado seria idêntico se tivessem adoptado a direcção contrária é
trazer à colação uma hipotização irrelevante para averiguar o que de facto aconteceu.
Dispondo os agentes de meios (lícitos) para atingir o que pretendiam sem produção do

52
Segundo dá conta ROXIN, “Pflichtwidrigkeit und Erfolg”, (n. 15), p. 443.

25
resultado, alegar que este decorreria igualmente da utilização desses meios para fim
distinto nada esclarecerá sobre a violação da norma e os seus efeitos53.

Tal raciocínio enfraquece nos quadros em que vimos desenvolvendo as nossas soluções.
Como vimos, o ponto (para nós) decisivo encontra-se na demonstração de que a violação
da norma não explica o resultado. Sendo verdade o alegado pelos arguidos (i. e., o
desfecho não mudaria no caso de caminharem em sentido contrário pelo mesmo passeio,
ou de estarem aí parados), o comportamento lícito alternativo por eles configurado
demonstra que para explicar o resultado basta referir a presença naquele lado da estrada;
não precisamos de acrescentar aquilo que torna o comportamento proibido (não se
proibia, note-se, a presença no lugar em si mesma, senão a utilização daquele lado para
caminhar naquela direcção).

Isto suposto, somos conduzidos a conclusão muito importante, que mais clara surgirá
depois de afastarmos outra linha de solução que ameaça intrometer-se no raciocínio.

Neste momento, poderá aventar-se como melhor critério para identificar a configuração
de comportamento lícito alternativo pertinente o de expurgar do quadro real a violação
da norma, perguntando depois se o resultado se mantém54. Parece método adequado ao
nosso objectivo de comprovar a conexão entre componente proibida da actuação e
resultado. Redunda, não obstante, em adoptar a versão do Tribunal como correcta.
Permitindo-se o caminhar no sentido intencionado pelos arguidos, mas não a escolha
daquele passeio para o fazer, é esta escolha que deve ser suprimida. Suporemos então
feita a caminhada no mesmo sentido, mas pelo lado oposto, e, já se sabe, aspa-se o
resultado55.

53
Esta linha ganha sentido e força no pensamento de FRISCH, Tatbestandsmäßiges Verhalten, (n. 5), pp.
529 e ss., para quem é decisiva a possibilidade de evitar planificadamente o resultado. Nesta óptica,
oferecendo o Direito um plano de acção que teria permitido ao agente concretizar o seu propósito sem
produção do resultado, e após comprovação (da violação da proibição e) da causalidade, nada resta a
esclarecer. É irrelevante o que teria acontecido em qualquer percurso causal que envolvesse propósito
diverso a guiar o agente.
54
Como propõe JAKOBS, Strafrecht, (n. 4), pp. e ss.
55
Poderia contrapor-se descrição diferente da factualidade: estando os arguidos naquele passeio, a escolha
de caminhar no sentido por eles pretendido é proibida, pelo que é esta opção que cabe expungir. Suporíamos
então a caminhada feita pelo mesmo lado, mas no sentido contrário, ou os arguidos parados. Tais disputas
revelam-se rapidamente meros jogos de palavras, o que, por si só, nos aconselha a abandonar o método.

26
A resposta acabada de obter revela que o respectivo método só em aparência serve as
nossas preocupações. Ele contradiz, sem refutar, as considerações com que negámos a
conexão entre violação da norma e resultado56. E só o faz porque partilha com os demais
procedimentos (mais ou menos conscientemente) propostos pela doutrina um propósito
errado: identificar a versão lícita dos factos mais apropriada. O próprio fito de encontrar
o comportamento lícito alternativo correcto trai as elaborações feitas para o prosseguir.

O problema, lembre-se, é o de imputar (ou não) o resultado ao comportamento. Para o


resolver, precisamos de verificar se existe conexão entre violação da norma e lesão.
Descobrir o que teria acontecido em caso de actuação conforme ao Direito só poderá
assumir relevância para este efeito: afastar a imputação. Tal acontecerá quando a
descoberta nos leve a concluir pela negação daquela conexão. São estas as coordenadas
que nos hão-de guiar na comparação entre o efectivamente ocorrido e os percursos
hipotéticos. Mas elas dispensam a pretensão de seleccionar uma só configuração lícita do
comportamento; tal fito só se admitiria invertendo a metodologia adequada de análise.
Interessa-nos qualquer variante dos acontecimentos susceptível de pôr em causa a
conexão referida; quando não conduzam a questionar a ligação entre violação da norma
e resultado, as hipóteses de comportamento lícito alternativo serão simplesmente
irrelevantes para efeitos de imputação, seja para a afastar ou confirmar; pelo que a
comprovação de que dada acção conforme ao Direito teria evitado o resultado nunca terá
o efeito de fechar a porta à consideração de outras variantes. Dessa comprovação, em
suma, extraímos a conclusão da irrelevância da variante respectiva, mas nada fica dito em
relação às demais.

Retomemos a esta luz os casos que nos vêm ocupando.

No do ciclista, comparamos a factualidade real com a ultrapassagem feita respeitando a


distância de segurança, não porque seja este o comportamento lícito alternativo correcto,
e sim por ser o único relevante (i. e., susceptível de pôr em causa a imputação). Também
a condução sem ultrapassagem (permitida ou proibida) por parte do camionista oferece

Mas ainda que superássemos (ou nos desviássemos de) o obstáculo, manter-se-ia o problema de fundo,
indicado a seguir no texto.
56
Resumamos as considerações: bastando a presença naquele passeio para explicar o resultado, não
precisamos da violação da norma (a utilização desse passeio para caminhar no sentido adoptado), pelo que
se deve negar a imputação da morte ao comportamento proibido.

27
uma variante lícita, de que prescindimos, não por ser incorrecta, mas sim por não ser
pertinente: dela concluímos que sem a manobra, não havia resultado; conclusão incapaz
de prejudicar a imputação objectiva (ou de a confirmar); logo, não merecedora de atenção.

No caso da novocaína, demonstrar os efeitos mortais do anestésico recomendado não


põe em causa a conexão de ilicitude, sendo, por isto, tão irrelevante para afastar a
imputação como a comprovação de que o médico não teria matado o paciente se não lhe
houvesse receitado nada57. Não se trata de uma variante ser correcta e a outra errada, mas
de serem ambas igualmente inócuas.

No caso dos peões, a certeza de que o resultado se evitaria houvessem eles tomado o
outro lado da estrada nada adianta quanto à imputação, seja para a fundamentar ou afastar.
Já da verificação de que o acidente ocorreria se os arguidos tivessem ficado parados ou
caminhado (pelo mesmo lado) no sentido oposto podemos inferir que o atropelamento
não é explicado pela componente ilícita da actuação. Esta demonstração afasta, por isto,
a imputação objectiva58.

V. Riscos substitutivos
Os desenvolvimentos apresentados ajudam-nos a tratar o problema dos riscos
substitutivos, último ponto a merecer atenção no presente artigo.

Segundo JAKOBS, levar em conta percursos hipotéticos conduz a erros sempre que no
caso intervenha um risco substitutivo, pois este e o risco a comprovar bloqueiam-se (i. e.,
cada um bloqueia a verificação da realização do outro). Chamemos de novo para nos
auxiliar o já nosso conhecido ciclista: dizer que ele se assustaria e cairia do mesmo modo
caso o camionista houvesse respeitado a distância regulamentar levar-nos-ia a concluir
que não se realizou o perigo de ultrapassagem ilegal. O mesmo raciocínio, contudo,
poderia ser aplicado para negar a realização do risco criado pel(a condução ébria d)o
ciclista, se pudermos dizer que sem a embriaguez o resultado também se teria produzido.
De acordo com JAKOBS, as respostas revelam que as respectivas perguntas são

57
Não se olvide a ressalva apontada na n. 33.
58
No fim de contas, continuamos em sintonia com quem insiste na obrigação de nos cingirmos ao
esclarecimento dos factos ocorridos (v. supra, n. 26). Só que isto significa para nós não a necessidade de
afastar a consideração de percursos hipotéticos, mas sim a de limitarmos a relevância destes ao efeito de
questionamento da conexão de ilicitude.

28
incorrectas, já que nenhum outro risco pode ser apontado no caso e força é que algum
deles se tenha realizado, sob pena de ficar por explicar o desfecho. Em suma, tal como a
causalidade de uma condição não assenta no desaparecimento do resultado quando ela é
suprimida, mas sim na causação efectiva, a realização do risco bastar-se-á outrossim com
a conexão real entre este e o resultado, sem ser preciso curar de percursos hipotéticos59.

Já bastas vezes repetimos ser a conexão entre infracção à norma e resultado o que
procuramos; e que é justamente para a esclarecer que defendemos merecerem atenção os
percursos hipotéticos (quando se comprovem relevantes para tal). Como sustentar isto
perante a confrontação, acabada de resumir, com os riscos substitutivos? Responderemos
com a ajuda do sempre prestável ciclista embriagado.

Sabemos que o camionista atropelou a vítima e a matou; ainda precisamos de esclarecer


se o resultado se explica pelo comportamento proibido. O ciclista ficou encandeado ou
assustado com a ultrapassagem, e por isso caiu; questão é saber se o encandeamento ou o
susto foram consequência da proximidade indevida. Na óptica de JAKOBS,
contradizendo-se entre si as respostas extraídas das comprovações referidas (a morte
ocorreria tanto se houvesse sido respeitada a distância regulamentar como em caso de
sobriedade da vítima), resta-nos desconsiderar as suposições alternativas. Parece-nos,
contudo, ser dado aqui um salto indevido.

Numa terceira configuração hipotética dos acontecimentos, se tanto o agente como a


vítima conduzissem observando as regras, o ciclista sobreviveria. JAKOBS não menciona
esta variante, mas, se bem vemos, é pela contraposição entre ela e aquela em que só o
camionista desrespeita as normas que se põe em xeque o afastamento da imputação. Com
efeito, por aí se sugere ser indispensável a aproximação indevida por parte do camionista
para explicar o resultado. No entanto, estamos, em rigor, a contar histórias diferentes.

A história real inclui um ciclista embriagado. A permanência do resultado no quadro em


que a distância de segurança é respeitada sugere a essencialidade da embriaguez da vítima
para o explicar. Mas assim responde-se a outra pergunta, não à que nos move. Não é
decisivo confirmar se o estado do ciclista é fulcral para esclarecer a sua morte, e sim que
a violação da norma pelo camionista o não é. Não procuramos determinar qual o risco
concretizado no resultado (ultrapassagem, ultrapassagem indevida, embriaguez da vítima,

59
JAKOBS, Strafrecht, (n. 4), p. 224.

29
mais que um em combinação...); queremos, em vez disso, confirmar meramente se esse
risco foi o da ultrapassagem indevida. A resposta a esta indagação, quando negativa, não
implica necessariamente dar solução àquela.

Em face das suposições indicadas60, é possível que o risco realizado no resultado fosse
o perigo envolvido em qualquer ultrapassagem (mesmo que feita nos termos legais) de
um ciclista ébrio. Delas retiramos somente duas certezas, que não contradizem tal
possibilidade: primeiro, o risco concretizado não foi o genericamente envolvido em
qualquer ultrapassagem (permitida ou proibida) de qualquer ciclista (sóbrio ou não)61.
Segundo, só o risco criado pela manobra realizada sem observância da distância
regulamentar explica(ria) cabalmente a morte do ciclista sóbrio62. Como se vê, aquelas
suposições só impõem a imputação da morte ao comportamento proibido do camionista
na versão em que o ciclista não conduz embriagado; a nossa vítima, porém, trazia muito
álcool no sangue. Por outro lado, a atribuição do resultado (como efectivamente ocorrido)
ao risco genericamente envolvido em qualquer ultrapassagem mantém viabilidade,
mesmo que não esteja comprovada. Ora, não sendo tal viabilidade afastada, temos uma
razão forte para negar a imputação, não bloqueada pela suposição de que o ciclista sóbrio
morreria atropelado pelo camionista que violasse a norma63.

Conclusões
O desvalor da acção é aferido de uma perspectiva ex ante, e a inevitabilidade da
produção do resultado não o afecta. Em primeiro lugar, porque não contraria o juízo de
perigo. Quanto à proibição da acção, ela visa evitar que os bens sofram lesões ou perigos
por acção humana; não tem por fim garantir a integridade dos bens, pelo que, em segundo
lugar, a inevitabilidade do dano também não a porá causa.

60
Entenda-se: a morte ocorreria sem o descuido do camionista ou sem a ebriedade do ciclista, mas não sem
ambas.
61
A afirmação contrária é invalidada pela suposição de que o resultado não adviria se ambos houvessem
respeitado a lei.
62
Conclusão a que chegamos confrontando a suposição referida na n. anterior com a de que o resultado se
manteria se imaginarmos sóbrio o ciclista e descuidado o camionista.
63
A resposta seria outra se o camionista houvesse dado conta da embriaguez e do perigo envolvido na
ultrapassagem, mas não porque muda o critério, e sim os seus pressupostos de aplicação; pois então a
distância de ultrapassagem teria de ser ainda maior, ou, no limite, seria proibida a manobra.

30
Para aferir se e quando a inevitabilidade do resultado afectará o desvalor do resultado,
temos de nos reportar às razões que explicam o resultado como elemento típico, e à
consequente articulação entre o desvalor correspondente e o da acção.

Evidenciando e redimensionando a violação da norma em que o desvalor da acção se


traduz, o resultado confere premência e urgência à prossecução de necessidades de
prevenção geral. Conjugada esta dimensão com as orientações oferecidas por diversos
princípios constitucionais e penais, o dano só será tido como resultado (elemento típico)
quando seja concretização da violação da norma. O desvalor do resultado não existe, por
isto, desligado do desvalor da acção.

Os percursos causais hipotéticos que demonstrem a inevitabilidade do resultado só


relevarão quando ponham em dúvida a causação da lesão pela acção do agente e/ou a
conexão entre violação da norma de comportamento e resultado. Tal só poderá acontecer
quando a causa hipotizada consista noutra actuação do próprio agente, configurada numa
versão lícita. Para identificar estes casos problemáticos, falamos em comportamento lícito
alternativo, deixando a designação de causa virtual para os restantes. A demonstração de
que o comportamento lícito alternativo produziria o resultado afasta então a imputação
objectiva quando ponha em dúvida ou negue a causalidade ou a conexão referidas. A
incerteza é suficiente para este efeito, já que os princípios da legalidade e do Direito Penal
do facto deixam a imputação na dependência da certeza sobre aqueles elementos.

Não há necessidade de seleccionar a priori determinada configuração de


comportamento lícito alternativo em detrimento de outras. Será relevante (para afastar a
imputação) qualquer variante que prejudique a conexão de ilicitude. É em função deste
efeito que a relevância é aferida, e não de qualquer critério de pré-selecção.

Os riscos substitutivos não introduzem obstáculo à consideração de percursos


hipotéticos, dado que com estes, não buscamos, em primeira linha, identificar o risco
concretizado no resultado, mas sim testar a asserção de que esse risco foi o proibido criado
pelo agente.

31

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