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Aquilino Ribeiro
BERTRAND EDITORA
Digitalização e Arranjo
Júlia Vieira
OBRAS COMPLETAS DE
AQUILINO RIBEIRO
9.ª Edição
BERTRAND EDITORA
VENDA NOVA 1999
Cecília Meireles
Correia Da Costa
Jaime Brasil
Jaime Cortesão
Creio que até os que pessoalmente menos estimam a arte de Aquilino (e, em
se tratando de preferências pessoais, sem pretensões a crítica, decerto
pode cada um ter as suas) nele sentem um Mestre.
José Régio
Aquilino, clássico vivo, mestre admirável, ainda agora, com a Casa Grande
de Romarigães, levantou um monumento imperecível à glória da língua
portuguesa.
Júlio Dantas
Desde o Jardim das Tormentas, que data do ano de 1913, até à Casa Grande
de Romarigães, uma das últimas obras e talvez a mais prodigiosa pelo
saber que tem a sadia vetustez, ao sabor ganho no ofício, desde a
primeira à última página, o caminho percorrido é como um largo e luminoso
rasto de beleza, de energia criadora, de originalidade incomparável, de
varonia pelos próprios, actos nobilitada, decerto um dia madre de uma
nova estirpe.
Manuel Mendes
Raul Rego
Vitorino Nemésio
O meu dia caminha para o ocaso. Dei bem conta quando cheguei ao fim deste
trabalho. O amor, razão primordial de tudo, alegria do mundo, encanto da
obra de arte, força da natureza, divindade munífica que dotou o grilo com
a caixinha de música que lhe vemos às costas, e a borboleta com o motor
subtil com que voa da couve galega para uma rosa, passageiro ou apenas
fortuito papel desempenha nas suas páginas. É a seiva criadora em transe
de estancar.
Todavia continuo a produzir como se me penetrasse um ardente e fecundo
Verão. Obriga-me uma espécie de sina, e fugir-lhe seria negar-me. Por
isso hei-de morrer com a enxada em punho.
A meia grosa de livros que escrevi foram de facto para mim, em tanto que
obra de criação e exalçamento, como igual número de vinhas que plantasse.
Nesta faina exaustiva tive de desatender à vida de relações, não cultivar
como devia a amizade, remeter os meus à vis própria quando poderia com um
pouco de arte, salamaleque, e o quantum satis da desvergonha cívica
nacional, consagrada e triunfante, guindá-los a ministros ou banqueiros.
Permiti ainda, levado na minha obsessão, que os gatunos oficiais e de
mister me metessem as mãos nas algibeiras, os pirangas me ludibriassem, e
toda a canzoada humana me ladrasse impunemente. Numa palavra, a vida
utilitária, o arranjinho, a conveniência mundana nunca me roubaram um
minuto de labor.
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fusca e intáctil como a cobertura duma gare. Que distância, anos e anos
que correram na levada do tempo, e as coisas conservarem-se ali
iguaizinhas, estáticas, teimosas no seu ar de encantamento! Talvez mais
velhas... Sim, mais velhas, ferradas mais fundo pelos dentes da morte e a
despenhar-se na voragem como as telhas do beiral. E haviam, porventura,
de resistir aos vaivéns mais que o coirão de um homem, entretanto que se
fartava de dar tombo por esses mundos de Cristo?! Este sentimento, a
transudar amargor, acabou por confortá-lo e absolver a pobre casa da sua
inalterável fisionomia.
Tornou a olhar para a aldraba. Bato, não bato, que é o que me prende os
dedos? —ouviu uma voz... a voz de Filomena, e estacou.
Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os
dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes
assentou para consigo que estavam a cear. — Miga bem a tigela ! — dizia a
voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. — Miga bem, Jaime, que só
tens caldo ! Depois as vozes calaram-se. Ressoam assim os córregos quando
descem das serras e tropeçam nos seixos solevantados. Mas ele que tinha
que especular?! Decidiu-se. Bateu uma... duas... três vezes, e postou-se,
parado, à escuta, como os mendigos depois de rezarem o padre-nosso
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e não quis interrompê-la na operação. Então seu pai era aquele homem de
ar exótico, lurido do clima, tocado na figadeira, com um traje diferente
ao da terra, sarja azul tão lustrosa que lhe devolvia a tinta dos olhos,
relógio de prata em pulseira de oiro, sapatos amarelos, esta espécie de
sapatos meio pantufos, que parecem botas de elástico aparadas por baixo
do tornozelo, e ele comprara em Asunción?! Por uma nesga, dir-se-ia, da
consciência seguira todo o desdobre da fita sentimental. E, zás, vencendo
o acanhamento, eis que ela se lhe atirava ao pescoço. Sorrindo à amorosa
freima, Manuel Louvadeus apenas sabia dizer-lhe:
— Que moça você está! Que moça!
Com quem se parecia? Com quem se pode parecer a Primavera...? Lembrava-
lhe, fragrante e risoteira, a flor dum cacto, de certos cactos
martirizados dos chapadões incandescidos, que desatam numa flor tão
bonita que fazem pasmar os ares e chamam todos os moscardos à volta.
— Que moça você está!... Este é o mano ?
O mano tinha posto a tigela na pilheira e esperava de pé, os braços a
escorrer pelas ilhargas, que o pai se dignasse deitar-lhe os olhos. Mas
já ele erguia as mãos:
— A bênção, senhor pai...
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dente à frente, o que lhe desfeava a boca. Demais de feia, pareceu-lhe
decepada. E ambos que outra coisa eram senão ruína!? Coitaxana, fitava-o,
e na sua confusa sentimentalidade não sabia se havia de rir se chorar. A
ele davam-lhe ganas de tornar para Mato Grosso, afundir-se pelo chão
abaixo, não ser o Manuel Louvadeus, burro das desgraças, virar a jagunço,
e levar tudo raso à boca de pistolão. Porque não era um nababo certo com
dois ou três arranha-céus no Rio ou em S. Paulo, talho ou duas ou três
padarias na Rua da Carioca a render para o meço! Isso ou voltar para a
terra, a ladrar como um cão num oiteiro: Sou rico, muito rico, o que é, a
riqueza ficou-me no meio do mato! Mas lá está! Juro-vos que está!
Filomena agora aproximava a cara da sua, como se só assim, dada a luz
froixa da candeia, aquelas pupilas, tão azuis e tão finas que nunca ele
tivera pensares, por muito secretos, que não desvendassem, só assim
conseguissem ler o seu drama. Quando se deu por inteirada, talvez
desgostosa com o que lera, as pálpebras fecharam-se-lhe dolorosas ou
sovacadas de ânsias, que ele estava a ver acumularem-se, como nuvens de
procela interior, tangidas por mau pensamento. Tornaram depois a abrir-
se, tornaram a fechar-se, e ergueram-se por fim, tais válvulas de sola
oleosas e gastas, a dar vau ao choro desfeito. E entre soluços
entrecortados choramingava:
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— Aqui te tenho, homem da minha alma! Aqui te tenho. Graças, minha Nossa
Senhora dos Aflitos! Mas tu vens bom?! Esfalcaram-te as consumações! Fora
isso, vens tal-qualzinho. Ai, eu é que estou para aqui um caco, uma
rodilhona da lida e mais lida!
E, enquanto a filha tinha nos lábios um sorriso contente, um sorriso
pássaro da selva a esvoaçar, e o filho conservava o ar aprumado de
plantão, continuou na lamúria:
— Tanta gente a dizer-me que estava viúva, que te fizesse o bem de alma,
e o coração a jurar que estavas vivo! Tanto chorei, tanto rezei, que o
Céu ouviu-me. Aqui te tenho, marido da minha alma!
— O pai acreditou? — perguntou Manuel Louvadeus.
— Acreditou, quê! — exclamou Jorgina. — Não, o avô nunca acreditou. Tanto
ele como o Dr. Rigoberto riam-se mesmo de quem se saía com a parte...
— Como vai ele, o nosso Dr. Rigoberto?
— O Dr. Rigoberto está bom — respondeu Filomena. — Os do Governo têm-lhe
feito muitas poucas-vergonhas. Levaram-no preso, mas tiveram que o
soltar, que ele também tem amigos. Depois prenderam-lhe os filhos, e ele,
ao fim dum tempo, lá os tirou da cadeia. Parece um carvalho dos montes.
Nada lhe mete medo. Olha, faz o bem que pode.
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Também cá pela serra ninguém toma outro advogado. Ele aqui dita. Não dita
leis, leis, mas o que ele diz é o que se faz. Todos aqui no povo metem as
mãos no lume por ele, é só mandar.
— Então o Dr. Rigoberto não acreditava que eu tivesse morrido?...
— Não, esse não queria ouvir dizer que tivesses morrido. Quando o levaram
preso, viu-me a chorar. Julgou que era por ele. E também era por ele,
pois não era, que sempre foi nosso amigo! Mas lá lhe disse que não tinha
notícias tuas... que não sabia o que havia de pensar. Voltou-se para mim:
— Descansa, rapariga, o mundo dá muita volta. Nem eu me vou ao fundo, nem
ele morreu. Torno, pois não torno, e um dia hei-de ter o prazer de
abraçar aqui o teu homem. Mas tu vens bom, marido da minha alma! Eu é que
estou um caco...
Era a segunda vez que o dizia e Manuel Louvadeus, perante aquela mulher
de génio frenético, que apenas guardava um luaceiro da graça primitiva,
protestou que não, que estava a mesma. E movido por um rebate de
consciência — um silêncio de tantos anos não podia justificar-se pela
distância a que ficavam Cuiabá e o Coxipó, lá no calcanhar de Judas, se
se lhe não juntasse boa dose de desleixo e fatalismo de pobre diabo,
empolgado pela febre de cavar a vida, não falando no prazer mórbido que
os malditos haurem da renúncia,
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o pé, lá se revira, vingando-se à vida que Deus lhe deu, e não morre
porque não quer morrer. Depois, quando pilhei os dois crescidinhos, meio
teixugos, já pude dormir. Tanto o rapaz como a rapariga não voltam a cara
ao trabalho. Mas são uns mafarricos — e olhava amorosamente para eles. —
O Jaime lá tem o seu génio... há-de moderar-se com o tempo... Fez-se uma
pequena pausa, cada qual reimerso no mar de coisas que trazia no peito.
Veio o gato, de rabo no ar, roçar-se às pernas de Louvadeus como se
também nele reconhecesse o seu senhor e amo, e quisesse fazer as pazes,
ou afirmar-lhe que não tivera medo. O cepo, rilhado pelo fogo,
estralejava. Foi Filomena que, em voz tremente, se alçou de novo sobre o
pélago:
— E como te correu a vida, homem? Correu-te mal! Sabes que mais, com
dinheiro ou sem dinheiro, cá nos havemos de governar.
A Manuel Louvadeus doía-lhe que a sua pessoa incutisse ideia de miséria e
ia a retorquir que ganhara boa massa, quando bateram à porta. A mulher,
ao ver-lhe esboçar uma topetada de arrelia com a cabeça, carregou o
sobrolho. Deixa bater. Tornaram a reboar os golpes: truz, truz. Sussurro.
Mais truz, truz. Chamaram:
— Manuel...! Filomena...!
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Era voz conhecida — o compadre Justo Rodrigues — a quem se não podiam
negar. Pressentiram que trazia atrás uma mó de gente, curiosos uns,
noveleiros outros, que o vinham saudar. O Vicente, que lhe oferecera uma
boleia na camioneta de carga, passara palavra, e meio povo estava ali
botado. Que remédio senão aparecer! A Jorgina abriu ao açude. À frente,
de facto, rompia o compadre Justo. Fazia pouca diferença: mais gordo, com
as belfas puxadas para a barbela, sempre a arrastar a perna direita, mais
comprida que a esquerda, pelo que o alcunharam de Perna Marota. Vinham
com ele o tio Zé Grulha e o tio Caries, mirrados, comidos do surro e da
velhice, e o Augusto Finote, alontrado. Vivas e mais vivas, o Justo falou
das novidades da terra e por fim da rixa do Jaime Louvadeus com os
Lêndeas:
— Tens aqui um homem! — proferiu, indicando o moço. — Os Lêndeas são
pimpões e mau gado, mas encontraram quem chegasse para eles.
— Eu já sei — disse Manuel Louvadeus, de fisionomia sombreada. — Contou-
mo o Luís Barbadinho em Lisboa, na Pensão do Álvaro, antes de tomar o
comboio. Os Lêndeas apanharam-no no meio da serra sozinho, não foi? e
caíram sobre ele para o desancar. Por modos, a briga começou com uma
paulada que aqui o Jaime lhes deu no cachorro...?
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— Sim, foi. Foi por causa do cão. Por causa do cão, hum, e pelo mais —
corroborou Jaime com transparente secura.
— Iam-se esfandegando — tornou Justo.
Nem Filomena, nem Jorgina despregaram os lábios. Olhavam para o lume,
como se tivessem a peito alhear-se do assunto.
— Bah — exclamou Jaime em tom ligeiramente de alarde, mas que se via ter
em mira atupir aquela vala que era o silêncio que se fizera. — Paguei-
me... andou! Com águas passadas não moem moinhos. Não se fala mais nisso.
Decorreu outra grande pausa, cheia de reservas e inferências mentais duns
e doutros. Quando na embrenhada floresta deixaram de soprar os ventos
contrários, proferiu Louvadeus:
— A justiça não meteu a pata?
— Não meteu — disse Justo. — Faltavam as testemunhas. O barulho passou-se
na Corga, nos altos, ao ir para Valadim das Cabras, onde não botam os
rebanhos de Inverno. Os carros é que vão lá carregar mato. Não admira que
não andasse ninguém por ali. O Bruno foi a terra... Chegaram a levar-lhe
a extrema-unção à cama. Cá este pimpão rodou por seu pé para casa. Vinha
com a cabeça rachada, mas nem ao médico quis ir. Por isso lhe ia saindo
caro. Agravou-se-lhe a brecha da cabeça e esteve por um
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se havia de virar. E ali andava duns para os outros, de todos para a
mulher, que o não largava agora na sua impaciência amorosa.
Atropelava-se gente no patim e tais olharapos, parados no vão da porta,
nem deixavam entrar o ar que se respira. A luz era escassa, mas alteara-
se a lua cheia e à sua claridade, lembrando-se dos velhos, fazendo-se
lembrar dos novos, que deixara meninos, a todos ia distribuindo apertos
de mão e abraços, consoante. Depois, passo à direita, passo à esquerda,
viu-se estrada fora, com um grande rancho atrás, a caminho do Nacomba.
Renovara o estabelecimento, tendo deitado abaixo a casa felugenta e
erguido aquela de perpianho, com o reboco branco das juntas cortado à
régua. O vinho baptizado dava para tudo. Sórdido, mas melhor cara. O
Júlio Nacomba, por sua vez, mais barrigudo e importante, e sempre em
mangas de camisa, tomentos, para não gastar a vestia.
À luz do petromax Manuel Louvadeus, espraiando olhos pelo adjunto,
distinguiu os manatas com os cotovelos mais rotos e as joelheiras das
calças mais empoladas. De ricochete ao que observava, sentiu de salto
que, toscado e remirado no fatinho friorento e amarfanhado do Trópico,
descia no crédito dos patrícios. Persuadiu-se mesmo que começavam a olhar
para ele sem curiosidade. Depois, sem respeito. Embora não valesse a pena
gastar cera — palavras, atenções,
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Há poucos tão bem-falantes como ele e é homem que sabe onde tem a cabeça.
Seria bom puxá-lo cá para a patuleia...
— Chegou o Manuel Louvadeus? Onde está ele que o quero abraçar?
Já Manuel Louvadeus saía da taverna. Deram um estreito abraço. Trocaram
suas cortesias, depois impressões. Rebordão inteirou-o da guerra em que
se achavam envolvidos. Guerra de vida ou de morte.
— Manuel, tens de ser dos nossos...
— Sou, João, sou. Está aqui o teu cabo de ordens. Mas olha que a
violência nunca leva a bom termo.
— Não me digas isso! Muito do que se faz, não se faz ao bem, faz-se ao
mal. É velho como o mundo. A maioria dos reinos, das fortunas, dos
senhorios, das dominações, foram construídos pela força e argamassados
com sangue. É ou não é assim?
— E não brada aos céus que assim seja?
— Os céus estão-se marimbando.
— Tudo é transitório...
— Deixa ser! O minuto para a nossa febre é longo como as léguas-da-póvoa.
Contamos contigo. E vou-me lá que se faz tarde. Aparece na vila. Daqui
vão o Justo e o Nacomba e não sei quem mais. Adeus, amigo!
Manuel Louvadeus entrou na taverna, cabisbaixo.
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— Vai correr sangue, não haja dúvida — proferiu o Nacomba, que estivera a
ouvir, dobando com a cabeça e arregaçando a beiceira. — Vai, vai! Se o
Governo teima em meter aqui a pata, temo-la tramada ! Mas você, seu
Louvadeus, está-se ninando. A Rochambana fica fora do perímetro. Cerce,
cerce com a linha da demarcação pela banda do sul, mas fora. Trazem-na de
olho por causa da fonte, mas isso de passá-la a bilhestres é lá com
vocês...
— A Rochambana é a minha chácara — proferiu Louvadeus com brincada
firmeza na voz. — Nem sei se meu pai queria !
— O Teotónio!? Olha, olha! — emitiu o tio Carles em tom de meio sarcasmo.
— Já lhe ouviram que o primeiro que se adiantasse de más tenções era o
primeiro a patear.
— Quem lhas faz, paga-lhas! — corroborou o Justo.
— Com língua de palmo — disse o Nacomba. — Homem derrancado! Vocês não
sabem o que se passou com o Manga Curta, o couteiro? Pois este ladrão,
que só serve para desinquietar quem está quedo, levava-lhe um coelho e o
ferro que o agarrou. Vai o Teotónio abispou-o a esgueirar-se. Correu-lhe
à frente, de espingarda apontada ao peito: Ou pões aí o que levas ou
estás aqui estás no inferno! O Manga Curta é farsola, pois até de joelhos
se ia deitando.
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— Ainda hoje, se é preciso esgalhar um pinheiro, sobe por ele acima como
um gato — disse o neto.
— Onde deita a unha é dele — tornou o Nacomba. Falavam ao paladar de
Manuel Louvadeus, que, embora homem cordo, não ficava indiferente às
façanhas do pai. O velho era um bicho de respeito. E ele, desvanecido sem
o dizer, fez sinal ao vendeiro que punha a pachorra toda a servir os
bebedores:
— Bota vinho, seu Nacomba, bota vinho! — E volvendo cara ao adjunto: —
Muito me contam os meus patrícios. Sim, senhores. Lá na Rochambana não se
toca. Quanto à serra, no geral, o Governo não procede bem em violentar as
aldeias. Desgraçadamente, por toda a parte o povo é carneiro de tosquia.
Mas também sucede ser criança, e não sabe o que quer, nem o que mais lhe
aproveita. Estão certos vocês que ficam roubados? Não é para vosso bem
que vem arado mecânico rasgar maninho?
— Qual nosso bem?! É para bem deles. Os pinheiros cortam-nos eles, quando
forem medrados. As estradas que se propõem fazer pela serra fora só para
eles é que servem. As casas constroem-nas para os guardas. Põem
telefones, mas é para uso próprio, prevenirem os postos se os mateiros
andam à lenha ou lhes cortam uma estaca. Numa palavra, os benefícios só a
eles beneficiam. Adeus, adeus, ali ninguém mais entra. Pior que a torre
da Madorna! — arengou o moço que pouco antes citara a batalha de
Aljubarrota.
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do homem fera! Os lobos não me metem medo. Quem viveu na mata com a onça
e o índio, o índio brabo, que nas suas horas é terrível, não tem medo do
bicho nacional, este pobrinho de bicho mesmo que tenha fome!
Movido pelo alembrete, o Vicente subiu acima da camioneta e, sopesando o
malão, escorregou-o pelo frontal abaixo. À beira, estava o Jaime com o
primo Plácido a ampará-lo. E, mal poisou terra, cada um à sua argola,
largaram com ele, à vontade e ligeiros. Justo Rodrigues e os mais viram-
nos partir lestos, a grandes pernadas, direitos à casa dos Louvadeus que
ficava à desbanda do povo. Pelo rasgo e desembaraço como seguiam, olharam
uns para os outros, proclamando com unânime insolência: muita parra e
pouca uva. E todos, desde logo, compadre Justo, Manuel do Rosário, João
do Almagre, Nacomba, Grulha, Finote, afivelaram um ar despiciendo, aquele
ar que anoja mais que cobra a desenrodilhar-se do capim.
E Louvadeus disse em tom encavacado: — A mala traz uma ridicularia. Vocês
sabem, pois não sabem, inglês só viaja com mala de mão.
Com tais palavras, comprovativas da impressão detraente, engendrou-se um
certo frio entre os paroquianos, embora à claridade equívoca, formada
pelo gás do petromax e o luar, se não visse bem nítida
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II.
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Toda a gente que estava na mesa ouviu a parte cochichada, menos Streit. E
tantas vezes este proferiu: quê? quê? aproximando a orelha, que Labão
acabou por compreender que era mouco e foi-lhe buzinar ao ouvido o que
acabara de proferir em gama baixa. Fontalva entretanto começara a
leitura. Matéria sabida. O perímetro a arborizar na serra dos Milhafres
alcançava as abas de dez aldeias: Arcabuzais, Urro do Anjo, Corgo das
Lontras, Valadim das Cabras, Almofaça, Azenha da Moura, Parada da Santa,
Ponte do Junco, Toiregas e Rebolide. Estas aldeias eram, em relação ao
planalto maninho, a sua bordadura verde vitalizada. O espaço bravio
interjacente representava no plano nacional prejuízos económicos
intoleráveis. Não se justificava a sua manutenção, tal qual, a título de
que fornecia umas tantas carradas de tojo ou carqueja a este e àquele
povo ou pastavam nele umas dúzias de ovelhas tinhosas. Todavia, nas
aldeias referidas, condensava-se uma certa resistência, mais latente
aqui, mais explosiva além, contra o regime que se pretendia instaurar,
regime que, se por agora as privava de certas zonas baldias, lhes trazia
vantagens incalculáveis no futuro.
César Fontalva foi durante muito tempo martelando as razões, que poderiam
invocar os povos, contra os imperativos do Estado, deus ex machina. Para
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ficam a dois passos umas das outras. Com o revestimento vegetal dos
oiteiros, beneficia o regime hidráulico da região. Minas e fontes de
superfície adquirem mais constância no seu fluxo, e os rios e corgos
inundarão menos os campos e é possível que não arrastem mais as terras.
Não se fala nas vantagens de ordem sanitária e climática que resultam
daí. São intuitivas. Por outro lado, dentro de vinte, trinta anos, a
região, que é pobre, com o trabalho de pinhal, derrubadas, serrações,
gemagem, transportes e alimpas, terá aqui uma fonte apreciável de
receitas e a ocupação certa de muitos braços.
Neste instante o representante de Arcabuzais, Justo Rodrigues,
desencravilhou as manápulas. Com a direita deu uma sapatada na esquerda e
esborrachou as duas moscas malditas que lhe chupavam o sangue. Levou
depois a mão à testa contra uma terceira mosca, mas essa fugiu a tempo
para o nariz do Manuel do Rosário, da Azenha, que não deu logo por ela.
Os homens de Almofaça e da Ponte do Junco, de carnes não menos frigidas,
animados com o exemplo, desataram também a enxotar as moscas ou a reduzi-
las a grude. Aqueles Paços do Concelho, com a feira do gado ao pé, eram
um inçadoiro prodigioso de bicharia, a indígena, já por si caudalosa,
acrescida da muita que transportavam as bestas, de vária ordem, dum
redondo de muitas léguas.
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— Ra's parta!— exclamou Justo.— Ainda há mais moscas nesta terra do que
ladrões.
O engenheiro silvicultor chefe, como ouvisse o brado destemperado de
Justo, pôs a mão em concha detrás do ouvido, voltado para ele. Depois,
tendo compreendido que não era nada com a sua pessoa, nem com o assunto,
volveu:
— Ainda esta cedência é condicionada. O Estado obriga-se a entrar todos
os anos nos cofres das corporações administrativas com a quantia X. Por
um lado arrenda-lhes os terrenos, como se fossem proprietários legítimos,
o que não está de modo algum provado, por outro fá-los partícipes no
rendimento líquido da floresta.
— Se esse dinheiro for às mãos de quem o souber administrar, não é má
pechincha — rosnou o Lêndeas no tom do bendito, quando pronunciado para
ser ouvido pela igreja toda.— As juntas têm já para águas, têm para
calçadas, têm para cemitérios... Bem haja o Governo!
— Se lho meterem na unha, seu Julião, até dá para uma horta que vai logo
às carreiras matrizar em seu nome — rosnou o João Rebordão, de Parada da
Santa, que fora acusado por ele de inimigo do regime e preso. — Esse,
sim, é que era dinheirinho bem empregado!
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Fora disso, e elas é que ditam, a serra é franca. O tojo, o sargaço, a
bela-luz são da cabra que os esponta ou do ferro que os corta. A lebre, o
coelho, a perdiz são do caçador que lhes acerta com dois bagos de chumbo.
— Desde que tenham licença de caça e porte de arma — acrescentou em
aparte o Dr. Labão, crónico presidente da Câmara, zeloso de uma
formalidade que revinha à sua esfera.
— Livre e plena propriedade! Na serra não existem divisórias, nem muros,
nem coutadas, nem empeços. O lavrador chega e ninguém o coíbe de encher o
carro; escolhe campo o que mais madruga; o mais operoso; o mais apto. É
um prémio ao esforço; os gados pastam à rédea solta sem couteiro que os
acoime. Em algumas destas aldeias diz-se: nasce um cordeiro, nasce o
pastor que o há-de guardar, tanto a serra é o providencial e oportuno
redil. Tirando-lhes a serra que lhes dá o Estado em compensação? Dá-lhes,
se der, daqui a dez, quinze anos, lenha; caruma; estacas para feijoeiros
e para foguetes; ares impregnados de essências vegetais, quando até agora
são de oxigénio puro e ozone dos altos; e sombras, oferece-lhes muito
boas sombras. Oferece-lhes também belas paisagens. Que é isto para eles?
Pois não são o seu elemento? Pode oferecer-se o céu como prémio ao
pássaro, ou a água ao peixe? Nos próximos dez
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que se fizera na mesa o podia interpretar como êxito. Os representantes
das aldeias, sem compreender bem, tinham parado com a matança. O bonito é
que as moscas abusaram logo da sua contensão. Viam-se agora por miríades,
na mais fresca das regaleiras, cobrir as mãos cabeludas e encabarem-se-
lhes pela manga dentro das japonas. O requisitório todo, que esguichava
ali o seu advogado, embora não lhes custasse um chavo, azabumbara-os, sem
que o entendessem. Que azabumbasse os pacabotes do Governo, era o que
mais os podia interessar. Ou acaso ter-se-ia ele passado para o inimigo?
Os olhos deste e daquele, ao vê-los hirtos e calados, traíam uma
desconfiança manifesta. De par as bocas se lhe escancaravam, que é um dos
momos da atenção incompreensiva ou soez.
— O espiritual não se pesa, que lá as roçadas de mato, que vão faltar ao
serrano, essas contam-se e sabe-se quanto valem — rematou o advogado para
recair numa pausa bem merecida, que a todos foi grato saborear.
— Em Parada da Santa o que se queima é lenha da serra — disse ex abrupto
João Rebordão.— Nós não temos tapadas nem bosques. Temos umas belgas à
beira do rio, que dão centeio e milho, e é a serra que dá o leite e a lã,
pois que ali se apascenta o nosso vivo. Quanto a lenha, morando nós lá
para os cornos
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— Em Corgo das Lontras, toda a urze nos vem dos picotos. A moreia faz-se
de lá — aduziu João do Almagre.
— A nós — adiantou Alonso Ribelas, de Favais Queimados — fornece-nos o
sargaço e toda a chamiça miúda. Queimamos chamiça por uma pá velha. Com a
cinza adubamos as terras.
— O solo da região é pobre de potássio — instruiu Fontoura.
— A nossa área — informou o delegado de Rebolide, um velhote alto e magro
como um junco — produz de tudo pouco. Muita gente vive de arrancar torga
e fazer carvão.
O Manuel Louvadeus chegou-se adiante no seu fatinho tropical, todo ele a
respirar o embarcadiço. Por baixo dos seus modos acanhados, mesmo
tímidos, latejava o homem habituado a lutar contra tudo, a começar pelo
langor do tempo, que é o pior inimigo do sertanejo:
— Dão-me licença os senhores? Eu andei por longe muitos anos, mas afinal
a minha alma ficou cá nos penedais. Por isso a questão me encontra na
primeira fila. Ouvi agora dizer ao senhor Julião Barnabé que os senhores
engenheiros encaravam como maneira de resolver este caso, a contento de
todos, dar aos lavradores, que têm gado e cortam estrumes na roda do ano
para as suas terras, um subsídio
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vem-lhe dali. E que mal? — estou a ouvir dizer ali ao Sr. Streit. — O mal
é que o serrano nunca mais sabe quem é. Fica desgarrado. Passa a andar a
monte. A ser alma penada. Os penhascos são a âncora do seu próprio
sentimento. Querem-no esvaziar, querem-lhe lavar o cérebro, como agora se
diz, pois tirem-lhe a serra e onde só havia rocha, espanto, miragem,
plantem o arvoredo, e terão feito outro homem. Evidentemente que pior.
Ouço dizer que a máquina humana tem milhares de anos. Terá. Pois
desmontá-la, convertê-la noutra, é tarefa perigosa.
— Suponhamos que está certo. É a gente duma geração que sofre. É a gente
que morre numa batalha, uma pequena batalha, D. Afonso Henriques e os
mouros, num desastre, a terceira classe do Vera Cruz que vai ao fundo.
Não é nada que conte...— gracejou Streit.
Rigoberto sentiu-se tomado de cólera ante as palavras cínicas do
engenheiro. Mas já Manuel Louva-deus voltava à atitude de reptador:
— A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não é igual
para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram
quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar
como quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não
prejudiquem o vizinho, tornou-se cárcere. Não, os serranos, mil, cinco
mil,
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dez mil, têm tanto direito a ser respeitados como os restantes senhores
da comunidade. Era a moral de Cristo: por uma ovelha... Se os sacrificam,
cometem uma acção bárbara, e eles estão no direito de se levantar por
todos os meios contra tal política.
— Pensam todos como o senhor? — inquiriu Streit com um mau pensamento
reservado.
— Imagino que sim — respondeu Rigoberto por ele, sem titubear, sentindo
todavia até onde o asserto podia atingir. — Se não pensam, está-lhes
radicado na massa do sangue.
— Querem então que deixemos a serra como está? — perguntou Streit com ar
escarninho, em que latejava a ira.
— Não seria a pior das soluções — respondeu Rigoberto.
— Pois não será essa, não senhor, que seria a pior das piores. O tempo
curará os dislates do entendimento que possam surgir em questão tão
distante da nossa época. O que me permito recomendar a todos é que não
cometam violências. Se as cometem, estamos mal...
Os representantes das aldeias, compreendendo que se tratava de juízo que
qualificavam de vida ou de morte, tinham-se imobilizado de todo contra o
muro, deixando-se devorar pelas moscas. Em geral de vestias escuras,
rostos de arestas rudes e maxilares
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que condiz é a serra como está. Doutro modo, para ele é um contra-senso.
Sem ele, aceito. Mas joguem-no primeiro ao mar ou desloquem-no para
outras paragens, como se fez a muita gente depois da guerra. B verdade,
porque não retiram para outras regiões a população dos lugares que
pretendem colonizar? Agora, subverter a fisionomia da serra sem mudar a
essência do serrano é mais que degradá-lo, é injectar-lhe a peste lenta.
A arborização vai fazer do pobre íncola o que a arma de agulha fez do
Pele-Vermelha: suprime-o inexoravelmente. Os senhores acham bem? Na minha
opinião humilde e desambiciosa, opinião de quem vê o homem através da sua
humanidade, o que há a fazer é plantar civilização nas aldeias, uma
civilização digna do século XX, antes de pensar em ir para a serra mudar-
lhe a natureza.
— Laboramos num círculo vicioso — objectou o engenheiro Fontalva, com
brandura.
Streit ergueu-se e dobrando-se para a mesa, apoiado nas falanges dos
dedos, exclamou:
— Todos esses argumentos, meu senhor, seriam a considerar nas Cortes de
Almacave. A repartição a que pertenço não se preocupa com a «espada de
cortiça para matar a carriça». Perante um problema estabelece uma
equação. Qual é a resultante? O serrano da serra dos Milhafres é um
português como qualquer outro português. Temos de tratá-lo em
conformidade.
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E Labão, porque toma, porque deixa: — Ora, ora, o serrano dos Milhafres
era um alarve como outro qualquer: Estava farto de os conhecer. Viam-se
por dentro nas suas rodagens, e tornava-se menos que problemático julgar
o que ia no entendimento do nosso avô troglodita.
Tinham parado à beira da estrada que nascia nos confins do distrito e
cortava a vila ao meio. Os paroquianos ajuntavam-se à volta, muito
curiosos, a querer ouvir a leria de Labão. Para a feira era compacto o
alarido de açude, que o alto-falante cobria de tempos a tempos de sua
ressonância estrídula. Perante a selva de varapaus e a grande cáfila de
parranas, perna à frente, peito abaulado, Streit revelou a sua
estranheza:
— São os feirantes ociosos?
— Não senhor, é a gentinha das aldeias que veio acompanhar os seus
embaixadores.
Streit mediria de relance aquela mó de gente, agarrados uns aos lódãos,
outros com o bengalão policial de volta ou o sombreiro pendurados do
braço, onde não faltavam mulheres, estas aldeãs morenas, à Grão Vasco,
que trazem o desespero escrito na cara. Bonito! Os seus olhos de surdo,
incisivos e lúcidos; que ouvem nos lábios de quem fala e lêem o que está
por detrás das fisionomias apagadas, teriam tido talvez a impressão do
alevante que se
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— Faça o senhor doutor engenheiro boa viagem e não nos lance às feras! —
exclamou João Rebordão.
— Vossoria lá fará — exprimiu Manuel do Rosário, de Azenha da Moura — mas
vá com a certeza de que não damos o braço a torcer!
— Se quiserem guerra, têm-na — acrescentou o delegado da Ponte do Junco,
as mandíbulas projectadas num ameaço façanhudo.
— Nós também não vamos a Lisboa cobiçar os relvados, que lá há, para
pastagem das nossas vacas — gracejou Ribelas. — Pois podia-se-lhe chamar
aproveitar terra!
— Em nossas casas mandamos nós! — bramou Justo.
Streit perante o coro, que crescia em exaltação, empalideceu. Estendeu a
mão a Louvadeus, que lha apertou com lealdade e cortesia, e voltou a
apertar a mão de Rigoberto com excessiva cordialidade. Reparou que o
fizera instintivamente a bem de conciliar o favor da turba, e pareceu
indisposto consigo próprio. Ouviu que proferiam impropérios contra ele, e
a mostra que dera de pusilanimidade, embora impercebida, acabou por
enfurecê-lo. Sentia-se a cólera subir-lhe no peito. Era a crise do mastim
que precisa de ferrar o dente. Positivamente de mal consigo, com os
parranas incivis, com a vila sertaneja que ficava a desmão do caminho de
ferro, olhou para
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III.
JAIME Louvadeus encontrou a irmã a falar com Bruno Barnabé no caminho dos
linhares. Jorgina trazia à cabeça um molho de erva e na mão a seitoira.
Jaime avançou para ela e ergueu o braço:
— Já, diante de mim!
A rapariga não disse uma, nem duas. Meteu os olhos no chão, e pôs-se a
marchar diante dele, deixando o Lêndeas boquiaberto. Cem passos mais
longe, tornou o moço:
— Se te apanho outra vez a falar com aquele chibo, mato-te. Mato-te a ti
e mato-o a ele. Um dia saberás as minhas razões. Ouviste bem?
Não disse mais palavra e a passo estugado entrou em casa, abandonando a
irmã no caminho.
Jorgina não alterou em nada os seus hábitos, mas levou a noite a chorar.
Na alba, de lampião aceso por via do escuro, a família Louvadeus abalou
para a
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que era a noite estirada sobre a terra de monte para monte. Que pulsação
era aquela: a água da fonte que nascia a quatro passos e se despenhava
rolando dum talhadoiro. E ficava preso dos seus gorgolejos, muito
flébeis, indecisos entre soluços e risinhos de criança. Não raro, em
menos de três tempos, empolgava-o o sono. Às vezes era com o olhar
cravado nas três Marias, que mal pestanejavam no fundo fundeiro do
firmamento, ou na lua cheia, levada pelo céu fora como uma piroga de
índio no Guaporé. O Farrusco fazia-lhe companhia, animal de ar livre, tão
misantropo como ele.
No povo passava às vezes o dia e umas noites por outras, pois que lá era
«a casa do engenho», costumava ele dizer abrasileirando as coisas. Mas a
Rochambana, que seduzia o pai pela selvagem independência, a ele, se o
chamava, era pelos encantos particulares da solidão e meio de entregar-se
com toda a alma de sertanejo à cadência musical da noite na sua
labilidade misteriosa. Manuel Louvadeus, nesta vida de ermo e
monasticidade, retemperava-se. Já tinha melhor pinta.
Aquela manhã de Maio, quando a mulher e filhos chegaram à portaleira,
anunciados pela chiada do carro, estava a varrer o lusco-fusco dos cumes
para os côncavos e vales onde os córregos correm surdos por entre
sangrinos e giestas negrais. Um mocho atirava
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para um ora para outro comensal. Num dado momento o Rebordão agarrou-lhe
pelas fúcias, que apertou nos dedos nodosos como num barbilho, e disse:
— Farrusco duma cana, se todos fossem como tu, acabavam-se as perdizes e
os coelhos. Felizmente és único!
Cuspiu-lhe nas ventas em sinal de amor e deu-lhe um naco de carne. O
podengo tirou essa manhã o ventre de misérias e enrodilhou-se, consolado,
a dormir a sesta. Rebordão, Justo, o compadre ferreiro e mais acólitos
foram-se dali de barbela untada a cantar o bendito.
Depois que partiu toda a malta, os amigos para os povos, mãe e filha à
lida, Jaime com um carro de giestas, de aguilhada no ar à frente das
vacas, o velho arranjou uma estaca e com a ponteira começou, pervagante
pela lavoira fora, a empurrar os bagos de milho que, havendo ficado a
descoberto, reluziam na terra negra. Nem contas de oiro. Se os deixasse,
estiolavam-se ao sol, mal germinados, ou vinham a rola, o pombo bravo, a
torda e outros pássaros de lúzio hiperlúcido e chamavam-nos ao estreito.
Demais, era preciso que não houvesse falhas, para que a seara fosse unida
e parecesse bem. O parecer bem, que no saloio é regra, no camponês do
Norte nem sempre é letra morta. Com o velho Teotónio não era. Sabia por
experiência, além de o instinto o precaver
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— Bah, tanto vivi sozinho por aqueles sertões do Brasil, que acabei por
arranjar dentro de mim parceiros com quem conversar. São manias! Então
sempre estiveste a escutar?
— Não estive, assim Deus me salve! Acabei agora mesmo de cerrar o
cancelo. Ouvi-te falar em vivenda. Vivenda para aqui, vivenda para
acolá...
— Está bem, está bem. Não te esperava tão cedo. Olha lá... Que dizes tu
se mandar fazer aqui uma casa pegada ao penedo...?
— Uma casa pegada ao penedo?!
— Pois então? A casa, sim, a casa pegada ao penedo. Já não é a primeira
vez que te falo nela. Escusas de arregalar os olhos. Não sabes o que é
uma casa? E pegada ao penedo, pois então, pegada, não se há-de rachar um
castelo destes! Não tinha graça nenhuma. Faz-se a casa junto e ganha-se,
que uma das faces do penedo serve já de muro. É questão de pico. Não
concordas...? Eu não tenho alma de deixá-lo fazer em pedaços. Do alto
dele, avista-se meio mundo...
— Ah, lá isso avista! Quantas vezes eu não subi derriba dele a botar
olhos: onde andará aquele homem? Mas a gente não come do ver.
— A gente não come do ver, mas alegra-se. Alegra os olhos. É como varrer
teias de aranha da alma. Trepei lá acima esta manhã. Lá longe, a serra da
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Estrela nem sei o que parece... uma gigantona que se cobriu com uma
capucha e se deitou ao comprido, cabeça para a Guarda, pés para o mar.
Fita a gente, como se a gente olhasse para ela. Quase se podia meter
paleio de cá para lá. Havia de dizê-las bonitas se soubesse contar o que
tem visto pelos tempos fora em céu e terra!
Filomena contemplava em silêncio o seu homem, imóvel, olhos muito
esbugalhados, mãos debaixo do avental, cestinha no braço, a ouvi-lo botar
aquelas maluqueiras como um chocalho bota sons. Ele deu conta daquela
fixidez pejorativa. Que estava ela a excogitar?! Supunha-o liru ou tocado
da videira? Raio da mulher! Na capela do olho aquela esfera-zinha
castanha, picada de pontos de oiro, que parecia, com ira, pólvora a
arder, e escurecia de todo se tinha alguma pena, sentia-a como a cabeça
fina duma cobra-d'água por cima das merugens a procurar. Diabo de mulher,
não o conhecia ela por dentro e por fora?! Que tinha a desdenhar!
Disse-lhe como quem sabe que atira uma pedra e bate em cheio:
— A barraca já é estreita para o Farrusco... Quanto mais para meu pai, a
cabra, o Farrusco e eu.
O Farrusco com o seu focinho agudo, arraposado, orelhas pequenas e
guichas, magro de flanco, flexuoso e vibrátil de espinha, mal ouviu
pronunciar
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a neve e a chuva a caírem por detrás dos vidros — a casa há-de ter
vidraças, fica sabendo — ainda voltas a florir. A florir como uma
macieira... Ouve, entra aqui para a barraca...
Filomena limitou-se a fazer com a cabeça sinal de que o pai estava aí a
vir sem que se lhe apagasse no rosto o sorriso que agora se lhe afigurou
entre amorável e dengoso.
— Estou tentado a ajustar a obra com Mestre Lara. Que dizes? Ah, não
queres. Queres antes ficar no povo?
— Quero, homem, quero. A casa do povo não dou licença que a vendas...
— A casa é do pai. A última palavra é dele. É ele querer!
— Não quero eu.
— Mas porquê?
— Porque sim. Eu só estou bem na casinha lá em baixo, a ver e ouvir minha
mãe, que morreu lá, a comer o caldo, a escutar de noite, nas lojas, as
campainhas das vacas, de manhã a acordar ao cantar do galo...
— Aqui também podes ter isso...
— Não quero. Aqui tenho medo. A serra sempre me meteu medo. Arrenego do
silêncio destes penedais. Olho lá acima para os penhascos... Com o
nevoeiro, parecem-me cocas que se vêm deitar a mim.
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Não, homem, se queres que viva mais uns anos não me tires do povo.
— Então não se faz a casa?
— Por minha vontade não se faz. Ai, esta fazenda há-de ser a nossa
desgraça!... Não ter o Diabo levado a cardenha! Porque lhe não caiu um
raio em cima e não a consumiu?! Na cardenha é que está a origem de todo o
mal!
— Foi o pai que a fez. E repara, nem te lembras que vive aqui feliz como
um lagarto!
— Deixá-lo viver!
Ficaram a cismar. Como ela conservava nos lábios uma indefinível
expressão de rancor, proferiu ao acaso, repisando:
— Não queres! Hum, gostas mais dos cortelhos...!
Manuel Louvadeus viu-lhe, com a braveza interior, as estrelinhas doiradas
das pupilas chamejar como brasas quando lhes assesta o vento. Pudesse ela
excomungar a cabana, que a excomungava. Não tinha perdão. Fora o pai dele
que a construíra de grossas pedras rachadas a guilho, grandes como
esteios das orcas. De pé, mal encostadas umas às outras, tecto de uma só
água, colmo por cima de giestas seguro por sobrigos, uma porta de couce e
um janelo só utilizável nos dias de bom tempo, ali estava o seu covil de
muitos anos.
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— Põe-lhe telha — disse ela. — Traz uma cama... Dá-lhe uma mão de
barro...
— Não, a letra há-de dizer com a careta. A barraca deixa-se como está.
Volveu a estirar-se de bruços, meio inerte, meio sorridente, ao lado do
Farrusco. Tinha-lhe passado a onda lasciva e pôs-se a mascar a folha
verde dum fiei to. Com o evolar dos fumos capitosos, a começar pelos do
verdasco, eclipsou-se-lhe também no horizonte eufórico a casa
ambicionada. Filomena quedou-se a observá-lo naquela involução de bicho-
de-conta e proferiu, ao passo que desandava levada no torvelinho dos
pensamentos:
— Vou-me lá. Está o vivo por acomodar. Vim pelas couves arrancadas na
vessada. O Jaime não se lembrou...
Foi pela terra abaixo à recolha dos pés de couve e, entretanto, chegava o
velho. Encostou a estaca à parede, sacudiu os tamancos, e disse:
— Vai o ano temporão. Temos graeiro. Ouvi há migalho a codornica. Contei-
lhe dez pios e toda se repenicava!
— Sente-se, senhor pai. Não lhe doem as pernas? — disse o Manuel
Louvadeus, querendo deste modo, embora platónico, dar-lhe uma
demonstração de afectividade.
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O velho sentou-se sem responder, mas, pelo cenho que fez, agradado do
convite. Dali a pouco, tentado pelo soalheiro, emparceirava com o filho,
estirando-se a todo o longo sobre o fofo matiço. Foi então que o Manuel
Louvadeus, agora a esgarçar o fieito folícula por folícula, lhe falou no
projecto que acalentava de fazer ali uma casa. Porque torna, porque
deixa, não se dava no povo, com um pardieiro acanhado, malcheiroso, maus
vizinhos sempre de gargalo estendido a ver e ouvir tudo o que se passava.
Ali estariam livres também de andaços. O pai ouvia em silêncio, sem
pronunciar palavra. E ele, tomando a sua mudez como um assentimento,
depois de fazer valer umas razões e outras, esboçou as linhas gerais a
que teria de obedecer a construção.
Foi então que Teotónio Louvadeus, erguendo-se sobre o cotovelo, proferiu
em voz resmungada:
— Para fazer uma casa é preciso disto...
O filho, que continuava de bruços, não viu o gesto despiciendo.
— Isto quê?
— Isto...— e o pai volveu a rolar o grosso polegar sobre o índex, já o
filho, havendo toscado o gesto, escusava bem de lhe ouvir: — Isto...
bagalhoça. Tens?
O Manuel Louvadeus olhou para o pai com olhos
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— Pois custará. Mas olhe que eu ainda tenho comigo uns contos de réis...
— Pois se tens, bom proveito!
— Tenho — tornou em tom de cólera que já voltavam as lágrimas a perlar-
lhe nos olhos. — E saiba, senhor pai, que eu já fui rico... muito rico;
tão rico que a freguesia toda valeria menos do que o que eu tive. E posso
dizer que torno a sê-lo...
— Pois serias rico, serias. Também o foi Pedro Cem. Aconteceu-te o
mesmo?... Mas olha, não te consumas. Com as mãos a abanar ou cheias de
contos, um homem que é homem fica de pé.
— Fui muito rico! Muito rico e torno a sê-lo! — e proferia estas palavras
por acessos, embargados pelo choro.
— Sossega, sossega. Tanto se é homem com unia rasa de libras como com um
chavo.
— O pai não acredita?
O velho não lhe queria dizer que sim, nem sabia dizer que não, para não
faltar à consciência, e pôs-se de joelhos à sua beira à espera que se lhe
estancassem as lágrimas. Ali empederniu mudo e apiedado, mas inflexível
na sua incerteza, e foi o Farrusco que se chegou para o filho, sentado
por terra, e lhe pôs a cabeça nos joelhos, a cauda a bater para a
esquerda e para a direita, de mansinho, lá na sua linguagem por certo a
consolá-lo. Depois, o cãozinho, como visse o velho perplexo,
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sobre outro, umas quantas marradas à estaca. Quando a pilhou abalada,
chegou-se a ela, meteu os galhos na forquilha, e jogou-a ao ar. Depois,
despachadamente, que tinha o cabritinho na cardenha a chamar por ela,
atravessou por diante deles, balindo para que lhe fossem abrir a porta.
Em despeito da consternação e embora com olho sonâmbulo, Teotónio seguiu
toda a manobra, que para ele não era novidade.
Mas primeiro estava o filho, antes de acudir à cabra, bicho mais
inteligente do que a maioria das almas cristãs com quem lidava, de úberes
retesos a varrer o chão. Dobrou-se sobre ele, quase suplicante,
amedrontado com o seu silêncio:
— Manuel!
O filho agora lançava-lhe um olhar radioso:
— É uma riqueza que não imagina! Com ela compram-se quantas casas,
quantas leiras, linhares há na freguesia. Na freguesia quê! No concelho.
Mas eu não quero bens. Quero dotar a terra em que nasci com escola digna,
hospital, luz eléctrica, telefone, água potável, civilizá-la, pois que
está bem na barbárie. Os Governos sórdidos não o fazem, faço-o eu. Está a
ver, pai? A fortuna lá está, lá me espera, sei perfeitamente onde está, e
vou lá direito de olhos fechados...
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IV
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e vai apelando o seu vintém. Eu não. Já vou nos trinta anos e sinto que é
tempo de mudar de vida. Meu pai é bom homem, mas está insuportável e,
aqui para nós, muito agarrado. Para me vestir e calçar, para uma borga,
que é um modo de dizer, o que vale é minha mãe que sempre vende a sua
rasa de cereal às escondidas e pouco a pouco lá coalha o seu níquel.
Senão...
Ia continuar, mas ouviu-se chanquelhar pela escada acima o tamanco do
senhor Barnabé. No momento de remontar ao último degrau, disse para o
filho:
— Vai-me já tratar da égua parida.
Respondeu-lhe Bruno:
— Sim senhor, lá vou. Sabe, pai, o senhor engenheiro disse-me agora que a
nossa nomeação é coisa certa...
— Para mim, não é novidade. Já o sabia pelo Dr. Labão. O Dr. Labão, que é
amigo às direitas, mandou-mo dizer. Para não deitar foguetes antes do
tempo, calei-me com o negócio. O que estou para ver é que conta dais vós
do recado. Olhe, senhor engenheiro, estes meus dois filhos não saem nada
a mim. Saem, pelo lado da mãe, a um tal Josefino Galvão, que lá anda pelo
Brasil feito caipira e cavalheiro de indústria. Ah, mas uma nódoa no bom
pano cai!
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O filho desceu a escada a arruaçar, e o velho arrepiou de catilinária:
— Não que eu tenha a dizer alguma coisa do moral deles. Tanto o Bruno
como o Modesto são capazes de dar o sangue dos braços pelo seu amigo. O
coração é bem, mas bom, a cabeça é que é de doidivanas. Ouço dizer que os
rapazes de hoje são todos assim. Serão. Os meus além disso são uns
estragados. Gastam tudo o que lhes vai às mãos. Quanto amealhei com tanto
suor e trabalhinho onde irá parar com tais estoira-vergas?! Olhe, senhor
engenheiro, levarem-mos para a floresta para mim ainda é melhor que tirar
a taluda na Santa Casa. Bem hajam, bem hajam, e abençoado seja aquele Dr.
Labão que deu os nomes deles ao senhor engenheiro-mor... eu...
Fontalva cortou a homília, com dizer:
— Então os nossos serranos acabam por concordar?
— Olhe, senhor, tenho feito quanto é possível por convencê-los. Muito
vinho e aguardente tem corrido de borla ao meu balcão! Em algumas terras,
como Almofaça e Rebolide, voltou-se tudo. Temos lavradores e cabaneiros
por nós. Noutras, como Valadim das Cabras e Azenha da Moura, estão relhos
e acarraçados. Nem a cacete!
— Como se compreende?
— Olhe, cizânia! Há lá uns mariolas que
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estavam como sopa no mel! Podiam contar com eles. Lá tesos, disse. Quem
lhas fizesse pagava-as. Ainda o pior mal deles era o mulherio. Dali lhes
tinham vindo amargos de boca muito sérios... em que haviam jogado a vida.
Aparte essas pechas — olhe, não era roubar, nem arrastar o nome de Deus,
nem crime contra a pátria — nada havia que lançar-lhes em rosto. Sua
Senhoria tinha duas vergastas para a vida e para a morte.»
— Para a vida... para a vida é que nós os queremos!
Quando Fontalva desceu à estrada, depois de muitas zumbaias do velho e da
mulher, que saiu ao traço da porta, encontrou o Bruno Barnabé em conversa
muito amistosa com o chauffeur. De Urro do Anjo a Arcabuzais eram dois
quilómetros. O jeep engoliu a fita da estrada dum jacto. Estacaram poucos
passos adiante das primeiras casas. César Fontalva saltou, e dirigiu-se a
um homenzinho que ia gingando estrada fora, em mangas de camisa, descalço
e roto, sachola ao ombro, a rilhar uma côdea. Um dos milhentos párias
povoadores daquela corda de terras.
— Ó patrãozinho, faça favor: onde mora aqui o Sr. Manuel Louvadeus...?
O homem mediu-o dos pés à cabeça, e não lhe vendo, por certo, o ar
facinoroso de beleguim ou citote, respondeu, a iludir mesmo assim a
pergunta:
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— Vai então chamar-me o Sr. Manuel Louvadeus ou ensina-me a casa...?
— Sim, senhor. Vou-lha ensinar. Venha comigo...
Foram seguindo pela estrada. Depois de atravessar um espaço deserto,
apontando uma casa isolada entre hortas, ao fundo duma quelha, disse:
— É aquela casa além. A da direita, a bonita, é do Dr. Rigoberto. A dos
Louvadeus é a que tem porteira de carro. Vê? Pode ir afoito e abrir a
cravelha que agora não está lá o cão.
César Fontalva foi direito à casa cujo piso se alteava com o seu patim
alpendrado ao fundo duma quinta. Do muro beiravam, a secar ao sol,
grossas giestas negrais. Rodou a aldraba de pau e pouco adiante do traço
da porta viu uma leitoa que refunfunava, estendida por terra, a amamentar
a ninhada grulha e vermicular dos bacorinhos. Quer lhe batesse com a
porta ou simplesmente se assustasse, a porca ergueu-se de salto, e
alguns, deles foram pendurados às tetas, outros ficaram estarrecidos
grunhindo e fungando como uma charanga quando, antes de o mestre erguer a
batuta, cada músico ensaia a sua nota, verificam uns a afinação e largam
outros duas fífias ao desenfado.
— Ó da casa!... — chamou, o seu tanto intimidado pelo desmancho que
causara.
Ouviu uma chocalhada de passos e, logo após, um
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A rapariga fez um gesto, que lhe pareceu de escandalizada, com que ele se
envergonhou ao último
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Ali estava no que vinha a dar um asno depois de passar pelos bancos da
escola primária! Grotesco. Apenas um selvagem, envernizado pelo alfabeto,
era capaz de alinhar aquelas bacorices piramidais! Ah, muito interessante
era a pequena a quem eram dirigidas, para a não tornarem odiosa ora e
sempre! Ê certo que daquelas palavras não transluzia aceitação. Antes
pelo contrário. Felicitando-se por ter captado missiva tão pandilha,
rasgou-a em quatro; depois, cada pedaço em oito; estes oito,
singularmente, em quadradinhos menores, e foi-os semeando ao vento pouco
a pouco. O vento se encarregou de os sumir pelo mato e o urgueiral, como
a farelório das debulhas.
Foi oscilando em pensamentos confusos, meio inebriado, que avançou para a
tapada. Subitamente saltou-lhe à frente um cachorro de pêlo crespo, rabo
no ar, focinho embirrento: béu, béu! Verificou que tocara no kral dos
Louvadeus. Um homem, que viera observar por detrás do muro, chamava o
cão:
— Farrusco, aqui! Farrusco! Levou a mão ao chapéu:
— Viva o Sr. Manuel Louvadeus. Lembra-se de mim da reunião na Câmara?
— Muito bem, muito bem. Faz favor de entrar... Abriu-lhe o cancelo e ele
entrou. Só agora notava
que o homem usava relógio de pulseira e vestia um.
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senhor é uma das pessoas mais consideradas por estes sítios e queria pô-
lo ao corrente do que o Estado faz ou pretende fazer. Os senhores
colocam-nos em postura muito embaraçosa quando julgam que vamos
prejudicá-los...
E, porque torna porque deixa, desenvolveu o tema oficial. Manuel
Louvadeus ouviu em silêncio e respondeu:
— A pessoa considerada deve ser meu pai. Eu sou um brasileiro de torna-
viagem e encontro-me na terra há pouco mais de meio ano. Mas digne-se
ouvir o que lhe vou dizer como se fosse pela boca de meti pai. Ele anda
lá em baixo, que não me deixaria mentir. Eu conheço as razões que o
Estado invoca para arborizar a serra e, decerto, não me são estranhas as
razões que animam os serranos a não querer que lhes bulam com o que têm
por seu. Fui daqueles que foram à vila representar os interesses dos
povos e vi lá Vossa Excelência. Se não reparou em mim é que Vossa
Excelência tinha muita gente diante dos olhos e mesmo mais em que pensar
para se deter na minha cara. O assunto não me é estranho por conseguinte.
E como não é, só lhe direi que, a meu ver, os senhores têm razão e nós
também a temos. Como conciliar uma com outra? Aí é que está o busílis,
não é isso?
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— Realmente.
— Ora, ao ponto a que chegaram as coisas, a minha opinião é que os
senhores não devem procurar resolver o negócio de arrepia-cabelos. Se
para cá vêm com tractores e tropa a proteger os tractores, como ouvi
dizer que vinham, corre sangue. Fique o senhor certo de que corre sangue.
— Pois é isso que nós queremos evitar a todo o custo. É para isso que eu
me venho entender com o senhor, como irei entender-me com outros.
O Manuel Louvadeus abriu os braços:
— Eu nada valho. De resto, por nada deste mundo faltarei aos compromissos
tomados. Quando as aldeias avançarem contra a tropa, o senhor há-de ver--
me na linha, da frente. Mas não para a violência. Se fizerem fogo, um dos
primeiros a cair serei eu.
Disse isto com uma certa empáfia romântica e o Fontalva tornou benévolo e
sorridente:
— Não se mata ninguém. Se for eu que esteja à testa dos trabalhos não se
dá um tiro.
— Pois Deus o ouça. Para desgraças, basta a miséria em que vivem estas
terrinhas, que é confrangedora. Acredite, senhor, esta gente é pobre e
triste a mais não poder ser. A existência é-lhe amarga...
— Por isso mesmo. Nós o que queremos é levantar-lhes o nível de vida. O
senhor não se persuade que, uma vez a serra florestada, o aldeão
melhora...?
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apodo que os estúpidos e maus jogam à mão cega, fiados de que a lapada
sempre vai quebrar telha?
— Bali, para um pobre, que não sabe o que vale a riqueza, isso pouco
interessa. Aqui na terra há ricos e pobres. Há ricos que todos os anos
enriquecem um pouco mais adquirindo a belga ou o lameiro que os pobres se
vêem na necessidade de alienar. No fundo, riqueza e pobreza, aqui, são
equivalentes, se pusermos uma e outra nos pratos da balança, isto é, se
atendermos ao nível de vida. Sobe e desce o prato apenas virtualmente. Os
ricos mantêm-se no pé em que estavam antes de ser ricos e os pobres igual
ou pouco menos. Uns e outros continuam a comer a mesma tigela de caldo e
a vestir as mesmas calças de burel no Inverno, de estopa no Estio, e a
dormir na mesma enxerga de palha. Mas vivem na santa ilusão, os ricos de
que são mais ricos, e os pobres mais pobres, e assim não tomba a aldeia
nos seus alicerces.
O agrónomo estava o seu tanto espantado com o poder discursivo do
Louvadeus e disse de chofre:
— Mas que aconselha o senhor para que não haja conflito entre o Estado e
as aldeias? Bem vê, o progresso tem estas exigências...
—Não aconselho coisa nenhuma a não ser o que o Dr. Rigoberto, nosso
advogado e homem de bom entendimento, propôs, que o Estado remeta a
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melhores dias o seu plano. Quando a aldeia estiver mais adiantada, tenha
luz eléctrica, telefone, escolas, assistência, fale o Estado em levar por
diante este número do programa. Então, sim, o progresso poderá impor-nos
tal exigência. Até lá, com fome, tamancos de amieiro e barbárie em toda a
linha, deixem-nos o que temos. Não nos queiram ditar a sua lei pela bala
e a baioneta.
— Não senhor, não senhor, desse modo nunca. O pior é que assim não nos
entendemos. Sou-lhe antipático como mensageiro duma causa que se recusam
a ver com bons olhos e lamento. Eu cumpro ordens. Ah, diga-me outra
coisa: vendem esta propriedade?
— Esta propriedade, que teve a sorte de ficar fora do perímetro, não se
vende. Vossa Excelência não vê que trazemos obras? Andamos a erguer aqui
uma casa. Quando se ergue uma casa na serra, é para se viver, para se
pegar de estaca de pais para filhos. A fazendinha só na matriz é deste
seu criado; em consciência é de meu pai... É do homem que lá vem. Ele
pode falar por ambos...
Apontou o pai que subia o carreiro, pés nus encabados nos socos, calças
arregaçadas, a felpa branca do peito a espirrar pelos bofes da camisa,
Teotónio Louvadeus. Vinha-se chegando a passo mesurado, olhos fitos no
visitante, toda a sua desconfiança em riste que nem aperrada para morder
ou arranhar.
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— Foi, sim senhor, terra arroteada e faz parte do logradoiro que querem
deixar a Arcabuzais. Deu-se aqui um caso, que só era possível nestas
terras humildes e numa nação de mandantes desabusados como é Portugal. Eu
lhe conto...
Ali em Arcabuzais e noutras localidades serranas como Ponte do Junco e
Almofaça, os moradores menos ricos — o filho do Louvadeus tinha sido do
número— logrados pelo lema capcioso: produzir e poupar, uma bela manhã
largaram em chusma para a serra de enxada às costas e de charrua quem a
tinha, e entraram a desbravar certas baixadas que lhes pareceram
susceptíveis de dar fruto. Viraram o solo, fizeram queimada do ervaçal
ruim e rabugem, semearam. Na terra virgem o centeio, que é uma gramínea
danada, mas sôfrega, cresceu que envergonhava o gordo alqueive, adubado a
estrume de estábulo. Os pobres diabos dos cultivadores é que não contavam
com a inveja de Caim. Tinha-se infiltrado, não sabia por que malas artes,
na Junta de Freguesia esse mau homem de Urro do Anjo, que tem taverna,
empresta a juros altos, e está rico como porco à força de por falcatrua e
violência arrancar o coiro e a camisa aos paroquianos: o Lêndeas. Além de
a seara privar, com ser terreno comunal, os outros povos da freguesia dos
dois fetos e outros tantos tojos que lá vingariam não havendo desbravado,
o homem
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não tinha sido partícipe da melgueira. Como tal, abaixo! De modo que
mancomunado com o regedor e couteiro, dois safardanas iguais, autuou os
desbravadores do maninho, e a coima, por insolvência, foi deferida a
juízo. Era presidente da Câmara, e é, o Labão, essa espécie de manda-
chuva dos sítios. Para tanto, não se cansava de oferecer jantares aos
magistrados e burocratas do concelho, como não imolava em casa todos os
presentes de lamber o beiço que da serra não despegavam de lhe mandar, os
palúrdios para serem menos escaldados e os mariolas para levarem a água
ao seu moinho. Muitas destas peitas arrepiavam logo marcha para casa do
senhor juiz, do senhor delegado, do conservador ou do presidente da União
Nacional, que enchiam o barrigão e ficavam a arfar por mais. No concelho,
meio serrano meio valejo, assente em arnelas feudais, predominava, como
em todos os da mesma índole, o nepotismo obrigado à perna de vitela e ao
balaio de trutas. Quem dá é tio, dizia o outro, e nestas terras quem mais
dava é que ganhava à vermelhinha. A única diferença que havia das
soberanias africanas era aqui os sobas serem muitos e não cortarem
cabeças. Mas, para voltar à vaca-fria, a coima foi julgada e o juiz, ou
porque tivesse a barbela untada com os salpicões — correu o boato que do
fumeiro do Lêndeas, carrilados pela via Labão — ou mal pensado,
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Catete com o Vargas. Sempre ouvi dizer aos antigos que contra a má sorte
envidar forte. Chamei Serôdio, o tal camarada. — Ainda estás com ela
ferrada de ir tentar a sorte lá para o sertão? — Cada vez mais. — Toque,
tens aqui um parceiro. Lá ou em casa do Diabo, onde se ponha pê em ramo
verde. — Olha, Manuel, nos garimpos c que um homem pode dar um pontapé à
macaca. Tenho cá dentro uma coisa a dizer--me que é a Fortuna que nos
chama. Olha que chego a vê-la assim como uma mulher de vida airada, uma
desnalgada bonita que nos convida a entrar. Não é ela também um coirão
sem vergonha? — Pois vamos lá! — Levo a Maturina, já sabes... — Então tu
tens uma noiva na terra, e levas a negra?! Larga semelhante emplastro. Lá
não te faltam mulheres. Arranjas uma índia que até lambes os beiços... —
Não, a negra há-de ir. Quem me lava e remenda? Quem me faz o comer? -
Quem me trata das maleitas? Só para isso é que eu a quero. Para lavar,
remendar e fazer-me uma tisana. Acredita que já nem me sirvo dela. — Não
é o que ela apregoa... — É uma aldrabona, uma babosa. — Mais uma razão!
Queres casar com uma rapariga limpa de Portugal e não te livras do
estafermo? — Deixa, homem, preciso da negra. O que te garanto ê que ela
não me tira a patrícia do pensamento. Lá está em Portugal. Espera por
mim. É neve pura. Aqui não há neve. Há negridão. É tudo a escaldar.
Quando voltar à
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e olhem que era uma batelada. A puta era encarregada pelo patrão de
segurar homem. E muitos lá deixavam a carne e os ossos! Pois também não
aqueci lugar que o filho de meu pai não era tolo. Nesta lavra assisti um
dia a uma parte que bastaria para me empontar dali para fora se não fora
o mais. Certo camarada, o Rafael, espanhol das Baleares, uma vez, quando
removia o cascalho, descobriu uma pedra preciosa de mais de vinte
quilates. Não a podendo bifar, que viu muitos olhos em cima, procurou
escondê-la, passando adiante e enterrando-a no lodo com o pé. Mas um
caboclo viu. Viu mas fez de conta que não tinha visto, também lá com a
sua fisgada. A certa hora da noite encontraram-se os dois à volta do
diamante. O Rafael andava a procurar com o gadanho, chega o mulato. — Que
vem fazer, seu cabra? Vem de ladrão? A resposta foi cair sobre ele. Mas
Rafael era homem desembaraçado e esperou-o na ponta do machete. O
mestiço, grande capoeira como era, atirou-se tão cego, tão cego, com tal
ímpeto que tinha de haver ali homem morto, um ou outro. Ora foi espetar-
se pelos mamilos na lâmina que lhe entrou até o cabo. Mas o espanhol teve
que dar às trancas e meter cabeça ao mato, que não era só a justiça, mas
toda a pretalhada contra ele. Perdeu-se, matou-se, nunca ninguém mais lhe
viu o rasto. Há quem diga que ainda é vivo, escravo dos índios brabos que
há
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Quando lhe faltasse macho, ia meter-se com o primeiro que adregasse. Mas
era uma mulheraça rija, bem feita, maninha, e não havia, diziam todos
menos eu, que nunca me utilizei dela, melhor enxergão para uma noitada de
burzunda. A gente trabalhava, trabalhava, e à noite o que queríamos era
que nos deixassem de galho ferrado até o amanhecer. Às vezes nem nos
podíamos segurar dos rins. Depois doenças? Uma vez Serôdio pegou
carrapato e foi um castigo para o tratar.
Ao fim da primeira semana, o resultado fora mais que desalentador.
Tirámos para não morrer à fome, se é que, quando há banana e coco, se
morre à fome no sertão. Um homem com fome lança mão de tudo, carne de
tatu, de lagarto, e sempre há raiz da mandioca. Andavam umas centenas de
pessoas no leito do rio, quase seco nos meses que para nós são o inverno.
Vossemecê nem imagina como é. Cada um vai apanhando cascalho e lava ele
nos poceiros de água que ainda restam aqui e além. Depois sacode-se o
conteúdo do crivo ou do alguidar, e quem tem bom lúzio lá descortina o
diamante, quando não é a ametista. A negra tinha olho de lince, a alma do
diabo. Se lhe dava para trabalhar, o que não era sempre, tinha sorte de
cão. Nós, os dois, como os outros garimpeiros, tínhamos montado o nosso
ranchinho de pau-a-pique, coberto com palha de aguassu. Num ficava o
Serôdio
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com a negra, noutro eu. Mulheres lá não faltavam. A Maturina era uma
cadela aluada e mais de uma vez me veio tentar. Arreda! Mas, como já
disse, ia meter-se com branco, com caboclo, com mono, e até o preto mais
reles lhe servia à falta daqueles. Quem a deitasse ao desprezo tinha-a à
perna. Já dum negralhão que trabalhava no garimpo, Leôncio de Jauru, por
ser daquelas paragens, sempre delambido atrás dela, fazia gato-sapato.
Era ele um valentaço, mau e fero, com umas ventas tão recuadas do eixo
que parecia estarem viradas para as orelhas. Então de lábios, não havia
alguidar que lhe ganhasse em grossura. Mas homem com mocotó. À luta
ninguém o dobrava. Um manager do Paraguai quis contratá-lo para lutar nas
barracas de feira, mas ele negou-se. Despegarem-no de Maturina era matá-
lo. Estava ali pegado de raiz para nosso mal.
Eu, mesmo assim, revolvia mais calhau do que ambos eles e, à noitinha, o
meu ganho não ficava abaixo. Mas aquilo não era a vida que sonháramos! Um
dia tirei-me dos meus cuidados e fui-me por um dos braços do rio acima,
que se enterrava torto e feio pelo cerrado dentro. Estes corgos estão
infestados de toda a casta de bicho e é preciso muito cuidadinho. No
brejo anda a onça e pior que tudo a surucucu e no lodo a piranha. A
piranha é a sanguessuga daqueles rios, com a diferença que é grande e tem
dentes
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que cortam como navalhas de barba. Um homem faz sangue e está perdido se
dá nele tal peixe. São aos cardumes, e vêm de cascos de rolha num rufo
como se lhes dessem sinal por campainha eléctrica. Lá andava eu, trabuca
que trabuca, foi ter comigo a Maturina. Quando me viu de traçado a cortar
os cipós e as trepadeiras, me disse muito dengosa:
— Manuel, voncê tá é doido...!
— Deixa cá, mulher do diabo.
— Deixo, deixo, mas do diabo é que no sô. Sô de quem me quere bem. Voncê
no mi quere...
— Que caceteação!
— Ué, bobage! — e rodou.
À tarde tinha posto a descoberto o álveo do riacho, seco, seco como
ossos, mas tão coalhado de seixos pequeninos que seria milagre não
houvesse ali pedra preciosa. E havia. Chamei Serôdio pela baixada, do
outro lado do Coxipó, de modo que os camaradas não dessem conta, e fui-
lhe mostrar o preparo:
— Aqui há molambage. Você amanhã diz no serviço que eu fiquei no rancho a
curtir as febres. E eu volto aqui. E voltei. À noite eu só tinha achado
mais diamante do que quanto tínhamos descoberto os três até aquela
altura. E para não darmos alarme, alternadamente, um dia um, outro dia
outro, ora porque tremêssemos as maleitas, ora porque fôssemos
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No pé de maracujá,
Minha nêga.
Quando quero, quero já
Minha nêga.
E estava tão bêbado que queria à fina força que Maturina fosse dormir com
Leôncio:
— Deixa dormir ele contigo, Maturina! Consola-me o pobre pretinho...
— Desenvergonhado, eu sou alguma caçamba que se empreste?!
— És uma pessegona sem caridade...
— Serei, mas no sô muié de porta aberta!
Leôncio, tomando aquela solicitude como uma zomba, indignou-se. Cresceu
para Serôdio. Nós, brancos, não podíamos consentir. Deu-se uma surra ao
preto que foi preciso conduzi-lo em braços para a tarimba.
Vinham a Cuiabá negociantes de pedra, no geral holandeses e alemães. A
gente precisava de vender, mas sabíamos como eles rebaixavam a
mercadoria, dizendo umas vezes que tal pedra não tinha boas águas, aquela
tinha jacas que prejudicavam o tamanho, aquela outra, depois de talhada,
ficava em cisco. Vendia-se-lhes para os gastos o menos que se podia. O
mais, arreda de tais galfarros! Estávamos ricos, estávamos, mas havia que
liquidar a riqueza. Lá é
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que batia o ponto e nos dava para matutar. Decidimos então vender o
cabonde para não dar nas vistas a nossa retirada e irmos negociar o
grande lote a S. Paulo. E, vai, vendemos a miudagem, e só essa, excedendo
o produto de dois anos de trabalho nos garimpos conhecidos de dois homens
dos mais testos à obra, deu-nos uma boa mancheia de dinheiro que
repartimos irmamente. Na véspera do embarque fui a Cuiabá comprar um
terno que andava como um ladrão dos caminhos. À volta, encontrei o rancho
do Serôdio fechado e ninguém me soube dar razão dele nem da negra.
Julguei que tivesse saído como eu saíra, e esperei. Noite cerrada, como
não aparecessem e crescesse a minha ânsia, fui à barraca, arrombei a
porta, e vi que tinham levado a jorça toda. Deu-me o coração um baque e
me disse: — Estás roubado, Manuel Louvadeus!
Corri a informar-me com Pedro e Paulo. Botei alarme e mal fiz. Tinham
tomado a direcção de Cáceres pela estrada do picadão, e veio-me logo ao
espírito que, havendo ali porto no rio Paraguai, se pisgassem para a
República Argentina ou outra terra lá nos cafundós do Demo. Aluguei um
cavalo, minto, comprei-o, porque o preço do alquiler era tal que melhor
era pago com dinheirinho escarrado na ponta da unha. E, mal despontou a
manhã, pois que de noite seria temeridade meter-se um homem ao chapadão,
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rompi. Ao fim da tarde, ora a trote, ora a galope, cheguei a uma terra
que chamam Nossa Senhora do Livramento, e colhi informes. Fui a um lado,
fui a outro. Ali não davam razão de ter passado nenhum branco com uma
negra.
Voltei atrás. Corri a outra terra para onde poderiam ter metido: Santo
António de Leverger. Tão--pouco tinham cortado por ali. Dois dias
andados, fui a uma terceira localidade, sita a umas quinze léguas:
Poconé. Ná, tais passarões por aquelas paragens não tinham sido vistos
nem falados. No meu desespero, andei à direita, andei à esquerda, até que
me decidi a meter polícia e caipiras no negócio, pagando bem. Nada mais
que da venda que fizéramos ao holandês, coubera-me, como já disse, uma
mancheia de dinheiro. Não olhei a gastar. Por fim, a raiva tomou-me a
ponto que me deu um febrão que durante dois dias não me pude mexer. Nos
meus pesadelos, o Serôdio ora me matava a mim, ora eu o matava a ele. A
negra dançava o saricoté nas macumbas e encomendava a minha alma ao
Mafarrico. Quando à força de quinino pude erguer cabeça, já não queria
saber do que perdera, mas vingar-me. Mas vingar-me como? Eram decorridos
mais de dez dias, os dois ladrões onde iam eles! Uma tarde o Leôncio
Jauru, que andara de princípio muito triste e azabumbado e tinha o
empenho que se imagina em descobrir o rasto dos fugitivos — e que bem ele
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que o larápio tomara, mas o mais certo era ter transportado a melgueira
com ele.
— Tu não irás errado, Leôncio?
— Não, siô.
O não siô compreendi-o eu melhor talvez que o próprio. Leôncio Jauru ia
na peugada de Maturina. Por isso me deixei guiar pelo preto como um cego
pelo moço e, às apalpadelas, pode dizer-se, de noite dormindo entre
grandes fogueiras, de dia seguindo pisadas sumidiças feitas pelos
poaieiros e seringueiros, comendo mel e palmitos, chegámos uma tarde à
serra onde a cada instante se ouvia a onça regougar com o cio. De cada
vez que bramia, o cavalo punha-se a tremer, a tremer, como se lhe
tocassem com um ferro em brasa. Devia haver por ali grande bicheza, e eu
me pergunto se era por causa de tantos uivos e rugidos que lhe chamavam
serra do Roncador. Subimos a um alto, escalvado como os nossos montes, e
pus-me a observar a espacidão. Olhei a um lado, olhei a outro: tudo
arvoredo ou matagal, tudo terra no princípio do mundo. Lá longe,
afigurou-se-me ver esvoaçar bandos de garças, e eram-no com certeza; se
lhes dava o sol a favor, flocos de neve não se baloiçavam mais fugazes ao
vento. Ali parei um bom pedaço, Leôncio atrás de mim com o cavalo à
rédea, ora a pedir a Deus do fundo da alma que me aliviasse do meu
desespero, ora, testo na minha ideia, a espiar os longes. E, vai,
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quis não sei se a minha boa, se má fortuna que descobrisse uma coluna de
fumo que subia a uns quilómetros à beira dum rio. Chamei a atenção de
Leôncio. O preto quedou um momento com os olhos pregados no horizonte e
explodiu:
— São eles, siô!
— Pode ser índio... poaieiro...?
— De sorte, nhor Louvadeu. Índio não acende lume fora do seu quilombo.
Poaia num há.
Aceitei que fossem os dois, e metemos para lá de espora fita, direitos
como gaviões. Levávamos toda a mecha, pois com os rodeios que fomos
obrigados a fazer, a sangrar dos picos dos escarapeteiros, gastámos o
melhor de duas horas. A certa distância, dei ordens a Leôncio para que
ficasse com o cavalo e eu meti pelo mato fora, ao palpite. A certa
altura, distingui os bambuzais do rio e plantei-me de tocaia. Santo Deus,
nunca o preto fora mais certo: eram eles. Enfolou-se-me o peito: Deus é
grande, mas a vontade do homem também não é pequena. O Serôdio estava
entretido a tirar a pele a um tatu e a negra ia com um coco para as
bandas do riacho por lá a buscar água. Fui-me aproximando, ora a coberto
das palmeiras anãs, ora de rastos pelo capinzal fora, com a faca nos
dentes. A seis passos, formei o salto, melhor que a pintada. Para o
Serôdio, a surpresa foi tal que, segundo muito bem notei, não saberia
dizer se estava
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nas garras de algum índio brabo se nas das feras. Quando me viu por cima
dele, o joelho na arca do peito, uma das mãos no pescoço, a outra com a
faca erguida, ficou ainda mais transido, olhos esbugalhados:
— Tens a vida na ponta desta faca. Onde está o
que roubaste?...
Não proferiu uma nem duas e eu tornei: — Não dizes? Despede-te do
mundo... Senti-o revolver-se debaixo do meu joelho, arquejar, com vontade
de sacudir-me se pudesse. Mas faltavam-lhe forças para lutar comigo, que
estava por cima, armado, e era incomparavelmente mais forte do que ele, o
que sabia muito bem por há muito lidar comigo. De modo que o vi descair
em quebranto e abandono, pelo que lhe alarguei a turquês das unhas em
volta do pescoço. E em voz rouca, meia gemida, lá
disse:
— Não me mates. Entrego-te tudo...
— Não quero tudo. Quero só o que é meu... Esta minha palavra era para lhe
causar confusão,
se no fundo do peito tivesse um pouco de vergonha. Serviu-lhe, bem dei
conta, para me querer lograr e ganhar tempo, porque acudiu com toda a
pressa dum afogado que agarrou alguma coisa com a mão:
— Só queres a tua parte?! Homem, não me mates e é tudo teu!
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mulher e filhos te peço que me não mates! Eu dou-te o que é teu. Podes
tomar também a minha parte. Não a queres? Não me mates! Olha que ficas
com as mãos a escorrer sangue do teu irmão e não há água que as lave. Não
me mates! Caso com tua filha... serei o teu escravo...
— Onde estão as pedras?
— Ficaram no rancho. Vamos lá e leva-as! Leva tudo...
Raciocinei com os meus botões: mato este ladrão? E, depois, que ganho eu?
Não sei o que senti com aquele bandalho debaixo do joelho, o preto ao
lado de mãos a abanar, a grande bocarra aberta, a negra, junto do ribeiro
meia desdenhosa, meio assarapantada, a ver. Não foi piedade. Um homem,
pai, sente piedade quando a sua situação é boa ou, pelo menos, não é
nenhum desastre, as coisas lhe correm bem ou prometem vir a correr, os
caminhos lhe estão desimpedidos, quando, em suma, não se lhe pôs o sol na
existência. Piedade precisava eu que Deus e o Diabo tivessem de mim,
quanto mais dispor dela a favor doutros! Eu podia lá ter piedade daquele
miserável!? Também não era medo de o mandar para o inferno. E medo de
quê? Da lei? No sertão não há rei nem roque. De Deus? Olhe, pai, àquela
altura já me não apavorava. Sabe o que foi? Foi o desânimo que se devia
ter apoderado de mim. Que valia matar eu o safardana?
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VI
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Estava-se nos meses das roçadas depois da colheita dos milhos. Havia mais
de uma semana que os homens caminhavam para a serra. Como os dias eram
pequenos e o tempo de codo e de borrifeiros, os homens largavam de casa
pela alba, terçadas as capuchas, o taleigo do almoço a tiracolo, depois
dum mata-bicho à toa. Os piteireiros iam-lhe até os dois decilitros
virados no mostrador da taverna, que abria meia porta, quando os
vendeiros eram da raça do Lêndeas, que não perdia pitada. Depois, lá
seguiam singulares ou em rancho, leva que leva, o nimbo que rescendia de
suas bocas, salitrado de álcool, empestando a atmosfera à volta. Álcool
rasca! O Lêndeas, além da venda ao balcão, armara em negociante por
atacado de molhados, e fabricava aquela potreia. Para que lha tirassem
dos barris, fiava a toda a gente. Uma das suas indústrias era a
aguardente. Destilava-a de tudo no alambique, desde o canganho das
latadas, ao pé da porta, e dos cordões de verdasco, que tinha nas
fazendas à beira do corgo, à cereja, figo, e diziam que até serradura de
madeira. Um ano, os proprietários, que não tinham outros produtos
vendáveis que não fossem os cereais e o leite, ficaram muito admirados
quando os alfaqueques do Lêndeas lhes tocaram à aldraba:
— Por quanto quer vossemecê arrendar a cerdeira do Casal, tio Manei? Uma
quarta de pão, serve-lhe?
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As cerejeiras eram a alegria da serra por altura das ceifas. Aquela corda
de povos ignorava os mimos vários do vergel, salvo as cerejas. Raro era o
linhar e horta que a seu tempo não ostentasse a rica vestimenta de rubis.
Generosas e abundantes, comiam todos à farta, desde o rapazio aos
pardais, que se pelam por elas, e até estorninhos e tordos que tanto as
comem maduras como em passas. Mais bonito em Portugal só as laranjeiras;
mais bondoso apenas o mostageiro, que é uma planta que dá uns bagos cor
de tijolo, de gosto entre baunilha e broa, a puxar para pêra-pão, meio
desconsolados como os horizontes hibernais do planalto em cujo solo e céu
se compraz.
A rirem-se e oferecerem-se a toda a gente por cima das paredes e nas
demarcações, não podiam as cerejas deixar de atrair o olho lampeiro do
Lêndeas, que imaginou explorá-las a bem da sua cupidez. Por este e aquele
povo, onde a garoia é de quem a quer, adquiriu dornas e dornas delas por
dez réis de mel ceado. E caldeira com elas! Teve para um ano de balcão.
Em seguida, como se houvesse saído bem do empreendimento, atirou-se ao
figo. Mas a safra dos figos, lampos, moscatéis, vindimeiros, é mais
arrastada e vária a sazão, e ele, para que lhe fosse útil, teve de colhê-
los ao mesmo tempo. Os seus beleguins levavam tudo a eito. Resultou daí,
verdes, podres,
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mensageiros largaram a todos os horizontes a pé e a cavalo, para trazerem
essa noite, a bem ou a mal, a Parada os maiorais das aldeias. Havia que
combinar as operações contra o inimigo. Os portadores eram moços de cara
direita, prontos como ordenanças, e com todo o recato, sem soprar
palavra, a fim de não dar azo a que se esquivassem os medrosos, cumpriram
as instruções à risca.
Foi assim que o Manuel do Rosário, alcaide virtual da Azenha, recebeu a
parte. Andava ele, ferreiro com larga freguesia de porta e de mercado, a
amanhar carvão nas devesas da serra, que lhe faltara de todo na forja,
quando se apercebeu de dois homens que cresciam de peito para ele, mato
fora. Só o fumo da queimada, encastelando-se direito no céu sereno, os
pudera guiar até aqueles andurriais, longe de vila e termo. Viandantes
desgarrados, gente com recado, bandoleiros, foi-se pondo de sobreaviso.
— De parte do senhor João Rebordão, de Parada da Santa — disse um dos
homens depois de salvar. — Meu amo roga-lhe o favor de chegar lá...
— Chegar lá...? Há novidade em casa do meu compadre?
— Que me conste, não há.
— Vêm de caso feito?
— Saiba vossemecê que sim.
Manuel do Rosário quedou meditabundo, de braços
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podia tratar da serra, tentou ainda espreitar para a alma crispada dos
estafetas. Com manhoso jeito, de começo; deliberadamente, sem resguardo,
depois:
— Amigos, vamos a fumar. Para entreter o caminho...
— Bem haja, foi extravagância que nunca usei — respondeu o mais velho,
declinando o cigarro que o Rosário lhe metia pelos olhos.
E não houve modo de lhes abrir a boca.
Foi só perto de Parada da Santa que, topando-se com outros amigos e
moradores de Arcabuzais da Fé, Corgo das Lontras, Urro do Anjo, Ponte do
Junco, veio ao fundamento do negócio. Quando chegaram à povoação, tendo-
se-lhes associado vizinhos daquém e dalém, chamava-se àquilo uma açudada
de gente.
Era à noitinha e na casa deste e daquele se deparou agasalho aos
forasteiros. Cearam, beberam e, antes de volverem a suas terras, juntos
os chefes no alpendre do Rebordão, concertaram a táctica a seguir.
Manhã alta, quando romperam para o planalto as duas turmas dos Serviços
Florestais com tractores, caterpillars, arados de ferro puxados a bois do
vale do Távora, e uma centena de operários engajados, longe, nas aldeias
famintas dos ratinhos, já encontraram muito povo pelas rechãs. Da banda
do norte, no sector compreendido pelos lugares de Valadim das Cabras,
Almofaça, Azenha, Parada da Santa, Rebolide
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troça para o alferes, a cujo lado se postara. — Vão-se embora, hã?! Então
não queria mais nada?
— Os senhores praticam um roubo... — tornou Rebordão.
— Homem, não diga asneiras! Nós cumprimos ordens.
— Praticam um roubo! — repetiu Rebordão em voz soturna.
— Praticamos um roubo...— pronunciou Streit em tom de homem impacientado
e colérico.—E depois?
— Depois, fique o senhor sabendo: não estamos dispostos a deixar-nos
roubar.
— E depois?
— Depois, nós cá estamos. —Nós cá estamos...?
— Sim, hoje levam os senhores a melhor, amanhã, quando nascerem os
pinheiros, hão-de por uma praça a cada um se quiserem que ele vingue.
— Não percebo. Explique-se...
— Se não percebe, não tenho culpa que lhe falte o entendimento.
Streit teria dado conta que estava metido com um serrano nada comum,
atilado nas suas letras gordas, com lume no olho e o arreganho do homem
audacioso ou temerário. Procurou um caminho contornante. Como, dize tu,
direi eu, outros sujeitos se tivessem
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entende-me. Não acolhe a nossa deprecada, mas roda para onde veio sem
prosseguir nos trabalhos.
No íntimo de Streit teriam calado aquelas vozes ditadas por uma vontade
mais ou menos justa e refincada, se não viessem molhadas dum peremptório
que ofendia o seu brio. E não sabendo ou não estando para dar o devido
desconto à rudeza daquelas palavras, retrucou-lhe com duas pedras na mão:
— Os senhores não sabem o que dizem. Eu cumpro ordens... cumpro ordens.
Cumpro ordens! Nada me poderá obrigar a voltar a face, ouviram bem?
Agora, quanto a ameaças, há um pouco aquele senhor... senhor quê?
— O nome não quita! — exclamou o indigitado.
— Aquele senhor proferiu palavras que não podem transitar em julgado.
Queria o senhor dizer lá na sua que, nós a arrumarmos os trabalhos e os
senhores, a título de revindicta ou represália, a vandalizá-los? B isso?
— Conclua como entender — exclamou João Rebordão.
— Mas é uma ameaça que cai sob a alçada do Código. Ouvi eu bem? Quer-se
dar ao incómodo de repetir...?
— Não senhor, não repito. Não sou relógio de repetição.
— Só queria saber se mantém o que disse...?
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VII
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Quem negava uma sede de água? Viessem pois buscar quanta quisessem e
fosse o próprio diabo do inferno. E, afinal, para o seu génio, foi pior
que o próprio diabo do inferno, pois que o primeiro a aparecer havia de
ser nem mais nem menos o Barnabé a encher dois garrafões. O engenheiro
César Fontalva tinha-o despachado para Parada da Santa, lá para a
vertente norte da serra, onde não faria mal. O homem, com o engenheiro
substituto, tanto se queixou, ou pediu, que foi transferido para o sector
de Arcabuzais.
Teotónio desde esse dia ficou com ele debaixo de olho. Quando o vira
buscar água, tratou-o porém como ao mais inocente e leal dos empregados
da Floresta.
— Malandro, pela manha não me hás-de tu vencer — disse consigo.
Haviam instalado dois campos, um a uns duzentos metros do marco
geodésico, talefe como lhe chamavam, num pequeno recosto do oiteiro, com
abarracamentos de ripa e lusalite, quartel para a força da G.N.R. e
telheiros para as máquinas, perto de Valadim das Cabras. A casa do
agrónomo-chefe, bem como a do comandante da força luziam seus panos de
tijolo rebocado a cal, mais acima, numa abrigada platibanda.
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não me ouve. Mas, Teotónio, já tinhas idade para não ser asno! O que
tiveres de fazer, alma de Barzabu, não o digas a ninguém. Nem ao teu anjo
da guarda, quanto mais em voz alta, como fizeste na vila, a ponto de
dares no goto dum bufo!
A casa da Rochambana, que para comprazer com o filho sempre anuíra a que
se fizesse e se acabara de paredes na primeira semana em que ele entrara
na cadeia, estava pronta de telhado. Manuel Louvadeus, encarcerado como
estava, assistia à traça toda, dispondo assim e assado, e tanto criticava
como corregia. Afonso Domingues, o arquitecto cego da Batalha, não
estaria mais presente. E face à obra de pico grosso, quando na saltada
permitida pelo carcereiro, a pôde vistoriar, declarou-se amplamente
satisfeito. Os carpinteiros iam agora entrar em cena para soalhos e obra
de esquadria. Andavam os serradores a serrar madeira na mata, que a casa
possuía pinho velho e de bom cerne nas corgas da serra.
De modo que dentro de breve a moradia estaria habitável. Para o Natal,
poderiam mudar para lá. Com as obras e as despesas eventuais da prisão,
além de que os advogados tinham já estendido a mão a título de preparos,
o pecúlio que o filho trouxera de Mato Grosso tinha ardido. Para acudir a
verbas inelutáveis e terminar o edifício, decidiram vender a casa do
povo. Um brasileiro, que voltara com
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dos Milhafres? Por sinal que era tão mitrada que dava sinais às outras e
a que mais ladrava nos oiteirinhos. Fartava-se de esporteirar e
aconselhar as comadres: Vocês façam assim, façam assado. As zorras,
quando havia fartura de caça, davam-lhe o seu quinhão. Era uma espécie de
rainha mãe.
De ordinário, o açougue cunicular do velho Teotónio procedia das
expedições furtivas. Também as lebres, pelas noites de codo e de
insensibilidade celeste, largavam da cama no trolho dos centeios e nos
lameiros, em que a água é aconchegadora como um tapete, ao abrigo de dois
fetos avelados ou de um tojo mortiço. A samarra que Deus lhes deu, mais
sedosa que cobertores de papa, defendia-as do codo e do ferrão da neve.
Mas, largadas do covil à boa paz, são fidalgas e não gostam de
empecilhos. Em vez de azangar os trolhos, tomam o caminho mais directo
para as demarcações e vão por ali abaixo direitas à horta ou ao antigo
chão de milho onde as couves se desorelham de fartas. À falta de melhor,
a lebre come de tudo: mato, erva, serradela, labaças. Mas pelo que elas
dão o cavaquinho é pela couve troncha e galega. Para chegarem ao grelo ou
às folhas altas, sempre mais tenras, fazem, postando-se nas pernas
traseiras, um pino com muita graça, mal equilibrado, como o do canguru ou
o dos meninos quando aprendem a andar. Teotónio era mestre em tramóias.
Às lebres armava
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fios de latão, presos a uma pedra por um nagalho. A lebre que, em busca
de cibo ou a desenregelar os quadris, rompia pela estrema das belgas ou
pelas seitas costumadas, subitamente via-se enredada no arame. Quê? Dava
um empuxão e mais o nó corredio a apertava. Em seu desespero debatia-se e
tornava a debater-se. Bramaria mesmo. Era a estrangulação inevitável. Na
alba Teotónio ia encontrá-la hirta, orelhas caídas, o belo pêlo sedoso
revolto como uma fronha amarfanhada. Grande minuto de júbilo esse em que
agarrava com manápula nervosa a felpuda samarra da maçarica dum lindo
açafroado com zonas de branco puríssimo! Como era caça proibida, toca
para baixo da capucha. Entrava em Arcabuzais ou na Rochambana por ínvios
caminhos e a recato. Já mais de uma vez estivera a cair nos galfarros da
Guarda e dos agentes da venatória. Mas o seu sexto sentido de selvagem
prevenia-o a tempo. Sabia que lhe andavam na cola como temível armador de
ferros aos coelhos, fios às lebres, e desanichador de ninhos de perdiz na
sazão da postura. Os agentes da venatória agora faziam-se acompanhar dos
guardas-florestais da serra dos Milhafres, e um deles, dos mais assíduos
nestas batidas, era o Bruno Lêndeas. Tinha a favor morar no acampamento,
a menos de um quarto de hora da Rochambana, e poder trazê-lo quase
debaixo do olho. Mas o velho Teotónio não se dera por
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achado. E, sentindo-se vigiado, por sua vez espiava o vigia, sem que ele
desse conta. A vantagem dele estava neste desentendimento aparente. Em
tais manobras, tinha para o auxiliar o Farrusco. Este cãozinho magrizela,
sempre a tremer as maleitas, com ar de esfomeado, quando a verdade é que
onde comia o amo comia o cão, talvez atormentado pela solitária, a um
quilómetro de distância dava conta de quem ia e vinha. Teotónio ensinara-
o a não ladrar e só a grunhir, de modo que se tornava a mais preciosa das
atalaias.
Foi ele que lhe valeu num daqueles apuros que ficam assinalados na vida
dum caçador furtivo, mas que não assoalhou de ninguém, porque o segredo
era a sua força, como o andar em pés de lã era a força do lobo, seu irmão
mais próximo. Tinha ido armar os fios na folha de Bazulais do Frade entre
umas leiras do Lêndeas e o campo do Nacomba. Um ao alto, perto do caminho
que levava de Arcabuzais para Urro do Anjo, e outro ao fundo já ao
avistar do rio. Quando levantou da cama no lusco-fusco da manhã, com
grande espanto seu, deu de cara com uma camada de neve que, embora
mansíssima, tão densa viera que estendera sem a mínima quebra o seu
lençol pela serra toda. Teotónio não a sentira no seu ninho de feno e o
Farrusco parecia tão admirado como ele. De ordinário Teotónio podia de
manhã ser surpreendido
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pela neve, mas não que estivesse inadvertido da sua chegada. Lia-a no
cariz do céu, no meneio das aves, nos insectos que suspendiam a
zanguízarra, na agitação do cachorro, mais atanazado das pulgas, nas
plantas que, muito hirtas e graves, esperam a neve como uma epifania. Já
se sabe, não faz barulho nem bate à porta como a chuva, ou como o vento.
Mas a ele bastava-lhe o olfacto para a sentir a sete léguas de distância.
Observando o horizonte, conhecia se nevava dos lados da Estrela, ou de
cantaril, que é a mais dominiosa, ou dos lados de Montemuro a brava e
rota. Velhaca e traiçoeira era a que vinha das bandas de suão, tanto
assim que lhe chamavam a ladroa. Neve de má raça! Essa não precisava que
lhe abrissem as portas, irrompia pelas frinchas e gretas dos telhados sem
pedir licença a ninguém. Às duas por três, estava metida na cama com um
santo, sem se saber por onde viera. Lá fora, nos braços do cieiro, era
uma rascoa de mitra e gaita. Cortava a carne como se trouxesse uma
navalha de fadista. Na manhã, o mundo era um lençol de defuntos. O degelo
levava às vezes dias. Devagar tornava à sua feição e Teotónio assistia
aquilo como ao regresso interessado e impaciente dum cativo.
Às vezes fazia luar e Teotónio especava-se no traço da cabana a vê-la
cair, zebrando o céu com a sua farfalha, aquela farinha mal moída que
caía sem
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relego, uma após outra, uma após outra, como se a Lua fosse a moega.
Outras vezes, engoiado no casulo de palha, dava fé pelo alicate que lhe
apertava a orelha ou pelo abambar das giestas no tecto da cardenha sob o
peso desconforme. O Farrusco, pela manhã, botava-se de corrida para o
mato para desentorpecer as pernas, atrás dum hipotético laparoto, ou a
fazer qualquer necessidade, que era um cão asseado. Mas volvia em
continente, que não gostava nada que, sem uma razão poderosa, as moscas
brancas lhe poisassem no samarro.
Por via de regra, nesses dias, os coelhos vinham-lhe pandegar para o
ferregial, ao fundo da tapada, onde a água de lima não deixava que a neve
coalhasse. Era como atirarem-se para dentro da caçoila. Por aqueles
cabeços à roda, sabia também o refúgio onde se acoitavam, dormitando com
um olho, vendo com o outro sarabandear os flocos. Lá ia fuzilá-los,
quando lhe puxava. Não raro, acudiam também à beira do corgo ripar a
febrinha verde, que o bafo morno da corrente mantinha em seu desafogo
vegetal. Dias de muita bicheza! Os lobos uivavam nos penedinhos. Deixa
uivar! Trazia a escopeta bem escorvada e, posto que sozinho naquele ermo,
não sentia o menor calafrio ante a aceradíssima lança da voz macarena. A
cabra ruminava silenciosamente de joelhos, ou comia o molho de feno e
fetos secos que lhe
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— Meus santos, perguntam bem. Bichos que andaram aqui às bulhas, raposa
que comeu láparo, sabe-se lá!
— E você que anda a fazer?
— Decerto não ando a roubar. Mas querem-no saber? Para que o querem
saber? Escusam de arregalar os olhos que não metem medo a ninguém. Não
sabem que tenho ali um lameiro? Pois vim deitar--lhe a água da poça, a
ver se a neve derrete que preciso de trazer para lá as vacas.
— E se o levássemos preso?
— Se me levassem preso, haviam de me soltar. Que mal fiz eu?
— E se lhe moêssemos o costelado?
— Isso não fazem os senhores que aqui o meu patrício não deixa...
O patrício era Bruno Lêndeas. Foram-se embora cuspindo ao chão. Antes,
Bruno oferecera-lhe um cigarro:
— Tio Teotónio, vai uma cigarrada?
— Bem sabes, amigo, que não fumo.
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fazia por bem, anuiu, e deixou de encarar o negócio com olhinho rabioso.
O Teotónio Louvadeus arranjou-lhe uma espécie de jaula num canto,
encostada à cardenha, e ali ficava de noite e às vezes parte do dia,
quando não estavam para o aturar. Pôs-lhe o nome de Estudante, não
saberia dizer porquê, talvez porque entrava para a escola do bicho-homem.
Comer não lhe faltava, o seu láparo, a sua noitibó morta com uma
calhoada, o seu gamelo de caldo, que ele devorava com sofreguidão,
pupilas a fuzilar para o Farrusco, fauces arrepanhadas, a pata por cima
em sinal de posse. O cãozinho, animal de pouco comer, gostava mais dos
ossos temperados, que ia rilhar a Arcabuzais ou ali, pois não era uma só
vez nem duas que o amo fritava o seu coelho na sertã. E acabaram por
engraçar um com o outro, a pontos de brincarem, medirem-se às lutas,
erectos a abraçarem-se e a morderem-se em competições de força. Todavia
Teotónio trazia-o preso, com um bom cordel ao pescoço, não fosse por lá
fazer das suas, como arremeter à cabra ou fugir. À noite dormia na toca.
De dia o Teotónio tirava-o para fora e vinha fazer a sesta ao lado do
Farrusco ou pagodear com ele. Em poucas semanas, cresceu e mudou de pêlo.
Arranjou uma samarra sedosa que faria inveja à peliça de muita mulher de
banqueiro. E, pouco a pouco, tornou-se familiar com o Teotónio. Deixava
fazer tudo,
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esqueceu-se. Era uma vez a ponta dum rabo que, sempre pendente e
comprido, apanhava os argalhos do chão. E o lobo voltou a poisar o
focinho nas pernas de Teotónio, mal o via sentado e tinha fome. Teotónio
armava os ferros, dois, três, e raro era o dia que não trouxesse caça.
Quem padecia agora era a sua casa de Arcabuzais, com a ucharia muito
menos abundante de que dantes.
Foram dobando os dias e o lobinho cresceu, sempre amigo de Teotónio, e
este meio perplexo quanto ao destino que lhe havia de dar. Disseram-lhe
que o oferecesse a um desses campos de concentração chamados Jardins
Zoológicos, onde o papel dos bichos é mostrarem-se aos meninos e mirones,
com pitança assegurada e muitas horas para dormir. Ao homem de pé leve,
que sempre fora, repugnava tal paradeiro. Embora o lobo ali também
estivesse preso, não era a mesma coisa. Estava em plena serra, com
horizontes livres, os pássaros a voar livres por cima dele, a ouvir o
vento dos cumes, ligado não mais que por um cordel, e tinha um amigo, um
primo, com quem espairecer.
Fosse como fosse, quando chegaram os dias grandes e o céu despiu a
serguilha de inverno e pôs seus brocados, os pássaros começaram a correr
com outro espalhafato das paredes para as árvores e das árvores para
digressões aventureiras, e se ouviram uivos
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Teotónio foi à cardenha, tirou um coelho que ali tinha à dependura pelos
jarretes, e na ponta do dedo, para que ele visse, levou-lho. Mas o lobo
cobrou-se de medo e fugiu para mais longe. À distância de outro tiro,
suspendeu-se e ficou a olhar de revés. Teotónio arrepiou caminho e ele
correu a levantar o coelho que se pôs logo ali a imolar. O pobre bicho
tinha fome. Tinha fome de rato, que é a fome mais desatinada que há e
mexeriqueira, capaz de todas as audácias. Teotónio viu-o do terreiro da
cardenha passar aquela parva ao estreito em menos dum credo, pele e tudo,
e ficar a lamber os beiços. Fora como uma hóstia, louvado seja Nosso
Senhor! E no fundo da sua alma o sentido da queixa mais que as palavras
passou como um sal amargo:
— Deus todo-poderoso, já que és tão bom, para que deixas estes bichos ter
fome? E, para que a matem, porque hão-de ser maus e ferozes? Porque é que
na tua infinita sabedoria os obrigas a actos de bandoleirismo, contra a
ovelha sem defesa e o inocente cordeirinho, a menos que estiquem à
míngua! - É verdade que muito do que fazes nos é incompreensível, senão
seria para dizer que és um tirano absurdo e desmiolado!
Dali em diante a cena repetia-se não todos os dias, mas de quando em
quando. Sobretudo nas nevascas lá estava o Estudante sentado sobre o
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que o tio Teotónio tinha criado a leite, porque lhe faltava meio rabo. —
Oh! mil raios partissem o matuto, para que lhe havia de dar! —
vituperavam uns. — Pudera, não fosse ele meio lobo! — respondiam outros.
— O que ele precisava era que a gente lhe desse batida como às feras
verdadeiras!
Não faziam batida nenhuma, que o velho não era para graças, mas andavam
zaranzas de todo. Como se haviam de livrar de bichos assim, que conheciam
as manhas da gente e sabiam torcer-lhe as voltas e cadilhos?! Viam-nos
ora num povo, ora noutro, por aquela corda, hoje em Rebolide, amanhã no
Corgo das Lontras, depois de amanhã lá para Toiregas. Os dois arrebatavam
aqui um recental, além um chibato. Na imaginação do serrano, entravam
pelos povos, iam-se aos estábulos, desacravelhavam as portas, e toca para
as costas com o reixelo mais gordo que lhes enchesse o olho.
Repentinamente apenas permaneceu em cena o lobo de rabo saracoto. Que
seria feito do outro? Tinham-no envenenado, esticara, desertara para
outras paragens? Ora, era bem simples — congeminou Teotónio — a loba
tinha ido ter a parição lá para as brenhas e guardava as crias. Tanto
assim que não decorreram grandes tempos que se não lobrigassem os dois
tunantões com três lobatos, ao lado, muito
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Soltaram grande alarido. Acudiu Teotónio que a Rochambana era ali perto.
Viu o bicho no chão e reconheceu o Estudante. Disseram-lhe:
— Era o seu lobo, tio Louvadeus! Raios o partam para a teatrada que
armou!
— Era uma nisga! O meu lobo é três vezes maior e mais fino do que este.
Haveis de comer muita rasa de sal para lhe deitardes o gatázio! Não?
Abram-lhe lá o bandulho...
Abriram-lhe a morca. Tinha dentro meia cabra com cascos, pele e tudo.
Faltavam os cornos. E é que a cabra era mocha.
— Comeu tanto que não se podia mexer.
— O meu lobo só come chibo depois de lhe tirar a pele e as tripas. É o
que vos digo. Este era estúpido e porco como qualquer um de vós.
— Pois quem dera os outros assim, que são uma alcateia.
Pareceu a Teotónio que o último olhar do lobo era para ele, antes de se
vidrar com o frio da morte. O Pampolinha, apoiado pelo Obriga, propôs-se
ir buscar um burro a Arcabuzais para o carregar e pedir depois pelas
portas.
— Há-de-me render muito ovo, cebolinhas e batatas! — exclamou ele
dançando num pé.
Foi pelo burro.
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Teotónio juntou três a quatro roçadas de mato seco. Pôs o lobo em cima e
deitou-lhes o fogo: — Deixa estar que não te hás-de rir de mim nem fazer
pouco do lobo.
O Pampolinha, ao voltar, encontrou um torresmo.
— A d’el-rei que me fizeram uma grande desfeita. Hão-de mas pagar. Quem
poderia ter sido o malvado?
Passava com as suas queixas à beira da Rochambana, saiu-lhe Teotónio ao
caminho:
— Ó ladrão, tu não sabes que é um grande pecado contra o Criador deixar
um lobo morto no meio da serra? Atravessaram por aqui uns romeiros para a
Lapa, vindos de Parada da Santa a corta-mato, e assaram-no. Aí tens!
À noite na sua cardenha o velho Teotónio limpou uma lágrima, ainda que
compungir-se fosse raro nele.
— Aqui está para que te criei, te salvei da fome! Pagaste caro,
Estudante, o amor à liberdade e a dívida a Deus de gostares de comer
carne fresca todos os dias, inclusive à sexta-feira, sem tirares bula. O
que te sucedeu é o que, mais dia, menos dia, me pode suceder a mim!
Aquele desgraçado mês de Dezembro afundiu-se sem outro rumor no pego sem
fundo do tempo. Passou o Natal, com a consoada na casa pobre regada
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VIII
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pouco quando começou a ser gente, e nem ele se ajeitava a pôr um traste a
que não descobrira utilidade. A gravata era a investidura do rústico em
burguês e ele era um parrana acabado e que parrana havia de morrer.
Barbeara-se na Rua do Sol com um fígaro de balandrau, que se lhe fartara
de puxar pela ponta do nariz para escanhoar o lábio superior em que as
comissuras cavavam ravinas difíceis de chegar ao fundo. Acima das maçãs
do rosto, subindo para as capelas dos olhos, guardava, escapo à navalha,
um matiço virgem, com cerdas negras, zincadas, e das orelhas saíam-lhe
tufos tão densos que bastariam para pincéis. Embora as sobrancelhas lhe
ensilvassem as arcadas, não projectavam sombra suficiente, para escurecer
as pupilas, tão estranhamente vivas que a sua expressão ordinária era a
do gato assanhado. Serrano aparentemente tímido, o chão que pisava era
seu. Rigoberto via-o à sua esquerda muito teso e senhor de si, e de
soslaio ia-o observando. Ao passo que lhe admirava a galhardia de
montanhês, que não perdia o equilíbrio como se qualquer parte do mundo
lhe servisse para plano de gravidade, no fundo sentia-o morto por se ver
entre os penedos, aborrecido daquelas lindezas citadinas. Viera assistir
ao julgamento com outros patrícios, que contavam, no regresso, levar
absolvidos os filhos e irmãos. Eram mais de trinta pessoas e marchavam
atrás em bando
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Igual delito era de invocar contra os presos de Riba do Pisco, alguns com
antecedentes judiciários, mercê da propaganda e assuada dos quais se
suscitou num estabelecimento fabril daquela localidade um surto de greve.
Em consequência, procedera-se à detenção dos indivíduos indigitados como
cabeças de motim e que se verificou serem agentes perigosos, instintivos
ou teóricos, da subversão social, membros, segundo boas presunções da
polícia, do partido criptocomunista português.
Haviam incorrido os mesmos presos nas penas fulminadas no art. 169.°, n.°
I.°, com referência ao art. 168.º do Código Penal que equipara a rebelião
os atentados e estragos cometidos contra instalações de utilidade pública
ou destinadas ao bem-estar e satisfação das necessidades gerais e
impreteríveis das populações, e pertenças do Estado. Verificou-se, ainda,
graças aos testemunhos de vária ordem, haverem-se tornado os presos da
serra dos Milhafres réus de outros crimes, previstos no Código Penal.
(Emprego de armas de toda a espécie, desde a caçadeira à Mauser, da foice
encabada num varapau à forquilha).
E, finalmente, culminou a pronúncia, quanto aos mesmos presos da serra
dos Milhafres, pelo levantamento popular com mortos, muitos feridos e, em
particular, pelo atentado à pessoa de altos funcionários
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que fui levado a adoptar a igreja positivista por ser aquela que melhor
falava ao meu entendimento pouco aberto, não deixo de convir, a respeito
do papel que andamos a desempenhar na terra e a sombra que pomos neste
trânsito tão rápido da vida.
O representante do Ministério Público trocou um sinal de inteligência com
o Desembargador e, talvez porque lhe parecesse a arenga longa e escusada,
atalhou:
— Está bem, está bem! Diga-me o réu: acredita na imortalidade da alma?
— Não, senhor.
— Então os actos bons não recebem galardão? E os maus? Quem pune os actos
maus?
— Que são actos bons e actos maus? — interveio Rigoberto. — Todos os
actos, de modo geral, são bons para mim que os pratico ou pelo menos
quando os pratico. São maus aqueles que, vindos de fora, me diminuem ou
violentam, posto sejam úteis a Fulano e Beltrano, à sociedade. Em tais
situações inverter-se-ia o papel de amigos e de inimigos. Quem tem razão?
Onde está o juiz de infinita pureza que nos venha julgar?
— Para mim, magistrado, e não lhe consinto que use de termos retaliadores
ao aludir a tal ministério, são actos bons os conformes com a justiça;
maus os que infringem o Código. O mais é conversa fiada,
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que aliás não era com V. Ex.ª Para V. Ex.ª, homem do foro, julguei que a
ética era a mesma...!
Rigoberto esboçou um leve sorriso despiciendo que não passou inapercebido
ao Dr. Soberano Peres. Em tom de disparo, vingou-se em Louvadeus:
— O réu foi alguma vez a Moscovo?
— Não, senhor.
— Sabe onde é?
— Sim, senhor.
— Ouve Moscovo pela rádio?
— Na minha terra não há electricidade.
— Mas ouviria Moscovo de bom grado?
— Como todas as vozes do mundo, as mais desencontradas, Moscovo e o
Vaticano.
— Sabe o que é o comunismo?
— Mal.
— É um sistema político, negador da ordem em que vivemos, cujas bases são
Deus, pátria, propriedade e família. Que me diz?
O réu calou-se. O magistrado cobria-o com o seu olhar de águia
triunfante. O Dr. Rigoberto pediu licença:
— Que lhe há-de ele dizer, homem simples e leal como é, senhor
representante do Ministério Público, que não sirva a V. Ex.ª de malha
para o ilaquear nos articulados duma jurisdição de que é arauto? V. Ex.ª
tem levado a vida toda a estrear-se nesta dialéctica e
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IX
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Perímetro Florestal da Serra dos Milhafres. O réu foi um dos que deram
fogo...?
— Nunca soube pegar duma arma.
— Não fez o serviço militar?
— Não senhor.
— Com esse corpanzil?
— Livrei-me.
— Remiu-se, quer dizer.
— Não, senhor, livrei-me na Junta. Bem haja quem pôs a mão por mim, que
foi o pai do senhor Dr. Labão aqui presente.
Ao corregedor, Dr. José Ramos, pareceu aquele solto falar irreverência ou
aleivosia contra o Estado, cominado de venialidade num dos seus órgãos, e
acudiu em tom de desfastio:
— Passou-se isso no tempo da outra senhora...?
— Saiba V. Ex.ª que fui casado uma só vez. Estalaram risos na
assistência. O próprio senhor
Presidente desanuviou o parecer carrancudo. Ao digno assessor porém o
desconchavo soou falso, afigurando-se-lhe o homem zorato ou desbocado.
— O réu está-nos a sair um grande maloio...
— Saloio, não senhor. Sou serrano. Decorreu um pequeno silêncio durante o
qual o
corregedor se compenetrou, olhando em face, da atitude hílare do
tribunal. E tentou um retruque prudente, cortando todo o campo ao contra-
ataque:
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— Não sabe o que diz e é o que lhe vale. À barra da direcção estão
grandes homens. Se tivesse uma centelha do senso que neles abunda, não se
achava no banco dos réus. Nunca os ouviu falar?
— Nunca ouvi eu outra coisa. Quer que lhe diga, são ladrações num
outeiro. Eu quanto mais trabalho e mais poupo, mais miserável me vejo.
— Vamos ao que importa: confessa haver tomado parte no barulho da serra
dos Milhafres?
— Confesso, quê? Eu não posso confessar ter feito aquilo que não fiz.
Nunca eu veja a luz da salvação se minto.
— Mas foi na turba-multa?
— Fui até certa altura.
— Pois não devia ter ido. Um só passo que deu tornou-o cúmplice.
— Sempre queria ver quem nos roubava...
— Ou quem poderia contribuir para melhorar a sua sorte... Ora diga-me cá:
Entraram muitas pessoas no rebuliço?
— Quantos nasceram na malfadada serra dos Milhafres e ouvem pelas noites
de inverno uivar o lobo.
— Assistiu à sedição?
— A quê?
— À zaragata?
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— Andámos com a gana toda à cata dos criminosos. Deitou-se a unha ao que
se pôde. O maioral de todos, João Rebordão, pisgou-se a tempo. Pois
chegámos a pôr-lhe a cabeça a prémio...
Rigoberto levantou-se:
— Pode saber-se quanto davam pela cabeça do caudilho?
O homem hesitou e, como visse os juizes de boca aberta em sinal de
curiosidade e, de modo algum, significativo de abafarete, respondeu:
— Cem escudos.
— Cem escudos — tornou Rigoberto. — Barata feira! Para os senhores
agentes da Polícia de Segurança Interna um homem vale menos que um
carneiro. Um carneiro orça hoje pelos seus duzentos escudos... e
marranito. Notem, senhores juizes, a importância que o Sistema, ou a sua
orgânica policial, liga à pessoa humana, essa entidade prima duma
metafísica com que todos os dias enchem a boca.
Os juizes estremeceram em suas poltronas. O Presidente, atropeladamente,
perguntou se tinha mais alguma coisa a declarar.
— Não, senhor juiz Desembargador.
— Pode retirar-se.
Voltava cabisbaixo. O mastodonte, uns segundos depois que ele volvera ao
assento, disse-lhe qualquer
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coisa, que devia ter agido como ferroada, pois que se lhe viu descer o
cenho e recalcitrar.
Os declarantes, quanto aos réus do bacalhau podre, trataram de os
enterrar o melhor que puderam. Mas foi à Ia minute. Os polícias eram
gente de letras gordas e entendimento por vezes confuso e dali podia sair
vespeiro. Começaram a ser chamadas as testemunhas de acusação. Os
primeiros foram dois guardas do Perímetro Florestal da Serra dos
Milhafres. Falhou-lhes a memória, colado com custo o depoimento, e
meteram os pés pelas mãos. Ao que tinham ouvido dizer, o culpado de todo
o farrobodó teria sido um tal Julião Barnabé...
— Julião Barnabé?! — exclamou o Dr. Labão que ali estava para defender
dois paroquianos de Urro do Anjo. — Não pode ser. Julião Barnabé é homem
ordeiríssimo, conservadoríssimo, ultramontano de intuição, diamante de
primeiras águas do Novo Sistema, pai de dois bons assalariados do
Perímetro. A testemunha não conhece Bruno e Modesto Barnabé? Não conhece?
Repare que um deles está aí ao seu lado... Pois o Julião Barnabé é pai
dos dois.
— É pai do Bruno...?! Mas o pai do Bruno não é o Lêndeas?
— Lêndeas é a alcunha acintosa, mas, em suma, Julião Lêndeas ou Julião
Barnabé é a mesma coisa —
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com o seu protector... não deixa de lhe levar o seu coelho... o seu junco
de trutas?
— Por mais convites que lhe leve, nunca eu pagarei o favor que lhe devo.
Por ele meto as mãos no lume se me mandar. Eu cá sou um homem agradecido.
— Sim, senhor, sim, senhor, e fica-lhe muito bem. O senhor Dr. Basílio
Esperança merece-o. Merece-o e se me disserem que é lamentável que a
política local de Bouça de Rei se faça a poder de pernas de vitela,
responder-lhes-ei que é um estilo como outro qualquer. Realmente quem
manda ali é a peita. Hoje come Beltrano, que é o Presidente; amanhã come
Cicrano, que substituiu aquele. O camponês, para ser atendido e na mira
de ser menos cardado, farta-se de correr para a vila com cestinha aviada:
ovos; o seu fumeiro; os franguinhos para as ervilhas; o chibato.
Aparte do Presidente:
— Ainda não chegámos às alegações. Ou que imagina Vossa Excelência?
— Mas isto é uma ilustração e desculpem que lhes roube o tempo com tais
vinhetas à margem. Ora diga-me cá a testemunha: o senhor Dr. Basílio
Esperança devia ter ficado muito irritado com o que se passou na serra
dos Milhafres... Compreende-se: era no seu feudo; quebrada a placitude
velha, solidificada
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a ser herege, toda a gente sabe que não vai à missa nem se confessa. Mas
não é homem para atirar uma pedra a um gato...
— Nunca lhe ouviu dizer que a religião era uma impostura e os padres os
funcionários desta impostura?
— Não, senhor.
— Pois está-lhe imputado nos autos — proferiu batendo no imenso bacamarte
do processo. — Mas se lho não ouviu, acha que destoa tal dito na boca do
réu?
Bruno Lêndeas torceu-se, esboçou um esgar, e acabou por dizer:
— Não, senhor.
— Muito bem! E este outro dito: Cristo nasceu nas palhas, para nos
mostrar que somos todos iguais. Que sociedade é esta onde uns têm tudo e
outros não têm nada? — ouviu-lhe?
— Também não, senhor.
— Sabe se lia certos autores condenados pelo bom senso, o Estado, e a
tradição religiosa, como Lenine, Karl Marx...?
— De Carlos Marques não sei. De Carlos Magnus vi-lhe o alfarrábio na mão.
Os senhores juizes soltaram-lhe uma gargalhada estrepitosa, menos ao
alegre desenfado do que para confirmação de suas conspícuas
inteligências. O
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fábrica; por conseguinte tudo o que digam no respeitante à lisura com que
se procedeu, é farelório.
As testemunhas de defesa, por sua vez, declararam que era sabido os
industriais comprarem o "bacalhau, condenado ao guano, por uma
ridicularia. A firma bacalhoeira porém continuara a vendê-lo ao público,
com certo resguardo. Se no público se não tinham verificado casos de
envenenamento, porque haviam de dar-se na fábrica? Toda a atenuante pelo
que respeita aos senhores industriais estaria nisto, o bom estômago do
pobre que digere o churro e o putrefacto e lhes serviria de cobaia.
— Como pode isso ser, sabida a honorabilidade inconcussa de tais pessoas,
esmoleres ao último ponto, agraciadas pelo Papa com um alto grau de
nobilitação, inscritas ao alto da coluna no rol de benemerência do novo
Sistema, com um carro de assalto para a Falange, umas centenas de contos
para bodos no Natal, a bolsa sempre aberta para festejar os grandes
homens da Situação, homenagens, subscrições filantrópicas, solenidades de
Igreja, iniciativas que no seu conjunto demandam grosso capital? —
contestou o Ministério Público.
As testemunhas, de feição popular, acuaram por cobardia e foram até se
desdizerem. Ficou redimido o fiel-amigo, com que se banqueteavam os
operários da fábrica, e de que morreram uns tantos, naturalmente,
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digamos, inata com que explicava os reveses da vida. De modo que ao sabê-
lo no banco dos réus surgiu-me ao espírito, a priori, que aqui deve ter
havido erro ou parcialidade.
— E Vossa Excelência, como um dos engenheiros silvicultores a quem
incumbia a valorização da serra dos Milhafres, que tem a dizer do caso
concreto do réu? — tornou o Presidente a fugir ao dissertativo.
— Nessa qualidade posso afirmar pela minha honra que, se vi Manuel
Louvadeus na turba que avançou para nós, não lhe ouvi uma só palavra de
provocação, nem mesmo de protesto. Pelo contrário...
— Vossa Excelência digne-se explicar esta última frase: pelo contrário...
— solicitou o advogado de defesa.
— Da melhor vontade. Manuel Louvadeus dizia para os mais esquentadiços:
Vejam lá, rapazes, não se exaltem! Esta gente é mandada; cumpre o seu
dever. Calma! Outras vozes desta natureza lhe ouvi proferir como: Viemos
aqui, os Poderes Públicos já ficam sabendo que não concordamos com a obra
que intentam levar a cabo. E há-de-nos ser feita justiça. Nós também
somos Portugal! Cuidado, não se estrague com desmandos o efeito
produzido!
— Dá-me licença, senhor Presidente? — interveio o Ministério Público. —
Se Manuel Louvadeus tão bem representou na serra o papel de Rainha Santa
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Isabel, porque é que o não representou antes? Que tinha ali que fazer?
— Dá-me licença, senhor Presidente...? — interpôs o Dr. Rigoberto. — Não
sei se ali o exacto papel do meu constituinte era o da Rainha Santa
Isabel, se antes dum interessado, que preza a moderação e não desespera
da sua causa. Bastaria este móbil, sem se ter investido da missão de
árbitro, o que só seria louvável, para estar justificada a sua presença.
O representante do Ministério Público esboçou um esgar dubitativo,
havendo engolido em seco. César Fontalva apercebeu-se e recargou:
— Há pessoas para quem fazer bem, engendrar paz, ser elemento de bondade,
representam uma função, digamos visceral, sem que anulem em si outras
funções. Para estas é um regalo, como para muitas o é fazer o mal.
Sadismo e altruísmo não são palavras desprovidas de sentido.
— Parece-lhe então que o réu exerceu ali um papel de generosidade? —
volveu o Ministério Público, cedendo pano.
— Perfeitamente. Talvez que sem a boa interferência de Manuel Louvadeus,
que goza de certo ascendente nas populações serranas, ali corresse o
sangue como na primeira zona. Força e povo confraternizaram. A que visa o
espírito da ordem?
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Louvadeus? Em breves palavras, senhores juizes, lhe traçaria o perfil:
Tendo partido de Portugal há uma boa dezena de anos, formado segundo o
espírito e a índole da terra-mater, respeitoso das pessoas dignas de
respeito por seu nascimento, riqueza, estado, cumpridor dos deveres de
católico, obreiro probo, regressara repleto de vícios inerentes às terras
novas, desprovidas de tradição, em que actuam toda a sorte de
precipitados sociais. Nesses meios descristianizados ou imbuídos duma
burundanga inacreditável de religião revelada, feitiçaria e
pseudofilosofia de Comte, bebera uma vaga doutrinação acrata que lhe
permitia escarnecer dos Evangelhos e dos dogmas sacrossantos da Igreja.
Espiritista, pela certa, voltara costas ao credo em que nascera, negação
esta que nunca deixa de ser ponto de partida para todos os desvarios do
entendimento. Nunca ninguém mais o viu no templo, embora gostasse de
meter conversa com os eclesiásticos e se mostrasse mesmo obsequioso com
eles. Fazia chacota das práticas do culto, buscando com fácil e barato
voltairianismo refutá-las ou acalcanhadas como absurdas e inspiradas dos
ritos pagãos. Se transitarmos da aberração moral para o terreno político,
vê-lo-emos adepto dos errores económicos de Karl Marx, embora seja de
admitir que nunca lesse os tratados subversivos de tal filósofo. Mas
essas ideias nefastas andam no ar e não admira que, à
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prior vale pelos dois. Jogam os três a bisca! Os governos são uma cambada
de ladrões. O que fazem é sugar o sangue dos pobres. ÍC o tipo do eterno
e instintivo inconformista, capaz de tudo. Em despeito de ser um óptimo e
rendoso boi de nora, tanto muge, que provoca a guerra no mundo. É homem
tão perigoso pelo que faz como pelo que não faz à margem do seu
desespero. Quando o chamaram para a iníqua batalha, atirou com os malhos
de ferreiro ao chão: Pronto, aqui estou! Seria dos que fizeram fogo
contra os servidores do Estado no perímetro florestal? As testemunhas
deixam em suspenso a interrogação. Reclamo para ele as penas constantes
do já citado art.° 171.
Contra Justo Rodrigues, Hilário Nacomba, José Rela, etc. etc, o libelo
foi rápido e sucinto, atendendo aos patronos que saíram a defendê-los, o
Dr. Labão do Carmo, presidente da Câmara de Bouça do Rei, Dr. Coriolano e
Dr. Camarate, afectos ao regime. Todavia não deixou de pedir para uns e
outros as penas minoradas dos art.os 171 e 177 do Código Penal, e
finalmente para José Liró, da Ponte do Junco, 3 meses de prisão e multa
correspondente — oiro sobre azul — na qualidade de protegido do Bispo,
através da irmã, criada no Paço.
O primeiro advogado a usar da palavra foi o Dr. Rigoberto Mendes que
volveu a refazer a história da serra dos Milhafres e do problema
florestal
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Quando nada disto se vê, imagine-se ao que está sujeita uma mísera nação.
O Dr. Rigoberto, num ápice, circunvagou olhos pela mesa salomónica e viu
os juizes mais calmos; ao lado parecia dormir, mas não dormia, ancho e
satisfeito, o Dr. Labão; o Dr. Coriolano, Dr. Camarate» Dr. Esperança
perfilavam-se muito solenes nos assentos, refrangendo em sua lordose o
estrato visigótico do foro rural.
— É lamentável — reatou depois desta tomada de pulso — que o Estado tenha
persistido em encarar o problema da serra apenas pelo lado do
aproveitamento. Ainda por esse, há muito que se lhe diga. Mas o lado
moral, ou mesmo psicológico, não lhe interessou, e essa indiferença foi
causa de amargos de boca para muita gente. Fartei-me de clamar: o Estado
engana-se se julga que faz vingar o seu plano pela simples coacção. O
serrano da serra dos Milhafres é um português muito à parte. Onde se viu
já dois conceitos opostos coexistirem num tipo como ele? Dum lado
independência, bravura, um gosto pronunciado pela franquia que, se me
permitem, chamarei direito espacial, isto é, a faculdade de ir de seu
passo para onde lhe apeteça, sem estorvos, defensões, muros ou acesso
reservado. O outro conceito assenta num sentido seu muito particular, o
de possessão. Que brote dum fundo mais ou menos bárbaro e primitivo,
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Mas continuou, pois que uma das artes do foro, para o causídico, é bater
no bestunto dos julgadores como no pushing-ball:
— Vossências subam ao planalto e ao simples lance de olhos verão como as
terras são tristes e inditosas. Porventura uma boa prospecção do terreno
venha a indicar um dia riquezas aproveitáveis do subsolo. Com a sua
exploração é de crer que a região granjeie a independência económica e
possibilidades de se desenvolver. Mas tal campo não foi sequer percutido.
Era lícito, à falta de melhores horizontes, fechar a serra à sua
necessidade? Os serranos não quiseram praticar a arruaça pela arruaça;
muito menos quiseram ofender e que o seu protesto fizesse correr sangue.
Quiseram apenas lembrar ao Estado omnipotente e seus homens-lige: Vejam
como somos desgraçados! Não nos matem à míngua. Deixem-nos por agora a
serra, necessária para estrumar as nossas leiras de centeio, dar pasto
aos nossos rebanhos, lume para nos aquecermos nos invernos insuportáveis.
Sucedeu uma fatalidade. Eles não são os culpados. Senhores juizes,
imploro da vossa alma compreensiva e generosa a absolvição dos réus!
Encerrada a audiência, encontraram-se descendo a Rua de Santo António o
Dr. Rigoberto, César Fon-talva e o velho Teotónio Louvadeus. O advogado
ia silencioso. Bem adivinhara ele pela fisionomia das
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Não lhe deixaram ver o filho. Não dormiu essa noite. Entrou no automóvel
de César Fontalva a chorar. Raio de nação! Então já se não podia dizer
adeus a um filho?!
O senhor engenheiro Fontalva deu-lhe razão e, modo de o animar, foi-lhe
repetindo que não havia juiz que fosse capaz de condenar Manuel
Louvadeus. Não é que, mercê do seu depoimento, lhe varrera toda a água do
capote, como se dizia na gíria do foro?
O velho gostou de saber que aquele homem não era por nada nos trabalhos
do filho, antes pelo contrário. Pareceu a Rigoberto que alguma razão
oculta traçara o itinerário a César Fontalva para, do Porto à sua casa do
Sabor, o conduzir pela serra dos Milhafres, alongando-lho de quarenta
quilómetros. Mas quê? Quando passaram em Urro do Anjo, estava Julião
Barnabé nas vascas da agonia. Em Arcabuzais, houve corrida para o
automóvel e grande aperto de gente. E Rigoberto, pelos modos deferentes
do engenheiro com os Louvadeus e certo dengue com Jorgina, compreendeu.
Entreabria-se o horizonte da felicidade àquela boa e linda rapariga?
Dias andados procedeu o Plenário à leitura do acórdão. Aparte o afilhado
do bispo, que se saiu com três meses de prisão a remir, os réus foram
condenados a penas variáveis entre 12 anos de prisão, medidas de
segurança para João Rebordão, e 1 ano para
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Justo Rodrigues. Manuel Louvadeus foi condenado a 3 anos e multa, que não
era pequena. Os insubordinados contra o bacalhau podre eram operários,
gente da vila, susceptível de ser veiculo de contágio, e apanharam ainda
talhada maior, todos de 4 anos de prisão para cima. Para que servisse de
exemplo! Os advogados foram de parecer que se interpusesse recurso.
— Comem pela medida grande! — soubera augurar Bruno Lêndeas, glorioso,
mesmo à beira do pai moribundo.
Rigoberto sentiu o velho Louvadeus a arder numa cólera surda e
angustiosa. Sem dizer palavra, refugiou-se na Rochambana. Queria ver-se
sozinho, em luta corpo a corpo com a maldade, e gemer, bramir, gritar até
a alma lhe ficar fera de todo ou render-se como uma cadela batida.
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XI
DE mão automática, com a ponta dum pauzinho, que lhe servia de atiçador,
Teotónio Louvadeus, sentado no mocho, as pernas escanchadas, mexia e
remexia no braseiro. Remexia nas brasas e cismava no filho. Estava na sua
cardenha e pela porta entreaberta difundia-se uma nesga de luar, um luar
álgido e clarete de fins de Inverno, mole e mormacento, que prateava a
terra. Ao lado dele o Farrusco, com as mãos alongadas para o lume,
orelhas tombantes, cismava também. Anoitecera há um bom migalho e apenas
se ouvia de quando em quando o mocho para os penedais.
— Mais inocente que o meu filho nem o cordeiro de Deus! — saiu-lhe do
peito em voz surda, erguendo a cabeça.
Tornou a dobrar-se para o lume, a revolver as cinzas, depois de pôr mais
uma toca:
— Que mal fez ele?
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— Jesus Nosso Senhor, iam-te comendo metade dos dedos. Homem, não dares
conta!
— Que queres, passei o dia a trabucar, caí na cama como um pinheiro
quando o cortam. Mas tu não me dirás: nesta casa havia uma gata...
— Vai lá segurá-la! Passa a noite fora; veio-lhe a lua. Ontem era aí uma
gatarrada que fazia mais babaré que a filarmónica do Braço de Pau. Não
sabes que estamos no mês dos gatos?
O Lêndeas enfiou as calças, foi ao canto da arca por um farrapinho de
estopa, ao balcão pelo decilitro, que meou de aguardente, e pôs-se a
lavar os dedos, depois de os mergulhar dentro um instantinho. Em seguida
a mulher, acocorada na cama e ele de pé, rasgou uma tira do mesmo farrapo
e atou-lha à volta. Volveu a deitar-se, ainda mal corria nos telhados o
primeiro lume da aurora, mas sono que é dele! Com as dores eram tantos os
queixumes que a mulher lhe disse:
— Vai ao médico...
— Ao médico para quê? Largar-lhe nas unhas uma nota de vinte escudos e
outra no boticário? Bem sei o que me vai receitar. Manda vir cinco
tostões de álcool e arranja-me para já água de malvas...
Ainda com o lusco-fusco lavou a mão com água de malvas e, quando veio o
álcool, pôs um emplastro
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nos dedos ratados, o braço ao peito, e assim foi para o balcão servir os
fregueses. Vinha um:
— Que tem, tio Barnabé?
— Que hei-de eu ter? Uma trilhadela...
— Cinza quente do borralho com vinagre para riba. É um tornadoiro de
água. Vinha outro:
— De mão entrapada?
— Não tem importância. Ao pinchar a porta, entalei-me.
Por cálculo e vergonha não confessava a verdade. Se tinham sido os ratos
e não dera acordo, podiam vir os ladrões. Lá da porcaria, não era questão
nem para ele nem para os fregueses.
— Ponha-lhe lar de trigo ralado em leite. O sangue pisado recolhe num
rufo.
No dia seguinte a mão amanheceu-lhe muito inchada. Parecia um tambor.
Levara a noite a dormitar, entrecortado o sono de pesadelos. Disse para a
mulher:
— Raios partam a gata que não presta para nada. Se a pilho, dou-lhe com
uma sachola na cabeça. Lá quanto à mão ter inchado, não há que estranhar.
É até bom sinal. Vai no seu caminho...
Tornou ao balcão. Não se servia do braço direito, teso como um madeiro,
mas pareceu-lhe que por simpatia ou pirraça o outro braço emperrava e
recusava-se
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bastou para que Bruno endireitasse caminho, como se não fosse nada
consigo e fortuito aquele desvio.
Teotónio não disse nada ao neto, lamentando para consigo e para com Deus
ter-se perdido aquela ocasião de verificar que intuitos o mariola
acalentava. Mas ficou de sobreaviso, consoante, aliás, a propensão normal
do seu instinto. O Farrusco percebera por seu turno que aquele era o
inimigo, ou pelo menos o suspeito, e mostrava-lhe os dentes. Impulsivo
como o Jaime, um dia atirou-se a ele quando enchia as bilhas. Bruno deu-
lhe um pontapé e o cão retrocedeu a cainhar. O velho estava dentro da
cardenha a observar pelo postigo. Ferrou os dentes no pulso para não
soltar um grito, e conteve-se. Aquele pontapé, em realidade, para algum
bem serviria: granjeara definitivamente no Farrusco uma sentinela
irredutível e vigilante.
Entretanto em todo o Perímetro decorriam os trabalhos de decruamento com
despacho e truculência. Cem homens ali, outros cem mais longe, capinavam
o mato, faziam queimadas, abriam caminhos carroçáveis, desfaziam os
grandes arolos dos arados mecânicos onde as grades motorizadas não podiam
transitar. De manhã ao sol-pôr era ali uma inferneira ininterrupta, com
os motores a atroar a morrinha hibernal do planalto.
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O velho ouvia aquela balbúrdia de alma transida e fel nos lábios. Pudesse
ele e, como um escrivão rasura com duas penadas a escritura que lavrou,
assim anularia o trabalho feito. Mas não estava na sua mão. Puxava-lhe o
génio de vieux trappeur e urdia e desurdia ardis vários, alguns dos quais
não passavam de fantasia pura. De outros só as estrelas seriam
testemunhas. Uma vez por outra, tinham sido acusados danos nas máquinas,
que só podiam explicar-se por obra pessoal. Uma noite explodira um motor
de Caterpillar e averiguara-se que lhe haviam acendido uma fogueira por
baixo. Outra vez declarara-se incêndio na barraca, que servia de despacho
e contadoria, e por pouco não ficou reduzida a cinzas. Quem fora?
O fogo era a arma traiçoeira e terrível, mais de temer naqueles
empreendimentos. O malfeitor vinha com o escuro da noite, rastejando como
uma cobra, contendo o fôlego, acendia a mancheia de caruma ou de ervas
secas e punha-se de largo. Só se dava conta quando, com o incêndio a
lavrar, irrompiam as labaredas. A malfeitoria pegou de estaca e fez
escola. Eram muitos os praticantes. Mandaram vir contra eles cães-
polícias, pois que a força, embora em cada sector houvesse um piquete de
dez homens com pistolas-metralhadoras, era incapaz de sobrestar estes
atentados, ainda com o apoio dos
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recrescido desvelo. O velho era animal de pouco sono, rijo como o aço, e
tinha ainda tempo para lançar fios e armadilhas e caçar de ameijoada e ao
chamo. Nesta faina, metia-se para o outro valeiro da serra, nos
lameirais, onde sabia que os coelhos vinham bailar e no decorrer da
farândola os machos apartar suas damas. Se há bicho que pareça comprazer-
se na soledade é este. Descobre-se o covil numa baixada e só dali a longe
outro. Por isso, quando se encontram, se desforram em cordialidade. A
horas mortas, especialmente, visitam-se, confraternizam e fazem seus
relambórios. Então, nas noites de luar, quando não pressentem raposa no
termo, ajuntam-se todos como num arraial. B a ocasião de os belos e
robustos laparotos terem possibilidade de escolher a boa fêmea. O
Teotónio descarregava a sua colubrina para o monte e seria pouca sorte se
dois ou três não caíssem para a banda. O Farrusco dava salto e também era
raro que não fosse apanhar o seu ferido.
Ao reclamo não era pior sucedido. O Teotónio sabia chiar como as coelhas
cachondas. Saía um macho da brenha, pé aqui, pé acolá, orelhas apontadas
para a Lua, cofiando o bigode. Onde estava ela, a polha aluada? O
Teotónio continuava a chiar, e o láparo desejoso vinha direito à
caçadeira meter-se na boca do cano. A caça à lebre era mais fina, embora
mais árdua. Havia que deitar os fios com o
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A rapariga, que estava por lá à janela a fazer meia ou renda, foi tirada
— viu-se bem — da sua devoção por semelhante voz. Tanto assim que não
respondeu à primeira.
— A menina não me fala e eu não lhe fiz mal nenhum... Que mal lhe fiz
eu?... Ao menos restitua-me a carta que lhe mandei pelo Chinchim...
— Não tenho nada a restituir-lhe, que eu não recebi, nem quero receber
carta nenhuma do senhor. Fique-o sabendo duma vez para todo o sempre.
— Pois eu escrevi-lhe... Dizia-lhe que andava para bem, e que se a menina
quisesse a ia pedir em casamento...
— Pois perdia o latim. Eu nem sequer posso olhar para um homem que ajudou
a condenar meu pai. Meu pai é um santo e o senhor não passa dum grande
impostor. Eram coisas que se dissessem? Onde tem a consciência?
— Seu pai, antes de se sentar no banco dos réus, já estava condenado.
Aquele tribunal foi feito para trincar a gente que o Governo para lá
manda. Não tem outro fim.
— Embora, o senhor praticou uma má acção...
— Olhe, menina, eu pouco ou nada agravei seu pai. Se dissesse aquilo que
me pediram para dizer?! Queriam que dissesse que seu pai manobrava um
rifle à frente dum bando de desordeiros! Queriam
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Jorgina calou-se.
— Aqui está, perdoe. E digo-lhe adeus, até outra vez.
— Rode e não ande a benzer diante de mini. Os nossos caminhos apartaram-
se e nunca mais se encontram.
— Não seja má. Adeus!
— Adeus, adeus, deixe-me em paz!
Antes que o homem largasse, batia ela com a vidraça de repelão. A
rapariga tinha a sua ralé. Mas, deixá-lo, consentira em ouvir-lhe as
explicações. Olho no mariola!
O Farrusco, agora, sempre que estivesse na Rochambana, o que era seguro
desde que não caçasse com o velho ou fosse com o Jaime, dava sinal sempre
que o Lêndeas passava no caminho para Urro. Conhecia-lhe o vulto e
percebia-lhe o passo à légua. Ele a descer a encosta para cá dos
abarracamentos, e já eriçava o pêlo e mostrava os dentes. Assim que
assomava na lomba, arremetia. Lançava-se para ele e ia-o seguindo pelo
espaço duns bons quinhentos metros, ora avançando, ora recuando, quer
fizesse menção de lhe atirar uma pedra, quer esboçasse ainda o gesto
desarvorado de investir. Só o largava quando se perdia na dobra do
terreno.
Entrava na cardenha de pêlo em ouriço. O dono ralhava-lhe e ele gemia:
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isto duas, três vezes a fio, e Bruno Lêndeas desistiu de rondar à volta
da casa.
Certa noite Teotónio foi ajudar à parição duma vaca e esqueceu-se do
Farrusco. De manhã cedo, ao sair da cardenha, foi encontrá-lo morto,
estirado à beira da fonte.
De princípio não quis crer. Hem? era bem o Farrusco? Aquela coisa bruta,
sem mola, sem corda, inexpressiva e feia de todo? Era o Farrusco, bem
morto, rígido e inerte como o cabo duma enxada. Rompeu a gritar a voz
aflita dos vilões e dos mesquinhos batidos e esfolados pelos fidalgos e
mordomos:
— Aqui-d'el-rei! Aqui-d'el-rei, mataram o meu Farrusco!
Alvoroçou-se a Rochambana e o primeiro a aparecer foi o Jaime. Pegou no
cão ao colo e desatou a chorar. O velho gania e fazia uma estreloiçada
com os dentes como as caravelas que armam aos gaios no meio dos milhos.
Filomena e Jorgina debulhavam-se em lágrimas. Que haviam de fazer para
lhe dar vida?! Deite-se-lhe aguardente pela boca abaixo, pode ser que
volte a si! Foi fava que lhe deram! Ai, se ele vomitasse!
Estava morto e bem morto. Torpe coisa. A bela e incompreensível máquina
parara para todo o sempre. Não havia nada a fazer, já o corpo enregelara.
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me dês uma demão, mas há-de ser de tal jeito que te não comprometas. Eu
cá estudo...
Calaram-se cada um a ver fuzilar nos olhos do outro perspectivas ferozes.
Perspectivas e o estendal de agravos que tinham do meliante. Não abusara
de Filomena, uma vez que a pilhara sozinha na Rochambana? Depois,
julgando o marido morto, com promessa de casamento, a pobre humilhara-se
mais de uma vez ao malandro. Ela contara tudo ao Jaime por miúdos, quando
o viu às portas da morte, desconfiada que ele soubesse, como de facto, e
na sua dor lhe pedia perdão. Por isso fora a rixa. Quem o sabia já a esse
tempo era o velho, que os vira sair dum urgueiral e aguardava apanhá-los
outra vez juntos para os matar.
— Mas nunca mais os cacei, por mais que os espreitasse. Tua mãe emendou-
se, a alma do diabo. Mas as barbas estavam sujas e sujas estão.
O velho disse por fim:
— Vai em paz, meu rapaz, e não sonhes sequer o que me disseste e acabas
de me ouvir. Faz correr que o cão morreu com esgana. Percebes? Deixa o
malvado comigo.
Queria ver-se sozinho. Quando o neto voltou costas, agarrou-se ao cadáver
do cão a beijá-lo, a arrepelar-se e a chorar, mas a medo, que tinha
vergonha de que o vissem.
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XII
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consigo que a neta era segura, mas logo a sua filosofia de velho Salomão
retrucava que nunca fiar. Realmente ela, se parecia estar sempre na
retranca, alguma trela lhe dava. Alturas, não esquecer que são mulheres —
comentava para os seus botões. — Por aí se começa... Mas ná, a pequena
tem lume no olho. Anda a desfrutá-lo. Com efeito, uma tarde, escondido no
estábulo, ouviu este colóquio:
— Se a Jorgina gostasse de mim, dava-me uma prova. Oh se dava...
— Que prova?
— Vinha ter comigo.
— Não queria mais nada?
— Era alguma coisa do outro mundo?
— Não era, pois era lá coisa do outro mundo?!
— Ainda bem que o diz.
— E para que havia de eu ir ter com o senhor, não me dirá?
— Para quê? Então não era capaz de me dar um beijo? Ai se a menina
soubesse o gostinho que os meus beijos têm...!
— Calculo. Beijos que valem dentadas de burro. Tenha juízo, homem! E sabe
que mais: desampare-me a porta!
Fechou-lhe a vidraça no focinho. Era a mesma coisa que mandá-lo abaixo de
Braga, por isso o ladrão andava a difamá-la. Por onde ia propalava que
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clavina da bandoleira. Não teve tempo. O ferro, despedido por mão irada e
com o alento todo, ia-se-lhe cravar no peito e lá ficava plantado. Sem
perder um minuto, o velho arrastou-o pelos pés para a beira do córrego, a
uns cem passos dali. Volveu a desfazer com uma giesta o restolhadoiro que
deixara no caminho. Tornando ao corpo, tirou-lhe o ferro do peito que foi
esconder com a carabina, perto, debaixo duma lapa. Essa noite, antes do
cantar dos galos, quando Jaime voltava da rambóia dos serões, ao entrar a
porta para dentro da quinta, uma garra de ferro que saía da sombra
filava-o pelo braço. Passado o primeiro movimento de surpresa, reconheceu
o avô que lhe dizia:
— Anda já comigo. Por onde ninguém nos veja...
Meteram a corta-mato para a serra. Na Rochambana muniram-se de duas
enxadas, de uma pá e de um ferro do monte. Por única explicação, o avô
disse--lhe:
— Vem-me ajudar a enterrar uma besta que caiu ali em baixo a uma cáfila.
Se fica à de cima da terra, infecta todo o monte a começar pela
Rochambana.
— Podia ser logo de dia...
- É domingo e parece mal. Nos dias do Senhor não se mexe com ferramenta.
Diante do cadáver que, pela camisa funerária e o mais, logo identificou,
o rapaz ficou boquiaberto.
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cadáver, que havias tu de fazer senão ajudar teu avô a sair da enrascada?
Escusas de confessar que lhe tinhas tanta osga como eu. Deus te livre de
ser tanso. Eu é que fui o autor exclusivo, eu é que pago, eu que daqui a
pouco tenho os dias cheios. Compreendes?
— Compreendi, avô, mas...
— Ouve... Pode ser que te prendam. Então é que eu quero ver que homem tu
és. Tens que dar um nó na língua...
— Descanse, avô, nem que me deitem numa grelha me obrigarão a dizer o que
não quero.
— Vais daqui ao direito meter-te na cama. Não tarda muito que rompa a
manhã. Vestes o teu fatinho de domingo e vais à missa de corpo bem feito.
Eu lá me vou mostrar. Levas a roupa cheia de lama, mas um trabalhador,
ainda mais quando andou a saibrar, retira sempre embodegado. O melhor é
que não te vão dar com a roupa suja. Esconde-a. E, olha, antes de mais
nada que não te pressintam agora ao entrar em casa. Arranja-te como
puderes! Amanhã, segunda-feira, com o nascer do Sol, aparece-me para
recomeçarmos com a bacelada.
— O fato vou metê-lo no palhal. Amanhã, com o desmonte, o saibro come a
lama. De sorte me perguntam hoje por ele.
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apercebeu do desacato. Mentira que nenhum até a data lhe fora ao poleiro.
Mas, deixá-lo! Dali já lhe não vinha mal. Estava vacinado contra aquelas
bexigas. A Leocádia agora cofinhava.
— Cala-te que hás-de ter um cordão de oiro.
— Tenho uma nisga! Homem mais malvado nunca se viu!
— Fez-te mal? Se te fez mal, vai-te queixar—e voltou-lhe as costas,
aliviado dos nervos, tranquilo por outro lado dos seus feitos.
Aquele domingo transcorreu absorto e cismático, com um solzinho brando em
Arcabuzais e desde uma ponta a outra do planalto. A gentinha ouviu missa;
tocou o harmónio na venda; no terreiro os rapazes jogaram o pino; o João
Mota emborrachou-se.
Toda a segunda labutaram os dois Louvadeus no desmonte da saibreira. Na
terça, pela tarde, apareceram dois guardas-florestais à cancela da
Rochambana.
— Boa tarde!
— Boa tarde!
— Não me saberão dar razão do Bruno Barnabé...?
O velho ergueu-se de mão sobre o cabo da enxada, enquanto o Jaime se
aprumava:
— Não, meus santos, não.
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— Eu, Modesto, eu matar teu irmão?! Tira isso do entendimento. Com que
cara havia eu de comparecer no tribunal de Deus! Eu matar o meu
semelhante?!
Foi-se aproximando muito ronceiro e vergado. Quando lhe pôde deitar a mão
direita à carabina, ferrou-lhe a esquerda nas goelas:
— Repete outra vez, repete, meu bandalho!
— Disse o que ouço...
— Ouviste uma grande calúnia. Não queres repetir?
Acudiram a toda os dois caiadores, que trabalhavam no reboco da casa, e
as mulheres deles, que lhes tinham vindo trazer o comer, e apartaram-nos.
Modesto foi-se embora, meio tartaranha e envergonhado.
Mas o rumor de que tinham sido os Louvadeus que haviam estrafegado o
Lêndeas e feito desaparecer o cadáver tornou-se insistente. Invocou-se a
briga que Jaime noutros tempos tivera com Bruno, as gabarolices
desbocadas deste, e o grito do velho em pleno tribunal do Porto,
divulgado pelo Dr. Labão: Ah cão, que mas pagas! Escoltado por duas
praças da guarda, um piquete de homens, dispensado pelos Serviços
Florestais, revolveu a terra toda de desmonte na Rochambana. Perante o
insucesso, contra o palpite de muita gente, puseram-se a cavar aqui,
além, na
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Barnabé como eu chamar-me Pedro. Estou a ler na tua alma, mas a mim não
me comes tu.
Pegou do cavalo-marinho, que a violência e os castigos corporais eram o
processo corrente de averiguação ressurgido pelo aparato judicial, e
caminhou para o rapaz.
— Confessas?
— Não tenho nada que confessar. Assestou-lhe a primeira azorragada,
puxada à
mão-tente, pelas costas:
— Confessas?
— Não tenho nada que confessar. Descarregou-lhe segunda, terceira, quarta
vergalhada; à quinta, a ponta do cavalo-marinho, cim-brando, respingou
para a cara e logo ali lhe implantou um gordo e tumefacto vergão. A fera
legal ia prosseguir, mas Labão deitou-lhe o braço:
— Deixe o rapaz. Já está convidado. Não saberá... não saberá!
Pasaram para o velho. Em voz submissa, apagada, declarou Teotónio que não
era capaz de molestar ao seu semelhante, quanto mais matá-lo. Tinha
grandes agravos, lá isso tinha, do Bruno Lêndeas, e no Porto saíra-lhe do
peito um grito de revolta quando vira aquele mau homem desfazer no seu
filho, empurrando-o para a cadeia. Mas lá de atentar contra a vida dele,
não senhor, não senhor! Deus
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XIII
Nasceram menos anhos e cabritos na serra dos Milhafres e alargaram-se
mais nos cotovelos e rótulas os rasgões da miséria ancestral, mas o
Estado todo-poderoso, absoluto, levou a sua avante. A todo o lés do
Perímetro florestal o penisco germinou, cresceu e em poucos anos lombas e
valeiros revestiam uma linda e uniforme capa de asperges, de veludo
esmeralda. Caminhos, com pontoes aqui e além, onde poderia transitar o
automóvel, cruzavam-se de monte para monte. Nos recostos, aos quatro
ventos, erguiam-se as casas dos guardas, com seu telhado vermelho e linha
simples, escarolada e exótica na terra troglodítica, e os postos de
vigilância, ligados telefonicamente. Um engenheiro silvicultor reinava em
toda a extensão como em domínio feudal. Convidava os nobres amigos para
montarias no couto como os reis para as tapadas, onde inçava o veado e o
cervo. Na serra dos Milhafres faltavam
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a refazer-se num retirado barrocal duma chumbada que lhe deram. Mas a sua
alma refervia em ódio, e a ânsia da vingança, que foi sempre o primeiro
estímulo dos bárbaros, dava-lhe fôlego e ralé, dir-se-ia, cada vez mais
mordente e atrevida.
Antes de completar os três anos e meio de Penitenciária, o meio ano
representando o agravo de pena com que o Supremo Tribunal, olho atento da
Ordem, entendeu gratificar os delinquentes, Manuel Louva-deus beneficiou
duma amnistia, muito simbólica, significativa de exemplar bom
comportamento. E ao homem, que nunca fora outra coisa senão um bem-
comportado, mandaram-no em paz a pretexto do exercício duma virtude que
deixara de ser inibitória para a sua condenação. Apresentou-se
inesperadamente em Arcabuzais, mais velho, mais macilento, mais lido e
sabedor das coisas do mundo, e mais idealista. E foi uma epifania. Tinha-
se por causa dele arruinado a casa, mas não tivera raça de culpa, nem
ninguém lha lançava em rosto. Ele, coitado, propunha-se recuperar tudo a
breve prazo. Ia exumar as riquezas que jaziam enterradas à sua espera no
chão misterioso de Mato Grosso. Era tão certo lá estarem como estarem
sentados à volta do cepo, malga do caldo na mão, por cima deles a candeia
a bailar, tal como no dia em que chegara com seu fatinho de embarcadiço e
exclamara, surpreso que o não houvessem reconhecido:
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Não sabes quem eu sou, mulher? Tão certo que bastava ouvi-lo para ficarem
todos presos da sua palavra e acreditarem. E até o velho, sempre raposo
desconfiado, sentia na alma o afago da aragem messiânica.
— Hei-de comprar-lhes uma quinta, onde haja tudo, desde pátio de sombra a
cocheira. Ainda hoje se encontram pela província dessas casas apalaçadas,
em mãos de trolhas que não raro as aviltam, e que pertenceram a fidalgos
que deram em droga. Já repararam como são bonitas as escadarias, às vezes
de dois lanços, as janelas com alizares caprichosos, cornijas bojudas,
telhados com caleiros reforçados a argamassa?! Dessas é que eu gosto e
que eu estimaria possuir. Claro que casas assim hoje em dia pedem um bom
espada, mas compra-se o bom espada!
- Ora, ora, para mim já vem tarde! — exclamava Filomena. — Estou velha e
o que peço a Deus é que me deixe morrer em sossego.
— Aí vem vossemecê, senhora mãe! — interpunha Jorgina. — Prefere
continuar entre mondongos?
— Nesta aldeia miserável -— prosseguia o ex-penitenciário — que décadas
da era nova tornaram mais pobre, mais fanática, mais desoladora, hei-de
criar uma Escola de Artes e Ofícios. Uma escola para lavrantes da pedra.
Que belas padieiras se não tiram
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faltar. Mas antes, há-de seu sogro, o senhor Teotónio Louvadeus, ir viver
com o neto. Entendido? Não souberam que dizer.
— Passo por aqui amanhã. Preparem as suas coisas. Conduzo o senhor
Teotónio a Parada da Santa e volto a buscar a senhora Filomena e partimos
para Lisboa. Adeus!
Rodou. Filomena deitou-se aos joelhos de Teotónio:
— Perdão, senhor pai, perdão! Fui fraca, fui mulher. Perdoe e ponho a
minha língua no chão para o senhor passar.
O velho viu-a tão atribulada, com a pobre alma sincera às escâncaras, e
não se conteve que a não abraçasse:
— Eu te perdoo, Filomena, eu te perdoo. Vamos para os nossos filhos, de
bem uns com os outros.
E assim foi. Em Parada da Santa, Teotónio embrenhava-se pela floresta
nova, corria balsas e cerros, linhas de divisão e arrifes, palmilhava as
estradas e sendas abertas de posto para posto de aldeia para aldeia, como
um prospector que bate o terreno, mas procurando sempre desencontrar-se
de gente. Saía de manhã para voltar com a noitinha. Uma tarde, ao cabo de
oito dias, o velho, que pegara do varapau, disse para a neta:
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outro aberto, como dormem os animais do monte. Quando lhe pareceu que na
aldeia até os velhos morfanhos dormiam, entrou no quintal do Dr.
Rigoberto. Espreitou para umas vidraças e outras e não viu luz. Deviam
estar a dormir ou o mais provável é que tivessem ido para a festa. Quem
num redondo de dez léguas não ia ver o fogo de artifício na Senhora dos
Remédios? Estaria ele a égua na loja? Estava, estava, que os amos iam de
automóvel e os criados de camioneta.
Encontrou a Bicha, égua corredora e criadeira, à manjedoira. Tirou-a para
fora em pêlo, só com a cabeçada de corda, devagarinho, que não dessem
conta. Ao chegar à rua, estacou, de orelha fita. Na aldeia continuava a
não bulir vivalma. Quem não fora para o arraial, dormia, bem enliçado no
sono. Ouvia-se apenas nos estábulos um ou outro chocalho, lá de quando em
quando. Andariam também para as bandas da ribeira, onde era o melhorio
dos agros, a guardar os meloais dos ratoneiros, que costumam ser sobejos
nas terras da fome em dias de festa. Atravessou a estrada a medo e num
relâmpago. Se pudesse, levava a égua às costas. Uma vez do outro lado,
saltou-lhe em cima, de escancha-perna; deu-lhe duas chibatadas mansas com
a extremidade do rabeiro e ala! Meteu a passo, primeiro, depois onde o
caminho era recto e areado a galope. À desbanda de Urro, dentro
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da margem eram bons para beber, sem se molhar. Mas lá descobriu um lugar
a jeito e despediu. Mergulhou o focinho no veio da corrente e, mais
fluida que uma cobra a esgueirar-se para o seu agulheiro, a água fria e
deliciosa escorregou-lhe no canal. Parou um momento. Tornou a beber.
Satisfeita, depois de uma pausa durante a qual aspirou os ventos,
enristando o focinho, rompeu a uivar. Um uivo agudo como uma lança.
Que queria ela dizer? Que farejava? Chamava o lobo. O lobo, com efeito,
levantou-se e, a passo o seu tanto despachado, foi ter com ela. À beira
do corgo, olhou para a água que ia atropelando-se uma à outra, roçando os
seixos e as raízes dos arbustos meios arrancados, mal dormida à sombra
das rincolheiras e nas lorgas que abrira o temporal dos dias anteriores,
fazendo ondinhas nos remansos se os insectos lhe tocavam com as asas do
sarambeque. E, sem objectivo, ao desenfado, o lobo foi-se deixando levar
pela margem abaixo. A loba seguiu-o, e breve marchavam os dois, mudos,
par a par, com o regato à vista, em direcção à aldeia, donde subia um
fartum ténue. Era lá que se acolhiam os rebanhos gordos e palonços, com a
problemática açougada. Leva que leva, de passagem, não deixavam de rusgar
à porta das lapas e nos recantos, debaixo dos fetos, onde poderia ter-se
acolhido coelho ou lebre. Mas não
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davam com coisa em que ferrar o dente. Os pássaros voavam por cima deles
tão longínquos como as nuvens. Entretanto as folhas puseram-se a bulir
mais forte e a sombra que projectavam no chão advertiu-os de que o Sol
estava a virar no arco celeste. Avançaram mais rápido, talvez por isso e
porque, nas baixas, o instinto de perigo os obrigava a andar depressa.
Mais longe, a loba voltou a beber. Mas, agora só foi a molhar a boca ao
desfastio. Era vezo. O lobo seguira adiante, molengão, não-te-rales,
espera que não espera.
Passaram à beira da Rochambana onde dantes havia bulício, gado, sempre
gente a levar e trazer e cães ladradores. O sítio agora estava silencioso
como um fojo. Cautela! Aproximaram-se da fazenda, sempre de pé atrás e
desconfiados. De animais, nem raça! Apenas um eflúvio muito ténue, que só
a eles não escapava, se erguia ao sopro do vento, é provável que da
cardenha onde anos e anos dormira a cabra que tinha amojos grandes como
odres. A paz do ermo, guardada, dir-se-ia, pela loquela da água quando
deixava a cerca para cair no corgo, afoitou--os. Saltaram o muro e
meteram pela terra fora; espreitaram para- a cabana que tinha a porta às
escâncaras, depois, a meio chouto, foram até a casa, junto do penedo.
Muda, portas cispadas. Desandaram. Acabavam ali as suas sondagens de
bichos escarmentados
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loba, que era glutona e aproveitadiça com a criação dos cachorros, deu-
lhe ainda dois tombos. Não tinha com que entreter a fome dum verme.
O lobo farejou, volveu a farejar, abocanhou um dos fémures por vicieira,
e não foi mais longe. Aconteceu-lhe então reparar que jazia a poucos
passos a coisa fria, negra, perigosa, que manobrada pelo bicho-homem
produzia um bruto e pavoroso estrondo. Ventas medrosas, a arfar, de
princípio com certo respeito, depois com empolgante curiosidade, tomou
contacto com ela. Inofensiva de todo. Mas rescendia a uma acritude que
lhe espertava os humores.
Depois de se aliviar quedou-se, sentado sobre o traseiro, a desfrutar a
loba encanzinada com a carcaça na esperança de que lhe oferecesse coisa
que roer.
De repente teve um sobressalto... Aprumaram-se-lhe as orelhas, e nelas,
pequenas mas bem campanuladas, caíram como granizo os sons do largo,
desde os mais ténues. Para o povo parecia condensar-se um sussurro
qualquer e desenvolver-se compacto e subtilmente roleiro. Olá! Contudo,
não quis dar alarme à loba sem real motivo, e perfilou-se à escuta,
especado nas gâmbias, cabeça alta. O rumor foi engrossando... tornou-se
cascata. Não havia mais dúvida: avançavam em tropel e solto falatório
pelos corcovos da serra.
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OBRAS DO AUTOR
Abóboras no Telhado: crítica e polémica.
Aldeia: terra, gente e bichos.
Alemanha Ensanguentada: caderno dum viajante.
Anastácio da Cunha, o Lente Penitenciado: vida e obra.
Andam faunos pelos Bosques: romance.
Arca de Noé. III Classe: contos para crianças (com gravuras a cores).
O Arcanjo Negro: romance.
Arcas Encoiradas: estudos, opiniões, fantasias.
Aventura Maravilhosa de D. Sebastião: romance.
Os Avós dos Nossos Avós: história.
A Batalha sem Fim: romance.
Caminhos Errados: novelas.
Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais: estudos de crítica histórico-literária
Casa do Escorpião: novelas.
A Casa Grande de Romarigães: crónica romanceada.
Cinco Réis de Gente: romance.
Constantino de Bragança. VII Vizo-Rei da Índia: história.
D. Quixote de La Mancha: Cervantes. Trad. 3 vols.
De Meca a Freixo de Espada à Cinta: ensaios ocasionais.
Dom Frei Bertolameu: legenda.
É a Guerra: diário da conflagração mundial.
Em Prol de Aristóteles: Ant. de Gouveia. Trad. e prefácio.
Estrada de Santiago: novelas.
Filhas de Babilónia: novelas.
O Galante Século XVIII: textos de Cavaleiro de Oliveira.
Geografia Sentimental: história, paisagem, folclore.
O Homem da Nave: serranos, caçadores e fauna vária.
O Homem Que Matou o Diabo: romance.
Humildade Gloriosa: romance.
Jardim das Tormentas: contos.
Lápides Partidas: romance.
Leal da Câmara: vida e obra.
O Livro de Marianinha: lengalengas e toadilhas em prosa rimada (com
gravuras a cores).
O Livro do Menino-Deus: o Natal na história religiosa e na etnografia.
Luís de Camões: fabuloso-verdadeiro: ensaio.
O Malhadinhas: novelas.
Maria Benigna: romance.
Mónica: romance.
No Cavalo de Pau com Sancho Pança: ensaio.
Novelas Exemplares: Cervantes. Trad. e prefácio.
Oeiras: monografia.
Por Obra e Graça: estudos.
Portugueses das Sete Partidas: Aventureiros, viajantes, troca-tintas.
Príncipes de Portugal, suas grandezas e misérias: história.
Quando ao Gavião Cai a Pena: contos.
Quando os Lobos Uivam: romance.
A Retirada dos Dez Mil: Xenofonte. Trad. e prefácio.
Romance da Raposa: romancinho infantil.
O Romance de Camilo; biografia e crítica, 3 vols.
S. Banaboião, Anacoreta e Mártir: romance.
O Servo de Deus e a Casa Roubada: novelas.
Terras do Demo: romance.
Tombo no Inferno — O Manto de Nossa Senhora: teatro.
As Três Mulheres de Sansão: novelas.
Um Escritor Confessa-se: memórias.
Uma Luz ao Longe: romance.
Volfrâmio: romance.
Data da Digitalização