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João Veloso
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Centro de Linguística da Universidade do Porto (FCT-UID/LIN/0022/2016)
Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso. Consciência linguística: aspetos
fonológicos. Em Maria João Freitas & Ana Lúcia Santos (eds.), Aquisição de língua
materna e não materna: Questões gerais e dados do português, 439–458. Berlin:
Language Science Press. DOI:10.5281/zenodo.889467
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(1) Criança: “[ˈfiʃ]” (em referência a seu peixe de plástico inflável, fish).
Adulto: “É este o teu [ˈfis]?”
A criança rejeita a declaração.
Adulto: “É este o teu [ˈfiʃ]?”
Criança: “Sim, o meu [ˈfiʃ].”
Nota-se, pelo diálogo, que a criança, embora não produza a fricativa [−ante-
rior], já percebe o contraste existente no seu sistema materno. Esse comporta-
mento é interpretado como uma evidência de que, embora ela não possa ainda
produzir o fonema /ʃ/, pode percebê-lo como distinto de /s/. Há reiterados exem-
plos semelhantes a esse descritos em várias línguas já estudadas. Um exemplo
análogo do português, referente à palavra ‘gan[ʃ]o’ produzida pela criança como
‘gan[s]o’, foi registado por Matzenauer (1988).1 Berti (2006), num estudo reali-
zado sobre as fricativas, adiciona elementos à discussão sobre a relação produ-
ção/perceção, trazendo evidências acústicas de que as trocas entre segmentos,
no caso das fricativas [±anterior], são, na verdade, contrastes encobertos, já que
os parâmetros acústicos característicos de um e de outro segmento podem ser
detetados, embora com base na observação auditiva não se possa escutar o con-
traste nas produções infantis.
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Comunicação pessoal (dados recolhidos pela autora para a sua dissertação de mestrado –
Matzenauer 1988).
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piciado pelo conhecimento implícito, mas não está disponível ao acesso consci-
ente. O controle consciente, característico de procedimentos metalinguísticos,
somente poderá ser observado a partir do momento em que demandas externas
ocorram. A aprendizagem da leitura e da escrita, de acordo com o autor, constitui
um desses requisitos – ou demandas externas – capazes de produzir pressão sufi-
ciente para que ocorra o monitoramento consciente no processamento da língua,
compelindo a criança à reflexão sobre a linguagem oral.
O modelo de desenvolvimento de J. E. Gombert (1992); J.-E. Gombert (2003)
inclui dois tipos de controle: o epilinguístico e o metalinguístico. O autor propõe
três fases para o desenvolvimento linguístico: a primeira é a fase de aquisição
das habilidades linguísticas, que inclui o conhecimento implícito sobre a estru-
tura e o uso da linguagem; a segunda, de aquisição do controle epilinguístico em
que o conhecimento linguístico é reorganizado em formato multifuncional, po-
rém não acessível conscientemente; e a terceira, de aquisição do conhecimento
metalinguístico desencadeada por demanda externa e controle intencional da or-
ganização estabelecida na fase 2.
Em relação ao conhecimento metalinguístico, pode considerar-se que a ele se
associam três conceitos: intenção, controle e consciência. Para Cardoso-Martins
(1991: 42), a intenção e o controle em atividades linguísticas podem resultar numa
reflexão sobre a língua ou, ainda, sobre estruturas que a compõem. No que diz
respeito à fonologia, a Consciência Fonológica (CF) é um exemplo de habilidade
metalinguística que pode ser definida como a capacidade de manipular as unida-
des de segunda articulação da língua, o que compreende as sílabas e seus consti-
tuintes e também os fonemas.
Bradley & Bryant (1978) desenvolveram experimentos para testar a relação
entre dificuldade de leitura e consciência fonológica e concluíram que o desem-
penho em CF é um preditor robusto no que diz respeito à habilidade de leitura.
Desde então, diversos estudos experimentais foram realizados a fim de que a rela-
ção entre os níveis de CF e o desenvolvimento da leitura e da escrita pudesse ser
verificada. De forma geral, a tendência nos estudos mais atuais é a de argumentar
em favor de uma reciprocidade entre desenvolvimento de CF e habilidades de lei-
tura, pois o desenvolvimento da consciência sobre a estrutura sonora da língua,
especialmente a consciência fonémica – ou segmental –, está vinculado à apren-
dizagem da leitura e da escrita, sobretudo em Sistemas de Escrita Alfabética, e
vice-versa.
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input + principios
gerais
conhecimento
fonológico
prácticas letradas
aquisição
da escrita
atualização
mudança
representacional
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Exemplos de Rigatti-Scherer (2008: 230,232), obtidos durante a realização, no início do pri-
meiro ano escolar, de um teste de consciência fonológica (CONFIAS, Moojen et al. 2003). Antes
da pergunta descrita, a autora explicou a tarefa e deu exemplos às crianças.
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norteia a análise dos dados que apresentaremos no capítulo, uma vez que defen-
demos ser possível perspetivar as primeiras produções escritas e as primeiras
operações metafonológicas dos sujeitos aprendentes:
Passar a entender o seu objeto de estudo como um objeto interior e mental co-
loca aos linguistas, com efeito, o problema metodológico de encontrarem meios
de acesso às entidades empiricamente inacessíveis que pretendem explicitar e
descrever. Tal passo metodológico exigirá sempre, conforme defendido anteri-
ormente (cf., p. ex., Veloso 2010), que o estudo da língua-I seja, por definição,
inferencial e indireto, na medida em que partirá sempre da observação de mani-
festações externas.11
No caso da caracterização do conhecimento fonológico e do seu desenvolvi-
mento, tais manifestações serão então, essencialmente, de três ordens:
1. produções fonéticas;
2. operações metafonológicas;
Será com base na aceitação de dados desta natureza como pistas para acesso ao
conhecimento fonológico em desenvolvimento que nos deteremos, na segunda
parte do capítulo, em dados produzidos por crianças aprendentes do português
do Brasil e do português europeu.
11
A mesma resposta é dada pela psicologia cognitiva relativamente à aproximação a qualquer
outro objeto estritamente “mental”: Eysenck (1994: 3), p. ex., refere que também no “estudo
da mente” este objeto seja explicado com base na observação das manifestações externamente
observáveis dos indivíduos. Tais manifestações, de acordo com o autor citado, não são tomadas
como objetos de observação em si mesmas, mas, justamente, como vias de acesso indireto às
propriedades cognitivas interiorizadas dos sujeitos humanos.
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O BATALE – Banco de Textos de Aquisição da Linguagem Escrita é uma base de dados da
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) composta por aproximadamente seis mil textos espon-
tâneos produzidos por crianças brasileiras dos anos iniciais, os quais foram coletados entre os
anos de 2001 e 2014.
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Em Miranda (2009), discute-se a grande incidência da grafia de <e> para registro da nasalidade
de /a/. Seguindo Berti et al. (2008), uma hipótese explicativa para essa troca pode ser encon-
trada na similaridade percetiva entre a vogal média coronal e a vogal nasalizada. Do ponto
de vista articulatório, /a/ e /e/ diferem tanto em relação à altura como ao avanço da língua,
parâmetros articulatórios fundamentais para a caracterização dos segmentos vocálicos; perce-
tualmente, porém, há similaridades entre ambos. Pelo facto de o sistema auditivo não ser de
alta fidelidade, modificações são impostas aos sons tanto na perceção da amplitude quanto na
perceção da frequência (cf. Hume & Johnson 2001), o que faz com que as duas vogais referidas
apresentem áreas semelhantes de estimulação da membrana basilar.
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Retomamos, nesta apresentação, os dados do português europeu recolhidos e analisados em
Veloso (2007).
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3 Observações finais
Neste capítulo, tentámos demonstrar que a relação que se estabelece entre o de-
senvolvimento fonológico e metafonológico dos indivíduos e a aprendizagem da
leitura e da escrita num SEA corresponde a uma relação bidirecional: sendo certo
que bons desempenhos precoces em tarefas metafonológicas são preditores fiá-
veis de um maior sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita – o que justifi-
caria o reforço do treino das capacidades metafonológicas como parte da compo-
nente pré-escolar da educação infantil –, não é menos certo, no sentido inverso,
que a exposição gradual dos aprendentes ao código e às convenções da escrita
os conduzirá a uma reformatação de alguns aspetos do seu conhecimento fono-
lógico implícito minimamente estabilizados antes da aprendizagem de um SEA.
Além das evidências teóricas que foram invocadas na nossa exposição, os re-
sultados de estudos anteriores relativos ao português do Brasil e ao português eu-
ropeu exemplificam casos concretos desta “retroalimentação” da aprendizagem
alfabética sobre o conhecimento!fonológico implícito:
• crianças brasileiras que começam por conceber as vogais nasais como seg-
mentos fonológicos únicos (em que a nasalidade é uma propriedade seg-
mental das vogais), à medida que são expostas às convenções que tratam
tais vogais como sequências VN, parecem passar a reprocessá-las de acordo
com este estatuto, que é o defendido pelas descrições fonológicas do sis-
tema-alvo;
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Agradecimentos
Texto escrito durante estágio pós-doutoral realizado por Ana Ruth Miranda na
Universidade de Barcelona. Agradecimento à CAPES pela Bolsa concedida (BEX
1423/14-2).
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