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Alexandre O’Neill

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Escritor e poeta português (1924-1986). Foi um dos fundadores do Grupo Surrea-
lista de Lisboa (1947), juntamente com Mário Cesariny de Vasconcelos […]. Em 1951
foi editado o primeiro livro de poemas do autor. Intitulava-se Tempo de Fantasmas
[…]. Com ele se demarcava O’Neill do Surrealismo, explicitando num “Pequeno
aviso do autor ao leitor” as razões do abandono: o impasse em que caíra a “aventura
surrealista”, reduzida “às alegres atividades de dois ou três incorrigíveis pequenos
aventureiros”, o seu alheamento “dos verdadeiros problemas do seu meio” e o seu
excessivo formalismo. […] O’Neill assume, pois, o seu empenhamento político, pro-
curando formas diversas de recusa da ordem estabelecida: a provocação, a sátira, o
escárnio, a blasfémia, o divertimento poético, o jogo como expressão do princípio de
prazer, o nonsense1, o curto-circuito das metáforas insólitas, a imaginação como
hipótese de criação de um mundo outro que se sobrepõe ao mundo real. O poder
revolucionário do irracional torna-se, assim, aliado do poeta, que não enjeita, nesse
ponto, a lição surrealista. […] O humor é, sem dúvida, o seu principal trunfo. Conti-
nuando uma rica tradição intertextual que vai das cantigas de escárnio e maldizer
até Nicolau Tolentino e Bocage, a faceta humorística de O’Neill […] é a sua forma de
“soltar as feras” (Aragon) do inconsciente e de emancipar o espírito em relação a
todas as sentinelas da razão, da moral e do gosto.
ROCHA, Clara, 1999. “O’NEILL (Alexandre)”. In Biblos – Enciclopédia Verbo das Literaturas
de Língua Portuguesa. Vol. 3. Lisboa: Verbo (pp. 1275-1276)

Algumas obras: Tempo de Fantasmas, 1951; No Reino da Dinamarca, 1958; Abandono


Vigiado, 1960; Poemas com Endereço, 1962; Feira Cabisbaixa, 1965; De Ombro na Om-
breira, 1969; A Saca de Orelhas, 1979; As Horas já de Números Vestidas, 1981; Deza-
nove Poemas, 1983; O Princípio de Utopia, O Princípio de Realidade seguidos de Ana
Brites, Balada Tão ao Gosto Popular Português & Vários Outros Poemas, 1986.
1. sem sentido; disparate, despropósito.

“Albertina” ou “O inseto-insulto” ou
“O quotidiano recebido como mosca”
O poeta está só, completamente só.
Do nariz vai tirando alguns minutos
De abstração, alguns minutos
Do nariz para o chão
5 Ou colados sob o tampo da mesa
Onde o poeta é todo cotovelos
E espera um minuto que seja de beleza.
Alexandre O’Neill 21

Mas o poeta é aos novelos;


Mas o poeta já não tem a certeza
10 De segurar a musa, aquela
Que tantas vezes arrastou pelos cabelos…

A mosca Albertina, que ele domesticava,


Vem agora ao papel, como um inseto-insulto,
Mas fingindo que o poeta a esperava…

15 Quase mulher e muito mosca,


Albertina quer o poeta para si,
Quer sem versos o poeta.
Por isso fica, mosca-mulher, por ali…

– Albertina!, deixa-me em paz, consente


20 Que eu falhe neste papel tão branco e insolente
Onde belo e ausente um verso eu sei que está! Marc Chagall, O Poeta, 1911.
Philadelphia Museum of Art, Filadélfia

– Albertina! eu quero um verso que não há!…

Conjugal, provocante, moreno e azulado,


o inseto levanta, revoluteia, desce
25 E, em lugar do verso que não aparece,
No papel se demora como um insulto alado.

E o poeta sai de chofre, por uns tempos desalmado…


O’Neill, Alexandre, 2005. “Poemas com Endereço”. In Poesias Completas.
4.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (pp. 76-77) (1.ª ed.: 2000)
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Estabelece uma relação entre o título do poema (e as expressões que o constituem)


1 
e o assunto do texto.
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Descreve o modo como se configura o retrato do “poeta” (v. 1) ao longo da composição.


2 

Explica em que medida o poema pode ser considerado uma invulgar arte poética.
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22 Poetas contemporâneos

Bom e expressivo
Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.

5 Vai-me a essas rimas que

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tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia


10 se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: – Não é poesia!,

diz-lhe que não, que não é,


que é topada1, lixa três,
15 serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-

dra que rola na pedra...


Mas também da rima “em cheio”
Joan Miró, Pintura (O Sol), 1925.
poderás tirar partido, Musée National d' Art Moderne, Paris
20 que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,


com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo...
O’Neill, Alexandre, 2005. “Poemas com Endereço”.
In Poesias Completas. 4.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 203) (1.ª ed.: 2000)

1. ato ou dito irrefletido ou inadequado a uma situação.

Leitura | Compreensão

Explicita a forma como o poema está estruturado, comentando o sentido que a


1 
conclusão produz.

Identifica o(s) recurso(s) expressivo(s) utilizado(s) na segunda estrofe e respetivo valor.


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Caracteriza o poema, no que diz respeito a estrofe, métrica e rima.


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Alexandre O’Neill 23

Homem
INSOFRIDO TEMÍVEL ADAMADO PURO SAGAZ INTELIGENTÍSSIMO
MODESTO RARO CORDIAL EFICIENTE CRITERIOSO EQUILIBRADO
RUDE VIRTUOSO MESQUINHO CORAJOSO VELHO RONCEIRO ALTIVO
ROTUNDO VIL INCAPAZ TRABALHADOR IRRECUPERÁVEL CATITA
5 POPULAR ELOQUENTE MASCARADO FARROUPILHA GORDO HILA-
RIANTE PREGUIÇOSO HIEROMÂNTICO MALÉVOLO INFANTIL SINIS-
TRO INOCENTE RIDÍCULO ATRASADO SOERGUIDO DELEITÁVEL
ROMÂNTICO MARRÃO HOSTIL INCRÍVEL SERENO HIANTE ONANISTA
ABOMINÁVEL RESSENTIDO PLANIFICADO AMARGURADO EGOCÊN-
10 TRICO CAPACÍSSIMO MORDAZ PALERMA MALCRIADO PONDEROSO
VOLÚVEL INDECENTE ATARANTADO BILTRE EMBIRRENTO FUGITIVO
SORRIDENTE COBARDE MINUCIOSO ATENTO JÚLIO PANCRÁCIO
CLANDESTINO GUEDELHUDO ALBINO MARICAS OPORTUNISTA GEN-
TIL OBSCURO FALACIOSO MÁRTIR MASOQUISTA DESTRAVADO AGITA-
15 DOR ROÍDO PODEROSÍSSIMO CULTÍSSIMO ATRAPALHADO PONTO
MIRABOLANTE BONITO LINDO IRRESISTÍVEL PESADO ARROGANTE
DEMAGÓGICO ESBODEGADO ÁSPERO VIRIL PROLIXO AFÁVEL TREPI-
DANTE RECHONCHUDO GASPAR MAVIOSO MACACÃO ESFOMEA-
DO ESPANCADO BRUTO RASCA PALAVROSO ZEZINHO IMPOLUTO MA-
20 GNÂNIMO INCERTO INSEGURÍSSIMO BONDOSO GOSMA IMPOTEN-
TE COISA BANANA VIDRINHO CONFIDENTE PELUDO BESTA BA-
RAFUNDOSO GAGO ATILADO ACINTOSO GAROTO ERRADÍSSIMO IN-
SINUANTE MELÍFLUO ARRAPAZADO SOLERTE HIPOCONDRÍACO
MALANDRECO DESOPILANTE MOLE MOTEJADOR ACANALHADO
25 TROCA-TINTAS ESPINAFRADO CONTUNDENTE SANTINHO SOTURNO
ABANDALHADO IMPECÁVEL MISERICORDIOSO VOLUPTUOSO AMAN-
CEBADO TIGRINO HOSPITALEIRO IMPANTE PRESTÁVEL MOROSO
LAMBAREIRO SURDO FAQUISTA AMORUDO BEIJOQUEIRO DELAMBI-
DO SOEZ PRESENTE PRAZENTEIRO BIGODUDO ESPARVOADO VALEN-
30 TE SACRIPANTA RALHADOR FERIDO EXPULSO IDIOTA MORALISTA
MAU NÃO-TE-RALES AMORDAÇADO MEDONHO COLABORANTE IN-
SENSATO CRAVA VULGAR CIUMENTO TACHISTA GASTO IMORALÃO
IDOSO IDEALISTA INFUNDIOSO ALDRABÃO RACISTA MENINO LADRA-
DOR POBRE-DIABO ENJOADO BAJULADOR VORAZ ALARMISTA INCOM-
35 PREENDIDO VÍTIMA CONTENTE ADULADO BRUTALIZADO COITA-
DINHO FARTO PROGRAMADO IMBECIL CHOCARREIRO INAMOVÍVEL...

O’Neill, Alexandre, 2005. “Entre a cortina e a vidraça”. In Poesias Completas. 4.ª ed.
Lisboa: Assírio & Alvim (p. 317) (1.ª ed.: 2000)

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Depois da leitura atenta do poema, identifica a classe a que pertencem todas as pala-
1 
vras utilizadas (caso desconheças o significado de alguma, consulta um dicionário).
1.1. Relaciona a sua utilização com o título do texto.

Justifica a integração do texto no modo lírico.


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2.1. Aponta traços desviantes do poema em relação às marcas habituais da poesia.


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Faz a tua interpretação pessoal do poema.


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24 Poetas contemporâneos

Guichê / 1
Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha.

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Antes quero esperar, aquém guichê, que ele discuta toda a bola ou pedal que
tem para discutir
com os destrabalhadores dos seus colegas;
5 antes quero esperar pelo meu burocrata
do que ter a desilusão de o ver trabalhar para mim mal eu chegue.
Isso custa-me pés e cotovelos, cãibras e suspiros, repentinos ódios vesgos,
projetos de cartas a diretores de vespertinos,
mas se o meu burocrata assomasse à copa do papel selado
10 e me convidasse, ato contínuo, a dizer ao que vinha pelo higiafone1,
da boca não me sairia um pedido, mas um regougo2,
e eu teria de ceder a vez
ao cigarro que me queimasse a nuca.
É preciso exercer a paciência e cultivar a doçura no canteiro do rosto,
15 enquanto o burocrata destrabalha.
Geralmente não serve de nada pigarrear ou dizer com voz-passadeira
“Fazmòbséquio”.
Levantar-se-iam, além guichê, as sobrancelhas de, pelo menos, três sujeitos.
Melhor será começar pelo globo que pende do teto
20 e que é um olho vazado sobrepujando3 a cena.
Melhor será observar como a mosca dos tinteiros
nele pousa as patinhas escriturárias.
Depois (lição de coisas!) baixar os olhos para o calendário mural
e ver quantas cruzes a azul ainda faltam para liquidar o mês.
25 A seguir, circunvagar o olhar para ir enquadrar noutra parede
um calendário perpétuo parado um mês atrás.
Também aqui há zelo e desmazelo.
Também aqui falta o tempo e sobra o tempo.
Por certo é o mantenedor4 do calendário em dia 1. abertura na proteção
de um gabinete;
30 o que está a vir para estes lados.
2. resmungo;
Já olhou para mim. Sorrio-lhe. Passou. 3. sobrelevando, excedendo;
Volto ao globo e, geografia cega, 4. aquele que mantém.

pergunto aos meus botões “Onde será Paris?”.


Mas não é o terráqueo. É um abafador
35 que trago desde a infância e não abafou népia.
Rompeu-me a algibeira e não abafou népia.
Curvo-me, enfio a cabeça pelo guichê e, num assomo,
comando em voz clara e alta: TODOS AOS SEUS LUGARES!
Quebrei o encanto!
40 Os burocratas que destrabalhavam correm pra mim à uma.
Trémulo de prazer, pergunto a um deles “É o senhor o meu?”
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O’Neill, Alexandre, 2005. “Poemas com Endereço”. In Poesias Completas. 4.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (pp. 333-334) (1.ª ed.: 2000)
Alexandre O’Neill 25

Leitura | Compreensão

Interpreta a ironia utilizada nos primeiros seis versos do poema.


1 

1.1. Aponta as consequências da sua preferência para o sujeito poético.

Apresenta uma justificação para o “regougo” (v. 11) do sujeito poético caso o “seu”
2 
“burocrata assomasse à copa do papel selado” (v. 9) e o “convidasse, ato contínuo, a
dizer ao que vinha pelo higiafone” (v. 10).

Salienta o contributo dos versos 14 e 15 para o tom irónico do poema.


3 

Enumera as diferentes etapas sugeridas pelo sujeito poético para superar a prova
4 
da espera no guichê.

Refere o efeito de sentido produzido pela anáfora e pelo paralelismo nos versos 27 e 28.
5 

Comenta a conclusão do poema.


6 

Gramática

Para responderes a cada um dos itens de 1.1. a 1.3., seleciona a única opção que
1 
permite obter uma afirmação correta.

1.1. A palavra “mal”, presente no verso 6, é


(A) um nome.
(B) um advérbio.
(C) uma conjunção.
(D) um adjetivo.

1.2. O constituinte “exercer a paciência e cultivar a doçura no canteiro do rosto” (v. 14)
desempenha a função sintática de
(A) complemento direto.
(B) sujeito.
(C) complemento oblíquo.
(D) complemento do adjetivo.

1.3. Os elementos “que” usados nos versos 35 e 40 introduzem orações subordi-
nadas
(A) substantivas completivas.
(B) adjetivas relativas restritivas.
(C) adjetivas relativas explicativas.
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(D) adverbiais consecutivas.


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Identifica o antecedente do pronome pessoal de 3.ª pessoa presente no verso 31.


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26 Poetas contemporâneos

O Macaco
(Valsa lisboeta)
(Comentário a desenhos de Júlio Pomar)

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Nunca se sabe
até que ponto
um macaco
pode chegar
na ânsia de
nos imitar
Dizem
alguns autores
ser o macaco
difícil de apanhar
– mas não
Em qualquer
mundana
reunião
num ombro
numa frase
num olhar
no jeito
“humanista”
de falar
aí temos
o macaco
a trabalhar
procurando
aproveitar
a confusão
Pessoalmente
sou de opinião
que o macaco
é fácil de caçar
até à mão.
O’Neill, Alexandre, 2005. “Poemas com Endereço”. In Poesias Completas.
4.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (pp. 178-179) (1.ª ed.: 2000)

Escrita Aprecição crítica

Escreve uma apreciação crítica, de duzentas a


1 
trezentas palavras, do poema de Alexandre
O’Neill, na qual incluas alusões à sua dimen-
são irónica e crítica. Júlio Pomar, Macaco com Ovos
Planifica previamente o teu texto, redige-o de Estrelados, sem data.
Coleção particular
acordo com as marcas e a estrutura próprias
do género e, no final, faz a sua revisão atenta e
fotocopiável

pp. 312-313
cuidada. b lo co i n fo r m at i vo
Alexandre O’Neill 27

Leitura | Compreensão Quest ionário resolvido

Lê atentamente o poema de Alexandre O’Neill.

Mendigo com lugar cativo


Com o tapa-misérias a escorre-lhe dos ombros,
o morse da bengala a percutir1 o chão,
remorseando vai os passarões2 que somos.

A dedo, a medo, a desfazer o gesto,


5 na ranhura da caixa a moeda metemos.

Metida a moeda, o espantalho fala


do céu que, sem dúvida, merecemos.

Que pragas calará quando não damos?

O’Neill, Alexandre, 2005. “As horas já de números vestidas”.


In Poesias Completas. 4.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 468) (1.ª ed.: 2000)

1. tocar, bater; 2. indivíduos manhosos, espertalhões (popular).

1. Refere o efeito de sentido produzido com o recurso ao neologismo “remorseando” (v. 3).
O neologismo contribui para realçar o carácter repetitivo da ação do “mendigo” refe-
rido no título do poema e descrito na primeira estrofe. A palavra destaca o contínuo toque
“da bengala a percutir o chão” (v. 2), que lembra um código (Morse) destinado a sensibili-
zar os transeuntes, e sugere, igualmente, o (longo) tempo demorado pelos que se cru-
zam com ele a dar-lhe uma moeda.

2. Relaciona o conteúdo da segunda estrofe com a interrogação retórica com que ter-
mina o poema.
A segunda estrofe remete para os que, como o sujeito poético (que é parte do “nós”
em nome do qual fala), se revelam solidários com o mendigo, mas “a medo” (v. 4), receo-
sos das “pragas” (v. 8) de que serão alvo se não contribuírem. A referência à doação com
a hesitação de “desfazer o gesto” (v. 4) confirma/justifica a perceção do mendigo de que
lida com “passarões” (v. 3), cuja fraternidade não é espontânea.
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3. Explicita a(s) crítica(s) desenvolvida(s) na composição poética.


O poema apresenta, em tom humorístico, uma crítica às disparidades sociais e à falta
de genuína solidariedade. As relações humanas são marcadas pela hipocrisia (v. 4), como
a ironia da expressão “sem dúvida” (v. 7) realça.
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