Você está na página 1de 23

ENTRE HOMENS, MULHERES

E DEUSES: IDENTIDADE, GÊNERO


E (HOMO)SEXUALIDADE NO CONTEXTO
RELIGIOSO AFRO-BRASILEIRO
Ralph Ribeiro Mesquita

Resumo: Este artigo focaliza algumas possí-


veis relações entre identidade, gênero e ho-
mossexualidade no contexto religioso dos can-
domblés. Entrevistas e observações de cam-
po possibilitam perceber como os sujeitos sig-
nificam experiências relativas à sexualidade e
como estas podem ser compreendidas na di-
nâmica dos grupos religiosos. Algumas trans-
formações são apontadas nas significações
ao longo do tempo e, principalmente, a rea-
firmação da desigualdade entre sexualidades
de mulheres e homens.

Palavras-chave: homossexualidade e candom-


blé; gênero; identidade.

Ao iniciar o projeto de minha tese to sexual considerado promíscuo como


de doutoramento em antropologia (MES- principal responsável por infecções,
QUITA, 2002), tinha em mente discutir adoecimentos e mortes por AIDS – um
longamente aspectos do campo dos aspectos do meu objeto de estudos
representacional da sexualidade no uni- –, mas não ultrapassam o limite desta
verso afro-brasileiro revisitando, para tan- suposta evidência, fartamente reafirma-
to, autores e teorias. Entretanto, a dinâ- da pela maioria das agências sociais
mica da pesquisa me obrigou, de certa (GÓIS, 2001). De certa maneira, parece
forma, a tomar outra direção. Salvo al- que a idéia de promiscuidade se cristali-
guns poucos depoimentos recolhidos no za nos discursos das pessoas, funcionan-
campo através de entrevistas, que pare- do como uma espécie de elemento
cem querer funcionar como uma espécie totalizador do sujeito, permitindo redu-
de “hiperconsciência moral” da socieda- zir seu comportamento ao número supos-
de, ao estabelecer um julgamento e con- to de contatos sexuais.
denação de atores e práticas, os demais
exibem coloração reticente com relação Não muito mais do que essas evi-
às expressões da sexualidade, em geral, e dências puderam ser verificadas no cam-
da homossexualidade, em particular. De po, com relação à sexualidade e os gru-
comum, todos apontam o comportamen- pos de candomblé. Entretanto, uma

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 95


tensão constante parece não querer de HIV/AIDS sobre os grupos de candom-
desvincular sexualidade e religiosidade blé provoca uma certa desestabilização
afro-brasileira. Quer em uma versão que das representações aparentemente con-
supõe maior possibilidade de liberdade e solidadas até o aparecimento da doença.
autonomia com relação às movimenta-
ções e escolhas no mundo secular, quan- O quadro que parece se desenhar
do comparada a outras formas religiosas, com o surgimento do HIV/AIDS, relativa-
quer em uma leitura que toma liberdade mente às expressões de sexualidade e gê-
e autonomia como sinonímia de liberti- nero, estimula a rever o estatuto que al-
nagem e promiscuidade, a temática da gumas categorias gozam no universo de
sexualidade e os grupos de candomblé significações dos grupos de candomblé.
continuam alimentando teorias e imagi- Assim, ainda que de forma preliminar, al-
nários. gumas questões são levantadas e hipóte-
ses sugeridas com vistas a ampliar as dis-
O objetivo deste texto é apresentar cussões sobre o campo e a temática
algumas discussões que relacionam proposta.
aspectos do universo religioso dos can-
domblés e perspectivas de gênero,
identidade e expressões de sexualidade, De homossexual a adé ou
particularmente em sua versão homoeró- criando teorias e gêneros
tica. Para tanto, uma primeira abordagem
permitirá situar certa trajetória teórica de Deixando de lado alguns dos pri-
cunho antropológico que toma como meiros autores que, de uma forma ou de
elemento central sujeitos, práticas e outra, se ocuparam de aspectos da se-
significações de natureza sexual em xualidade em grupos religiosos afro-bra-
circulação no mundo de homens e sileiros como, por exemplo, João do Rio
mulheres que compartilham a crença em (RIO, 1976),2 tomo como marco signifi-
orixás, inquices e voduns.1 cativo para minha análise os trabalhos da
antropóloga americana Ruth Landes. Ten-
As considerações sobre o campo do vivido na cidade de Salvador, Bahia,
teórico produzido pela antropologia, no entre 1938 e 1939, escreve, em 1947, o
que tange aos aspectos religiosos afro- bastante conhecido The City of Women
brasileiros e sua vinculação com as (LANDES, 1967).
temáticas de gênero, identidade e sexua-
lidade, fornecem as bases para discussões A cidade das mulheres é, sem dúvi-
posteriores, redefinidoras ou não destas da, texto de capital importância para o
mesmas considerações. Assim, realiza-se entendimento, senão dos cultos afro-bra-
uma breve análise de aspectos discursivos sileiros enquanto tal – não se trata de um
de sujeitos religiosos que significam texto com pretensões litúrgicas – pelo
idéias e comportamentos relativos ao menos de alguns aspectos de sua estru-
campo de estudos em questão, tendo tura e, o que me parece mais relevante,
como ponto de partida o advento da epi- de aspectos centrais de uma certa leitura
demia de HIV/AIDS que se torna relevan- sobre os grupos religiosos de candom-
te também para o chamado povo-de-san- blé. Landes parece acreditar ter encon-
to. Ao que parece, o impacto da epidemia trado na cidade de Salvador, Bahia, de

96 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


1938/1939, grupos de religiosos que, Alguns homens se deixam cavalgar e tor-
subvertendo a hegemonia da sociedade nam-se sacerdotes ao lado das mulheres;
abrangente, organizam, com base em mas sabe-se que são homossexuais. Nos
uma estrutura que chama de matriarcal, templos, vestem saias e copiam os mo-
um modo de vida em que a mulher é o dos das mulheres e dançam como as mu-
centro, de onde tudo emana e para onde lheres. Às vezes têm melhor aparência do
tudo se dirige. que elas (LANDES, 1967, p. 44).

As conseqüências do pensamento Como ofício eminentemente de


de Landes que, em uma primeira impres- mulher (CARNEIRO, 1978, p. 116-117),
são, reafirma a ideologia de certo seg- o candomblé aparece, na leitura de
mento da “inteligência baiana” de sua Landes, como sendo constantemente
época ou, para utilizar uma expressão de violado, em sua suposta essência, por
Artur Ramos, da “escola Nina Rodrigues” “homens anormais”, que desejam ser
(RAMOS, 1937 apud CORRÊA, 1999, como as sacerdotisas negras das casas
p. 4), exemplificado nas figuras de Nina nagôs. Este desejo se expressa, principal-
Rodrigues, Edison Carneiro, Artur Ramos, mente, através da experiência do transe,
Martiniano Eliseu do Bonfim, dentre ou- entendido nesse momento como interdi-
tros, podem ser sentidas ainda hoje. tado aos “homens normais”. Assim,
insiste Carneiro com relação ao transe,
Na verdade, a preocupação de
Landes com a sexualidade, ou melhor, É pena que os homens não sejam habili-
com a homossexualidade – e preferen- tados a essa experiência, exceto quando
cialmente a masculina – só se dá tangen- anormais; imagina-se que sejam de ma-
cialmente, já que ela faz derivar, da téria terrena e o mais que podem fazer é
estrutura social e dinâmica dos candom- dançar nas ruas (LANDES, 1967, p. 225).
blés “tradicionais” baianos, um modelo
específico de sociedade. O tema da A anormalidade de que fala Car-
homossexualidade surge como uma neiro é a homossexualidade que perverte
espécie de resíduo lógico, uma vez que o “espírito natural” do homem:
se tem por finalidade a análise dos luga-
res de mulheres e homens na estrutura Diz-se que o espírito do homem está nas
dos grupos religiosos. Entretanto, nesse ruas, e não voltado para dentro, sobre si
texto, e especialmente em um outro mesmo, onde pode ser um instrumento
publicado em 1940 (LANDES, 1967, dos deuses. É sempre “quente”, excita-
p. 283-296), Landes discute o sentido e do, mundano (LANDES, 1967, p. 225).
o lugar possível da homossexualidade
masculina nos chamados candomblés. Vale ressaltar que, menos que uma
Edison Carneiro, seu principal “iniciador” interpretação isolada e preconceituosa, o
no mundo dos cultos afro-brasileiros, não pensamento de Landes e seus pares
cansa de lembrá-la do papel secundário sobre a homossexualidade reflete o esta-
dos homens e do sentido de usurpação a do das pesquisas e entendimentos sobre
que estão submetidas as tentativas des- o comportamento sexual dos homens em
tes em igualarem-se às “grandes mães”. sociedade, em sua época. Assim, a
Diz ele a Landes: homossexualidade é abordada como um

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 97


problema em si mesmo, ainda que se individuais e sociais importantes e fáceis
aceite a evidência de poder (dever) rece- de observar; mas o seu especial interesse
ber tratamentos diferenciados, de acor- para a psicologia reside no demonstrar o
do com a cultura à qual estiver submeti- modo pelo qual um grupo proscrito fez
da, ou por ela produzida. nova adaptação, tirando vantagem das
novas circunstâncias (LANDES, 1967, p.
Mas, se a despeito do que pensam 284).
Carneiro, Landes e seus pares, a expe-
riência do transe, bem como o exercício Sexo, transe e desvio aliam-se para
sacerdotal mostram fortes indícios de configurar outras formas de prática reli-
crescimento na Bahia de 1939, como pro- giosa que, opondo-se à verdade nagô,
teger a “verdadeira religião africana”, já afastam-se dos verdadeiros deuses. Os
ameaçada pelas transformações e perdas cultos caboclos são o paradigma desta
de grandes líderes, como Mãe Aninha, transformação, posto que “relaxaram
antiga dirigente de um importante ter- grandemente as restrições que cercam as
reiro de Salvador? mães” (LANDES, 1967, p. 290). Relaxan-
do os pressupostos fundamentais que
“Matriarcado cultural e homos- organizam o culto nagô, possibilitaram a
sexualidade masculina”,3 é publicado em introdução de elementos novos, represen-
1940, em forma de artigo, portanto, an- tados principalmente pela admissão de
tes de The City of Women, que é de 1947, homens ao posto sacerdotal. De um lado,
e suas conclusões baseiam-se nas pesqui- os candomblés nagôs, únicos e legítimos
sas realizadas na Bahia. Entretanto, nes- centros irradiadores da verdadeira religião
se e nos dois outros artigos que o seguem africana; de outro, os candomblés cabo-
na versão em português de 1967,4 Landes clos e bantus, lócus privilegiado de pros-
estabelece uma teorização mais clara, in- critos e representante da religião detur-
clusive apontando para elementos de or- pada e da feitiçaria.
dem histórica, aspecto menos explorado
no texto principal. A distinção trazida por Landes, en-
tre homossexualidade passiva e ativa, será
Na Bahia de 1938-1939, a homos- tratada por outros autores como Peter Fry
sexualidade masculina, especialmente a (1982) e Patrícia Birman (1995), ainda que
homossexualidade dita passiva, transfor- de maneira diferenciada. O que parece
ma-se em elemento importante para a fundamental nesse momento é menos
análise dos cultos afro-brasileiros. Enten- uma pertinente distinção taxonômica,
de Landes que os homossexuais passivos, do que a afirmação de uma especificidade
sujeitos especialmente proscritos da so- do grupo sacerdotal masculino. De fato,
ciedade, têm nos candomblés um espa- pouco importa se o sujeito é ativo ou
ço para reinventar seu status. passivo em termos de comportamento
sexual, já que é a homossexualidade em
Na comunidade negra da Bahia, no Bra- si, ou o papel sociorreligioso dos homens
sil setentrional, circunstâncias incomuns nos candomblés, o que caracteriza o alvo
encorajam certos homossexuais passivos das análises e críticas de Landes. Se a
a forjar um novo e respeitado status para questão da representação do papel
si mesmos. Disso resultaram mudanças sexual tem alguma importância, esta pa-

98 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


rece mais reservada ao interior do grupo palmente, homens homossexuais nos
do que propriamente ao exterior, mesmo candomblés e que os classifica em “ho-
que, na maioria das vezes, seja o sujeito mossexuais passivos” e “homossexuais ati-
caracterizado como passivo tornado mais vos”. É precisamente sobre esta distinção
visível para a sociedade e elemento cen- que Fry desenvolve sua argumentação.
tral das análises. Entretanto, lembre-se Aproximando os conceitos previamente
que vários pais-de-santo, embora discre- formulados, do campo de representações
tos, sérios etc., não deixaram de ser no- dos religiosos – o que é decisivo nesta
tados e criticados por Landes. construção –, propõem um outro olhar
sobre a matéria. Assim, diz ele, com rela-
Em Homossexualidade masculina e ção ao tratamento dispensado por Landes
cultos afro-brasileiros, Peter Fry (1982, à evidência da homossexualidade nos can-
p. 54-86),5 apoiado em autores como domblés baianos:
Ruth Landes, René Ribeiro, Seth e Ruth
Leacock, Anaíza Vergolino, Roger Bastide, Existe outro problema relativo à caracte-
Artur Ramos, entre outros, e em sua pró- rização de Landes do papel sacerdotal no
pria pesquisa realizada na cidade de candomblé baiano como sendo tradicio-
Belém, Pará, revê a literatura sobre ho- nalmente feminino. Podemos tomar a
mossexualidade masculina nos chamados afirmação de Herskovits de que tradicio-
cultos de possessão afro-brasileiros. Su- nalmente isso não acontece nem mesmo
blinha vários momentos do trabalho de na África ocidental. Entretanto, o fato é
Landes, especialmente aqueles em que ela que a maioria dos membros do culto são
afirma a proposição de liderança “tradi- mulheres, e mesmo se Landes está erra-
cional” da mulher nos candomblés da em insistir que o papel sacerdotal é
baianos, e o desejo de ocupação deste exclusivamente feminino, as mulheres
lugar por homens homossexuais (FRY, certamente dominam os cultos. É difícil
1982, p. 60-61). aceitar o argumento de Landes porque
ela trata o assim chamado homossexual
No que tange à homossexualidade passivo como se fosse “pior” ainda do que
masculina nos candomblés para Landes, uma “mulher de segunda categoria”. No-
Fry argumenta que duas principais inter- vamente, seu argumento poderia ser res-
pretações são sugeridas: gatado se ela tivesse sido capaz de citar
as opiniões das pessoas envolvidas (FRY,
Primeiro, os homossexuais passivos ade- 1982, p. 64-65).
rem aos cultos a fim de desempenhar
papéis femininos. Segundo, ao agir des- A absoluta valorização do campo de
sa maneira, eles podem adquirir prestí- significações construído a partir dos dis-
gio como líderes religiosos, compensan- cursos dos atores sociais faz toda a dife-
do seu status de homossexual (FRY, 1982, rença na perspectiva proposta por Fry, se
p. 60). comparada à utilizada por Landes. Espe-
ro não ser demasiadamente simplificador
Não vou me deter aqui nas muitas ao tentar decidir por algumas poucas pro-
querelas em que as idéias de Landes esti- posições teóricas contidas neste trabalho
veram envolvidas. Para o que objetivo tra- de Peter Fry. Para mim, uma de suas con-
tar, basta dizer que ela identifica, princi- tribuições mais significativas é possibili-

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 99


tar o exercício de “desnaturalização” situdes da idéia de “bicha” no cenário dos
de idéias geralmente aceitas como tendo terreiros, isola categorias como “ho-
um sentido universal. Talvez hoje o valor mem”, “homem verdadeiro”, “bicha ver-
pedagógico mais relevante de seus dadeira” e “bicha incubada”. Não parece
ensinamentos já tenha sido incorporado necessário aqui nos determos nas signifi-
pelas gerações de antropólogos e cien- cações que cada uma destas categorias
tistas sociais que o seguiram – se bem encerra. Na realidade, o que importa, por-
que, não raro, somos tentados a cair nas que recorrente em termos de representa-
armadilhas do etnocentrismo e da natu- ção coletiva, é a expressiva relação entre
ralização. candomblé e homossexualidade mascu-
lina ou “bichice”.
Tendo como objeto de análise a ho-
mossexualidade masculina e os cultos A discussão de Fry sobre a homos-
afro-brasileiros, Fry nos leva a perceber sexualidade e os cultos afro-brasileiros
como outros conceitos são forjados no permite acompanhar a transformação de
campo, pelos atores sociais em suas ex- uma categoria francamente marginal – a
periências cotidianas, e como esses “no- homossexualidade masculina – em algo
vos” conceitos se aproximam ou se afas- com alguma carga simbólica positiva –
tam de concepções mais generalizantes. ou contribuindo sobremaneira para esta
Ele discute, baseado principalmente no conformação –, expressada, em última
casal Leacock,6 a percepção da homosse- análise, no exercício sacerdotal dos co-
xualidade masculina nos cultos de Belém, nhecidos pais-de-santo (FRY, 1982, p. 76-
e conclui: 77). Talvez possamos dizer que o traba-
lho empreendido por Fry coloca a questão
O termo homossexual em português, en- da homossexualidade masculina no
tretanto, é raramente usado no contexto universo religioso afro-brasileiro em ou-
dos cultos. São muito mais comuns os tro patamar. Ele desloca o foco do emi-
termos “bicha”, “pederasta”, “fresco” e nentemente negativo, marginal ou
“viado”. Desses termos, o mais usado é excludente, típico da leitura de Landes,
“bicha” (FRY, 1982, p. 67). para um viés mais positivo e, o mais im-
portante, entendido como relevante para
A partir daí, Fry empreende uma a formação de um campo legítimo de
análise do termo “bicha” no contexto dos representação do universo religioso afro-
terreiros. Uma divisão interna que utiliza brasileiro. Ainda que admitindo boa par-
a mesma terminologia relacionada ao ato te das características típicas das margens
heterossexual é percebida no mundo mas- como tendo positividade (DOUGLAS,
culino, entre aqueles que “dão” e aque- 1976), a homossexualidade masculina,
les que “comem”. De um lado, os “ho- agora referida à “bicha”, é incorporada
mens”, os “machos”, os “garanhões” ou teoricamente ao universo afro-brasileiro
“fanchões”; de outro, as “bichas” (FRY, como algo que, em vez de ser banido do
1982, p. 68). Ressalta Fry que “a palavra campo que constitui a verdadeira religião,
‘homossexual’ é uma tradução inadequa- deve ser levado em conta como
da para qualquer dos termos usados” constitutivo deste campo e compreendi-
(FRY, 1982, p. 68). Considerando as vicis- do seu significado e extensão.

100 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


A continuidade da discussão do um sentido original preciso. Cacciatore
tema da homossexualidade e os cultos (1977) sugere, como conceitos nativos
afro-brasileiros leva Patrícia Birman a re- (iorubás) para homossexual, “adefantó”
tomar algumas questões consideradas (CACCIATORE, 1977, p. 36) e “adofiró”
por Landes, Fry e outros. Em Identidade ou “adô” (CACCIATORE, 1977, p. 37). Ela
social e homossexualismo no Candomblé, faz derivar as palavras, como é comum
Birman (1985) aprofunda a idéia inaugu- em seu trabalho, de um amálgama, por
rada por Fry (1982), segundo a qual “ho- vezes incompreensível, de outros termos,
mossexual” e “bicha” não são sinonímias o que torna pouco confiável a etimologia
necessárias. Trabalhando com referên- por ela sugerida. Outros dicionários,
cias rituais – como filiação mística – e pes- como o de Fonseca Júnior (1983), por
soais – como representação da definição exemplo, não trazem nenhum dos ver-
sexual do sujeito –, dispostas em um con- betes encontrados em Cacciatore para
junto diversificado de configurações pos- designar homossexual. De qualquer ma-
síveis, Birman propõe um entendimento neira – e é isto que, de fato, interessa –,
da problemática da homossexualidade o termo adé é de uso freqüente nos can-
nos terreiros, tomando como elemento- domblés para significar sujeitos com uma
chave a categoria nativa adé. Diz ela: suposta orientação sexual homoerótica,
ou que exibem algumas formas estereo-
Um homem “filho” de um orixá femini- tipadas de comportamento.
no, na medida em que incorpora esse
orixá e “exibe” jeitos e trejeitos femininos, Em Fazer estilo criando gêneros
passa, pois, a ser considerado “bicha”. (...) (BIRMAN, 1995), fruto de sua tese de
Neste caso estaremos diante da categoria douramento em antropologia, em 1988,
“adé” que é o nome através do qual se Patrícia Birman aprofunda a discussão ini-
designa o homem visto como a “bicha” ciada em 1985 e propõe algumas “solu-
que pertence ao candomblé (BIRMAN, ções” para a questão da homossexuali-
1985, p. 9). dade masculina nos terreiros de umbanda
e candomblé.
Birman conclui que, “se há ‘bichas’,
há as ‘bichas do candomblé’, os ‘adé’, Considerando alguns aspectos le-
cujas ‘frescuras’, objeto de olhares e críti- vantados por Landes, Birman revê o lu-
cas rancorosas, se realizam com a prote- gar de mulheres e homens nos cultos
ção dos orixás” (BIRMAN, 1985, p. 9). afro-brasileiros. Diferentemente da antro-
póloga americana, que via no transe dos
Com efeito, a categoria adé não pa- homens a expressão de desvios sociais,
rece coincidir inteiramente com o concei- sexuais e psicológicos, Birman (1995,
to de homossexual, concebido de forma p. 113) sugere que a possessão é um im-
“universal”. Há uma especificidade nesta portante elemento na operação da dis-
representação, que é própria do grupo tinção entre os gêneros. Ela (possessão)
onde o conceito se origina. A meu ver, a forja, na experiência religiosa, novos es-
palavra adé deve ser vista mais como uma tilos e categorias que não são idênticos a
gíria ou um neologismo, do que propria- conceitos aparentemente equivalentes.
mente um vocábulo que traduz Assim, a pergunta que irá responder é:

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 101


O termo “adé”, que é uma categoria de te é reconhecida como possível, como
gênero produzida pelo sistema religioso, ajuda a formar o próprio campo religio-
é recoberto pela idéia de “bicha”, tal so afro-brasileiro, sendo percebido como
como socialmente amplamente se usa? elemento indissociado e indissociável
(BIRMAN, 1995, p. 60). dos demais componentes do sistema
sociorreligioso, portanto, com função
O viés etnocêntrico, que admite a estruturante.
homossexualidade como um problema
universal, é substituído por uma leitura Penso que a principal “solução”
particularizada do campo onde ela se pro- teórica para a questão da homossexuali-
duz, ou se re-produz. Assim, diz Birman: dade masculina e os grupos religiosos de
matriz africana no Brasil, e que pode ser
O que quero propor aqui não é, isolada a partir das discussões de Fry e
evidentemente, que o candomblé tenha Birman, é a admissão desta como parte
“inventado” o desejo homossexual, mas constitutiva e imprescindível do capital
que, como qualquer instituição, cria simbólico dos terreiros. Representantes de
modos e possibilidades de esse e outros um gênero distinto, os adés são vistos
desejos existirem, com as características como integrados e necessários à dinâmi-
que apresentam em tal ou qual sociedade ca dos grupos, pelo menos quando se tem
(BIRMAN, 1995, p. 73). por certo que, qualquer que seja a pro-
posição teórica, não se pode abarcar, se-
A função masculina, praticamente não, uma parcela do “todo”. Seguramen-
desconsiderada por Landes, é revista por te outras configurações poderão ser
Birman, que percebe um estatuto de encontradas em grupos estruturados de
positividade de sujeitos antes “proibidos” maneira diferente, especialmente naque-
de se expressar. A possessão, no mundo les considerados “tradicionais”, a exem-
dos homens, opera uma distinção e pos- plo dos principais terreiros abordados por
sibilita a criação de um outro gênero, o Landes. Nesse momento, a figura do adé
adé. É sobre esta nova categoria de gê- pode gozar de um lugar distinto na con-
nero e suas conseqüências que Birman figuração do campo, em termos de re-
concentra a maior parte das elaborações presentação.
teóricas. Homens e adés ganham, nesta
perspectiva, um valor muito mais signifi- Por outro lado, não posso ignorar
cativo do que tinham na Bahia de Landes o fato de que, no que tange às represen-
e Carneiro. Eles, agora, são parte neces- tações sobre as expressões possíveis de
sária ou estruturante do campo de repre- sexualidade presentes na sociedade, existe
sentações do universo religioso afro-bra- uma estreita relação entre homossexuali-
sileiro, concorrendo para sua afirmação, dade e religiões afro-brasileiras. Soma-se
com o já bastante sedimentado mundo a isso a representação do candomblé
das mulheres. como um espaço de aceitação de todas
as diferenças e de acolhimento dos mar-
Se em Landes o sujeito homos- ginalizados e excluídos. Assim, no can-
sexual é várias vezes marginal, em Fry e domblé, a homossexualidade parece en-
em Birman ele goza de um novo e positi- contrar um lugar onde pode mesmo se
vo status. Sua condição sexual não somen- expressar criativamente, seja através dos

102 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


atributos mágicos dos pais-de-santo, seja (e de outras manifestações religiosas afro-
através das incontáveis habilidades artís- brasileiras).
ticas, culinárias e estéticas, além da dis-
ponibilidade afetiva, constitutivas do ima- Ainda que entenda, e concorde,
ginário sobre os filhos-de-santo. com a não coincidência necessária entre
os conceitos de homossexualidade mas-
culina, de um lado, e “bicha” e “adé” de
Homossexualidades em outro, admito que eles não se limitam a
tempos de AIDS um único espaço de representação e que,
não raro, permutam-se nos discursos par-
Com as discussões, principalmente ticulares, de acordo com o que se quer
de Fry e Birman, a problemática da ho- fazer representar. É assim que Tereza e
mossexualidade nos grupos religiosos de Ana – duas mulheres entrevistadas quan-
candomblé ganha configuração mais par- do da pesquisa de campo – puderam evo-
ticularizada, uma vez que atualiza, a par- car as categorias “homossexual” e “gay”,
tir do campo, categorias pensadas em respectivamente, para falar de “homos-
termos universais. Outros autores conti- sexuais ativos”, “homossexuais passivos”,
nuam e ampliam esta discussão.7 “bichas”, “adés”, “veados”, e quanto mais
houvesse para fazer entender um tipo de
A pesquisa para o doutorado per- orientação sexual presente no universo
mitiu retomar alguns aspectos das discus- dos candomblés.
sões sobre homossexualidade e grupos
religiosos afro-brasileiros. Mas foi apenas Por outro lado, é operando com
transversalmente que pude, em um pri- uma distinção interna que Augusto, ou-
meiro momento, me ocupar da questão tro entrevistado, diferencia (e se diferen-
da homossexualidade nos grupos religio- cia) sujeitos religiosos com orientação
sos de candomblé. Trabalhando com a sexual homoerótica. Assim diz ele sobre
temática da epidemia de HIV/AIDS e os as “bichas”:
candomblés, fui levado a desconfiar de
que a evidência da infecção pelo HIV de O ritual [do candomblé] em si, a festa pú-
sujeitos avaliados como homossexuais, blica, é um grande encontro. As pessoas
bichas, gays ou adés, aliada à inseparável se paqueram muito; todos os tipos de
idéia de promiscuidade de que estão desejo são explicitados. E as pessoas gos-
revestidas as significações, alterava o tam disso. E as bichas em particular, os
status que esta “categoria de gênero” homossexuais mais afetados, adoram dar
havia conquistado em algumas produ- pinta, gostam de chamar a atenção do
ções. Suspeitei que, com o aparecimento outro. Isso me incomoda.
da AIDS, houve um certo “descolamento”
da representação que se faz da homos- Relegando a AIDS ao universo dos
sexualidade masculina – ou do que se tem “adés” ou das “bichas pintosas”, ele deli-
por adé, para utilizar uma categorização mita fronteiras, ao mesmo tempo em que
nativa – de uma conformação estrutural evidencia um lugar não domesticado –
aparentemente segura, pelo menos para mas domesticável – para uma sexualida-
uma determinada versão do candomblé de admitida como possível.

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 103


Se, relativamente à homossexuali- é apontada como portadora do HIV,
dade masculina e grupos religiosos afro- doente de AIDS, ou tendo morrido em
brasileiros, há bons materiais de pesqui- conseqüência dela, como pude consta-
sa e análise, com relação à sexualidade tar em minha pesquisa. A despeito da
feminina nos terreiros, nada ou quase configuração atual, segundo critérios
nada parece existir, no que tange a pro- estatísticos e análise dos indicadores so-
duções acadêmicas. Vale lembrar que ciais por órgãos oficiais e organizações
Ruth Landes, por exemplo, se limita a re- não-governamentais, a epidemia de HIV/
gistrar rapidamente um incidente de cu- AIDS continua circunscrita, imaginaria-
nho sexual ocorrido entre duas sacerdo- mente, e para um determinado segmen-
tisas do candomblé do Engenho Velho, to social, ao mesmo universo de repre-
uma delas, Totônia, candidata ao posto sentação de vinte anos atrás.
de líder daquele terreiro (LANDES, 1967).
Nenhuma consideração mais apurada, a Por outro lado, em espaços distin-
exemplo do que se vê sobre os casos de tos, reivindica-se o reconhecimento de
homossexualidade masculina tratados uma identidade plena e solidamente
pela autora de A cidade das mulheres, é constituída, na base de categorias
dispensada a este episódio. universalistas. Assim é que em um encon-
tro promovido pelo Centro de Cultura
Vale lembrar algo fartamente Negra do Maranhão, em 2002,9 um
apontado na literatura sobre identidade, jovem pai-de-santo, ao ser induzido e
gênero e sexualidade no tocante às ver como sinônimo “veado” e “homosse-
expressões afetivo-sexuais das mulheres8 xual”, mostrou-se profundamente irrita-
e que, de certa maneira, parece organizar do, e prontamente rejeita a hipótese de
o pensamento de Landes e alimentar ser classificado pelo primeiro termo. Ele
idéias e comportamentos contempo- quer ser identificado e respeitado como
râneos. Dessexualiza-se a mulher e exclui homossexual, não como “veado”, “bicha”
a sexualidade feminina (com sua variante ou “adé”. No que acrescenta, jocosamen-
lésbica) dos agenciamentos afetivo- te, outro participante do evento: “Veado
sexuais possíveis. A invisibilidade destas dá no mato, bicha dá na barriga de
expressões é uma conseqüência do criança; homossexual dá em qualquer
processo de dessexualização/exclusão do lugar”. Não quero dizer com isto que a
desejo feminino e parece resistir mesmo categoria homossexual, reivindicada pelo
em grupos organizados de maneira pai-de-santo para fazer entender sua ori-
peculiar, onde as sexualidades poderiam entação sexual, sirva, interna e exter-
ser expressadas de maneira mais livre namente, sempre, para significar todas
como, supostamente, nos grupos de as situações vividas por ele, inclusive as
candomblé. experiências religiosas. É possível que, em
alguns momentos, categorias como adé,
Assim, a invisibilidade das expres- especialmente da maneira como
sões sexuais das mulheres, que consti- construída por Birman (1985; 1995), se-
tuem parte expressiva do contingente do jam mais adequadas para significar os
povo-de-santo, pode ainda ser sentida, e eventos. Entretanto, é por outro signo que
o é, indiretamente, principalmente, quan- o pai-de-santo quer fazer compreender
do nenhuma representante deste grupo sujeitos e situações.

104 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


Da mesma forma que o pai-de-san- momento, aspectos imaginários de con-
to “exige” ser chamado de homossexual, formação da homossexualidade, percebi-
e não de “veado”, “bicha” ou “adé”, uma dos como fonte de poder e prestígio,
filha-de-santo quer ser chamada de lés- como bem mostraram Fry (1982) e
bica, e não de “roçona” ou “sapatão”. Birman (1985, 1995), são identificados
Presente também ao mesmo evento, e como fonte de perigo e destruição. Ain-
aproveitando a fala do pai-de-santo, uma da que não menos poderoso, o sujeito
militante do Movimento de Lésbicas (sic) ao qual a representação se liga não pare-
e adepta do candomblé reivindica visibi- ce mais gozar do status que gozava an-
lidade e respeito, também, nas comuni- teriormente. A principal fonte de perigo
dades religiosas (sic). Comparando a tra- – prestígio e poder em outro momento –
jetória da homossexualidade masculina e e “coincidentemente” uma das mais re-
feminina na sociedade brasileira como um levantes representações externas da AIDS
todo, e em vários grupos sociais, ela pede é a promiscuidade a que, supostamente,
aos sacerdotes presentes e demais “ir- se entregam as pessoas atingidas pela
mãos” uma reflexão sobre o preconceito doença. A partir daí, procede-se a um
com relação às lésbicas e mais espaço julgamento e avaliação do sujeito como
para discussão e visibilidade nos terrei- um todo, e isto sendo válido tanto para
ros, o que é recebido com calorosos dentro, quanto para fora do candomblé.
aplausos pela platéia. Entretanto, ainda
que várias sacerdotisas e mulheres de di- As rápidas transformações pelas
versos níveis hierárquicos do candomblé, quais o mundo tem passado nos últimos
com prática homossexual, “sabidamente” tempos, principalmente marcadas pelo
ou “por ouvir dizer”, estivessem presen- processo de globalização, estimulam a
tes, nenhuma delas se manifestou em rever o lugar dos sexos e dos gêneros no
explícito apoio à reivindicação, ou se iden- universo religioso afro-brasileiro, a exem-
tificou publicamente com a categoria plo do que fez Peter Fry com a homosse-
sugerida. xualidade masculina, em 1974, em um
primeiro esboço do que viria a ser o arti-
Mas, se é verdade que a homos- go “Da hierarquia à igualdade: a cons-
sexualidade masculina conquistou, se trução histórica da homossexualidade no
comparada a sua versão feminina, alguns Brasil” (FRY, 1982).
espaços na sociedade, pelo menos em ter-
mos de maior tolerância quanto a sua ex-
pressão, ao mesmo tempo, se colocou Homens e mulheres
mais a descoberto para situações críticas revisitados
que envolvem avaliação e julgamento.
Nos grupos de candomblé, relativamen- Um desdobramento possível de al-
te à epidemia de HIV/AIDS, a expressiva e gumas discussões propostas no trabalho
mesmo desejada visibilidade das orienta- de tese deu origem a outra investigação,
ções homoeróticas parece ter reacendido desta vez tendo como preocupação cen-
algumas suspeitas que recaíam “primiti- tral aspectos de identidade, sexualidade
vamente” sobre o caráter dos sujeitos, e gênero de homens e mulheres vincula-
algo aparentemente já bastante confor- dos a grupos religiosos de candomblé na
mado ou absorvido pelo sistema. Neste cidade do Rio de Janeiro. Desenvolvido

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 105


no Programa de Pós-Graduação da Esco- tanto, em muitos momentos, o campo
la de Serviço Social da Universidade Fe- sinaliza para algo distinto, e mesmo con-
deral Fluminense, e financiado pela Fun- trário ao que se tem por evidente. Toda a
dação de Amparo à Pesquisa do Estado discussão que atravessa o discurso de
do Rio de Janeiro – FAPERJ – através do Landes, Fry, Birman e outros permite es-
programa de Fixação de Pesquisador, o tabelecer um lugar relativamente seguro
estudo encontra-se em fase preliminar de para a sexualidade, especialmente em se
análise e complementação de dados. Tem tratando da homossexualidade masculi-
por finalidade explorar, principalmente, na nos grupos de candomblé. Mesmo em
as representações sobre a homossexuali- Landes, há algo de positividade na esco-
dade (masculina e feminina) entre o cha- lha sexual dos “invertidos”, principalmen-
mado povo-de-santo, através de pesqui- te caso se considere a perspectiva da cons-
sa bibliográfica sobre a temática religiosa trução de “novas” categorias de sujeitos
afro-brasileira no que concerne à sexuali- que forjam na estrutura social lugares e
dade e gênero e pesquisa de campo com produções que, aos poucos, se consoli-
enfoque sobre questões ligadas à homos- dam como formações sociais possíveis.
sexualidade, buscando apreender como
se constituem e de que forma se apre- O exercício pretendido de revisitar
sentam no cotidiano dos grupos religio- homens e mulheres religiosos recoloca em
sos de candomblé. cena homens e mulheres sexuados, com-
portando-se e significando suas próprias
Os primeiros resultados permitem práticas e pensamentos, assim como as
apontar algumas tendências que, pos- de seus pares. Ao que parece, é a expres-
sivelmente, se revelarão mais consisten- são da sexualidade dos homens que (ain-
tes em um futuro próximo. Proposições da) continua a dominar o discurso de ho-
teóricas que permitem habilitar sexuali- mens e mulheres religiosos. Melhor
dades tidas por “desviantes”, ainda que dizendo, é a homossexualidade masculi-
sustentem, ou a elas agreguem, uma sé- na que assume posição de destaque
rie de princípios certamente hoje aceitá- quando se pensa em homens, mulheres,
veis para a maioria dos cientistas sociais, sexualidades e universo religioso; ela é
princípios que apontam para perspecti- constitutiva da estrutura religiosa, como
vas relativistas, de valorização das singu- bem perceberam Fry e Birman, mas a ên-
laridades culturais e das “categorias nati- fase em um ou outro aspecto do que
vas”, não se mostram, sempre, adequadas compõe o contínuo será determinada
para dar conta de um número expressivo pela forma peculiar como ela se apresen-
de significações. ta na realidade, tendo em conta as parti-
cularidades dos momentos e das produ-
A análise da construção dos princi- ções sócio-históricas.
pais discursos sobre sexualidade e gru-
pos religiosos de candomblé permite con- No diálogo com Ruth Landes, Pa-
cluir por um pressuposto de visibilidade trícia Birman traz para o jogo de nego-
e positividade relativa à sexualidade de ciações, que articulam perspectivas de gê-
homens, contrastando com uma certa nero, homens que haviam sido excluídos
manutenção da invisibilidade das expres- (logicamente) do processo de construção
sões da sexualidade das mulheres. Entre- do campo religioso afro-brasileiro. Birman

106 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


executa uma manobra, em certo senti- da homossexualidade masculina,
do, oposta a de Landes, à medida que admitida como estrutural e estruturante
reincorpora, porque atribui estatuto de do campo religioso afro-brasileiro, ou
positividade estrutural, sujeitos homos- pensada por um viés teórico menos
sexuais banidos do esquema lógico da an- determinista, possibilita tomá-la como
tropóloga americana, que imagina um categoria analítica central e fazer daí
contínuo que começa e (quase) termina derivar todo o sentido expressado pelo
apenas na mulher. Relegado ao papel de campo quer confirmando seu status, quer
coadjuvante, de estrangeiro ou de mero negando. Entretanto, a análise do
espectador, o homem é pensado por material parece apontar para uma interro-
Landes como o elemento que possibilita gação eterna sobre todas as expressões
evidenciar a diferença entre os sexos, pela afetivo-sexuais de homens religiosos (de
obviedade da descontinuidade entre cor- candomblé); nesse sentido, o que está em
pos, e a supremacia da mulher, expressa- jogo é a visibilidade ou não da expressão
da, em última análise, na particularidade homossexual tomada como elemento
da formação social de alguns grupos de central de referência do próprio campo.
candomblé na Bahia dos anos de 1930, e
que ela entende ser expressão de um Diferentemente do que se poderia
matriarcado cultural. Assim, em um dos pensar, caso se tome um contínuo
extremos está colocada a mulher; no ou- construído em uma oposição binária do
tro, muito distante, um homem. Em tipo homem-mulher, aqui o que se colo-
Landes, o que realmente tem valor é a ca é uma continuidade de outra nature-
mulher e suas produções. Matriarcado, za, na qual o operador de distinção re-
homens sem importância, mulheres po- duz-se a um dos pólos. Neste momento,
derosas; as “bichas” são expressão de pensa-se em um contínuo formado pe-
sujeitos doentes e estão fora do mundo los extremos adé-ogam, sendo o segun-
de deuses (e mulheres) verdadeiros. do termo apenas aproximadamente equi-
valente à categoria homem. Ogam é uma
Com Birman, há uma importante categoria de iniciados masculinos não
mudança na concepção do campo pos- passíveis de transe que, em geral, se ocu-
sível de significação do universo masculi- pam dos sacrifícios animais, da orques-
no. Ela traz de volta os homens; traz os tra ritual e de outras funções de cunho
“homens mesmo”, porque advoga a religioso ou civil.
necessidade binária (estruturalista) que
não pode prescindir de um dos termos, Se, em Landes e em Birman, o ope-
reabilitando (ou habilitando) também a rador lógico de distinção entre os sexos é
bicha (ou o homossexual), através da a possibilidade ou não da experiência do
categoria adé. Diferentemente de Landes, transe de possessão, temos agora uma
seu esquema teórico pressupõe mulheres interrogação sobre a possibilidade ou não
e homens (de verdade, nenhum de expressão de comportamentos
coadjuvante), bem como categorias homoeróticos para toda a sorte de ho-
intermediárias, como os adés. mens. A distinção clássica entre rodantes
(sujeitos passíveis de transe de possessão)
Mas parece que temos uma outra e não rodantes (genericamente ogam,
configuração em andamento. A evidência para os homens, e equede, para as mu-

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 107


lheres) precipita, no caso dos homens, a ta, é a que relativiza a positividade do adé.
possibilidade de explicitação de tendên- Olhando para a trajetória sobre o lugar
cias homeróticas. Se, como diz um dos possível das expressões afetivo-sexuais de
entrevistados, dos rodantes não se têm homens e mulheres no mundo dos can-
dúvidas sobre as inclinações sexuais domblés e, em especial, para o que hoje
(homoeróticas), “são todos mais ou me- se entende por expressões ou orientações
nos veados, mais ou menos adés”, para homoeróticas, vemos uma espécie de ha-
os não rodantes, uma aura de descon- bilitação (ou reabilitação) de categorias
fiança se estabelece, porque de sujeitos tomados inicialmente como
“desviantes”. Este primeiro momento pa-
eles são mais frutos da suspeita porque rece coincidir com as formas avaliativo-
no terreiro o interessante é a chochação morais a que foram submetidos idéias e
[comentários maldosos, maliciosos, críti- comportamentos, e que vincularam su-
cas], o fazer rir, provocar o que é contra- jeitos religiosos (e não religiosos) a classi-
ditório, o incoerente (...) Pra mim a his- ficações negativas e patológicas.
tória é os que são assumidos e os que
não são; sejam eles ogans ou iaôs, ou O desenvolvimento subseqüente
rodantes. do entendimento do campo religioso
afrobrasileiro leva a uma espécie de
Invertendo Landes, não se pergun- relativização de conceitos e à revisão
ta aqui pela mulher (ainda que se possa de proposições, superando dificuldades
pensar em feminino). De certa maneira, teórico-metodológicas características de
parece que a homossexualidade goza de momentos sócio-históricos particulares,
certa autonomia, uma vez incorporados através da construção de novos modelos
aspectos de ambos os extremos da linha explicativos. Articulando uma série de
(mulher-homem). Assim, o operador de posições teóricas, Birman (1995) redefine
distinção é a própria expressão homoeró- conceitos e estabelece, para os “inverti-
tica, no que diz respeito às formas como dos” da primeira metade do século XX,
ela se apresenta. Assim, o campo parece uma nova posição de gênero, expressa-
apontar para uma formação em três gran- da pela categoria adé. Ainda que admi-
des categorias: adé, “gay” ou homosse- tindo boa parte da caracterização de
xual e ogam. Note-se, entretanto, que Landes, para os homossexuais passivos
ogam não tem uma equivalência neces- da Bahia dos anos de 1930, para fazer
sária com homem (que forma, em um entender os adés dos candomblés cario-
outro modelo, par necessário com a ca- cas, cinqüenta (ou sessenta) anos depois,
tegoria oposta mulher). Lembre que, se- Patrícia Birman encontra um lugar “se-
gundo o entrevistado, o homem-ogam guro” para eles na estrutura lógica da
também é motivo de interrogação. Por organização dos terreiros.
outro lado, a categoria adé, como bem
demonstrou Birman, é algo que se dife- Seja por tomar como ponto central
rencia das categorias feminino e mulher, para suas construções teóricas o transe
embora guarde alguma relação com elas. de possessão, seja por pensar o lugar de
homens e mulheres no contexto religio-
Outra questão importante, e que es- so dos candomblés, Landes e Birman
tabelece um diálogo com a teoria já pos- tornam visível (e discutível) a evidência

108 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


da homossexualidade entre o povo-de- última análise, o transe de possessão,
santo. Mas, se para a primeira, a ho- como possibilidade de operar distinção
mossexualidade masculina é estranha à entre os sexos. Talvez se possa afirmar
verdadeira expressão religiosa de inspira- que, na lógica de que se vale Birman (e
ção africana no Brasil, os candomblés Landes), o feminino (e por extensão o adé)
nagôs, para a segunda, ela constitui e é caracteriza o candomblé, já que este apre-
parte indissociável do próprio campo senta como principal diacrítico, relativa-
religioso afro-brasileiro, qualquer que seja mente a outras expressões religiosas, o
o estatuto de verdade que se tome como transe de possessão.
parâmetro de análise.
Ao que parece, as proposições teó-
O campo atual sugere que adé está ricas de Birman não eliminam os princi-
colocado no extremo de um possível con- pais traços negativos associados à expe-
tínuo, incluído no todo, mas quase sem- riência do transe, por homens, na Bahia
pre apontando para o outro, o de fora, o dos tempos de Landes. Mais do que isso,
estrangeiro, o que mente, o “equê”. o próprio campo parece se nutrir das con-
Como informa um entrevistado, “[no seu seqüências da aplicação da “lógica do
terreiro] Adé ninguém usa. É uma cate- transe” para se reorganizar e se dinami-
goria para classificar o outro. Se chega zar. Uma breve análise de aspectos pre-
alguém de fora, aí vai dizer: ‘aquele é adé, sentes no âmbito desta pesquisa permiti-
aquele não é adé’. Mas para se autoclas- rá o levantamento de algumas hipóteses
sificar praticamente não”. Em parte se e interrogações sobre novos arranjos pos-
assemelhando às leituras de Landes e síveis sobre o universo afro-brasileiro, no
Birman, o adé é concebido por um entre- que tange aos aspectos de sexualidade,
vistado “como homossexual, geralmente identidade e gênero.
afeminado, mas não necessariamente. Se
você tem suspeita de que alguém, mes- A análise mais cuidadosa de algu-
mo não sendo efeminado, mas que seja mas formações discursivas de um dos
[homossexual], você vai usar adé também, entrevistados talvez nos permita especu-
e muitas vezes pra ogam: ‘aquele ogam lar sobre algumas formas de organi-
é adé’, pode também acontecer”. Mas, zação do campo de representações da
em parte, as evidências parecem contra- (homo)sexualidade nos terreiros. Discor-
riar o estatuto de positividade derivado rendo sobre as peculiaridades do terreiro
da elevação de adé a uma categoria de de candomblé do qual participa, no que
gênero. Na verdade, as significações do concerne às possibilidades de iniciação10
campo parecem oscilar entre perspecti- de homens e à exibição pública do tran-
vas ora mais positivas, ora mais negati- se, o entrevistado, que passarei a deno-
vas, no que tange à temática da homos- minar Jorge,11 explica que em sua casa
sexualidade nos terreiros. Tais oscilações (terreiro) seu pai-de-santo, isto é, o sa-
desenham um quadro de aparente con- cerdote do templo, não inicia um homem
tradição, o que, de certa maneira, pode que tenha como orixá principal uma di-
ser inferido das produções teóricas sobre vindade feminina. O entendimento que
a matéria. Entretanto, não se pode es- Jorge tem para o comportamento do
quecer que o que está no centro da pai-de-santo baseia-se, segundo afirma,
categorização proposta por Birman é, em na própria argumentação fornecida pelo

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 109


sacerdote. Em primeiro lugar, não se tra- masculinos são atribuídos caracteres viris,
ta de pôr em andamento algo da ordem “pesados”, violentos etc.; às divindades
de um impedimento estruturante do cam- femininas, a suavidade, a “leveza”, a
po religioso em geral, que excluiria do docilidade, a sensualidade etc.
processo iniciático homens filhos de orixás
femininos. A questão que se coloca pare-
ce ser de ordem mais pessoal, mas, nem A possibilidade de leitura do fenô-
por isso, menos fundamental, e represen- meno do transe no candomblé leva em
tante de um campo possível de significa- consideração, principalmente, suas qua-
ções. Para o pai-de-santo de Jorge, a lidades externas, como a performance exi-
opção por iniciar orixás femininos na bida pelo iniciado no momento da pos-
cabeça12 de homens repousa em uma sessão pela divindade. Uma série de
espécie de tentativa de controle de situa- elementos se alia na configuração e na
ções indesejadas que este tipo de inicia- transmutação do ser humano na divin-
ção poderia provocar. dade – na transmutação de Maria em
Oxum, Francisco em Xangô ou de Joana
em Obaluaiê e Cristiano em Iemanjá. To-
Para o sacerdote, não há, para ho- mam parte neste conjunto de dispositi-
mens e mulheres em geral, qualquer im- vos capazes de fazer entender e avaliar o
pedimento de ordem mágica que transe vários elementos, ao mesmo tem-
justifique a não iniciação de uma pessoa po centrais e periféricos: postura corpo-
que tenha como divindade principal um ral, gestos, sons, movimentação no es-
orixá de sexo oposto ao seu sexo biológi- paço, indumentária. Tudo isto participa
co, isto é, nada impede que um homem da exibição de uma performance na qual
seja iniciado para um orixá mulher, ou o indivíduo deve ceder lugar à divindade.
vice-versa. Não raro, encontramos esta Esta (divindade), uma vez “encarnada” no
não coincidência entre “sexo mítico” e corpo do iniciado, deve poder ser
sexo biológico.13 Assim, Maria é filha distinguida deste, agir por sua própria
(iniciada para) de Ogum (deus do ferro e vontade, exibir suas peculiaridades, sob
da guerra), Ana é filha de Xangô (deus pena de comprometer a certeza da vera-
dos trovões), Cristina é filha de Oxossi cidade de sua manifestação.
(deus da caça e das florestas) etc.; da
mesma forma, Luiz é filho de Iemanjá Curiosamente, é a essa dinâmi-
(deusa das águas salgadas, do mar), ca que o pai-de-santo se reporta para
Augusto é filho de Iansã (deusa dos raios negar-se a iniciar homens para orixás
e das tempestades), Nilton é filho de femininos. O transe, como possibilidade
Oxum (deusa dos rios e das águas doces) de transmutação, deve suprimir elemen-
etc. Nada de excepcional nestas vincula- tos característicos daquele que lhe serve
ções entre as divindades e seus filhos. de veículo e inaugurar novas formas de
Entretanto, assim como ocorre com o exibição de comportamentos próprios da
sexo biológico, alguns elementos exter- condição sexual e de gênero da divinda-
nos caracterizam os sexos míticos, pelo de encarnada. Mas por que somente os
menos em suas acepções mais típicas ou homens são impedidos de se iniciarem
estereotipadas. Assim, aos deuses para divindades femininas? Por que o
110 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004
mesmo não ocorre com as mulheres que domblé de veadeiro”, lócus privilegiado
podem, sem qualquer objeção, ser ini- dos adés. O elemento “equê”, a mentira,
ciadas para divindades femininas ou mas- subsiste na representação, ainda que em
culinas? forma de temor, e aos olhos do outro.
Vale lembrar que, no terreiro do entre-
vistado, homens em transe não usam
É a possibilidade de exibição públi- saias.14 Quando incorporados, em roupas
ca de características sexuais e de gênero especiais, os homens sempre usam uma
típicas das divindades femininas, através espécie de calça bastante larga, chama-
do transe de possessão, que impede a ini- da bombacha, nunca saia, como pode
ciação, pelo pai-de-santo de Jorge, de ser visto em muitos outros terreiros. Diz
homens filhos de “santo mulher”. Porque Jorge:

A gente nunca vai vestir [saias], sempre


se você deixa o santo fazer tudo que ele bombachas. Mesmo se for santo mulher,
quer fazer, as pessoas começam a falar vai vestir bombacha. Por exemplo, se tem
mal. Se você não deixa... Fica sempre um essa história de que a gente não vai ras-
conflito. (...) Quando uma pessoa tem um par santo mulher, mas o segundo santo
santo mulher ele encaminha para outro [um orixá secundário] ele pode virar [in-
terreiro. Ele não desconsidera que isto corporar], mas no orô [ritual] interno, se
exista, mas... ele quiser também. Na obrigação de três
anos [ritual relativo à contagem de tem-
diz Jorge. O que está em jogo aqui não é po de iniciação] ele pode virar com a iabá
a negação da real filiação de um homem [orixá feminino], ou festa de iabá, no orô
a uma divindade feminina, mas o temor interno ela pode vir. Ela só não vai poder
de que, uma vez tornado público o tran- vir em público.
se, dadas as peculiaridades que o envol-
vem, algo seja avaliado, externamente, Jorge parece querer relativizar o
aos olhos do outro, como excedendo as comportamento do pai-de-santo. Quan-
próprias possibilidades do momento, po- do evoca a possibilidade de transe por
dendo, portanto, ser classificado como divindades secundárias, no caso o “segun-
falso, como mentira, como “equê”: do santo”, ele reafirma uma dissociação
essencial presente no candomblé entre
Não é que ele vai tá dando equê [i.e., fin- sexo e gênero. Ritualisticamente, isto
gindo estar em transe], mas é essa histó- pode ser expressado na evidência de
ria, se ele deixar o santo fazer suas ações, filiação mítica não absolutamente coin-
ele pode entrar em suspeita; se ele não cidente, como vimos, entre o sexo/gêne-
deixar, diz: “que santo é esse? Que santo ro do sujeito religioso e o sexo/gênero da
murcho...” Então ele vai estar sempre nes- divindade. Estes elementos são permutá-
ta contradição (Jorge). veis e admitem diversas configurações.

Ao mesmo tempo, ao identificar a Os desdobramentos destas ques-


possibilidade de vinculação do transe ao tões parecem extremamente significati-
equê, estabelece-se uma outra equação vos para fazer compreender alguns as-
que relaciona transe e mentira ao “can- pectos das possíveis representações que

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 111


vinculam homossexualidade e grupos re- da homossexualidade não coincide, aqui,
ligiosos de candomblé. Neste momento com a expressão da possessão ritual. Ao
quero indicar que a resposta formulada contrário, constitui aspecto importante e
pelo pai-de-santo de Jorge nos faz repen- legítimo, mas, de certa maneira, descola-
sar o lugar de homens e mulheres e, mais do de certos momentos rituais, ou remeti-
particularmente, de homens homosse- dos a movimentações mais privadas do
xuais nos grupos religiosos de candom- que públicas. Se um impasse inicial é
blé, à medida que ela aproxima-se ou criado, e um impedimento ritual posto
distancia-se de organizações teóricas já em ação, quando a identificação ritual
postas. primária revela ser um homem pertencen-
te ( filho ) a um orixá feminino, as
No seu terreiro, homens não podem expressões de homossexualidade dos
ser iniciados para santo (orixá) mulher atores sociais, com algum nível de
porque isto poderia implicar exibição controle, parecem ter acolhimento no
pública de algo que talvez não fosse grupo religioso:
prudente exibir. Por outro lado, ao levan-
tar a possibilidade do equê, do transe Do orixá [há impedimento do transe pú-
falso, da farsa, aproxima-se muito de uma blico do orixá mulher], mas de ser bicha
categoria que, até então, entendíamos ter não, não tem problema nenhum. De dar
sido elevada a um grau de positividade pinta, de... Só não vai poder dar na hora
antes não experimentado. O adé, espécie em que as visitas estão em casa, como é
de atualização conceitual do homossexual no caso do candomblé do veadeiro, que
passivo (universal) para os grupos de você pode chegar e desmunhecar, dar
candomblé, havia perdido muito de sua pinta, receber... Lá não vai poder (Jorge).
carga pejorativa com Birman. Mesmo
com o transe funcionando como um No campo que observo, os discur-
operador de distinção entre os sexos, há sos privilegiam categorias de conforma-
espaço para uma leitura mais positiva do ção universal para designar sujeitos com
adé, ainda que, de sua construção, orientação homoerótica nos terreiros:
participem estereótipos ligados à mulher privilégio para homossexual e gay. Adé
e ao feminino. é o outro, o que mente, o equê, o que
transborda de suas próprias margens e
A expressão de aspectos de põe em risco a estrutura religiosa. Adé
feminilidade através do transe de ho- também é aquele que não assume sua
mens por divindades mulheres parece homossexualidade latente, homossexua-
pôr a descoberto dois problemas prin- lidade suspeitada. Em uma perspectiva
cipais: a evidência da homossexualidade talvez globalizada, talvez “higiênica”,
e a possibilidade do engodo. Nesse “limpa”, “científica”, “não ambígua”,
sentido, em muito se aproxima da constrói-se um outro contínuo onde os
perspectiva de Birman. Por outro lado, é extremos exibem, de um lado, os adés,
para evitar uma possível identificação de do outro os ogans, homens suspeitos,
seu terreiro ao “candomblé de veadeiro” motivos de “chochações”, de risos, de
que o pai-de-santo não permite o transe eternas interrogações. Transitando nesta
público de homens por divindades linha, sujeitos homoeroticamente inclina-
femininas. Ao que parece, a possibilidade dos chamados gays ou homossexuais.

112 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


E as mulheres? ferencia substancialmente das expressões
presentes na sociedade mais ampla. Elas
Das mulheres pouco se fala. Mulhe- são maioria, numericamente falando,
res falam de homens; não se auto-refe- ocupam postos importantes (e necessá-
rem. Uma primeira análise do campo não rios), mas, de certa maneira, têm menos
permite construir nada de muito novo visibilidade, especialmente quando en-
acerca das significações do universo das tram em jogo elementos de sexualidade.
mulheres no candomblé, ainda mais A homossexualidade feminina não apa-
quando se têm por temática expressões rece. Lembre-se do apelo da militante lés-
homoeróticas. A crescente discussão so- bica referido anteriormente.
bre mulher e homossexualidade em es-
paços acadêmicos e outros setores da Porém, uma das entrevistas talvez
sociedade contrasta com a inexpressivida- permita entrever algo interessante, quem
de do tema nos terreiros. Ainda que sabe, diferente da configuração teórica
reconheçam a existência de mulheres atual, ou que faça entender alguns as-
com práticas homossexuais nos grupos pectos peculiares do campo. Para uma
de candomblé, elas não chegam, como entrevistada, algumas mulheres são
os homens, a constituir uma visível preo- “mulheres de candomblé”. O que as ca-
cupação no sentido de possibilitar racteriza? Podem se relacionar igualmente
problematizações capazes de redefinir com homens e mulheres; talvez prefiram
significações e propor novas formas de mulheres, mas não são lésbicas; são, tão-
entendimento. Parecem, a despeito de somente, “mulheres de candomblé”, o
diferenças de gênero, “plenamente” que não equivale a ser bissexual (esta clas-
adaptadas à estrutura e dinâmica dos sificação não aparece). Também não pa-
templos; estão, por assim dizer, natura- rece ser uma categoria declaradamente
lizadas. Mas temos ainda que perguntar ambígua, já que se é, tão simplesmente,
se, de fato, há espaço nos terreiros para mulher. “São como os orixás, masculinos
discussões como estas ou como idéias e e femininos, mas homens ou mulheres”
categorias forjadas em outros espaços (entrevistada). Talvez haja aqui alguma
sociais podem ser apropriadas pelo gru- semelhança com os achados de Segato
po religioso. (1986, 1995) para os grupos religiosos
de Recife, capital do estado de Pernam-
Até agora, pelo que vemos, as mu- buco, conhecidos por xangô. Em sua pes-
lheres são (apenas) mulheres; mesmo com quisa, Segato deixa claro a não coincidên-
orientação homoerótica, não são lésbicas. cia necessária entre sexo e gênero. Para
Algumas são “sapas” (o que não parece ela, no xangô, existe prevalência da
ser da mesma ordem de “sapatão”, for- bissexualidade entre as mulheres, ou
ma pejorativa de referir-se às mulheres ho- mesmo da homossexualidade exclusiva
mossexuais), poucas são monocó (mu- (SEGATO, 1986, p. 13). Entretanto, ain-
lher-homem, em “língua africana”) ou da dispomos de material insuficiente para
roçonas (termo, geralmente com sentido estabelecermos uma análise mais
pejorativo, que designa mulheres que têm criteriosa deste novo elemento.
práticas sexuais – “roçam” – com outras
mulheres). A posição das mulheres não De qualquer maneira, parece ser
parece alterada neste espaço, nem se di- possível, provisoriamente, estabelecer

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 113


uma relação entre essa idéia e algumas gorias encontradas no campo, seja por
percepções da figura das sacerdotisas Landes (as “mulheres-homens”) ou por
negras da Bahia de Landes, à medida que mim (as “mulheres de candomblé”).
são identificadas a uma espécie de “mu- Mesmo Segato, a despeito de sua classi-
lher-homem”. A mulher pela qual Landes ficação mais genérica, pela via da
se encanta não é exatamente o que se bissexualidade, ressalta que
poderia ter como protótipo de feminili-
dade. Ao contrário, são “mulheres-ho- A palavra “lésbica”, embora conhecida,
mens”, mulheres com ares masculinos. jamais é usada e, de fato, não há qual-
quer termo que denote uma noção de
Eram de pele escura, fortes e grandes, e oposição entre uma mulher que tenha re-
nada tinham dos modos recatados que lações homossexuais e uma que não as
a classe alta considera femininos e sedu- tenha, ou que indique que elas perten-
tores. De fato, pareceram-me homens çam a categorias distintas (SEGATO,
vestidos com as saias das baianas 1986, p. 35).
(LANDES, 1967, p. 55).
Cabe ainda perguntar se o candom-
Mas isso não significava, para ela, blé dispõe, “de verdade”, de um espaço
uma transmutação do papel da mulher, possível de expressão do homoerotismo
senão a assunção de uma determinada feminino. Quando comparamos o univer-
posição ideológica que se solidifica em so masculino e o universo feminino, no
oposição a outros segmentos religiosos que diz respeito à diversidade de expres-
não nagôs. Vale lembrar a pouca aten- são de agenciamentos de desejos, vemos
ção dispensada por Landes a duas mu- uma pluralidade de organizações se cons-
lheres surpreendidas “em intimidades” tituir para o primeiro, e uma espécie de
em um terreiro (LANDES, 1967, p. 54). unidade desejada para o segundo. A iden-
Não se pode caracterizar a baiana descri- tidade multifacetada possível para o
ta por Landes, nem tampouco as mulhe- homoerotismo masculino nos terreiros
res surpreendidas no terreiro em intimi- contrasta com categorias fechadas ou
dades, como representantes de uma totalizantes, para a versão feminina
classe de mulheres a que chamaríamos homoerótica. É sob o signo lésbico que
homossexuais ou lésbicas. parece convergir a maioria das represen-
tações sobre o homoerotismo feminino.
Ora, não se pode esquecer a pers-
pectiva sócio-histórica (e ideológica) que A caracterização dos candomblés
funda categorias e conceitos. Se o exercí- como “cultos de aflição” nos permite
cio das sexualidades nasce junto com pensar em uma organização que apre-
aqueles que o portam, sua classificação senta, estrutural e dinamicamente, impor-
(hetero ou homoerótico) é de invenção tantes aspectos de coesão (e solidarieda-
tardia e pode não recobrir todos os de) grupal. Ajuntam-se a isto elementos
agenciamentos possíveis entre sujeitos. de significação ética, moral e política,
Isso permite compreender a não coinci- fazendo com que os grupos religiosos
dência da homossexualidade feminina ou sejam, muitas vezes, tomados como para-
da identidade lésbica (e mesmo da ho- digmáticos em termos de atenção e
mossexualidade masculina) com as cate- cuidados para com a coletividade que os

114 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


constitui. Entretanto, quando se olha para tegorias homogenizadoras e de caráter
a quase total invisibilidade das expressões universalizante?
homoeróticas de mulheres, também nos
candomblés, podemos nos perguntar Todas estas discussões são gerado-
por que os critérios de coesão e solidarie- ras de questões que parecem convergir
dade que caracterizam, para alguns, os para um campo de debates ainda bas-
grupos religiosos, parecem não estar pre- tante estimulante e promissor. E, como
sentes. Por que, nestes grupos singula- questões postas, estão ao sabor de olha-
res, a invisibilidade do homoerotismo res e considerações, permitindo novas
feminino também se faz notar? Estariam construções e organizações que permi-
recobertas pela categoria “mulher de tam compreender a complexidade dos
candomblé”, não idêntica à lésbica ou à agenciamentos de identidade, gênero e
homossexual, as particularidades dos (homo)sexualidade de homens e mulhe-
agenciamentos possíveis de desejos res crentes em deuses e deusas que, uma
homoeróticos partilhados pelas mulhe- vez expropriados de seus territórios, pu-
res? Ou devem (se puderem) definir po- deram ser reinventados em outras terras,
sições, demarcar espaços e campos mais onde continuam a povoar as inumeráveis
ou menos fixos através da eleição de ca- cidades de mulheres e de homens.

Abstract: This article focuses on some possible


relationships between identity, gender and
homosexuality in the religious context of the
candomblés.. Interviews and field observations
made possible to notice how experiences
related to sexuality are perceived by subjects
and also how these experiences can be
understood in the dynamics of the religious
groups. The article points out to some changes
along the time in the meanings of such
experiences and, mainly, to the reaffirmation
of the inequality between male and female
sexualities.

Keywords: homosexuality and candomblé;


gender; identity.

Notas
1
Nomes pelos quais são conhecidas, genericamen- 2
O livro é uma coletânea de reportagens assinadas
te, as entidades sobrenaturais dos candomblés, em por Paulo Barreto (“João do Rio”) para a Gazeta de
suas principais modalidades ou nações: queto ou Notícias, em 1900.
nagô, angola e jeje. Não raramente estes nomes 3
LANDES, Ruth. A Cult Matriarchate and Male
são substituídos pelo termo santo. Homosexuality. The Journal of Abnormal and
Social Psychology, local, v. 35, n. 3, p. 386-397,
jul. 1940.

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 115


4
Uma nova edição foi lançada pela Editora UFRJ, de transe de possessão por um orixá; outra desti-
em 2002. nada a homens e mulheres não passíveis de transe
5
Este trabalho foi apresentado, em inglês, com o de possessão.
título Male homosexuality and Afro-Brazilian 11
Jorge tem 36 anos, nível superior, residente na
possession cults, na cidade do México, em 1974. Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, aproxima-
Uma versão reduzida, sob o título “Mediunidade e damente três anos de iniciado, em novembro de
sexualidade”, foi publicada em Religião e socieda- 2003.
de, n. 1, 1977, p. 105-124 (cf. FRY, 1982, p. 54). 12
A expressão “na cabeça”, bastante utilizada nos
6
Cf. LEACOCK, 1972. terreiros, alude aos principais rituais presentes no
7
Ver, por exemplo, Teixeira (1987). período da iniciação, quase todos tomando como
objeto central de suas movimentações a cabeça do
8
Ver, por exemplo, Navarro-Swain (2000).
neófito, como possibilidade de manipulação real e
9
SEMINÁRIO NACIONAL, 1., 2002, Rio de Janeiro. simbólica.
Religiões afro-brasileiras e saúde. Rio de Janeiro: 13
Para uma problematização destas relações, ver
[s.n.], 2002.
Lepine (1981).
10
Processo ritual de consagração no qual a pessoa 14
Na quase totalidade dos terreiros de candomblé,
é submetida a uma série de movimentações tais
quando em transe, e em roupas especiais que iden-
como reclusão, raspagem da cabeça, sacrifícios de
tificam a divindade pelas cores dos tecidos, mate-
animais, aprendizado de rezas e formas próprias
riais empregados, paramentos etc., mulheres e ho-
de comportamento etc. Simbolicamente, significa
mens costumam vestir saias, seja o orixá masculino
renascimento (para a vida sagrada). Trata-se de “rito
ou feminino. Em alguns terreiros, entretanto, quan-
de passagem” necessário para a efetiva entrada no
do se trata de um iniciado do sexo masculino, as
mundo dos “segredos” do candomblé. Generica-
saias são substituídas por uma calça larga chama-
mente há duas formas principais de iniciação: uma
da de bombacha.
destinada a sujeitos (homens e mulheres) passíveis

Referências
BIRMAN, Patrícia. Identidade social e CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia.
homossexualismo no candomblé. Religião Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978
e sociedade. Rio de Janeiro, n. 12/1, p. 2- (Coleção Retratos do Brasil, v. 106).
21, ago. 1985.
CORRÊA, Mariza. O mistério dos orixás e
______. Fazer estilo criando gênero: es- das bonecas: raça e gênero na antropo-
tudo sobre a construção religiosa da pos- logia brasileira. In: COLÓQUIO ANTRO-
sessão e da diferença de gêneros em ter- POLOGIAS BRASILEIRAS NA VIRADA DO
reiros de umbanda e candomblé do Rio MILÉNIO. Trabalho apresentado. Promo-
de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume vido pelo Centro de Estudos de Antropo-
Dumará: EdUERJ, 1995. logia Social/CEAS, Lisboa, nov. 1999.
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de Mimeografado.
cultos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Fo- DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São
rense Universitária, 1977. Paulo: Perspectiva, 1976.

116 Niterói, vv.. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004


FONSECA JÚNIOR, Eduardo. Dicionário MOTT, Maria Lúcia. Calendário anual da
yorubá (nagô) – português. Rio de Janei- Comissão Estadual dos direitos da mu-
ro: Sociedade Yorubana Teológica de Cul- lher. São Paulo: [s.n.], 1986.
tura Afro-Brasileira, 1983. NAVARRO-SWIN, Tânia. O que é
FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000.
política na cultura brasileira. Rio de Ja- RIO, João do. As religiões no Rio. Rio de
neiro: Zahar, 1982. Janeiro: Nova Aguilar, 1976.
GÓIS, João Bosco Hora. Olhos e ouvidos SEGATO, Rita Laura. Inventando a natu-
públicos para atos (quase) privados: a for- reza: família, sexo e gênero no xangô do
mação de uma percepção pública da Recife. Anuário antropológico/85. Rio de
homossexualidade como doença. In: Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. p. 11-54.
PUPPIN, Andréa Brandão; MURARO Rose
SEGATO , Rita Laura. Inventando a natu-
Marie (Org.). Mulher, gênero e socieda-
reza; família, sexo e gênero no xangô do
de . Rio de Janeiro: Relume Dumará:
Recife. In: MOURA, Carlos E. M. Meu si-
FAPERJ, 2001. p. 39-63.
nal está em teu corpo . São Paulo:
LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio EDICON/EDUSP, 1989.
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
______. Santos e daimones: o politeísmo
LEACOCK, S. e R. Spirits of the deep: a afro-brasileiro e a tradição arquetipal.
study of an afro-brazilian cult. New York: Brasília: Universidade de Brasília, 1995.
Double -day Natural History Press, 1972.
SEMINÁRIO NACIONAL, 1., 2002, Rio de
LEPINE, Claude. Os estereótipos da per- Janeiro. Religiões afro-brasileiras e saúde:
sonalidade no candomblé nagô. In: anais... Rio de Janeiro: [s.n.], 2002.
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de.
TEIXEIRA, Maria Lina Leão. Lorogun: iden-
Olóòrisa: escritos sobre a religião dos
tidades sexuais e poder no candomblé.
orixás. São Paulo: Ágora, 1981. p. 11-31.
In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes
MESQUITA, Ralph Ribeiro. Viver e morrer de. Candomblé: desvendando identida-
em tempos de AIDS: vida, morte e sexua- des. Novos escritos sobre a religião dos
lidade em candomblés do Rio de Janeiro. orixás. São Paulo: EMW, 1987. p. 33-52.
2002. Tese (Doutorado)-Instituto de Filo-
sofia e Ciências Sociais, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2002.

Niterói, v. 4, n. 2, p. 95-117, 1. sem. 2004 117

Você também pode gostar