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TEORIA DA LITERATURA II

CURSO DE LETRAS - HABILITAÇÕES EM LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUA INGLESA

Disciplinas:

Antropologia Teológica - Prof. Ms. Eugenio Daniel


Didática Geral – Profª. Ms. Pricila Bertanha
Fundamentos da Educação Inclusiva – Profª. Drª. Cristina Araújo Cinto Pedroso e Profª. Drª. Juliane Aparecida
de Paula Perez Campos
Fundamentos e Métodos de Ensino da Língua Portuguesa: A Formação do Leitor e a Gramática na Sala de Aula –
Profª. Ms. Rafaela Cardoso Beleboni
Língua Portuguesa III: Classe de Palavras III – Profª. Drª. Ana Dorotéia Arantes Medeiros
Linguística II – Profª. Drª. Ana Dorotéia Arantes Medeiros
Linguística III – Profª. Drª. Ana Dorotéia Arantes Medeiros
Literaturas de Língua Portuguesa III: Romantismo – Prof. Ms. Renato Alessandro dos Santos
Literaturas de Língua Portuguesa IV: Realismo, Naturalismo, Parnasianismo e Simbolismo – Prof. Ms. Renato
Alessandro dos Santos
Metodologia da Pesquisa Científica - Prof. Ms. Carlos Alberto Marinheiro
Psicologia da Educação - Profª. Drª. Juliane Aparecida de Paula Perez Campos, Profª. Ms. Keiko Maly Garcia
D’Avila Bacarji e Profª. Ms. Vera Lúcia Casari Parreira
Teoria da Literatura II – Prof. Ms. Alexandre Bonafim Felizardo

Olá, pessoal, tudo bem? Chamo-me Alexandre Bonafim Felizardo. Sou


graduado em Letras pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais e Mestre
em Literatura Brasileira pela Unesp de Araraquara.

e-mail: alexandrebonafim@hotmail.com
Prof. Ms. Alexandre Bonafim Felizardo

TEORIA DA LITERATURA II

Guia de Disciplina
Caderno de Referência de Conteúdo
© Ação Educacional Claretiana, 2005 – Batatais (SP)
Trabalho realizado pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP)
Curso: Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Disciplina: Teoria da Literatura II


Versão: jul./2012

Reitor: Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanor Piva


Vice-Reitor: Prof. Ms. Pe. Ronaldo Mazula
Pró-Reitor Administrativo: Pe. Luiz Claudemir Botteon
Pró-Reitor de Extensão e Ação Comunitária: Prof. Ms. Pe. Ronaldo Mazula
Pró-Reitor Acadêmico: Prof. Ms. Luís Cláudio de Almeida

Coordenador Geral de EAD: Prof. Ms. Artieres Romeiro Esteves


Coordenador do Curso de Licenciatura em Letras: Prof. Ms. Renato Alessandro dos Santos
Coordenador de Material Didático Mediacional: J. Alves

Preparação Revisão
Aline de Fátima Guedes Felipe Aleixo
Camila Maria Nardi Matos Marcela Fonseca Ferreira
Cátia Aparecida Ribeiro Rodrigo Ferreira Daverni
Dandara Louise Vieira Matavelli Talita Cristina Bartolomeu
Elaine Aparecida de Lima Moraes Vanessa Vergani Machado
Josiane Marchiori Martins
Projeto gráfico, diagramação e capa
Lidiane Maria Magalini
Eduardo de Oliveira Azevedo
Luciana A. Mani Adami
Joice Cristina Micai
Luciana dos Santos Sançana de Melo Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Luiz Fernando Trentin Luis Antônio Guimarães Toloi
Patrícia Alves Veronez Montera Raphael Fantacini de Oliveira
Rita Cristina Bartolomeu Renato de Oliveira Violin
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Tamires Botta Murakami
Simone Rodrigues de Oliveira Wagner Segato dos Santos

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total ou parcial por qualquer forma e/ou qualquer meio (eletrônico
ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na web),
ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a
permissão por escrito do autor e da Ação Educacional Claretiana.

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SUMÁRIO

GUIA DE DISCIPLINA
1 APRESENTAÇÃO.............................................................................................. VII
2 DADOS GERAIS DA DISCIPLINA........................................................................ VII
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS.................................................................................VIII
4 BIBLIOGRAFIA BÁSICA..................................................................................... IX
5 BILBIOGRAFIA COMPLEMENTAR......................................................................... IX

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


APRESENTAÇÃO.............................................................................................. 1

INTRODUÇÃO À DISCIPLINA
AULA PRESENCIAL........................................................................................... 2

UNIDADE 
1 – 
ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA LINGUAGEM POÉTICA:
MUSICALIDADE DA PALAVRA
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 4
2 ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA LINGUAGEM POÉTICA........................................... 5
3 E-REFERÊNCIAS..............................................................................................11
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................11

UNIDADE 
2 – 
ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA LINGUAGEM POÉTICA:
MUSICALIDADE DA PALAVRA II
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................14
2 RIMA.............................................................................................................14
3 ESTROFE........................................................................................................16
4 PROCESSOS INTENSIFICADORES.......................................................................17
5 REITERAÇÃO...................................................................................................17
6 ANÁFORA.......................................................................................................17
7 ALITERAÇÃO E ASSONÂNCIA.............................................................................18
8 ONOMATOPEIA................................................................................................18
9 PARALELISMO.................................................................................................18
10 REFRÃO..........................................................................................................19
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................20

UNIDADE 
3 – 
ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA LINGUAGEM POÉTICA:
LINGUAGEM IMAGÍSTICA DA POESIA
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................22
2 PROCESSOS IMAGÍSTICOS...............................................................................22
3 COMPARAÇÃO ................................................................................................26
4 METÁFORA......................................................................................................27
5 E-REFERÊNCIAS..............................................................................................32
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................32
UNIDADE 
4 – 
ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA LINGUAGEM POÉTICA:
LINGUAGEM IMAGÍSTICA DA POESIA II
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................34
2 METONÍMIA....................................................................................................34
3 SINESTESIA....................................................................................................36
4 ANTÍTESE.......................................................................................................37
5 PARADOXO.....................................................................................................38
6 PROSOPOPEIA.................................................................................................38
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................40

UNIDADE 5 – INTERPRETAÇÃO DO POEMA
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................42
2 MEMÓRIA LÍRICA DE ALBERTO DA COSTA E SILVA1.............................................44
3 APAIXONADO NOVICIADO DE HILDA HILST2.......................................................46
4 POESIA CONVULSIVA DE FERREIRA GULLAR3 .....................................................48
5 E-REFERÊNCIAS..............................................................................................50
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................51
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................51
GUIA DE DISCIPLINA
1 apresentação
Seja bem-vindo! Você inicia agora a disciplina Teoria da Literatura II, na
modalidade EAD.

Nesta disciplina, temos como objetivo propiciar ao aluno de Letras conhecimentos


básicos sobre a linguagem da poesia, sobre os elementos estruturais que a constituem,
bem como sobre as suas características essenciais. Dessa forma, pretendemos, a partir
dos conteúdos propostos, formar leitores críticos de poesia, leitores capazes de apreender
os significados profundos do texto poético.

2 Dados gerais da disciplina


Ementa

Conceituação de gênero lírico. Conceitos de poesia. Elementos fônicos, visuais e


imagéticos do poema. Intertextualidade e metalinguagem.

Objetivo geral

Os alunos da disciplina Teoria da Literatura II, na modalidade EAD, dado


o Sistema Gerenciador de Aprendizagem e suas ferramentas, serão capazes de ler e
de produzir textos diversos. Conforme proposta do professor, os alunos possibilitarão
conhecimentos sobre a linguagem da poesia: seus aspectos sonoros, imagísticos e
filosóficos. Formar leitores com discernimento e espírito crítico, capazes de se arrebatarem
pela beleza da poesia. Para isso, contarão com todos os recursos técnico-pedagógicos
facilitadores de aprendizagem, como material didático impresso, bibliotecas físicas e
virtuais, ambiente virtual, acompanhamento do tutor, complementados por debates no
Fórum e na Lista. Para esse fim, levarão em consideração as ideias debatidas no Fórum e,
também, suas considerações disponíveis no Portfólio.

Objetivos específicos

• Definir a especificidade da linguagem poética.


• Reconhecer a poesia como epifania.
• Perceber o poema como fenômeno da linguagem.
• Interpretar o poema, levando em consideração a forma.

Competências, habilidades e atitudes

Ao final deste estudo, o aluno de Teoria da Literatura II poderá contar com


um sólido referencial teórico e prático para fundamentar e justificar criticamente sua
prática educacional como licenciado em Letras. Além disso, adquirirão as habilidades
necessárias para posicionar-se criticamente ao realizar a análise poética, assumindo uma
atitude reflexiva, em relação ao processo ensino aprendizagem que envolva a poesia na
consolidação de um projeto político-pedagógico educacional que respeita a integridade e
a dignidade do ser humano.
GUIA DE DISCIPLINA
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Modalidade

( ) Presencial ( X ) A distância

Duração e carga horária

A carga horária da disciplina Teoria da Literatura II é de 60 horas. O conteúdo


programático para o estudo das cinco unidades que a compõe está desenvolvido no
Caderno de referência de conteúdo, anexo a este Guia de disciplina, e os exercícios
propostos constam do Caderno de atividades e interatividades (CAI).

ATENÇÃO!

É importante que você releia no Guia Acadêmico do seu curso as informações


referentes à Metodologia e à Forma de Avaliação da disciplina Teoria da
Literatura II, descritas pelo tutor na ferramenta “cronograma” na Sala de
Aula Virtual – SAV.

3 CONSIDERAÇÕES GERAIS
A disciplina Teoria da Literatura II permitirá a você uma maior compreensão
dos aspectos formais do poema, bem como da importância de se valorizar tais recursos.
O poema é, sobretudo, uma educação sentimental: você travará conhecimento com a
profundidade existencial do homem. A condição humana é a seiva que irriga o texto lírico,
possibilitando ao leitor uma consciência mais aguda de sua vida e de sua existência.

Por isso, mãos à obra! É fundamental a sua cooperação no processo de


aprendizagem.

Bom estudo!

4 BIBLIOGRAFIA BÁSICA
ARCHANJO, Neide. Epifanias. Prefácio de Carlos Nejar. Rio de Janeiro: Record, 1999.

______. Todas as horas e antes. São Paulo: A Girafa, 2004.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. Linguagem e literatura: a obra literária e a expressão lingüística.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2001.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

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VIII Claretiano – Batatais
GUIA DE DISCIPLINA
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

5 BILBIOGRAFIA COMPLEMENTAR
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética I. Lisboa: Caminho, 2001.

______. Obra poética II. Lisboa: Caminho, 1999a.

______. Obra poética III. Lisboa: Caminho, 1999b.

ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond.
São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

AUGRAS, Monique. Ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico.


3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

BOSI, Eclea. O tempo vivo da memória: ensaio de psicologia social. São Paulo: Ateliê,
2004.

BUENO, Alexei; SILVA, Alberto da Costa. Antologia da poesia portuguesa contemporânea:


um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.

CARPI, Maria. As sombras da vinha: poemas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

CARNEIRO, Flávio. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de
Janeiro: Rocco, 2005.

COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. Tradução de Álvaro Lorencini e Anne


Arnichand. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1974.

DUFRENNE, Mikel. O poético. Porto Alegre: Globo, 1969.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso.


Tradução de Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

EMMER, Denise. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

FILHO, Ruy Espinheira. Poesia reunida e inéditos. Rio de Janeiro: Record, 1998.

GALVÃO, Donizete. A carne e o tempo. São Paulo: Nankin Editorial, 1997 (Coleção Janela
do Caos).

HILST, Hilda. Poesia: (1959-1979). São Paulo: Quíron, 1980.

JUNQUEIRA, Ivan. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LEITE, Sebastião Uchoa. A regra secreta. São Paulo: Landy, 2002.

LISBOA, Henriqueta. Obras completas – I: poesia geral (1929-1983). São Paulo: Duas
Cidades, 1985.

LUFT, Lya. Secreta mirada e outros poemas. Rio de Janeiro: Record, 2005.

MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil: 1999.

MOURA, Emílio. Itinerário poético: poemas reunidos. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

NEJAR, Carlos. Os viventes. Rio de Janeiro: Record, 1999.

OLIVEIRA, Marly de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

PAES, José Paulo. Os melhores poemas de José Paulo Paes. 5. ed. São Paulo: Global,
2000.

______. Os perigos da poesia e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

PRADO, Adélia. Oráculos de maio. 4. ed. São Paulo: Siciliano, 1999. LEMOS, Lara.

• CRC
Teoria da Literatura II • •
IX
Batatais – Claretiano
GUIA DE DISCIPLINA
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Dividendos do tempo. Porto Alegre: L&PM, 1995.

RODRIGUES, Antônio Medina. Sonetos de Camões. São Paulo: Ática, 1993.

ROSA, António Ramos. Antologia poética. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

SAVARY, Olga. Repertório selvagem: obra reunida. São Paulo: Multimais, 1998.

SILVA, Alberto da Costa e. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

SILVA, Dora Ferreira da. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.


TREVISAN, Armindo. Nova antologia poética 1967-2001. Porto Alegre: Sulina, 2001.

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X Claretiano – Batatais
CADERNO DE REFERÊNCIA
DE CONTEÚDO
APRESENTAÇÃO

Olá! Tudo bem?

Seja bem-vindo, você inicia o estudo da disciplina Teoria da Literatura II,


disponibilizada para você em ambiente virtual (Educação a distância).

Ao estudar os fundamentos da poesia, ao longo das cinco unidades, você vai


descobrir o quanto a poesia é importante para a sua vida. Vai descobrir, também, as
regras que compõem a versificação e a importância da imagem para a composição da
linguagem lírica. Aprenderá, enfim, a desenvolver uma leitura crítica do poema.

Como futuro licenciado em Letras, é importante que você se preocupe com


conceitos e ideias que serão apresentados nesta disciplina.

Assim, é importante saber o que é versificação, ritmo, metáfora, metonímia,


dentre outros tópicos disponíveis em nossa disciplina.

Na última unidade, você travará contato com as análises de alguns poemas.


Essa unidade é de suma importância, pois ela servirá, para vocês, como modelo de leitura.
Com isso, vocês descobrirão formas novas de análise e de interpretação do poema.

O desafio está lançado. Vamos lá, então?!


INTRODUÇÃO À DISCIPLINA
AULA PRESENCIAL

Objetivos
• Esclarecer a organização da disciplina e as atividades que
a compõem.

• Interagir com o tutor e os outros alunos.

• Obter informações gerais sobre os conteúdos das


unidades.

Conteúdo
• Elementos Estruturais da Linguagem
UNIDADE 1
ELEMENTOS ESTRUTURAIS
DA LINGUAGEM POÉTICA:
MUSICALIDADE DA PALAVRA

Objetivo
•  Conhecer e identificar os seguintes recursos fônicos da
poesia: metro e ritmo.

Conteúdos
• Metro.

• Ritmo.
UNIDADE 1
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

1 Introdução
Olá pessoal!
Para iniciarmos, é de suma importância que se faça esta reflexão: por que
algumas pessoas gostam de poesia e outras não? Por que tanta gente acha o poema um
texto de leitura difícil e complicada? Será que a poesia é um bem para poucos?

Antes de tudo é preciso saber que, para a compreensão do poema, são


necessários vários conhecimentos capazes de aclarar a leitura e facilitar a compreensão.

Com isso, você já pode imaginar que o poema é um texto que se difere dos
demais, pois ele se apoia em determinadas regras. Isso acontece porque o poema não
visa apenas à informação, mas, sobretudo, a atingir níveis estéticos capazes de arrebatar
o leitor, levando-o ao sentimento do belo e às profundidades da vida e da alma humana.
Para conseguir tais feitos, o poeta articula a linguagem, “forja” a palavra, burila o discurso,
a fim de gerar não apenas a informação, como também uma forma adequada para o que
ele deseja exprimir. O poema, como afirma o crítico literário Davi Arrigucci Júnior, é um
enigma, um texto que exige certo esforço para a compreensão.

Diante de um texto mais complexo, nós não vamos nos dar por vencidos, não
é verdade? A dificuldade precisa ser encarada como se estivéssemos jogando xadrez:
quanto mais difícil a partida, mais instigante torna-se a competição.

Agora, já podemos compreender por que tanta gente não gosta de poesia. Será
que essas pessoas possuem conhecimentos necessários para se usufruir do texto poético?
Eis uma coisa fascinante: quanto mais compreendemos o poema, mais e mais sentimos
deleite e prazer ao lê-lo. Por isso, torna-se fundamental conhecermos a poesia em sua
complexidade e beleza.

Entretanto, não basta apenas conhecer as regras e os fundamentos que


compõem o poema. Todo o nosso conhecimento de mundo é fundamental para a análise
do texto. Para ler um poema e compreendê-lo em sua complexidade, precisamos ter
uma visão abrangente do mundo e, especialmente, do humano. Por isso, quanto mais
leitura tivermos, mais o texto lírico é acessível. Com efeito, conhecimentos de filosofia,
antropologia, mitologia, sociologia, psicologia, dentre outras disciplinas, são fundamentais
para captarmos o fenômeno poético em sua profundeza. Tudo o que é do humano
fundamenta o texto lírico.

Dessa maneira, podemos afirmar que a poesia, a grande poesia, é um mergulho


na alma do homem, uma aventura existencial capaz de nos levar à essência do mundo e
da vida.

Inicialmente, vamos observar alguns recursos referentes à versificação. Antes


de tudo é preciso notar que poesia não se dá apenas em versos, mas em prosa também.
Observaremos, ainda, algumas regras da poesia versificada. É preciso lembrar que muitos
dos recursos aqui arrolados também são usados no poema em prosa e na prosa poética.
Eis a primeira dificuldade para a interpretação da poesia. Nenhuma regra é absoluta.

Vamos conhecer essas regras?

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4 Claretiano – Batatais
UNIDADE 1
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

2 E lementos
poética
estruturais da linguagem

Adotaremos a classificação proposta pela crítica literária Nelly Novaes Coelho1,


em sua obra Literatura e linguagem. Conforme o pensamento de Nelly, destacamos três
aspectos que integram o processo poético: (a) Os elementos estruturais da linguagem
poética, (b) Os processos intensificadores e (c) Os processos imagísticos.

Metro (1) Nelly Novaes Coelho


- Doutora em Letras, Livre-
Todo verso é constituído por sílabas poéticas. A medida do verso se dá pela Docente e Professora Titular
por Concurso na Universidade
quantidade dessas sílabas. É por meio da contagem delas que os vários tipos de metro são
de São Paulo. Crítica literária,
classificados. Essa contagem, chamada escansão, é determinada pela seguinte regra: escritora infantil, dicionarista. Ex-
presidente da APCA-Associação
•  Conta-se somente até a última sílaba tônica do verso. Vejamos este exemplo Paulista dos Críticos de Arte.
no poema de Sophia de Mello Breyner Andresen2: Com mais de trinta anos de
atividade literária, ainda não se
Apesar das ruínas e da MORte, sabe qual é a maior - se a crítica
(que lhe trouxe reconhecimento)
Onde sempre acabou cada iluSÃO, se a ativista cultural, a
A força dos meus sonhos é tão FORte, descobridora de talentos, a
Que de tudo renasce a exaltaÇÃO apaixonada professora, a didata
exemplar e criadora múltipla, a
E nunca as minhas mãos ficam vaZIAS criatura humana. Ou aquela que
(ANDRESEN, 2001, p. 15). soube, com denodo, fazer da
língua portuguesa uma pátria.

Note que todos os versos possuem dez sílabas poéticas. São, portanto, versos
decassílabos.

Observe a força expressiva desse poema. Com apenas cinco versos, a poeta
revelou o drama de todo ser humano: a sua finitude. O homem, frágil e efêmero, encontra-
-se, nesse poema, face a face com a morte.

Entretanto, diante dessa perspectiva trágica, ele possui a força dos sonhos.
Sonhar torna a vida mais fecunda, mais rica. Tudo no mundo torna-se maior diante da
força da imaginação. Na presença da morte, portanto, o eu lírico mantém as mãos sempre
ocupadas, tecendo o poema. Que verdade magnífica e cheia de vida que Sophia nos
passa, não é mesmo?
(2) Sophia de Mello Breyner
Andresen:
Ao ocorrer o encontro vocálico entre duas palavras (vogal que finaliza uma É uma das grandes poetas
palavra + vogal que inicia uma outra palavra), a contagem pode ocorrer, de acordo com a portuguesas do século 20.
Além de poemas, escreveu
necessidade imposta pelo metro, de duas maneiras: contos, literatura infantil e
ensaios. Traduziu Eurípedes,
Dante e Shakespeare.
Elisão Recebeu inúmeros prêmios,
entre os quais destacam-se o
As vogais se fundem formando uma única sílaba poética. Camões (1999) e o Reina Sofía
(2004).

Hiato

As vogais não se unem, pertencendo cada qual a sílabas poéticas diferentes. INFORMAÇÃO:
Aqui vão algumas dicas de sites
Vejamos os exemplos a seguir: para você fazer suas pesquisas.
• http://www.mulheres-ps20.ipp.
Sentimentos Carnais pt/SophiaMBreyner.htm.
• http://www.triplov.com/sophia/
Sentimentos carnais, esses que agitam helena.html.
• http://www.maricell.com.br/
Todo o teu ser e o tornam convulsivo... sophiandresen/sophia_m_b_
Sentimentos indômitos que gritam andresen.htm.
Na febre intensa de um desejo altivo. • http://www.secrel.com.br/
jpoesia/brey.html.

• CRC
Teoria da Literatura II • •
5
Batatais – Claretiano
UNIDADE 1
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Ânsias mortais, angústias que palpitam,


Vãs dilacerações de um sonho esquivo,
Perdido, errante, pelos céus, que fitam
Do alto, nas almas, o tormento vivo.

Vãs dilacerações de um Sonho estranho,


Errante, como ovelhas de um rebanho,
Na noite de hóstias de astros constelada...

Errante, errante, ao turbilhão dos ventos,


(3) João da Cruz e Souza Sentimentos carnais, vãos sentimentos
nasceu a 24 de novembro de De chama pelos tempos apagada...
3
1862, na cidade de Destêrro, (CRUZ e SOUSA , 2000, p. 85).
atual Florianópolis, capital
da então Província de Santa
Catarina. Filho de dois negros
escravos, trazia nas artérias Nesse texto, o simbolista brasileiro Cruz e Sousa (2000) revela-nos as angústias
sangue sem mescla da África, e os sentimentos humanos levados aos extremos da alma. Um agitar, um pulsar, perpassa
e no profundo psiquismo
milenárias forças adormecidas
todo o poema, revelando-nos o movimento incessante desse ser em agonia. Na verdade,
de angústia e sonho. Tiro a o poeta revela nossa vida em seu texto. Quem nunca se sentiu triste, confuso e perdido?
esta referência todo acento
Novamente, temos um exemplo vivo de como o poeta lida com nossa existência,
literário, pois que de fato
significa um puro dado positivo, transformando-a em arte. Agora, observe, temos vários exemplos de elisão:
indispensável à compreensão
do destino e do canto do
Poeta Negro. Morreu a 19 de Sen/ti/men/tos/car/nais/e/sses/ qu’a/gi (9ª sílaba: elisão)
Março de 1898, na cidade To/d’o/teu/ser/eo/tor/nam/con/vul/si/ (2ª e 5ª sílabas: elisão)
de Sítio, Minas, para onde
Sentimentos indômitos que gritam
fôra transportado às pressas
vencido pela tuberculose. Na/fe/br’in/ten/sa/d’um/de/se/j’al/ti (3ª, 6ª e 9ª sílabas: elisão)
Nos seus trinta e seis anos de
existência terrena, percorreu
todo um ciclo de experiências Agora, note este exemplo extraído de Especulações em torno da palavra homem.
tremendas de sofrimento.
Como o poema é muito extenso, citaremos apenas uma estrofe. Convidamos os leitores
de nossa apostila, vocês, estudantes de Letras, a lerem o poema na íntegra. Vale a pena,
pois trata-se de um dos mais belos textos de Drummond.
INFORMAÇÃO:
Cruz e Sousa é, sem dúvida,
o mais importante poeta Como pode o homem
simbolista brasileiro, chegando sentir-se a si mesmo,
a ser considerado, também, um quando o mundo some?
dos maiores representantes
dessa escola no mundo.
(ANDRADE apud COELHO, 1974, p. 55).
Suas únicas obras publicadas
em vida são duas: Missal e Observe, temos um exemplo de hiato:
Broquéis. Vale a pena conferir!
Disponível em: <www.
mundocultural.com.br>. Acesso Co/mo/po/ di’o/ho (4ª sílaba: elisão, 5ª sílaba: hiato)
em: 25 ago. 2005. sen/tir/si’a/si/mes (3ª sílaba: elisão)
quan/d’o/mun/do/so (2ª sílaba: elisão)

Arrigucci Júnior (2002, p. 15) afirma que Drummond forjou, ao longo de sua
obra, “um denso lirismo meditativo”, em que “o poeta coaduna discórdia com reflexão”.
Dessa forma, para o escritor mineiro, o lirismo “nunca foi puro, mas mesclado de drama
e pensamento”. Isso é o que se pode perceber nesse poema, em que a pergunta torna-
-se uma poderosa ferramenta, com a qual o eu lírico pesquisa a vida humana, revelando
as contradições e complexidades que lhe são inerentes. Com o intuito de compreender a
existência, o sujeito lírico realiza um extenso questionário sobre o ser do homem, sobre
o seu fundamento, a sua natureza, utilizando-se de perguntas repletas de uma aura
metafísica, cujas respostas se perdem no mistério em que se constitui a própria existência
humana.

Quando acontecer o encontro vocálico no interior da palavra, há duas formas de


se fazer a contagem:

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6 Claretiano – Batatais
UNIDADE 1
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Sinérese
Junção das vogais em uma única sílaba poética.

Diérese
Cisão das vogais, formando sílabas poéticas diferentes. Vejamos os exemplos
a seguir:

Quem fez esta manhã fê-la por ser


Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora
(FAUSTINO apud COELHO, 1974, p. 55).

Metro decassílabo (de 10 sílabas poéticas):

Quem/fez/es/ta/ma/nhã/fê/la/por/ser
Um/rai/oa/fé/cun/dá/la/não/por/li (2ª sílaba: sinérese,
3ª: elisão)
Au/sên/cia/sem/pe/ca/do’e/ fê/la/ter (3ª sílaba: sinérese,
7ª elisão)
Em/si/prin/cí/pio’e/fim/ter/em/tr’au/ro (5ª e 9ª idem)
E/mei/o/di/a’um/ho/mem’e/su/a/ho (2ª sinérese,
3ª diérese, 5ª elisão, 9ª diérese)

A métrica é, portanto, a ordenação dos versos, conforme a quantidade das


sílabas e a disposição dos acentos rítmicos. De acordo com essa quantificação, o verso
recebe um nome específico:
• monossilábico (uma sílaba);
• dissílabo (duas sílabas);
• trissílabo (três);
• tetrassílabo (quatro);
• redondilha menor (cinco);
• heroico quebrado (seis);
• redondilha maior (sete);
• octossílabo (oito);
• eneassílabo (nove);
• decassílabo (dez);
• endecassílabo (onze);
• alexandrino (doze).

Os versos com mais de doze sílabas não têm nome. Na poesia anterior ao nosso
século, eles eram chamados de versos bárbaros. Com o advento da poesia moderna,
esses versos passaram a ser usados de forma sistemática. Veja o exemplo de Fernando
Pessoa / Álvaro de Campos:

Não sou nada. (4 sílabas)


Nunca serei nada. (5)
Não posso querer ser nada. (6)
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (15)
(PESSOA apud COELHO, 1974, p. 56).

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Ritmo

Estabelecer o que define o ritmo de um discurso é complexo, especialmente,


com o advento de formas poéticas inovadoras, como o verso livre e o poema em prosa.
Nas formas fixas, o ritmo sempre foi preestabelecido e nunca gerou incertezas. Assim, os
apoios rítmicos (marcados sempre por sílabas tônicas) dos versos, aos poucos, foram mais
ou menos estabelecidos. Nos versos de oito sílabas, por exemplo, eles caíam na quarta e
na oitava sílabas:

Santa Maria iluminai


A estrada aspérrima que trilho:
Ah por amor de vosso filho!
Ah! por amor de vosso Pai!
(JÚLIA apud COELHO, 1974, p. 57).

Nos versos decassílabos, os apoios rítmicos caíam na sexta e na décima sílabas


(decassílabos heróicos) ou na quarta, oitava e décima (decassílabos sáficos). Exemplo:

Por ti deixei, do meu rebanho lento (4-8-10)


a alva timidez; da minha casa (6-10)
o fogo acolhedor tornado brasa (6-10)
e a brasa morta transformada em pranto (4-8-10)
(PALLOTINNI apud COELHO, 1974, p. 57).

Apesar dessas estruturas regulares, o latejar do ritmo é um elemento estrutural


(4) Você deve estar se dos mais livres. Em muitos textos, não há regras específicas para pontuá-lo. Basta lembrar
perguntando, mas o que será um o ritmo proposto pelo poeta francês Stéphane Mallarmé. Para ele a pulsação do texto era
ritmo sinestésico? Sinestesia é
uma figura de linguagem que nós sinestésica4, ou seja, o ritmo não se dava pela cadência da linguagem apenas, mas
iremos estudar em breve. Trata- pelas imagens verbais. A imagem teria a força de desencadear a imagem seguinte, como
-se das misturas de sensações.
em uma sucessão de fotos vistas umas após as outras. Há também o exemplo do poema
Por exemplo: Cheiro verde.
em prosa. O ritmo não se dá somente pelas sílabas tônicas, mas por uma série de outros
recursos (aliterações, paranomásias, rimas internas, ecos etc.). Isso também ocorre com
a prosa poética.

Em muitos romances e contos, o autor usa os recursos sonoros da linguagem


para imprimir ritmo ao seu texto. Se lembrarmos, por exemplo, o conto do Guimarães Rosa
“O Burrinho Pedrês”, podemos recordar aquela passagem em que os bois são tangidos e
ATENÇÃO!
Como profissional das letras, a
guiados pelos peões. Rosa usa a redondilha menor (recurso da poesia) e segmenta vários
leitura é parte importante para parágrafos. Mas vocês, decerto, estão se perguntando: “A redondilha não é um tipo de
a sua formação. Os excertos verso metrificado? Como então ele usa tal recurso na prosa, mais especificamente, no
de obras apresentados neste
material não se esgotam em parágrafo?”
si mesmo, mas apontam para
a necessidade de você ler
integralmente as obras completas
Pois o parágrafo está dividido em pequenos trechos. Cada um deles está, por
dos autores aqui referenciados. sua vez, separado por vírgulas. Em cada fragmento desses, se contarmos as sílabas, nós
Chamamos sua atenção para a sempre teremos cinco sílabas poéticas. Haja fôlego, não? Com isso, Guimarães Rosa imita,
obra de António Ramos Rosa.
pela linguagem, o trotar dos animais. Fica então essa sugestão de leitura, certo? Agora,
leiam esse poema em prosa do poeta português António Ramos Rosa:

Meio-Dia
INFORMAÇÃO:
António Ramos Rosa,
considerado um dos Contemplo a mulher adormecida. Ocupa uma metade do terraço, longa
melhores poetas portugueses e voluptuosamente extensa, constelada de um silêncio que é todo aéreo
contemporâneos, tem recebido
inúmeros prêmios e já viu o seu e ondulante. Em volta o mundo converteu-se em um pomar unânime.
nome apontado como candidato Tudo está imóvel, fixo, como um centro. As superfícies lisas, brancas, sem
ao Prêmio Nobel da Literatura. reflexos, sem sombras. Imperceptível, insondável é o gesto fulgurante
Disponível em: <http://www.
citi.pt/cultura/literatura/poesia/ da imobilidade. A intensidade da presença identifica-se com o vazio da
ramos_rosa/>. Acesso em: 25 ausência. O meu corpo entende o corpo da mulher, enrola-se nas volutas de
ago. 2005. sua música silenciosa, adere às paisagens brancas do seu sono completo.

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Imóvel, não procuro palavras, nem as mais leves e transparentes: sinto-


me fluido, extremamente aberto. Conheço as sensações da mulher nua:
água, terra, fogo e vento. Conheço-a e amo-a através delas, numa relação
de felicidade intensa e ao mesmo tempo imponderável. O sono da mulher
é de horizontes múltiplos e em si germina o centro abrindo o aberto sem
limites (ROSA, 2001, p. 241).
(5) Aliteração é a repetição de
fonema(s) no início, meio ou
Vocês podem acreditar: esse texto é um poema! Mas como? Se nós lermos com fim de vocábulos próximos, ou
mais atenção, perceberemos que esse texto possui ritmo. Veja esse fragmento: “longa mesmo distantes (desde que
simetricamente dispostos) em
e voluptuosamente extensa, constelada de um silêncio que é todo aéreo e ondulante”. uma ou mais frases, em um
Observe: esse pequeno trecho está repleto de aliterações e assonâncias. ou mais versos; aliteramento,
paragramatismo. Ex.: “E fria,
Mas o que são aliterações e assonâncias? Simples: aliteração5 é a repetição de fluente, frouxa claridade/Flutua
6 como as brumas de um letargo...”
consoantes; assonância , de vogais. (SOUSA, 2000, p. 50).

Veja como se repetem as assonâncias nasaladas (som de vogal mais a letra n


ou m – ex.: an, em, in...): lONga, voluptuosamENte, extENsa, cONstelada, silÊNcio, (6) Assonância Semelhança
ONdulANte. Nesse fragmento, temos também a repetição da consoante L. Essa aliteração de sons. Conformidade ou
aproximação fonética entre
da letra L reforça essa sensação de ondulação do texto. as vogais tônicas de palavras
diferentes (Dicionário Eletrônico
Mas o que Rosa (2001) desejava ao escrever assim? Ora, ele queria revelar para
Aurélio, versão 5.0, 2004).
nós o corpo mais que lindo da mulher! Só quem olha com carinho para o corpo feminino,
poderá perceber o quanto ele é ondulante. Isso é o máximo, não! Pela palavra poética, o
poeta imita as curvas do corpo feminino.

Um importante poeta francês, Paul Valéry, teorizou sobre o ritmo. Ele compara
o ritmo do poema à dança e ao balé; ao passo que a prosa de todo dia é a marcha do
soldado. Um outro poeta importante, o mexicano Octavio Paz, faz esta afirmação sobre o
ritmo do poema:

No fundo de todo fenômeno verbal há um ritmo. As palavras se juntam e


separam atendendo a certos princípios rítmicos. Se a linguagem é um contínuo
vaivém de frases e associações verbais, regida por um ritmo secreto, a
reprodução desse ritmo nos dará poder sobre as palavras. [...] O ritmo é um
ímã. [...] O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo. Uma imagem suscita
outra. Assim, a função predominante do ritmo distingue o poema dentre todas
as formas literárias. O poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal,
fundado no ritmo (PAZ apud COELHO, 1974, p. 59).

Eis uma possibilidade de definição de poesia. Poesia é um discurso


fundamentalmente rítmico. Não há poesia sem ritmo.

Certo?! O ritmo é um sopro que sustenta a linguagem lírica, é uma verdadeira


magia a encantar o coração e o ouvido de quem lê, em voz alta, o poema. Curiosamente,
não são necessários metros e rimas para que haja ritmo. É claro que tais elementos
poéticos (rima e metro) também imprimem ritmo. Mas é por isso que o ritmo é um
procedimento aleatório.

São vários os recursos usados para que ele se faça presente. Esse é o caso do
poema de Ramos Rosa. Agora, leiam esse poema do Carlos Nejar:

Fica a terra,/ passa o arado,


mas o homem/ se desgasta;
sangra o ramo,/ brota o gado,
brota o vento/ de outro lado
e a semente/ também brota
(NEJAR apud COELHO, 1974, p. 60).

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Eis um exemplo tocante de ritmo. Ele permite que a emoção poética atinja
o leitor. A luta do homem contra a sua condição de ser preso a terra, de ser mortal,
está explícita pelo ritmo perfeitamente regular. Cada verso se divide em dois segmentos
idênticos. Com isso, o poeta imita, por meio da palavra, o movimento monótono da enxada
a arar a terra. Esse movimento também metaforiza a condição frágil do homem: um ser
que se esvai e se perde como a terra arada.
INFORMAÇÃO:
O poeta gaúcho Carlos Nejar,
membro da Academia Brasileira Vamos conhecer outro poema do Carlos Nejar? Leiam este belo texto chamado
de Letras, segundo o crítico Sísifo. Infelizmente, vocês não o conhecem na íntegra, mas apenas um excerto do poema.
suíço Gustav Siebenmann, autor
do ensaio Poesia y Poéticas del Leiam:
Siglo XX en la América hispana
y el Brasil, é considerado um dos
37 escritores-chaves do século, Sísifo
dentre 300 autores memoráveis,
no período compreendido entre
1800-1900. Aceitei.
Saiba mais acessando o site:
Levo esta pedra
<www.nejar.cjb.net/>.
Temos aqui apenas um pequeno ao alto da montanha
fragmento da grandiosa obra de e ela tomba depois
Nejar, Os Viventes, da editora
Record. e recomeço.
Neste gesto
a condição humana
até o excesso
de amar, sofrer
e respirar
os planos
e os mais longos
dos receios.
Nessa pedra
a resistência
que se faz eterna.

E começo de novo.

Felicidade é apenas
o possível
no impossível
ou rastro
que nos fica
do sopé
para o cume.

E com a pedra
caímos,
transportando
o mar.

Feliz ou não:
pretexto.
A pedra é o mar
que engendro.
Naufrago andando

[...]
(NEJAR, 1999, p. 247-248).

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Vocês devem se perguntar? Mas o que é ou quem é Sísifo? Vejam, o poeta exige
um conhecimento prévio por parte do leitor.

Sísifo é um personagem da mitologia grega. De acordo com o mito, Sísifo fora


condenado, por toda a eternidade, a levar uma grande rocha ao cume de uma montanha.
Sempre que ele a depositava no topo do monte, a imensa pedra rolava, despenhadeiro
abaixo. Então, Sísifo tinha de descer e carregar novamente o peso descomunal até as
alturas. Com isso, vocês já podem imaginar o fim dessa história, ou seja, ela não tem fim.
O trabalho de Sísifo repetia-se para todo sempre: ele levava a pedra, a pedra voltava,
ele a carregava novamente, a pedra regressava de novo à planície. Esse era o castigo
de Sísifo: repetir essa tarefa para sempre. Agora observem, no trajeto, o personagem ATENÇÃO!
Vale a pena conferir a obra
mitológico tinha como alento a visão do mar. de Cecília Meireles, publicada
pela Nova Fronteira. Veja nas
Referências Bibliográficas.
Se lermos o poema de Nejar, perceberemos que o ritmo do poema imita o gesto
de Sísifo. O poeta reitera um verso: “E começo de novo”. O que dá a noção de repetição
do ato de levar a pedra aos céus. Além do mais, os versos são curtos e irregulares.
Com isso, o poeta imita os passos sofridos da personagem mitológica, passos a percorrer
um caminho também tortuoso e irregular. Cada verso é como se fosse um passo de
Sísifo. Agora, o que há de mais belo no texto está nesta metáfora: “a pedra é o mar”.
O que o poeta gaúcho quis nos dizer com essa metáfora? Ora, a aceitação irrestrita da
condição humana. Todo mito serve como metáfora de nossa vida. Nós, todos os dias, não
temos de labutar? Levantar, trabalhar, cuidar de casa, de filhos (no caso das mamães).
Como se não bastasse, enfrentar o medo da solidão, da morte, vencer as dificuldades
financeiras... Olhem, isso não corresponde ao gesto de Sísifo? O sofrimento de erguer um
peso descomunal (o da pedra) corresponde ao peso nosso (sofrimento) de todo dia. No
entanto, ao invés de praguejar, o poeta simplesmente afirma: “Aceito”. Aceitamos, porque
a vida também tem um mar: o primeiro beijo, o riso do amigo, a música que amamos, o
choro no escuro do cinema. Então, o poeta está expressando o que somos e sentimos!

3 E-referências
Chamadas Numéricas

1 Nelly Novaes Coelho. disponível em: <http://www.geocities.com/~rebra/autoras/13port.


html>. Acesso em: 05 mar. 2007.
2 Sophia de Mello Breyner Andresen. disponível em: <http://www.releituras.com/sophia_
menu.asp>. Acesso em: 23 mar. 2009.
3 João da Cruz e Souza. disponível em: <http://www.releituras.com/cruzesousa_menu.
asp>. Acesso em: 23 mar. 2009.

4 Referências bibliográficas
ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond.
São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética I. Lisboa: Caminho, 2001.

______. Obra poética II. Lisboa: Caminho, 1999a.

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______. Obra poética III. Lisboa: Caminho, 1999b.

COELHO, Nelly Novaes. Linguagem e literatura: a obra literária e a expressão lingüística.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

NEJAR, Carlos. Os viventes. Rio de Janeiro: Record, 1999.

ROSA, António Ramos. Antologia poética. Seleção, prefácio e bibliografia de Ana Paula
Coutinho Mendes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

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12 Claretiano – Batatais
ELEMENTOS ESTRUTURAIS

UNIDADE 2
DA LINGUAGEM POÉTICA:
MUSICALIDADE DA PALAVRA II

Objetivo
•  Identificar e classificar os seguintes recursos fônicos da
poesia: rima, estrofes, anáfora, reiteração, aliteração,
assonância, onomatopeia, paralelismo, refrão.

Conteúdos
• Rima.

• Estrofe.

• Reiteração.

• Anáfora.

• Aliteração.

• Assonância.

• Onomatopeia.

• Paralelismo.

• Refrão.
UNIDADE 2
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ATENÇÃO!
Confira no Guia de disciplina
e no início de cada unidade as
1 Introdução
informações para facilitar o seu
estudo. Então, acharam difícil chegar até aqui? Calma. Lembrem-se: é preciso persistir.
Lembre-se, ainda, de que sua
participação pode significar a
diferença entre ler conteúdos ou Gostaram de algum poema? Sempre gostamos mais de um texto do que de
transformar conhecimentos em outro. Precisamos, simplesmente, descobrir as nossas sintonias.
qualidade de vida.

Pudemos ver, portanto, na Unidade 1, o quanto o ritmo é fundamental para o


poema. O ritmo seria, assim, a alma que palpita no texto lírico.

Agora podemos dar prosseguimento à Unidade 1. Há outros recursos que


imprimem musicalidade ao texto. Vamos conhecê-los?

2 Rima
A musicalidade da poesia tem na rima seu elemento essencial. A rima “é a
semelhança sonora dos fonemas a partir da última sílaba tônica do verso. [...] Em sua
função elementar cabe à rima assinalar o término dos versos” (COELHO, 1974, p. 61).
Nesse caso, ela se chama rima externa. Entretanto, a rima também pode ocorrer no
meio do verso, nesse caso ela se chama rima interna. Por exemplo:

Lembranças, que lembrAIS meu passADO,


Para que sinta mAIS o mal presENTE,
Deixai-me se querEIS, vivER contENTE,
Não me deixEIS morrER em tal estADO
(CAMÕES apud COELHO, 1974, p. 61).

Tipos de Rimas

Temos dois tipos de rimas: consoantes e assonantes. Vamos conhecer cada uma
delas.
•  Consoante: apresentam semelhança entre vogais e consoantes. É o caso, por
exemplo, das rimas de Camões: “ado” e “ente”.
•  Assonante: somente as vogais se assemelham. Portanto, a unidade sonora
entre as rimas assonantes não é total. Veja um exemplo dessa rima em uma
cantiga medieval do autor Pedro Gonçalves Portocarreiro:

Par Deus, coitada vivo


pois não ven meu amigo:
pois não ven, que farei?
meus cabelos, con sirgo
eu não vos liarei
(PORTOCARREIRO apud COELHO, 1974, p. 62).

(Por Deus, infeliz eu vivo/ pois meu amigo não vem:/ se não vem, que farei?/
Oh, meus cabelos com sirgo/ eu não vos prenderei).

Há, nesse poema, rimas assonantes (“ivo”/ “igo”) e consoantes (“arei”/ “arei”).

Há outras classificações de rimas:

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•  Rima rica: rimas que pertencem a palavras de classes morfológicas diferentes.


Vejamos o exemplo no poema de Alphonsus de Guimaraens:

Nossa Senhora vai... Céu de esperança


Coroando-lhe o perfil judaico e fino...
E um raio de ouro que lhe beija a trança
É como um grande resplandor divino.

O seu olhar, tão cheio de ondas, lança (verbo)


Clarões longínquos de astro vespertino.
Sob a túnica azul uma alva Criança (substantivo)
Chora: é o vagido de Jesus Menino.

Entram no templo. Um hino do Céu tomba. (verbo)


Sobre eles paira o Espírito celeste (adjetivo)
Na forma etérea de invisível Pomba. (substantivo)

[...]

Diz-lhe o velho Simeão: “Por uma espada, (substantivo)


Já que ele já te foi dado e que O quiseste, (verbo)
A Alma terás, Senhora, traspassada...” (verbo) INFORMAÇÃO:
(GUIMARAENS, 2001, p. 216). Esse poema pertence ao livro
Centenário das dores de Nossa
Senhora, do simbolista brasileiro
Alphonsus de Guimaraens.
Nesse caso, ocorre rima rica quando há palavras, como “lança” (verbo) e “criança” Esse livro, pungente e intenso,
(substantivo), ou “celeste” (adjetivo) e “quiseste” (verbo), que, quando comparadas, corresponde a um dos momentos
mais líricos da poesia no Brasil.
demonstram ser de classes morfológicas diferentes. Quando elas pertencem à mesma O poeta atinge aquele nível de
classe, ocorre o contrário, ou seja, a rima é pobre, como você vê a seguir. religiosidade que o irmana a
poetas como Sóror Juana Inês
de la Cruz, ou San Juan de La
Cruz, poetas místicos de grande
• Rima pobre: rimas que pertencem à mesma classe morfológica. importância para a literatura do
Ocidente. Alphonsus revela um
Vejamos o exemplo de rima pobre no poema de Francisco Otaviano: fervor, uma fé sem limites, em
metáforas iluminadas e de uma
Querida, quando eu morrer, (verbo) beleza ímpar. Esses sonetos
parecem cânticos entoados
com tua boquinha breve (adjetivo) em louvor a Cristo, cânticos de
Não me venhas tu dizer: (verbo) igreja, fervorosos e devotados.
– Que a terra te seja leve. (adjetivo)
(OCTAVIANO apud COELHO, 1974, p. 62).

Percebeu? Se vocês compararem “morrer” a “dizer”, ou “breve” a “leve”,


perceberão a rima pobre, uma vez que a classe gramatical é a mesma, ou seja, verbo
(morrer/dizer) e adjetivo (breve/leve).

Já em relação à disposição das rimas nas estrofes temos:


•  Rima emparelhada: é aquela que se dispõe de forma alternada, duas a duas,
conforme o esquema: aa bb aa bb. Vejamos o exemplo de rima emparelhada
no poema de José Régio:

Sim, a minh’alma sabe essas palavras ébrias


Que nos atiram para o infinito (a)
Quando a minh’alma fala, a sua voz é um grito (a)
Grito de oiro que vara a solidão do espaço, (b)
E Deus acolhe no seu regaço. (b)
(RÉGIO apud COELHO, 1974, p. 63).

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• Rima intercalada: é aquela que intercala uma unidade rítmica na outra,


conforme o esquema: abba baab. Vejamos um exemplo de rima intercalada
no poema de Ivan Junqueira.

É assim que vens, amor, surdo e traiçoeiro (a)


dizer-me a mim o que sequer me atrevo, (b)
pois que ardem as palavras se as escrevo (b)
e logo se dissolvem no nevoeiro? (a)
(JUNQUEIRA, 1999, p. 223).

•  Rima cruzada: é aquela que se dispõe de forma alternada, uma a uma, de


acordo com o seguinte esquema: abab. Vejamos um exemplo de rima cruzada
no poema de Olavo Bilac:

Cheguei, chegaste. Vinhas fatigada (a)


e triste, e triste e fatigado eu vinha. (b)
Tinha a alma de sonhos povoada, (a)
a alma de sonhos povoada eu tinha... (b)
(BILAC apud COELHO, 1974, p. 63).

• Rima encadeada: ocorre quando a palavra que finaliza um verso rima com
outra situada no meio do verso seguinte:

Ouve ó Glaura, o som da Lira,


Que suspira lagrimosa,
Amorosa em noite, escura
Sem aventura, nem prazer
(ALVARENGA apud COELHO, 1974, p. 63).

3 Estrofe
Um conjunto de versos chama-se estrofe. A estrofe é, portanto, um bloco de
linhas poéticas. De acordo com o número de versos que a estrofe possui, ela recebe um
determinado nome:
• dístico (dois versos);
• terceto (três versos);
• quarteto (quatro);
• quintilha (cinco);
• sextilha (seis) etc.

As estrofes em que todos os versos possuem todos uma mesma métrica são
chamadas de isométricas. Já as que intercalam medidas diferentes ou versos livres
são chamadas heterométricas. Vejamos no próximo poema, de Álvares de Azevedo, a
estrofe isométrica, em eneassílabos:

Cavaleiro das armas escuras


Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangrenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?
(AZEVEDO apud COELHO, 1974, p. 64).

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16 Claretiano – Batatais
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Vejamos agora um exemplo de estrofe heterométrica neste poema de João


Cabral de Melo Neto:

O poema com seus cavalos


quer explodir
teu tempo claro; romper
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco
(NETO apud COELHO, 1974, p. 64).

Os poemas de forma fixa são aqueles que seguem um certo número de estrofes
e versos preestabelecidos. Esse é o caso do soneto e da quadrinha popular.

É muito detalhe, não é mesmo? Mas, coragem. Quando lemos um poema,


sentimos tudo isso com força e sentimento. A rima, a estrofe, a métrica nos fazem interagir
com o texto. Com isso, a aprendizagem vai acontecendo por meio da experiência. Por isso,
é importante ler poemas. Cecília Meireles, Drummond e Bandeira. Eis a hora da poesia:
momento da existência que traz intensidade e arrebatamento.

4 Processos intensificadores
O poema, como vocês puderam observar, é, portanto, um discurso que se
caracteriza pela melodia e pela musicalidade da palavra. O poeta francês Verlaine dizia “A
música antes de tudo”. A poesia é esse discurso no qual o pensamento torna-se comoção,
sentimento. O poema encarna-se no peito e modula nossa existência, nossos nervos.
Além da rima e do metro há outros processos intensificadores da musicalidade. Vamos
conhecer alguns deles?

5 Reiteração
É a repetição de uma mesma palavra ao longo do poema. Esse recurso intensifica
determinados significados do poema, o sentido do texto. Vejam um exemplo clássico de
autoria de Cruz e Sousa:

Cristo De Bronze

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,


Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensangüentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a luz retrata
(SOUSA, 2000, p. 67).

A reincisão da palavra Cristo designa justamente a ardente fé do eu lírico.


Como nos cânticos, nas orações, repete-se uma dada palavra, reforçando o seu poder de
encantamento e devoção.

6 Anáfora
É a reiteração de uma palavra no início dos versos de um poema. Pode ser
constituída por um único termo ou mais. Ela também atua como elemento intensificador

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do sentido do texto. Observem algo que é muito importante. Todos esses recursos vistos
até agora precisam ser interpretados. O plano da expressão está intimamente ligado ao
plano do conteúdo. Forma e significado são uma totalidade. Portanto, sempre que vocês
lerem um poema é importante buscar sentido para os recursos estilísticos. Vimos isso no
poema do Nejar, o “Sísifo”. Vocês se lembram? Nesse texto, o ritmo indicava o sentido do
texto. Como exemplo de Anáfora, leia esse texto do poeta português Ruy Belo:

Os pássaros nascem nas pontas das árvores


As árvores que eu vejo em vez de frutos dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros fazem cantar as árvores
(BELO apud BUENO, 1999).

A reiteração da palavra “pássaros” intensifica o ritmo do poema. A anáfora,


nesse caso, expressa o próprio movimento dos pássaros, seu voo sobre as árvores.

7 Aliteração e assonância
A reiteração do som consonantal, ou seja, a repetição de uma determinada
consoante é chamada de aliteração. Já a reiteração das vogais é chamada de assonância.
Com esses recursos, o poeta intensifica a musicalidade do poema. Vejamos um exemplo
no poema de Eugênio de Andrade, notando a reincisão da consoante “V” e da vogal “E”.

Nos teus dedos nasceram horizontes


e aVes Verdes Vieram desVairadas
beber neles julgando serem fontes
(ANDRADE apud BUENO, 1999, p. 124).

8 Onomatopeia
Repetição de sons com o intuito de imitar um determinado ruído. Vejamos no
poema de Manuel Bandeira outro exemplo:

Sino de Belém, pelos que inda vêm!


Sino de Belém bate bem-bem-bem
(BANDEIRA apud COELHO, 1974, p. 72).

9 Paralelismo
Repetição de uma linha poética ou de uma ideia ao longo do poema. Há dois
tipos de paralelismos:

Reiteração sintática

A reiteração sintática é a repetição de uma mesma estrutura sintática. Vejamos


um exemplo retirado do poema de João Rui de Souza:

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18 Claretiano – Batatais
UNIDADE 2
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Procuro a minha voz e não a encontro.


Procuro o meu silêncio e não o tenho
(SOUSA apud BUENO, 1999, p. 206).

Observe: a sequência sintática é a mesma: duas orações ligadas pelo


conectivo “e”.

Reiteração de expressões idênticas


INFORMAÇÃO:
Aqui está um fragmento do livro
A reiteração de expressões idênticas é quando uma mesma expressão é repetida As sombras da vinha: poemas,
ao longo do poema. Vejamos no poema de Maria Carpi um outro exemplo: de Maria Carpi, da editora
Bertrand Brasil (2005). Você,
como um leitor curioso, pode
– Beija-me a boca buscar mais poemas dessa
dos deslizes em brasa, acendidos. incrível poeta gaúcha.
– Beija-me a boca
de açucenas vertidas, assopradas.
– Beija-me a boca
de estar o íntimo disperso.
– Beija-me a boca
da lonjura de ter nascido.
– Beija-me a boca
da corporalidade de ir embora
[...]
(CARPI, 2005, p. 39).

O paralelismo explicita a fúria desse desejo. O eu lírico reitera sua súplica


revelando toda a volúpia, todo o estertor da carne. As metáforas, que se seguem ao
pedido, iluminam esse querer intenso, verdadeiramente sulfúrico.

10 Refrão
Reiteração de um mesmo verso no início ou no fim de uma estrofe. Esse recurso é
muito usado nas cantigas populares. Vejamos um exemplo no poema de Jorge de Lima:

Ora se deu que chegou


(isso já faz muito tempo)
no bangüê do meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra fulô

Essa negra fulô!


Essa negra fulô!

Essa negrinha fulô!


ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá
pra engomar pro Senhô!

Essa negra fulô!


Essa negra fulô!
.....................................
(LIMA apud COELHO, 1974, p. 73-74).

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Teoria da Literatura II • •
19
Batatais – Claretiano
UNIDADE 2
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

A busca da musicalidade na poesia é uma preocupação constante dos poetas.

Diante de tantos recursos, com os quais os poetas imprimem música à linguagem,


podemos perceber o quanto a repetição de estruturas lingüísticas é fundamental para a
poesia. A musicalidade da palavra possui esse dom de encantar o leitor, levando-o a
estados psicológicos quase mágicos. O som entoado pela lira de Orfeu jamais cessa. Ele
nos arrebata e nos coloca diante dos limites da condição humana. O poeta é aquele que
teve a coragem de aprofundar os limites do homem, indo sempre em direção aos extremos
do ser. D. Lewis e Y. Peres confirmam essa força encantatória da poesia:

A repetição (em poesia) desperta um prazer de espécie particular – o prazer de


reconhecer alguma coisa. Experimentamos a mesma sensação de agrado tanto
ao ouvirmos a repetição de um som como ao reconhecermos em meio a uma
multidão desconhecida um rosto familiar. Ora, esse retorno de sons, às vezes
de expressões ou de versos inteiros, somado à batida regular do metro, é o que
constitui a estrutura musical do poema.

Retorno que não está muito distante de ligações com a batida do tantã com que
os selvagens nas matas acompanham danças e cerimoniais religiosos, e que se
liga ao rito das encantações mágicas. A finalidade dessas repetições rítmicas é
ao mesmo tempo a de excitar e de embalar, o que pode parecer contraditório.
A verdade, porém, é essa. A poesia deve predispor uma parte de nosso ser
ao torpor a fim de despertar e de excitar uma ou outra parte. Ela adormece
a parte de nosso ser que raciocina e discute, mas desperta a que se recorda,
se comove e imagina. Nessa dupla função de adormecimento e de despertar a
repetição dos sons é para a poesia um poderoso instrumento (LEWIS; PERES
apud COELHO, 1974, p. 74).

A poesia possui, portanto, essa força encantatória: despertar os sentimentos do


homem, revificando-os. A musicalidade da palavra atenua o poder da razão, apelando a
estratos irracionais da psique humana. É nisso que se revela a magia da poesia: calar no
peito até mesmo aquilo que não pode ser compreendido.

11 Referências bibliográficas
BUENO, Alexei; SILVA, Alberto da Costa. Antologia da poesia portuguesa contemporânea:
um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.

CARPI, Maria. As sombras da vinha: poemas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

COELHO, Nelly Novaes. Linguagem e literatura: a obra literária e a expressão lingüística.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

JUNQUEIRA, Ivan. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LISBOA, Henriqueta. Obras completas – I: poesia geral (1929-1983). São Paulo: Duas
Cidades, 1985.

SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.

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20 Claretiano – Batatais
UNIDADE 3
ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA
LINGUAGEM POÉTICA: LINGUAGEM
IMAGÍSTICA DA POESIA

Objetivos
•  Apreender e descrever o caráter epifânico e sagrado da
poesia.

•  Definir os recursos imagísticos da poesia: comparação e


metáfora.

Conteúdos
•  Caráter sagrado da poesia.

•  Comparação.

•  Metáfora.
UNIDADE 3
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

1 Introdução
“Um poema pode se elaborar sem a intervenção de um metro ou de rimas,
enquanto não pode nascer sem aquela magia interior que se manifesta sob a forma de
imagens ou de metáforas” (LEWIS; PERES apud COELHO, 1974, p. 74).

Já estudamos os recursos sonoros da poesia. Foi difícil chegar até aqui? Calma,
aos poucos vocês irão tomando intimidade com o fenômeno poético. Mas ainda há muito
o que aprender. Vamos continuar?

Vimos que a poesia é a música da linguagem. Entretanto, eu pergunto a vocês:


será que a poesia é apenas som?

Poderíamos com segurança responder que não. Muitos poetas fazem joguinhos
com as palavras, combinações sonoras desprovidas de sentido, de verdade humana.
Nesses casos, o poema perde qualidade, aliás, isso revela a falta de habilidade do poeta.
Com isso, podemos então afirmar que o poema é a combinação entre forma e conteúdo,
combinação esta feita de maneira tão harmônica quanto perfeita, que um não existe sem
o outro. Por isso é tão difícil traduzir um poema.

Se pegarmos, por exemplo, um belo soneto de Shakespeare, veremos que a


forma, a combinação da linguagem usada pelo poeta, foi tão sublime e perfeita, que se
torna impossível transpô-lo, na íntegra, para outra língua. É por isso que a grande obra
de arte é singular. É claro que, em certos momentos, o tradutor é tão exímio, que ele
ultrapassa o autor traduzido. Isso aconteceu, por exemplo, quando um grande poeta da
língua alemã, Rainer Maria Rilke, resolveu traduzir poemas que ele admirava. Rilke, ao
traduzir uma poeta francesa da era medieval, foi tão astuto e tão engenhoso, que as suas
traduções superaram os originais. Mas Rilke foi um grande poeta, um dos maiores do
Ocidente. Perto dele, a poeta francesa praticamente desaparece.

Vocês, então, devem se perguntar: se a tradução é impossível, ela deve ser


abolida? Lógico que não. Um importante poeta brasileiro, Ivan Junqueira, afirma que
quanto mais um país possui traduções de poesia, mais a literatura desse país se enriquece.
Portanto, não se esqueça: a tradução, na íntegra, é praticamente impossível; porém, é
necessário que se traduza mesmo assim, ainda mais em um país como o Brasil, onde a
grande maioria das pessoas só fala a língua materna.

2 Processos imagísticos
Voltando um pouco ao assunto, podemos afirmar que a poesia é, além de música,
imagem. Eis a grande magia da poesia, transformar a realidade (o real) em imagem, em
INFORMAÇÃO:
arte. Esse processo não pertence somente à lírica, mas também às artes plásticas. Se
Sugerimos que você faça sua
biblioteca pessoal. Além de lembrarmos, por exemplo, dos trigais pintados por Van Gogh, ou dos famosos nenúfares
ser importante para sua vida de Monet, somos tomados por uma comoção, por uma aura, que pertencem apenas ao
acadêmica, ajudará você a
ampliar o seu conhecimento sentimento estético.
sobre a literatura e o estimulará
a ler mais. Para tanto, seguem
É diferente, porém, quando olhamos um trigal verdadeiro, especialmente ao cair
de sugestão os livros citados
nas bibliografias. Vá até lá e boa da tarde, sentiremos também emoção. Contudo, no primeiro caso, somos arrebatados
leitura! por um sentimento advindo de uma criação humana. Sentimos, portanto, diante da
grande arte, arrebatamento, entusiasmo, porque testemunhamos, sobretudo, a arte da
imaginação, do engenho humano levados aos seus níveis sublimes. Comovemo-nos pelo

CRC • • • Teoria da Literatura II


22 Claretiano – Batatais
UNIDADE 3
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

que há de humano na arte. E isso enriquece nosso olhar, nosso espírito. Tanto é assim que,
após o efeito da arte, nós nos tornamos outros. Após olhar um nenúfar do Monet, todos os
nenúfares do mundo serão maiores e mais perfeitos. O mundo torna-se maior pela arte.
Agora, leia esse texto da poeta Dora Ferreira da Silva:

Sótão
II

Chamar pássaros com o alpiste


de amá-los. Eles pousam nos parapeitos. Nem
sombra de medo nessa aproximação.
Quase me sinto gêmea do que são parados
à beira da janela ou saltando no telhado
recém-chegados. A cordialidade dos pássaros é sutil:
afloram o coração de quem os ama
(SILVA, 1999, p. 281).

Após a leitura desse poema, somos arrebatados pelo sentimento do que é


sagrado, pela verdade humana que há nesse texto. Se nós, após lermos esse poema,
fitarmos os pássaros, sentiremos que eles já não são os mesmos. Eles nos comunicam
com o mistério da vida, com o mistério de Deus. Portanto, a poesia é mítica. Assim como
os cantos entoados em louvor aos deuses míticos, o poema é um louvor ao mundo.

Por isso é importante falar em epifania. A poesia é sempre a revelação do


real. Se procurarmos o significado da palavra epifania teremos: “aparição de Deus”. A
grande epifania cristã é a aparição do Espírito Santo a Maria. Pois bem, na literatura, essa
terminologia tomou um caráter metafórico. A poesia revela o mundo e o torna muito mais
fecundo aos nossos olhos. Ela faz com que o cosmos, as estrelas, o sol, mas também as
ruas sujas, os cachorros abandonados etc., tornem-se revelações, aparições do encanto.
A poesia enraíza o mundo em nossos corações. Veja o que o poeta Carlos Nejar afirma
sobre epifania:

‘A epifania é aparição ou manifestação divina’ – diz o Dicionário Etimológico, de


Antônio Geraldo da Cunha. É o instante de êxtase na palavra. Epifânicos são os
momentos de criação de Clarice Lispector, em que o leitor levita com o texto.
Ou o texto levita com o leitor (ARCHANJO, 1999, p. 7).

O texto literário nos insere em um tempo mágico, o tempo do sagrado. Há um


importante estudioso das religiões, Mircea Eliade, que afirma que o homem vive dois
tempos: um profano e outro sagrado.

Isso parece difícil, mas não é. Pense um pouquinho. O tempo em que ficamos na
fila de um banco é o mesmo tempo do encontro amoroso? Quando vamos pagar nossas
contas, ficamos sufocados, parece que o tempo não passa. Agora quando nós vemos o
ser do amor, o corpo lateja, a respiração fica ofegante, então surge o abraço, a alegria
viva de estar vivo. Esse tempo parece eterno e ao mesmo tempo intensamente veloz. É
o tempo do sagrado, o tempo do amor, o tempo da poesia. Quando lemos um poema,
nós atingimos esse instante mítico, esse momento da epifania. Agora ficou mais fácil
compreender esse processo? Veja então o que Mircea Eliade afirma:

O homem conhece vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico,


ou seja, o seu próprio tempo, a contemporaneidade histórica. Basta ele escutar
uma bela música, ou apaixonar-se, ou rezar para sair do presente histórico e
reintegrar o presente eterno do amor e da religião. Basta ele abrir um romance
ou assistir um espetáculo dramático para encontrar um outro ritmo temporal

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Teoria da Literatura II • •
23
Batatais – Claretiano
UNIDADE 3
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

– o que poderíamos chamar de tempo adquirido – que, em todo caso, não é o


INFORMAÇÃO:
Emílio Moura, poeta mineiro, ao tempo histórico (1991, p. 29).
lado de Carlos Drummond de
Andrade e Pedro Nava, fez parte
da célebre geração que renovou Quando o eu lírico, no poema da Dora, olha as andorinhas, ele, na verdade,
a literatura em Belo Horizonte atinge esse ritmo atemporal. Agora, leia este belo texto de Emílio Moura, poeta tão
dos anos 20 e 30. O fragmento
do poema de Moura foi retirado esquecido quanto magnífico:
de uma de suas obras mais
prestigiadas, Itinerário Poético,
da editora UFMG, pela qual Libertação
recebeu o prêmio de Poesia do
Instituto Nacional do Livro.
Sou um poeta quase místico:
Consulte o site: <members.tripod.
com.br/emiliomoura>. A vida é bela quando é um êxtase.

Ah! não ter um pensamento, um só pensamento no cérebro, não vigiar a


vida, a vida inquieta, a vida múltipla da sensibilidade,
mas vivê-la, de olhos cerrados, num silêncio cheio de ritmos; não ouvir as
palavras frias que mudam o destino,
ou que o fazem semelhante a um autômato;
e saber a toda hora,
saber sempre
que a vida é bela quando é um êxtase
(2002, p. 33).

Na verdade, se você perceber bem, Emílio Moura está confirmando as palavras


de Mircea Eliade: a vida só é bela nesses momentos intensos, nos quais o destino humano
se glorifica e atinge o êxtase.

Há uma poeta mexicana muito importante para a literatura do Ocidente, que


confirma essa força arrebatadora da poesia. Trata-se da Sóror Juana Inês de La Cruz.
Para essa poeta, o poema é uma forma de gozo místico, no qual a alma trava contato com
Deus. Esses momentos líricos foram chamados pelos críticos de cópulas com o divino. A
carne sentia um arrebatamento total, um êxtase que era manifestado pela poesia. Eis uma
outra perfeita epifania. O poema é esse arroubo, esse estertor, essa intensidade.

É importante lembrar que a epifania desvela a realidade em sua nudez total.


Portanto, ela sempre se revela ao poeta por meio das percepções sensoriais, especialmente,
pela visão. O olhar do poeta penetra a realidade, transformando as coisas do mundo em
revelações. Isso é difícil? Calma! Você se lembra das andorinhas da Dora? Inicialmente, o
olhar da poeta captou o pouso dos pássaros. Depois, ela formulou aquela experiência em
poesia. Vejam o que afirma Alfredo Bosi:

A experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizar-se no corpo. A


imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas
do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da
presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do
objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência
da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência (2000, p. 19).
(1) Nelly Novaes Coelho
Pioneira na área da Literatura
Infanto-Juvenil, editou A Como assim? A “imagem é um modo da presença que tende a suprir o
Literatura Infantil (1981), contato direto [...]”? Sim. As andorinhas da Dora são imagens. Eu não preciso ver as
Panorama Histórico da Literatura
Infantil/Juvenil (1983), Dicionário andorinhas verdadeiras e reais, pois as imagens verbais fazem com que eu as perceba
Crítico da Literatura Infantil/ pela imaginação.
Juvenil Brasileira (abrangendo
um século dessa produção,
publicado em 1983 e em Mas, afinal, vocês devem estar se perguntando: o que é uma imagem? Imagem
versão totalmente reformulada é a transformação de uma percepção visual, ou uma outra sensação (como o olfato), em
e atualizada até dezembro
de 1990, sairá brevemente
uma figura, ou melhor, em linguagem. O substantivo, em si, já é uma imagem. Se eu digo
publicado em 4ª edição. árvore, logo me vem à mente o tronco, as folhas verdes, o imenso vegetal, enfim. Esse
processo psicológico é assim descrito por Nelly1:

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[...] a transformação de uma sensação ou percepção (experimentada pelo poeta) em


uma imagem que expresse e comunique aquela sensação ou percepção primitiva.
[...] os processos transfiguradores da realidade jogam sempre com dois elementos
– um termo real e outro ideal. Designamos o primeiro como um elemento do mundo
real que tocou o espírito do poeta; e o segundo, àquele elemento que ele vai buscar
em sua imaginação criadora para expressar a emoção sentida e comunicá-la em
palavras (COELHO, 1974, p. 75-76). INFORMAÇÃO:
Adélia Prado, poeta mineira, que
deu origem ao poema Meditação
Agora, leiam esse texto da Adélia Prado: à Beira de um Poema, está no
livro intitulado Oráculos de maio,
da editora Siciliano.
Meditação à Beira de um Poema Uma ótima opção para se ter na
sua biblioteca pessoal! Confira.
Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca a vira,
constelada,
os botões,
alguns já com o rosa-pálido
espiando entre as pétalas,
jóias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com os limites do tempo,
o grande esforço para que em entendam
pulverizaram-se
diante do recorrente milagre.
Maravilhosas faziam-se
as cíclicas perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede o ouro das corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro
(PRADO, 1999, p. 37-38).

Prestem atenção! Eu preciso ver essa roseira para percebê-la? Não! Pois eu
a vejo com os olhos da alma, com os olhos da imaginação. Esta é a função da imagem
poética: mostrar pela palavra as coisas do mundo. Mas, cuidado! Essa percepção é uma
percepção especial. Não basta, para o poeta, ver a roseira apenas. Ele a percebe com
olhos alumbrados, olhos de encanto, como se a visse pela primeira vez. O poeta vê o
espetáculo do mundo com olhos de criança. Por isso, a roseira tornou-se algo magnífico,
pois o poeta observa, na verdade, um milagre.

Aliás, o mundo é um milagre. Como pode existir tanta cor, tantas formas e
contornos? A realidade das coisas é verdadeiramente um mistério, e o poeta se encanta por
esse mundo. A “hora das coisas” é essa grande hora em que o mundo torna-se epifania,
torna-se aparição do sagrado. A roseira de Adélia leva-me em direção a algo muito maior, à
presença do sagrado. Esse sentimento sublime faz com que a poeta elabore as magníficas
metáforas: as rosas são joias vivas. Calma, em breve nós iremos estudar as metáforas.
Fiquem apenas com esta verdade: a poesia é uma forma especial de ver o mundo.

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Voltando ao nosso assunto, vamos agora compreender alguns processos imagísticos


da poesia. Novamente, vamos usar as abordagens da crítica Nelly Novaes Coelho.

3 Comparação
INFORMAÇÃO:
José Paulo Paes foi poeta,
ensaísta, crítico literário e É quando um dado objeto (ou ser) é comparado a outro. Ambos os elementos
tradutor de poetas, bem como comparados estão unidos sempre por uma partícula comparativa: “como”, “tal como”,
de algumas prosas. Leia seu
livro Melhores poemas (veja “assim como”, “tal qual”. Vejamos o exemplo no poema de José Paulo Paes:
Referências Bibliográficas). Caso
queira saber mais sobre esse Madrigal
poeta paulista, acesse o site
<www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/
paes.htm>. Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.

Como o céu refletido


Nas pupilas de um cão
(PAES, 1996, p. 69).

Notem que o amor é comparado à água, ao pão, ao azul espelhado nos olhos
de um cão. O poeta, de forma pungente e arrebatadora, revela-nos a simplicidade desse
sentir raro e absoluto que é o amor. A pureza da água, o sabor do pão, a cor dos céus,
transfiguram o sentimento humano, objetivando-o, ou melhor, cosmicizando-o.

ATENÇÃO!
Se você gostou desse poema, Mas o que significa tudo isso? Calma, vamos tentar entender o que significa
veja a referência ao livro de Olga essa expressão “cosmicizar”. Em primeiro lugar trata-se de um neologismo criado por
Savary e leia-o na íntegra. Vale
um filósofo francês muito importante, Gaston Bachelard. “Cosmicizar” significa espelhar
a pena!
os sentimentos em objetos da natureza. Ora, o sentimento do homem, enraizado nas
profundezas do espírito, dá-se ao mundo, pois revela-se por meio de elementos externos
ao corpo. Com isso, o que é subjetivo (espiritual) torna-se objetivo (material). Essa é uma
INFORMAÇÃO: outra característica da imagem poética: tornar palpável, ou seja, tornar material o que
Olga Savary é poeta, contista,
é subjetivo e espiritual. Por isso, a poesia diz o indizível. Muitos críticos afirmam que a
romancista, crítica e ensaísta,
tradutora e jornalista. Ela tem poesia possui o dom de exprimir sensações difusas, imprecisas. A linguagem da poesia,
inúmeros livros publicados, tendo sensorial e tátil, exprime realidades misteriosas, regiões inacessíveis à razão.
sido agraciada com vários dos
principais prêmios nacionais de
literatura, dentre eles, prêmio Leiam agora esse trecho do poema de Olga Savary, para que possamos
Jabuti de autor revelação pelo
livro Espelho provisório. Saiba
compreender melhor esse processo:
mais, acessando o site <www.
releituras.com/olsavary_menu. 2
asp>. Pituna-Ara
[...]

(2) Do Tupi: Noite-dia. Olga Caminho só pela casa


Savary é estudiosa das línguas e o viajar pela casa escura
indígenas e ela usa muitas faz soar meus passos mudos
palavras dessas línguas para
nomear os seus poemas.
como em floresta dormida.

Me vêem, eu que não me vejo,


as coisas-de corpo inteiro.

O real está me sonhando,


o real por todo lado.
Não sou eu que vivo o medo;
em seu tapete de sombras,
por ele é que sou vivida.

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Aonde me levam estes passos


que não soam e que não vão:
às armadilhas do vôo
como a paisagem no espelho
espatifado no chão?
ATENÇÃO!
(SAVARY, 1998, p. 131). O Prêmio Jabuti, instituído
pela Câmara Brasileira do livro
desde 1959, é o mais importante
Notem que interessante: não é a subjetividade que sente o mundo, mas ela é prêmio literário do país. Mobiliza,
que é sentida pelo mundo. Não é o eu que vê o espaço da casa, mas, sim, esse espaço que anualmente, editores, gráficas,
tradutores, capistas, ilustradores
vê o eu. Essa experiência é manifestada pelo belo paradoxo (paradoxo é a anteposição
[...]. São selecionados três
de realidades opostas, neste caso, sonho X real): “O real está me sonhando”. Mas vocês finalistas em cada uma das 17
devem estar se perguntando: como isso pode acontecer? Isso é impossível! As coisas categorias e, depois, escolhido
o vencedor. Entre os livros
inanimadas não sentem, não sonham. Se vocês pensarem dessa forma, vocês estarão indicados para o Prêmio Jabuti,
se negando a grande viagem da poesia, ou seja, a viagem da imaginação. Na verdade, os associados da CBL votam
para a escolha do livro do ano
sempre é o “eu” que sente. Entretanto, ele espelha esses sentimentos no mundo, ao ponto de ficção e o livro do ano de
de imaginar que as coisas tornam-se sensitivas. não-ficção. Saiba mais sobre
esse assunto acessando o site
<www.cbl.org.br>.

4 Metáfora
INFORMAÇÃO:
Na metáfora, os elementos comparados sofrem uma consubstanciação, ou seja, Lya Luft, gaúcha, professora
eles passam a se identificar tão profundamente que um passa a ser o outro. Nesse caso, as de literatura, é mestre em
Linguística e Literatura Brasileira.
partículas comparativas desaparecem. Nem sempre esses dois elementos aparecem. Um Sua atividade literária inclui a
deles pode ficar subentendido no texto. Vejamos agora um poema de autoria de Lya Luft: tradução, especialmente de
autores de língua inglesa e
alemã. Escreve mensalmente
Canção Para A Mulher Que Canta para a revista Veja. Consulte
(para Maria Bethânia) mais sobre essa poetisa no
site <http://www.releituras.com/
lyaluft_bio.asp>.
Mulher que és pássaro e és fonte,
teu canto lança as redes da beleza
sobre nós, que em penumbra e espanto
contemplamos teu vôo.
Teu fervor vai bordando uma paisagem
onde seremos deuses, cravada
a tua voz em nossa alma.

No exílio desse palco de surpresas,


em sombra e luz entregue e solitária
pairas sobre nós, diante de nós te acendes
como faríamos, transidos e encantados,
se tivéssemos a chama que te queima
e esse dom de ser rio e de ser ponte
(LUFT, 1997, p. 253).

Todo esse texto de Lya Luft está repleto de metáforas. Inicialmente, ela nomeia
a cantora com as palavras “pássaro” e “fonte”. Essas duas metáforas revelam justamente
a leveza da cantora e a pureza de sua voz. Outra metáfora é a voz que lança rede. Sentir-
-se encantado por uma voz é sentir-se preso a ela. A voz “borda” uma paisagem, ou seja,
ela faz nascer um lugar novo. O canto possui essa magia: fazer as coisas ficarem belas,
tornar os lugares sempre novos e encantadores. Depois, a cantora torna-se “rio” e “ponte”,
ou seja, torna-se passagem, nos remetendo para o outro lado dessa ponte. Essa metáfora
da ponte revela o quanto essa voz faz transcender quem a ouve. Quem escuta esse
canto é transportado para o cerne da própria beleza. Vejam, em todas essas metáforas

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há uma relação de semelhança: pássaro (voo)/leveza da voz, fonte/pureza da voz, rede/


beleza que prende, ponte/transcendência que o canto produz nos ouvintes. Perceba que
também a metáfora se baseia no analogismo: um elemento é sempre comparado a outro.
Entretanto, diferentemente da comparação, na metáfora a analogia é mais sutil, ela fica
implícita, pois os conectivos de comparação desaparecem. Agora leiam esse poema do
poeta grego Níkos Eggonópoulos, na tradução de José Paulo Paes:

os seus cabelos são como cartão


e como peixe
os seus dois olhos são
como uma pomba
a sua boca
é como a guerra civil
(da Espanha)
o seu pescoço é um cavalo
vermelho
[...]

os seus cabelos
são
uma lâmpada de querosene
acesa
as suas espáduas são
o martelo dos meus prazeres
as suas costas
são o
olho de vidro
do mar
o arado
dos falsos ideogramas
apita
aflitivamente
na sua cintura
nas suas nádegas
são
cola de peixe
as suas pernas
são como relâmpagos
(EGGONÓPOULOS apud PAES, 1997).

Vejam que texto doido!!! Mas fiquem tranquilos, nenhum texto é capaz de nos
vencer! Há uma importante informação que não podemos ignorar. Eggonópoulos era um
poeta surrealista. Os poetas surrealistas buscavam visões oníricas, visões de sonho no real.
Com isso, eles intentavam desarticular a realidade, revelando o que ela tinha de absurdo.
Dizer que um pescoço é um cavalo pode não ficar tão esquisito se nós aceitarmos o jogo.

Se lembrarmos o quanto o cavalo se revela elegante em seu cavalgar, podemos


lembrar a elegância de um pescoço ereto e charmoso. As espáduas são martelos do meu
prazer! Que prazer é esse que chega a doer?! Vejam, nessa metáfora, há um exagero: o
desejo é tão intenso, tão vertiginoso que dói. Usa-se a dor para dizer o contrário, ou seja,
para revelar o prazer. Novamente, temos um paradoxo. Essa é a função da metáfora:
gerar surpresa, espanto.

A metáfora verdadeiramente poética arrebata e incomoda o leitor. É por isso que


muitas pessoas acham a poesia uma coisa esquisita. Elas perderam a capacidade de imaginar.

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Há um tipo de metáfora que perde essa força, torna-se clichê. Peguemos como
exemplo a seguinte metáfora: “arranha-céu”. Nós já nem percebemos mais as unhas
roçando o infinito azul. Logo nos vem à mente a imagem de um prédio. A analogia deixou
de existir. “Arranha-céu” passa a ser sinônimo de prédio. Esse tipo de metáfora não é, de
forma alguma, poética. Muitas pessoas (sem imaginação), que se julgam poetas, repetem
uma série de metáforas como essas, intituladas “metáforas gastas”, e se acham grandes
criadoras. Isso revela uma coisa importante: pessoas assim não são leitoras.

Um leitor de poesia vai refinando o seu gosto, vai estimulando a própria


imaginação. Por isso, todo poeta verdadeiro, todo poeta digno de nome, é um erudito.
Ele conhece inúmeras metáforas, desde as de Dante Alighieri até as de Drummond. Essa
educação sentimental burilou seu gosto, sua sensibilidade. É esse exercício inesgotável (o
da constante e incansável leitura) que lhe possibilitou escrever belos poemas. Causa-nos
arrepio, por exemplo, versos como este: “O amor é uma chama eterna”, ou “A paixão arde
o coração”. Isso são clichês! O senso comum adora repetir isso.

A grande poesia é singular porque é a invenção de uma mente criadora, de uma


imaginação que percorre os caminhos onde ninguém trilhou, ou melhor, o poeta diz aquilo
que as multidões não dizem. Eis também por que a poesia é considerada esquisita por
muitos. Trata-se de um discurso raro, um discurso que muitos não estão acostumados.

Para um poeta francês muito importante (nós iremos conhecê-lo melhor na


próxima unidade), Charles Baudelaire, a imaginação era a “rainha das faculdades”. O
que ele pretendia ao afirmar (metaforicamente) que a imaginação era uma rainha? Ele
queria justamente revelar o quanto a capacidade de sonhar, de entrar em devaneio (“usar
a imaginação”), é fundamental para enriquecimento da alma humana. Imaginar, para
Baudelaire, era a faculdade psíquica mais importante. Ela é maior até mesmo que o
raciocínio lógico. E Baudelaire tinha razão. O ser humano que não imagina é monótono e
restrito. Já o sonhador transforma o mundo em fantasia, em aventura. Os sonhadores são
seres apaixonados e arrebatados. Eles fundam o universo, inauguram o cosmos.

Eis a importância da imaginação para o processo metafórico: é ele que liga, por
exemplo, a estrela à pedra, formando a seguinte metáfora: “a pedra do infinito despencou
no abismo do eu”. É lógico que a “pedra do infinito” é a estrela cadente e o “abismo do
eu” é o sentimento de entusiasmo que esse fenômeno causou no poeta. E veja, a estrela
já nem sequer cai em algum chão do mundo, mas no interior do eu. O sentimento de
felicidade é tão grande, que o poeta imagina a estrela despencando dentro do próprio
peito. É claro que a estrela não adentra a carne. Entretanto, é preciso fazer de conta.
Se aceitarmos esse jogo, nos apaixonamos pelo poema! E tudo isso graças à “Rainha das
faculdades”.

Há outro fator fundamental na metáfora. Nem sempre as analogias se dão de


forma casual. De acordo com o crítico francês Jean Cohen, existe entre os elementos
analógicos da metáfora um fator em comum, ou melhor, uma característica em comum.
Essa característica é chamada de sema.

Vejamos um exemplo bem banal, um clichê: “o ouro dos cabelos”. Há tanto em


ouro quanto em cabelo um sema em comum. Qual seria esse atributo, essa característica
em comum? Ora, a cor!! O ouro não possui uma cor amarela? E os cabelos loiros? Não
possuem também uma cor semelhante? Esse processo metafórico baseia-se na lógica,
no raciocínio e, por isso, trata-se de uma metáfora mais comum, consensual. Veja a
quantidade de metáforas como estas:

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Batatais – Claretiano
UNIDADE 3
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“as pérolas de sua boca”: sema em comum – a cor branca dos dentes e das
pérolas.

“o rio que nos leva para a morte”: sema em comum – o movimento do rio e o
movimento do tempo que leva os seres vivos para o fim de si mesmos.

“o veludo de suas faces”: sema em comum – a maciez da pele e do veludo.

Nem sempre essas metáforas são clichês. Há algumas delas que são muito
utilizadas pelos poetas. Entretanto, quando se trata de um bom poeta, ele sempre as
utiliza com bom senso e sensibilidade.

É importante notar que, nesses casos, o sema é que nos permite encontrar o
sentido da metáfora. Tal fato é que facilita a decifração dessas figuras, pois há nelas um
percurso lógico, capaz de orientar o leitor: a característica em comum.

Entretanto, há um tipo de metáfora muito difícil de ser traduzida. Nesse caso,


o percurso lógico fica oculto. Não conseguimos detectar o sema em comum. Na verdade
o sema existe, mas encontra-se escondido. Isso eleva a qualidade da metáfora a alturas
infinitas. São as chamadas metáforas de invenção.

Lembram-se do poeta surrealista Eggonópoulos, que vimos há pouco? Pois bem,


as metáforas dele são todas de invenção. Elas nascem de experiências muito singulares,
de vivências extremamente subjetivas. Um grande inventor desse tipo de metáfora é
o poeta francês Stephane Mallarmé. Jean Cohen nos traz um importante exemplo de
Mallarmé: “Azuis ângelus”.

E agora José, como nós vamos identificar o significado dessa metáfora? Bem,
ângelus são as badaladas de um sino. Isso nos remete a uma atmosfera religiosa. O
som do sino simboliza muitas coisas: a morte de alguém, a hora de uma missa ou do
encontro com Deus. Agora, note uma coisa interessante. O som do sino é azul! Como isso
é possível? Calma, nós somos detetives perspicazes, logo encontraremos a solução dessa
charada. Além de metáfora, essa expressão é uma sinestesia. Mas o que é uma sinestesia,
meu Deus?! Sinestesia (nós iremos estudá-la mais detalhadamente logo, logo) é a fusão
de sensações diferentes. Nesse caso, temos uma cor (azul) e um som (o badalo do sino).
Visão e audição confundem-se e fundem-se.

Agora, se imaginarmos o lugar onde o sino fica a metáfora se revela. O sino não
fica nas torres das igrejas, perto do azul dos céus. Pois então! O poeta ao ouvir o sino
olhou para o céu e viu a cor azul. Intuitivamente ele inventou essa metáfora, misturando
imagens distantes, mas ao mesmo tempo muito próximas.

Ufa!!! Essa metáfora foi complicada, você não achou? Mas, calma. Com jeitinho,
nós iremos nos acostumando, até tudo tornar-se mais acessível. Lembre-se de que
o gostoso da poesia é justamente esse susto, esse estranhamento. Para que ler algo
monótono e sem aventura?! Sobre esse tipo de metáfora, veja o que afirma Nelly:

No momento, porém, em que as associações (entre os termos da metáfora


postos em analogia) – perdão, o que está em parênteses é meu, eu o
incluí apenas para tornar acessível a citação – tornam-se de índole intuitiva
e não lógica, ou então não está presente um elemento pertencente ao termo
real, a interpretação exata da metáfora torna-se difícil e por vezes impossível.
O poema, neste caso, fica aberto às mais variadas interpretações, sem que se
possa decidir qual é a mais verdadeira (a não ser que o próprio poeta elucide)
(COELHO, 1974, p. 78, grifos nossos).

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Veja bem, isso é superinteressante. O poema permite várias interpretações.


E aqui nós temos outra característica não só da poesia, mas de todo texto literário: as
palavras do poema podem possuir vários significados. No texto poético, quando aparece,
por exemplo, a palavra pedra, essa palavra deixa de ter o seu significado de dicionário.
Ela passa a representar muitas outras coisas. Lembrando o que você aprendeu no primeiro
semestre, no texto literário, a linguagem é usada de forma conotativa. Esse é o caso da
famosa pedra de Drummond. No poema “No meio do caminho”, a pedra a qual Drummond
se refere pode significar muitas coisas, como, por exemplo, os obstáculos (as dificuldades)
da existência. Vamos ler o poema de autoria de Carlos Drummond de Andrade:

No Meio Do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do


caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas


tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra tinha
uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra
(ANDRADE, 1992, p. 15).

Nossa mestra, Nelly Novaes Coelho, revela-nos o quanto essa pedra é enigmática,
explicitando os vários sentidos dessa palavra. Vamos dar uma olhadinha:

Qual o real significado dessa “pedra” e desse “caminho”? Centenas de


interpretações já foram construídas na tentativa de desvendar o poema. Serão
obstáculos à ação do homem? Será o enigma da existência? Ou o poema
registra apenas signos reais? O caminho seria simplesmente um caminho, por
onde ia o poeta quando deparou com aquela pedra obstruindo-lhe a passagem?
Diante da reflexão existencial que caracteriza a poesia drummondiana é, no
entanto, difícil não sentirmos naquele “caminho” e naquela “pedra” densos
signos metafóricos carregados de significações ocultas. O que importa, afinal, é
que o poema continua vivendo, entregue a cada um de nós, oferecendo a cada
um o que quisermos encontrar nele (1974, p. 78).

Iremos, entretanto, fazer apenas um reparo nessa afirmação da Nelly. Não


podemos encontrar tudo em um poema, pois não podemos ver nele aquilo que simplesmente
desejamos ver.

Umberto Eco, importante teórico da literatura e grande ficcionista italiano, afirma


que a obra literária é aberta, ou seja, ela realmente permite várias leituras. Entretanto,
não podemos fazer leituras infinitas. O próprio texto sinaliza essas interpretações.

Eu não posso simplesmente dizer que a pedra de Drummond é uma metáfora


da inveja, ou do ódio que o eu lírico sente por alguém. Eu não posso afirmar, por
exemplo, que desse ódio nasce um desejo secreto: o eu lírico quer apedrejar alguém!
Vejam, interpretações como essas são equivocadas. Eu preciso ter bom senso, interpretar
ponderando as informações que o texto me proporciona. Eis a importância de se ler
os textos dos críticos. Eles revelam os fundamentos da obra do autor, os parentescos
literários (os escritores lidos pelo poeta), as características fundamentais de sua escrita. O
crítico é sempre uma pessoa erudita, uma pessoa que conhece profundamente a literatura
de diversos países. Por isso, nós leitores iniciantes precisamos lê-lo. Ele nos orienta em
nossas análises. Se eu ler o que os críticos afirmam sobre Drummond, eu irei constatar
que o poeta de “No meio do caminho” tinha fortes influências do existencialismo francês,
corrente filosófica que pontuava a angústia diante da morte. A pedra não poderia ser uma

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Batatais – Claretiano
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metáfora para a morte? Mas é claro que sim. E para confirmar a minha leitura, bastaria eu
citar o que os críticos afirmam. Assim, eu estaria embasando a minha leitura e evitando a
superinterpretação ou a análise equivocada.

5 E-Referências
Chamada numérica

Figura 1 - Nelly Novaes Coelho: disponível em: <http://www.geocities.com/~rebra/


autoras/13port.html>. Acesso em: 23 mar. 2009.

6 Referências Bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

ARCHANJO, Neide. Epifanias. Rio de Janeiro: Record, 1997.

______. Todas as horas e antes: poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2004.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. Tradução de Álvaro Lorencini e Anne


Arnichand. São Paulo: Cultrix, Universidade de São Paulo, 1974.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico religioso. Tradução
de Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

LUFT, Lya. Secreta mirada. São Paulo: Mandarim, 1997.

MOURA, Emílio. Itinerário poético: poemas reunidos. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

PAES, José Paulo. Melhores poemas. Seleção de Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Global,
2000.

______. Os perigos da poesia e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

PRADO, Adélia. Oráculos de maio. São Paulo: Siciliano, 1999.

SAVARY, Olga. Repertório selvagem: obra reunida. São Paulo: Multimais, 1998.

SILVA, Dora Ferreira da. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

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32 Claretiano – Batatais
ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA

UNIDADE 4
LINGUAGEM POÉTICA: LINGUAGEM
IMAGÍSTICA DA POESIA II

Objetivo
• Identificar e distinguir os seguintes recursos imagísticos da
poesia: metonímia, sinestesia, antítese, paradoxo.

Conteúdos
• Metonímia.

• Sinestesia.

• Antítese.

• Paradoxo.
UNIDADE 4
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1 Introdução
Na Unidade 3, pudemos conhecer alguns processos imagísticos na poesia, como
a comparação e a metáfora.

Nesta unidade, continuaremos a estudar esses processos: estudaremos a


metonímia, a sinestesia, a antítese, o paradoxo e a prosopopeia.

Vamos, então, a ela!

2 Metonímia
A metonímia é muito confundida com a metáfora. Assim como esta última,
a metonímia também é uma “transnomeação”, ou seja, designamos algo usando outro
nome, expressamos um elemento por meio da nomeação de um outro que lhe é distinto.
Entretanto, no caso da metonímia, há uma ligação essencial entre os dois termos postos
em questão.

De acordo com Nelly:

A metonímia responde [...] à fórmula lógica pars por parte (parte por partes),
em que algo é citado por algumas das relações mantidas com o verdadeiro
fenômeno ou objeto que ele substitui (de causa a efeito, de matéria a objeto,
de continente a conteúdo, de ação a sujeito, do genérico ao específico, etc.)
(COELHO, 1974, p. 79, grifos nossos).

Vamos ver alguns exemplos:


•  De ação a sujeito: Seu andar era suave – a ação de andar substitui o sujeito
que anda.
ATENÇÃO! •  De matéria a objeto: A pele dela queimou-lhe o peito. O sujeito amante
Conheça o poema Assédio na
íntegra. Leia a obra A regra acaraciou o ser amado. Há duas metonímias: “pele” substituindo a mulher e
secreta (Editora Landy), que “peito” substituindo o ser amado.
traz esse poema, ou mesmo leia
outros textos de Sebastião Uchoa

Leite. Vale a pena! Agora leia esse poema de Sebastião Uchoa Leite:

Assédio

fechar portas
sem deixar frestas
trancar
cerrar trincos
passar ferrolhos
lacrar
contra
os sobressaltos
do receptáculo
onde entra
o inseto sub-reptício
o susto
palpitações
e vêm

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34 Claretiano – Batatais
UNIDADE 4
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

os que tomam de assalto


e arremetem
[...]
(LEITE, 2002, p. 63).

Vejam as seguintes palavras: “portas”, “trincos”, “ferrolhos”, todos esses


elementos representam as partes de uma casa, portanto, são metonímias de casa. Se
usássemos uma linguagem referencial, sem o uso das metonímias, ficaria assim: “Fechar
a casa”. Entretanto, ao fazer isso a poesia morreu.

Nesse poema de Sebastião há aquele sentimento claustrofóbico muito presente


na obra de Franz Kafka, um importante autor de língua alemã. Se lembrarmos, por
exemplo, o seu célebre romance A metamorfose e lembrarmos do homem-inseto que vive
preso em um quarto, fugindo de tudo e de todos, veremos esse mesmo sentimento de
claustrofobia e angústia. Essa angústia revela a situação do homem moderno: preso em
prédios apertados, casas superprotegidas por muros e grades (proteções contra assaltos).
Vejam, já estou interpretando o poema! Bastou buscar a analogia com a obra de Kafka, eu
já revelei um sentido no poema. Aos poucos, vocês também irão conseguir isso.

Agora, leiam esse poema da maravilhosa Lara de Lemos, poeta gaúcha que,
infelizmente, é pouco lida. Antes, porém, de lhes revelar o poema, é necessário um
comentário. Infelizmente, o Brasil possui poucos leitores de poesia. Até mesmo os leitores
INFORMAÇÃO:
especializados tornam-se omissos, pois eles sempre estão lendo os mesmos autores. Há
Lara de Lemos é outra poeta,
grandes poetas, vivos e mortos, que precisam ser descobertos. É o caso de Emílio Moura assim como Hilda Hilst, que tem
(que vocês já conhecem), poeta do modernismo mineiro e grande parceiro de Drummond, grande participação em nossa
literatura. Utilizamos o poema
escritor muito importante e que é um verdadeiro fantasma no Brasil. Reminiscências, que está no seu
último livro Dividendos do tempo,
da editora L&PM. Uma obra que
Imagine os poetas vivos. A grande massa lê apenas o que vira celebridade. Isso
vale a pena conferir na íntegra.
é ótimo, pois dentre esses autores estão, por exemplo, um Drummond, uma Adélia Prado, São da mesma poeta Canto
grandes poetas, escritores espetaculares. Entretanto, há muita gente boa escrevendo, breve e Poço das águas vivas.

mas, que quase ninguém se interessa por autores desconhecidos. Uma grande poeta,
Hilda Hilst, vivia reclamando, e com razão, que ninguém a lia. Então vamos conhecer uma
autora fantástica que merece a nossa atenção: Lara de Lemos.

Reminiscências

1 – Do avô – as botas,
   o rifle de caçar
   perdizes e codornas.

2 – Da avó – vasilhas
   fumegantes de salsa
  e mangerona.

3 – Das tias – rendas


   vestidos de valsar
  modas antigas.

4 – Das meninas – laços de fita,


   mãos de ciranda,
   rodas e cantigas.

5 – Depois, lágrimas
   em água e sal
  sorvidas
(LEMOS, 1995, p. 23).

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Batatais – Claretiano
UNIDADE 4
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

As estrofes um, dois, três e quatro possuem uma mesma estrutura. São, na
verdade, estrofes paralelísticas, semelhantes. Nessas estrofes, sempre é enunciado um
substantivo, um nome de alguém querido, e depois um travessão seguido de algumas
palavras. São versos densos, constituídos por termos maciços e concretos (substantivos
concretos). Tudo o que vem após o travessão são metonímias dos seres amados (o avô,
a avó...). Portanto, a estrofe parte do todo e vai em direção às partes constituintes dos
seres queridos. Por exemplo, as botas, o rifle, as perdizes são metonímias do avô.

Essas metonímias vão sempre do todo para as partes que a constituem (o ser =
a veste; o ser = ao objeto que lhe pertencia; o ser = a uma parte de seu corpo). Se lermos
o título, verificaremos que tudo o que está enunciado nesses versos pertence ao passado
do eu lírico. O eu se lembra dos seres queridos. Portanto, as quatro primeiras estrofes são
do domínio de um tempo distante.

Quando lemos a última estrofe, nos deparamos com um “Depois”. Com isso,
podemos afirmar que o momento dessa última estrofe vem depois do passado. Trata-
-se, portanto, do presente da enunciação, momento do agora. E por que tanta tristeza
nesse eu que recorda e chora? Simples, o eu lírico é, na verdade, um sobrevivente. Os
seres queridos já não mais existem, eles morreram. O travessão acentua essa ideia: são
seres atravessados ao meio, cortados, tal como as estrofes são cortadas pelos travessões.
Depois há outro fator que confirma isso. As metonímias são fragmentos desses seres,
restos. Da totalidade do ser amado só sobraram restolhos, coisas velhas.

O coração da gente bate mais forte, não é mesmo? Afinal, tal poema está
repleto de verdade humana. Nós nos enxergamos nele, pois também temos seres amados
que já não mais existem. Ao ler esse poema de Lara, encontramos uma voz amiga que
sofre junto com a nossa. Vejam, essa é a grande alegria da poesia: encontrar o humano
universal que há em todos nós.

3 Sinestesia
A sinestesia, como já vimos, é a figura em que ocorre a mistura de sensações.
Um exemplo banal seria algo como “perfume doce”. Usa-se uma sensação do paladar para
indicar uma outra, olfativa. A poesia moderna quebrou todas as regras da poesia clássica.
A sinestesia foi uma figura muito usada pelos poetas modernos, pois ela propiciava uma
visão singular da vida. Vejam o que afirma Nelly:

A verdadeira poesia sempre resultou de uma quebra na maneira convencional


de ver o mundo. Foi sempre a revelação de algo inesperado numa coisa, ser
ou fenômeno já conhecido. No limiar do século XX, porém, e praticamente
definindo poeticamente o nosso século, a ruptura do convencional, revelada
pela poesia, assume uma dimensão e significação não encontrada antes. Essa
ruptura se revela em todos os processos estilísticos, mas em particular na
mescla de sensações, fenômeno que recebe o nome de sinestesia [...] (COELHO,
1974, p. 82-83).

Essa figura tornou-se famosa entre os poetas de uma escola literária surgida no
fim do século 19, o simbolismo. Na verdade, os simbolistas encontraram na experiência
da sinestesia um importante exercício poético. Tal exercício possui raiz na obra de um
importante poeta francês, Charles Baudelaire. Os simbolistas eram seguidores desse
grande escritor, o autor das Flores do mal. De acordo com Baudelaire, a visão se dava pela

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36 Claretiano – Batatais
UNIDADE 4
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fusão de todas as sensações. Percebia-se o mundo pelo olhar, mas nessa experiência o
corpo todo estava em atividade, em exercício. Via-se o mundo pelo corpo todo: pelo tato,
pela audição, pelo olfato, pelo paladar. Esse olhar especial está bem descrito no famoso
poema Correspondências:

Correspondências

A natureza é um templo onde vivos pilares


Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam


Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,


Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes.

Com a fluidez daquilo que jamais termina,


Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente
(BAUDELAIRE, 2002, p. 109).

Esse soneto de Baudelaire é extremamente complexo. Calma! Não fiquem aflitos.


Esse texto desafia, ao longo de mais de cem anos, inúmeros críticos de muitas nações. É
um poema hermético. Então, não se preocupem. Não compreender o poema é o normal.

Agora, vejam que o poeta mistura muitas sensações: “aromas frescos”, “Doces
como o oboé”, “verdes como a campina”. Como pode um aroma ter frescura (sensação
tátil), ser doce (paladar) como a música (som do instrumento musical oboé) e ter cor
(verde)? Tudo isso são sinestesias. Figura de linguagem que revela, portanto, o olhar
especial do poeta.

4 Antítese
A antítese é a confrontação de elementos opostos, em tempos distintos. Por
exemplo: Às vezes, choro, em outras, rio. Um exemplo célebre de antítese podemos
encontrar no poema de Vinícius de Moraes, Poética I:

Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

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Outros que contem


Passo por passo
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço
– Meu tempo é quando
(MORAES, 1985, p. 277).

No fragmento “De manhã escureço/ [...] De noite ardo”, podemos encontrar a


oposição entre escuridão (escureço) e luz (ardo). Arder simboliza o fogo, a luz. O fogo,
metaforicamente, arde o corpo. Que fogo é esse? Vejam, é a velha metáfora “fogo do
amor”. Entretanto, como Vinícius é um grande poeta ele revitalizou essa metáfora, deu
vida novamente a ela, ao usá-la de forma indireta. Assim, ele evitou o clichê. O escurecer
também é metáfora, ou seja, de manhã os desejos estão apagados, isto é, o escritor dorme.
Portanto, a noite é o reino do poeta. É nela que ele encontra o amor e celebra o desejo.

5 Paradoxo
Figura que expressa ambiguidade, a dualidade inerente a certas realidades
ou fenômenos. No paradoxo, acontecimentos, ou elementos opostos, convivem
consubstanciados. Vejamos agora um poema de Emílio Moura:

É Preciso

Agora, que te encontrei, é como se eu já te houvesse perdido.


É preciso voltar e procurar de novo o que não encontrarei nunca.
É preciso voltar e gritar bem alto que tu não existes,
gritar bem alto que não te vejo, nem te compreendo,
gritar bem alto que não sou teu.
Sim, é preciso que eu me convença
de que, mesmo quando te encontrei – forma efêmera, sonho ou reflexo de
outro sonho, tu já não existias,
e de que serei forte e frio como aquele que não quer viver,
para te matares em mim, caso tu ressuscites
(MOURA, 2002, p. 99).

O poema inicia-se com um paradoxo. Encontrar é como perder. O segundo


verso também revela uma situação paradoxal: procurar o que nunca será encontrado.
Na verdade, o eu lírico expressa um desencontro amoroso. Quantas vezes nós não
encontramos pessoas fascinantes, pessoas que despertam nossos sentimentos e com
quem nunca compartilhamos nossas vidas? O encontro é, ao mesmo tempo, desencontro.
Algo tão corriqueiro é, entretanto, expresso de forma sutil e lírica pelo poeta.

6 Prosopopeia
INFORMAÇÃO:
Donizete Galvão, poeta mineiro,
A prosopopeia, ou personificação, ocorre quando atribuímos características
é autor do poema Sopro, que
está inserido no seu livro Carne humanas a coisas inanimadas ou a animais. Vejamos um excerto do poema Sopro, de
e o tempo, da editora Nankin. Donizete Galvão:
Carne e o tempo foi indicado
para o Prêmio Jabuti em 1998.

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38 Claretiano – Batatais
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Sopro

o vento
balança
a amoreira
joga
amoras
que sangram
no chão

o vento
arrepia
a água
enruga
o açude
que remonta
sua mandala

o vento
espicaça
os pavões
entorta
as caudas
que encerram
sua majestade

o vento
benze
a nuca
lambe
o corpo
que aspira
seu frescor
(GALVÃO, 1997, p. 23).

Olhem! Como é possível as amoras terem sangue? Temos, nessa imagem, uma
característica de um ser vivo (sangrar) dada a objetos inanimados (amoras). Observem
também a disposição gráfica do poema.

Por que será que o poeta Donizete Galvão dispôs os versos em desalinho? Ora,
ele não está descrevendo determinados acontecimentos nos quais o vento é enfocado?
Pois bem, os versos estão em desordem como se estivessem voejando como o vento,
balançando graças ao sopro do vento. E afinal, por que o autor iria lidar com algo tão
banal? Evidentemente essa banalidade é aparente.

Vamos nos atentar para a mensagem profunda do texto? Pois bem, o vento é
uma metáfora! Mas metáfora do quê? Observem: o vento não se movimenta e faz sangrar,
morrer as amoras? Agora pensem. São as amoras, verdadeiramente, que morrem? Lógico
que não. Esse papel cabe aos seres vivos. Qual é o vento que aniquila a vida? Qual
a correnteza que leva a vida embora? Eis a resposta do enigma: o tempo, chamado
pelo famoso filósofo pré-socrático, Heráclito, de Tempo Rei. Enfim, o tempo faz a vida
despencar e sangrar. O tempo movimenta o mundo, faz girar os acontecimentos. Agora,
água tem rugas? Também não.

Nova prosopopeia: a água corresponde à pele. Portanto, isso confirma o que


afirmamos, ou seja, só o tempo pode enrugar a pele do homem. E a beleza dos pavões?
Nova metáfora. Trata-se da beleza física, essa mesma beleza humana, glorificada, por

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Batatais – Claretiano
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INFORMAÇÃO: exemplo, em rostos magníficos, como os de Greta Garbo, Audrey Hepburn. Enfim, o tempo
Para realizar a atividade desta
unidade, utilizaremos um poema
leva embora o vigor da juventude. Por fim, a epifania: apesar da ruína e da morte, há o
da poeta carioca Denise Emmer, frescor, o sentimento sublime de sentir o vento (agora, sim, o verdadeiro vento) roçar o
Cantiga triste, que se encontra nosso rosto.
na sua obra Poesia reunida,
da editora Ediouro. Além de
uma excelente poeta, Denise é
flautista, cantora, violoncelista
e já tocou com a Orquestra
de Câmara da Escola Villa
Lobos. Consulte o Caderno de
8 Referências bibliográficas
atividades e interatividades para
interar-se do assunto. Saiba mais
sobre Denise Emmer acessando ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
o site: <http://www.palavrarte.
com/Equipe/equipe_demmer. BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Organização de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova
htm>.
Aguilar, 2002.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

EMMER, Denise. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

GALVÃO, Donizete. A carne e o tempo. São Paulo: Nankin, 1997. (Coleção Janela do
Caos).

LEITE, Sebastião Uchoa. A regra secreta. São Paulo: Landy, 2002. (Coleção Alguidar).

LEMOS, Lara. Dividendos do tempo. Porto Alegre: L&PM, 1995.

MORAES, Vinícius de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.

MOURA, Emílio. Itinerário poético: poemas reunidos. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

CRC • • • Teoria da Literatura II


40 Claretiano – Batatais
UNIDADE 5
INTERPRETAÇÃO DO POEMA

Objetivos
•  Compreender e explicar a importância da poesia como
fenômeno da linguagem.

• Aplicar à leitura do poema os princípios teóricos estudados.

• Interpretar e explicar a pluralidade de leituras possíveis.

Conteúdos
• Aspecto formal do poema.

• Leitura crítica do texto.

• Pluralidade das interpretações.


UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

1 Introdução
E aí, vamos continuar? Nas unidades anteriores, vimos o quanto a imagem é
fundamental para o poema. É verdade: ela é a essência de um poema. Não existe um
texto poético sem figuras que apelam para as nossas sensações. O olhar, o olfato, o tato,
todo o nosso corpo está centrado na leitura do poema. Não usamos apenas os olhos na
leitura do texto lírico, mas todo o corpo. Nosso corpo, em sua completude, trepida na hora
da leitura. Somos arrebatados por completo. Nesse processo, o poema atinge, pelo nosso
corpo, o centro de nós mesmos, o coração, os nossos sentimentos.

Agora vamos nos ater à leitura do poema. Como deve ocorrer a leitura de um
texto? Antes de mais nada, é preciso esclarecer que, para nós, estudantes de Letras,
o fundamental é o texto. Hoje, vigora uma nova corrente crítica, chamada Estudos
Culturais, que usam o texto para ilustrar teorias alheias à teoria da literatura. Por exemplo,
um psicólogo vai estudar o complexo de Édipo na obra da Hilda Hilst. Meu Deus! Ele vai
encontrar muito material para a sua pesquisa, pois toda a obra da Hilda trava um contato,
um diálogo com o pai. Dessa forma, o psicólogo usa o poema para exemplificar sua tese,
sua pesquisa. Isso seria um estudo do poema, ou um estudo de psicologia? Com certeza,
de psicologia, pois o poema não foi considerado em sua riqueza, em sua singularidade. O
poema não foi considerado como linguagem, forma.

E agora, esse tipo de estudo é válido? Com certeza, mas não podemos nos
restringir somente a esse tipo de leitura. Precisamos pluralizar as leituras, provocar
dilemas, problematizar. Nós, como estudantes de Letras, temos que encarar o fenômeno
literário como um fenômeno da linguagem. Por isso, foi necessário estudar, nas unidades
anteriores, todas aquelas figuras, pois são elas que imprimem poeticidade ao texto. São
elas que transformam um texto em poema.

Outro tipo de leitura que não leva em consideração a linguagem, o aspecto


formal do texto, é aquela que busca ilustrar a biografia do leitor com o poema. Vocês se
lembram, no módulo anterior, do Soneto inglês nº 2 de Manuel Bandeira, que vimos no
semestre anterior? Muitas pessoas poderiam ver naquele texto todo o sofrimento do poeta
Manuel Bandeira, poderiam encontrar ali toda a dor causada pela doença que o escritor
vivenciara. Entretanto, essa leitura se tornaria equivocada.

Por que nós, necessariamente, temos que buscar a doença do poeta no texto?
Em nenhum momento, tal informação está descrita, objetivamente, no poema. O que o
poeta sentia, o que o poeta vivia no momento em que ele escreveu o texto perdeu-se, não
há como descobrir. Vejam que ele não indicou, em nenhum momento, no Soneto inglês nº
2, as causas do seu sofrimento. Pode até ser a dor causada pela enfermidade. Mas quem
pode afirmar isso com 100% de certeza? Ninguém. O poeta foi mais esperto. Ao ocultar a
causa da dor, ele tornou essa dor universal. Pode ser a dor da mãe que perdeu um filho,
a dor da amante abandonada pelo grande amor, a dor dos solitários, dos perdedores, dos
fracassados. É a dor de todo ser humano. Vejam, o poema abre perspectivas mil, para
que limitá-lo, fechá-lo na rotina comezinha, no cotidiano do autor? Precisamos, ao fazer
a análise desse texto, nos ater à beleza dele, à sua beleza em si: suas metáforas, sua
musicalidade. Descobrir as relações entre forma e conteúdo. Observem o que o crítico
francês Mikel Duffrene afirma sobre tudo isso que comentamos: “a verdade do poeta deve
ser procurada no poema e não alhures” (DUFFRENE, 1969, p. 117). Dessa forma, o poeta
torna-se, em seu texto, um ator, um fingidor. Ele pode falar da dor sem estar sofrendo,
falar da fome sem sentir fome. Observem o que afirma Dufrene:

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42 Claretiano – Batatais
UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

[...] o poeta pode falar de si, ser, como já o dissemos, o assunto do poema.
Mas então não é como autor que ele entra em cena, é como ator. [...] não
devemos decifrar essa obra para remontar, à força de induções, como num
inquérito policial, a um autor real; não se trata de descobrir, interrogar ou
submeter a uma psicanálise um determinado indivíduo distinto da obra
e a respeito do qual essa nos daria uma informação entre outras tantas.
O poeta está aqui, se ousamos dizê-lo, rigorosamente coextensivo ao
poema; é desse que tira toda a sua realidade [...] (DUFFRENE, 1969, p.
118-119).

Por que buscar a vida do autor no poema? Basta ler a biografia dele. Outra coisa
importante: o eu que se expressa no poema não é a voz do autor, mas a do eu lírico. Por
isso, não podemos escrever dessa forma: no poema de Drummond, há esta pergunta
a todo instante: “E agora José?”. Quem pergunta é o eu lírico, não Drummond. Essa
distinção é importantíssima, pois ela pontua a dramaticidade do eu do texto. O eu lírico é
um eu inventado, um eu imaginário. Com esse recurso, o poeta sente-se livre para soltar
a imaginação, transformar-se em outros eus. Um exemplo típico disso podemos encontrar
em Chico Buarque. Vamos ler um texto dele?

Folhetim

Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim

E se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim

E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia-lua
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior
E que me possuis

Mas na manhã seguinte


Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim
(BUARQUE. Disponível em: <http://www.folhetimletra.
chicobuarqueletrasdemusicas.lyrics.mus.br/musica.php?id=65408>.
Acesso em: jul. 2003).

Faz sentido falar que a voz que se expressa no texto é a do Chico? Lógico que
não! Chico, como grande conhecedor da alma feminina, como grande amante da alma
feminina, capta, dramaticamente, como um ator, a voz de uma mulher. Portanto, a voz do
texto é a voz lírica, jamais a voz do autor. Por isso, não podemos buscar a vida do escritor
em suas palavras. Certo?

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Teoria da Literatura II • •
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Batatais – Claretiano
UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Agora, iremos analisar alguns poemas. Vejam que nessas análises nós
consideramos a forma do texto, os recursos que transformam a linguagem em arte.

2 Memória lírica de Alberto da Costa e Silva1


Aparição em Fortaleza

Ruas e sombras de Fortaleza, meninas doces,


árvores velhas onde esqueci a infância que foi
tão triste e tão pouca, cidade onde o amor
(1) Alberto da Costa e Silva, está tombado a teus pés,
diplomata, poeta, ensaísta, frágil e puro como uma flor.
memorialista e historiador,
foi eleito para a cadeira nº 9 Onde caminho cercado pelos meus fantasmas,
da Acadêmia Brasileira de entregue aos meninos que são o que fui,
Letras em 2000 e, em 2003, embalado pela pureza de minhas próprias palavras,
para o cargo de Presidente da cansado, tão cansado, Fortaleza,
Academia Brasileira de Letras.
Aparição em Fortaleza está na obra quase perdido por vos haver perdido.
Poemas reunidos, da editora Nova
Fronteira. Roteiros de bicicletas pela Praça do Carmo,
ganhando as distâncias das longas alamedas,
revendo as frágeis moças que passam
na doçura morna das tardes,
recompondo a imagem dos vendeiros encarapitados nos burricos
mansos,
a suavidade dos contornos, a brisa envolvente, os oscilantes jardins,
os longos e inesperados encontros com o desconhecido,
os pressentimentos de inúteis e infindáveis viagens
do menino triste, sentado no muro, a mãozinha no queixo.

Cidade de meu pai enfermo. Minha cidade.


Cidade onde se pode chorar sobre os muros de saudade. Cidade feita para
as lágrimas e para adeuses,
para as súbitas e inexplicáveis alegrias.
Cidade onde o mar quebra
com o impulso de velhos marinheiros náufragos
que subitamente retornassem à pureza das praias
(SILVA, 2000, p. 18).

Observem: como nós já vimos nas unidades anteriores, todo poema possui
cadência, ritmo. Esse texto do Alberto da Costa e Silva é, inteiro, uma partitura musical.
Mas como? Que metáfora é essa? Um texto pode ser partitura? Nesse caso sim, pois ele todo
é sinfônico, ele todo é composto por sonoridades em harmonia. Vejam, em contrapartida,
a mensagem do texto é arrebatadora, toca o coração de quem lê, pois o poeta trabalha
com atributos universais do homem: a efemeridade da vida, a melancolia da saudade, a
força emocional da memória. Agora, essa verdade só toca o leitor porque ela vem ritmada,
ela é expressa por um discurso musical. A expressividade do texto desperta, no leitor, uma
melancolia. E quais são esses recursos? Vamos identificá-los?

Todo o texto de Silva (2000) é paralelístico. Vocês se lembram daquela figura, o


paralelismo? Pois bem, nesse caso, o paralelismo é sintático, ou seja, vai-se repetindo ao
longo do texto as mesmas estruturas sintáticas.

Vejam, antes de se repetirem segmentos de orações subordinadas e coordenadas,


o autor já inicia o texto com uma enumeração. A enumeração é, simplesmente, uma
pequena lista, um segmento de palavras de uma mesma classe morfológica (na maioria
das vezes substantivos). A enumeração também é uma forma paralelística, pois se

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44 Claretiano – Batatais
UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

baseia na reiteração de uma mesma estrutura. Aqui, no caso, temos uma reiteração de
substantivos: “ruas”, “sombras”, “meninas”, “árvores”. O eu lírico vai enumerando como
se ele estivesse acionando a memória, colocando-a em funcionamento. Essa enumeração
corresponde àquele primeiro momento da recordação, em que ficamos repetindo algumas
palavras, com o intuito de compor um dado acontecimento, ou lugar.

Vamos dar um exemplo. Muitas vezes repetimos para nós mesmos: “como foi
mesmo”, “era um bar”, “tinha um cantor de tangos”, “tinha muita bebida”. Então vem
a eureca: “Ah, sim, foi no bar do Mané onde eu vi, pela primeira vez, o amor da minha
vida!”. A lembrança vem inteira, mas antes foi preciso enumerar: “bar”, “cantor”, “bebida”.
A enumeração vai compondo, pelo detalhe, a totalidade do acontecimento transcorrido. É
o que acontece no texto, o eu lírico vai delineando, pela memória, um espaço, a cidade de
Fortaleza. Notem, há reiterações de outras estruturas: “infância que foi / tão triste e tão
pouca” (tão triste / tão pouca). Depois há a reiteração de uma mesma estrutura oracional,
composta por verbos no particípio: “entregue”, “embalado”, “cansado”.

A segunda estrofe é, inteira, uma enumeração. Observem como ocorre um


extensa lista de substantivos seguidos de expressões adjetivas (ou adjetivos): “roteiros
de bicicletas”, “suavidade dos contornos”, “brisa envolvente”, “oscilantes jardins”, e por aí
vai... Vejam, isso imprime uma cadência, uma melodia. É importante notar que a memória
quase sempre parte de atributos sensoriais, para chegar ao passado. Quando sentimos
o cheiro de uma comida que a vovó adorava fazer, logo nos lembramos daquele almoço
gostoso de um Domingo perdido no tempo, o riso calmo da amada anciã, a molecada
correndo ao redor da mesa, a gargalhada gostosa da tia fofoqueira. Pois bem, basta um
aroma para a memória entrar em funcionamento. Agora, no texto, o eu lírico regressa à
cidade onde ele viveu a infância. Tudo é sensação que ativa a memória. O olhar, ao ater-se
nos objetos corriqueiros da cidade, faz com que o adulto volte a ser criança novamente.
E aí temos o belíssimo paradoxo: o eu lírico é o menino que não morre, o eu lírico é um
adulto-criança. O presente e o passado estão unidos, formando uma totalidade, graças ao
poder mágico da memória. E os recursos sonoros não param por aí. Há ainda, na última
estrofe, uma anáfora, em que se reitera o termo cidade.

Vocês se lembram quando foi afirmado que, para se fazer uma boa análise, é
preciso ler os ensaios dos críticos literários? Realmente, é preciso ler o que os críticos
afirmam sobre a obra do autor que estamos lendo. Para dar riqueza à leitura, recorremos
ao texto crítico, a fim de dar embasamento à leitura. Vejam, vamos inserir um fragmento
de um texto sobre a obra de Silva (2000):

Alberto declarou certa vez que sua obra toda seria o rascunho de um só extenso
poema, “que recuperasse uma determinada luz de sua infância... a voz do pai
poeta... e a descoberta do amor”. Que tomasse “posse da lembrança”. Chamado
de poeta da memória, Alberto celebra a infância e dignamente lamenta suas
perdas pessoais sem que o particular vivido, o confessional, se sobreponha ao que
é universal nessas perdas, ao que é de todo homem nas recordações de menino.
Pensemos no que já nos disse Heidegger, que toda poesia nasce da devoção da
lembrança. Dessa devoção, extrema, deriva sua poesia (Disponível em: <http://
www.secrel.com.br/jpoesia/izacyl8.html>. Acesso em: 13 jun. 2005).

Vejam, o Silva (2000) é chamado de poeta da memória. E, realmente, se lermos


sua obra, vamos verificar que toda ela é uma elaboração da memória. Além dos críticos,
eu preciso também de uma teoria. E agora José? Como vamos fazer isso? Simples:
pesquisando. Vamos a uma biblioteca e pesquisamos o seguinte tema: Memória. Então,
encontraremos vários livros de psicologia, de antropologia, de sociologia. É preciso ler
essas teorias para encontrar os fundamentos da obra do autor. Entretanto, diferentemente
do psicólogo que estuda o complexo de Édipo na obra da Hilda Hilst, nós não vamos usar
o poema para exemplificar uma teoria, mas, ao contrário, vamos utilizar uma teoria para
iluminar o texto, mostrar a sua profundidade, a sua complexidade humana. Então, na
nossa pesquisa, achamos um livro da Eclea Bosi, psicóloga social que trabalha com a
memória. Vejam o que ela afirma:

• CRC
Teoria da Literatura II • •
45
Batatais – Claretiano
UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

A memória é, sim, um trabalho sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e


pelo indivíduo.

O tempo não flui uniformemente, o homem tornou o tempo humano em cada


sociedade. Cada classe o vive diferentemente, assim como cada pessoa.

Existe a noite serena da criança, a noite profunda e breve do trabalhador, a


noite infinita do doente, a noite pontilhada do perseguido.

É verdade, porém, que nossos ritmos temporais foram subjugados pela


sociedade industrial, que dobrou o tempo a seu ritmo, “racionalizando” as horas
de vida. É o tempo da mercadoria na consciência humana, esmagando o tempo
da amizade, o familiar, o religioso... A memória os reconquista na medida em
que é um trabalho sobre o tempo, abarcando também esses tempos marginais
e perdidos na vertigem mercantil.

Tal como o tempo social acaba engolindo o individual, a percepção coletiva


abrange a pessoal, dela tira sua substância singular e a estereotipa num
caminho sem volta. Só os artistas podem remontar a trajetória e recompor o
contorno borrado das imagens, devolvendo-nos sua nitidez.

Mas a rigor, a apreensão plena do tempo passado é impossível, como o é a


apreensão de toda a alteridade (BOSI, 2004, p. 53).

Tudo o que Bosi afirmou pode ser aplicado ao texto. A memória do eu lírico é
uma memória que fica à margem do capitalismo, portanto, trata-se de uma memória
humanizada, uma memória repleta de valores humanos de grande importância. Em uma
sociedade em que os modismos são frequentes, em que a memória quase não existe, o
autor lida com temas de suma importância.

Viram, foi difícil? Nunca se esqueçam: ler é a tarefa principal daquele que gosta
de poesia. Vejam o que afirma o crítico Flávio Carneiro:

[...] o crítico é como um detetive que tenta decifrar um enigma, ainda que não
haja enigma. É um aventureiro que se move entre os textos perseguindo um
segredo que, às vezes, não existe. Nesse sentido, o prazer da crítica – ou, de
um modo geral, da leitura – estaria não num objetivo final, o de desvendar o
mistério, mas nas próprias conjecturas, nas formulações possíveis (CARNEIRO,
2005, p. 37).

A aventura e o prazer estariam no caminho, no processo, isto é, na própria


leitura. Ao analisarmos o poema, já estamos fazendo o papel do crítico, do intérprete. Por
isso, é importante lembrar: vocês serão futuros professores de letras. Cabe ao professor
(2) Hilda Hilst: de literatura, portanto, tornar-se um pouco crítico literário, pois ele precisa iluminar a
Jornalista, poeta e ensaísta
Apolônio de Almeida Prado Hilst leitura do outro, ou seja, precisa esclarecer a leitura de nossos alunos.
e de Bedecilda Vaz Cardoso,
vencedora do Prêmio Jabuti Vamos analisar outro poema?
com uma obra de contos em
1993; escreve há quase 50
anos, tendo sido agraciada com
os mais importantes prêmios
literários do país. Seu arquivo
pessoal foi comprado pelo Centro
de Documentação Alexandre
Eulálio, Instituto de Estudo de
3 Apaixonado noviciado de Hilda Hilst2
Linguagem, IEL, UNICAMP,
estando aberto a pesquisadores Dez Chamamentos ao Amigo
do mundo inteiro. Sua obra aqui
utilizada é Poesia (1959-1975),
da editora Quíron, e sugerimos I
que você adquira essa obra para [...]
sua biblioteca pessoal.
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água

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46 Claretiano – Batatais
UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo


Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez


E mais atento
(HILST, 1980, p. 48).

Esse é um dos poemas mais belos de Hilda. Nesse texto, a autora usa a
simbologia da água e da terra para designar os corpos dos amantes. Inicialmente, isso
se dá pela comparação: “E era como se a água desejasse...”. Nessa comparação, há
uma prosopopeia: a água deseja. Observem que nessa simbologia, o homem fecunda a
mulher. Por isso, o homem é água que deseja, água que tem sede. A prosopopeia remete
o leitor às faculdades físicas do homem: realmente, no ato amoroso, é o homem que
fertiliza a mulher. Depois a comparação torna-se metáfora: “sou terra” (2o verso da 3a
estrofe), “teu corpo de água” (4o verso da 3a estrofe). A água nem chega a deslizar no rio,
rio esse metaforizado pela palavra casa. O que significa isso? O desejo do amado torna-se
tão intenso, tão grande que ele arrebenta os limites, extravasa para além das margens.

Há, com toda certeza, forte conotação erótica nesse fragmento, pois o eu lírico nos
remete ao momento de êxtase do encontro amoroso, em que o desejo rompe os limites do
corpo, na comunhão dos amados. O mais belo no texto é que tudo isso nasce da imaginação
do eu lírico, pois ele se imagina no lugar do amado: “Olhei-me a mim, como se tu me
olhasses” (3o verso). É como se esse eu feminino se mirasse em um espelho e, ao invés de
ver o próprio rosto, ele visse o rosto do amado. Nisso, já temos uma hipérbole, uma figura
de exagero. O amor é tão intenso, tão grande, que a mulher se torna o ser amado.

Eis a repetição de um tema muito antigo na literatura, tema inventado por


Camões e reinventado de maneira brilhante por Hilda. A poetisa de “Dez chamamentos
ao amigo” reelabora, em um belíssimo jogo intertextual, o seguinte verso de Camões:
“Transforma-se o amador na cousa amada” (HILST apud RODRIGUES, 1993, p. 44).

Para a leitura ficar completa, é preciso buscar a voz do crítico. Ei-la novamente,
a soberba crítica Nelly Novaes Coelho. Nesse livro de Hilda, chamado Júbilo, memória,
noviciado da paixão, ao qual pertencem os “Dez chamamentos ao amigo”, a mulher, tal
como “uma sacerdotisa a cumprir um ritual [..], exorta o Homem à união, segura da
verdade e da essencialidade da experiência amorosa que lhe oferece. Da primeira à última
página, Júbilo... é um chamamento erótico, na mais alta significação do termo [...]”, com
isso, “a poeta afirma o papel que a Mulher sempre desempenhou junto ao homem: o de
mediadora entre ele e a plenitude da Vida, através do Amor” (COELHO apud HILST, 1980,
p. 313-314).

E claro, é preciso ler o que os pensadores falam sobre o amor. É preciso saber o
que os filósofos, psicólogos, antropólogos, sociólogos pensam sobre esse sentimento tão
importante para o homem. Vejam o que afirma o crítico literário Edgar Morin:

A autenticidade do amor não consiste apenas em projetar nossa verdade sobre


o outro e, finalmente, ver o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas
sim de nos deixar contaminar pela verdade do outro. [...] Carregamos conosco

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Teoria da Literatura II • •
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Batatais – Claretiano
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Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

uma necessidade tão grande de amor que, por vezes, um encontro, num
momento propício – ou mesmo num momento mau – deslancha o processo da
fulminação e da fascinação (MORIN, 2003).

Observem: não é exatamente isso que acontece no poema de Hilda? O eu lírico


do poema de Hilda deixou-se “contaminar pela verdade do outro”. Eis a hora do fascínio,
do esplendor. Mesmo que o amor nos leve à solidão, à ausência do outro, pois nem sempre
somos correspondidos, ainda assim é a hora densamente humana, a hora da existência
em sua alta verdade.

Vamos analisar mais um poema?

4 Poesia convulsiva de Ferreira Gullar3


Galo Galo
(3) Ferreira Gullar, em 2002,
foi indicado ao Prêmio Nobel O galo
da Literatura por professores
de universidades do Brasil, no saguão quieto.
de Portugal e dos Estados
Unidos. O poeta, também, Galo galo
ganhou o Prêmio Príncipe
Claus, da Holanda, dado a de alarmante crista, guerreiro,
artistas, escritores e instituições medieval.
culturais fora da Europa que De córneo bico e
tenham contribuído para mudar
esporões, armado
a sociedade, a arte ou a visão
cultural de seu país. contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.


ATENÇÃO! Inclina a cabeça coroada
Para ser um bom professor de dentro do silêncio:
língua portuguesa e de suas
respectivas literaturas, você terá – que faço entre coisas?
que formar uma boa biblioteca – de que me defendo?
pessoal. Uma excelente
aquisição é Toda poesia,
de Ferreira Gullar (veja as Anda
Referências Bibliográficas). no saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.

Galo: as penas que


florescem da carne silenciosa
e duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura?

Saberá que, no centro


de seu corpo, um grito
se elabora?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório?

Eis que bate as asas, vai

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48 Claretiano – Batatais
UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

morrer, encurva o vertiginoso pescoço


donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde,


o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece — apesar


de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce


agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento

Grito, fruto obscuro


e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras
(GULLAR, 2000, p. 11-12).

Vocês acharam esse galo estranho? Acalmem-se. Estamos novamente diante


de um enigma que, com toda certeza, conseguiremos decifrar. Aos poucos vamos nos
habituar com os processos poéticos. Muitos devem se perguntar: por que o poeta tem a
necessidade de expressar as coisas dessa maneira enigmática? Antes de tudo, precisamos
lembrar o que afirmou o estudioso do mito, Ernest Cassirer: O homem é um animal
simbólico.

O que isso significa? Só o homem possui a capacidade de simbolizar o mundo,


isto é, de expressar o mundo pela linguagem. Eis a importância da metáfora. Ela possibilita
nomear o mundo pela imaginação, pela subjetividade. Se para mim o mundo é “planeta
água”, com certeza, eu tenho motivos afetivos para fazer essa nomeação.

Com certeza, a água é um elemento simbólico para mim, bem como para todo
humano. Ela é o princípio da vida, a origem do próprio corpo humano. Então, para celebrar
a vida, eu nomeio o mundo (feito também de terra) com a palavra água. É isso que o
poeta faz: nomeia o mundo pela força do seu afeto e de sua imaginação. É o que Ferreira
Gullar fez com o Galo. Será que realmente esse galo é galo? Vamos decifrar a significação
desse galo misterioso?

O poema inicia-se com uma descrição: um galo a passear por um saguão. Uma
luta esboça-se: o galo é um guerreiro que peleja contra a morte. Mas como isso é possível,
se dentre os seres vivos apenas o homem possui a consciência da morte? Já estamos
muito próximos de decifrar a natureza desse galo.

Para compreendermos melhor essa ave guerreira, vamos buscar a ajuda de uma
psicóloga: Monique Augras (1986, p. 22). Ela empreendeu importantes reflexões sobre a
consciência que o homem possui da morte. De acordo com a autora, com base na obra de

• CRC
Teoria da Literatura II • •
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Batatais – Claretiano
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Heidegger, só o homem possui a consciência de sua finitude. O homem é o ser do projeto,


ele sempre imagina a sua vida no futuro. Entretanto, quanto mais ele se percebe em um
tempo vindouro, mais ele se aproxima do limite que marca a vida humana, ou seja, a
morte: “Na lonjura desponta a morte. O ser do projeto é apenas, irremediavelmente, o
ser para a morte. A morte que denuncia a possibilidade dos possíveis”. É essa consciência
da finitude que pontua o questionamento do Galo do Ferreira Gullar.

Vejam, se o galo tem consciência, com certeza ele não é um galo, mas um
humano. Sim! O galo é um humano. Na verdade, temos nessa ave uma prosopopeia,
ou seja, um animal que é humanizado. Entretanto, o galo é um humano especial. Que
humano seria esse? Calma. Daqui a pouco vamos descobrir mais sobre essa charada.

No poema, o galo se questiona: “que faço entre coisas?”, “de que me defendo?”.
Um galo filosófico! Pois bem, esse já é um predicado, uma característica desse galo-
-humano: trata-se de um humano (raro entre a maior parte dos humanos) que empreende
reflexões existenciais. Após esses questionamentos, surge outra prosopopeia: “O cimento
esquece/ o seu último passo”. O que isso pode significar? A falta de memória do cimento
metaforiza a ausência de pegadas. Graças à natureza compacta e maciça do cimento, os
passos não ficam gravados em sua argamassa. Ao afirmar isso, o poeta quer exprimir a
seguinte mensagem: a vida não permanece, pois somos seres passageiros e efêmeros.

Em contrapartida, o galo contém em seu íntimo o canto. Qual ser humano possui
o dom do canto? Já se tornou lugar comum, em nossa cultura, afirmar que os poetas
cantam as glórias e os sofrimentos dos homens. Pois bem, o galo já foi decifrado: ele
representa a própria figura do poeta! Com isso, nós também deciframos o título do poema.
De maneira irônica, o poeta usa o próprio substantivo galo como adjetivo. Com isso,
temos um galo que é galo. Um galo cujas características encontram-se intensificadas,
sublinhadas. Entretanto, ironicamente, de galo, o galo nada tem.

Como essa ave representa o poeta, temos, portanto, um metapoema. O que


isso significa? Nesse poema, o autor faz uma reflexão sobre o próprio poema. No próprio
texto lírico há a figura do poeta e uma concepção de poema. Isso ocorre muito na poesia
do Ocidente, especialmente, a partir da segunda metade do século 19, com o advento da
poesia moderna. O poeta torna-se cada vez mais consciente de seu fazer, de seu ofício.
É a partir daí que surge a figura do poeta crítico, ou seja, o poeta que, além de escrever
poemas, dedica-se também à elaboração de ensaios de crítica literária. No Brasil, nós
tivemos grandes representantes desse tipo de escritor. Três deles? Manuel Bandeira, que,
além de exímio poeta, era um crítico excepcional e, mais recentemente, José Paulo Paes
e Ivan Junqueira, grandes poetas e excelentes críticos.

Há, portanto, no texto de Ferreira Gullar, uma concepção de poesia. Qual seria?
Ora, o canto do galo se torna grito. Por que se grita? O grito pode ser tanto o desabafo
de uma dor como um pedido de socorro. Pois bem, eis a concepção de poesia de Gullar:
o poema é um grito de alerta. O poeta alerta seus leitores para as verdades existenciais
do homem: a morte, a efemeridade da vida. O poema, portanto, tem que ser um apelo à
consciência, uma reflexão filosófica. E Gullar tem razão, o grande poema precisa ser um
mergulho na condição humana. Além de um apelo, o poema também extravasa a dor da
existência. É um grito que revela o sofrimento e a fragilidade da vida. Ufa! Conseguimos!
Interpretamos o poema!

5 E-Referências
Chamadas numéricas

Figura 1 - Alberto da Costa e Silva: disponível em: <http://www.releituras.com/


albertocsilva_menu.asp>. Acesso em: 23 mar. 2009.

CRC • • • Teoria da Literatura II


50 Claretiano – Batatais
UNIDADE 5
Letras - Habilitações em Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Figura 2 - Hilda Hilst: disponível em: <http://www.releituras.com/hildahilst_bio.asp>.


Acesso em: 23 mar. 2009. Imagem: disponível em: <http://www.leticiamonso.com.br/
maxima/wp-content/uploads/2007/08/hilda-hilst.jpg>. Acesso em: 23 mar. 2009.

Figura 3 - Ferreira Gullar: disponível em: <http://www.releituras.com/fgullar_bio.


asp>. Acesso em: 23 mar. 2009.

6 Considerações finais
Vimos o quanto a poesia é fundamental para o enriquecimento da alma humana.
Nós descobrimos que o poema é um tipo especial de linguagem: música e imagem. Para
tornar a linguagem musical, o poeta usa a rima, a contagem de sílabas poéticas e muitos
outros recursos. Entretanto, observamos que o ritmo é o mais importante dos recursos
fônicos da poesia, pois não existe poesia sem ritmo.

Além de possuir expressividade sonora, a poesia também é imagem. Dentre


todas as figuras de linguagem imagéticas, a mais importante é a metáfora. O poema é um
discurso metafórico. O poeta diz isso, mas isso é aquilo.

Conhecemos grandes poetas e, com isso, nos emocionamos diante de textos belos
e encantados. Portanto, não se esqueça: a leitura é fundamental para o prosseguimento
dos seus estudos. Há no final do Guia de disciplina uma bibliografia para aqueles que
desejam aprofundar o estudo da poética. Portanto, essa apostila é apenas o início da
caminhada. Há ainda muito para aprender e crescer. O convite está lançado: vamos ler
mais poemas e mais textos críticos? Cabe agora a você a tarefa de se engrandecer e de
conquistar novas vitórias.

7 Referências bibliográficas
AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico.
3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

BOSI, Eclea. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê, 2003.

CARNEIRO, Flávio. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de
Janeiro: Rocco, 2005.

DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Globo, 1969.

FILHO, Ruy Espinheira. Poesia reunida e inéditos. Rio de Janeiro: Record, 1998.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

HILST, Hilda. Poesia: (1959-1979). São Paulo: Quíron, 1980.

MORIN, Edgar. Amor poesia sabedoria. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003.

OLIVEIRA, Marly de. Antologia poética. Organização e prefácio de João Cabral de Melo
Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

RODRIGUES, Antônio Medina. Sonetos de Camões: roteiro de leitura. São Paulo: Ática,
1993.

SILVA, Alberto da Costa e. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

TREVISAN, Armindo. Nova antologia poética 1967-2001. Porto Alegre: Sulina, 2001.

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51
Batatais – Claretiano
Anotações

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