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DOSSIÊ
INTRODUÇÃO
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i87.33244 469
A SOCIOLOGIA DA ARTE E SUAS CONTROVÉRSIAS
sociológicos sobre arte, com relação à qual os enorme impacto ao combater a ideia do “gênio
estudiosos estão longe de chegar a um con- artístico” e a concepção de uma arte desinte-
senso (Heinich, 2001). Em publicação recente, ressada. Em troca, ele propôs o estudo de um
contudo, Arturo Morató esclarece que, nas úl- espaço social estruturado pela concorrência,
timas décadas, um novo movimento teórico e onde seriam geradas as criações artísticas. A
metodológico vem se impondo no campo dos recepção de seus conceitos de campo de pro-
estudos sobre artes, que não mais se recusa a dução simbólica e de habitus notabilizou-se
focalizar as obras no primeiro plano da inves- em diversos domínios da pesquisa sobre edu-
tigação, mas, ao contrário, quer compreender cação, cultura e arte, não somente na França,
em que medida a arte é capaz de criar e insti- mas em diversos países.
tuir valores sociais. Essa reviravolta nos fun- Nos Estados Unidos, Zolberg (2006)
damentos metodológicos aposta justamente no atribui a resistência ao estudo sociológico das
inverso de uma sociologia da arte, que insiste artes, de um lado, às características da socie-
na determinação e na organização social da dade norte-americana, que se ergueu sob a
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perspectiva de ideais liberais democráticos, colocar em questão (Morató, 2017, p. 20, 21 tradu-
ção nossa).1
com forte desconfiança em relação à arte e à
sua perspectiva aristocrática; de outro lado, No Brasil, o modernismo da década de
ao cientificismo que dominou a sociologia 1920 colocou, na ordem do dia, os estudos so-
norte-americana e buscava, a todo preço, uti- bre a música, as artes plásticas e a literatura,
lizar os padrões das ciências naturais no cam- lançando a centelha da pesquisa da produção
po das ciências sociais. Zolberg destaca duas cultural nacional. Essa movimentação em di-
tendências: uma vinculada à estética e outra reção ao entendimento da cultura brasileira,
que defende o estudo dos contextos sociais e popular ou erudita, perdurou mesmo depois
da criação das faculdades de filosofia no Rio
históricos.
de Janeiro e em São Paulo, na década de 1930.
A boa acolhida da obra de Howard Be-
Nos anos de 1950, os suplementos li-
cker em diversos países, inclusive na França,
terários dos jornais, incluindo o conhecido
evidencia que a segunda tendência, à qual se
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil,
refere Vera Zolberg, saiu, de fato, vitoriosa no
ampliaram o horizonte de expectativas dos lei-
embate entre os estudos de caráter humanis- tores, informando sobre as novas linguagens
ta e aqueles de caráter empírico sociológico. artísticas. Mais adiante, na década de 1960,
Como Bourdieu, Becker recusou a análise das em que pesem a censura e a repressão políti-
obras e de sua linguagem estética, voltando- ca, distinguiram-se a Revista da Civilização
-se para a investigação de redes de cooperação Brasileira (1965-1968) e Encontros com a Ci-
que distinguem o espaço social da arte (Be- vilização Brasileira (1978-1982), com artigos
cker, 2008). diversos sobre artes e literatura, inclusive de
Vale notar, entretanto, que, apesar dos integrantes da Escola de Frankfurt.
fatores conceituais, institucionais e históricos, Somente a partir dos anos 2000, entre-
mencionados acima, o desenvolvimento da tanto, a sociologia da arte começou a ganhar
autonomia. Atualmente, há 84 grupos de pes-
disciplina foi desigual, obedecendo às lógicas
quisa voltados para a sociologia da arte, 11%
internas, não apenas da tradição intelectual
do total dos grupos filiados à sociologia no Di-
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tes (DGP), a maioria realiza pesquisas que inte- entre o pensamento de Adorno e as proposi-
gram duplamente a área da sociologia da arte e ções de Frederic Jameson. Em “Audiovisual y
as áreas da sociologia de gênero, da educação, región: otra historia en los estudios del arte
da juventude, das questões raciais e da violên- latinoamericano”, Javier Campo e Ana Silva
cia. Essa tendência mais recente da sociolo- investigam as experiências pensadas, produzi-
gia da arte é observada também por Quemin das e consumidas nas províncias da Argentina,
(2017), para quem tais pesquisas vêm ofere- enfatizando a regionalização do documentário
cendo subsídios para a elaboração de políticas argentino.
públicas em diversos países. Os artigos seguintes lançam luz sobre
O crescimento das pesquisas e da parti- o passado da socióloga da arte Vera Zolberg
cipação da sociologia da arte nas associações e a produção artística e cultural na revolução
da área da sociologia não significou, contudo, cubana. O artigo de Glaucia Villas Bôas e Lays-
que a velha polêmica relativa à abordagem da sa Bauer von Kulitz, “A sociologia da arte como
configuração estética inerente à obra artística vocação: um relato de Vera Zolberg” traz uma
versus a abordagem da obra ou dos processos contribuição singular sobre a formação da so-
artísticos da perspectiva de um campo de re- ciologia da arte nos EUA, ao analisar a traje-
lações sociais tenha desaparecido. Este dossiê tória acadêmica de Vera Zolberg (1932-2016),
apresenta exemplos das duas tendências que uma das desbravadoras do campo, baseando-
caracterizam a sociologia da arte. -se em depoimento da socióloga. Sílvia Cezar
Em “Sobre a necessidade de uma socio- Miskulin revisita a efervescência política e
logia textual da arte”, Eduardo de La Fuente cultural dos anos 1960-70 em Cuba, em “Arte
propõe justamente enfrentar o dilema que en- e cultura na Revolução Cubana: os anos 1960
volve as disputas entre as abordagens interna- e 1970”, fazendo uma análise das publicações,
listas e externalistas dos fenômenos estéticos; instituições culturais e manifestações artísti-
ou o que o autor caracteriza como a “neces- cas daquelas décadas.
sidade de sair de um modelo ‘ou arte ou so- Finalmente, o artigo de Anderson de
ciedade’ para um modelo de lógica ‘tanto arte Jesus Costa, Lucas Catalan e Bruno Sampaio
quanto sociedade’”. Para tanto, sugere um pa- sobre “O emergir da música popular e suas in-
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 87, p. 469-473, Set./Dez. 2019
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lógica inscrita nos artigos deste dossiê, que tra- KANT, I. Crítica da faculdade julgar. São Paulo: Ícone
Editora, 2009.
duz uma das orientações atuais da sociologia
HEGEL, G. W. F. Curso de estética. O Belo na arte. São
da arte. Paulo: Martins Fontes, 1996.
HEINICH, N. La sociologie de l’art. Paris: La Découverte,
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Recebido para publicação em 22 de agosto de 2019 MORATÓ, A. R.; ACUÑA, Á. S. La nueva sociologia de
Aceito em 13 de novembro de 2019 las artes. Una perspectiva hispanohablante y global.
Barcelona: Gedisa Editorial, 2017.
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