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A INTERCULTURALIDADE NO ENSINO DE PLE EM SÃO TOMÉ

E PRÍNCIPE: UM EFEITO DO CELPE-BRAS

Leila Cristina Santa Brígida do Nascimento (Centro Cultural Brasil-São Tomé e Príncipe)
Eliane Vitorino de Moura Oliveira (Universidade Federal de Alagoas)

Resumo: Este artigo apresenta, de uma maneira sucinta, a realidade do ensino de Português
como Língua Estrangeira (PLE) em São Tomé e Príncipe (STP), mais especificamente em sua
capital, São Tomé, empreendendo uma discussão acerca de metodologia utilizada no curso
ofertado pelo Centro Cultural Brasil-São Tomé e Príncipe (CCBSTP), que teve início em 2008,
com a inauguração do CCBSTP, órgão integrante da embaixada brasileira naquele país, a fim de
atender a uma demanda regular na região. Partindo de uma visão tradicional em sua gênese, o
curso foi passando por reformulações, com ápice na transformação do CCBSTP a posto
aplicador do exame Celpe-Bras, além da proposta de uma abordagem intercultural e direcionada
para o trabalho com a noção de gêneros discursivos, letramento, variação linguística, ou seja,
com a concepção de língua como prática social. Como resultados, observa-se que o advento do
Celpe-Bras e a abordagem intercultural favoreceram o entendimento do ensino de língua
estrangeira também como um mecanismo de reflexão sobre os usos linguísticos, por meio de
aulas cujas discussões tomavam como norte o enfrentamento de desafios socialmente relevantes
e as necessidades de seu público alvo, nomeadamente diplomatas e suas famílias, funcionários
de embaixadas, consulados, organizações internacionais e bancos, além de integrantes de
missões religiosas. O embasamento teórico reflete as discussões apresentadas por Almeida Filho
(1995, 1997); Cunha e Santos (1999), Furtoso (2005); Oliveira e Furtoso, (2008), Sá (2016)
entre outras.

Iniciando a conversa

O ensino de língua portuguesa em São Tomé e Príncipe, ou simplesmente em


STP, é um tema relevante haja vista a natureza plurilíngue do país – falam-se três
línguas autóctones – o Crioulo Forro, o Lungu’iê e o Angolar, uma língua de
empréstimo – Crioulo Cabo-verdiano, e o Português, este língua oficial, num território
de, aproximadamente, 1001 km2.
Não obstante essa realidade, ainda são ouvidas outras línguas a perpassar os
pouco mais de 180 mil habitantes das Ilhas, chamadas maravilhosas. Trata-se das
línguas dos inúmeros estrangeiros que vivem no país em missões diplomáticas ou
religiosas, como comerciantes ou trabalhadores em empresas de exploração de óleo de
palma e cacau.
Como já mencionado, a realidade linguística do país é riquíssima. Uma seara
sociolinguística e cultural, cuja amplidão investigatória é imensa! Mas, para esse artigo,
atentamo-nos apenas a um quesito nesta vastidão de temas: o ensino de português como
língua estrangeira (PLE).
É nosso foco tratar de metodologias empregadas no Centro Cultural Brasil-São
Tomé e Príncipe, doravante CCBSTP, para conduzir a aquisição desta língua pelos
interessados, observando, de maneira mais detalhada, o “antes e depois” do advento do
exame de proficiência linguística exigido pelo governo brasileiro a quem intente
trabalhar e estudar no país: o exame Celpe-Bras e a abordagem do ensino e
aprendizagem intercultural.
Dessa maneira, o artigo se organiza, primeiramente, apresentando STP e suas
peculiaridades gerais e linguísticas, passando pela história do ensino de PLE em STP,
mais especificamente em sua capital, São Tomé.
Na sequência, apresentamos nosso embasamento teórico para, ao final,
discutirmos acerca da alteração da metodologia e os resultados dessa mudança,
fechando com nossas considerações finais.
Para iniciar nossa conversa de fato, apresentamos STP, país insular, cuja
natureza extraordinária permite a alcunha já citada “Ilhas Maravilhosas.”

1. De que país estamos falando? São Tomé e Príncipe (STP)

A República Democrática de São Tomé e Príncipe é um estado insular,


localizado no Golfo da Guiné. É composta por duas ilhas principais (Ilha de São Tomé e
Ilha do Príncipe) e várias ilhotas, num total de 1001 km², com cerca de 184 mil
habitantes, de acordo com o censo de 2012. O Arquipélago não tem fronteiras terrestres,
mas situa-se relativamente próximo das costas do Gabão, Guiné Equatorial, Camarões e
Nigéria.
Mata (2010) relata que os portugueses chegaram a São Tomé em 21 de
dezembro de 1470 e em Príncipe em 17 de janeiro de 1471, encontrando ambas as ilhas
desabitadas. As iniciativas de povoamento, entretanto, datam de 1493 com a alocação
de colonos madeirenses, alguns degredados, crianças judias e escravos resgatados nas
costas africanas para trabalhar nas plantações de açúcar.
Em relação à formação de uma população pela escravidão, indícios históricos
apontam para a origem principal a partir do Reino de Benin, hoje Nigéria. Povos do
Congo, ainda que não muitos, também foram escravizados e passaram a compor os
habitantes de São Tomé.
Em Hagemeijer (2009), conhecemos as duas fases de povoamento por que
passou a colonização de São Tomé e Príncipe: i) fase de habitação, de 1493 até por
volta de 1520, com a introdução de cana-de-açúcar; ii) fase de plantação, entre 1520 e o
fim do século XVI.
Já na fase de plantação, além dos escravos oriundos do Benin, o resgate de
escravos parte para as Zonas Bantu, como o Congo e Angola, levando São Tomé a se
firmar como importante entreposto de escravos, devido à queda da produção de açúcar,
ocasionada pela concorrência brasileira e as constantes rebeliões internas. A agricultura
volta à tona a partir século XIX, em que há incentivo para o cultivo de café e cacau.
Independente desde 1975, São Tomé e Príncipe vive uma democracia, com um
sistema semipresidencialista e multipartidário. Atualmente, sobrevive da ajuda externa,
basicamente. De acordo com o Banco Mundial (última atualização em abril de 2016), “a
República de São Tomé e Príncipe é um pequeno estado insular em desenvolvimento,
de rendimento médio baixo, com uma economia frágil. É extremamente vulnerável aos
choques exógenos” e […] “altamente dependente de ajuda.”
Os relatos do Banco Mundial ainda falam sobre a ausência de qualquer atividade
econômica movimentando o desenvolvimento efetivo do país, destacando o papel da
agricultura, que tem tido bom desempenho com um tímido, mas gradual aumento das
exportações de cacau, café e óleo de palma.
O incremento do turismo no país é um fator positivo, mas há ainda muito por
fazer em relação à infraestrutura de toda ordem. De qualquer maneira, o Banco Mundial
frisa que, mesmo sendo uma atividade importante e em expansão, não é capaz de
suportar o crescimento de toda a economia, que tem nas despesas públicas o principal
motor do desenvolvimento no país.
Em relação à educação, há problemas sérios de infraestrutura e formação de
professores, mas um trabalho sério vem sendo realizado pelos sucessivos governos para
sua resolução. A Universidade, em processo ainda de estruturação, tem um papel
importante dentro deste contexto. O atual Ministério da Educação, Cultura e Ciência
(MECC) tem empreendido esforços para sua consolidação, bem como para a melhoria
do sistema de ensino no país de uma forma geral.
Como tratamos, neste artigo, de ensino de línguas, importa comentar sobre o
problema maior encontrado em STP para o ensino de Língua Portuguesa: a existência
de outras línguas convivendo com a língua oficial. Para algumas pessoas, o Português é
segunda língua – quase estrangeira, visto terem, como identidade, como língua materna,
um dos quatro crioulos falados nas ilhas ou, mais ainda, uma variedade muito própria
do português.
Em relação ao surgimento de línguas crioulas em STP, Hagemeijer (2009, p. 2)
relata ter havido “a necessidade iminente de comunicação que implicava uma
aproximação, por parte dos escravos, ao código linguístico utilizado pelos povoadores
portugueses.” Além da percepção da língua do colonizador, era necessário contato,
interação, ou seja, urgia a criação de uma maneira comum de comunicação, uma
linguagem que favorecesse o intercâmbio entre os diversos povos que construíram o
país. Dessa língua de contato, surgiram os Crioulos de São Tomé e Príncipe, ou seja,
por força do seu processo de constituição, o país tem quatro línguas crioulas convivendo
em seu espaço arquipelágico: o Crioulo Forro (também chamado de Santomé e Dialeto),
o Lungu’íê (falado somente na Ilha do Príncipe), o Angolar e o Cabo-verdiano.
Afonso (2008) esclarece que o Crioulo Forro é um crioulo de base lexical
portuguesa, surgido no século XVIII, fruto do contato entre a Língua Portuguesa e
diversas línguas do continente africano. Inicialmente falada pelos escravos libertos ou
forros, é, hoje, a língua usada nos contatos sociais em praticamente toda a ilha de São
Tomé. Mesmo assim, não goza estatuto de oficial, o qual recai unicamente sobre o
idioma de Camões, adotado oficialmente em 1975, com o advento da Independência.
Desde então, a Língua Portuguesa em São Tomé e Príncipe tem adquirido
características específicas, consequência de sua coexistência com as outras línguas
faladas nas ilhas, e, em especial, da influência do Crioulo Forro.
Essa característica é relevante para o ensino. Entendemos, com base em estudos
sociolinguísticos como os de Labov (2008), essa como uma das possíveis causas do
fracasso escolar, no que se refere ao domínio da língua portuguesa padrão. Os alunos
dominam uma variedade da língua e, ao chegarem à escola, deparam-se com outra
totalmente diferente. Os professores, despreparados, atuam no sentido de erradicar o
“erro”, muitas vezes vendo esses alunos como incapazes ou inaptos.
Por isso, a discussão acerca do ensino de Língua Portuguesa no país é um campo
profícuo. Autores como Afonso (2010), organizam suas reflexões no sentido de que o
português seria, no país, uma Língua Segunda, não Língua Materna, como entendem os
órgãos que conduzem o ensino no país.
Ao largo dessa discussão, o ensino de PLE se mantém uniforme e constante,
dada a condição necessitária do país, que vive de ajuda externa. De acordo com
McElroy e Mahoney (2000), uma explicação possível para isso envolve alguns fatores,
como: inércia política, o comércio preferencial com a antiga potência colonial,
infraestrutura subvencionada por países estrangeiros, ajuda financeira por organizações
internacionais como o Banco Mundial ou o FMI, o baixo nível de serviços públicos.
África do Sul, Alemanha, Angola, Brasil, Cabo Verde, China, Congo, Espanha,
Estados Unidos da América, França, Gabão, Guiné Equatorial, Holanda, Malta, Nigéria,
Portugal e Suíça têm representações diplomáticas acreditadas em São Tomé e Príncipe.
Embaixadores, cônsules, funcionários das representações e seus familiares integram a
comunidade são-tomense.
Além disso, missões religiosas de diversos países, com um bom montante
brasileiro e americano, um grande número de comerciantes libaneses, indianos, chineses
e árabes espalha-se pelas ilhas, somando-se ao número de estrangeiros residentes no
país.
E é esse o público abarcado pelas aulas de PLE ofertadas pela Embaixada do
Brasil em seu Centro Cultural, o CCBSTP. Detalharemos melhor no tópico a seguir.

2. O Ensino de PLE em STP

Em São Tomé e Príncipe, mais precisamente na capital do país, São Tomé, o


Ensino de Português como Língua Estrangeira começou em 2008, com a inauguração
do Centro Cultural Brasil-São Tomé e Príncipe (CCBSTP), vinculado à Embaixada do
Brasil em São Tomé, como parte da política linguística do Itamaraty.
Inserida no Ministério das Relações Exteriores, em seu Departamento de
Diplomacia, a Divisão de Promoção da Língua Portuguesa (DPLP) é a responsável por
promover a difusão da língua portuguesa na variedade brasileira, coordenando a Rede
Brasil Cultural, que, por sua vez, é responsável pelos Centros Culturais e pelos
Leitorados Brasileiros espalhados pelo mundo. Dessa maneira, é o órgão a quem
compete administrar o ensino de PLE nos locais onde se encontra diplomacia brasileira,
cuidando para que isso se dê de maneira profissional e relevante.
O curso ministrado no CCBSTP, cujo objetivo é possibilitar aos alunos não
lusófonos, provenientes de diferentes países, a aquisição da variedade brasileira da
Língua Portuguesa, é oferecido regularmente pelo CCBSTP e está dividido em seis
níveis: Básico I e II, Intermediário I e II e Avançado I e II. Cada nível tem a carga-
horária de 30 horas, com 20 aulas de uma hora e meia cada.
As turmas têm, em média, seis alunos de nacionalidades distintas, sendo, em sua
maioria, funcionários e funcionárias de missões diplomáticas acreditadas no país, bem
como seus dependentes (cônjuges e filhos/filhas), missionários e missionárias de igrejas
diversas, comerciantes, etc., como já citamos, os quais objetivam aprender a língua
portuguesa para fins profissionais ou para integração com os habitantes do país. Em
geral, os interessados têm como língua materna ou língua segunda o inglês ou o francês;
têm mais de dezoito anos e têm nível superior. Normalmente, são bem-sucedidos em
seu intento linguístico e, ao final do nível básico, conseguem usar a língua em diversos
contextos de interação.
A procura é regular no país, o que proporciona uma oferta trimestral de acordo
com a demanda, observando sempre o número e o nível de aprendizagem dos
interessados.
O curso é ministrado por uma professora graduada em Letras pela Universidade
Federal do Pará, doravante denominada professora regente, que, na ocasião, não teve
acesso a pressupostos para o ensino de PLE, fato comum ainda hoje na maioria dos
cursos de formação inicial de professores no País. A didática, a metodologia, as
peculiaridades do ensino de PLE são oferecidas apenas na pós-graduação em grande
parte das Universidades e Faculdades.
Ainda assim, mesmo sem ter formação especial na área, a professora regente
buscou, de maneira autônoma, material condizente com o contexto de ensino, adotando
o livro didático Bem-vindo! A língua Portuguesa no Mundo da Comunicação,
complementando o material com partes de outras coleções disponíveis no mercado para
o ensino-aprendizagem de PLE, o que corrobora o pensamento de O´Neill (1990)
quando atesta ser todo livro passível de mudanças e adaptações por parte do professor.
Vale ressaltar que tal material, ainda que específico, vale-se de uma concepção
ainda, de certa maneira, bastante estruturalista, uma vez que, de acordo com análise de
Oliveira e Furtoso (2009), traz uma lista de conteúdos estruturais e com pouca ênfase
nas situações de uso da língua.
Essa escolha mostrou não só autonomia da docente, como também um certo
autodidatismo, uma vez que, ainda hoje, são bem poucas as fontes resultantes de
pesquisas que orientam os professores ou que se concentram, como alega Dias (2009, p.
201) “em oferecer parâmetros que possam fornecer ao professor [...] o suporte
necessário para a árdua tarefa de tomar decisões em relação à escola do LD mais
adequado ao seu contexto de atuação.”1
Mas o advento do Celpe-Bras trouxe a necessidade de reestruturação para as
aulas de PLE de uma forma geral, repercutindo, obviamente, em STP, e dois fatos bem
pontuais favoreceram as mudanças nas Ilhas: a instauração de um posto aplicador do
exame Celpe-Bras no CCBSTP e a chegada no país da leitora brasileira, especialista no
ensino de PLE, trazendo no bojo não só a abordagem comunicativa de ensino, como
também um viés intercultural.
Dessa maneira, o ensino de PLE ganhou cara nova e corpo novo.
Antes, porém, de apresentar tais mudanças, é necessário tratar de alguns
aspectos embasadores: a filosofia por trás do exame Celpe-Bras e seu efeito retroativo,
além de uma breve conceituação da abordagem intercultural. Falamos disso no próximo
item.

3. O CELPE-BRAS E A ABORDAGEM INTERCULTURAL

As discussões acerca do ensino de Português como língua estrangeira, ainda que


relativamente recentes, têm despertado interesse dentro cenário linguístico em nosso
país, especialmente no campo da Linguística Aplicada (LA), e o surgimento do Celpe-
Bras, em 1997, trouxe uma nova perspectiva para a área.
Schlatter (2014), historiando a gênese do exame, relata ter sido a partir de um
projeto idealizado por professores da UNICAMP, nomeadamente Leonor C. Lombello,
José Carlos Paes de Almeida Filho, Itacira Araújo Ferreira e Matilde Scaramucci, já
atuantes na área, que foi criada, pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), uma
comissão de especialistas para dar conta da elaboração de um exame oficial.
A motivação primeira para a certificação partiu da urgência em unificar e
padronizar a seleção de intercambistas estrangeiros e, principalmente, de interessados
em estudar no Brasil pelo Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G),
programa do governo cuja função é oferecer educação superior em universidades
nacionais a cidadãos de países em desenvolvimento que mantêm acordos educacionais e
culturais com o Brasil. Era mister, então, a criação de um instrumento avaliativo por

1
Em 2009, Oliveira e Furtoso explicitam critérios para a seleção do LD a ser adotado nas aulas de PLE. A
referência encontra-se ao final desse capítulo.
meio do qual fosse aferida a capacidade de estrangeiros interagirem cotidianamente por
meio da língua e no qual

- a proficiência no uso da língua portuguesa fosse analisada por meio


do desempenho dos candidatos em tarefas o mais próximo possível de
usos autênticos da língua;
- as tarefas propusessem a compreensão de textos escritos e orais e a
produção escrita e oral a partir desses textos;
- os critérios de avaliação fossem holísticos e baseados nas condições
de recepção e produção propostas nas próprias tarefas;
- o resultado da avaliação fosse expresso em descritores de
desempenho do examinando;
- os parâmetros de correção tivessem como base os próprios objetivos
das tarefas e os recursos discursivos exigidos para sua realização.
(Schllater, 2014)

Criou-se o Celpe-Bras, exame que, ao contrário de outros, certifica diferentes


níveis de proficiência: intermediário, intermediário superior, avançado e avançado
superior, por entender que todos os examinandos são capazes de desempenhar ações na
e pela língua, de maneira mais ou menos eficiente.
Única certificação aceita no país, exigência para aqueles que desejam trabalhar e
estudar em terras brasileiras, bem como para a autenticação de diplomas estrangeiros e
solicitação de algumas agências de classe, o Celpe-Bras é um exame de natureza
comunicativa, o que implica aferir não conhecimentos sobre a língua, sobre questões
gramaticais e sobre vocabulário, mas, sim, medir a capacidade de uso nessa língua.
Como orienta o Manual do Aplicador (Brasil, 2010, p. 7)

A competência do candidato é, portanto, avaliada pelo seu


desempenho em tarefas que se assemelham a situações que possam
ocorrer na vida real. Embora não haja questões explícitas sobre
gramática e vocabulário, esses elementos são importantes na
elaboração de um texto (oral ou escrito) e são levados em conta na
avaliação do desempenho do candidato.

Para tanto, compõem-se de duas etapas: uma individual, mediante entrevista


oral, e outra coletiva, por meio de uma prova escrita.
A entrevista individual, com vinte minutos, parte de elementos provocadores,
cuja função é levar o examinando a falar de determinado assunto, tendo o entrevistador
e o observador a função de avaliar, de maneira holística, sua capacidade de discorrer
sem sair do assunto e de maneira adequada para aquele momento, observando seis
critérios: compreensão, competência interacional, fluência, adequação lexical,
adequação gramatical, pronúncia.
A prova escrita, coletiva, parte de quatro tarefas, ou quatro convites “para
interagir no mundo usando a linguagem com propósito social” (Brasil, 2010, p.8).
Trata-se da produção de textos a partir de um áudio, da assistência a um vídeo e da
leitura de dois textos de apoio. Cada tarefa reflete uma ação, que deve ser configurada
em um gênero determinado e destinada a um interlocutor específico.
Dessa maneira, a avaliação mede a capacidade, como já bem especificado neste
artigo, de o avaliando interagir socialmente falando, escrevendo, lendo e escutando, de
maneira eficiente, usando a língua portuguesa em contextos específicos. Questões
gramaticais, de vocabulário e de pronúncia terão relevância somente se comprometerem
demasiadamente o processo interativo entre as partes.
Observando esse caráter interacional, a fundamentação do exame une língua e
cultura, ou seja, percebe a expressão linguística e as experiências de mundo e práticas
partilhadas pelos indivíduos em uma comunidade como imanentes. Conforme o Manual
do Aplicador (Brasil, 2010, p. 8)

Os indivíduos agem em contexto e, como tal, são influenciados por


sua própria biografia, ou seja, pelo contexto social e histórico no qual
estão inseridos. Cultura não é vista aqui como uma lista de fatos,
autores ou datas importantes, mas como vários processos culturais
interrelacionados, tais como formas de interagir em diversas situações
e contextos, atribuição de valores, representações de si próprio e do
outro, modos de relacionar a interação e a organização cotidiana com
sistemas e processos culturais mais amplos. Cultura não é algo
acabado, mas co-construído nas práticas cotidianas de uma
comunidade. Levar em conta a cultura brasileira no exame Celpe-Bras
significa, portanto, estar sensibilizado para outros pontos de vista
sobre o mundo, considerando a situação da interação oral e/ou escrita.

E é nesse sentido que se alia à teoria do ensino e da aprendizagem intercultural


de língua, cujo objetivo, de acordo com Dias (2016, p. 13) é “produzir falantes de língua
munidos com competências explícitas para compreender semelhanças e diferenças entre
sua própria cultura, a cultura da língua-alvo e outras culturas em geral.”
Ou seja, as bases do exame Celpe-Bras percebem as línguas como sistemas
totalmente vinculados à realidade, instrumentos de interação social interligados aos
contextos socioculturais nos quais funcionam, o que as aproxima do ensino
intercultural, para quem a aprendizagem de uma língua é um processo global, que
intermedeia o contato do aprendente com determinada forma de entender o mundo e de
agir em sociedade, levando-o a nela se integrar incondicionalmente.
Dias (2016) entende que a aprendizagem de uma nova língua envolve muito
mais que ser competente linguística e comunicativamente na língua-alvo. Para a autora
(p. 14), ser competente numa língua implica maior familiaridade dos aprendentes com o
fundo cultural da língua, além da expansão de sua consciência cultural e da competência
intercultural.
Convém afirmar, corroborando Scarino et al (2007, lidos em Dias, 2016), que
ensinar interculturalmente não significa utilizar nova pedagogia, mas, sim, compreende
ter nova postura ou orientação ao ensinar línguas estrangeiras. Significa entender que
cada professor leva para a sua sala de aula seus valores, suas crenças, seus
conhecimentos acerca do mundo, e que essas experiências são basilares, uma vez que
nossa forma de entender a cultura terá muito peso para a forma como ensinamos uma
língua e, mais ainda, a forma como percebemos a cultura de nossos discentes.
Ademais, tal abordagem reflete um tempo de complexidade na dinâmica social.
Ensinar uma língua compreende tratar também de toda a atividade contemporânea,
desenrolada por meio da língua, instrumento maior da interação.
A prenhez de novos desafios e de um repensar as práticas em todos os campos
do saber, oriundos da mundialização hodierna, já provocavam questionamentos no final
do século passado. Gadotti (2000), ao tratar de perspectivas atuais da educação,
contemporiza: “É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e
paradigmas”. Um tempo, pelas mãos da modernidade, perpassado por tecnologias
novas, por conhecimentos antes inalcançáveis. Culturas, modos de ser e de estar no
mundo, identidades e costumes são moldados pela atualidade.
Tudo isso, obviamente, não poderia ficar de fora das aulas de PLE, uma vez que,
com a globalização, a disseminação da cultura se torna extensiva e intensiva , permitindo
a difusão de maneiras particulares de se moldarem diversos fenômenos do mundo
(BLOCK, 2002), o que foi acertadamente reconhecido pela metodologia do exame
Celpe-Bras quando tem como estrutura basilar o ensino intercultural.
E essa forma de ver o ensino e de entender a aprendizagem de uma língua
estrangeira foi incorporada ao trabalho com o PLE em STP. Se já havia uma
preocupação em conhecer e entender os aprendentes em sua cultura original, isso se
intensificou a partir da abordagem intercultural e como reflexo do Celpe-Bras.
O fato de existir uma relação estreita entre o desenvolvimento da competência
comunicativa e o desenvolvimento da competência intercultural e, consequentemente,
da capacidade de redefinir a própria identidade social em contextos multiculturais,
propostos por Parejo (2004) e alicerces da configuração do exame de proficiência,
sustentaram as ações em STP. Vejamos, no próximo tópico, como isso se deu e quais
os resultados dessas ações.

4. OS REFLEXOS EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

No momento de implantação do posto aplicador, o contexto de ensino no


CCBSTP ainda se conduzia predominantemente por uma visão estruturalista, como já
mencionamos.
Dessa maneira, aliando a experiência na área trazida pela Leitora Brasileira à
visão interessada da professora regente do CCBSTP, a primeira ação para a mudança no
ensino de PLE no país foram os trâmites do processo de nomeação do CCBSTP como
posto aplicador no país, sob a responsabilidade da Diretora do Centro Cultural.
Tendo sido criado e estabelecido o posto aplicador, a primeira ação do Leitorado
Brasileiro nesse sentido visou implementar parâmetros norteadores, com base na
concepção de uso da língua, não só para a atualização dos conhecimentos da professora
regente para o ensino de PLE regular, mas também em relação à preparação de alunos
para esse exame, além do auxílio na criação de uma força externa, a fim de formar
examinadores, inexistentes até então.
Efetivados parâmetros, metas e estabelecidos todos os pontos iniciais, a ação
concreta premente para estabelecer o exame no país de maneira eficiente foi criar um
Curso de Preparação para o Exame Celpe-Bras aos são-tomenses e estrangeiros lá
residentes. Ofertado o curso, foram formadas duas turmas basicamente de jovens são-
tomenses interessados nos programas Programa de Estudantes – Convênio de
Graduação - PEC-G e Programa de Estudantes – Convênio de Pós-Graduação PEC-PG.
No ano de 2014, trinta e dois alunos foram preparados para o Exame, número que vem
aumentando gradativamente.
Além de preparar os interessados para as provas de certificação, o curso também
serviria como formação continuada para a professora regente, numa ação proposta pelo
Centro Cultural ao Leitorado, uma vez que a profissional necessitava de formação
atualizada. Vale ressaltar que isso apenas viria a ampliar e solidificar o conhecimento
adquirido de forma autodidata pela profissional que, mesmo com dúvidas quanto à
aplicação das novas tendências e concepções, em especial no nível básico, sempre agiu
em busca de formas adequadas de ensinar. De maneira autônoma, efetuava leituras e
buscava recursos hodiernos.
Esse programa de formação continuada serviu, também, como base para o
ensino de Português como Língua Estrangeira, uma vez que foram utilizadas novas
abordagens de ensino de PLE, mais especificamente em relação à abordagem
comunicativa e a intercultural e toda a complexidade trazida pela contemporaneidade,
efeito retroativo do exame Celpe-Bras.
É possível notar, no detalhamento, dois contextos de ensino em STP: o ensino de
PLE e a preparação para o Celpe-Bras, diferentes devidos às características do público,
já que existem os são-tomenses, falantes de uma variedade muito particular do
português, e há os estrangeiros, de países vários, falantes de línguas diversas. Mas o
embasamento de ambos está no respeito à cultura, no entendimento da língua como
instrumento de interação, variável e dinâmica.
Em relação ao material didático, desde 2017, por iniciativa da professora
regente, o livro Bem-vindo! A língua Portuguesa no Mundo da Comunicação, utilizado
no nível básico, foi substituído pela coleção didática Brasil intercultural: Língua e
cultura brasileira para estrangeiros, em todos os níveis, a qual adota abordagem
pedagógica intercultural, mostrando-se, assim, mais adequada à visão de língua como
lugar de interação entre sujeitos e mundos culturais diferentes. O trabalho é feito
também com o apoio das unidades didáticas disponíveis no Portal do Professor de
Português Língua Estrangeira (PPPLE), bem como de elementos provocadores da prova
oral do exame de proficiência em Língua Portuguesa – Celpe-Bras, de reportagens,
músicas, entre outros recursos, que instigam o aluno a falar, ouvir, escrever e ler, com o
objetivo de desenvolver a sua competência comunicativa, bem como de prepará-lo para
a realização do Celpe-Bras.
Desse modo, atualmente os alunos têm oportunidade de relacionar sua história à
cultura da língua-alvo – no caso a variedade brasileira do português – de maneira
sempre interativa e respeitosa, empreendendo discussões acerca do diferente e do novo,
de modo a sustentar a intrínseca relação entre língua e cultura.
Os resultados estão se mostrando a cada dia mais satisfatórios. Os alunos
continuam enchendo as salas de aula do CCBSTP, nossa língua e nossa cultura vem se
disseminando a cada dia mais, sempre alinhadas à história dos aprendentes, ou seja,
interculturalmente, além de entrecruzadas com a cultura e as peculiaridades desse lindo
país de nome santo.
É possível afirmar, ademais, que o ensino de PLE em São Tomé e Príncipe
passou por reformulações necessárias, acompanhando hoje as linhas teóricas atualizadas
do ensino, não só pelo efeito do exame Celpe-Bras, ainda que fundamental para essa
mudança, mas, em especial, pela dinâmica e pela autonomia da professora regente do
CCBSTP.

Fechando o bate-papo

Fechar essa discussão não é tarefa fácil. Relatar anos de um trabalho produtivo e
prazeroso parece não ter fim.
Entretanto, buscamos expor neste breve relato a união de forças em prol de um
objetivo comum. CCBSTP e Leitorado Brasileiro trabalharam em conjunto, firmando
ainda mais o ensino de PLE em São Tomé e Príncipe.
Foi necessário expor, primeiramente, um pouco da história deste país
arquipelágico, retratando um breve de sua colonização e dos caminhos que o
estabeleceram como Nação, para melhor entender sua caracterização linguístico-
cultural. A coexistência de línguas crioulas, de uma variedade própria são-tomense e da
variedade europeia do Português, esta tida como oficial, perfaz o cenário linguístico
com o qual a professora regente se depara ao trabalhar o ensino de PLE no país.
A essa realidade, juntou-se o advento do Celpe-Bras, trazendo a premência de
mudanças. E acatar mudanças não é algo fácil, por ser trabalhoso e, por vezes,
amedrontador. O CCBSTP, especialmente nas pessoas da diretora e da professora
regente, enfrentou os desafios e acatou o novo, deixando o campo profícuo para o
Leitorado Brasileiro semear. E assim se fez.
Em conjunto, o trabalho foi realizado a contento, e, atualmente, o ensino de PLE
no país se pauta na concepção de língua em uso, interacional, inerente ao indivíduo e,
por isso, à sua cultura. Com tal consciência, as aulas de PLE em STP consideram
relevante o capital cultural único que envolve cada um dos indivíduos interessados em
aprender a variedade do português brasileiro, e, assim, o aprendizado tem se
materializado eficientemente.
Trabalho realizado em prol da língua. Em prol da cultura. Em prol do Brasil.
REFERÊNCIAS

AFONSO, B. (2008) A Problemática do Bilinguismo e Ensino da Língua Portuguesa


em São Tomé e Príncipe. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Dissertação de
Mestrado.

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