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Capítulo 18

Consciência linguística: aspetos


fonológicos
Ana Ruth Moresco Miranda
Universidade Federal de Pelotas

João Veloso
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Centro de Linguística da Universidade do Porto (FCT-UID/LIN/0022/2016)

1 Aquisição da linguagem, desenvolvimento fonológico e


desenvolvimento das capacidades metafonológicas
A aquisição da linguagem, especificamente o desenvolvimento fonológico, é um
processo paradoxalmente simples e complexo. A complexidade deriva do tipo
de conhecimento envolvido, o qual engloba um conjunto intrincado de informa-
ções melódicas e prosódicas que devem estar articuladas para que a produção
linguística das crianças se realize. Já a simplicidade está relacionada com a forma
natural e espontânea com que a criança, desde as primeiras palavras, lida com
esses elementos que integram a segunda articulação da linguagem.
Bem antes de os estudos psicolinguísticos começarem a ser desenvolvidos, na
segunda metade do século XX, pesquisadores da linguagem já demonstravam in-
teresse pela aquisição linguística e expressavam ideias importantes a respeito do
tema. von Humboldt (1836/1999), no seu tratado sobre a linguagem, concluiu que
não se pode ensinar uma língua, mas apenas apresentar as condições para que ela
se desenvolva de modo espontâneo, com a sua especificidade própria, na mente
dos sujeitos. Tal afirmação está na base da proposta chomskiana que impulsionou
os estudos psicolinguísticos referentes ao desenvolvimento da linguagem. Büh-
ler, por seu turno, na epígrafe do clássico de Jakobson Child Language, Aphasia

Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso. Consciência linguística: aspetos
fonológicos. Em Maria João Freitas & Ana Lúcia Santos (eds.), Aquisição de língua
materna e não materna: Questões gerais e dados do português, 439–458. Berlin:
Language Science Press. DOI:10.5281/zenodo.889467
Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso

and Phonological Universals (1941/1968), pôs em evidência a relevância dos dados


de aquisição ao escrever que a criança oferece a única oportunidade que temos
para observar a linguagem no seu estado nascente.
Os estudos em aquisição fonológica têm mostrado unanimemente que o co-
nhecimento implícito sobre a estrutura e o funcionamento do nível fonológico
vai sendo forjado ao longo dos primeiros anos de vida da criança. A construção
desse conhecimento pode ser observada tanto nas respostas dadas pelos apren-
dentes – em períodos nos quais a sua produção linguística ainda é bastante dis-
tinta da do adulto, com demonstrações de que a capacidade de perceção precede
a de produção –, como nas formas iniciais produzidas por eles (versões próprias
surgidas a partir da interação de um mecanismo geral para a construção de gra-
máticas e partindo do input disponível na comunidade linguística de que fazem
parte).
Esta assimetria entre produção e perceção fonológica, designada na literatura
como Fenómeno fis, teve o nome cunhado a partir de um diálogo entre uma cri-
ança e um adulto, conforme relatado no artigo Psycholinguistic research methods
(Berko & Brown 1960) e reproduzido em (1).

(1) Criança: “[ˈfiʃ]” (em referência a seu peixe de plástico inflável, fish).
Adulto: “É este o teu [ˈfis]?”
A criança rejeita a declaração.
Adulto: “É este o teu [ˈfiʃ]?”
Criança: “Sim, o meu [ˈfiʃ].”

Nota-se, pelo diálogo, que a criança, embora não produza a fricativa [−ante-
rior], já percebe o contraste existente no seu sistema materno. Esse comporta-
mento é interpretado como uma evidência de que, embora ela não possa ainda
produzir o fonema /ʃ/, pode percebê-lo como distinto de /s/. Há reiterados exem-
plos semelhantes a esse descritos em várias línguas já estudadas. Um exemplo
análogo do português, referente à palavra ‘gan[ʃ]o’ produzida pela criança como
‘gan[s]o’, foi registado por Matzenauer (1988).1 Berti (2006), num estudo reali-
zado sobre as fricativas, adiciona elementos à discussão sobre a relação produ-
ção/perceção, trazendo evidências acústicas de que as trocas entre segmentos,
no caso das fricativas [±anterior], são, na verdade, contrastes encobertos, já que
os parâmetros acústicos característicos de um e de outro segmento podem ser
detetados, embora com base na observação auditiva não se possa escutar o con-
traste nas produções infantis.
1
Comunicação pessoal (dados recolhidos pela autora para a sua dissertação de mestrado –
Matzenauer 1988).

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O património fonológico da criança pode ser observado ainda em revelações


das suas habilidades epilinguísticas, as quais derivam do conhecimento implícito
já construído e denotam algum controle cognitivo sobre ele. Os exemplos apre-
sentados em (2),2 recolhidos em crianças em fase de aquisição do português do
Brasil, foram produzidos por crianças com idades de 2:10 e 2:05, respetivamente.
(2) a. Valentin: A tia comprou vinho porquê?
Prima: Para beber.
Valentin: Eu não tomo vinho…eu como ovinho…é bem fresquinho.
b. Mãe: Olha a lua, que linda.
Gonçalo: Mãe, lua parece com rua.
As duas produções das crianças são exemplos de que, em idades bem precoces,
a sensibilidade fonémica pode ser observada. Nos dois comentários espontâneos,
podemos observar algum tipo de reflexão linguística. O primeiro exemplo mos-
tra uma atividade de subtração de fonema (‘vinho’ por ‘ovinho’); e o segundo,
a substituição de fonema (/l/ por /x/). Tais dados revelam indícios de um tipo
de consciência sonora cuja motivação é, possivelmente, advinda de práticas de
letramento das quais as crianças participam, provavelmente pelo contacto com
músicas e poemas infantis, material rico em jogos de linguagem que exploram
rimas e aliterações.
Tal sensibilidade manifesta-se graças ao conhecimento linguístico interiori-
zado a respeito do funcionamento da gramática sonora e pode envolver não ape-
nas fonemas, mas também sílabas, conforme o exemplo do português europeu
apresentado em (3).3
(3) Situação em que Laura (2 anos) descreve um desenho:
Mãe: É uma…
Laura: É uma…
Mãe: cha…
Laura: miné
Mãe: Agora diz…
Laura: chaminé
Mãe: Outra vez…
Laura: cha//mi//né
Para J. E. Gombert (1992); J.-E. Gombert (2003), a um nível epilinguístico o
controle exercido de forma automática sobre o processamento linguístico é pro-
2
Dados coletados por Ana Ruth Moresco Miranda.
3
Dados recolhidos por Maria João Freitas.

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piciado pelo conhecimento implícito, mas não está disponível ao acesso consci-
ente. O controle consciente, característico de procedimentos metalinguísticos,
somente poderá ser observado a partir do momento em que demandas externas
ocorram. A aprendizagem da leitura e da escrita, de acordo com o autor, constitui
um desses requisitos – ou demandas externas – capazes de produzir pressão sufi-
ciente para que ocorra o monitoramento consciente no processamento da língua,
compelindo a criança à reflexão sobre a linguagem oral.
O modelo de desenvolvimento de J. E. Gombert (1992); J.-E. Gombert (2003)
inclui dois tipos de controle: o epilinguístico e o metalinguístico. O autor propõe
três fases para o desenvolvimento linguístico: a primeira é a fase de aquisição
das habilidades linguísticas, que inclui o conhecimento implícito sobre a estru-
tura e o uso da linguagem; a segunda, de aquisição do controle epilinguístico em
que o conhecimento linguístico é reorganizado em formato multifuncional, po-
rém não acessível conscientemente; e a terceira, de aquisição do conhecimento
metalinguístico desencadeada por demanda externa e controle intencional da or-
ganização estabelecida na fase 2.
Em relação ao conhecimento metalinguístico, pode considerar-se que a ele se
associam três conceitos: intenção, controle e consciência. Para Cardoso-Martins
(1991: 42), a intenção e o controle em atividades linguísticas podem resultar numa
reflexão sobre a língua ou, ainda, sobre estruturas que a compõem. No que diz
respeito à fonologia, a Consciência Fonológica (CF) é um exemplo de habilidade
metalinguística que pode ser definida como a capacidade de manipular as unida-
des de segunda articulação da língua, o que compreende as sílabas e seus consti-
tuintes e também os fonemas.
Bradley & Bryant (1978) desenvolveram experimentos para testar a relação
entre dificuldade de leitura e consciência fonológica e concluíram que o desem-
penho em CF é um preditor robusto no que diz respeito à habilidade de leitura.
Desde então, diversos estudos experimentais foram realizados a fim de que a rela-
ção entre os níveis de CF e o desenvolvimento da leitura e da escrita pudesse ser
verificada. De forma geral, a tendência nos estudos mais atuais é a de argumentar
em favor de uma reciprocidade entre desenvolvimento de CF e habilidades de lei-
tura, pois o desenvolvimento da consciência sobre a estrutura sonora da língua,
especialmente a consciência fonémica – ou segmental –, está vinculado à apren-
dizagem da leitura e da escrita, sobretudo em Sistemas de Escrita Alfabética, e
vice-versa.

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Desde os estudos pioneiros conduzidos por José Morais e seus colaboradores


(cf., entre outros: Alegria & Morais 1979; Morais et al. 1979; Nakamura et al. 1998),
abrangendo um vasto conjunto de línguas e sujeitos com diferentes graus de le-
tramento,4 é ponto assente assumir-se que a consciência segmental é resultado
do conhecimento da escrita alfabética. Considera-se consciência segmental a ope-
racionalização verificável dos segmentos consonânticos e vocálicos como unida-
des últimas da análise fónica sobre material verbal associada à capacidade de
efetuar manipulações metafonológicas explícitas que tomam o segmento fonoló-
gico como critério de aplicação.
Mais relevantemente, porém, não poderemos ignorar que o relacionamento
entre a aquisição/desenvolvimento fonológico e a aprendizagem da leitura e da
escrita deve ser encarado como um binómio bidirecional, conforme ilustra a Fi-
gura 1.

input + principios
gerais

conhecimento
fonológico
prácticas letradas

aquisição
da escrita

atualização

mudança
representacional

Figura 1: Bidirecionalidade do binómio aquisição/desenvolvimento fo-


nológico e aprendizagem da leitura e da escrita (Miranda 2014)

De acordo com esta perspetiva bidirecional, podemos dizer que:


• o conhecimento fonológico, de certa forma, alimenta a aprendizagem da
leitura e da escrita. Bons resultados em tarefas como a identificação de
rimas (Seidenberg & Tanenhaus 1979) e a segmentação silábica (Treiman &
Danis 1988; Ventura et al. 2001), p. ex., são preditores de bom desempenho
da aprendizagem da leitura e da escrita;
4
Os principais grupos de sujeitos estudados por estas investigações repartem-se da seguinte
forma: crianças em idade pré-escolar; crianças em fases iniciais da aprendizagem da escrita;
adultos iletrados; adultos letrados em SEA (“Sistema de Escrita Alfabética”); adultos letrados
noutros sistemas de escrita.

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• simultaneamente, a aprendizagem da escrita pode reformatar aspetos es-


senciais do conhecimento fonológico. É o que sucede, p. ex., no caso dos
sujeitos expostos à aprendizagem de um Sistema de Escrita Alafabética
(SEA), no que concerne ao desenvolvimento da sua consciência fonémica.

Considerando-se a dimensão fonológica da língua, é importante também levar


em conta a diferença entre sensibilidade e consciência (cf. Bowey 1994). A pri-
meira pode ser observada em exemplos como aqueles referidos em (2) e (3) ou em
respostas a atividades que exigem apenas a deteção de similaridades e diferenças;
a segunda é comprovada a partir de atividades que exigem manipulação delibe-
rada e explícita de unidades fonológicas – por exemplo, tarefas de isolamento de
segmentos ou sílabas – e que estão fortemente relacionadas com a compreensão
dos princípios do SEA. Os dados apresentados em (4),5 colhidos em produções
do português do Brasil e referentes às respostas a testes de CF aplicados a um
aluno que ainda não está no nível alfabético de escrita, ilustram a complexidade
de uma tarefa que desafia a criança a separar forma sonora e significado.

(4) a. Pesquisadora: Se eu tirar o ‘pi’ de ‘piolho’, como fica?


Criança 1: ‘lêndea’
b. Pesquisadora: Se eu tirar o ‘es’ de ‘escola’, como fica?
Criança 2: ‘secretaria’

Tais exemplos evidenciam o facto de o foco da criança não estar na forma,


mas no significado. A manipulação da língua em contextos não comunicativos
envolve processos cognitivos de nível superior que pressupõem consciência e
controle, o que, de acordo com J.-E. Gombert (2003), decorre de uma aprendiza-
gem sistemática da leitura e da escrita. Para o autor, a aprendizagem explícita
associada às hipóteses das crianças está na base do conhecimento linguístico ex-
plícito, o qual pode ser utilizado para substituir e controlar o produto de pro-
cessos automáticos. Em última análise, torna-se possível dizer que o controle
metalinguístico propiciado pela experiência com a leitura e a escrita é capaz de
ampliar a gama de opções disponíveis para que o usuário da língua possa ter a
seu dispor diferentes registos, ou seja, possa selecionar a forma linguística mais
adequada ao contexto e ao objetivo da expressão.

5
Exemplos de Rigatti-Scherer (2008: 230,232), obtidos durante a realização, no início do pri-
meiro ano escolar, de um teste de consciência fonológica (CONFIAS, Moojen et al. 2003). Antes
da pergunta descrita, a autora explicou a tarefa e deu exemplos às crianças.

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18 Consciência linguística: aspetos fonológicos

Os exemplos apresentados em (5)6 (também do português do Brasil) são refe-


rentes a episódios de fala espontânea de adultos com nível baixo de escolarização.
Neles, observa-se um desempenho linguístico que, tendo-se em conta as opções
disponíveis na língua, pode ser considerado limitado. Trata-se de um tipo de
limitação que afeta tanto a perceção como a produção linguística dos falantes.

(5) a. Entrevista com um morador de uma favela do Rio de Janeiro


Repórter: O que o senhor acha da orquestra sinfônica vir se
apresentar aqui na favela?
Sr.: O quê?
Repórter: A orquestra sinfônica aqui na favela?
Sr.: Ah, eu gosto muito de sanfona.
Repórter: A orquestra sinfônica, o que o senhor acha?
Sr.: É, sem fone não dá pra ouvir.
b. Entrevista com torcedora do Flamengo – time de futebol carioca –
que comemorava a vitória na partida e dizia “Eu amo o “‘Framengo”’.
Repórter: O Flamengo, você quer dizer Flamengo?
Sra.: Sim, o Framengo
Repórter: Ah, o Flamengo.
Sra.: É, o Framengo. Tô muito feliz, o Framengo pra mim é tudo.

No primeiro excerto, encontramo-nos perante um exemplo de situação na qual


o conhecimento implícito guia a compreensão quando há uma nítida indisponibi-
lidade do item lexical. A estratégia do falante é fazer uma aproximação de ordem
semântica, possivelmente em razão da palavra “orquestra”, e um ajuste fonoló-
gico que, em primeiro lugar, elimina o acento proparoxítono – procedimento co-
mum em falares brasileiros de comunidades não escolarizadas (cf. Amaral 2000).
“Sinfônica”, “sanfona” e “sem fone” são três expressões que compartilham traços
semânticos e também fonológicos.7
No segundo exemplo, a falante, apesar das reiteradas tentativas da repórter,
não “escuta” o encontro consonantal com a líquida lateral, /l/, seguindo uma ten-
dência às formas mais canônicas na fonologia da sua língua materna – neste caso
específico, os grupos consonânticos com o rótico.
Em ambos os casos, é possível pensar que, quando a experiência com a leitura
e a escrita não ocorre ou é muito limitada, o controle epilinguístico pode ficar
6
Dados extraídos de registros referentes a entrevistas apresentadas em jornais televisivos bra-
sileiros no ano de 2002.
7
Ao longo de todo o texto, optamos, na transcrição ortográfica dos exemplos, por seguir a
ortografia mais comum na norma nacional de que eles proveem.

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prejudicado e o metalinguístico pode nem sequer ser acionado. Perde-se o efeito


positivo da alfabetização sobre o processamento da informação fonológica, ge-
rador de melhorias na memória que permite maior precisão na recuperação de
palavras novas (Goswami & Bryant 1990).
Podemos, assim, afirmar que, quando nos aproximamos do tema do desenvol-
vimento fonológico, tomamos em mãos uma equação complexa cujas variáveis
são:

(i) a própria aquisição da linguagem – de que o desenvolvimento fonológico


é uma parte;

(ii) o desenvolvimento das capacidades metafonológicas explícitas;

(iii) a aprendizagem da leitura e da escrita.

Os termos dessa equação podem ser estudados tanto individualmente como


a partir da relação que se estabelece entre eles (p. ex., o desenvolvimento das
capacidades metafonológicas pode ser objeto de estudo em si mesmo, abordado
como fase do desenvolvimento fonológico mais global, ou ainda como elemento
preditor do sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita).
Um outro problema que se coloca na abordagem a estes temas, e que será
objeto de alguma reflexão no seguimento destas observações, é o de como aceder
ao conhecimento fonológico dos sujeitos (adultos/crianças): tratando-se de um
objeto imaterial e abstrato, onde e como poderemos encontrar pistas válidas e
fiáveis que nos possibilitem a sua caracterização?
A Figura 1, anteriormente apresentada, completa este breve sumário, ao dar
conta da inter-relação de níveis e variáveis envolvidos no processo – aparen-
temente simples mas substancialmente complexo – da aquisição fonológica e
da sua relação com a aprendizagem da leitura e da escrita. Um aspeto muito
importante dessa figura reside no pressuposto de que os vários “módulos” con-
templados – em especial, o desenvolvimento do conhecimento fonológico e a
aquisição da escrita – se alimentam reciprocamente, não sendo concebidos como
totalmente estanques entre si ou como dispostos numa ordem estritamente uni-
direcional de causa-efeito. Os exemplos de investigação concreta relativos ao
português (variedades europeia e brasileira) que daremos na segunda parte do
capítulo pretendem ser uma exemplificação clara desta interação bidirecional.

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18 Consciência linguística: aspetos fonológicos

1.1 O conhecimento fonológico como uma parcela do conhecimento


da língua
Como referido anteriormente, a predisposição inata, universal e exclusiva de to-
dos os espécimes do Homo sapiens sapiens (não afetados por patologias particu-
lares) para a aquisição de um sistema gramatical abstrato e complexo – perante
um estímulo mínimo e fragmentado e de forma muito precoce e eminentemente
informal, automática e inconsciente8 – é uma assunção corrente entre os pesqui-
sadores desta área, constituindo mesmo um dos principais marcos teóricos do
programa generativo (Chomsky 1965; 1986; 1995). A interiorização progressiva
de uma gramática complexa e dividida por níveis – de que o nível fonológico será
um, entre outros – consiste no resultado principal do processo aquisitivo.
Consequentemente, o conhecimento fonológico é aqui plenamente assumido
como uma das componentes da gramática interiorizada (ou língua-I, na termi-
nologia de Chomsky 1986) adquirida pelos sujeitos ao longo do processo aquisi-
tivo biológica e cognitivamente determinado. As palavras introdutórias de uma
obra intitulada justamente, em tradução portuguesa, Conhecimento Fonológico
(Burton-Roberts et al. 2000),9 assumem muito claramente, a nosso ver, a relação
de tipo inclusivo entre, por um lado, o conhecimento da língua e as capacidades
cognitivas humanas gerais e, por outro, o conhecimento fonológico e o conheci-
mento da língua.10

1.2 O acesso inferencial ao conhecimento fonológico


A adoção de uma perspetiva cognitivista da gramática generativa perante o seu
objeto central acarreta problemas de ordem teórica e metodológica, de que so-
bressai a questão do acesso do observador (isto é, do linguista) a essa forma de
conhecimento interiorizada (logo, empiricamente inacessível). Esse pressuposto
8
Reiteramos que a mesma assunção não pode ser feita tão diretamente no que diz respeito
à aprendizagem da escrita: esta última pressupõe e resulta de uma experiência cultural, for-
mal e não universal e de um treinamento específico que é adquirido, tipicamente, através da
escolarização.
9
“As the title Phonological Knowledge indicates, we have assumed that phonological theory
is about a form of knowledge. The assumption that phonological theory is about a form of
knowledge is generally based on two other assumptions: (a) that phonological theory is part
of linguistic theory, and, a specifically Chomskian assumption, (b) that linguistic theory in
general is about a form of knowledge.” (Burton-Roberts et al. 2000: 2)
10
Levada ao extremo, esta posição “mentalista”/“cognitivista” do programa generativo pode ex-
plicar afirmações como as encontradas em Chomsky (1986: 46), que defendem a linguística
como uma subdisciplina da psicologia, ou em Chomsky (1986: 46), autorizando a inscrição da
linguística no quadro das ciências biológicas.

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Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso

norteia a análise dos dados que apresentaremos no capítulo, uma vez que defen-
demos ser possível perspetivar as primeiras produções escritas e as primeiras
operações metafonológicas dos sujeitos aprendentes:

• como objetos em si mesmos, dotados de um interesse científico intrínseco


e relevante, p. ex., para a avaliação do desenvolvimento geral (linguístico,
cognitivo e escolar) da criança;

• simultaneamente, como vias de acesso inferencial (Veloso 2010) ao conhe-


cimento fonológico implícito cuja descrição/explicitação é tarefa do fonó-
logo.

Passar a entender o seu objeto de estudo como um objeto interior e mental co-
loca aos linguistas, com efeito, o problema metodológico de encontrarem meios
de acesso às entidades empiricamente inacessíveis que pretendem explicitar e
descrever. Tal passo metodológico exigirá sempre, conforme defendido anteri-
ormente (cf., p. ex., Veloso 2010), que o estudo da língua-I seja, por definição,
inferencial e indireto, na medida em que partirá sempre da observação de mani-
festações externas.11
No caso da caracterização do conhecimento fonológico e do seu desenvolvi-
mento, tais manifestações serão então, essencialmente, de três ordens:

1. produções fonéticas;

2. operações metafonológicas;

3. primeiras produções escritas.

Será com base na aceitação de dados desta natureza como pistas para acesso ao
conhecimento fonológico em desenvolvimento que nos deteremos, na segunda
parte do capítulo, em dados produzidos por crianças aprendentes do português
do Brasil e do português europeu.

11
A mesma resposta é dada pela psicologia cognitiva relativamente à aproximação a qualquer
outro objeto estritamente “mental”: Eysenck (1994: 3), p. ex., refere que também no “estudo
da mente” este objeto seja explicado com base na observação das manifestações externamente
observáveis dos indivíduos. Tais manifestações, de acordo com o autor citado, não são tomadas
como objetos de observação em si mesmas, mas, justamente, como vias de acesso indireto às
propriedades cognitivas interiorizadas dos sujeitos humanos.

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18 Consciência linguística: aspetos fonológicos

2 O efeito da aquisição de um Sistema de Escrita


Alfabética sobre as representações fonológicas: Dados
do português europeu e do português do Brasil
2.1 Um exemplo do português do Brasil: Aquisição e representação
gráfica das nasais
Os resultados apresentados nesta secção tratam das grafias relativas à nasalidade
no português do Brasil bem como da relação entre elas, o processo de aquisição
fonológica e o funcionamento da nasalidade no sistema do português. A opção
de trazermos um exemplo como este deve-se ao facto de ser a nasalidade um
tema que tem suscitado muitas discussões ao longo dos anos, especificamente
em razão de seu estatuto fonológico no sistema de línguas como o português e
o francês, por exemplo. Como explicar a oposição entre os pares ‘rede’/‘rende’;
‘lido’/‘lindo’; ‘mudo’/‘mundo’?
A questão que se coloca aos fonólogos, referente ao estatuto da nasalidade no
sistema linguístico, pode ser assim formulada: as vogais nasais são monofonémi-
cas ou bifonémicas? Assumi-las como monofonémicas (Pontes 1972) – ou seja,
pressupor que existem vogais lexicalmente nasais – implica aumentar o número
de fonemas vocálicos da língua de sete para doze, ampliando assim o inventá-
rio fonológico. Argumentar em favor de uma realidade bifonémica, isto é, da
ideia de que uma nasal resulta de uma sequência de vogal mais consoante na-
sal (Câmara Júnior 1970; Bisol 1999), ou ainda vogal mais traço nasal flutuante
(Mateus & D’Andrade 2000), implica considerar que uma sílaba com nasalidade
tem estrutura de rima ramificada, CVN.
Numa perspetiva sincrónica, a tendência dos estudiosos é seguir a proposta
de Câmara Júnior (1970) em favor de uma nasalidade bifonémica. Os argumentos
privilegiados por fonólogos contemporâneos brasileiros e portugueses, válidos
para estas duas variedades da língua (Bisol (1999) e Mateus & D’Andrade (2000),
respetivamente), evidenciam a presença de uma sílaba CVN e podem ser assim su-
mariados: (i) seguindo uma vogal nasal, o único rótico encontrado corresponde
sempre a uma “vibrante múltipla”, nunca a uma “simples”, o que indicia a pre-
sença de coda pós-vocálica (honra, tenro; cf. Israel, guelra…); (ii) a nasalidade
desaparece ou a nasal ocupa posição de ataque em situações nas quais o hiato
se formaria (bom-boa; valentoN-valentona); (iii) o prefixo in- desnasaliza antes
de líquida (ilegal, irracional); (iv) o prefixo in- antes de vogal tem a nasal incor-
porada no ataque seguinte (inacabado); (v) o acento proparoxítono não pula a
vogal nasalizada (capenga e não *cápenga); (vi) o sândi é bloqueado (lã azul, não
*lãzul).

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Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso

Os argumentos, como se pode observar, são consistentes com o funcionamento


fonológico da língua. Do ponto de vista da aquisição fonológica, no entanto, deve-
se considerar que assumir a realidade bifonémica significa dizer que as crianças,
para produzirem a nasalidade, especialmente a medial, deverão ter adquirido a
estrutura silábica CVC, a qual apresenta uma rima constituída de um núcleo e
uma coda, estrutura que corresponde a uma sílaba fechada.
Ao analisarmos os dados do desenvolvimento fonológico inicial de crianças
brasileiras, tanto longitudinais como transversais, podemos observar, porém, que
a produção da nasal é muito precoce, por volta dos 2 anos (cf. Matzenauer 1990;
Miranda 2009). Já a produção de estruturas com codas fricativas e róticas, por
exemplo, somente será observada a partir dos três anos. A pergunta que surge
é sobre o motivo por que as crianças, mesmo tendo disponíveis no seu inven-
tário fonémico, já aos dois anos, as nasais e as fricativas, produzem [ˈtãm.pa] –
mas [ˈpa.ta] – para as palavras ‘tampa’ e ‘pasta’, respetivamente. Dito de outro
modo, se a estrutura prosódica for do tipo CVN – ou, melhor, CVC –, teremos de
supor que outras consoantes em coda deveriam ser produzidas, também preco-
cemente, pelas crianças. Não é isso, no entanto, o que se verifica: codas mediais
com fricativas e róticos somente emergem depois dos três anos de idade.
Para os estudiosos do desenvolvimento, coloca-se o seguinte problema: como
ajustar a análise sincrónica, adequada para o sistema-alvo, aos dados infantis, um
sistema em desenvolvimento? Freitas (1997), no seu estudo sobre aquisição da
fonologia do português europeu, defende a ideia de que a criança opera com um
sistema de vogais orais e nasais, ou seja, a nasalidade seria propriedade da vogal e
não da sequência VN. Miranda (2009) corrobora Freitas (1997): baseada em dados
de aquisição fonológica de crianças brasileiras, também argumenta em favor de
uma nasalidade que resulta de propriedades da própria vogal, a fim de dar conta
da produção precoce da nasalidade em dados por ela estudados. Além disso, em
Miranda (2009) são procurados argumentos em dados de aquisição da escrita
para explicar a diferença entre o sistema-alvo e o sistema em desenvolvimento,
já que os erros produzidos pelas crianças nas suas primeiras produções escritas
alfabéticas são pródigos em exemplos que convergem para a proposta de uma
vogal nasal inicial, a qual poderá sofrer uma mudança representacional após a
aquisição ortográfica.
A análise de aproximadamente mil textos espontâneos produzidos por crian-
ças brasileiras com idades entre 6 e 8 anos, das duas primeiras séries dos anos
iniciais, mostra que o registo da nasalidade não é uma tarefa fácil. Do cômputo
geral de erros na grafia de sílabas CVC – 542 erros no total – tem-se a seguinte
distribuição: 77% são referentes às nasais pós-vocálicas, 14% às fricativas e 9% às
róticas. Note-se que a ordem é exatamente inversa àquela observada na aquisição
fonológica.

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18 Consciência linguística: aspetos fonológicos

Seguindo a linha de análise já referida, o conhecimento implícito sobre a fono-


logia (inventário dos fonemas da língua, a forma como tais segmentos se consti-
tuem e se agrupam formando constituintes que pertencem ao âmbito da prosódia,
etc.) é retomado durante o processo de aquisição de um SEA. Isto é: dados como
os que acabamos de examinar oferecem elementos para uma reflexão sobre uma
possível mudança representacional, conforme expresso na Figura 1, sugerindo
uma influência da aprendizagem ortográfica sobre o desenvolvimento fonológico
em fases não iniciais.
No caso específico das vogais nasalizadas, vemos que as grafias iniciais pro-
duzem quantidade e diversidade de erros. Uma amostra da variedade de formas
encontradas na escrita das crianças encontra-se exemplificada em (6) (dados do
BATALE).12

(6) a. ‘gadi’ (grande)


b. ‘alevitão’ (levantou)
c. ‘godi´ (grande)
d. ‘gerde’ (grande)
e. ‘qua do’ (quando)
f. ‘me˜ga’ (manga)

Em (6a), encontramos um exemplo de erro que se caracteriza pela simples omis-


são da consoante nasal. Já em (6b), observamos a marcação explícita da nasali-
dade vocálica por meio do uso de diacrítico, uma solução supostamente fácil para
o problema de registo, mas que ocorre com frequência muito reduzida nos dados.
Em (6c) e (6d), vê-se uma tentativa de registar a nasalidade por meio da mudança
na qualidade vocálica.13 Em (6e), um espaço em branco está no lugar em que es-

12
O BATALE – Banco de Textos de Aquisição da Linguagem Escrita é uma base de dados da
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) composta por aproximadamente seis mil textos espon-
tâneos produzidos por crianças brasileiras dos anos iniciais, os quais foram coletados entre os
anos de 2001 e 2014.
13
Em Miranda (2009), discute-se a grande incidência da grafia de <e> para registro da nasalidade
de /a/. Seguindo Berti et al. (2008), uma hipótese explicativa para essa troca pode ser encon-
trada na similaridade percetiva entre a vogal média coronal e a vogal nasalizada. Do ponto
de vista articulatório, /a/ e /e/ diferem tanto em relação à altura como ao avanço da língua,
parâmetros articulatórios fundamentais para a caracterização dos segmentos vocálicos; perce-
tualmente, porém, há similaridades entre ambos. Pelo facto de o sistema auditivo não ser de
alta fidelidade, modificações são impostas aos sons tanto na perceção da amplitude quanto na
perceção da frequência (cf. Hume & Johnson 2001), o que faz com que as duas vogais referidas
apresentem áreas semelhantes de estimulação da membrana basilar.

451
Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso

taria grafada a nasal; e, em (6f), ocorre a associação de três recursos, espaço em


branco, uso do til como um suprassegmento e mudança na qualidade da vogal.
Exemplos como os de (6) mostram que, mesmo não havendo complexidade
ortográfica, as crianças produzem formas bastante variadas para resolver o pro-
blema do registo da nasalidade. As soluções encontradas são interpretadas como
um indício de que, ao confrontar-se com a tarefa de registar tal sequência, o
aprendente busca informações no seu conhecimento implícito, no qual parece
estar representada uma vogal cuja qualidade não está claramente definida. Em
suma, a hipótese considerada nesta análise é a de que a estrutura da nasalidade
não é interpretada pela criança como uma estrutura complexa, o que explicaria a
sua aquisição tão precoce, conforme já mencionado, e justificaria as dificuldades
encontradas para sua grafia. Nesse sentido, entendemos que os dados de escrita
corroboram a hipótese monofonémica e que, em momento subsequente, após a
aquisição ortográfica, haveria uma reestruturação da representação fonológica:
uma sequência CVNasal passaria a uma representação bifonémica CVN, nos mol-
des de Câmara Júnior (1970).

2.2 Um exemplo do PE: Aquisição e representação gráfica das


sequências {S℘Obstruinte}
Reservamos para o final deste capítulo um conjunto de resultados relativos ao
português europeu, em que parece possível identificar um outro caso de altera-
ção das representações fonológicas infantis como função, ou resultado, da apren-
dizagem da leitura e da escrita.14
Num grupo de 42 crianças falantes nativas monolingues do português euro-
peu (21 do sexo masculino + 21 do sexo feminino), seguidas longitudinalmente
nos seus primeiros dois anos de escolaridade (média etária da população na 1ª
observação=6;11 anos, DP=0;4 anos; média etária da população na última obser-
vação=7;11 anos, DP=0;4 anos), foi solicitado às crianças que dividissem explicita-
mente um conjunto de palavras em sílabas. Cada uma dessas palavras apresenta,
em posição medial e ao nível linear, uma sequência formada por uma fricativa
coronal seguida de obstruinte ({S℘Obstruinte}). De acordo com o algoritmo de
silabificação do português de Mateus & D’Andrade (2000) e de acordo também
com as regras de translineação gráfica consignadas pelas regras da escrita da lín-
gua – fortemente condicionadas, por convenção, pelo critério da divisão silábica
–, estas duas consoantes repartir-se-iam, conforme se observa na Tabela 1, por

14
Retomamos, nesta apresentação, os dados do português europeu recolhidos e analisados em
Veloso (2007).

452
18 Consciência linguística: aspetos fonológicos

duas sílabas diferentes (/S/ em coda da primeira sílaba, Obstruinte em ataque da


segunda sílaba).
Tabela 1: Palavras utilizadas no teste de divisão silábica

Palavra Transcrição fonética (alvo, com Translineação canónica (se-


divisão silábica “canónica”, i. gundo as regras ortográficas
é, respeitando o Algoritmo gradualmente ensinadas du-
de Silabificação de Mateus & rante o processo de letramento
D’Andrade 2000) nos dois primeiros anos de
escolaridade)
ginástica [ʒi.ˈnaʃ.ti.kɐ] gi-nás-ti-ca
mosca [ˈmoʃ.kɐ] mos-ca
floresta [flu.ˈɾɛʃ.tɐ] flo-res-ta
rasga [ˈʀaʒ.ɡɐ] ras-ga
cesto [ˈseʃ.tu] ces-to

Na primeira observação a que as crianças foram sujeitas, no final do 1º ano de


escolaridade (média etária da população=6;11 anos, DP=0;4 anos), os resultados
da divisão silábica destas palavras repartiram-se como se observa na Tabela 2:
nesta análise, categorizamos como “Divisões Tautossilábica” as divisões silábi-
cas que colocam as duas consoantes na mesma sílaba, mais concretamente, num
ataque ramificado em violação do Princípio da Sonoridade e/ou da Condição de
Dissemelhança (p. ex.: ‘mosca’=‘mo.sca’); e como “Divisões Heterossilábicas” to-
das as divisões silábicas que dividem /S/ e Obstruinte por duas sílabas diferentes
(/S/ em Coda da primeira sílaba, Obstruinte em Ataque da segunda sílaba: p. ex:
‘mosca’=‘mos.ca’). Lembramos que esta última é a divisão tida por canónica quer
pelas descrições fonológicas da língua, quer pelas regras de translineação gráfica
do português (v. Tabela 1).
A diferença entre o número de divisões tautossilábicas e heterossilábicas en-
contrada na Tabela 2 é estatisticamente significativa (teste de Wilcoxon: z=2, 179;
p< 0, 05).
Na segunda observação aqui tida em consideração, ocorrida no final do 2º ano
de escolaridade (média etária da população=7;11 anos, DP=0;4 anos), os resul-
tados da divisão silábica destas palavras, de acordo com os mesmos critérios,
repartiram-se conforme se observa na Tabela 3.

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Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso

Tabela 2: Divisões tautossilábicas e heterossilábicas das sequências


{S℘Obstruinte} no final do 1.º ano de escolaridade. (*) /S/ e Obstruinte
são legitimadas, na divisão silábica explícita da criança, como cons-
tituintes adjacentes do mesmo Ataque Ramificado. (**) /S/ e Obs-
truinte são legitimadas, na divisão silábica explícita da criança, como
constituintes de duas sílabas adjacentes (/S/=Coda da 1ª sílaba; Obs-
truinte=Ataque da 2ª sílaba)

Divisões Tautosilábicas(*) Divisões Heterossilábicas(**) Total


N % N % N
102 53.1 90 46.9 192

Tabela 3: Divisões tautossilábicas e heterossilábicas das sequências


{S℘Obstruinte} no final do 2º ano de escolaridade. (*) /S/ e Obstruinte
são legitimadas, na divisão silábica explícita da criança, como cons-
tituintes adjacentes do mesmo Ataque Ramificado. (**) /S/ e Obs-
truinte são legitimadas, na divisão silábica explícita da criança, como
constituintes de duas sílabas adjacentes (/S/=Coda da 1ª sílaba; Obs-
truinte=Ataque da 2ª sílaba)

Divisões Tautosilábicas(*) Divisões Heterossilábicas(**) Total


N % N % N
35 17.5 165 82.5 200

Verifica-se, nesta segunda observação, uma inversão total da tendência regis-


tada na primeira observação: as divisões heterossilábicas são agora mais frequen-
tes do que as tautossilábicas, sendo muito significativa, do ponto de vista estatís-
tico, a diferença encontrada entre os dois tipos de resposta neste momento (teste
de Wilcoxon: z= 4, 139; p< 0, 005).
Esta inversão, estatisticamente reforçada, das respostas é aqui interpretada
como o resultado de uma reformatação progressiva do conhecimeno fonológico
das crianças acerca das estruturas silábicas da sua língua, imposta ou seriamente
impulsionada pela experiência do letramento. Pensamos que o grande responsá-
vel pela alteração de padrões de resposta verificada entre o final do 1º ano e o
final do 2º ano é o ensino das regras ortográficas de translineação, que impõem a
divisão (gráfica) das sequências {S℘Obstruinte} por sílabas (gráficas) diferentes,
acabando esta divisão por se incorporar no próprio conhecimento fonológico
implícito das crianças, contrariando inclusivamente as intuições originais obser-
vadas ainda no final do 1.º ano.

454
18 Consciência linguística: aspetos fonológicos

3 Observações finais
Neste capítulo, tentámos demonstrar que a relação que se estabelece entre o de-
senvolvimento fonológico e metafonológico dos indivíduos e a aprendizagem da
leitura e da escrita num SEA corresponde a uma relação bidirecional: sendo certo
que bons desempenhos precoces em tarefas metafonológicas são preditores fiá-
veis de um maior sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita – o que justifi-
caria o reforço do treino das capacidades metafonológicas como parte da compo-
nente pré-escolar da educação infantil –, não é menos certo, no sentido inverso,
que a exposição gradual dos aprendentes ao código e às convenções da escrita
os conduzirá a uma reformatação de alguns aspetos do seu conhecimento fono-
lógico implícito minimamente estabilizados antes da aprendizagem de um SEA.
Além das evidências teóricas que foram invocadas na nossa exposição, os re-
sultados de estudos anteriores relativos ao português do Brasil e ao português eu-
ropeu exemplificam casos concretos desta “retroalimentação” da aprendizagem
alfabética sobre o conhecimento!fonológico implícito:

• crianças brasileiras que começam por conceber as vogais nasais como seg-
mentos fonológicos únicos (em que a nasalidade é uma propriedade seg-
mental das vogais), à medida que são expostas às convenções que tratam
tais vogais como sequências VN, parecem passar a reprocessá-las de acordo
com este estatuto, que é o defendido pelas descrições fonológicas do sis-
tema-alvo;

• no caso das crianças portuguesas, verifica-se que sequências {S℘Obstruin-


te} são representadas, num primeiro momento, como ataques ramificados
(irregulares), passando mais tarde, fruto da aprendizagem formal das re-
gras de translineação gráfica, a ser tratadas como sequências divididas por
duas sílabas contíguas.

Defendemos, ao longo do capítulo, que os dados fornecidos pelas produções


orais e escritas infantis e/ou pelo desempenho de tarefas metafonológicas consti-
tuem uma das vias possíveis para podermos alcançar, justamente, uma caracteri-
zação do conhecimento fonológico implícito dos falantes nas sucessivas fases da
aquisição e desenvolvimento da linguagem e para chegarmos a uma comparação
minimamente segura entre o sistema-alvo e o sistema linguístico em construção
durante o processo de desenvolvimento da linguagem.
Julgamos, assim, ter dado o devido destaque à multiplicidade de razões que
justificam o interesse pelo estudo da aquisição fonológica e pelo tipo específico

455
Ana Ruth Moresco Miranda & João Veloso

de dados aqui tidos em consideração, quer do ponto de vista da caracterização


estrutural dos sistemas linguísticos, quer pondo em relevo o seu contributo para
a compreensão dos mecanismos de aquisição e desenvolvimento da linguagem e
de aprendizagem da leitura e da escrita.

Agradecimentos
Texto escrito durante estágio pós-doutoral realizado por Ana Ruth Miranda na
Universidade de Barcelona. Agradecimento à CAPES pela Bolsa concedida (BEX
1423/14-2).

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