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ACERVO

R E V I S T A DO A R Q U I V O N A C I O N A L

VOLUME 6 • NÚMERO 01/02 • JAN/DEZ . 1993

F O T O G R A F I
MINISTÉRIO DAIUSTIÇA

ARQUIVO NACIONAL
I Ministério da Justiça
Arquivo nacional

ACERVO
R E V I S T A DO A R Q U I V O N A C I O N A L

R I O DE J A N E I R O , V. 6, NÚMERO 01/02, JANEIRO/DEZEMBRO 1993


©1993 by Arquivo Nacional
Rua Azeredo Coutinho, 77
CEP 20230-170 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Ministro da Justiça
Maurício Corrêa
Diretor Geral do Arquivo nacional
Jaime Antunes da Silva

Editor
Marcus Venício T. Ribeiro
Conselho Editorial
Ana Maria Cascardo, Ingrid Beck, Marcus Venício T. Ribeiro,
Maria Angélica Brandão Varella, Maria Isabel de Oliveira,
Nilda Sampaio Barbosa, Rosina lannibelli, Silvia Ninita de Mourão Estevão
Conselho Consultivo
Ana Maria Camargo, Ângela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy,
Célia Maria Leite Costa, Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Francisco lglésias,
Helena Ferrez, Helena Corrêa Machado, Heloisa Liberalli Belotto, limar Rohioff de Mattos,
Jaime Spinelli, Joaquim Marcai Ferreira de Andrade, José Carlos Avelar,
José Sebastião Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza Meves,
Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley, Solange Zúniga
Edição de Texto
J o s é Ivan Calou Filho
Projeto Gráfico
André Villas Boas
Resumos
Maria do Carmo T. Rainho e Marilda Alves Dias (versão em inglês)
Araken Gomes Ribeiro e Vitor Fonseca (versão em francês)
Revisão
J o s é Cláudio da Silveira Mattar, José Ivan Caiou Filho, Tânia Maria Cuba Bittencourt
Secretaria
Jeane D'Arc Cordeiro e Kátia Borges Oliveira

Acervo: revista do Arquivo Macio lal. -


Vol. 6, n. 1-2, (jan./dez. 1993). - • Rio de Janeiro Arq uivo nacional.
1993.
v. ; 26 cm.
Semestral
Suspensa de 1990 a 1992
Cada número possui um tema distinto
1SSM 0102-700X
1. Arquivologia - Periódicos 2. História Periódicos 3. Fotografia -
Periódicos I. Arquivo Nacional

O
S U M A

01
Apresentação

03

1 rês M e stres da rotogr a f í a B rasileira no Século


Fedro Vasquez

13

E s t é t i c a , M emória e Ideologia Fotográficas


D e c i f r a n d o a r e a l i d a d e i n t e r i o r o t i i m a g e n s do passado
Boris Kossoy

25

"O O l k o da História"
A n á l i s e da i m a g e m fotográfica na c o n s t r u ç ã o de u m a m e m
Ana Maria Mauad de Souza Andrade Essus

41
O s Sentidos da Imagem
Fotografias em a r q u i v os pessoais
Aline Lopes d e Lacerda

55

O Dedo e a Orelna
A s c e n s ã o e q u e d a da i m a g e m nos t e m p o s digitais
Maurício Lissovsky

75
D a Fotografia de Imprensa ao r otojornalismo
Helouise Costa
87
I m a g e n s da C i d a d e C o l o n i a l nas I m a g e n s do S é c u l o X1Ã
O Rio de Janeiro no Brazil Pittoresco
Maria I n e z T u r a z z i

99
JbíSpaços P r o j e t a d o s
A s representações da cidade de São Paulo nos álbuns fotográficos do início do século
S o l a n g e Ferraz d e Lima

111
A Plasticidade Urbana
A s representações da cidade de São Paulo nas fotografias de 1 )o\)
Vânia Carneiro d e Carvalho

121

A r otografia como D o c u m e n t o
Uma instigarão â Leitura
Maria Lúcia C e r u t t i Miguel

133

N o v a s F o n t e s p a r a o E s t u d o do S é c u l o X I X .
O acervo fotográfico da BiLlioteca Nacional e o
projeto de conservação e preservação P R O F O T O
J o a q u i m Marcai Ferreira d e A n d r a d e

145
A M e m ó r i a F o t o g r á f i c a d e S ã o P a u l o e m P r o c e s s o de I n f o r m a t i z a ç ã o
Márcia R i b e i r o O l i v e i r a

155
Perfil institucional
C e n t r o de C o n s e r v a ç ã o e P r e s e r v a ç ã o F o t o g r á f i c a
S o l a n g e S e t t e Q. d e Z ú n i g a

163
oibliografia
A P R E S E N T A Ç Ã O

epois de três anos , ACERVO, o que conferiu à fotografia o caráter de


a revista do Arquivo Nacional, preciosa fonte de informação. No Brasil,
volta a circular. Um sinal de ela vem sendo objeto, n o s últimos anos,
vida num país onde o desapareciment o de um crescente investimento técnico
precoce dos periódicos especializados é e teórico por parte de diversas institui-
a p e n a s uma d a s manifestações da fragi- ç õ e s profissionais, não obstant e as difi-
lidade de n o s s a s políticas culturais. culdades conhecidas de t o d o s .
ACERVO retorna com formato e projeto A série de artigos aqui reunidos apresen-
gráfico-visual novos e traz o respaldo de ta uma amostra significativa do s resulta-
um Conselho Consultivo formado por dos obtidos. Abrindo o volume, Pedro
profissionais r e p r e s e n t a t i v o s em s u a s Vasquez faz o elogio de "três m e s t r e s da
áreas de atuação. Aparelha-se assim para fotografia", entre os quais Francisco Du
permitir ao Arquivo Nacional cumprir o Bocage, ainda p o u c o c o n h e c i d o d o s
papel de um dos principais irradiadores especialistas. Seguem-se os artigos teó-
das novas formulações na área de arqui- ricos ou metodológicos de Boris Kossoy,
vo e d o c u m e n t a ç ã o . Ana Mauad, Aline Lopes Lacerda e Mau-
O tema deste volume - a fotografia - é rício Lissovsky e o estudo histórico de
dos mais o p o r t u n o s . Ao longo deste sé- Helouise Costa sobre a incorporação da
culo, o ato de fotografar, além de fasci- fotografia às revistas ilustradas. Maria
nante, tornou-se hábito e necessidade, Inez Turazzi, S o l a n g e Ferraz, Vânia
Carneiro de Carvalho comentam álbuns sobre a fotografia no Rio de Janeiro e
fotográficos e Maria Lúcia Cerutti o acer- São Paulo, dois dos centros mais ativos,
vo do Arquivo nacional.Por fim, mas não nesta área, no Brasil. (Intencionalmente
m e n o s importante, Joaquim Marcai de náo foi abordado o aspecto da preserva-
Andrade, Márcia Oliveira e Solange de ção física, o que será feito num dos
próximos número s da revista, que trata-
Zúniga, esta última no "perfil institucio-
rá da c o n s e r v a ç ã o e r e s t a u r a ç ã o de
nal", dão-nos uma notícia comentada
documentos).Organizado graças à cola-
dos importantíssimos projetos instituci-
boração d e s t e s profissionais, o presen-
onais r e s p e c t i v a m e n t e da Biblioteca
te volume é também uma homenagem a
Macional, do Itaú Cultural e do Centro eles e a e s s e s notáveis fotógrafos que
de Preservação e Conservação Fotográfi- fixaram preciosas imagens do nosso
ca do IBAC. passado. Sem essa gente, o conheci-
Em suma, tem-se uma síntese do estad o mento da história nacional ficaria muito
atual da pesquisa e do conhecimento mais difícil.

M A R C U S V E N Í C I O T. R I B E I R O
Editor
PEDRO VASQUEZ
Fotógrafo, poeta e historiador da fotografia.
Autor de Dom Pedro II e a fotografia no Brasil
e Fotógrafos pioneiros no Rio de Janeiro.

Ires I^lestires da
Jr otegrairia lorasileiira
mo écuilo -X.ÍJx

Eu não pedia outra coisa. profundidade suas respecti-


(E o q u e ele fez f o i negar).
vas contribuições, mas fazer
Por ela daria a vida.
Mas, sem ao menos me olhar, quando muito u m a p e q u e n a
O mercador escarnecia: elegia a o s três, na esperança
"Brasil?" - girava um botão - de suscitar em outros o de-
'Nada mais hoje haveria,
Madame, sejo d e melhor conhecer
Que eu lhe pudesse mostrar?" e estudar a obra d e s t e s
EMILY-DICKIMSON mestres.
Gostaria d e consignar aqui m e u s since-

N
o m
m o rm
r e n t o em que o Arquivo
r i a c i o>nal
r relança s u a revista ros agradecimentos a o s pesquisadore s
\cervo,
Acerve parece-me oportuno Fernando Ponce d e Leon, a quem devo a
efetuar uma singela homenagem a três indicação correta do primeiro nome de
pioneiros d e nossa fotografia. Homens Francisco Du Bocage b e m como outras
valiosas informações, e Solange Ferraz
que, em cidades distintas - Belém, Reci-
de Lima, por m e facilitar o a c e s s o a o s
fe e São Paulo - ajudaram a escrever os
álbuns de retratos de Militão - ainda em
primeiros capítulos da história da foto-
poder de sua família - e por me fornecer
grafia brasileira.
gentilmente a s r e p r o d u ç õ es d o s retra-
Mão tenciono, no entanto, esmiuçar em t o s aqui publicados.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 03-12, jan/dez 1993 - pag. 3


A C E

FRANCISCO DU BOCAGE ponto de s e auto-intitular "photographo


( A T I V O E N T R E 1 8 <> 2 E 1<)30) artista" no carimbo s e c o aposto às suas
imagens, Francisco Du Bocage inscreve-

O
nome mais importante da foto-
grafia pernambucana na virada se na tradição dos fotógrafos de biogra-
do século XIX é o de Francisco fia nebulosa do século XIX. Autor de
Du Bocage, infelizmente ausente de to- "importante d o c u m e n t a ç ã o de Olinda e
dos os compêndio s sobre a história da Recife nas duas primeiras d é c a d a s do
fotografia no Brasil, inclusive de Velhas século XX, Bocage parece ter sido con-
Fotografias Pernambucanas 1851-1890, de tratado pela própria administração para
Gilberto Ferrez, pois sua ação situa-se documentar a s demolições e o anda-
fora do período circunscrito por esta m e n t o d a s c h a m a d a s ' o b r a s do p o r t o '
obra. Esta é, portanto, a primeira vez (governos Herculano Bandeira, Dantas
que o público leitor brasileiro terá a Barreto e Manuel Borba). São sempre
oportunidade de conhecer seu trabalho, p a n o r a m a s que sublinham 'horizontes
que j á mereceu atenção nos Estados compridos do Recife' (Joaquim Mabuco),
Unidos em 1988, q u a n d o o incluí na é que Olinda, por sua topografia aciden-
exposição Brazilian Photography in the tada, aproxima magnificamente e s p a ç o s
Nineteenth Century, a p r e s e n t a d a no nem sempre a s s o c i a d o s em nossa ima-
Houston Foto Fest e no Maxwell Museum ginação." 1
of Anthropology da University of New O nome de Francisco Du Bocage aparece
México, em Albuquerque. pela primeira vez na imprensa recifense
Preciosista, preocupad o em manter o em 1892. Em 1894, ele ressurge, associ-
alto padrão estético de seu trabalho, a ado desta vez ao Centro Fotográfico de

Francisco Du Bocage, Ponte sobre o rio Capibaríbe, Recife, c. 1895.


Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

pag. 4, jan/dez 1993


Pernambuco; em 1896, ele teria seu ta- longas películas que utilizava na máqui-
lento n o v a m e n t e louvado, s e n do classi- na de lente 'olho do d i a b o ' , ...costu-
ficado de "hábil profissional...cujos tra- m e s p e r n a m b u c a n o s , velhas ruas, pré-
balhos são bem conhecidos nesta cida- dios meio demolidos pelo camartelo,
de". Embora não existam referências belas igrejas, j á quase derrubadas pelos
mais precisas sobre estas citações, coli- urbanistas a p r e s s a d o s , a s novas linhas
gidas pelos p e s q u i s a d o r es da Fundação do cais, a ossatura metálica dos arma-
Joaquim Nabuco por ocasião da monta- zéns do porto...Coleção tão expressiva,
gem da exposição Olinda e Recife em hoje tào poética - não evocasse os doces
1981, vale a pena transcrever mais duas vagares das ruas do velho Recife, as
n o t a s extraídas r e s p e c t i v a m e n t e d a s gameleiras e o rio ainda náo absorvido
edições de 11 de julho e 9 de agosto de pela paisagem marginal."
1942 do jornal -4 Folha da Manhã: "Boca- As imagens citadas pelos redatores anô-
ge... deixou a mais fiel documentaçã o nimos referem-se ao trabalho desenvol-
do Recife durante as duas primeiras dé- vido por Bocage nas d u a s primeiras dé-
cadas do século. Era um estrangeiro a cadas deste século. As fotografias aqui
quem o Recife prendera; aqui teve foto- incluídas, ao invés de retratarem uma
grafia, constituiu família, trabalhou cidade em decadência como a descrita
e morreu. E deixou registra- acima, mostram Recife no ápice da bele-
da na película, umas za que lhe valeu a

Francisco Du Bocage, Praça do Conde d'Eu (atual Maciel Pinheiro), Recife, c. 1895.
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 03-12, jan/dez 1993 - pag. 5


A C E

qualificação de 'Veneza dos trópicos'. arquitetura; e, ainda que sejam, na mai-


Embora perfeitamente conservadas sob or parte, c ô m o d a s e a s s e a d a s, há ape-
o ponto de vista químico, e s s a s fotogra- nas poucos anos ainda algumas delas
fias foram vandalizadas por um dos - náo tinham vidraças'. 2 . Porém, durante
infelizmente n u m e r o s o s - dilapidadores o s a n o s em q u e ele estava à frente de
do patrimônio fotográfico brasileiro, que seu estúdio, "Belém modernizava-se, ci-
não hesitavam em cortar, praticar a s vilizava-se. Petit Paris' - batizaram-na
profanações as mais diversas, ou sim- os da terra, com um olho na Cidade Luz
plesmente destruir inteiramente a s ima- e outro nas águas barrentas do Guamá,
gens que lhes caíam nas màos. Mo en- vendo-a aformosear-se com a abertura
tanto, a força do trabalho de Bocage é de novas avenida s - ' b o u l e v a r d s ' , c o mo
tào evidente, que mesmo a contempla- então se chamavam - respigadas pelo
ção de fotografias como estas, com o verde das mangueiras, e com a leveza
e n q u a d r a m e n t o original adulterado pela neoclássica dos vistosos p a l a c e t es que,
supressão de parte das margens (prova- aqui e ali, iam s e s u b s t i t u i n d o à s
velmente para retirá-las de um álbum), familiares rocinhas e ao casario coloni-
basta para tornar patente que seu nome al." 3
deve realmente ser inscrito entre os dos
Sensível à espetacular metamorfose que
melhores autores de vistas urbanas da
a cidade ia sofrendo aceleradament e a
fotografia nacional.
ponto de rivalizar em beleza e riqueza
Assim como a de Marc Ferrez e a de com diversas cidades européias, Fidanza
Augusto Malta, a carreira de Francisco t o r n o u - s e o que Victorino Coutinho
Du Bocage parece ter sido bastante lon- Chermont de Miranda definiu como "o
ga, prolongando-se por quatro d é c a d a s , retratista por excelência de Belém na
pois a Biblioteca Nacional possui uma passagem do século" 4 Representante na
vista parcial de Olinda de sua autoria cidade de Q. Huebner ôf Amaral, que
realizada em torno de 1930. tinham estúdio em Manaus e editaram
diversos postais com fotografias suas,
FELIPE AUGUSTO FIDANZA Fidanza tinha tal qual os fotógrafos de
(ATIVO ENTRE 1867 E 1905) seu t e m p o , o retrato como atividade
u a n d o Fidanza instalou-se básica de sobrevivência, dedicando no
como fotógrafo em Belém, em entanto às vistas u r b a n a s de Belém o
1867, a cidade ainda não atin- melhor de seu talento. Obteve consagra-
gira o esplendor que viria a conhecer ção em amba s especialidades, confor-
graças ao ciclo da borracha, podendo me atesta o depoimento ufanista de
então ser descrita como um local onde Inácio de Moura em seu relatório sobre
não existe "nenhum m o n u m e n t o notá- a Exposição Artística e Industrial do Pará
vel; a ruas são regulares; as casas, em em 1895:"Vimos duas coleções de traba-
geral, são construídas de pedra, mas lhos fotográficos. São dois quadros, em
não oferecem nenhum ornament o de um dos quais se acham diversos retratos

pag. 6, jan/dez 1993


R V O

de alguns h o m e n s notáveis deste Esta- Brazil e Fotografia no Brasil 1840-1900.


do e no o u t r o diversas paisagens de bem c o m o em Dom Pedro II e a fotografia
belíssimos arrabaldes desta capital. Te- no Brasil, do autor deste artigo.
m o s nesta capital três excelentes foto- Merecem igualmente destaque na pro-
grafias: Qirard (Qirard Sf Freire), Fidanza dução de Fidanza, as numerosas vistas
(Felipe Augusto) e Oliveira (Antônio de). urbanas que fez para os álbuns adminis-
Em t r a b a l h o s fotográficos nào t e m e m o s trativos, editados pelo Governo do Pará,
a c o m p e t ê n c i a dos melhores artistas da nos quais a cidade era exaustivamente
Capital Federal, e pouco podemos d o c u m e n t a d a , desde os aspectos inter-
a p r e n d e r da E u r o p a e d o s Estados nos e externos do Teatro da Paz que
Unidos." 5 m e r e c i a os e p í t e t o s de 'suntuoso',
Seu d e p o i m e n t o pode parecer exagera- ' m a g n í f i c o ' e ' g r a n d i o s o ' em s e u t e m -
do. C o n t u d o , no que concerne a Fidanza, po, até os demais i m p l e m e n t o s , edifíci -
é p l e n a m e n t e j u s t i f i c a d o , pois foi ele os e m o n u m e n t o s que f o r a m sendo
um autor de grande talento, notadamente erigidos à medida em que o ciclo da
expresso nas fotografias que registram o borracha chegava ao seu apogeu. Todos
Arco do T r i u n fo erigido em Belém por os principais prédios p ú b l i c o s e logra-
ocasião da visita do i m p e r a d o r dom d o u r o s f o r a m assim r e g i s t r a d o s por
Pedro II à cidade, em setembr o de 1876. Fidanza, da igreja de Santa Maria da
Náo as r e p r o d u z i m o s a q u i , por que j á Graça, à Sé de Belém, ao palacete o n de
foram impressas e m dois livros de Gil- funcionava a Assembléia, a Câmara Mu-
berto Ferrez, Pionner Photographers of nicipal e ao Tesouro M u n i c i p a l. Docu-

ar

- & &

l'ARA

Felipe Augusto Fidanza. Docas do Reduto, Belém, c. 187S.


Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 0 3 - 1 2 . j a n / d ez 1993 - pag. 7


A C E

mentação que retratou então a cidade trabalho de Militão Augusto de Azevedo,


em sua melhor fase, a n t e s que a produ- consubstanciado no Álbum Comparativo
ção asiática da borracha, consolidada da Cidade de São Paulo 1862-1887, chama
em 1912, viesse a empobrecê-la. a atenção o ineditismo de sua proposta.
Homem inteligente, dotado de espírito
MIL1TÃO AUGUSTO DE AZEVEDO arguto, ele teve consciência da impor-
(1837-1906) tância de seu achado, como deixou bem
claro ao escrever: "como Verdi despe-

A
o fotografar a cidade de São
dindo-se da música escreveu o seu Otelo,
Paulo de forma sistemática,
eu quis despedir-me da fotografia fazen-
retornando aos m e s m o s locais
do o meu. É um álbum comparativo de
a p ó s um intervalo de 25 anos, Militão
São Paulo de 1862 e 1887. Parece-me
registrou a metamorfose daquela cida-
um trabalho útil, e talvez o primeiro que
dezinha provinciana na metrópole do
se tem feito em fotografia, porque nin-
café, embrião da 'Paulicéia.Desvairada'
guém terá tido a pachorra de guardar
dos modernistas . Ou, como observou clichês de 2 5 anos. Tenho trabalhado
Carlos Lemos com mais pertinência téc- muito e creio que nada farei. Conheces
nica, registrou a transformação da "cida- meu gênio: não sirvo para pedir. Neste
de de taipa em cidade de tijolos - . 6 trabalho andam um bocadinho de amor
Seja qual for a maneira de encarar o próprio do artista e gratidão ao lugar em

•^Afc

Felipe Augusto Fidanza, Boulevard da República, Belém, c. I87S.


Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

pag. 8, jan/dez 1993


R V O

que estou há 25 anos.' 7 passagem pelo teatro e pela ópera entre


Essa refeência ao "lugar em que estou há 1858 e 1862, data em que a b a n d o n ou a
25 anos" explica- se: o fotógrafo cuja carreira teatral e realizou o p r i m e i ro gru-
obra tornou-se s i n ô n i m o visual de Sào po de fotografias do que viria a ser mais
Paulo era em verdade carioca! A mençáo tarde o á l b u m c o m p a r a t i v o. Neste perío-
a Verdi t a m b é m tem significado especial, do i n i c i a l, ele se dividi a entre o teatro e
pois o j o v e m Militáo teve uma breve a fotografia, começando como assisten-

Militáo Augusto de Azevedo, Página do álbum de registro de clientes, São Paulo, 1877.
Coleção Raquel de Azevedo Salles.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n° t - 2 , p. 0 3 - 1 2 , j a n / d e z 1993 - pag. 9


A C E

te no estúdio de Carneiro fie S m i t h , mais XIX. A derradeira imagem merecia t o d o


tarde c o m razão social alterada para um estudo específico, tal a riqueza de
Carneiro & Gaspar. i n f o r m a ç õ e s que p o d e m o s extrair deste

Depois de o p t a r d e f i n i t i v a m e n t e pela relacionamento senhor-escravos. Chama

fotografia, especializou-se no retrato, a atenção, como sempre nas fotografias

principal tema de interesse da magra de escravos, os pés descalços, evidên-

clientela local, capaz de sustentar ape- cia maior da condição servil, a tal p o n t o

nas cinco estúdios na cidade. Mesta oca-


sião, São Paulo t i n h a pouco mais de 22
m i l habitantes , e quando Militão encer-
rou suas atividades em 1885, esta popu -
lação havia apenas d o b r a d o , não alcan-
çando a casa das c i n q ü e n t a m i l almas;
existindo então somente seis estúdios
em f u n c i o n a m e n t o , sendo que em 1883
este n ú m e r o havia caído para três.

Estas cifras t o r n a m ainda mais formidá-


vel o impacto de seu legado fotográfico,
pois durante sua carreira de retratista
ele fotografou c o m p r o v a d a m e n t e mais
de 12.500 pessoas, mantendo registro
detalhado de t o d a esta f e n o m e n a l clien-
tela. A título de curiosidade , reproduzi-
mos aqui uma das páginas dos álbuns
em que ele costumava catalogar os re-
tratos, com uma foto no formato carte
cabinet cercada por 25 outras em forma-
to certe-de-visite (das quais vemos ape-
nas uma parcela da imagem o r i g i n a l , o
rosto). Mo canto inferior direito desta
página, sob a foto 8 . 4 4 7 , p o d e m o s ler
'não pagou", assinalando um dos m u i t o s
calotes que fizeram c o m que Militão se
desgostasse da a t i v i d a d e fotográfica
comercial.

O retrato da escrava que nos contempla


melancolicamente com um olhar de
m u d a reprovaçáo, é u m raríssimo exem-
plo de n ú , tema praticamente inexistente
na pudica fotografia brasileira do século

pag. 10. jan/dez 1993


R V O

que a primeira posse almejada pelo es- nalidades de seu t e m po - a começar pelo
cravo alforriado era um par de calçados. imperador dom Pedro II - até os mais
Estas i m a g e n s c o n s t i t u e m e x e m p l o s anônimos personagens . É um importan-
pouco conhecidos da atividade de Militâo tíssimo legado, infelizmente obnubliado
como retratista. Atividade torrencial e pelas vistas urbanas de seu decantado
diversificada, durante a qual ele fotogra- álbum comparativo, aguardando um pes-
fou d e s d e as mais importantes perso- quisador apaixonado capaz de redefinir

Militâo Augusto de Azevedo, Senhor com escravos. São Paulo, 1879. Coleção Raquel de Azevedo Salles

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2. p. 03-12, jan/dez 1993 - pag. 1 1


sua verdadeira dimensão como retratis- sociedade paulista da segunda metade
ta, autor de um rico retrato humano da do século XIX.

N O T A S

1. Eduardo Bezerra Cavalcanti, In CATÁLOGO da exposição Olinda e Recife, Recife: Fundação


Joaquim Mabuco, 1981.
2. DENIS, Ferdinand . Brasil, São Faulo:Editora da Universidade de São Paulo; Belo Horizonte:
Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1980. p. 3 1 1 .
3. MIRANDA. Victorino Coutinho Chermont de . A memória Paraense do Cartão Postal 1900-1930. Rio
d e Janeiro: Editora Liney, 1986. p. 17.
4. MIRANDA,Victorino Coutinho Chermont de . Op. cit., p. 22.
5. FERREZ,Gilberto. A fotografia no Brasil 1840-1900. Rio d e Janeiro: Fundação Nacional de Arte Sr
Fundação Nacional Pró-Memória. 1985. p. 167.
6. LEMOS,Carlos . A arquitetura que Militão de Azevedo fotografou em São Paulo, In: AZEVEDO,
Militão Augusto de. Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo 1862-1887. São Paulo: Secretaria
Municipal de Cultura, 1981. p. 27.
7. AZEVEDO. Militão Augusto de. Carta dirigida a seu amigo Portilho em l s d e j u n h o de 1887, citada
por llka Brunhilde Laurito. São Paulo em três tempos, São Paulo;Casa Civil, Imprensa Oficial,
Secretaria de Cultura e Arquivo de Estado, 1982.

A B S T R A C T
The article is an introduction to the work of three pioneers of Brazilian photography. One , still virtually
unknown, is Francisco Du Bocage, who worked in Recife between 1892 and 1930. The other, Felipe Augusto
Fidanza, was the photografer with the most distinguished performance in Amazon region, having worked
in Belém between 1867 and 1905. And finally, Militão Augusto de Azevedo, author of Álbum Comparativo da
Cidade de São Paulo 1862- íSÔ7hashisimportant work as portraitistfoccused, since hehas been responsible
for an impressive colection of 12.500 pictures.

R É S U M É
Cet article vise à introduire l'oeu vre de trois pionniers dela photographie brésiliènne. Le premier, Francisco
Du Bocage, actif au Recife entre 1892 et 1930, reste encore virtuellement inconnu. Le deuxieme, Felipe
Augusto Fidanza, a été le photographe le plus actif à Ia region amazonique, ayant travaille à Belém entre
1867 et 1905.Le troisième, Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), auteur de le Álbum Comparativo da
cidade de São Paulo 1862-1887, a un autre important cõté de son travaille focalisé: celui de portraitiste,
responsable pour une colection remarquable comprenant 12.500 registres.
Boris Kossoy
Professor Doutor do Departamento de Artes da faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UHESP).

M enmoria
e I d e o l o g i a JT ottográíicas
Oeciiraiiíio a realiclatle
i n t e r i o r cias innageins tio passado

INTRODUÇÃO ação sobre os outros h o m e n s


A IMAGEM e a natureza, por outro, ela
FOTOGRÁFICA sempre se prestou e se
COMO SUPORTE prestará aos mais di-
ferentes e interessei-
DO PROCESSO DE
ros usos dirigidos.
CRIAÇÃO DE REALIDADES
As diferentes ideologias, onde quer que

D=
:sde seu surgimento at é o s
atuem, sempre tiveram na imagem foto-
IOSSOS dias, a fotografia tem
gráfica um poderoso instrumento para a
sido aceita e utilizada como
prova definitiva, ' t e s t e m u n h o da verda- veiculação das idéias e da c o n s e q ü e n t e
d e ' do fato ou d o s fatos. Graças à sua formação e manipulação da opinião pú-
natureza físico-química - e hoje eletrôni- blica, particularmente a partir do mo-
ca - de registrar a s p e c t o s (selecionados) mento em que os avanços tecnológicos
do real, tal como estes de fato se pare- da indústria gráfica possibilitaram a mul-
cem, a fotografia ganhou elevado estatus tiplicação massiva de imagens através
de credibilidade. Se, por um lado, ela dos meios de informação e divulgação.
tem valor incontestável ao proporcionar E tal manipulação tem sido possível jus-
c o n t i n u a m e n t e a todos , em todo o mun- tamente em função da mencionada credi-
do, fragmentos visuais q u e informam as bilidade que a s imagens têm j u n t o à s
múltiplas atividades do homem e de sua m a s s a s , para as quais s e u s c o n t e ú d o s , -

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 13-24, jan/dez 1993 - pag. 13


A C E

em geral acompanhados de legendas e tos conceituais e m e t o d o l ó g i c o s , bem


t e x t o s ' i n f o r m a t i v o s ' - são aceitos e c o m o , a possibilidade de novas aborda-
assimilados c o m o a expressão da verda- gens de análise dos temas específicos
de, neste sentido, são inúmeros os exem- nesta área. 1 Quaisquer que sejam os
plos de utilização da fotografia para a c o n t e ú d o s das imagens devemos consi-
veiculaçáo da propaganda política , dos derá-las sempre c o m o fontes históricas
p r e c o n c e i t o s raciais e religiosos, entre de abrangência m u l t i d i s c i p l i n a r . Fontes
o u t r o s usos d i r i g i d o s . de informaçã o decisivas para seu res-

Pesquisadores dedicados aos diferentes pectivo emprego nas diferentes verten-

gêneros de história,apesar de reconhe- tes de i n v e s t i g a ç ã o histórica, além,

cerem u l t i m a m e n t e na iconografia uma o b v i a m e n t e , da própria história da foto-

possibilidade interessante para a grafia. As imagens fotográficas, entre-

reconstituição histórica, por vezes se t a n t o , não se esgotam em si mesmas,

equivocam no emprego das imagens fo- pelo contrário,elas são apenas o p o n t o

tográficas em suas investigações, prova- de partida, a pista para t e n t a r m o s des-

v e l m e n t e , por não alcançarem as peculi- vendar o passado. Elas nos mostram um

aridades estéticas desta forma de ex- fragmento selecionado da aparência das

pressão, que difere na sua essência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal c o m o

demais representações gráficas e pictó- foram esteticamente congelados num dado

ricas. Equívocos o c o r r e m pela desinfor- momento de sua existência/ocorrência.

mação conceitua i q u a n t o aos fundamen- Assim c o m o as demais fontes de infor-


tos que regem a expressão fotográfica, o mação h i s t ó r i c a s , as f o t o g r a f i a s não
que os leva a estacionarem apenas no p o d e m ser aceitas i m e d i a t a m e n t e c o m o
plano iconográfico, sem perceberem a am- espelhos fiéis dos fatos. Assim c o m o os
bigüidade das informações contidas nas demais d o c u m e n t o s elas são plenas de
representações fotográficas . Resulta de ambigüidades, portadoras de significa-
tal d e s c o n h e c i m e n t o ou despreparo, o dos não explícitos e de omissões pensa-
emprego das imagens do passado ape- das, calculadas, que aguardam pela com-
nas c o m o ' i l u s t r a ç õ e s ' dos t e x t o s : o petente decifração. Seu p o t e n c i a l infor-
potencial do documento não é explorado, m a t i v o poderá ser alcançado na m e d i d a
suas informações não são decodificadas, em que esses fragmentos f o r e m contex-
posto que, não raro, se encontram além da tualizados na t r a m a histórica em seus
própria imagem.lsto t a m b é m é válido para m ú l t i p l o s d e s d o b r a m e n t o s (sociais, po-
a própria história da fotografia, que, de líticos, e c o n ô m i c o s , religiosos, artísti-
sua parte, não pode mais prosseguir cos, culturais) que circunscreveu no tem -
enclausurada em seus m o d e l os clássi- po e no espaço o ato da t o m a d a do
cos, e s i m , buscar e l e m e n t o s consisten- registro.Caso contrário essas imagens
tes para a compreensão de seu o b j e t o permanecerão estagnadas em seu
de estudo . É surpreendente a raridade silêncio:fragmentos desconectados da
de discussões teóricas acerca de aspec- memória, meras i l u s t r a ç õ e s ' a r t í s t i c a s '

pag. 14, jan/dez 1993


R V O

do p a s s a d o . 1. A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM
J
A fotografia tem uma realidade própria DO ' O U T R O '

A
que nào correspond e necessariamente possibilidade de multiplica-
à realidade do assunt o fotografado no ção de imagens através da lito-
contexto da vida passada, nem, muito grafia, surgida na passagem do
m e n o s , ao uso posterior que se fez des- século XVIU para o XIX e, particularmen-
ta imagem. O realismo fotográfico se te da fotografia algumas d é c a d a s de-
refere a p e n a s à realidade do documento pois, representou um marco decisivo na
fotográfico: a segunda realidade. Disto história do saber. Com o aperfeiçoa-
decorre um aspecto que me parece fun- mento das técnicas de reprodução, cria-
damental para a reflexão: diz respeito se uma ampla audiência internacional
ao processo de criação de realidades que a consumidora de imagens. Imagens de
leitura da fotografia proporciona j u n t o todos os tipos, embora seja oportuno
aos mais diferentes receptores, ao lon- observar que um particular interesse
go do t e m p o , em conformidade com o sempre existiu em relação àquelas dos
repertório cultural, a s posturas ideológi- países distantes e d e s c o n h e c i d o s da
cas, interesses econômicos e políticos, Ásia, África e América do Sul. Com a
c o m p r o m e t i m e n t o s e convicções indivi- abertura dos portos em 1808,o Brasil
duais. abre-se de súbito para o mundo exteri-
A complexa questão da interpretação or, rompendo a clausura em que fora
d a s imagens - a busca de seus significa- mantido durante três séculos.Rompe-se,
dos, sua realidade interior- continua sen- também, o antigo sistema colonial. Mo-
do o fascinante desafio intelectual que vido por interesses comerciais e científi-
tem alimentado n o s s a s incursões teóri- cos o europeu viu-se atraído pelo vasto
cas e estéticas nos últimos anos.A opor- território da América portuguesa, até
tunidade do Colóquio sobre a Investiga- então, praticamente d e s c o n h e c i d o , um
ção da Fotografia Latinoamericana, me verdadeiro laboratório vivo a ser estuda-
motivou a revisitar trabalhos anteriores do pelos naturalistas, e um mercado
basicamente pelo fato de haver, entre potencial a ser explorado pelas n a ç õ e s
eles, um fio condutor onde busco conti- em franca industrialização.
n u a m e n t e avaliar, analisar, refletir en- A partir daquele momento chegam ao
fim, acerca do valor, alcance e limites Brasil expedições científicas e artistas
das informações contidas nas imagens da Europa com a tarefa de observar e
fotográficas. 2 retratar, em textos e imagens, a flora, a
A partir de uma seleção de imagens do fauna, as riquezas minerais, o h o m e m
passado, pinçadas de diferentes momen- da cidade e da selva, a sociedade, en-
tos e temáticas da vida brasileira, vere- fim, o cotidiano do outro.*
m o s como o c h a m a d o ' t e s t e m u n h o fo- I n t e r e s s a v a ao viajante estrangeiro
tográfico' se presta à construção/criação registrar o diferente, pois desta forma
de realidades. confirmava sua identidade de homem bran-

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2, p. 13-24, jan/dez 1993 - pag. 15


A C E

co europeu. A iconografia, neste sentido, da A m é r i c a do Sul, o s chamados


representou papel fundamental na me- costumbristas - contribuiu para a confir-
dida em que era veículo de divulgação mação da imagem idealizada do país
da imagem do outro, apresentada como tropical. Uma visão r o m a n c e a d a o n d e o
' n o v i d a d e ' . De tal projeto de d o c u m e n - cotidiano do negro, seja na fazenda ou
tação visual d e p r e e n d e - se um 'olhar na cidade, transcorre aparentemente
e u r o p e u ' que s e mostra ideologicamen- a m e n o . Salvo raras e x c e ç õ e s , a mensa-
te em consonância com muitos dos rela- gem comunicada ao espectador alheio é
t o s de viajantes que percorreram o Bra- a de tranqüilidade.
sil ao longo do século XIX, e que aborda- O fotógrafo Victor Frond exemplifica bem
ram a questão do negro e da escravidão. esta visão. 5 A estampa A cozinha na roça.
A iconografia produzida pelos desenhis- de sua autoria, tirada por volta de 1859,
tas, ilustradores e fotógrafos que traduz perfeitamente a imagem mental
estiveram no Brasil - e em outros países pré-concebida do europeu. Entre a cena

A cozinha na roça. Litografia de Benoist a partir de fotografia de victor Frond.


In: Ribeyrolles, C; Frond, V. Brazil pittoresco: álbum de vistas, panoramas...
Paris, Lemercier, 1861 (Estampa 55). Biblioteca Nacional.

pag 16, jan/dez 1993


R V o

c a p t a d a ' pelo fotógrafo na Bahia e os zidas por outros fotógrafos. Essas ima-
prováveis r e t o q u e s ' e x e c u t a d o s pelo gens, construídas em seu conteúdo e
litógrafo em Paris, uma nova realidade foi padronizadas em sua apresentação (atra-
criada. Esta construção imaginária sinte- vés da carte-de-visite, em voga à época),
tiza em sua composição, equilíbrio e eram levadas para a Europa como 'lem-
exotismo o ideário estético de represen- brança do Brasil', reforçando assim,
tação que melhor atendia à s expectati- estereótipos e alimentando mitos.
vas etnocentristas do consumidor euro-
peu de imagens. É esta a imagem ideali- 3. A FOTOGRAFIA NA DIFUSÃO
zada, captada e produzida segundo o DO IDEÁRIO REPUBLICANO. *
olhar europeu.
Uma verdadeira revolução cultural pa-
trocinada pela elite da sociedad e brasi-
2. A EXPLORAÇÃO DA IMAGEM leira tem lugar no apagar das luzes do
DO HOMEM " Império e do século XIX. É interessante

O
fotógrafo Christiano Júnior, 7 ao refletirmos como as r e c e n t e s inovações
retratar os negros urbanos do
Rio de Janeiro, escravos ou al-
forriados, removeu-os de seus próprios
contextos de vida e trabalho. Criou situ-
a ç õ e s e moldou gestos, colocando es-
ses h o m e n s e mulheres na condição de
objetos diante de um cenário artificial,
a p e n a s com alguns elemento s a lembrar
os ofícios e atividades de cada um, trans-
formando-os assim em modelos fotográfi-
cos.
Tais fotografias eram anunciadas pelo
fotógrafo como "grande coleção de cos-
t u m e s e tipos de pretos, coisa própria
para quem se retira para a Europa". 8
Fotografias com o m e s m o espírito de
exploração da imagem do negro (escra-
vo ou liberto) e do índio, seja com fins
pseudo-cientificos (em função d a s teori-
a s racistas que pregavam a superiorida-
de biológica do homem branco, em moda
na Europa), seja e n q u a n t o ' i l u s t r a ç õ e s'
dos s e r es exóticos que habitavam esta Christiano Júnior.
Fotografia de escravo (?) não identificado.
parte do Movo Mundo (souvenirs ideais
Rio de Janeiro, 1865c, carte-de-visite.
para os turistas), foram t a m b é m produ- Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 13-24, jan/dez 1993 - pag. 17


A C E

da ciência e da técnica, mais especifica- e d i f i c o u o arraial de Canudos; aldeia de


mente no campo das comunicações, são barro erigida num traçado de becos e vielas.
assimiladas pela sociedade e pelo poder À crescente s i m p a t ia que o Conselheiro
nos anos que se seguem à Proclamaçáo exerceu sobr e as populaçõe s pobres das
da República. Porém, principalmente cidades vizinhas c o r r e s p o n d i a o t e m o r
como a fotografia, enquant o registro ex- de saques vivido pelos fazendeiros. Não
pressivo de um cenário u r b a n o , arquite- t a r d o u que a imprens a chamasse a aten-
t ô n i c o e social em processo de muta- ção contra o perigo político representa-
ção, se vê utilizada pelos meios de co- do pelo s fanático s ' i n i m i g o s da Repúbli-
municação impressa da época, e em que c a ' . Entre 1896 e 1897 Canudos resistiu
medida se refletirã o nessas imagens os a quatro expedições m i l i t a r e s , das quais
anseios de modernidade daquela participaram mais de doze m i l h o m e n s . "
elite.Existe, nesses p r i m e i r o s anos d o De nada valeram os p r i n c í p i o s estratégi-
novo regime, u m a necessidade i m p e r i o - cos de c o m b a te empregados pelas for-
sa de exaltação do c o n t e ú d o s i m b ó l i c o ças regulares diante da esperteza dos
da ' o r d e m e p r o g r e s s o ' . revides dos sertanejos, (embora equipa-
I m a g e n s da o r d e m dos c o m armas rústicas e caseiras): ver-
dadeiras ações de guerrilha para as quais
São muitas as categorias e inúmero s os
os militares profissionais não estavam
temas que se prestam para testemunhar
preparados. Foi apenas na últim a incur-
o u ' i l u s t r a r ' um i d e a l , uma causa. Neste
s e n t i d o , impõs-se registrar fotografica- são, após v i o l e n t o s c o m b a t e s que Canu-

mente aspectos de rebeliões que se ve- dos s u c u m b i u . Tragicamente.

rificaram na época: símbolos da desor- '....caiu no dia 5, (outubro de 1897), ao


dem. entardecer, quando caíram os seus úl-
Poderíamos t o m a r c o m o e x e m p lo o epi- timos defensores, que todos morreram.
10
sódio de Canudos , incidente ao qual Eram quatro apenas: um velho, dois
foi atribuído pelo governo uma conotação homens feitos e uma criança, na frente

político-ideológica. Tratava-se, na reali- dos quais rugiam raivosamente cinco


mil soldados..." 12
dade, de e l i m i n a r do mapa o aldeamento
de Canudos, no i n t e r i o r da Bahia, que Era absolutament e necessário ao novo
abrigava milhares de homens do campo regime ressaltar a bravura das forças do
de toda índole, chefiados pelo beato governo livrando o país dos fanáticos
Antônio Vicente Mendes Maciel, vulgar- s e g u i d o r e s do ' m o n a r q u i s t a ' Antônio
mente c o n h e c i d o c o m o A n t ô n i o Conse- Conselheiro. Coube ao governo federal
lheiro o u Bom Jesus Conselheiro. d i r e c i o n a r ao p o v o a ' l e i t u r a ' da Cam-
Ao longo de vinte anos, entre 1876 e panha de Canudos segundo a ótica da
1 8 9 6 , o Conselheiro p e r a m b u l o u pelo vitória 'do bem sobre o mal'.
i n t e r i o r d o Nordeste e a r r e g i m e n t o u u m No Rio de J a n e i r o , meses d e p o i s , o ho-
numeroso grupo de 'fiéis' que, mais m e m u r b a n o , distante dos a c o n t e c i m e n -
tarde, comporia a população que tos sangrentos do i n t e r i o r baiano, pre-

pag. 18, jan/dez 1993


R V O

enchia seus m o m e n t o s de lazer 'assis- Antes, ao amanhecer daquele dia, co-


t i n d o ' as cenas de "toda a Guerra de missão adrede escolhida descobrira o
Canudos tiradas no campo de ação pelo cadáver de Antônio Conselheiro.
fotógrafo e x p e d i c i o n á r i o FIávio de Bar- Jazia num dos casebres anexos a lata-
ros... através de ' p r o j e ç õ e s e l é t r i c a s ' , à da, e foi encontrado graças a indicação
rua de Gonçalves Dias, 46", conform e de um prisioneiro. Removida breve ca-
anúncio n u m j o r n a l local. Acrescentava mada de terra, apareceu no triste sudá-
rio de um lençol imundo, em que mãos
ainda o anúncio que, dentre os 2 5 qua-
piedosas haviam disparzido algumas
dros que c o m p u n h a m o espetáculo (sic),
flores murchas, e repousando sobre
o público poderia ver "o verdadeiro e fiel
uma esteira velha, de tábua, o corpo do
retrato do fanático Conselheiro, fotogra-
'famigerado e bárbaro' agitador. Esta-
fado por o r d e m do general Artur Os- va hediondo. Envolto no velho hábito
,3
car..." azul de brim americano, mãos cruza-
A ordem se via finalmente restaurada, e das ao peito,rosto tumefacto e esquáli-
do, olhos fundos cheios de terra... De-
a fotografia do Conselheiro morto emer-
senterraram-no cuidadosamente. Dádi-
ge como o t e s t e m u n h o d e f i n i t i v o : o ates-
va preciosa - o único prêmio, únicos
tado de ó b i t o do mal que afetava a Repú-
despojos... de tal guerral... Fotografa-
blica. A pena de Euclides da Cunha dá ram-no depois. E lavrou-se uma ata rigoro-
sentido ao retrato da m o r t e : sa firmando a sua identidade: importava
"O cadáver do Conselheiro. que o pais se convencesse bem de que

FIávio de Barros (autoria atribuída). O Conselheiro..., Canudos. Bahia, 1897.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2, p. 13-24. jan/dez 1993 - pag. 19


A C E

estava, afinal, extinto aquele tembilissimo equipamentos urbanos, o progresso


antagon/sta. '* oriundo da empresa cafeeira via estrada
Imagens do progresso de ferro, geradora também de um forte
Assim como interessava aos homens da comércio em expansão e da industriali-
República divulgar o espírito da ordem, zação que naquele momento se inicia-
importava também propagar a imagem va. Refletem também essas imagens a
de uma nova mentalidade que se forma- nova configuração da vida urbana e a
va em relaçáo ao progresso (material). A presença (implícita) da mão-de-obra
fotografia com objetivos promocionais - artesanal do imigrante europeu. A parti-
institucionais, comerciais, políticos, tu- cipação individual de cada um desses
rísticos, entre outros, - encontrou, a partir homens, mulheres e crianças se perdeu
do início do século XX, seu grande canal em meio a uma massa de anônimos que
de expansão através dos veículos de edificaram a cidade de São Paulo.
comunicação da época: as publicações Era imprescindível para a camada
oficiais, os cartões postais e a imprensa, enriquecida da sociedade paulistana da
particularmente as revistas ilustradas. época apagar os vestígios' coloniais da
As fotografias que o suíço de nascimen- multisecular capital de São Paulo. Igual-
to, Guilherme Qaensly (1843-1928), to- mente importante foi a necessidade de
mou de São Paulo na passagem do sécu- divulgar para o exterior a nova imagem de
lo l s explicitam visualmente a imagem do um estado promissor com o objetivo de
progresso paulista. Registros estetica- atrairá força-de-trabalho necessária para
mente equilibrados que enfatizam a a continua expansão da lavoura cafeeira.
transformação urbana na cidade que, Desde o princípio da década de 1890
em apenas uma década quase quadru- afluiu para São Paulo um expressivo
plicava sua população, chegando ao ano contingente de imigrantes, principalmen-
de 1900 com 240 mil habitantes, e se te italianos.Imagem expressiva de
.tornando o segundo maior núcleo Qaensly tomada nos cafezais paulistas,
populacional do país. provavelmente no ano de 1902, destaca
um especial fragmento onde se vê repre-
Trata-se de documentos iconográficos
sentado um grupo de colonos em plena
singulares que testemunham o período
colheita. No momento da foto, os colo-
em que se altera a feição colonial da
nos, também personagens do fotógrafo,
cidade, face a fatores novos de natureza
econômica, política e sócio-cultural. A se harmonizam visualmente ao carro de
nova fisionomia da cidade - cuidadosa- bois e a paisagem montanhosa ao fun-
mente documentada pela fotografia de do, por onde se estende o cafezahuma
Qaensly - reflete em sua arquitetura perfeita composição.
eclética (onde predominam as edifica- A serenidade que esta visão romântica
ções o f i c i a i s erigidas em ' e s t i l o ' do campo transmite, mascara, no entan-
neoclássico), no espraiamento em to- to, uma dura realidade escondida além
das as direções, nos melhoramentos e do documento. "Na virada do século, os

pag. 2 0 . j a n / d ez 1993
R V O

t r a b a l h a d o r e s emigrantes constituíam CONCLUSÃO

I
uma massa homogênea, submetida à números outros t e m a s fotográficos
condição mais ou m e n o s de miséria... que ilustram/documentam fatos e si-
r e n d i m e n t o s insatisfatórios... rígida dis- t u a ç õ e s em diferentes m o m e n t o s
16
ciplina de trabalho." Lamentavam os históricos poderiam ser aqui incluídos,
colonos das arbitrariedades dos fazen- (como, de fato, vem s e n d o objeto de
deiros: retenção de pagamentos, aplica- estudo mais abrangente que ora esta-
ção de multas que consideravam injus- mos desenvolvendo), com o objetivo de
tas e até casos de agressões físicas. 17 exemplificar e reforçar n o s s a s reflexões
conceituais. Mo que toca às atividades e
Em 1902, o governo italiano, através do
ao comportamento ético d o s fotógrafos
decreto Prinetti, proibia a imigração sub- do p a s s a do - assim como os do presente
sidiada para São Paulo, baseado em -, creio q u e seria o p o r t u n o lembrar
denúncias contidas nos relatórios de Francastel quando observa: ' A arte é
o b s e r v a d o r e s que constataram as péssi- para uns....um ganha-páo, para outros ê
mas condições de vida e trabalho a que um instrumento de expressão , de propa-
estavam sujeitos s e u s compatriotas nas ganda ou de dominação."' 8
fazendas de café. É óbvio que a fotografia se constitui
Fotos estéticas como esta Colheita do num excelente documento que preserva
café foram c e r t a m e n t e utilizadas como em si a memória d os cenários, persona-
instrumentos de propaganda pelos agen- gens e fatos da vida passada.Assim, os
tes de recrutamento de trabalhadores bancos informatizados de imagens, que
na Europa. Imagens deste tipo contribu- neste momento se criam, prestarão, cer-
íram para configurar no imaginário do tamente, importante serviço à comuni-
imigrante potencial, o perfil de um país dade científica.
que se representava farto e promissor, Contudo, a imagem fotográfica é fixa,
esperança d e uma nova vida; um argu- congelada na sua condição documental.
mento irresistível para o futuro colono Mão raro nos defrontamos com imagens
que almejava, em pouco tempo, fare q u e a história oficial, ou grupos interes-
1'America. Assim como esta, s u c e s s õ e s sados, se encarregaram de atribuir um
de ' f o t o s - t e s t e m u n h o ' funcionaram determinado significado, com o propó-
como imagens-simbolo de valores mo- sito de criar realidades e verdades.
rais de liberdade, ordem e progresso, Cabe a o s historiadores e especialistas
traduzidas em visões de esplendor e no e s t u d o d a s i m a g e ns a tarefa de
m o d e r n i d a d e . Esses símbolos se multi- desmontagem de construçõe s ideológi-
plicaram via imagens técnicas prestan- cas, materializadas em t e s t e m u n h o s fo-
do-se para a efetivação do projeto repu- tográficos. Decifrar a realidade interior
blicano e para realçar j u n t o à opinião das r e p r e s e n t a ç õ e s fotográficas, seus
pública o perfil épico do novo regime. significados ocultos, as finalidades para

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2, p. 13-24, jan/dez 1993 - pag. 21


A C E

as quais foram produzidas é a tarefa fotográfica ao longo da história.


fundamental a ser empreendida.
Somente teremos uma história da foto- Texto adaptado da conferência apresenta-
grafia que realmente contribuirá para o d a pelo A u t o r no Colóquio sobre a investiga-
conhecimento, quando soubermos re- ção da fotografia latino-americana, por o c a -
fletir com a devida profundidade acerca s i ã o do evento i n t e r n a c i o n a l F o t o F e s t ' 9 2 .
do uso que se tem feito da imagem Houston, Texas, março de 1 9 9 3 .

N O A

Tais aspectos essenciais, de a m p l i t u d e multidisciplinar, ainda aguardam por um debate


abrangente que vise, inclusive, questionar os estreitos e estéreis limites por onde tem trilhad o
a pesquisa nesta área do conhecimento. O assunto foi tratado mais amplamente por este Autor
em Fotografia e História. São Paulo-. Editora Ática, 1989. Ver. em especial, o capítulo: "História
da fotografia: metodologias da abordagem".
Essa preocupação teórica tem sido, continuamente, o b j e t o de minha reflexão e, dela busquei
estabelecer o arcabouço metodológico para o próprio fazer histórico, nas diferentes linhas de
investigação que tenho desenvolvido. Ver em especial, deste Autor, Hercules Florence 1833: a
descoberta isolada da fotografia no Brasil.São Paulo: Duas Cidades, 1 9 8 0 . ; "Hercule Florence,
1'inventeur en exil". I n : Colloque Internationale, Cerisy-La-Salle, 29 Septembre - l e r Octobre
1 9 8 8 . Les multipies inventions de Ia photographie.Paris: Ministère d e Ia C u l t u r e et de Ia
C o m m u n i c a t i o n / Mission du Patrimoine Photographique, 1989, pp. 73- 7 8 . Origens e expansão
da fotografia no Brasil; século XIX. Rio de Janeiro: MEC, Funarte, 1980; São Paulo 1900. São Paulo:
Kosmos, CBPO, 1988.
Este tema, que aborda a questão da imagem do negro, tal c o m o se viu representada através do
'olhar e u r o p e u ' , foi exaustivamente analisado em CARNEIRO, Maria Luiza Tucci e KOSSOY,
Boris. "Regards sur le noir: le noir dans 1'iconographie brésilienne du XIXe siècle; une vision
européenne".flevuede Ia Bibliothèque M a t i o n a l e n " 3 1 , Paris: 1 9 9 1 . p . 2 - 2 1 . Trata-se de pesquisa
empreendida pelos autores em 1988, por ocasião do Congresso Internacional - Escravidão,
realizado pela Universidade de São Paulo. A pesquisa, que deu margem à uma exposição
iconogràfica, f o i p r o m o v i d a pelo CEDHAL (Centro de Demografia Histórica da América Latina),
sob o patrocínio do CliPq (Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Em
1990 a exposição foi levada a Paris e apresentada na Maison des Sciences de 1'Homme e c o n t o u
com o apoio técnico desta Instituição e da Bibliothèque flationale de Paris.
. A historiografia voltada para estudos acerca da dominação da América pelos ibéricos e o impacto
d o encontro c om o h o m e m nativo, o ' o u t r o ' , tem valorizado, nos últimos anos, as concepções
formuladas por Todorov. Sobre o assunto ver de TODOROV, T.A conquista da América: a questão
do o u t r o . Tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1983; ainda do mesmo
autor, Nous et les autres: Ia reflexion française sur Ia diversité humaine.Paris.- Editions du Seuil,
1 9 8 9 . ; CERTEAU, M. de. "Etno-graphie, l'oralité, ou l e s p a c e de l'autre: L e r y M n . l / é c r i t u r e de
I H i s t o i r e . Paris: G a l l i m a r d , 1 9 7 5 .

pag. 2 2 . j a n / d e z 1993
R V O

5. Deve-se ao francês Victor Frond uma coleção significativa de vistas da vida rural no Brasil, além
de panoramas da cidade do Rio de Janeiro, Petrópolis e outras localidades e, ainda, retratos da
família imperial . Suas fotos, tomadas por volta de 1859, se prestaram logo a seguir à
reproduções litográficas que foram executadas em Paris por Benoist, Bachelier, Albrun , Ciceri,
Jacotett, Charpentier, entre outros, f r o n d encontrava-se estabelecido na rua da Assembléia, 3 4 /
3 6 , no Rio de Janeiro, entre 1858 e 1 862 . Nos meados da década de 1860 j á havia retornado
a França, onde se dedicou à atividades editoriais. Para maiores dados sobre Frond ver,
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci e KOSSOY, B o r i s , o p . c i t , p.20; WIEDEMAMN, Michel, 'Surquelques
livres illustrés de photographies au XIX s i è c l e M n : Les cahiers de Ia photographie. Paris:
1'Association de Critique Contemporaine en Photographie, n°6, p. 27-35, 1982.
A estampa A cozinha na roça, (litografia de Benoist, a p a r t i r d e uma fotografia), é uma das imagens
que c o m p õ e m a coleção de vistas do Brasil antes mencionada. Tal coleção daria ensejo ã
confecção de requintado álbum que serviria de ilustração ao texto do viajante Charles
Ribeyrolles. A obra foi publicada sob o título de Brazil Pittoresco, Álbum de vistas, paisagens,
costumes..., acompanhadas de três volumes... sobre a história, as instituições, as cidades, as fazen-
das... do Brazil, por Charles Ribeyrolles. Paris: Lemercier, 1 8 6 1 . (A imagem A cozinha na roça, que
corresponde a estampa n°.55 do á l b u m , foi reproduzida do acervo da Biblioteca nacional do Rio
de Janeiro).
6. Ver nota 5.
7. José Christiano de Freitas Menriques Júnior (1830-1902) era provavelmente português de
nascimento. A data de início de suas atividades não é precisa. Entretanto, em 1862 j á se
encontrava anunciando seus 'retratos photographicos sobre vidro, papel, panno e encerado' em
Maceió, Alagoas. Mo ano seguinte transfere-se para a capital do I m p é r i o , onde se torna
conhecido retratista. Foi inicialmente associado a Miranda (Fernando Antônio de Miranda) entre
1864 e 1865 e, a seguir, a Pacheco (Bernardo José Pacheco), c o m quem manteve o negócio,
aparentemente até 1875, data em que a firma 'Christiano Jr. de Pacheco' teria se dissolvido. Mo
ano seguinte, todavia, o fotógrafo faz seu último anúncio no tradicional Almanaque Laemmert
do Rio de Janeiro, desta vez sem sócio. Seu estabelecimento fotográfico, situado na rua da
Quitanda, 39, seria sucedido pelo citado Pacheco, j á então, associado aos irmãos Menezes. Apesar
de manter o estabelecimento do Rio de Janeiro que, era possivelmente administrado por
Pacheco, Christiano Jr., desde 1868, buscava expandir suas atividades na Argentina. Pesquisa-
dores locais o destacam pela fértil atividade que teve naquele país. Em 1871 recebeu a medalha
de ouro na Primeira Exposição nacional com a série de fotos Vistas y Costumbres de Ia Republica
Argentina. Em 1876 alcança novamente o grande prêmio na segunda exposição anual da
Sociedade Cientifica Argentina com uma coleção de Retratos y Vistas de Costumbres y Paysages.
Christiano Jr. foi operoso na sua profissão, mas t a m b é m , um h o m e m que gostava de diversificar
suas atividades; é o que se depreende pela sua trajetória de vida. no entanto, veio a falecer
pobre e quase cego, em Assunção, Paraguai, onde passou seus últimos anos.
Quanto à sua coleção de fotografias de escravos africanos ver, além de CARME1RO, Maria Luiza
Tucci e KOSSOY, Boris, op. cit., os textos constantes In: Escravos brasileiros do século XIX na
fotografia de Christiano Jr.. P. C. Azevedo e M. Lissovsky (org.). São Paulo: Ex Libris, 1988. Sobre
a trajetóri a do fotógrafo na Argentina, ver as seguintes obras: QOMEZ, J . La fotografia en Ia
Argentina: su historia y evolucion en ei siglo XIX. Buenos Aires: Abadia Ed., 1 9 8 6 ; OESUALDO,
V. "Los que fijaron Ias imagenes dei pais". In: Todo es historia. Buenos Aires: 1983. p.22-5;
CASABALLE, A.B. e QUARTEROLO, M.A. Imagenes dei Rio de Ia Plata. Buenos Aires: Editorial dei
Fotografo, 1983.
(A fotografia de Christiano Júnior utilizada neste artigo foi reproduzida do acervo do Museu
Histórico n a c i o n a l . Rio de Janeiro).
8. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro para o anno de 1866.
Rio de Janeiro: Laemmert. p.644, 'seção de notabilidades'.
As imagens de Christiano Júnior que pesquisamos foram reproduzidas do acervo do Museu
Histórico n a c i o n a l . Rio de Janeiro.
9. O tema foi antes abordado pelo Autor em 'Ideologia e fotografia na Primeira República".In;
Comunicações e artes no nascimento da República brasileira. Carlos M. Avighi (org.). Sào Paulo:
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de Sào Paulo, 1990. pp. 17-21(Simpósios em
Comunicações e Artes, 3).
10. Sobre a história de Canudos ver a obra clássica de CUNHA, Euclides da. Os Sertões.Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1952. A primeira edição da obra é de 1902.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 13-24. jan/dcz 1993 - pag. 2 3


11. TACO, Rui. Cangaceiros e fanáticos;gênese e lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
p.125.
1 2. CUNHA, Euclides da, op. cit., p.541-2. Após o morticinio em massa, a preocupação das forças
federais era de demolir completamente o arraial: 'lio dia 6 acabaram de o destruir desmanchan-
do-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas."
13. Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 2 fevereiro 1898, p.4,
14. CUNHA, Euclides da, op. cit., p.542 (grifo nosso). Este texto pode ser visto também em SONTAG,
Susan. On photography. new York: Farrar, Straus and Qiroux, 1977. p. 196.
15. O assunto foi tema de meu livro São Paulo, 1900, op.cit.
Deve-se a Gaensly uma vasta produção voltada ã documentação, obra essa d e indiscutível
mérito técnico e estético. A par de sua atividade profissional, era também comissionado
oficialmente pelo governo do Estado de São Paulo (através da Secretaria da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas) e por outras empresas de melhoramentos públicos, para documen-
tar a paisagem urbana da capital e aspectos rurais do estado. Assim como esta Colheita de café
em Araraquara, outras vistas de fazendas do interior paulista foram registradas por Gaensly.
Grande parte delas foram reproduzidas em livros, revistas e cartões postais. Para maiores
dados acerca da vida e obra de Guilherme Gaensly ver, do Autor, as obras antes citadas.(A
fotografia de Guilherme Gaensly utilizada neste artigo foi reproduzida de cartão postal da
coleção do Autor).
16. Cit. in STOLCKE, Verena. Cafeicultura, homens, mulheres e capitaK 1850-1980).p.47.
17. Sobre o tema v e r d e PIMHEIRO, Paulo Sérgio e HALL, Michael.M. A classe operária no Brasil (1889-
1930): Documentos.São Paulo: Brasiliense, 1981. v. 2: condições de vida e de trabalho,
relações com os empresários e o estado, pp.32-9.
18. FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São
Paulo: Perspectiva, 1982. p.40 .

A B S T R A C T
Through the analysis and interpretation of the image of different topics and periods of brazilian life
in the past, this article establishes theorical principies which are essential to the studies that make
use of photography sources or search the photography's aesthetic understanding. Among these
principies the author emphasizes the need to recover the inner reality of the images, because
photography is useful, in general, to create realities, by both photographers and viewers, sínce they
are a product of aesthetic and ideologic constructions.

R É S U M É
Par 1'analyse et 1'interpretation de l'image à propôs de thèmes et moments différents de Ia vie
brésiliènne au passe, cet article établit des príncipes théoriques fondamentaux pour les études que
s'utilisent des sources photographiques ou ceux qui cherchent Ia compréhension de l'esthétique
particulière de Ia photographie. Parmis ces príncipes, 1'auteur détache le besoin de rétrouver Ia
realité intórieure des images, puisque Ia photographie sert, en general, à Ia creation de realités par
les producteurs autant que par les recepteurs des images, parce qu' elle est fruit de constructions
esthétiques et idéologiques.
Ana Maria Mauad de Sousa Andrade Essus
Professora Adjunta do Departamento de história da UFF\

!!
O Olko da Hist 6ria
A n á l i s e dia i m a g e m
fotográfica n a c o n s i r a ç á o dle w m a

m e m ó r i a soere o coniii e v^anTULcuos

INTRODUÇÃO elevam u m a d a s leituras possíveis

A
s r e p r e s e n t a ç õ e s de Canu- do conflito ao estatuto de uma ver-
dos e o mundo no qual dade anunciada s e m possibili-
estava circunscrito dade d e ser contestada, no âm-
c o m p õ e m um variado material bito d a s m e n s a g e n s visuais. O
poder documental da fotografia
iconográfico q u e pode ser divido
náo só atestou, como reafirmou
em quatro grupos: o s mapas, os
o papel decisivo da quarta expe-
d e s e n h o s e a s litogravuras, as pin-
dição que permaneceu, na histó-
turas e a s fotografias.
ria, como a batalha final.
Deste conjunto elegemos as fotos para
As fotografias sobre Canudos foram pro-
um trabalho mais detalhado, cujo obje-
duzidas pelo fotógrafo expedicionário,
tivo é avaliar a construção d e uma deter-
Flávio de Barros, durante a quarta em-
minada memória sobre Canudos. Esta
preitada militar. Elas estão organizadas
veio, através da fotografia, se estabele-
em dois álbuns, com respectivamente
cer como a única e definitiva memória 15 e 54 fotos e mais três avulsas'. As
sobre o conflito. fotografias do primeiro álbum possuem
Ao recriar o evento pelo crivo do código um tamanho padrão d e 17x24cm, a s do
visual dominante, a s fotografias de Ca- segundo 1 2 x l 7 c m e a s a v u l s a s 14
nudos, com o s e u alto valor analógico, x l 0 , 5 c m . Estão coladas em suporte de

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2, p. 25-40. jan/dez 1993 - pag. 25


A C E

1 8 x l 3 c m e s e encontram em razoável sagrados, rumavam para os locais de


estado de conservação. conflito. Roger Fenton, fotógrafo res-
ponsável pelo registro da guerra da
"O OLHO DA HISTÓRIA": A Criméia, c o n t r a t a d o por Agnew Print
FOTOGRAFIA DE GUERRA NO Seller, chegou ao porto de Blacara, em
SÉCULO X I X E SEUS 1855, 'with twoasssistants, five cameras,
SIGNIFICADOS 700 glass plates and a horse-drawn van
converted into a darkroom" 3 .

A
partir da segunda metade do
s é c u l o XIX a fotografia foi Além d a s limitações técnicas, a busca
transformada, entre tantos de uma imagem em perfeita analogia
o u t r o s u s o s e funções, em d o c u m e n t o . com a realidade impôs uma determina-
Data deste período a sua utilização em da canonicidade à expressão fotográfica
reportagens militares. de fins do século XIX. Daí a busca pela
O caráter de fidelidade à realidade atri- clareza do registro e pela objetividade
buído à imagem fotográfica é tão paten- das imagens definir, em linhas gerais, as
te que Mathew Brady, chefe da equipe reportagens de guerra no período do
que cobriu a Guerra Civil americana, colódio úmido.
considerou a cãmera fotográfica como Em termos de circulação, tanto a s foto-
'o olho da história' 2 . As fotografias pro- grafias produzidas por Roger Fenton, na
duzidas nos c a m p o s de batalha torna- Guerra da Criméia, como as da equipe
ram-se t e s t e m u n h a s oculares de um cer- de Mathew Brady, na Guerra Civil ameri-
to tipo de evento, até então só imagina- cana, foram objeto de exposição públi-
do através de relatos escritos. ca. No Brasil, a prática de registrar con-
rio entanto, as imagens obtidas nas ba- flitos e guerras, através da imagem foto-
talhas diferiam muito daquilo que era gráfica, data t a m b é m do século XIX. A
descrito pelos repórteres de campo. As primeira d o c u m e n t a ç ã o fotográfica des-
dificuldades técnicas, devido ao pesa- te tipo que se tem c o n h e c i m e n to foi
do aparato fotográfico, limitaram muito produzida durante a Guerra do Paraguai
a agilidade dos fotógrafos e, por conse- (1865-1870), seguida pela ampla cober-
guinte, o movimento das fotos. tura feita pelo fotógrafo J u a n Gutierrez
Munidos de barracas, câmeras fotográ- durante a Revolta da Armada (1893) e

ficas de tripé, estilo 'view c a m e r a ' , pelo registro minucioso da quarta expe-

placas de vidro, s o l u ç õ e s e recipientes dição a Canudos(1897). Posteriormen-

dos mais variados, enfim, toda uma pa- te, tal procedimento tornou-se corrente,
como pode ser constatado pela grande
rafernália necessária â fixação imedi-
d o c u m e n t a ç ã o fotográfica a respeito do
ata d a s imagens na placa de colódio
conflito do Contestado(1910-1917)*.
úmido, os fotógrafos, geralmente con-
tratados pelos estúdios fotográficos con- As imagens fotográficas sobre Canudos

pag. 26, jan/dez 1993


R V O

guardam um padrão técnico razoável desconhecia as técnicas contemporâne-


quando c o m p a r a d a s àquelas feitas pe- as.
las agências internacionais.São fotos
posadas, com linhas bem definidas, pro- PALAVRAS ATRAVÉS DE

c e s s a d a s em papel ã gelatina, com nega- IMAGENS; UMA ABORDAGEM


tivos em vidro e organizadas em álbuns H1STÓR1CO-SEM1ÓT1CA PARA
com legendas batidas à máquina. Mo FONTES FOTOGRÁFICAS.
entanto, ao contrário das imagens de

A
o selecionar um recorte espa-
conflitos internacionais, as fotografias ço-temporal preciso,a fotogra-
de Canudos nào foram objeto de exposi- fia compõe, constrói e filtra
ção pública. determinados a s p e c t o s de uma realida-
Como revelam pesquisa s realizadas em de múltipla, cuja imagem final é retirada
jornais e revistas da é p o c a , a s fotografi- de um conjunto de escolhas possíveis.
as nào tiveram divulgação contemporâ- Da mesma forma que, ao permanecer no
nea. Foram, posteriormente, utilizadas tempo, a fotografia transmite mensa-
como ilustração de memórias históricas gens compostas por s i s t e m as de signos
escritas por oficiais do Exército sobre a nào-verbais, cuja análise é uma d a s cha-
5
quarta c a m p a n h a de Canudos . Neste ves para a c o m p r e e n s ão do passado.
sentido, por falta de maior circulação, Preservada no tempo , a fotografia man-
tais fotografias restringiram-se, à época, tém a sua c a r a c t e r í s t i c a de r e c o r te
a criar uma memória do conflito própria espacial. Na estruturação da mensagem
ao c o n s u m o da corporação militar. fotográfica, múltiplos recortes espaciais

Em relação ao fotógrafo, Flávio de Bar- se entrecruzam e, através de sua delimi-


tação precisa, pode-se chegar tanto a o s
ros, o Arquivo Histórico do Exército e os
códigos de representaçã o social ineren-
arquivos do Exército em geral nào con-
tes à própria construção da noção de
tém informações a respeito de sua fun-
espaço, como às programações sociais
ção no s m a p e a m e n t o s diários sobre os
de comportamento s u b j a c e n t es às ex-
encargos exercidos nos a c a m p a m e n t o s,
periências em sociedade 6 . Nesse senti-
nem t a m p o u c o existem documento s in-
do, propomos uma análise da mensa-
dicando-o para tal funçáo. A única refe-
gem fotográfica com base nas seguintes
rência que t e m o s dele é a última fotogra- categorias: o espaç o fotográfico, o es-
fia do segundo álbum, que o retrata paço geográfico, o e s p a ç o do objeto, o
trajando um uniforme de campanha, espaço da figuração e o espaço das
próximo à sua barraca. vivências 7 . Assim, o estudo de cada uma
A qualidade d a s imagens e sua inserção d e s t a s categorias espaciais na coleção
em um determinado padrão imagético de fotografias sobre o conflito de Canu-
da época levam a crer que Flávio de dos, permite avaliar os códigos de repre-
Barros, se não era um profissional, náo s e n t a ç ã o envolvidos na m a n u t e n ç ã o da

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2. p. 25-40. jan/dez 1993 - pag. 27


A C E

m e m ó r i a o f i c i a l d o c o n f l i t o ; os códigos O ESPAÇO FOTOGRÁFICO


de c o m p o r t a m e n t o da elite militar e sua A mensagem fotográfica pauta-se em
representação do sertanejo , considera- códigos c o n v e n c i o n a l i z a d o s s o c i a l m e n -
do c o m o o o u t r o e d i f e r e n t e e, por f i m , te, tanto no nível da forma do c o n t e ú d o ,
o embate entre o litoral e o sertão. c o m o da forma da expressão 9 . Neste
ú l t i m o nível, determinadas opçõe s téc-
IMAGENS DE CANUDOS: A nicas e estéticas realizadas pelo fotógra-
RECRIAÇÃO DE UM EVENTO. f o , em meio a uma coleção de escolhas
iante das sucessivas derrotas possíveis, c o n t r i b u e m para a transmis-
militares em Canudos, a quarta são de certos significados que anulam
expedição foi investida de uma todos os o u t r o s.
importância decisiva. Tal dimensão pode A análise do espaço f o t o g r á f i c o , estrutu-
ser avaliada tanto pelo efetivo milita r rado a partir das opções técnicas, apon-
deslocado para o local , que s o m o u cer- ta para os processos de codificação que
ca de 10.000 h o m e n s , como pelo apara- estruturam a representação do real.
to logístico m o n t a d o para uma verdadei-
Nesta coleção o espaço fotográfico foi
ra campanha de guerra 8 .
c o m p o s t o segundo d e t e r m i n a d as esco-
Por outro lado, é t a m b é m sobre esta lhas quanto ao t a m a n h o , f o r m a t o , su-
expedição que existe um maior n ú m e r o porte, movimente, enquadramento e
de relatos e c r ô n i c a s, m o b i l i z a n d o um nitidez, variando consoante as condi-
contingente razoável de intelectuais, ções especificas de registro e de opção
encarregados de registrar o que foi a temática.
derrota final da 'resistência m o n á r q u i - Essas unidades se c o m b i n a r a m na c o m -
c a ' , como era divulgada na é p o c a a posição de um d e t e r m i n a d o padrão fo-
posição dos sertanejos. tográfico, cuja forma da expressão rela-
É neste c o n t e x to de esforço de guerra e ciona-se a significado s precisos de re-
de construçã o de u m a m e m ó r i a d o con- presentação.
f l i t o que d e v e m ser c o m p r e e n d i d a s as Tamanho
imagens f o t o g r á f i c a s sobre Canudos, O t a m a n ho das imagens sobre Canudos
organizadas em á l b u n s pelo Exército. varia entre o médio (54 fotos) e o grande
A recriação do c o n f l i t o , através das foto- (18 fotos). Não há diferença significativa
grafias, encontra na análise de como o entre os dois álbuns e as fotos avulsas.
espaço foi c o d i f i c a d o , a chave para in- O s t r è s g u a r d a m o m e s m o corte temático
t e r p r e t a r m o s as representações sociais e suas imagens são bem semelhantes,
que foram t r a n s m i t i d as pela mensagem p o d e n d o ter sido feitas pela tradiciona l
fotográfica, superando-se ,deste m o d o , o "New Model View Camera"(1884), o apa-
mero ' r e l a t o f o t o g r á f i c o ' em busca de relho mais utilizado na época para estes
significados mais p r o f u n d o s . fins.

pag. 2 8 , jan/dez 1 9 9 3
R V O

A variação de t a m a n h o nâo comprome- - Fotografia panorâmica: 5


teu o aspecto documental da fotografia, - Fotografia do ambiente sem pose: 6
possibilitando a captação de um grande
- Fotografia posada simulando ação: 1
número de e l e m e n t os informativos rela-
- Fotografia para registro com pose: 58
tivos à organização da expedição, ao
ambiente vivenciado e à movimentação - Fotografia em seqüência para dar idéia
geográfica, o b j e t i v os impossíveis de de movimento: 1
serem alcançado s em fotos p e q u e n a s . As imagens predominantes são as do
Tipo d e foto registro intencional, cujo arranjo pode
ser controlado pelo fotógrafo e, no qual,
O tipo da fotografia permite caracterizar
o movimento impresso às imagens. De- a qualidade técnica da imagem pode ter

vido às limitações técnicas, impostas maior garantia.


pelo p e s a d o aparato fotográfico da épo- Mesmo as fotografias de combate, onde
ca, as imagens produzidas primaram pela se vé a formação de linhas de artilharia,
estaticidade. Entretanto, podemos são fotos sem movimentação, que cap-
diferenciá-las nos seguintes grupos: tam a ação j u s t a m e n t e no m o m e n t o de

Flávio de Barros. Canudos. 1897. Álbum 2. fot. 24. Arquivo Histórico/Museu da República.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 25-40, jan/dez 1993 - pag. 29


sua preparação 1 0 . Mo presente estudo, ond e o espaço foto-

Duas tentativas foram feitas para dar gráfico é p r i o r i t a r i a m e n t e h o r i z o n t a l e

uma idéia da m o v i m e n t a ç ã o típica do central, a mensagem t r a n s m i t i d a enfati-


zaria significados de u n i ã o , h a r m o n i a e
evento que estava sendo vivenciado . A
c o n f l u ê n c i a de interesses. Estes signifi-
p r i m e i r a , t o t a l m e n t e a r t i f i c i a l , é uma si-
cados estariam e s t r e i t a m e n te relaciona-
mulação de c o m b a t e no m o m e n t o em
dos à posição do Exército e dos m i l i t a -
que a infantaria prende alguns j a g u n -
res nos embates políticos dos p r i m e i r os
ços. A segunda, j á mais sofisticada, é a
anos da República, dos quais Canudos e
exposição de um m e s m o local em dois
o m o v i m e n t o que o r e p r i m i u são u m a
momentos diferentes, caracterizando
expressão clara.
através da mudanç a de paisagem, em
um dado interregno de t e m p o , o m o v i - A atuação dos militares estaria, assim,

m e n t o de destruição de C a n u d o s " . ligada à preservação da própria o r d e m


r e p u b l i c a n a que encontraria n o Exército
Enquadramento
o seu núcleo agregador, a alma r e p u b l i -
O i t e m e n q u a d r a m e n t o , devido às suas
cana.
variáveis, foi dividido em cinco sub-itens:
Por o u t r o lado , o relativo e q u i l í b r i o en-
s e n t i d o , d i r e ç ã o , d i s t r i b u i ç ã o dos pla-
tre as duas opções opostas de sentido
nos, arranjo e o b j e t o c e n t r a l .
reafirma a escolha em t o r n o do centro,
Mo sub-item s e n t i d o , c o n t a m o s 67 fotos do n ú c l e o , de u m e l e m e n t o integrador e
horizontais e cinco verticais, rio item aglutinador.
direção, a divisão estabelecida f o i : es-
Tais afirmações recebem apoio na análi-
querda, 20 f o t o s ; d i r e i t a , 22 f o t o s ; cen-
se da d i s t r i b u i ç ã o d o s planos na f o t o , n o
t r o , 30 fotos.
arranjo dos elementos e do o b j e t o cen-
Que significado s p o d e m ser atribuídos a tral.
tais representações? Representar é re-
D i s t r i b u i ç ã o dos planos:
lacionar um significado explícito a uma
- 3 fotos em plano central
c a d e i a de s i g n i f i c a d o s subjacentes,
numa seqüência h o r i z o n t a l d e n o m i n a - - 3 2 fotos em três planos

da por Roland Barthes de sintagmas 1 2 . - 37 fotos em dois planos


Segundo estudos realizados sobre a pro- [o 2o 3o

dução de s e n t i d o nas artes visuais, e Figuração com


dentre elas a fotografia, a análise dos objetos interiores 04 04
significados a t r i b u í d o s às f o r m as espa- Figuração com
objetos exteriores - 10 11
ciais -enquanto signos que f u n d a m e n -
Figuração com
tam os códigos de representação social-
objetos exteriores
possibilita uma interpretação das esco-
e pessoais 14 11
lhas efetivament e realizadas no ato foto- Figuração com
gráfico 13 . objetos pessoais 35 22

pag. 3 0 . j a n / d e z 1993
R V o

Paisagem 05 07 13 grupo militar e da manutençã o da coe-


Objetos exteriores 14 15 08 são interna, em torno das quais susten-
A opção por colocar o máximo de planos tava-se o sucesso da quarta expedição.
na foto - pelo m e n o s tantos quanto a Tal tendência é confirmada por 45 fotos,
profundidade de campo permitisse - re- onde o objeto central é a figuração cole-
laciona-se ao caráter documental atribu- tiva, das quais 21 são fotos de oficiais.
ído a tais fotografias. Neste sentido, um Em termos de objeto central, o restante
maior número de elementos sobre a das fotos está dividido da seguinte maneira:
atividade regular do grupo visa, princi- - 14 fotos do arraial destruído ou
palmente, a exibir o aparato logístico s e n d o destruído (objetivo central da
organizado para sustentar a quarta ex- expedição).
pedição. Tais imagens buscavam atestar - 6 fotos do a c a m p a m e n t o .
a eficiência do grupo militar na derrota
- 6 fotos da figuração individual.
final do 'inimigo c o m u m ' da n a ç ã o .
- 2 fotos da paisagem do sertão.
Assim, confirmando a análise da distri-
A opção pela figuração como elemento
buição dos planos, a figuração e os ob-
predominante na mensagem ratifica o
j e t o s de s u s t e n t a ç ã o da expedição me-
valor dado à ação do grupo em termo s
recem d e s t a q u e na mensagem veicula-
políticos. Mais do q u e d o c u m e n t a r o
da, relegando a paisagem a um plano
evento, a mensagem fotográfica o re-
secundário.
cria, segundo determinado ponto de vis-
A organização dos e l e m e n t o s no arranjo ta.
da foto foi a seguinte:
nitidez
a. Organizados em linha reta: 30 fotos;
O último item que c o m p õ e o espaço
b. lio Io plano em linha reta e no 2 o fotográfico foi dividido em três sub-itens:
espalhado: 1 foto; foco, impressão visual e iluminação.
c. Organizados em semi-círculo: 20 Avaliando-os, o padrão encontrado foi o
fotos; seguinte:
o
d. Em semi-círculo no I plano e linha - 60% das fotos estão totalmente no
reta no 2 o : 2 fotos; foco.
e. Em semi-círculo no I o plano e - 96% das fotos p o s s u e m linhas bem
o
e s p a l h a d o s no 2 : 1 foto; definidas e bom contraste.
Í

f. Espalhados: 18 fotos. - 7 1% das fotos estão claras e sem


O arranjo em linha reta dos elementos, sombras.
seguido pelo semi-círculo, confirma as O padrão de nitidez reitera a intenção
o p ç õ e s horizontais e a s voltadas para o documental, à medida que se aproxima
centro, buscando-se, com isso, reforçar de uma concepção de imagem o mais
a s r e p r e s e n t a ç õ e s da organização do realista possível e se afasta de uma

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 25-40, jan/dez 1993 - pag. 31


A C E

proposta mais artística, que poderia co- e m dia c o m as primeiras novidades d o


locar em d ú v i d a a veracidade da fotogra- exterior.
fia. O registro o b j e t i v o é t a m b é m atesta- No c o n j u n t o das fotografias em ques-
do pela extrema nitidez da f o t o . tão, o espaço geográfico retratado fica
Em resumo, o espaço fotográfico repre- circunscrito à região sertaneja. A manei-
sentado nesta coleção pode ser caracte- ra c o m o este espaço foi registrado reve-
rizado como : m é d i o ; h o r i z o n t a l ; com la uma hierarquia calcada na própria
planos bem distribuídos; harmonicamen- compreensão que os m i l i t a r e s, dignos
te a r r a n j a d o ; c o m figuração coletiva representantes do l i t o r a l , elaboraram
c o m o o b j e t o central e apresentando um sobre essa região, alçada n o m o m e n t o
alto padrão de nitidez. Em t e r m o s de da quarta expedição, ao nível de palco
referência paradigmática, tais represen- decisório dos destinos r e p u b l i c a n o s .
tações remetem às concepções vigentes
A existência de legendas nas fotos faci-
a partir da segunda metade do século
l i t o u o r e c o n h e c i m e n t o dos lugares pos-
XIX, expressas nos c o n j u n t o s de fotos
s i b i l i t a n d o seguinte d i s t i n ç ã o :
de guerra e de expedições. Do ponto de
-Acampamento: 31 fotos;
vista dos significados específicos atri-
- T r i n c h e i r a : 14 f o t o s ;
buídos às representaçõe s produzidas
pelo grupo militar, estão: - Base de operações: 3 f o t o s ;

a) a garantia de que a açáo do grupo - Campo de batalha: 1 f o t o ;

seria plenamente d o c u m e n t a d a . - Canudos/arraial de Belo Monte: 13

b) a preservação do papel de destaque fotos;

dado â açáo m i l i t a r , durante a quarta - Arraial de Monte Santo: 9 fotos ;


expedição , c o m o força estabilizadora e - C e m i t é r i o: 1 f o t o .
mantenedora da o r d e m republicana. Por esta amostragem, cerca de 8 0 % das
c) a interpretação do evento, que ratifica f o t o s referem-se ao espaço ocupado
a presença do grupo milita r no quadro pelos militares, t r a n s f o r m a d o em base
político r e p u b l i c a n o , como uma força de operações, como local de f o r n e c i -
coesa, organizada, consciente de seus m e n t o de viveres, assentamento e açáo.
deveres e pronta para garantir a o r d e m . O espaço do O u t r o , o local reservado ao
O ESPAÇO GEOGRÁFICO sertanejo na representação, f i c o u cir-
c u n s c r i t o ao arraial de Belo Monte, tam -
Belo Monte, Canudos, Monte Santo, no-
b é m d e n o m i n a d o nas legendas de Canu-
mes que se c o n f u n d e m na configuração
dos e Fazenda Velha.
da região do c o n f l i t o . O sertão, que no
imaginário l i t o r â n e o , estava vinculado O sertão é investido de significado s pró-
às idéias de atraso, crendice e ignorân- prios ao l i t o r a l , na m e d i d a em que é
15
cia , opunha-se e m t o d o s os s e n t i d o s representado c o m o local por excelência
ao l i t o r a l , foco civilizador, ilustrado e da ação m i l i t a r . Enquanto isso, o serta-

pag. 32, jan/dez 1993


R V O

nejo é alienado de sua s referências geo- objetos retratados procurou dimensionar


gráficas mais amplas, por ter sua repre- a importância da quarta expedição em
s e n t a ç ã o circunscrita ao arraial. Ao termos de aparato logístico; da valoriza-
enclausurar a representação do espaço ção do corpo de oficiais; da existência
geográfico conselheirista ao arraial, nú- de uma hierarquia de a m b i e n t e s dada
cleo do conflito, as imagens produzidas pela associação de objetos; da preocu-
pelos militares subtraem referências de pação na repressão decisiva do movi-
sentido mais gerais, limitando as possí- mento caracterizada pela existência de
veis ligações entre Canudos e o restante um expressivo aparato bélico e, por fim,
do sertão relativas tanto à s motivações das condições de sobrevivência da ex-
do conflito, quanto à própria visão do pedição dadas pela sua relação com o
mundo por este representada. ambiente sertanejo.
O ESPAÇO DO OBJETO A partir d e s s a s p r e o c u p a ç õ e s distingui-
Mo caso da coleção de fotografias sobre mos três tipos de objetos: pessoais, in-
o conflito de Canudos, a avaliação dos teriores e exteriores.

Ruiu nu liiitcrin «Io 1'rrig».


Flávio de Barros. Canudos, 1897. Álbum 2, fot. 10. Arquivo Histórico/Museu da República.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 25-40. jan/dez 1995 - pag. 33


A C E

Os objetos pessoais estão relacionados ção maior, dada a intencionalidade do


à indumentária que, no caso específico registro, apontando para o sentido que
desta coleção, iiga-se inteiramente à re- deveria ser impresso à situação, varian-
presentação militar. Mesmo assim, pode- do desde a solenidade até a descontra-
se constatar uma variação de incidên- çáo. A incidência de objetos pessoais
cia, em primeiro lugar valorizando a hi- que denota uma certa descontraçáo - o
erarquia militar e a imagem do oficialato, caso do cachimbo e do cigarro - visa a
associando-a a objetos registrar uma rotina de normalidade no
de distinção, tais como: decorrer das atividades militares, com
farda, espada, botas, tempo inclusive para espairecer.
chapéu de abas largas, A hierarquia de ambientes associada ao
terno, relógio de bol- consumo de objetos não se limita ao
so, etc. Em segundo, âmbito pessoal. Também no que diz
traduzem um certo respeito aos objetos interiores, tal dife-
' r u í d o n a mensagem
renciação pode ser constatada.
dominante através da
Dentre os objetos interiores retratados
presença de objetos
estáo: bancos, cestos, lonas, comida,
associados â vida serta-
mesas rústicas, cadeiras, garrafa, faca,
neja: vestidos de chita, roupas de crian-
panelas, copo, pratos, moringas, lampi-
ça, sandálias, chapéus de palha, etc.
ões, tapete, esteira, lençóis e maça.
Estes elementos estão presentes no
registro ocasionalmente, caracterizando A presença de objetos interiores, mes-
o convívio, mesmo que restrito, entre as mo que em somente 40% das fotos,
partes. revela a preocupação em deixar registra-
do o aspecto logístico da expedição. Em
Cabe ainda ressaltar a presença de obje- tais representações, ficaram registradas
tos - revólveres, cartucheiras, bolsas de as marcas de privação e sacrifício, pelas
campanha e espingardas - tornados pes- quais passaram os militares, ao abdica-
soais devido a situação de guerra. rem das condições de conforto do lito-
Além destes, fazem parte dos objetos ral, para salvarem a ordem republicana
pessoais os seguintes itens: uniformes que estava sendo ameaçada no interior
de campanha, boné, bolsa de campa- do Brasil.O ambiente doméstico,tal
nha, calça tipo bombacha de xadrez, como foi representado pelas imagens
lenço de pescoço, cometa, sapato, man- fotográficas, é marcado pela presença
to, cantil, lanças de madeira, binóculos, escassa de objetos interiores, e sua rus-
bengala, bata, jaleco branco, xale, ca- ticidade denota tanto a maximizaçáo no
chimbo, cigarro, caneta e camisa de for- aproveitamento dos recursos oferecidos
ça. pela região, como, por outro lado, a
A escolha dos objetos pessoais para o expectativa de que a quarta expedição
arranjo fotográfico recebeu uma aten- não levasse muito tempo para atingir

pag. 3 4 , j a n / d e z 1993
K V O

seu objetivo. prova que atua como mero reconheci-


A grande m a s s a de objetos fica por con- mento da missão cumprida, mantendo-
ta daqueles d e n o m i n a d o s de exteriores: se distante d o s horrores da repressão.
vegetação agreste, chào de terra, barra- Além disso, o registro da destruição da
ca de campanha, morros, fachadas, ban- igreja e das cruzes existentes no arraial
deiras, trincheiras de sacos, casas de mostra que não só o ambiente físico foi
taipa, ruínas, madeiras, canhões, caixo- destruído, mas t a m b é m t o d o s os ideais
tes, barris, carroças, potes para muni- que o sustentavam.
ção, cela de cavalo, tripé para apoiar O ESPAÇO DA FIQURAÇÀO
armas, cercas, árvores, telhados e cru- Compõem o espaço da figuração: ho-
zes. mens, mulheres, crianças e animais. Este
Tais elementos , que compuseram o ce- espaço é de natureza heterogênea e os
nário da praça de guerra, definem o itens que formam o e n q u a d r a m e n t o au-
sentido prioritário d a s fotografias: o xiliam a c o m p r e e n s ã o desta heteroge-
registro da vitória! Nada foi esquecido neidade, ao realçar a importância de
na composição da mensagem, desde a determinadas figuras e a relação entre
caracterização da adversidade do ambi- elas na estruturação dos campos de sig-
ente, o qual foi apresentado como mais nificação.
um inimigo a ser vencido, até o s aspec- Ma coleção de fotografias sobre Canu-
tos da destruição através das fotos das dos, p e r c e b e - s e uma representação
ruinas e dos cadáveres. hierarquizada do espaço da figuração,
A presença diferenciada de objetos ex- o n d e as oposiçoes são s u p e r a d a s por
teriores demonstra a hierarquia na re- uma ordenação precisa dos elementos
presentação dos ambientes. A grande nos planos e no arranjo 1 *. Em termos
incidência de objeto s exteriores, relaci- numéricos a figuração apresentou-se de
o n a d o s à caracterização do ambiente acordo com o seguinte quadro (levando-
inóspito do sertão, indica que o sentido se em conta os objetos centrais da foto):
prioritário a ser transmitido era o de - Fotos de oficiais: 20 ( em 7 os soldados
dificuldade e adversidade do ambiente. estão no 2- plano).
Logo em seguida, na escala de presença,
- Fotos do batalhão: 3 0 .
estão os objetos exteriores associados à
- Fotos de soldados, oficiais e crianças:
composição do cenário da praça de guer-
7.
ra, definindo assim o segundo sentido a
ser veiculado: a necessidad e da vitória. - Fotos de soldados, oficiais e mulheres:
4.
Por fim, a presença, em menor escala,
- Fotos dos conselheiristas: 4.
d e o b j e t o s e x t e r i o r es a s s o c i a d o s ao
ambiente de destruição testemunham o - Fotos individuais: 2.
objetivo alcançado, rio entanto, é uma - Fotos de animais: 4.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n» 1-2. p. 25-40. jan/dez 1993 - pag. 35


A C E

- Totós sem figuração: 7. e destruição. Assim, mais uma vez isola-


O espaço representado pela figuração é dos na sua própria derrota, os conse-
eminentemente coletivo. Somente em Iheiristas perdem as referências mais
duas fotos, a figuração foi individual: a amplas para com a região que ocupa-
primeira, onde aparece o corpo de Antô- vam.
nio Conselheiro antes de ser exumado, A presença de crianças misturadas à
e a segunda, um auto-retrato do fotógra- tropa, geralmente trajando farrapos; o
fo. registro de uma menina sendo atendida
Os oficiais estão representados em 90% pelo corpo médico; a vinculaçáo da figu-
das fotos, sendo que em 30% como ra feminina ao acampamento sempre
objetos centrais e em 60% acompanhan- em plano secundário; a famosa imagem
do a tropa. Tais representações caracte- dos quatrocentos jagunços' presos,
rizam a importância concedida à ima- composta quase que exclusivamente de
gem dos o f i c i a i s como elemento mulheres famélicas e crianças raquíti-
centralizador e de liderança. À sua figu- cas possibilitam uma leitura específica
ra estão associados seus subordinados, desta derrota: a condescendência da
que compunham o contingente repres- corporação militar em beneficiar'o mais
sor, a força do Exército personificada fraco. Desta forma, mulheres e crianças
em seus homens. foram poupadas numa tentativa de
reintegrá-las ásociedade de bem'. É
Tanto a imagem dos oficiais como a dos
sabido que um contingente de sobrevi-
soldados foram registradas, prioritaria-
ventes de Canudos foi transferido para o
mente, nos acampamentos e trinchei-
centro da Capital Federal: o morro da
ras, locais de preparação do combate e
Favela, cujo nome faz referência a uma
do enfrentamento, relacionados, assim,
planta da região do Cumbe, chamada
aos valores de bravura e coragem, típi-
favela16.
cos da guerra.
rio patamar inferior da escala de repre- Neste caso, através da própria represen-
sentação está o elemento sertanejo, que tação, na imagem fotográfica, ficaria
é o 'outro' , o 'diferente', aquele que patente o seu destino: alijados do ser-
deveria ter a sua imagem silenciada ou tão pela derrota seriam marginalizados
reestruturada, em função da codificação no litoral pela pobreza.
dominante. Os silêncios estão patentes Por fim, cabe ressaltar a representação
na ausência de fotografias sobre o modo da morte na coleção analisada. Em 72
de vida da população do arraial, seu fotografias, somente três estão associa-
ambiente cotidiano, a geografia de suas das à morte de forma direta e objetiva: a
ruas e a ambientação de suas crenças. primeira retrata o túmulo de Moreira
Mada disso existe nos álbuns de Canu- César, oficial morto na terceira expedi-
dos. Aos residentes de Belo Monte são ção, enfeitado com o pavilhão nacional;
associados somente imagens de miséria a segunda apresenta corpos irreconhe-

pag. 3 6 , j a n / d e z 1993
R V O

cíveis perdidos em meio a destroços e a estão mortos. Os corpos em meio às


última é a de Antônio Conselheiro mor- ruínas, daquela que j á foi uma cidadela,
to, trajando o seu velho surrão deitado é a prova irrefutável.
17
em uma esteira de palha . Por outro lado, a ausência de registros
Mais uma vez, a hierarquização das figu- dos soldados mortos ou feridos indica a
ras que compõem a imagem fotográfica preocupação em garantir, ao Exército,
reaparece por meio da associação de parte integrante da ordem vigente, a
objetos que emprestam excelência e dig- associação às idéias de imortalidade e
nidade à figura do oficial morto, cujo invencibilidade. Tais idéias são encon-
corpo não está exposto ao reconheci- tradas também na própria divulgação da
mento público através da fotografia, rio organização da quarta expedição.
entanto, a morte do Outro deve s e r o b j e -
O ESPAÇO DA VIVÊNCIA
tivamente reconhecida como atestado
da própria vitória: Antônio Conselheiro Fotografias do general Carlos Eugênio
está morto e sua morte pode ser com- com seu Estado Maior, da bóia' d o s
a
provada pelo registro fotográfico, um oficiais do 2 9 Batalhão, da comissão de
pedaço da experiência retido no tempo. engenheiros, da divisão Canet de Arti-
Seus seguidores e s u a s idéias também lharia a postos. Imagens de Canudos

Corno Sanitário «' uma jagunça ferida.


FIávio de Barros. Canudos, 1897. Álbum 2, fot. 47. Arquivo Histórico/Museu da República.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n' 1-2, p. 25-40, jan/dez 1993 - pag. 37


c E

pegando fogo. das ruínas da igreja do creve: "talvez julguem cedo para gravar
Bom Jesus, dos mortos em meio a destro- nos anais da História a narrativa deste
ços e dos presos circundados por solda- triunfo, mas não pensamos assim, e
dos. Registros do funcionamento do antes que a fantasia venha a desfigurá-lo
acampamento, desde o armazenamento e afastado de nós venha o tempo a
da munição até o atendimento aos do- emprestar-lhes outras cores e propor-
entes. Expressões de dor, desespero, ções, como simples cronistas nos pro-
submissão, preocupação e até mesmo pomos a relatar o que colhemos nos
alegria, povoam as vivências represen- jornais da época dando exata notícia
tadas nesta coleção. desse acontecimento que nos impressi-
A preocupação em apontar a unidade da onou e excitou nosso patriotismo, É

tropa, a presença constante da lideran- uma simples narrativa que pode ser útil

ça e o entrosamento do grupo, confron- ao historiador que no futuro se dedique

tadas às da destruição, fizeram destas a escrever a história dessa campanha


entre irmãos, a qual por longo tempo
fotos uma memória precisa de um tem-
pertubou a paz da República do Brasil' 18 .
po de consolidação do grupo militar e da
garantia da sua atuação como elemento O relato de Moreira de Azevedo expressa
diretivo dos rumos da nação. com rigor a preocupação, própria ao
O registro fotográfico atua como atesta- final do século XIX, em preservar o acon-
do da eficiência dos militares-convenci- tecimento contra a ação perniciosa do
dos que estavam do seu papel, como tempo e das futuras interpretações. O
documento de sua organização e prova ambiente cultural dos últimos anos do
de sua importância. século passado acreditava na isenção
do registro imediato com uma fé inaba-
A estruturação do espaço da vivência
em termos radicais opondo vitória/der- lável, concedendo a quem registra, o

rota; construção/destruição; força/fra- papel de juiz isento de crenças e precon-


queza; militar/civil corrobora tais afir- ceitos. Tal tendência encontrou na foto-
mações. Também a incidência prioritá- grafia a sua forma mais perfeita de ex-
ria de fotos posadas para registro foto- pressão.
gráfico, cerca de 73%, reforça a intenci- Seguros da neutralidade na escolha das
onalidade na expressão de significados palavras e das expressões para descre-
que viessem a enaltecer a figura do mi- verem os eventos, mais ainda ficariam
litar. com as possibilidades de objetividade
da câmera fotográfica. Esta sim, conse-
CONCLUSÃO guiria um registro isento de qualquer

N
a introdução de sua memória outro tipo de subjetividade, por ser um
histórica sobre a vitória de pedaço subtraído à realidade. Mo entan-
Canudos, datada de 1898, to, entre o sujeito que olha e a imagem
Manuel Duarte Moreira de Azevedo es- que elabora existe muito mais do que os

pag. 3 8 . j a n / d c z 1993
R V O

olhos p o d e m ver. Intervalo que é ocupa- vel: aquilo q u e realment e a c o n t e c e u e


do por uma rede de significados que como realmente a c o n t e c e u . Pretende-
r e m e t e t a n to às problemática s contem- se, assim, não uma escolha interpretativa

p o r â n e a s ao evento registrado, como ao em meio a t a n t a s outra, m as a única


leitura possível dos a c o n t e c i m e n t o s .
código d o m i n a n te de r e p r e s e n t a ç ã o .
A vitória d o s militares s o b r e o s s e r t a n e-
Desta forma, a s imagens fotográficas
j o s é um fato irrefutável. O conteúdo da
e l a b o r a d a s pelo fotógrafo expedicioná-
vitória, entretanto, a p o n ta para uma in-
rio, no m o m e n t o do conflito, expressam
terpretação que, claramente, busca
uma p r e o c u p a ç ã o em t e r m o s de memó- revitalizar o papel d o s militares no con-
ria, visando ultrapassar a linearidade do texto republicano e garantir, através da
t e m p o - r e t e n d o no registro a sua passa- construção da memória d o s fatos do
gem - e, por fim, afirmam a intenção de p a s s a d o , a sua p r e s e n ç a no futuro da
elaborar o relato o mais verídico possí- Nação.

M O T A S

1. Canudos álbum n. 1: Daft 8 9 7 . 0 0 . 0 0 / 8 ; n.2: Daft 8 9 7 . 0 0 . 0 0 / 9; fotos avulsas: 8 9 7 . 0 9 . 0 0 / 3 / 4 / 5 ,


Rio de Janeiro, Museu da República, Arquivo Histórico.
2. FABRIS, A. "Introdução", In: Usos e funções da fotografia no século XIX. Fabris, A. <org). São Paulo.
Edusp, 1991, p.24 - 2 5 .
3. ROSEMBLUM, li. World History of Photograph, New York: Abeville Press, 1984. p.180
4. SOARES.C.F.M. 8f SOARES,J.P.M.(eds.), CONTESTADO, Rio de Janeiro: Fundação Roberto
Marinho, Index, 1987.
5. Exemplos de alguns livros que utilizaram as fotografias dos álbuns para ilustração: BARRETO,E.D.,
Destruição de Canudos. Recife: Jornal do Recife, 1912, 300ps.il.; BENÍCIO, M., O rei dos jagunços.
Rio d e Janeiro, tipografia do Jornal do Comércio, 1899, il; ARAR1PE, T.de A., Expedições militares
contra Canudos. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.
6. Sobre a discussão do espaço como referencial ulterior e forma elementar de enquadramento da
experiência veja: ECO.Umberto. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1980, p . 1 8 5
e OSTROYER.F. 'A construção do olhar" In: O olhar, São Paulo: Companhia das Letras, 1987,
p. 175-177. Sobre as Programações sociais de comportamento veja LAnDI.Rossi F."Programações
Sociais de Comportamento", In: DIZIONARIO teorico-ideologico, Buenos Aires: ed.Qalerna, 1975
e CARDOSO, C.F.S."Semiótica, História e Classes Sociais." In: Ensaios racionalistas, Rio de
Janeiro: Campus, 1988.
7. Sobre a importância da dimensão espacial em análises histórico-semióticas da imagem
fotográfica veja: ANDRADE A.M.M.S., Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle
dos códigos de representação social da classe dominante, no Rio de Janeiro, na primeira metade do
século XX, Niterói: UFF, ICHF, Tese de doutorado, nov/1990, mimog.
8. FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, Canudos-, subsídios para a sua reavaliação histórica. Rio de
Janeiro: Centro de documentação, 1986.

Acervo, Rio de Janeiro. V. 6, n* 1-2. p. 25-4-0. jan/dei 1993 • pag. 3 9


9. Sobre a divisão da mensagem fotográfica em plano da forma da expressão e plano da forma do
conteúdo veja: ArlDRADE, op.cit.
10. Totós n.23 e 24 do álbum n.2.
11. O primeiro caso relaciona-se a foto n.10 do álbum 2 e o segundo caso às fotos n.2 e 3 do álbum
1.
12. BARTHES, R., Elementos de Semiologia. Lisboa: Ed.70, cap.ll.
13. Sobre os significados atribuídos às formas espaciais veja: AfIDRADE, op.cit., cap.lll e
Introdução.
14. Sobre as diferentes leituras do conflito de Canudos veja: HERMAtiM, J., Histórias de Canudos-.
o embate cultural entre o litoral e o sertão no século XIX, riiterói: UFF, ICHF, 1990. dissert. de
mestrado, mimeog. e VENEU, Marcos Quedes, 'A cruz e o barrete: tempo e história no conflito
de Canudos",In: RELIGIÃO e Sociedade, Rio de Janeiro, 13/2, jul. 1986.
15. Veja o item 1.
16. CRULS.Q. Aparência do Rio de Janeiro, Rio deJaneiro, Liv.José Olympio. Col.Documentos
Brasileiros. 2 v, v. 1 p . 5 6 7 , v o l . l.
17. Respectivamente as fotos n . 2 1 , 41 e 32 do álbum 2.
18. AZEVEDO, M.D. Moreira de. Vitória de Canudos, Rio Janeiro, 5 / 9 / 1 8 9 8 , 85fls manuscritas.
Biblioteca nacional, Divisão de Manuscritos, Ref. 12.1.8.

A B S T R A C T
The photographs taken by the Army during the fourth expedition to Canudos are analised through
an historic-semiotic view. The intention is to evaluate how the construction of a given memory of
the conflit revitalizes the roles played by the military in the Republic scenario and garantees their
presence in the nation's future.

R É S U M É
Les photographes prises par 1'armée pendant Ia quatrième expedition à Canudos sont analysées
par une approche historique-sèmiotique. II s'agit d'évaluer de quelle façon ia construction d'une
certaine mémoire du conflit revitalise le role des militaires au décor republicain et assure leur
presence dans le future de Ia nation.
Aline Lopes d e Lacerda
Pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil / CPDOC da Fundação
Qetúlio Vargas e mestranda em Ciência da Informação pelo IBICT/UPRJ.

O s o e n t i d o s <dl<a I m a g e m
ir otograiias ema a r q u i v o s pessoais

ste artigo busca tivas que a foto é capaz de

tíé apontar, de maneira


exploratória, algu-
apresentar, algumas são
comumente aceitas pelos
mas questões relativas à profissionais e instituições
potencialidade informacio- de arquivo, bibliotecas e
nal do registro fotográfico, museus como as mais im-
rio domínio que nos interessa aqui, o portantes a serem destacadas, as que
dos arquivos pessoais', acreditamos permitem que uma imagem seja consi-
existir diferentes variáveis que, se con- derada identificada. A despeito das mais
sideradas tanto pelo profissional que variadas formas de catalogação de foto-
organiza esses arquivos, quanto pelos grafias encontradas nas diversas insti-
seus usuários, podem proporcionar uma tuições, existem algumas categorias de
informação que são consideradas 'mo-
visão e entendimento mais abrangentes
delo' para descrição de imagens 2 :
da fotografia como fonte de informação
e fonte para o estudo da história. - Código do documento
O que pode ser considerado uma infor- - Autor
mação numa imagem fotográfica? Quan- - Título ou legenda (compreende a des-
do uma foto pode ser informativa? crição do evento e das pessoas retrata-
De uma série de possibilidades informa- das)

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 41-34, jan/dez 1993 - pag. 41


c E

- Local meiro campo definido numa ficha cata-


- Data lográfica, a sua entrada principal. Quem é
considerado o autor de uma imagem?
- Descrição física do documento (tipo,
Sem dúvida, seu criador, o fotógrafo,
cromia, dimensões)
aquele que j u r i d i c a m e n t e detém a 'pa-
- Motas
t e r n i d a d e ' da imagem registrada pela
Mo caso da catalogação de fotografias de câmera. Da m e s m a forma, o s estúdios
um arquivo pessoal, e s s a s informações ou a s agências podem ser t a m b é m con-
s ã o geralmente e n c o n t r a d a s na própria siderados autores, ao ponto de s e recu-
fotografia, ou em outras fontes, tais perar, em termos de indexação , a s duas
como d o c u m e n t o s manuscritos e recor- informações, q u a n d o s e encontram dis-
tes de j o r n a i s integrantes do mesmo poníveis. Geralmente há uma hierarquia
arquivo, além de livros, obras de refe- definida em torno da importância do
rência e d e p o i m e n t o s orais do titulai0 do fotógrafo em relação â agência ou ao
arquivo ou s e u s d e s c e n d e n t e s , etc. Tais estúdio. Isto se verifica na medida em
informações serão utilizadas no espaço que os procedimentos técnicos apon-
de descrição do item a ser catalogado - no tam como entrada principal o fotógrafo
caso, a fotografia - que, associado ao e 'opcionalmente o estúdio ou agência
espaço de indexação" da imagem, resul- responsável pela produção do registro
tam na ficha catalográfica. visual" 6 (grifo nosso).
Mo universo d e s s e s arquivos, o código

G
ostaríamos de chamar a aten-
da fotografia 5 , além de remeter à orde- ção para o papel de autor que
nação do d o c u m e n t o no interior do ar- um estúdio e, mais especifica-
quivo, informa a respeito do fundo ao m e n t e , uma agência (departamento s de
qual pertence aquela imagem, ou seja, o imprensa ou de propaganda, revistas,
arquivo de determinado titular. A recu- jornais, etc.) podem representar. Mão
peração do fundo ao qual o d o c u m e n to e s t a m o s com isso tirando do fotógrafo a
pertence é informação fundamental, na legitimidade de sua autoria, m a s gostarí-
medida em que assegura um dos princí- a m o s de tentar uma ampliação d e s s e
pios básicos e s t a b e l e c i d os pela arqui- conceito de autor a partir da reflexão
vística, o do respeito à proveniência. Des- desenvolvida por Foucault acerca do
ta forma é possível percebe r a unidade e discurso e da autoria discursiva . Para
o s e n t i d o do c o n j u n t o documental, ele, trata-se de "retirar ao sujeito (ou ao
inevitavelmente relacionados ao respon- seu substituto) o papel de fundamento
sável por sua acumulação . originário e de o analisar c o mo uma
A informação seguinte diz respeito à função variável e complexa do discur-
autoria do registro fotográfico. Vale ob- so" 7 . Para além de um 'sujeito originá-
servar que essa categoria de informação rio' como autor de um discurso, Foucault
é geralmente estabelecida como o pri- tenta a n a l i s a r a maneira como se exerce

pag. 4 2 , jan/dez 1993


R V O

o que ele chama de 'função autor', ou penhando cada qual uma função singu-
seja, o que estaria relacionado ao funci- lar e fundamental, no âmbito da produ-
o n a m e n t o do s discursos na sociedade, ção ou difusão dos registros, o fotógra-
sua organização, distribuição, atualiza- fo, estúdio ou agências; no âmbito de
ção. Nesse sentido, transcendend o a sua acumulação, o titular do arquivo,
idéia do sujeito originário do d i s c u r s o' aquele que acumulou durante sua vida
fotográfico (o fotógrafo), o s estúdios e fragmentos capazes de s e constituírem
principalmente as agências podem de- num e s p a ç o d e ' m e m ó r i a ' , q u a n d o do-
s e m p e n h a r essa ' função autor ' , na ados às instituições arquivísticas. É in-
medida em q u e funcionam muitas vezes teressante notar que e s t a s d u a s catego-
como legitimadoras e difusoras d e s s e s rias de informação - código e autor - são

registros, empregando fotógrafos, de- as primeiras a figurar j u n t a s n a s fichas


catalográficas que, embora representan-
terminando as matérias fotográficas a
do funções distintas, podem a p o n t a r
serem realizadas, obtendo direitos so-
para o fato de que uma fotografia, num
bre o uso d a s imagens , etc.
determinado arquivo, é s e m p r e fruto de
' A função autor (...) nào se define pela quem a produziu, mas t a m b é m de quem
atribuição espontânea de um discurso
teve a vontade de guardá-la, de preservá-
ao seu produtor, mas através de uma
la. Podemos assim refletir sobre a rela-
série de operações especificas e com-
plexas; não reenvia pura e simplesmen- ção que se estabelece , num arquivo
te para um individuo real, podendo dar pessoal fotográfico, entre o 'sujeito
lugar a vários 'eus' em simultâneo, a autor' da unidade , do fragmento, e o
várias posições-sujeitos que classes 'sujeito autor' da t o t a l i d a d e , do con-
diferentes de indivíduos podem ocu- junto.
par".8
As próximas categorias informacionais
Nesse sentido, gostaríamos de marcar existentes na descrição catalográfica são
que o autor pode ser uma categoria mais o evento, as pessoas retratadas, o local e
ampla do que o nome autor sugere, e a dafa da produção daquele registro.
isso pode até m e s mo apontar para as Estas informações, que muitas vezes não
m u d a n ç a s ocorridas ao longo da histó- se encontram no próprio d o c u m e n t o ,
ria da produção d e s s e s registros 9 . são fundamentais para situar a imagem
Gostaríamos t a m b é m de introduzir uma no tempo e no e s p a ç o . Sem elas, a foto
q u e s t ã o que n o s parece pertinente com não fala. Juntas, e s s a s informações cons-
relação à autoria do documento fotográ- tróem a legenda da imagem. Portanto,
fico: trata-se de indagar se nào teríamos, quando são insuficientes os d a d o s que
na verdade, dois tipos de autores situa- possam contextualizar o d o c u m e n t o ,
dos naturalmente em diferentes âmbi- deve-se e m p r e e n d e r uma pesquisa no
t o s no process o de constituição de um universo mais próximo a ele (o universo
arquivo fotográfico pessoal, mas desem- do próprio arquivo, bem como na bio-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2. p. 41-54. jan/dez 1993 - pag. 43


grafia do titular). imagens fotográficas trazem em si não a
É importante observar, que ao contrário reprodução mecânica e objetiva de um
do q u e c o m u m e n t e s e fala a respeito da real, mas sim uma reconstrução, uma
relativa independência da imagem em representação de uma realidade.
relaçáo ao texto escrito (e poderíamos Seria oportuno a p o n t a r m o s para uma
exemplificar com a idéia corrente de especificidade da fotografia enquanto
que uma foto jornalística, considerada parte integrante de um arquivo privado,
impactante e forte, p o d e prescindir de onde d e s e m p e n h a o papel de fonte de
uma legenda), consideramo s imprescin- informação histórica. Neste caso, ela
dível a existência de uma legenda que
j a m a i s prescindirá de uma legenda, de
referencie a imagem, quando considera-
d a d o s verbais que lhe d ê e m sentido,
da fonte informacional ou documental.
q u e p o s s a m identificar o q u e só é
Sem dúvida, a imagem apresenta seus
indicativo como informação na imagem.
próprios códigos de linguagem, bem di-
'O signo icõnico nem sempre é tão
ferentes dos códigos verbais. Náo se
claramente representativo quanto se
trata aqui de desconsiderar esse aspec-
crê, o que se confirma pelo fato de que
to, m a s de apontar para o fato de que
o mais das vezes é acompanhado de ins-
essa linguagem náo é natural, ou seja, crições verbais; mesmo porque, embora
simplesmente dada através da sua qua- reconhecível, sempre aparece, toda-
l i d a d e visual, m a s ao c o n t r á r i o , é via, carregado de certa ambigüidade,
construída, e n e s s e processo há que se denota mais facilmente o universal do
considerar diferentes variáveis forneci- que o particular (...) e por isso exige,
das pelas informações possíveis acerca nas comunicações que visem à precisão
da produção e trajetória do registro. As referencial (grifo nosso), o estar ancora-

GC 098 Lange, Peter


foto |0 ministro Gustavo Capanerra coro o pre-
sidente Getúlio Vargas. ?ntre outros, por
ocasião do desfile de Juventude Brasileira|.
(Rio de Janeiro, RJ, 4 set. 1940|.
1 fot.: p&b ; 18 x 24cm.
Existe foto idêntica no arquivo Getúlio
Vargas.
Possui dedicatória.
1. Manifestações cívicas, 2. Vargas, Ge-
túlio. 3. Capanema, Gustavo. 4. Rio de Ja-
neiro-Rio de ^fe Janeiro. 5. 1940/09/04.
I. Lange, P e t e r í ^
Filme 194/1/54.

Exemplo de ficha catalográfica (referente à foto da página ao lado)

pag. 4 4 . j a n / d ez 1993
R O

Foto: Peter Lange. FGV/CPDOC/Arquivo Gustavo Capanema.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 41-54. jan/dez 1993 - pag. 4 5


A C E

do num texto verbal" ,0. dizem m u i t o mais respeito à fotografia


Sem i d e n t i f i c a r m o s numa fotografia a enquanto o b j e t o do que ã imagem foto-
época em que foi feita, o evento gráfica. Ma p r i m e i r a , o o b j e t o é descrito
específico onde d e t e r m i n a d a s pessoas em suas características físicas, técnicas ,
estiveram presentes, corremo s o risco enquanto a área de notas, geralmente
de possuir u m a imagem de apenas um considerada m e n os i m p o r t a n t e na hie-
c o n j u n t o de pessoas r e u n i d a s ' . Sem rarquia das i n f o r m a ç õ e s extraídas d o
identificação, a foto pouco informa. d o c u m e n t o , abrange "quaisquer infor-
Obviamente r e c o n h e c e m o s a i m p o s s i b i - mações" " que sejam consideradas im-
lidade de, em certos casos, fornecermos portantes para a entidade catalogadora
t o d o s esses dados, u m a vez que lida- e que não se adequa m aos o u t r o s cam-
m o s c o m um material que nem sempre pos. Isto quer dizer que q u a l q u e r infor-
se apresenta i d e n t i f i c a d o e a busca aos mação adicional p o r v e n t u ra existente
dados através de pesquisa em outras numa fotografia, bem c o m o uma outra
fontes, m u i t a s vezes se revela infru- característica do suporte que mereça
tífera. Mas salien- c o n s i d e r a ç ã o , d e v e m ser observadas
_». >•. tamos que ine- neste campo.
, /> fj cr. j ,.,
rios chama a atenção, em p r i m e i r o lu-
%
(r ^L fj /, f/.£^ vitavelmen-
gar, o fato de que a fotografia não se
te, redu-
l i m i t a à i m a g e m . Ela é mais do que isso,
zem-se as
pois se configura t a m b é m n u m objeto
possibili-
para o estudo da história. Uma dedicató-
dades de
ria na imagem ou no verso da f o t o , um
acesso e de
c a r i m b o de j o r n a l c o m a data da possí-
uso dessas
vel publicação, um rasgo, u m recorte,
imagens com pouca o u n e n h u m a i d e n t i -
uma m o l d u r a com algum t i p o de inscri-
ficação. É interessante notar que em
ção, u m dado a respeito da técnica em-
t o d o s os arquivos sempre existem algu-
pregada naquela i m a g e m , entre o u t r o s
mas imagens q u e , por falta de dados
e x e m p l o s , são e l e m e n t o s valiosos que
básicos, fica m armazenadas ao f i n a l ,
m u i t a s vezes a p o n t a m para possíveis
após as f o t o s i d e n t i f i c a d a s , c o n s t i t u i n -
usos e funções dessas imagens ao longo
do uma espécie de arquivo mudo que não
da sua história. Em segundo lugar, acre-
se articula na teia de i n f o r m a ç õ e s tecida
d i t a m o s haver uma h i e r a r q u i a entre as
na organização do arquiv o e q u e , conse-
informações, cristalizada no p r ó p r i o for-
q ü e n t e m e n t e , não serão indexadas e
mato da ficha catalográfica e que, pelo
incorporadas ao sistema de i n f o r m a ç ã o ,
j á descrito a n t e r i o r m e n t e , considera o
porta de acesso para a pesquisa aos
autor, a legenda, o local e a data (ou
documentos.
seja, as i n f o r m a ç õ e s relativas ao con-
As categorias de informaçã o seguintes,
teúdo da imagem) de forma mais rele-
descrição física do d o c u m e n t o e notas.

pag. 46, jan/dez 1993


R V O

vante do que a descrição física e deta- história da técnica daquele registro o u


lhes acerca do o b j e t o fotográfico. Sáo informações que não passam necessari-
aquelas i n f o r m a ç õ es que se transfor- amente pelo conteúdo da imagem
mam em t e r m o s de indexação, isto é, reproduzida são indispensáveis ao enri-
em índices através dos quais o docu- q u e c i m e n t o de sua potencialidade en-
mento será recuperado. Mão se trata em quanto fonte d o c u m e n t a l . Se, por um
hipótese alguma de n e g a r a importância lado, é inegável a importância que essas
das i n f o r m a ç õ e s t r a d i c i o n a l m e n te recu- novas tecnologias vêm adquirind o por
peradas através dos i n s t r u m e n t os de sua atestada eficácia na otimização do
pesquisa. Do p o n t o de vista prático e tratamento técnico e da recuperação da
funcional não seria viável a proliferação informação em arquivos, por o u t ro lado,
de índices n u m catálogo de arquivos. O o usuário - base e eixo de toda essa
que nos cabe sublinha r é a importância operação - deve levar em consideração
de se considerar o registro fotográfico que as imagens em c o m p u t a d o r se tor-
em sua t o t a l i d a d e , ou seja, pelo seu nam u n i f o r m e s , sendo i m p o r t a n t e não
conteúdo t e m á t i c o (apreendido a partir tomá-las pelos próprios originais foto-
da imagem e de sua d e c o d i f i c a ç á o / i d e n- gráficos. É bom lembrar que por trás da
tificação), b e m c o m o por todos os indí- m u l t i p l i c i d a d e de ofertas que u m siste-
cios fornecidos pelo o b j e t o fotográfico, ma computadorizad o oferece, deve-se
o que i n c l u i verso, margem, etc. não perder de vista o o b j e t o fotográfico
como um elemento original e insubsti -

O
utro aspecto relativo à valoriza-
tuível.
ção da fotografia enquanto ob-
j e t o diz respeito às novas tecno- Portanto, a fotografia apresenta esses
logias de imagens computadorizadas que dois aspectos: imagem e o b j e t o . Acres-
utilizam scanners, discos óticos, etc. Atra- centaríamos ainda u m o u t r o , estreita-
vés da transferência e armazenamento mente relacionado à i m a g e m , e que diz
dessas imagens, as informações podem respeito à sua expressão. Essa expres-
ser recuperadas de forma mais ágil, ao são seria a forma c o m o uma imagem é
m e s m o t e m p o em que se preservam os mostrada, estando ligada a uma lingua-
suportes originais , evitando-se o manu- gem que lhe é própria e que envolve a
seio constante. Por o u t r o lado, nos inda- técnica especifica empregada, a angula-
gamos a respeito das imagens que são çáo, o e n q u a d r a m e n t o , a l u m i n o s i d a d e ,
separadas de seus suportes originais em o t e m p o de exposição, entre o u t r o s .

função de u m suport e novo que é abs- Essas três dimensões do registro foto-

t r a t o . Quanto se ganha e quanto se per- gráfico - c o n t e ú d o , expressão e f o r m a - é

de ao i n d u z i r m o s o usuário ao contato que c o n s t r ó e m , em últim a instância, a

direto c o m a imagem computadorizada mensagem que i n f o r m a .

em d e t r i m e n t o do contato c o m o forma- Até aqui p r o c u r a m o s estabelecer uma


to original? Questões que se referem à análise das categorias i n f o r m a c i o n a is

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2. p. 41-54, jan/dez 1993 - pag. 47


existentes numa ficha de descrição de um arquivo privado pessoal, são confe-
fotografias de um arquivo, procurando ridos pela instância acumuladora dos
articular o que é convencionalmente documentos muito mais do que pela
considerado como informação a ser des- instância produtora dos mesmos. O titu-
tacada de uma foto às várias possibilida- lar de um arquivo (com exceção dos
des de desdobramentos que o registro arquivos privados de fotógrafos), pode
pode oferecer. Mas uma ficha catalográ- até ser o autor de algumas imagens, mas
fica normalmente diz respeito à descri- a maioria nào foi produzida por ele, seu
ção de uma imagem, uma foto, ou no papel é muito mais o de colecionador
máximo a fotos agrupadas em um dossiê'2 desses registros. Cada documento pode
em função do arranjo arquivístico adota- falar por si, mas é o seu conjunto que
do. Mo entanto, as imagens fotográficas, pode expressar uma certa relação entre
se analisadas no papel que exercem ele e quem o acumulou. Estabelecer
nesse universo particular e na forma essa relação é importante, na medida
como se relacionam entre si, podem em que implica pensar no que orientou
gerar outras possibilidades de apreen- o titular a preservar certos registros. De
são das informações, outros significa- um arquivo fotográfico pessoal, por
dos. É importante lembrar que, em se exemplo, emana sempre a idéia dos
tratando de um arquivo depositado numa outros documentos que se perderam no
instituição de memória, deve-se consi- caminho, bem como de todos os mo-
derar o conjunto do qual a foto é parte mentos que nem sequer foram 'materi-
integrante. Quais os indícios que esse alizados' em imagens, que simplesmen-
conjunto pode revelar? te se perderam no tempo. Do aparente
Responder a essa questão é estar atento 'aleatório' da acumulação, podemos
ao fato de que a unidade e o sentido de nos indagar a respeito de uma 'constru-

mmmmmmmmmmm
|Tropas l e g a l i s t a s
ocupara a estação do Túnel
CC 040
foto por ocasião da Revolução constitucionalis-
de 19321. ÍMinas Gerais?, 1932 | .
1 f o t . : p&b; 18 x 24 cm.
Foto publicada pela revista Careta em 01.10.
1932.
Foto pertencente a álbum.

1. Revolução Constitucionalista de 1932.


2. Minas Gerais. 3 . 1932/00/00.

I
Exemplo de ficha catalográfica (referente á foto da página ao lado

pag. 4 8 . jan/dez 1993


R V O

ç ã o ' do q u e é acumulado pelo titular do poder gerar inúmeras cópias, a questão


arquivo, bem como do que efetivamente do estatuto do d o c u m e n t o único e de
é doado a uma instituição de preserva- sua autenticidade num arquivo ganha
ção de memória. De fato, o momento de uma nova dimensão. Segundo Walter
doação pode comportar uma 'recons- Benjamin, num estudo a respeito da
trução' d e s s e conjunto, pois nessa oca- reprodutibilidade técnica da obra de arte,
sião o doador, seja ele o titular ou s e u s a reprodução tira da obra o que ele
familiares, muitas vezes realiza uma tri- considera o seu 'aqui e agora', sua
agem no material acumulado, tendo em autenticidade.
vista sua entrada no circuito público das
'O aqui 9 agora do original constitui o
instituições de memória. conteúdo da sua autenticidade, e nela
Um outro a s p e c to interessante a ser se enraiza uma tradição que identifica
observado diz respeito a uma peculiari- esse objeto como sendo aquele objeto,
dade inerente ao registro fotográfico: sempre igual e idêntico a si mesmo" ls .
sua capacidade de reprodução. Devido O advento das reproduções técnicas d a s
ao fato de uma imagem num negativo obras de arte quebrariam com a idéia de

Estação do Túnel, no momento em que foi ocupada pelas forças mineiras. O major Albergaria, com
carvão, muda o nome da estaçáo para 'Cel. Fulgèncio'. (Legenda da foto publicada na revista Careta,
ano 25, n° 1.2*7, 1° de fevereiro de t 9 3 2 | FGV/CPDOC/ Arquivo Gustavo Capanema.

Acervo. Rio de Janeiro. V. 6, n* 1-2. p. 41-54. jan/dez 1993 • pag. 49


A C E

uma falsificação, c o n f e r i da até então à matriz a partir da qual outras cópias


reprodução m a n u a l , e inaugurariam uma p o d e m ser o b t i d a s . Um o u t r o dado con-
certa a u t o n o m i a ' em relação ao o r i g i - t r i b u i para a m i s t u r a desses dois itens
nal. Mas para B e n j a m i n , no que diz respeito ao estatuto de docu-
'mesmo que essas novas circunstânci- m e n t o o r i g i n a l : a quase inexistênci a de
as (as novas técnicas de reprodução) negativos em a r q u i v os pessoais. Geral-
deixem intacto o conteúdo da obra de mente são doadas apenas cópias, con-
arte, elas desvalorizam, de qualquer t r i b u i n d o para que essas sejam conside-
modo, o seu aqui e agora.(...). Ma medi-
radas o item original de um a r q u i v o .
da em que ela multiplica a reprodução,
Mais i m p o r t a n t e , no e n t a n t o , no â m b i t o
substitui a existência única da obra por
de nossa discussão, é a questão das
uma existência serial -14 .
possibilidades de r e p r o d u ç ã o de u m a

A
pesar da aparente diversidade
f o t o . Falamos até aqui de u m negativo e
de o b j e t o s - u m a obra de arte e
sua cópia a m p l i a d a , mas sabemos que
um d o c u m e n t o fotográfico -
de um m e s m o negativo i n ú m e r as cópias
gostaríamos de traçar um paralelo em
p o d e m ser produzidas e percorrer traje-
t o r n o do aspecto da ' p e r d a de a u t e n t i c i -
t ó r i a s t o t a l m e n t e d i s t i n t a s . A s s i m, u m a
d a d e ' através da r e p r o d u ç ã o técnica de
mesma imagem fotográfica pode na ver-
um o r i g i n a l .
dade se c o n s t i t u i r em m u i t o s 'docu-
O que pode ser considerado como origi- m e n t o s o r i g i n a i s ' , t a n t o s q u a n t o s fo-
nal n u m arquivo fotográfico? Mo proces- rem os arquivos que ela integre. Messe
so f o t o g r á f i c o , o que é considerado ele- p o n t o nos i n d a g a m o s se esse ' a q u i e
m e n t o originári o é o negativo, primeiro agora' do qual nos fala B e n j a m i n , que
suporte onde a imagem se fixa. Entre- atesta a autenticidade de u m a o b r a , não
t a n t o , a própria forma de se c o n s t i t u i r á seria, no caso dos d o c u m e n t o s históri-
técnica fotográfica relativiza o lugar de cos, m u l t i p l i c a d o em m u i t o s ' a q u i e
i t e m original u n i c a m e n t e do negativo. a g o r a ' , cada q u a l p o s s u i n d o sua a u t e n -
Para que o processo se c o m p l e t e , o u t i c i d a d e , seu estatuto de o r i g i n a l no
seja, para que se t o r n e visível o que está universo do qual é parte integrante. As-
fixado em imagens transparentes, é ne- s i m , a inserção de cópias de uma mes-
cessário a conclusão do processo, sua ma imagem em diferente s a r q u i v o s, não
transposição para o u t r o s u p o r t e , a cópia tira seu estatuto de ' o b r a ' o r i g i n a l e
positiva em papel. Messe s e n t i d o , tanto f o n t e original de i n f o r m a ç ã o , legítimo
u m negativo q u a n t o u m a c ó p i a são pas- do p o n t o de vista de seu c o n j u n t o . Se
síveis de serem considerados itens ori- por um lado a existência de cópias em
ginais e a u t ê n t i c os n u m a r q u i v o , haven- vários arquivos não altera o valor d o c u-
do c o n t u d o uma certa hierarquização m e n t a l de uma f o t o , por o u t r o nos faz
em t o r no da i m p o r t â n c i a do p r i m e i r o , refletir acerca da diversidade de trajetó-

por d e s e m p e n h ar t a m b é m o papel de rias que um m e s m o registro visual pode

pag. 5 0 . j a n / d e z 1 9 9 3
R V o

ter percorrid o e de papéis que pode ter co no desempenho de suas funções, o u


representado, Uma mesma imagem pode se há uma predominânci a de flagrantes
integrar tanto o arquivo privado de um m e n o s ' o f i c i a i s ' , nos quai s outras pos-
político que teve u m a atuação p ú b l i c a turas p o d e m ser percebidas. É o caso,
relevante, quanto um arquivo de j o r n a l por exemplo, dos álbuns de família, nos
o u revista que p o r v e n t u r a tenha realiza- quais, tanto o tipo de imagem que os
do uma c o b e r t u ra jornalístic a de um integram quanto sua própria seleção para
evento no q u a l o t i t u l ar do arquivo em compor esse espaço, p o d e m sugerir uma

questão tivesse participado. Nesse caso, lógica particular de exibição dessas ima-

do ponto de vista de sua circulação, gens. Isto se torna mais claro q u a n d o

esses d o c u m e n t o s não são únicos, uma observamos num mesmo arquivo algu-

vez que, além do espaço da vida privada mas fotos de família dispostas em ál-
buns, enquanto outras se misturam, avul-
do seu c o l e c i o n a d o r / a c u m u l a d o r, po-
sas, aos outros registros visuais. Quais
dem integrar t a n t o o c o n j u n t o da docu-
teriam sido os critérios de escolha dos
mentação da empresa j o r n a l í s t i c a que
registros capazes de integrar o espaço
os p r o d u z i u , q u a n to até o espaço públi-
s i m b ó l i c o desses á l b u n s , espécie de
co reservado às manchetes de j o r n a l i s -
v i t r i n e ' de l e m b r a n ç a s preservadas?
mo. Trata-se de chamar a atenção para o
Uma análise desse t i p o pode mostrar
fato de que o sentido desses d o c u m e n -
que, consideradas na totalidade do ar-
tos deverá estar relacionado a cada um
quivo o u comparadas em diferentes con-
desses universos, o que altera o seu
j u n t o s , as imagens podem expressar uma
significado.
determinada característica de cada fun-
'O arquivo (...) encontra sua unidade do 1 6 .
em quem o produziu como conjunto, ou
seja, em quem acumula os documentos Da mesma forma, a acumulação de do-

no exercício de suas atividades. O agru- cumentos fotográficos por um i n d i v í d u o


pamento dos documentos, sua seleção e sobretudo sua doação a uma institui -
dentre todos os passíveis de serem ção de guarda de arquivos, um dos espa-
guardados, proporciona o sentido dos ços de preservação da m e m ó r i a nas
mesmos' " . sociedades modernas, são processos
Portanto, o sentido da acumulação de que sugerem uma certa intenção em
um c o n j u n t o d o c u m e n t a l só pode ser eternizar uma determinad a imagem de
pensado em articulação com o sujeito si, tanto no que diz respeito à sua atua-
que o a c u m u l o u . No interior de um ar- ção pública, quanto ao espaço mais pri-
q u i v o , m e s m o em estado caótico de or- vado.
ganização, é i m p o r t a n t e perceber os t i - 'A produção de uma imagem é fruto
pos de imagens mais recorrentes, se são tanto d o que se exibe quanto do que se
as que refletem posturas mais formais e esconde (...) só doa arquivo quem su-

que s u b l i n h a m o lado do h o m e m p ú b l i - põe que seus documentos vão configu-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 41-54, jan/dez 1993 - pag. BI


A C E

rar para a história o que o titular en- A potencialidade i n f o r m a c i o n a l da fo-


quanto ator foi para a sua época. É tografia varia de acordo c o m a visão que
difícil imaginar o gesto de doação sem se tenha de seu valor e n q u a n t o f o n t e de
o espírito de notabilização. Do ponto de
informação e fonte histórica. Será tanto
vista da memória (...) nào se expõe,
m a i o r q u a n to for possível articular to-
conscientemente, o que não seja
dos os e l e m e n t o s f o r n e c i d o s pelo con-
rentabilizável como preservação de
t e x t o d o c u m e n t a l o r i g i n á r i o do qual é
imagem - ".
parte orgânica, gerando uma m u l t i p l i c i -
Ao ser d e p o s i t a d o , organizado e consi-
dade de i n f o r m a ç õ e s que p e r m i t e m u m a
derado a b e r t o à pesquisa, ao lado de
abordagem que transcende os l i m i t e s
o u t r o s f u n d o s que por sua vez t a m b é m
do p r ó p r i o d o c u m e n t o . O j o g o que ani-
espelham uma lógica p r ó p r i a , u m arqui-
ma a foto e sem o qual não se pode
vo passa a desempenhar o papel de
pensá-la é o seu caráter de ' o b r a ' em
representação "oficial" do universo do-
a b e r t o , o u m e l h o r, de d o c u m e n t o em
c u m e n t a l de um i n d i v í d u o .
a b e r t o , reflexo de u m o l h a r congelado

A
construção tanto de uma ima-
gem fotográfica quanto de um
arquivo privado não se acaba. l

Essa construção é o c o n j u n t o de diver-


sas variáveis que , pensadas j u n t a s , nos
permite uma visão mais abrangente da
m u l t i p l i c i d a d e de s e n t i d o s e usos que
p o d e m surgir a partir desse universo.
Essas variáveis, de f o r m a geral, são
manipuladas por diversos agentes: des-
de o autor do registro, passando por
q u e m a c u m u l a u m a r q u i v o , q u e m efeti-
v a m e n t e pratica sua doação a u m a insti-
t u i ç ã o , o profissional que vai trabalhar
em sua organização, até o pesquisador
que vem em busca da i n f o r m a ç ã o. Ao
pesquisador cabe t a m b é m um papel
i m p o r t a n t e nesse processo, j á que ele
vai construir o discurso h i s t ó r i c o a partir
dos fragmento s q u e c o m p õ e m o arquivo
de imagens em função de seu p r ó p r i o
olhar, que certamente irá interpretar es-
ses registros de acordo com suas refe-
rências c u l t u r a i s e i n d i v i d u a i s .

pag. 52. jan/dez 1993


R V o

no passado, mas que o t e m p o e as cir- por cada novo olhar. O valor d o c u m e n -


cunstâncias se encarregam de reorgani- tal de uma foto ultrapassa o valor infor-
zar, c o n f e r i r novos significados e que macional de seu c o n t e ú d o , e pode reve-
será recontextualizado e reconstruído lar-se ao receptor que souber interpretá-la.

N O

1. Considera-se arquivo privado pessoal o conjunto documental produzido e/ou acumulado por um
indivíduo ao longo de sua vida tanto na esfera de atuação privada quanto pública. Esse c o n j u n t o
pode se constituir das mais variadas espécies documentais, tais como cartas, impressos,
recortes de j o r n a i s , videos, fotografias, etc.
2. Mossa análise parte da catalogação de fotografias empregada no CPDOC, que tem como base os
procedimentos definidos pelo Código de Catalogação Anglo Americano (AACR2) para materiais
iconográficos, apresentando, porém, algumas adaptações necessárias às características parti-
culares do acervo do Centro.
3. Denomina-se titular de um arquivo privado pessoal o indivíduo responsável pela acumulação do
conjunto documental .
4. rio trabalho de organização de arquivo, a etapa de indexação das imagens consiste e m atribuir
índices - onomásticos , temáticos, geográficos, etc. - através dos quais cada d o c u m e n t o pode ser
recuperado no catálogo ou inventário de arquivo. Tais termos de indexação provêm das
informações fornecidas pela descrição do item catalogado.
5. Mo CPDOC, o código das fotografias é composto pelas iniciais do nome do titular do arquivo
acrescido de uma numeração seqüencial correspondente à ordenação do documento no arranjo
estabelecido. Ex.: A primeira foto do arquivo privado de Ulisses Guimarães tem como código UQ
001.
6. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Procedi-
mentos técnicos em arquivos privados. Coordenadoras-. Ana Lígia Silva Medeiros, Célia Maria
Leite Costa, Lúcia Lahmeyer Lobo. Rio de Janeiro, 1986. p. 3 7 .
7. POUCALT, Michel. O que é um autor ? Lisboa: Passagens, 1992. p. 7 0 .
8. I d e m , p. 5 6 .
9. É Interessante perceber que as fotografias onde mais comumente se encontra registrada a
autoria (fotógrafo ou estúdio) sáo as produzidas no século XIX e inicio do século XX. A partir
de então, nota-se o surgimento de menções às agências ou departamentos de propaganda, bem
c o m o aos j o r n a i s e revistas da época. Poderíamos sugerir que, co m a utilização da fotografia
pela imprensa (que ganha vulto nesse periodo), ocorre uma mudança no papel atribuído a esse
registro e, paralelamente, o esquema de sua produção vai se estruturando e se c o m p l e x i f i c a n d o ,
a ponto de encontrarmos como referência de autoria nos versos de algumas fotos só o carimbo
da agência, não constando o nome de quem efetivamente flagrou o instantâneo. Alguns
exemplos da existência de menção aos dois - fotógrafo e agência - t a m b é m são encontrados,
c o n t r i b u i n d o co m a idéia de dois tipos de autoria desempenhando funções distintas.
10. ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Pespectiva, 1976. p.l 1 1 .
1 1 . CPDOC. o p . c i t . , p. 4 2 .
12. Denomina-se dossiê o agrupamento de documentos que reflitam um mesmo evento, tema ou
missão fotográfica.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 41-54, jan/dez 1993 - pag. 5 3


13. BENJAMIM, Walter. "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica'. In: Obras Escolhidas:
magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.167.
14. Idem, p. 168.
15. VIANNA, Aurélio; LISSOVSKY. Mauricio; SÁ, Faulo Sérgio Morais de; 'A vontade de guardar:
lógica de acumulação em arquivos privados." ARQUIVO E ADMINISTRAÇÃO. Rio de Janeiro: v.
10-14. n.2. jul/dez 1986.
1 6. Poderíamos exemplificar melhor comparando as características que, de forma geral, apresen-
tam os arquivos de Qetúlio Vargas, Osvaldo Aranha e Filinto Muller, três importantes atores que
atuaram no cenário político da história recente do pais e cujos arquivos encontram-se
depositados no CPDOC. As imagens encontradas no arquivo d e Oetúlio Vargas retratam de
forma extensiva sua atuação pública à frente da presidência da República, o contato com os
políticos da época, compondo um quadro onde o espaço da política é dominante. Já o arquivo
de Osvaldo Aranha, em que pese a existência de registros que mostram muitos aspectos de sua
atuação política (como ministro de estado e embaixador), conta ainda com imagens que
testemunham o seu desempenho em outros papéis que não o de político, como sua paixão pelas
corridas de cavalo, sua circulação por outros ambientes na vida social, o contato com
personalidades famosas no âmbito das artes e da cultura, etc. Por último, o arquivo de Filinto
Muller, chefe de polícia durante o período do Estado Movo, possui a curiosa característica da
inexistência de fotos suas (nem portraits, nem em eventos). Ma maioria, sáo fotos de outras
pessoas que foram enviadas ao titular com a função de pedir algum favor, em agradecimento
ou em sua homenagem. Filinto é o autor e ator invisível desse universo documental e atua muito
mais como o eixo que faz possível a sua articulação e compreensão do que como seu
protagonista.
17. VIANNA et aili, op. cit., p.69.

A B S T R A C T
This article aims to analyse the several categories of information set up by cataloguing procedures
to describe the photography. By connecting this analysis to the context of the personal archives,
it is addressed that this kind of document suggests multiple interpretations. Such multiplicity is
directly associated to the information held by the photography as an object and as an image in itself
in combination with the archive the photography belongs to.

R É S U M É
Cet article a pour but d' analyser les plusieurs categories d'information établies pour Ia description
des documents phótographiques, ayant pour base les normes de catalogation de ces documents.
En reliant cette analyse á 1'univers des archives privées personnelles, on suggère que le registre
photographique peut indiquer une multiplicité de lectures. Cette multiplicité variera selon les
informations qui possibilitent Ia liaison entre le document photographique et 1'únivers particulier
d e 1'archive auquel il appartient.
Maurício Lissovsky
Historiador e Secretário Executivo do Instituto de Estudos da Religião - ISER.

o Bao e a Orelk.
Ascensão e queda
inm&genri nos íemnpos d i g i t a i

"História é, de fato, como uma ração. 1 Imagem numérica,


galeria de retratos em que há
poucos originais e muitas imagem sintética: os novos
cópias.' c a v a l e i r o s da h o r d a q u e
Alexis de Tocqueville outrora chamávamos imagem
técnica repovoam o mundo.
PRÓLOGO Valquírias dos t e m p o s e tra-
>| ^ ste texto pode ser lido como ços digitais, sobre ruínas analó-
~4 um obituário. Dados coletados gicas, estes novos m o d o s de ser imagem
váo decantando seu primado. Aqui se
aqui e ali, um tanto apressada-
busca divisar na terra devastada aquilo
m e n t e . Anotações. Compilações. Uma
que se extingue antes que o novo mundo
nota que s e redige receoso diante de um
defunto d e m a s i a d a m e n t e ilustre. esteja plenamente erguido. Eis do que se
trata: da ascensão e queda de um dispositi-
A linha, suporte figurativo por excelên- vo analógico de identificação: do retrato.
cia, soberana por mais de 25 séculos,
c e d e passo ao ponto, infinitamente pe-
ROSTO DO ATORI
q u e n o . O instante, táo breve quanto
DA D U A L I D A D E A DUPLICIDADE
aquilo a que c h a m a m o s simultâneo, nos
s u b m e t e a uma temporalidade radical- Meu ponto de partida é o teatro. Ma
mente distinta de outra que tomávamos antigüidade o rosto é persona - a másca-
por indissociável da experiência - a du- ra, a dramatis personae. A máscara tem

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 55-74. jan/dez 1993 - pag. 55


A C E

duas funções: ocultar, substituir o rosto elementos de uma disciplina corporal,


do ator - um 'disfarce'; e também, faci- visando conter "o entusiasmo, a impetu-
litar a ressonância, amplificar a voz. Cm osidade, os excessos que tomam conta
Roma, comenta Hannah Arendt, a pala- do rosto, as paixões que o deformam", 5
vra persona "transladou-se da linguagem fixando a 'justa medida' da expressão.
do teatro para a terminologia legal".2 Ali O repertório canõnico da eloqüência
distinguem-se o cidadão - persona - do codificou centenas de movimentos/po-
indivíduo 'natural' - homo. Quem com- sições de mãos, dedos, olhos. Mo púlpi-
parece diante de um tribunal 'não é o to, a disciplina, a codificação da expres-
Ego natural', por exemplo, mas 'uma são não é um meio para realçar, nuançar
pessoa titular de direitos e deveres cria- ou ironizar o texto. É um exercício de
da pelo Direito'. A personalidade jurídi- dessubjetivaçáo da oratória. O orador/
ca é a máscara; se alguém a enverga, sua pregador não é o médium, onde o trans-
voz ressoa no espaço público - é possí- cendente faz provisoriamente sua mora-
vel votar, acusar, defender... da. É a menor mediação possível. Cada
gesto, cada figura assumida pelo corpo,
A sociedade burguesa - ou a modernida-
é a constituição de um canal preciso,
de, se assim o preferirem - vai experi-
através do qual um conceito particular
mentar as relações entre a pessoa e o
encontra seu fluxo ideal, que a audiên-
indivíduo em novas bases, não mais um
cia pode então acolher na integridade
revezamento - como aquele entre os
de sua força e na plenitude de sua verda-
domínios público e privado - mas uma
de.
dualidade do que é essencialmente du-
plo. Indissociável, portanto, na pessoa Ma mesma Paris onde Dinouart reunia,
e no indivíduo. 3 em A eloqüência do corpo (1761), as indi-
O ator moderno deve menos ao teatro cações dos j e s u í t a s quanto à
antigo que à retórica clássica: "a oposi- performance corporal do pregador, o
ção greco-latina entre a máscara e a teatro burguês institucionalizava-se. Para
natureza do indivíduo vai se transformar Rousseau, o teatro é jogo de simulação,
de modo decisivo diante da exigência de lugar de artificialidade. rio teatro, o pú-
unidade da pessoa, que se acha definida blico aprende a "fingir, representar, a
desde então como uma substância raci- construir sua própria máscara".6 O teatro
onal, indivisível, individual." 4 O púlpito é assim a pior pedagogia para formar um
e o palco são os lugares onde o rosto/ corpo social que deve se basear no indi-
máscara deve ser pensado em suas rela- víduo. Agente de dissociação entre o
ções com o texto e o corpo. Nos tratados 'eu e a construção de máscaras', o
de retórica dos jesuítas inclue-se a actio teatro deve ser banido da cidade, espe-
- a performance corporal na oratória - que cialmente aquele representado por mu-
considera tanto o corpo, em sua apreensão lheres. Para Diderot, por outro lado, o
global, como cada uma de suas partes: teatro só é uma ameaça social quando o
cabeça, rosto, olhos, boca, mãos. ator trabalha 'emotivamente', podendo

pag. 5 6 . jan/dez 1993


R V O

ser tragado por sua criação. O bom de- frar, em cada rosto, o caráter, a inten-
s e m p e n h o s u p õ e a distância: o domínio ção, o sentimento. As técnicas de deci-
dos impulsos, o controle d a s emoções. 7 fração do rosto, de Le Brun e Lavater, no
Se em Rousseau o teatro é uma pedago- século XVII, à frenologia de Qall e à
gia da dissimulação, em Diderot é uma antropologia criminal de Lombroso, no
pedagogia do auto-controle. Diderot não século seguinte, descrevem um percur-
restabelece aqui a dualidade público/pri- so que s e inicia na identificação das
vado : máscara/rosto. Uma nova função é paixões e culmina na identificação e
atribuída à máscara: a disciplina do ros- classificação dos indivíduos.
to. A unidade do homem como rosto e Um passo decisivo neste percurso foi
máscara, o n d e o ' c a r á t e r ' e a 'dignida- dado por Darwin, com a publicação, em
de' s e impõem à paixão arrebatadora, à 1872, de A expressão das emoções no
dor que atormenta, ao impulso selva- homem e nos animais, ríeste livro, "Darwin
gem. 8 A máscara submet e no rosto tudo
queria demonstrar que os animais tém
aquilo que é indigno da espécie, tudo que
uma vida emocional, q u e o s meios da
é desumano, tudo que no homem é, sim-
expressão das e m o ç õ e s em h o m e n s e
plesmente, natureza.
animais são similares, que as razões
desta similaridade só podem ser
O C O N T I N U O DO explicadas pela evolução"." Ao identifi-
ROSTO E SEU GRAU ZERO car 'músculo s do d e s g o s t o ' no h o m e m

N
a cidade do Antigo Regime era e no cavalo, Darwin realiza uma opera-
possível distinguir as p e s s o a s ção mais complexa do que a p e n a s des-
'a partir das roupas especificas locar a origem da expressã o das emo-
a d o t a d a s pelos ofícios". Regulamentos e ções, da linguagem para o organismo.
leis suntuárias 'atribuíam a cada estrato Ele vai reiterar, a cada demonstração ,
da hierarquia social um conjunto de tra- uma continuidade entre o animal e o
j e s a d e q u a d o s e proibiam a qualquer humano. O contínuo em Darwin estende-
membro d os estrato s o uso de trajes de se no tempo e no e s p a ç o : continuidade
outra posição". 9 A cidade burguesa, ao filogenética no homem que "já existiu
contrário, diz-se, é a cidade sem marcas. em uma condição muito inferior e seme-
Rousseau, em sua aversão ao cosmopo- lhante ao animal" e continuidade entre
litismo, elabora a critica a esta cidade 'espécies distintas embora associadas'. 1 2
h o m o g ê n e a o n d e as 'aparência s enga- A expressão das emoções guarda ainda
nam': "as s u s p e i t a s , as desconfianças, alguma afinidade com as reflexões de
os temores , a frieza, a discrição, o ódio, a Diderot. Também em Darwin a expres-
traição esconder-se-áo incessantemente sob são é um excesso, seja como hábito as-
este véu uniforme e pérfido... Mão se ousa sociado, cuja utilidade esvaiu-se, ou
mais parecer o que se é. Portanto nunca como transbordamento da excitação. A
sabemos com quem temos relações." 10 outra face do contínuo darwiniano é seu
O anonimato das m a s s a s coage a deci- inerente gradualismo: 'a natureza não

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 55-74, jan/dez 1993 • pafl. 57


A C E

dá saltos', pensava-se e n t ã o . vo, cênico, significante, público, coleti-


O trabalho de Darwin havia sido inspira- vo' é substituíd o pelo ' m o d e l o coerciti-
do pelas famosas 'iconografias da vo, corporal, solitário, s e c r e t o ' . 1 5 Quan-
insãnia' - a primeira delas, o recensea- do se começa a elaborar que a punição
m e n t o calótipo do asilo de Springfield, deva deixar ' t r a ç o s ' s o b a forma d e
empreendido em 1851 - porém, mais hábitos, c o m p o r t a m e n t o s e não s ob a
do que isso, p e l a s fotografias de forma de ' s i n a i s ' . Mas a s t é c n i c a s de
Douchenne de Boulogne, publicadas em coerção nem s e m p r e desenvolvem-se na
Mecanismo da fisionomia humana ou análi- m e s m a velocidade e de forma 'coorde-
se eletro-fisiológica da expressão das pai- n a d a ' . A marca dos forçados é abolida
xões (1862). Aplicando eletrodos no s na França, em 1832, m a s ainda não
m ú s c u l o s da face de s e u paciente', havia sido criada uma técnica, ou um
Douchenne renovou a iconografia das 'sinal' alternativo para ' verificar o s
a n t e c e d e n t e s ' de um s u s p e i t o .
paixões de Le Brun e Lavater, expondo a
"ortografia e a gramática da fisionomia O uso da fotografia na identificação de
h u m a n a ' , 'os signos da linguagem muda criminosos ocorre ainda no t e m p o da
da alma' 1 3 . Mas teve de dedicar a fase daguerreotipia: Bruxelas (1843-44),
inicial de sua pesquisa a encontrar o B l a c k w e l l s I s l a n d - EUA ( 1 8 4 6 ) e
m o d e l o vivo' a d e q u a d o a s e u s experi- Birmigham (1848). Ê compreensível que
m e n t o s : em s u a s próprias palavras, "um o alto custo de produção d o s daguerre-
velho d e s d e n t a d o cuja fisionomia refle- ótipos restringisse a generalização des-
tisse perfeitamente seu caráter inofensi- ta prática e seu uso massivo. Mas j á em
vo e sua inteligência bastante limita- 1854, em Lausanne, noticia-se a identi-
da"14. O modelo de Douchenne é o seu ficação positiva de um suspeito "graças
grau zero da fisionomia, sua tábula-rasa à difusão de seu retrato j u n t o à polícia
da e x p r e s s ã o . Este é o outro aspecto do de t o d o s o s c a n t õ e s da Suíça e países
contínuo que se elabora: deve haver vizinhos.* 16
uma figura, uma posição, à qual todas as
Estava-se, afinal, no limiar da nova mar-
o u t r a s r e m e t em e de onde t o d a s possam
ca. Desde a s u p r e s s ã o da estigmatização
evoluir ou se desdobrar: um ancestral
e mutilação dos c o n d e n a d o s , a identifi-
comum ou o manequim d e s d e n t a d o do
cação dos reincidentes dependia ape-
sr. de Boulogne.
nas de t e s t e m u n h a s , principalmente fun-
cionários d a s prisões. Durante um certo
A MONTAGEM DO
período, "todo guarda que porventura
ARQUIVO DE I D E N T I F I C A Ç Ã O
identificasse um reincidente receberia

A
identificação criminal só se como gratificação um pacote de taba-
tornou, de fato, uma ' q u e s - co". 17 Ao longo da década de 1850, foto-
t ã o ' q u a n d o a função penal grafar prisioneiros torna-se prática regu-
começa a se inscrever no modelo disci- lar na Alsácia e em algumas cidades
plinar. Quando o ' m o d e l o representati- inglesas. Desde 1859, o Departamento

pag. 58, jan/dez 1993


R V O

Guillaume Douchene de Boulogne e seu modelo, em 1862: o cinzelamento elétrico


da expressão na matéria informe do rosto. In: FRIZOT. M. Histoire de voir. De I invention
a lart photographique (1839-1880J.Paris. Centre Nacional de Ia Photographie, 1989, p.l 15.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n' 1-2. p. 55-74. jan/dez 1993 - pag. 5 9


A C E

de Polícia de Mova York mantém uma reito' de dizer, ' b a s e a d o na ciência' :


galeria com fotografias de criminosos, 'eu sou eu'.20
como parte de sua 'ciência do pega-
Com a criação, em 1874, do Serviço de
ladrão': 'assim q u e um meliante s e tor-
Fotografia da Prefeitura de Polícia de
na perigoso para o público, ele é levado
Paris, o uso da fotografia na identifica-
à Qaleria Rogues e é obrigado a deixar lá
ção criminal inicia sua inflexão decisiva.
sua aparência, e d e s t e m o m e n t o em
A fotografia havia e n c o n t r a d o sua voca-
diante, ele p o d e ser reconhecido por
ção na 'história moral do m u n d o ' :
qualquer um. - 1 8
' d e t e c t a r e derrotar o crime'. 2 1 Começa
Em 1856, Ernest Lacan, paladino da fo- o registro sistemático de t o d o s a q u e l e s
tografia e r e d a t o r - c h e f e da r e v i s t a que ingressavam nos presídios.
especializada La Lumière, proclama a 'in-
Em 1879, um jovem escrivão de polícia,
falibilidade' d e uma polícia q u e p u s e s-
Alphose Bertillon, e n t ã o com 26 a n o s ,
s e a fotografia a seu serviço no controle
propõe o uso da antropologia - ou daquilo
de egressos e reincidentes: "qual foragi-
que passou a se chamar antropometria - da
do da justiça poderia escapar à vigilân-
m e n s u r a ç ã o das distâncias somáticas,
cia da polícia? Que ele escape dos mu-
como recurso auxiliar na identificação.
ros o n d e o retém sua pena; que, uma
S o m e n t e em 1882, s u a s s u g e s t õ e s co-
vez libertado, ele d e s o b e d e ç a a norma
meçam a ser a d o t a d a s , em caráter ex-
que lhe prescreve uma residência, seu
perimental. O Serviço de Fotografia vivia
retrato estará n a s mãos da autoridade;
um m o m e n t o crítico. Após oito a n o s d e
ele não poderá escapar: ele m e s m o será
ingentes esforços na fotografação de
forçado a s e r e c o n h e c er nesta imagem
delinqüentes, o sistema não era capaz
acusatória." 1 9
de garantir a identificação positiva de
O programa estava definido: reconhece r um suspeito q u e j á h o u v e s s e sido foto-
no suspeito o d e l i n q ü e n t e ; no crimino- grafado ( e fichado) anteriormente. Como
so de hoje, o c o n d e n a d o de o n t e m; no localizar a prova material da delinqüên-
indivíduo, sua 'carreira de c r i m e s '. Mas cia - t o r n a n d o ' p r e s e n t e ' o a r g u m e n t o ?
Lacan d e s t a ca uma qualidade muito par- Como forçar o auto-reconhecimento , s e
ticular: a fotografia podia suscitar o auto- o arquivo, quanto mais crescia, mais
reconhecimento. Confrontado com sua ocultava a imagem-resposta a esta per-
própria imagem, o delinqüente seria for- gunta? Cario Qinzburg afirma que o prin-
çado a admitir sua identidade. Menos de cipal problema enfrentado por Bertillon
um século depois de Lacan, um major decorria da imprecisão n a s m e d i ç õ e s , e
brasileiro podia reconhecer, em proce- de que s e tratava de um m é t o d o 'negati-
d i m e n t o s c o m o e s s e s , um 'direito ' d o s vo' de identificação, permitindo "sepa-
c i d a d ã o s - o direito à identidade - s e n d o , rar, no m o m e n t o do r e c o n h e c i m e n t o ,
em si m e s m o s , a b a s e 'física' da cida- dois indivíduos diferentes (A não é B),
dania, em s u a s prerrogativas e efeitos: o mas não afirmar que d u a s séries idênti-
h o m e m , enfim, teria o ' p o d e r ' e o 'di- cas de d a d o s s e referissem a um m e s m o

pag. 60. jan/dez 1993


R V O

indivíduo (A é A)"." Na realidade, no que imagem projeta-se' s o b r e outra e "res-


diz respeito a cadáveres em estado adi- saltam, acentuados, os traços c o m u n s e
antado de decomposição ou ossadas, se destroem os diferentes, que apare-
por exemplo, a s distâncias somáticas cem só vagamente na i m a g e m ' . "
foram a m p l a m e n t e aceitas como méto-
Bertillon pressintiu, n o s traços comuns
do de identificação 'positiva'. E conti-
que se destacavam em contraposição
nuam s e n d o , at é hoje, quando náo se
àqueles que se dissolviam, a emergên-
dispõe de material genético para con-
cia de uma tipologia. É possível afirmar,
fronto. Christian Phéline é mais preciso
sem muita chance de errar, que prolifera
na exposição do desafio que vinha sen-
a 'visualização dos postulados tipológi-
do enfrentado: "a multiplicação dos re-
cos que dominam agora a etnografia, a
tratos não é nada sem um princípio ope-
medicina ou a criminologia." 26 Mas creio
ratório que permita classificar e recupe-
que devemos nos exigir a sutileza neces-
rar cada uma das fichas individuais.'"
sária para perceber as distinções entre
Entre 1882 e 1888 serão produzidos
a s imagens antropológicas de Lombroso
8 0 . 0 0 0 registros; s o m e n t e no final deste
e as de Bertillon. Essa diferença pode
período Bertillon terá concluído sua re-
ser sugerida pelo modo como as experi-
forma. E seu sistema, conhecido como
ências de Galton refletiriam em cada um
bertillonagem, será oficialmente adotado.
deles. Os 'traço s c o m u n s a c e n t u a d o s ' -
A solução para o problema da classifi- o tipológico - em Lombroso remetem ao
cação' e 'recuperação' das fichas 'estigma' - o traço s o b e r a n o que domi-
signaléticas s o m e n t e ocorre a Bertillon na (e define) o tipo. Em Bertillon, a
quando ele toma contato com os experi- superposição de imagens sugere uma
mentos do antropólogo e estatístico in- gradaçáo - ou uma graduação. Os 'tra-
glês Francis Galton, o primo mais esper- ços fracos' situam-se nos extremos de
to de Charles Darwin. O objetivo da pes- um campo de variãncias em torno do
quisa de Galton, realizada em 1883, não traço comum que sobressai.
era identificar um crimonoso em parti- O médico, o criminalista, o etnógrafo:
cular, mas produzir o retrato genérico frente, perfil, frente, perfil, frente, per-
do d e l i n q ü e n t e ' , d e m o n s t r a r a "verdade fil... Se o regime de produção destas
geral dos rostos q u e poderia ser obtida imagens é tão semelhante, será que o
pela superposição de vários retratos dis- mesmo pode ser dito de seu regime de
tintos um s o b r e o outro. - 2 4 As imagens funcionamento, ou do modo como se
resultantes, batizadas fotografias organizam? Em 1850, um p e q u e n o con-
c o m p ó s i t a s ' , t a m b é m chamaram a aten- j u n t o de daguerreótipos de negros es-
ção de Freud. Em A interpretação dos cravos da Carolina do Sul, realizados
sonhos (1900), ele compara a s imagens por J.T. Zealey, foi suficiente para con-
g a l t o n i a n a s ao t r a b a l h o onírico de vencer Agassiz - o mais renomado dos
c o n d e n s a ç ã o ' , q u a n d o este funde os adversários criacionistas de Darwin - da
traços de d u a s ou mais p e s s o a s . Uma correção da hipótese poligênica, isto é.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n' 1-2, p. 55-74, jan/dez 1995 - pag. 61


A C E

da 'criação separada' das raças huma- forma de Bertillon é a redução standard


nas. Estas imagens, aliadas à evidência 1:7, sendo esta, rigorosamente, a escala
antropométrica, seriam a prova visível de representação dos indivíduos nas
da diferença 'natural', "estabelecendo fotografias feitas pelo Serviço. As ima-
de uma vez por todas que brancos e gens que Bertillon organiza em seu ar-
negros não derivam de um centro co- quivo, portanto, não são a 'aparência'
mum". Trachtemberg comenta que Zealey dos criminosos, como aquelas que eram
havia convertido 'indivíduos em evidên- exibidas na Galeria Rogues, mas a "ima-
cias de um tipo - uma ordem distinta de gem mais semelhante possível"29: a ima-
humanidade'. 27 Para além do 'paradigma gem analógica por excelência - a propor-
indiciário' de Qinzburg, é possível per- ção. A paixão de Bertillon pela propor-
ceber que imagens aparentemente se- ção o levou a construir, mais tarde, um
melhantes, produzidas de acordo com aparelho para 'fotografias métricas'
os padrões deste 'paradigma', funcio- (fotogramétricas, afinal) que, sob certas
nam de modo distinto se reunidas numa condições constantes, obtinha da cena
série que se supõe discreta - as distintas de um crime uma fotografia cujo coefici-
ordens de humanidade - ou contínua. ente de redução podia ser conhecido
Enquanto nos álbuns da antropologia para cada ponto do plano da imagem.
criminal os tipos se abrem á frequentação Dessa maneira, não só era possível veri-
das imagens, nas tábuas sinóticas de ficar a dimensão de qualquer um dos
Bertillon as séries de fotos estão organi- objetos ali figurados, mas, principalmen-
zadas, para fins didáticos, em conjuntos te, decidir se determinado objeto ou
'sintéticos' e 'analíticos' . Um grupo indivíduo poderia ter 'estado' ou 'ca-
de fotografias da série ' sintética' Con- bido' naquele lugar, ou 'passado' por
torno geral da cabeça, por exemplo, pode ele de um certo modo. Do ponto de vista
iniciar-se com uma cabeça larga (dita semiótico, a imagem da cena do crime,
'quadrada') e terminar com uma cabe- gerada por um mecanismo indicativo - a
ça estreita (dita 'longa'), passando por impressão físico-química de um suporte
uma cabeça nem larga nem estreita (ou causada pela luminosidade refletida
tão larga quanto estreita, dita 'redon- pelos objetos que integram a cena - é
da'). Nas séries 'analíticas', os conjun- reformatada por um dispositivo essenci-
tos têm duas, três ou mesmo mais foto- almente icònico. Torna-se um diagrama,
grafias, mas constituem, neste caso, gru- regulado aqui por uma relação algébrica
pos em que as imagens se opõem uma a que permite aferir as correspondências
uma, contrastativamente, e, de modo entre o que está dentro e o que está fora
predominante, servem apenas para que da imagem.
o técnico possa situar melhor o indiví-
Mas seu insight decisivo foi perceber que
duo em uma série 'sintética', existente
as distâncias somáticas, as gradações
ou virtual.28
das formas, as configurações morfológi-
Um dos elementos fundamentais da re- cas não eram apenas o melhor modo de

pag. 62. jan/dez 1993


V o

nos certificarmos que um indivíduo é deveria conduzir o técnico à ficha corre-


quem diz ser ou quem s u p o m o s que ele ta no arquivo e, neste caso, à caracteri-
seja. Em a m b o s os c a s o s , a 'identida- zação da reincidência.
de' é premissa, restando a p e n a s verifi-
car se esta identidade é verdadeira ou A DESMONTAGEM
falsa. Bertillon concluiu que estes ele- DO ARQUIVO.
mentos, e não o nome dos indivíduos, é O SEGREDO DO SUCESSO
que deveriam ser a chave dos procedi- É O SUCESSO DO FRACASSO
mentos de classificação, arranjo e re- A razão analógica que dá sentido à clas-
cuperação d a s imagens. Desse modo, o sificação e ao funcionamento do arqui-
problema da identificação preliminar do vo fotográfico de Bertillon é prototípica
delinqüente tornava-se primeiro uma dos procedimentos usuais da 'polícia
q u e s t ã o de ' ler' o próprio corpo do científica' ou ' t é c n i c a ' , como se diria
s u s p e i t o ' . A s u p e r p o s i ç ã o (mais preci- hoje. Edmond Loccard, em seu Tratado
s a m e n t e , a articulação) destas leituras de criminalística (sete volumes), enuncia

Jaci (drnrri. C « H M HJIM.< M B . MWSOV-bon»«4 \ITH.H


!.^U l^.t^imJw.M p*mw*. «Uughttr »t Reno í.mfp

Daguerreótipos de J. T. Zealy, realizados em 18S0, na


Carolina do Sul (EUA|,e assumidos pelo naturalista Louis Agassiz como
evidência da singularidade anatômica dos negros. In: TRACHTENBERG, A. Reading american
photographs. Images as history. Matew Brady to Walper Evans. EUA: Hill and Wang. 1989, p.55.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, ri" 1-2. p. 55-74. jan/dez 1993 - pag. 63


A C E

o seguinte procedimento padrão, radi- O recurso à analogia permite a Morelli


calmente distinto do raciocínio deduti- formular hipóteses quanto à autoria de
vo ': "em algum caso anteriormente ob- um quadro, omitindo, elipticamente, a
servado, tal signo correspondeu a certos inferéncia da regra à qual seus indícios
hábitos criminosos; eu reencontro este o haviam conduzido.
mesmo detalhe, eu concluo que este No caso de Holmes, para nos atermos
indivíduo tem os mesmos costumes que apenas ao exemplo apresentado por
aquele já visto."50 Qinzburg, o detetive dispõe de um indí-
Em seu famoso ensaio Sinais, sobre as cio material - um par de orelhas huma-
raízes do paradigma indiciário', Cario nas morbidamente enviado a uma se-
Qinzburg irá comparar os procedimen- nhorita em uma caixa de papelão. Ob-
tos adotados por Qiovanni Morelli aos servando as orelhas da destinatária,
de Sherlock Holmes.31 Morelli, interes- Holmes percebe as mesmas característi-
sado em um método seguro de autenti- cas morfológicas daquelas enviadas.
ficação de obras de arte, particularmen- Holmes conclui que a vitima "devia ser
te pinturas, dava mais atenção a 'por- uma parente consangüínea, provavel-
menores' que teriam sido negligencia- mente muito próxima da senhorita..." 33
dos por falsários e copistas, do que às Aqui, o caráter hipotético do argumento
características mais 'vistosas' da pintu- é evidente. Holmes chega a expressá-lo:
ra ou à 'obra em seu conjunto'. A técni- "não era possível pensar em coincidên-
ca de Morelli enquadrava-se perfeitamen- cia". Isto é, náo se tratava de um argu-
te no procedimento enunciado por mento montado sobre indícios que coin-
Loccard: se em um quadro de Boticcelli, cidem, mas de uma hipótese como aque-
sobre cuja autoria não pairam dúvidas, la que nos "ocorre quando deparamos
as unhas e o lóbulo da orelha foram com uma circunstância curiosa, capaz
pintados de um certo modo, então em de ser explicada pela suposição de que
um outro, cuja autoria ignoro e onde se trata de caso particular de certa regra
reencontro os mesmos traços, posso geral, adotando-se, em função disso, a
reconhecer, com razoável certeza, tam- suposição".J* Neste caso, a regra que
bém o pincel do mestre. Nos termos de serve de premissa à inferéncia de Holmes
Peirce, o método de Morelli constitui, prescreve que "parentes consangüíneos
inicialmente, a r g u m e n t o s de tipo têm orelhas semelhantes."
indutivo: "a indução ocorre quando ge- Poder-se-ia argumentar, no intuito de
neralizamos a partir de um certo número reforçar o caráter indiciário de ambos os
de casos em que algo é verdadeiro (es- métodos, que se tratam de 'deduções
tes lóbulos foram pintados por Boticcelli) estatísticas', associadas a 'índices de
e inferimos que a mesma coisa é verda- freqüência' ou à freqüência de certos
deira para o total da classe (todos os Índices. Porém, diante de uma orelha
lóbulos pintados do mesmo modo, o idêntica às de Boticcelli mas pintada por
terão sido, igualmente, por Boticcelli)."32 José da Silva, a indução de Morelli trans-

pag. 64. jan/dez 1993


v o

forma-se em ' a r g u m e n t o ridículo', isto empiricamente apurada numa dada po-


é, "aquele que consiste em negar que pulação. Ê possível, então, classificar os
I ocorrerá um tipo geral de acontecimen- indivíduos em 'muito baixos'- ' b a i x o s -
I to, com base em que ele j a m a i s ocor- 'ligeiramente baixos'-'medianos'-'ligei -
I reu". E, convenhamos, a p ó s a divulga- r a m e n t e a l t o s - a l t o s 'muito a l t o s ' . Esta
I ção do m é t o d o 'morelliano ' de autenti- ' seriação tripartite' , em torno do pon-
I ficaçào, entre 1874 e 1876, unhas e to considerado ' médio', é característica
orelhas passaram a integrar o métier de da gradaçáo sobreposta a cada figura
I todo bom falsário. Também no caso de morfológica. Mas quando se trata da
I flolmes, se a vítima e a senhorita não inclinação da base do nariz, por exem-
I fossem, de fato, parentes, o caráter hi- plo, t e m o s : muito arrebitado'-'arrebi-
[ potético teria se justificado por ser ele tado'-'ligeira m e n t e a r r e b i t a d o ' - ' h o r i -
"a única esperança possível de regular zontal'-'ligeiramente a b a i x a d o ' - ' abai-
I racionalmente nossa futura conduta." 35 xado'-'muito a b a i x a d o ' . Aqui, torna-se
l De todo m o d o , parece-me evidente que mais difícil crer que o nariz de base
I os m é t o d o s 'indiciários' de Morelli e horizontal possa corresponder à angula-
s Holmes estão a m b o s subordinados a çào média das b a s e s de nariz numa po-
í procedimento s analógicos que sistema- pulação. Também não è demonstrável
! tizam os indícios q u e recolhem. que se trata da média d o s 'tipos de base
n o sistema de Bertillon, os procedimen- de nariz', isto é, de um 'tipo m é d i o ' -
I t o s analógicos tiveram sua eficácia con- algo mais próximo, talvez, do q u e pen-
I dicionada à elaboração de um vocabulá- sava Quetelet. Se nos voltamos para o
í rio controlado, de fácil utilização pelos conjunto sintético ' d o r s o do nariz'( ver
técnicos da polícia. A lógica deste voca- nota 28), notamos que ele se compõ e de
bulário, Bertillon a encontrou na famosa três tripartições, distribuídas desigual-
; ' lei' do estatístico e a s t r ô n o m o belga mente em torno do tipo médio 'dorso
I J a c q u e s Quetelet: "tudo que vive, cresce retilíneo'. À e s q u e r d a do tipo médio, os
"I ou decresce, oscila entre um máximo e narizes c õ n c a v o s ('muito c ô n c a v o ' -
um mínimo, entre e s t e s vem s e agrupar 'côncavo'-'ligeiramente côncavo') e, à
I toda a gama de formas intermediárias, direita, os três tipos convexos e os três
í tanto mais n u m e r o s a s quanto mais se tipos arqueados. Neste caso, o tipo mé-
| aproximam do meio, tanto m e n o s nu- dio ('retilíneo') ocupa a p e n a s o centro
merosas quanto s e afastam deste". 36 geométrico da série, obrigando os seis
tipos à direita a se comprimirem em um
T a m b é m para Q u e t e l e t , p o r t a n t o, a espaço idêntico àquele destinado aos
I morfologia h u m a n a é um contínuo, onde três tipos à e s q u e r d a . Eis que o tipo
[ o ponto médio pode ser determinado. médio' transforma-se a p e n a s em uma
Mas a partir daí, avolumam-se as ambi- mediana dos tipos, e para tanto, foi pre-
S güidades. n ã o é difícil imaginar que, ciso atribuir a 6 o mesmo peso de 3.
I uma vez que se fixe a altura média em
! 1,65 m, Isto corresponda à altura média Em uma outra versão desta série sintéti-

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 55-74, jan/der 1993 - pag. 65


A C E

A percepção do continuo das formas por Bertillon, expressa na série


dorso do nariz. Observe-se que o tipo considerado médio ('retilíneo') ocupa o lugar central da série.

ca, Bertillon irá marcar uma bifurcação a arqueado';'semilunar'/'em em pena'


partir do tipo 'retilíneo', do qual se etc.
desdobrariam duas tripartições parale- Os tipos médios e as medianas de Bertillon
las: os cõncavos e os arqueados, resta- remetem ao juste milieu - a eqüidistân-
belecendo, aparentemente, a binarieda- cia' considerada na actio jesuítica: "... é
de de seu sistema de classificação. Mas necessário manter a cabeça reta, sem
creio que isto não é suficiente para que erguê-la demais, nem baixá-la, mas num
reconheçamos aí um modelo discreto. juste milieu' que é sua posição natu-
Um outro conjunto de imagens o des- ral", afirmava Dinouart.37 Mas na orató-
mente. A série sintética, de início muito ria, o juste milieu é o centro para onde
confusa, dos narizes de 'dorso sinuo- convergem (ou devem convergir) "os
so' , irá transformar-se num só tipo ( o movimentos que partem do tronco". Pio
sinuoso') sobre o qual as outras for- sistema de Bertillon, o tipo médio é o
mas sáo rebatidas, constituindo então o centro desde o qual os outros tipos di-
conjunto: côncavo-sinuoso', 'reto-si- vergem. Era justificável todo este esfor-
nuoso, 'convexo-sinuoso' e 'arqueado- ço - de lógica e imaginação - para tornar
sinuoso'. O sistema de Bertillon revela- inteligível o contínuo. Em 1866, o zoólo-
se ai um maravilhoso jogo de correspon- go Carl Craus sentia-se obrigado a admi-
dências, tanto internas, entre os diver- tir que "as classificações ainda eram
sos conjuntos sintéticos e analíticos, úteis, embora a realidade fosse um con-
mas também com outros conjuntos de tínuo sem interrupções". No início do
formas e figuras retiradas da arquitetu- nosso século, Freud - que havia sido
ra, da geometria, da astronomia: 'contí- aluno de Craus - insistia igualmente que
nuo'-' que brado-'paralelo'-'angu loso'- "os estágios psico-sexuais eram apenas

pag. 66, jan/dez 1993


obrigando as variações convexas a se comprimirem à direita dele.
In: FRIZOT, M. et alli. Identités. De Disderi au photomaton. Paris: Photo Copies. 1986, p. 72.

divisões convenientes do que se encara- lando de escansão, como se diz de um


va como um contínuo d e s d e o come- verso onde se busca analisar ritmo e
ço." 38 Antes e depois de Bertiilon, conti- rima e, portanto, algo que remete sem-
nuava-se a acreditar que a noção de um pre ao poema e á língua.
contínuo na natureza não era óbvia, nem É comum afirmar que a fotografia de
de fácil assimilação pelas audiências. identificação trouxe consigo um parado-
Resolver o problema da localização da xo. Christian Phéline reproduz esta idéia:
fotografia (e da ficha) de um indivíduo "concebida para melhor diferenciar os
cuja identidade não conhecemos , a par- indivíduos, a imagem signalética acaba
tir de d a d o s colhidos no próprio corpo por banalizar uniformemente s e u s tra-
do indivíduo, exigiu traduzir ou trans- ços pessoais; os modelos terminam por
mutar aquilo que é imagem e fotografia assemelhar-se uns aos outros, como
em registros de outra ordem: medições variantes monótonas de uma só e mes-
e figuras s e g m e n t a r e s da fisionomia. O ma estampa." Todos com a m e s ma 'cara
v o c a b u l á r i o c o n t r o l a d o c r i a d o por d e s u s p e i t o ' . 4 0 Mas, de fato, o n d e
Bertiilon é o conjunto dos n o m e s destas freqüentemente se enxerga o paradoxo
figuras. Qinzburg reconhecerá neste vo- das aparências, existe a p e n a s um apa-
cabulário "a descrição verbal analítica rente paradoxo; pois a identificação não
d a s u n i d a d e s discretas (nariz, olhos, se restringe ao retrato, mas s e compõe
orelhas etc), cuja soma deveria restituir de retrato e arquivo - e do vocabulário
a imagem de um indivíduo - possibilitan- que os liga e dispõe. Compreendido nesta
do assim o procedimento de identifica- perspectiva, este dispositivo analógico
ção". 39 Mo entanto, mais do que discreti- de identificação, surgido em 1874 para
zaçáo do contínuo, p o d e m o s estar fa- reconhecer um indivíduo particular, j á

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n' 1-2, p. 55-74, j a n / d e * 1993 - pag. 67


A C

havia se transformado em 1888 num dissertação sobre as p e s q u i s as com 'im-


sistema para identificar um indivíduo p r e s s õ e s digitais' que, d e s d e 1886, vi-
qualquer. O paradoxo se desfaz quando nha desenvolvendo a partir de pistas
me dou conta q u e minha 'carteira de deixadas por alguns p r e c u r s o r e s .
i d e n t i d a d e ' não traz o ' m e u ' retrato, Bertillon resiste à a m e a ç a datiloscópica:
mas o retrato de um cidadão qualquer "... malgrado a s e n g e n h o s a s pesquisas
que, neste caso, sou eu. de Qalton, na Inglaterra, os d e s e n h o s
Q u a n d o , a p e s a r d a r e s i s t ê n c i a de digitais não p o s s u e m e l e m e n t o s sufici-
Bertillon, seu complexo sistema de iden- e n t e m e n t e decisivos para servir de re-
tificação começa a ruir diante da sim- pertório a vários milhares de casos."* 2
ples e precisa datiloscopia, a verdadeira Havia algo em sua resistência além da
vocação da bertillonagem emerge: o re- vontade de preservar o poder e a fama
trato-falado. O a m o n t o a d o de fichas que havia conquistado. O próprio olhar
signaléticas e medidas antropométricas de Bertillon mantinha-o atado a seu
perde qualquer utilidade prática, mas m é t o d o . Mas linhas papilares, via ' d e s e -
seu vocabulário, aquilo que o estrutura- n h o s ' , cuja variação - ' r e p e r t ó r i o ' - era,
va, triunfa. Mão mais para identificar esta sim, demasiado monótona e limita-
alguém que se a p r e s e n t a diante da auto- da face à infinita gama de n u a n c e s da
ridade policial, m a s aquele outro que espécie humana.
está ausente e cuja presença é requerida. Mas a passos largos, primeiramente na
Livre do estorvo do arquivo, o vocabulá- América do Sul, o d e d o foi o c u p a n d o o
rio não está mais i n t e r e s s a d o em ' u m ' , pedestal que havia sido da orelha no
mas em ' q u a l q u e r u m ' . m o n u m e n t o da individuação. Leonídio
Ribeiro, médico legista que chefiou o
ü DEDO É A Gabinete de Identificação do Rio de Ja-
VERDADEIRA ORELHA
neiro, podia referir-se à ponta d os d e d o s
Ma opinião de Bertillon, nada poderia se quase nos m e s m o s termos a n t e s utiliza-
comparar à orelha, que superava os dos por Bertillon: 'durant e toda a vida
outros traços ' d o ponto de vista da iden- do indivíduo, os d e s e n h o s d a s extremi-
tificação: 'imutável na sua forma d e s d e d a d e s digitais p e r m a n e c e m os m e s m o s ,
o nascimento* e "retrataria às influênci- enquanto todas as outras partes do cor-
as do meio e da educação". Mo entanto, po se modificam com a idade (...), resiste
"em razão m e s m o d e sua imobilidade, à tudo, mesmo à vontade dos indiviiduos
que a impede de participar do jogo da e aos traumatismos e às doença s que
fisionomia, nenhuma parte do corpo atrai venha a sofrer.'* 3 Mas o que importa
m e n o s a atenção do leigo. Mosso olho salientar é que, ao contrário do sistema
tem tão pouco hábito de observá-la, de Bertillon, os datilogramas eram ar-
quanto nossa língua de descrevê-la".* 1 ranjados, a partir do método formulado
Mas a supremacia da orelha dura pouco. pelo argentino Vucetich, em grupos e
Já em 1890, Francis Qalton publica uma classes de caráter rigorosamente esta-

pag. 68, jan/dez 1993


R V O

tístico, isto é, reunidos a partir da fre- logo revelou s u a s limitações: era muito
qüência de formas e linhas, principal- volumoso, de difícil manuseio e exigia
mente d e s t a s últimas. r e m a n e j a m e n t o s constantes, fosse pela
Bertillon havia criado um ' á l b u m ' , co- necessidade de inserir novos retratos
nhecido por DKV - abreviaturas fonéticas ou eliminar a q u e l es que não eram mais
de três tipos de orelha - onde as imagens úteis.
se distribuíam segundo sua gradação J á os arquivos de datilogramas eram
em dezoito diferentes grupos de base estruturados de modo radicalmente dis-
constituídos pelo binômio forma do na- tinto. As matrizes icônicas d e organiza-
riz/forma da orelha. For este método, de ção desempenhava m papel bastante res-
leitura em leitura, o técnico acabaria trito. Apenas a s grandes classes ('argo-
com a p e n a s algumas poucas páginas do l a \ ' a r c o ' , ' t o r v e l i n h o ' etc) e u m a s
álbum para folhear à procura do retrato, tantas 'linhas imaginárias' unindo de-
e, portanto, da identidade do suspeito. t e r m i n a d o s p o n t o s do d e s e n h o ' ('cen-
Apesar da extrema fideldade com que tro', 'delta' etc.) tinham caráter
DKV refletia o contínuo das formas, ele analógico. Desse nível em diante, gru-

O par analítico parietais alastados/parietais próximos


remete a uma série sintética distância entre os parietais nào explicitada.
In: FRIZOT, M. et alli. Identités. De Disderi au photomaton. Photo Copies. Paris: 1986. p.68

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2, p. 55-74. jan/dez 1993 - pag. 6 9


A C E

pos, cada vez menores, constituíam-se a DEUS E O DIABO


cada nova distinção. Isto significa que a NA TERRA DOS ÍCONES
posição do datilograma no arquivo era Durante meio século, apostou-se na fo-
sempre absoluta, determinada pelo nú- tografia como ferramenta de identifica-
mero de linhas papilares ' r e a i s ' corta- ção e reconhecimento cuja eficácia pa-
d a s pelas 'imaginárias'; e não relativa recia não ter limites: "em vão o devasso,
à s fichas vizinhas, como no sistema de o vil, o perverso e o egoísta imitarão
Bertillon. A partir de 1902, Bertillon co- a q u e l e s sinais exteriores que perten-
meça a ceder e inclui a impressão digital cem naturalmente ao puro, ao bom e ao
em sua s fichas de identificação, a p e s ar generoso", afirmara o daguerreotipista
de ainda a s considerar um elemento norte-americano Marcus Aurelius Root,
secundário. acrescentando que a "indignidade interi-
or, apesar de todo o esforço, irá irromper
Não pode haver nada mais exemplar do através da máscara de carne". 44 A ' m á s -
espírito que anima cada arquivo do que cara', agora indissociável do indivíduo
seu modo de classificação. A primeira como ' c a r n e e o s s o ' , teria e n c o n t r a d o
sistematização da datiloscopia, realizada um desvelador à altura. Entre os vários
por Vucetich, era um sistema decadacti- projetos que buscaram conduzir a foto-
lar, isto é, que considerava o d e s e n h o grafia a seu destino manifesto, o de
geral em cada um d o s dez d e d o s , atribu- Bertillon foi, sem dúvida, o mais com-
plexo.
indo um código específico relativo a
cada combinação observada. Esta se- Estivesse a fotografia associada a uma
qüência de letras, conhecida por 'cifra leitura 'fisiológica' da d o e n ç a mental,
antropométrica', podia gerar, de saída, que procurava na imagem do insano os
mais de 1.400.000 classes genéricas, sinais de uma doença que se s u p u n h a
facilmente discerníveis umas d a s ou- difusa pelo corpo, ou n a s m ã o s de antro-
pólogos e naturalistas, ela j a m a i s s e
tras. Bertillon, por outro lado, estava às
libertou da n e c e s s i d a de de dar a ver
voltas com o alfabeto. Para um só n o m e ,
algo que j á deveria estar lá, antes dela:
Aunaye, por exemplo, ele foi capaz de
algo a que deveria corresponder. O gi-
imaginar 10.000 grafias distintas, defi-
gantesco esforço de Bertillon conseguiu
nindo-se afinal por representá-las fone-
ser, ao m e s mo t e m p o , o avesso da
t i c a m e n t e : ' O n é ' . Em torno d e s t e n o m e tipologia e seu avatar, a reencarnaçã o
'fonético' deveriam gravitar t o d a s a s d e um d e u s - í c o n e d e i n u m e r á v e i s
s u a s variantes , o s 10.000 graus de epifanias. Expulsas do arquivo pelo de-
Aunaye. A comparaçã o entre o s dois mônio digital, a s imagens de Bertillon
s i s t e m a s traz à tona uma distinção ainda podem então exibir sua natureza: puro
mais profunda, pois remetem a m o d o s jogo de correspondências. Mas m ã o s do
distintos d e individuaçâo: diferenciação perito, o retrato-falado torna-se, afinal,
em Vucetich, assimilação em Bertillon. aquilo que a s fotografias que lhe deram

pag. 70, jan/dez 1993


R V o

origem pretendiam ser desde o início: a descoberto quanto à hereditariedade,


imagem mais s e m e l h a n t e possível'. graus de parentesco, sexo, idade ou
aptidões inatas. Vítimas de sua própria
Mas a nova ordem digital ainda não esta-
eficácia, os sistemas datiloscópicos adi-
va suficientemente tranqüila consigo
aram, talvez para sempre, a descoberta
mesma: fez-se ordem em busca do trans-
de seu significado e sua 'razão de s e r ' .
c e n d e n t e . Nos 50 a n o s que se seguiram
Os verdadeiros arquivos da lei eram ar-
ao seu triunfo, esta s e g u n d a ' ordem,
quivos sem Lei.
que deveria se sobrepor aos arquivos
banal e estatisticamente construídos, foi
pressentida e perseguida de diversas EPILOGO

maneiras. Mas primeiras d é c a d a s do século XX,


Loccard aborrecia-se com o fato de que ainda podemos ouvir os ecos de Bertillon
q u a l q u e r conclusão científica' s o b r e - e dos sistemas analógicos de identifi-
os d e s e n h o s nas i m p r e s s õ e s digitais cação criminal. Em 1914, no Congresso
exigiriam rearranjar os fichários, mas de Polícia Judiciária de Mônaco, sugere-
permanecia otimista: "o que é possível, se o uso de câmera s cinematográficas
o que se poderá estabelece r quando se pelos serviços de identificação judiciá-
estudar desse ponto de vista particular, ria no intuito de filmar os indivíduos em
algumas d e z e n a s de milhares de fichas ' s u a s atitudes h a b i t u a i s ' . O projeto foi
classificadas por provenièncias étnicas, apresentado por uma mulher, provavel-
é que os vários tipos de d e s e n h o s nào se m e n t e mais atenta, como acreditava
apresentam com a mesma freqüência Leibniz, a detalhes imperceptíveis a o s
nas diferentes raças h u m a n a s . ' Afránio olhos masculinos. Mlle. Dyvrande sus-
Peixoto, no Brasil, insistia, ainda em tentava que a distinção entre os indiví-
1934, que seria factível investigar as duos não é "sobretudo os traços da figu-
•possíveis relações hereditárias e, prin- ra, é a expressão da fisionomia, que
cipalmente, a diferenciação científica varia muito segundo as circunstâncias, é
das raças humanas" 4 5 . a corpulência, os gestos, o porte, o ca-
minhar e também a maneira de se ves-
Osvaldo Miranda Pinto p e s q u i s o u
tir". Enfim, tudo aquilo que a bertillona-
chipanzés e gorilas e Loccard, certa vez,
gem havia excluído. Com o auxílio do
identificou, através das impressões digi-
cinema, seria possível fixar ' a s atitudes
tais, um "macaco arrombador". 46 Mas nem
mais impressionantes, as mais surpre-
mesmo e s t e s experimentos exóticos le-
e n d e n t e s do indivíduo; s e u s movimen-
varam ao que se almejava. Mo final dos
tos e s e u s gestos poderão ser assim
a n o s 1940, pouco se podia afirmar além
lentamente decompostos e estudados.'* 7
de q u e a s argolas ' p r e d o m i n a m n o s
d o l i c o c é f a l o s ' e os ' t o r v e l i n h o s ' no s A proposta de Mlle. Dyvrande não foi
braquicéfalos'. Mas n e n h u m a conclu- levada a cabo, mas p o d e m o s conceber o
s ã o p r á t i c a ' p ô d e s e r tirad a d e s t a modo como teriam evoluído os sistemas
c o n s t a t a ç ã o . Também nada de 'útil' foi icónicos caso seu regime tivesse pre-

Acervo, Rio Janeiro. v. 6, n" 1-2, p. 55-74, jan/dez 1993 - pag. 7 1


A C E

valecido. O c i n e ma - técnica privilegiada rência e a t i t u d e s inofensivas, um cida-


para registrar tudo q u e n ã o é orelha e dão insuspeito. Mas o criminoso s e n d o
e x c e p c i o n a l m e n t e privilegiada na iden- d e s c o b e r t o por um mendigo cego, q u e
tificação d a q u e l e s q u e n o s ' s u r p r e e n - r e c o n h e c e o som de s e u s p a s s o s e o tom
d e m ' m o v e n d o - a s - s e n ã o t r o u xe a de s e u a s s o b i o . O mendigo cego d e Fritz
s o l u ç ã o , teria t e r m i n a d o p o r colocar Lang é a e n c a r n a ç ã o d o s novos proces-
novos p r o b l e m a s . No primeiro filme so- s o s de identificação, igualmente cegos a
noro de Fritz Lang - M, o Vampiro de t u d o aquilo que não seja indício. Ao
Düsseldorf- e s t a m o s diante de um crimi- m e n o s , do m o d o c o m o o s imaginamos
n o s o , um a s s a s s i n o d e crianças, de apa- agora.

ri o
1. Cf. VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1993, pp. 22-7
2. ARENDT, Hannah. Sobre Ia revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 116
3. A tradição sociológica, digamos, de Durkheim em diante, desfia-se a partir desta dualidade
insdistinta entre pessoa e indivíduo, reconhecendo na pessoa a mascara, a 'carapaça
simbólica' que protege o indivíduo em sua 'fragilidade biológica'. Reduzido ao status d e ente
biológico, o indivíduo é desumanizado. Para uma breve revisão desta tradição, sugere-se LIMA,
Luis Costa. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 42-7.
4. HAROCHE, Claudine e COURTlriE, Jean Jacques. O homem desfigurado- Semiologia e Antropologia
Política da Expressão e da fisionomia do século XVII ao XIX. In: Revista Brasileira de História.
São Paulo, v. 7 n. 13, p. 7-32, set. 86/fev. 87. p. 8. Este texto, dedicado a esboçar uma história
da 'história natural do rosto e da expressão' permite seguir de perto alguns passos que, aqui,
estão apenas esquematizados.
5. Idem. p . 2 2 .

pag. 72. jan/dez 1993


R V O

6. Sobre as opiniões de Rousseau e Diderot acerca do teatro, ver t a m b é m RAQO, Margareth. Prazer
e perdição: a representação da cidade nos anos vinte. In: Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 7. n. 13. pp. 77-102, set. 8 6 / f e v . 87 e ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a D'Alembert.
Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
7. SEMMET, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 142-5.
8. RAQO, Margareth. Op. cit. pp. 97-8.
9. SENHET, Richard. Op. cit, pp. 89-90.
10. Citado em HAROCHE, C. e COURTIME, J. Op. cit. p. 3 2 .
11. SEMMET, Richard. Op. cit. p. 2 1 5 .
12. R1TVO, Lucille B. A influência de Oarmn sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 2 2 7 .
13. DELPIRE, Robert e FR1ZOT, Michel. Histoire de voir; de 1'invention a l'art photographiqu e (1839
- 1880). Paris: Centre Mational de Ia Photographie, 1989, p. 114.
14. Citado em ROU1LLÊ, André. (1851 - 1870). In: LEMAQNY, Jean Claude e ROUILLÉ, André. A
history of photography; social and cultural perspectives. Cambridge: Cambridge University Press,
1987. p. 4 8 .
15. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 1977. p. 116
16. PHÉL1ME, Christian. Portraits en régle. In: 1DEMT1TÉS de Disdéri au p h o t o m a t o n . Paris: Centre
Mational de Ia Photographie,Éditions du Chéne, 1985. p.53
17. LÉRICM, Leon. La police scienfifique. Paris: Presses Universitaires de France, 1949. p. 4 9 .
18. Citado e m TRACHTEMBERQ, Alan. Reading american photographs. EUA: t l i l l and Wang, 1989. p.
29.
19. Citado e m PHÉLIME, C. Op. cit. p. 3 4 .
2 0 . CARRARA, Sérgio. A ciência e doutrina da identificação no Brasil: ou do Controle do Eu no templo
da técnica. In Religião e Sociedade 1 5 ( 1 ) 82-105. Rio de Janeiro: ISER/CER, 1990. p. 8 9 .
2 1 . Palavras proféticas do Reverendo t i . J. Morton, respondendo, em 1864, a uma enquete sobre
a "Fotografia como Agente Moral". Citado em TRACHTEMBERQ, A. Op. cit. p. 5 8 .
2 2 . QIMZBURQ, C. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 173-4.
Qinzburg irá consideraro arquivo fotográfico criminal no contexto de sua investigação sobre
'as raízes do paradigma i n d i c i á r i o '. Do modo como pretendo estar encaminhando meu
raciocínio, trata-se aqui de esboçar algumas distinções no interior destes sistemas 'semióticos',
verificando que, em vários deles, um possível 'paradigma i n d i c i á r i o ' pode estar subordinado
a matrizes icônicas, estas sim estruturantes dos regimes de funcionamento e organização das
imagens.
2 3 . PHÉLIME, C. Op. cit., p. 5 6 .
24.D1DI-HUBERMAM, Qeorges. Photography - scientific and pseudo-scientific. In LEMAQMY, J. e
ROUILLÉ, A. Op. cit. p. 7 3 .
25. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: Obras Completas, vol . 1. Madrid: Biblioteca
Mueva, 1948. p. 4 0 1 . Convém observar que, no caso de Freud, sua inspiração foram os
'retratos de família' que Qalton realizou valendo-se da mesma técnica.
26. PHÉLIME, C. Op. cit. p. 56
27. TRACHTEMBERQ, A. Op. cit. pp. 53-57.
28. O nariz côncavo e o nariz convexo, por exemplo, são um par característico (analítico) que
remete a uma série sintética que se inicia no nariz côncavo e termina no arqueado (ou seja,
o mais q u e m u i t o convexo). O par analítico 'parietais d i s t a n t e s ' / ' p a r i e t a i s p r ó x i m o s ' remete,
por sua vez, a uma série sintética 'distância entre os parietais' apenas v i r t u a l , não desenvol-
vida porque pouco relevante para a identificação.
2 9 . Citado em PHÉLIME, C. Op. cit. p. 5 7 .
3 0 . Citado em LERICH, Léon. Op. cit. p. 12. Mos anos de 1940, a Inglaterra j á havia formalizado
u m sistema de identificação conhecido como modus operandi system, que consistia em
classificar os delinqüentes segundo o seu ' e s t i l o ' ao cometer este ou aquele d e l i t o .
3 1 . QIHZBURQ, C. Op. cit. pp. 1 4 5 - 5 1 .
3 2 . PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 150.
3 3 . Citado em QIHZBURQ, C. Op. cit. p. 145-6.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2, p. 35-74, Jan/dez 1993 - pag. 7 3


34. PEIRCE, C. Op cit. p. 150.
35. Sobre os tipos de argumentos aqui discutidos, ver PEIRCE, C. Op cit. p. 110-12.
36. Citado em LÉRICH, L. Op. cit., p. 5 1 .
37. Citado em HAROCHE, C. e COURTIME, J. Op. cit., p. 2 1 .
38. Cf. RITVO, L. Op. cit., p. 250.
39. GIMZBURQ, C. Op. cit., p. 174.
40. PHÉL1NE, C. Op. cit., p.58
41. Idem. p. 56
42. LÉRICH, L. Op. cit., p. 18.
43. Citado em CARRARA, S. Op. cit., p. 9 3 .
44. Citado em TRACHTEMBERG, Op. cit., p. 28.
45. Citado em CARRARA, S. Op. cit., p. 95-6.
46. Cf. LÉRICH, L. p. 3 1 .
47. Citado em LÉRICH. op. cit. p.65.

A B S T R A C T
Digital technologies present new questions when one intends to in vestigate the previus technologies
used in images and data processing. In this paper, it is seeken to understand the analogical systems
of organization of visual information - specially the case of the identification portrait - on account
of the emergence of the dactyloscopic technique. Oid and new techniques are analysed, as well as
how they articulate with different visions of nature and of humaneness.

R E S U M E
Les technologies digitales posent de nouveaux problèmes à celui qui prétend comprendre les
techniques antérieurement utilisées pour le traitement de I' image et de 1'information.Dans ce
texte, on cherche Ia compréhension des systèmes analogiques d'organization d e l'information
visuelle - lors du surgissement de Ia technique dactiloscopique. On observe leurs systèmes de
travai! et comment ils s'articulent avec les diverses visions de Ia nature et de I' humain.
Helouise Costa
Doutoranda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Pesquisadora
da Divisão Científica do Museu de Arte Contemporânea da mesma Universidade.

U a Ir ©togiraiia cie
I m p r e n s a ao
Jr ©iojoFn&lism©

A
n e c e s s i d a d e de siste- A N T E C E D E N T E S DA
matizar as informações <- FOTOGRAFIA DE
disponíveis, de modo REPORTAGEM
disperso, sobre o processo de
incorporação da fotografia nas ^— As origens da reportagem
páginas d a s revistas ilustradas, foi o fotográfica remontam a m e a d o s do sé-
ponto de partida do estudo que se se- culo XIX. A partir da invenção do proces-
gue. A principal preocupação foi relaci- so de colódio úmido, patenteado em
onar o desenvolvimento técnico da foto- 1854, começaram a surgir trabalhos com
grafia e dos sistemas de impressão com características de reportagem. Neste sen-
as transformações sociais que geraram a tido, os exemplos mais significativos
demanda por um novo padrão icônico estão ligados à d o c u m e n t a ç ã o de guer-
no âmbito da imprensa e que resultou ra. Roger Fenton registrou a Querra da
na fotorreportagem. Utilizaremos a ex- Criméia em 1855 e Mathew Brady a Quer-
pressão 'fotografia de imprensa ' para ra da Secessão norte-americana no iní-
designar a simples transposição da foto- cio dos anos 1860. Embora tenham par-
grafia para as páginas dos periódicos, ao tido de diferentes premissas , o que há
passo que o termo 'fotojomalismo' irá refe- em comum entre e s t e s trabalhos é a
rendar um tipo de fotografia especifico, adap- proposta de d o c u m e n t a ç ão de aconteci-
tado às demandas da imprensa ilustrada. m e n t o s c o n t e m p o r â n e os de interesse

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2, p. 75-86, jan/dez 1993 - pag. 75


A C E

coletivo. Abriu-se um novo caminho de gravuras 2 , rio entanto, a origem fotográ-


a t u a ç ã o para o fotógrafo, ampliando o fica d e s s a s ilustrações náo se revelava a
seu restrito repertório inicial de retratos não ser pela citaçào dos créditos, sem
e paisagens. os quais não s e distinguiam de gravuras
feitas a partir de d e s e n h o s . Isso porque
Esse caminho, no entanto, apresentava a fotografia passava por uma espécie de
ainda inúmeros obstáculos . Se o colódio ' t r a d u ç ã o ' para ser impressa nas pági-
nas do s periódicos. Era preciso fazer um
úmido possibilitava a reprodutibilidade
d e s e n h o a partir da foto, transformando
das imagens, a feitura de cópias em
a s luzes e s o m b r a s em traços, transpos-
papel e uma mobilidade relativa para o
tos entào para a gravura. O resultado
fotógrafo, se comparada ao daguerreóti-
eram imagens isentas da especificidade
po, estava longe de lhe permitir a agili-
da linguagem fotográfica, o que tornava
dade necessária para o d e s e m p e n h o de
muito mais vantajoso o uso direto de
uma atividade de documentação mais
d e s e n h o s como matrizes, pois e s t e s j á
próxima do cotidiano. As condições de se apresentavam sob a forma de linhas,
trabalho do fotógrafo, naquele momen- dispensando, portanto, a transposição
to, s e traduziam nas p e s a d a s chapa s de técnica.
vidro que precisavam ser preparadas e
reveladas na hora, nas câmeras de grande
formato q u e demandavam o uso de tripé A INVENÇÃO DO
e na baixa sensibilidade d o s filmes que PROCESSO DE M E I O . T O M :
exigiam t e m p o s de exposição prolonga- FOTOGRAFIA X GRAVURA
dos. Todo o esforço envolvido e o inves-

O
uso direto da fotografia na im-
timento realizado nos grandes empreen- prensa só s e tornou possível
dimentos de d o c u m e n t a ç ão fotográfica com a invenção do processo
não davam o retorno financeiro neces- de meio-tom em 1880 3 . A sua aceitação
sário devido à impossibilidade de uma pelo público, no e n t a n t o , náo foi imedi-
ampla circulação das imagens na im- ata. Os leitores continuaram a preferir
prensa, o que restringia o seu consu- os c h a m a d o s ' d e s e n h o s de a t u a l i d a d e '
mo 1 . por considerá-los mais artísticos e mui-
to mais expressivos 4 . As publicações da
Ê bem verdade que várias fotos de Fenton época, em meio a vários tipos de ilustra-
e Brady foram veiculadas em publica- ções, traziam os d e s e n h o s de atualida-
ç õ e s ilustradas da época s o b a forma de de q u e assumiam uma função embrioná-

pag. 76, jan/dez 1993


R V O

40S*

ria na r e p o r t a g e m . Os desenhistas eram sava por uma série de retoques para ter
enviados, c o m o repórteres, aos locais u m a boa definição q u a n d o impressa, o
dos a c o n t e c i m e n t o s e a partir dos depo- que fazia c o m que perdesse definitiva-
imentos de testemunhas realizavam uma mente a sua qualidade de t e s t e m u n h o
série de c r o q u i s , p o s t e r i o r m e n te inter- do real. A sua relação com o texto era
pretados por g r a v u r i s t as para serem estática e o seu c o n t e ú d o era quase
5
publicados . O que se valorizava neste sempre redundante à informação escri-
caso era o registro da ação que a fotogra- t a , náo ultrapassando o simple s papel
fia ainda não podia oferecer. De fato, de ilustração. Sendo assim, a e c o n o m i a
num primeiro momento, a introdução e a velocidade possibilitadas pelo pro-
da fotografia na imprensa não acarretou cesso de meio-tom não se colocaram de
uma mudança significativa nas páginas i m e d i a t o como razões s u f i c i e n t e m e n t e
dos p e r i ó d i c o s. vantajosas para j u s t i f i c a r o alto investi-
mento necessário à troca de t o d o o an-
'Essa mudança nào provoca uma ruptu- tigo sistema de impressão.
ra na evolução iniciada antes da inven-
ção da fotografia: as principais caracte- Somente o d e s e n v o l v i m e n t o técnico
rísticas exteriores dos magazines, a posterior, ligado ao a p e r f e i ç o a m e n t o do
paginação, a apresentação da capa,
processo de meio-to m e à tecnologia
continuam idênticas. Tudo se passa
fotográfica, p e r m i t i u que a imagem i m -
como se a fotografia viesse se inserir
pressa nas páginas dos periódicos al-
em um quadro preparado de longa data
para recebê-la; um procedimento técni- cançasse maior nitidez e pudesse ser

co substitui um outro sem que as ima- reconhecida enquanto registro fotográ-


gens nem a visão de mundo que elas fico. Além disso, a substituição do
exprimem sejam radicalmente trans- colódio ú m i d o por chapas secas a gela-
formadas-6. tina e o surgiment o dos filmes flexíveis
lia reprodução de uma visão de m u n d o deram maior velocidade ao trabalho do
característica de um meio de expressão fotógrafo que passou a realizar fotos
diverso, anterior ao seu p r ó p r io surgi- instantâneas. O valor de t e s t e m u n h o e
m e n t o , encontra-se a ausência de uma a u t e n t i c i d a d e da imagem fotográfica ,
especificidade fotográfica das imagens aliado a uma maior aproximação de te-
utilizadas i n i c i a l m e n t e na imprensa. Ê mas cotidianos, ausentes até então, fo-
preciso considerar t a m b é m q u e , devido ram fatores decisivos para que a fotogra-
a problemas técnicos, a fotografia pas- fia se impusesse frente à liberdade de

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 75-86. j a n / d ez 1993 - pag. 77


A C E

criação característica da gravura, no con- ção das câmeras de pequeno formato. A


texto da reportagem. unificação do território alemão, ocorri-
da no final do século XIX, impulsionou a
AS REVISTAS ILUSTRADAS indústria local, especialmente na área
de química e no campo dos artefatos

N
o que concerne à fotografia,
falar em imprensa ilustrada óticos. A cámera Leica, lançada comer-
nas primeiras décadas deste cialmente em 1925, apresentou uma
século significa referir-se às revistas ilus- série de inovações - formato e peso
tradas. Apesar do desenvolvimento reduzido, objetivas intercambiáveis, fil-
tecnológico alcançado, nào era viável me de rolo de 36 poses, possibilidade
ainda, sob vários aspectos, a utilização de supressão do uso de flash - que con-
maciça da imagem fotográfica nas publi- tribuíram para um novo tipo de relacio-
namento do fotógrafo com o seu apare-
cações diárias, situação que iria esten-
lho e, conseqüentemente, com o seu
der-se ainda por várias décadas. As re-
objeto. Foi primeiramente na Alemanha
vistas ilustradas marcaram sua diferen-
que a fotografia de imprensa passou por
ça em relação à imprensa diária através
uma profunda transformação, decorren-
do apelo das imagens, consolidando o
te, em parte, do uso das câmeras portá-
processo de massificação da fotografia
teis.
iniciado em meados do século XIX. Es-
tas revistas assumiriam um papel de
Durante o curto período de quinze anos
crescente importância até o início dos
de duração da República de Weimar -
anos 1950, inundando a sociedade con-
1918 a 1933 - o país viveu um momento
temporânea com uma quantidade e uma
de excepcional efervescência cultural e
variedade de imagens sem precedentes.
alto nível de politização. no que diz
A . I N V E N Ç Ã O DAS C Â M E R A S DE
respeito à imprensa, a democracia vi-
gente e a ausência de censura impulsio-
PEQUENO FORMATO E A
naram o surgimento de inúmeros perió-
FOTOGRAFIA ALEMÃ DURANTE A
dicos, especialmente de revistas ilustra-
R E P Ú B L I C A DE WEIMAR
das. A sua popularidade era imensa e

O
rápido desenvolvimento da estima-se que a circulação conjunta des-
imprensa ilustrada exigia cada sas publicações somasse cinco milhões
vez mais agilidade na ativida- de exemplares por semana, atingindo
de fotográfica. Essa crescente demanda uma média de vinte milhões de leitores,
só foi atendida plenamente com a inven- naquele momento as idéias liberais en-

pag. 78, jan/dez 1993


contraram o seu campo ideal de divulga- - o fotojornalismo.
ção nas revistas ilustradas e foi o repór-
ter fotográfico que deu corpo a uma As diferenças entre o fotojornalismo e a
nova maneira de ver os acontecimentos. documentação realizada pelos primei-
ros fotógrafos de imprensa situam-se na
O NOVO ESTATUTO I>0 própria concepção de fotografia. Se an-
KOTÓtSRAFO DE IMPRENSA E O teriormente ela era um apêndice do tex-
SURGIMENTO DO to, a partir deste momento ela passa a
FOTOJORNALISMO apresentar um ponto de vista próprio

o
sobre os acontecimentos relatados. A
fotógrafo Erich Salomon é con-
fotografia torna-se construção, segundo
siderado um marco no proces-
estruturações ideológicas nem sempre
so d e especialização da foto-
explícitas, respaldadas na sua pretensa
grafia de imprensa. A depressão econô-
imparcialidade.
mica que a Alemanha atravessava, alia-
da à crescente d e m a n d a pela fotografia
O ESTABELECIMENTO DO
nos periódicos, fez com que profissio-
nais liberais p e r t e n c e n t e s à classe mé- CONCEITO DE EDIÇÃO E A
dia d e p a u p e r a d a se dedicassem à ativi- CRIAÇÃO DA
dade de fotógrafo. De origem burguesa e FOTORREPORTAGEM

A
formação erudita, Salomon soube ex- proliferação de registros foto-
plorar os avanços implementados pela gráficos mais espontâneos com
Leica, criando um novo estilo de traba- ênfase no movimento e a per-
lho a partir da possibilidade de fotogra- cepção, ainda q u e incipiente, do poder
far sem ser n o t a d o . Suas fotos eram de manipulação ideológica da fotogra-
flagrantes de personalidades públicas, fia, permitiram também o estabelecimen-
principalmente políticos em situações to do conceito de edição. O editor, figu-
informais, reveladoras de intrincadas ra até então inexistente, que teve sua
relações s u b j a c e n t e s aos bastidores do origem na especialização de funções no
poder. As principais q u e s t õ e s que a tra- âmbito da imprensa, percebe o potenci-
jetória de Salomon introduz decorrem al narrativo desse novo tipo de fotogra-
da atitude participante do fotógrafo e da fia e a possibilidade de multiplicação da
especialização de sua atividade. O re- sua força persuasiva através da articula-
pórter fotográfico torna-se um profissio- ção entre texto e imagem e das imagens
nal liberal, dono de um saber específico entre si, segundo uma estrutura narrati-

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 75-86, jan/dez 1993 - pag. 79


A C E

A Chinese Town. Life, 24 nov. 1941, pp.84-7. (Coleção da autora).


Na fotorreportagem, a edição potencializa a força das imagens através de
artifícios que estabelecem hierarquias na sua apreensão e guiam deliberadamente o olhar do leitor.

pag. 8 0 , j a n / d e z 1993
R V O

A Chinesa Town . pp.88-91.


O uso freqüente de fotos sangradas remete para o exterior das páginas
da revista. É como se as imagens transbordassem para o espaço do leitor.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 75-86, jan/dez 1993 - pag. 81


va. Ha pioneira aplicação desta idéia "A criação de uma fotorreportagem re-
estava o redator-chefe da revista alemã quer a organização de um certo número
Münchner lllustrierte Presse, Stefan Lorant. de imagens sobre um mesmo tema de
Estamos diante do e m b r i ã o da fotorre- modo que elas dêem uma visão mais

p o r t a g e m , f o r m a de f o t o j o m a l i s m o que profunda, mais ampla, mais completa e


mais intensa do assunto do que qual-
em breve seria d i f u n d i d a internacional-
quer imagem isolada poderia dar. O
mente.
assunto pode ser qualquer coisa - uma
idéia, uma pessoa, um evento, um lu-
A ascensão do Nazismo esfacelou a l i -
gar. A organização pode ser tanto
berdade de i m p r e n s a . Erich Salomon cronológica quanto temática; essas
m o r r e u nas câmaras de gás e grande coisas não importam, já que a forma
parte dos profissionais de imprensa i m i - em si é flexível. O que importa é que as
grou para a Europa O c i d e n t a l . A p r i m e i r a imagens trabalhem juntas para enri-
conseqüência direta desse êxodo foi sen- quecer o tema. Elas não podem mais
tida na França e na Inglaterra. Já em ser encaradas como entidades isola-
1928 era lançada na França a revista Vu, das, como trabalhos de arte individu-
que contava em seus quadros com vári- ais, mas antes como partes de um todo.
os fotógrafos v i n d o s da Alemanha, entre Para que uma fotorreportagem tenha
êxito, o todo tem que ser mais impor-
eles Germaine Krull, André Kertèsz e
tante do que a soma de suas partes' 7 .
Robert Capa. Ma Inglaterra, a i n f l u ê n c i a
da imprensa alemã materializou-se prin- As palavras-chave sào flexibilidade e nar-
cipalmente em duas publicações - Weekly rativa. De posse da c o n c e p ç ã o acima
lllustrated e Picture Post - para as quais explicitada e das instruções publicadas
t r a b a l h o u c o m o e d i t or Stefan Lorant, n u m dos manuais da Life. que ensinam
quç havia fugido da Alemanha em 1934 . aos leitores como m o n t a r uma fotorre-
portagem, podemos chegar ao detalha-
Algum t e m p o d e p o i s , a Segunda Guerra m e n t o seguro de sua f ó r m u l a . Estas ins-
Mundial p r o v o c o u outra leva migratória t r u ç õ e s , em seu d i d a t i s m o , desnuda m
de p r o f i s s i o n a i s ligados à i m p r e n s a , todo o processo de realização de uma
dessa vez em direção aos Estados Uni- f o t o r r e p o r t a g e m , desde sua concepção,
dos. Tendo c o m o m o d e l o a experiência passando pela t o m a d a das fotografias e
européia, foi fundada em 1936 a revista elaboração do desenho das páginas, até
Life. que iria explorar t o d o o p o t e n c i a l a montagem do resultado final.
da f o t o r r e p o r t a g e m , chegando a siste-
matizá-la n u m a verdadeira fórmula . 'A essência destas técnicas reside na

pag. 82. jan/dez 1993


palavra ESTÓRIA (...). raça como fa O FOTÓGRAFO HERÓI

O
zem os profissionais: planeje a fotorre s primeiros nove
n anos de exis-
portagem que você deseja produzir (...)
tência da revista
re Life (1936-
Fotógrafos profissionais saem a traba
1945) coincUidiram com um dos
lho munidos de um roteiro de fotos
períodos mais c o n t u r b a d os deste sécu-
preparado pelos editores (...). Este
roteiro (...) deve requisitar diferentes lo. Eclodiram inúmeros conflitos, nos
tipos de imagens: fotos principais que mais diferentes países, sem falar na Se-
irào estabelecer a estrutura da narrati- gunda Grande Guerra. Conflitos que s e
va (...) fotos de transição que devem tornaram o grande manancial de ima-
ser usadas para guiar o leitor de uma gens da revista e contribuíram para o
idéia à outra (...) fotos de ação que amadurecimento do modelo da fotorre-
transmitam o drama (..:) fotos que le- portagem. Antônio Acari compara estas
vem a estória a uma conclusão (...). O imagens de guerra com aquelas realiza-
roteiro é necessário porque mantém o das um século antes por Brady, o que
fotógrafo numa linha, garantindo uma nos ajuda a entender melhor as grandes
estória com um começo, um meio e um
transformações que se processaram his-
fim-".
toricamente no papel do fotógrafo.
A necessidad e de um trabalho conjunto
entre fotógrafo e editor fica aqui eviden- "Entre Mathew Brady e os fotógrafos de
ciada, pois s o m e n t e um determinado guerra das últimas gerações, não há
tipo de imagem, produzida tendo em apenas uma distância tecnologicamente
mente a estrutura particular da fotorre- determinada (...). A nosso ver é uma
portagem, prestava-se a uma apropria- maneira diferente de entender e ter
consciência da própria função e, por
ç ã o de a c o r d o com o s p r i n c í p i o s
isso, uma atitude diferente também
estabelecidos.
perante a realidade. A fotografia de
Brady documenta, testemunha, ilustra
Após o aparecimento da revista Life sur- (...). Capa, ou Duncan, ou Smith, parti-
giram inúmeras publicações semanai s cipavam, viviam, estavam dentro do
do gênero e mesmo algumas já existen- acontecimento. Talvez se pudesse di-
t e s p a s s a r a m a adotar o s s e u s pa- zer (...) que o morto de Brady é já um
d r õ e s . Podemos citar Look, Holiday e morto, não é o miliciano que vai cair
Picture nos Estados Unidos, Paris Match, ferido de morte da fotografia de Capa,
Picture Post, Heute e DerSpiegel na Euro- que se tornou tão célebre não só -
pa e também O Cruzeiro na América Lati- pensamos - pelo seu grande dramatis-
na 9 mo, como também porque é emblemá-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2, p. 75-86, jan/dez 1993 - pag. 83


A C E

tica de uma maneira de sentir a repor- queno formato, o aperfeiçoamento


tagem fotográfica'10. tecnológico foi uma condição necessá-
O impacto d a s fotografias de guerra to- ria q u e , no entanto, não p o d e ser consi-
madas pelos repórteres modernos, de- derada suficiente para justificar o surgi-
via-se, em grande parte, ao risco vivido mento do fotojornalismo.
pelo fotógrafo, explicitado no seu pró-
prio ponto de vista. A atitude participan- '(,..) não acreditamos que (...) se possa
te d os primeiros repórteres fotográficos assumir a evolução tecnológica, ocorri-
da estirpe de Eric Salomon foi levada às da no setor das máquinas e das objeti-
últimas conseqüências : a o b s e s s ã o pela vas fotográficas, como causa do nasci-
'foto única' transformou-se em risco de mento de uma nova maneira de fotogra-
far. Ma realidade, acontecia que se ve-
vida para o fotógrafo. A divulgação des-
rificavam algumas modificações nas li-
t a s imagens pela mídia veio acompanha-
nhas de desenvolvimento da nossa cul-
da da mitificaçáo da figura do repórter
tura, que se afirmava uma nova manei-
fotográfico. A aventura, os riscos e a
ra de entender a informação e o signi-
postura de quem se colocava como tes- ficado da fotografia no mundo moderno
t e m u n h a da História povoaram o imagi- (...). A nosso ver é uma maneira dife-
nário da época acerca da profissão. rente de entender e ter consciência da
própria função e, por isso, uma atitude
A morte de vários repórteres fotográfi- diferente também perante a realida-
cos, no exercício de s u a s atividades, ao de. -12
longo dos anos 1950, veio contribuir Transformações profundas estavam em
para a consolidação da imagem heróica curso, o que levou a fotografia a assumir
do fotógrafo. Só o ano de 1954 foi mar- um novo papel na s o c i e d a d e . A dissemi-
cado pela morte d e três repórteres foto- nação da fotorreportagem é uma das
gráficos: Robert Capa, Werner Bishof, marcas da internacionalização d a s es-
a m b o s colaboradores da Life pertencen- tratégias de comunicação de massa e da
t e s à agência Magnum e Jean-Pierre consolidação de uma cultura moderna
Pédrazzini, fotógrafo da Paris-Match". predominantemente visual.

A evolução da técnica não determina A fotorreportagem configurou-se como


por si só transformações estéticas, mas uma visão de mundo particular, histori-
é, sem dúvida, motivada pelas necessi- camente determinada, que durante qua-
d a d e s de expressão de uma determina- s e quarenta a n o s foi consumida por
da época. Mo caso d a s cãmeras de pe- milhões de leitores em todo o m u n d o .

pag. 8 4 , jan/dez 1993


R V o

Ela m a n t e v e u m a í n t i m a c o r r e s p o n d ê n - Este t e x t o é uma versão resumida de um


cia c o m as a s p i r a ç õ e s do h o m e m m o d e r - dos ensaios i n t e g r a n t e s da dissertação de
no de ver saciada, através de imagens mestrado Aprenda a ver as coisas. Fotojorna-
g r a n d i l o q ü e n t e s , a sua necessidade de tismo e modernidade na revista O Cruzeiro.
sentir-se agente de seu t e m p o .

N O

1. Inúmeros processos para a impressão de fotografias foram desenvolvidos ao longo do século


XIX, tais c o m o fotogravura. fotolitografia, calotipia, woodburytype e suas diversas variações.
Embora permitissem a reprodução de fotografias em larga escala, não possibilitavam a
impressão de t e x t o e imagem numa mesma página de uma só vez.
2. Já em 1 8 5 3 , algumas fotos de Fenton foram publicadas sob a forma de gravura no The lllustrated
London News, ao passo que as de Brady foram publicadas posteriormente no Harper's Weeklytie
Mova York. Ver NEWHALL, Beaumont, The history oi photography, pp. 175-7; BORQÉ, Jacques,
Histoire de Ia photo de reportage, pp.7-17 e Time-Life, Photojournalism, p.56.
3. As máquinas de impressão nào reproduzem a gama de cinzas da fotografia. A solução dada pelo
processo de meio-tom è reduzi-la, através de reticulas, a uma infinidade de pequenos pontos
que, quando impressos, simulam a relação de tons original. Esta é ainda hoje a base das
diferentes técnicas de reprodução de fotografias na imprensa.
4. Este tip o de atitude é um fenômeno corrente que em geral acompanha o surgimento de novas
técnicas de expressão, uma resistência estética que somente o desenvolvimento do novo meio
expressivo e sua conseqüente autonomia permite superar.
5. BOLTAMSKI, Luc. "La rhétorique de Ia figure", IN: BOURDIEU, Pierre. Un art moyen, p p . 1 7 8 e
GUBERN, Roman. Mensajes icónicos en Ia cultura de masas, p . 6 1 . Este tipo de desenho continuou
a ser utilizado mesmo após o advento do instantâneo fotográfico para a reconstituiçào de

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2. p. 7 5 - 8 6 , jan/dez 1993 - pag. 8 5


acontecimentos não presenciados por um fotógrafo ou para a manipulação dos fatos com
finalidades políticas e propagandísticas. Ainda hoje esses desenhos podem ser encontrados em
nossos jornais, com a diferença de indicarem claramente a proveniência da versão apresentada.
6. BOURD1EU, Pierre. op. cit., pp. 175-6.
7. Time-Life. Photojournalism, p.54.
8. Time-Life. Photojournalism, pp. 138-9.
9. O Cruzeiro foi a expressão mais caracteristica da fotorreportagem no Brasil. Sobre este assunto,
além da dissertação já citada, ver também: PEREGRINO, Madja. A revolução da fotorreportagem.
10. ACARI, Antônio. A fotografia - as formas, os objetos, o homem, pp. 18 1.
11. BORQÉV, Jacques e V1ASMOFF, Nicolas. Histoire de Ia photo de reportage, pp.93-4, 107-8.
12. ACARI, Antônio, op. cit. pp. 179-81.

A B S T R A C T
The starting point of this work wasthe need to sistematize thescattered pieces of information about
the process of incorporation of photography into the pages of illustrated magazines. The principal
aim was to relate the technical development of photography and the printing systems to the social
transformations that required a new iconic standard within the press and that resulted into the
photograph report.

R E S U M E
Le point de départ de cet article a éte le besoin de systématiser des informations, qui se trouvent
éparpillées, à propôs du procès dMncorporation de Ia photographie aux pages des magazines
illustrées. Le but principal a été rapporter le développement technique de ia photographie et des
systèmes dMmpression aux transformations sociales qui ont géneré Ia d e m a n d e d'un noveau
patron iconique parmis Ia presse, ce qui en a resulte au reportage photographique.
Maria Inez Turazzi
Historiadora, mestre em Ciências pela Coordenação de Programas
de Pós-Craduação em Engenharia/UFRJ, doutoranda pela Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisadora do Museu Casa de Benjamin Constant/IBPC

1 imagens <dla vaidade v^oloniai n a s


i m a g e n s oi o Oecm!© A I A
O Jtvio cie J a n e i r o no Brazil Pittoresco

FOTOGRAFIA E HISTÓRIAÍ do Rio de Janeiro e a arquitetura rema-


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES nescente dos séculos anteriores, regis-

U
ma pesquisa sobre a fotogra trada por fotógrafos como Victor Frond,
fia e a s exposições univer Qeorge Leuzinger, Marc Ferrez e mui-
sais no século XIX, iniciada em tos outros. Um t e m a q u e certamente
1990, fez c o m q u e identificássemos poderia trazer novos a p o n t a m e n t o s para
muitas outras q u e s t õ e s relacionadas à uma reflexão mais ampla sobre a s rela-
presença da imagem fotográfica n o uni- ções entre a Fotografia como fenômeno
verso cultural daquela época . Obser- cultural e a constituição da História como
vando-se, através d e s s e trabalho, a s disciplina. 1
coleções fotográficas existentes n o s Com pouco mais de 150 anos de exis-
arquivos públicos e instituições de pes- tência, desde o anúncio oficial de s u a
quisa do Rio de Janeiro , bem como o invenção, em 1839, a Fotografia tem
material j á publicado por estudiosos com a História u m a relação que ainda
como Gilberto Ferrez, Boris Kossoy e está para ser melhor investigada .Preo-
Pedro Vasquez, chamou-nos a atenção cupação que tem sentido nem tanto
a possibilidade de um estudo sobr e a pela História d a Fotografia, u m a vez
produção fotográfica do século XIX e a s que naquele m e s m o a n o essa história
imagens do Brasil colonial aí encon- j á começava a s e r esmiuçada, ora
tradas, com destaqu e para a cidade conferindo a anterioridade de tal in-

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2, p. 87-98, jan/dez 1993 - pag. 87


A C

vento aos franceses, ora a o s ingleses. linguagem cada vez mais onipresent e -
Contudo, s e pensarmos , por exemplo, na vida privada, na circulação de infor-
na presença da História, como preocu- mações, nas aplicações as mais diversas
pação temática, na produção fotográfica - a fotografia apresentou-se como um
de um autor ou de uma dada s o c i e d a d e; meio capaz de fixar o tempo para a
ou ainda, se p e n s a r m o s na utilização da posteridade. O que significa, como des-
imagem fotográfica, a partir de determi- dobramento, que a fotografia, além de
nada época, na construção da própria revolucionar a memória individual, con-
História, isto é, do conhecimento acerca tribuiu de modo muito eficaz para uma
dos h o m e n s e de s u a s relações no tem- certa construção da m e m ó r i a social,
po e no e s p a ç o , então p o d e m o s afirmar objeto da história .
com segurança que ainda temos muito o Para o historiador J a c q u e s Le Qoff, o
que investigar. d o c u m e n t o deve ser e n c a r a d o como
O surgimento da fotografia e sua rápida ' m o n u m e n t o ' na medida em que 'resul-
expansão pelo mundo, a partir de mea- ta do esforço das s o c i e d a d e s históricas
dos do século passado, forneceu a o s para impor ao futuro - voluntária ou
h o m e n s e mulheres daquela época uma involuntariamente - determinada imagem
nova percepção e uma nova vivência do de si próprias.' 2 (grifo meu). Ora, no
t e m p o e do e s p a ç o d e sua própria inser- século XIX, que documento poderia ates-
ção social. A fotografia, e m p r e e n d e n d o tar no futuro, melhor do que qualquer
pela primeira vez por meios fotomecãni- outro, a sucessão do t e m p o e a evolução
cos uma certa exploração visual do es- da sociedade ? A fotografia, sem dúvida
paço, estabeleceu também uma inédita . For isto mesmo, pode-se afirmar que a
relação com o tempo, categoria que se força constatativa de s u a s imagens, pre-
inscreve de modo inseparável na lingua- servando o passado pelo registro d e s s e
gem fotográfica . t e m p o na memória coletiva, passou a
incidir também sobre o t e m p o - futuro,
Os t e m p o s da fotografia são muitos:
na medida em que a fotografia mostrava-
t e m p o p r e s e n t e , p a s s a d o e futuro; tem-
se capaz de construir pela imagem um
po de o b t e n ç ã o das imagens e de sua
dado projeto de a r m a z e n a m e n t o do tem-
preservação; t e m p o apreendido e fixa-
po - presente na memória coletiva das
do pela câmara; t e m p o construído e res-
gerações futuras .
gatado através de imagens, etc. A inven-
ção da fotografia tornou possível a cap- Entendida dessa forma, a imagem foto-
tação precisa de um certo tempo que, gráfica, longe de ser a p e n a s um registro
no decorrer da segunda metad e do sécu- fiel' da realidade, configura-se sobretu-
lo XIX, passou da longa exposição re- do como elemento de sua própria cons-
querida pelo daguerreótipo à minúscula trução , representando-a visualmente.
fração d e um b r e v e i n s t a n t â n e o . Sobre e s t e último aspecto, o pesquisa-
Registrando um mundo que se tornava dor Arlindo Machado realizou um ensaio
dia a dia mais cosmopolita, com uma bastante interessante, intitulado A ilu-

pag. 88, jan/dez 1993


R V O

são espetacular, onde questiona exata- licas - na construção de uma determina-


m e n t e o ' f e t i c h e da o b j e t i v i d a d e ' da 'imagem' da nação brasileira e de
construído em torno da fotografia d e s d e seu processo histórico até então .
o seu aparecimento . 3 n e s t e horizonte mais amplo (o nosso
Com a s u c e s s ã o de t e m p o s p e r p e t u a d os ' p a n o de fundo') é q u e se p r e t e n d e
pelo obturador, a fotografia contribuiu focalizar o objeto deste ensaio: a cidade
para reforçar a idéia de tempo linear e do Rio de Janeiro e seu passado coloni-
sucessivo subjacente às teorias sociais al, tal como isto foi visto e apresentad o
do século XIX, onde se inclui a constitui- na segunda metad e do século XIX . Em
ção da própria história enquanto disci- outros termos, poder-se-ia indagar como
plina. Uma história que, por sinal, passa os indivíduos dessa época viram a s re-
a afirmar sua cientificidade, entre ou- miniscências daquela outra é p o c a (o
tros meios, pela ' v e r d a de a b s o l u t a ' das Brasil colonial) no espaç o da cidade e de
fontes documentai s . que modo a fotografia contribuiu para a
produção, em tal contexto, de uma 'vi-
Diante da transformação d os suportes
s ã o ' particular da cidade e de sua histó-
da memória coletiva em d o c u m e n t os
ria.
com valor de "prova" do t e m p o passado
na história das sociedades, a fotografia
passou a ser e n c a r a d a como 'testemu- RIO DE J A N E I R O : IMAGENS DA
nho' por excelência da evolução do tem- CIDADE COLONIAL
po e, por extensão, das sociedades . Rio de Janeiro tem algumas caracterís-
Este fenômeno foi tão abrangente e di- ticas importantes para o exercício desta
fundido no m u n d o , a partir de m e a d o s análise sobre o papel da fotografia na

O
do século XIX, quanto o foram a s própri- construção de uma 'memória
as imagens produzidas pela fotografia a da c i d a d e ' . Tendo funcionado
partir de e n t ã o . Contudo, as relações como sede da administração co-
entre Fotografia e História, em cada épo- lonial (a partir de 1763) e, em seguida,
ca e lugar, m a n i f e s t a m - s e em s u a dos governos imperial (1822 - 1889) e
especificidade sempre em consonância republicano (1889 -1960), a cidade com-
com a dinâmica própria de cada socie- binou a condição de centro político e
dade . administrativo do país por quase dois
Partindo destas considerações, podemos séculos, com a posição de eixo conver-
então pensa r numa ' p r e o c u p a ç ã o com a gente e difusor da cultura brasileira. Daí
história' a partir da produção fotográfi- sua importância como síntese e emble-
ma da vida nacional.
ca realizada no Brasil durante o século
XIX, particularmente se observarmos que Por outro lado, a enorme beleza natural
essa época assinala també m o floresci- do Rio, sempre decantada em prosa,
mento de uma produção historiográfica verso e imagens por artistas e viajantes
nacional' que não deixou de recorrer de todas as épocas, era (e ainda é) tema
às imagens - palpáveis e també m simbó- constante d a q u e l e s que se dispuseram

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2. p. 87-98. jan/dez 1993 - pag. 89


A C E

a 'registrar' a cidade, o seu cenário e a de s u a s formas, caracterizam-se como


sua história, do descobrimento a o s dias símbolos d e s s a s m e s m a s funções" 5 ,
atuais , observaram as autoras de um estudo
Mas, curiosa ironia, tanta beleza foi tam- exploratório sobre as relações entre ar-
bém motivo para um certo desencanto quitetura e fotografia, publicado na co-
com a cidade, particularmente entre letânea de textos organizada pela pro-
aqueles que a observaram no século fessora Annateresa Fabris e intitulada
passado. Pois, se o Rio dos p a n o r a m a s - Fotografia: usos e funções no século XIX.
t o m a d o s à distância - provocava excla- Mo texto que a p r e s e n t a m , Maria Cristina
m a ç õ e s e grande deslumbrament o com W. de Carvalho e Silvia F.S. Wolff anali-
a paisagem que se descortinava, o cená- sam o intercâmbio entre e s s e s dois cam-
rio visto de perto (e de dentro) gerou pos tão expressivos da vida social, numa
relatos, crônicas e imagens de uma cida- época em que a novidade representad a
de ' a t r a s a d a ' e ' i n s a l u b r e ' , em perver- pela fotografia e suas variadas aplica-
sa contradição com s e u s dotes naturais. ç õ e s interagiu de modo particularmente
intenso com o acelerado processo de
Um d e s s e s o b s e r v a d o r e s , o francês
mudanças e novas definições no campo
Charles Expilly, em sua obra Le Brésil tel
da arquitetura .
qu'il est, de 1862, ante s mesm o de ter se
decepcionado com a falta de desembar- Messe processo, fotografia e arquitetura
cadouro na cidade, a 'pobreza não es- tornaram-se aliadas, investigando o pas-
perada' e o odor nauseabundo sado através de s e u s m o n u m e n t o s , do-
c o r r o m p e n d o ' a atmosfera local, j á ex- cumentando técnicas e c o n s t r u ç õ es do
primia, numa figura de linguagem, o presente, explorando a paisagem natu-
d e s e n c a n t o com o contraste que domi- ral e urbana .
nava a paisagem local: 'Num universo ilimitado de arquitetu-
"Esse amontoado de campanários dou- ras a serem fotografadas, o fotógrafo
rados, de torres, de tetos, de cúpulas do século XIX trabalhou com diligência
sem caráter sério è, sem dúvida, atra- para construir suas imagens de acordo
ente, mas não encanta o olhar. A mol- com o que entendia dever ressaltar:
dura é bela demais, resplandecente das vistas globais da paisagem, onde o
demais, para que a tela tenha seu efei- edifício estava inserido, ao pequeno
to" .* detalhe ornamental, é recorrente sua
determinação em reproduzir e bem in-
Aqui é preciso destacar t a m b é m o papel formar. Também no caráter dessas
da arquitetura n e s s e contexto, entendi- abordagens reside aquilo que distingue
da como elemento simbólico d a s rela- as fotografias de arquitetura do século
ç õ e s que, ao mesmo tempo, cristalizam XIX daquelas deste século, nessas ima-
e renovam a interação dos h o m e n s com gens mais recentes, uma mudança de
o espaço de sua inserção social . "Mais sensibilidade e intenções, novas pes-
do q u e só abrigar variadas funções da quisas e explorações visuais farão das
atividade humana, os edifícios, através formas arquitetônicas pretextos para

pag. 90.jan/dez 1993


R V O

aproximações que não visem, necessa- monumental intitulada Brazil Pittoresco,


riamente, ao edifício em si.'* apresentada como um 'álbum de vistas,
Mo Brasil, e no Rio de Janeiro em parti- p a n o r a m a s , paisagens , monumentos,
cular, a arquitetura j á estava presente c o s t u m e s , e t c , com retratos de sua
na produção fotográfica d e s d e 1840, no majestade Imperial, p h o t o g r a p h i a d os
primeiro daguerreótipo realizado no país, por Victor Frond, litographiados pelos
pelo a b a d e Compte, o n d e o edifício do primeiros artistas de Paris - e acompa-
Paço Imperial aparecia como elemento n h a d o s de três volumes in - 4 e , sobr e a
7
central na composição da imagem. história, a s instituições, a s cidades, as

Sediando o poder, r e c e b e n do estrangei- fazendas, a cultura, a colonização, etc.

ros, reunindo artistas, escritores e cien- do Brazil..." 8

tistas, a capital do Império concentrava Impressa primeiramente pela Tipogra-


também o maior número de fotógrafos phia Nacional e, em seguida, numa edi-
a t u a n t e s no Brasil nos primeiros t e m p o s ção primorosa, pela Imprimerie Lemer-
da fotografia em nosso país. O que fez cier de Paris (a oficina litográfica mais
do Rio de J a n e i r o uma cidade privilegia- conceituada da época), os dois volumes
da em matéria de quantidade, qualidade que deixaram incompleto o grandioso
e s u c e s s ã o de imagens retratando as projeto de Victor Frond contêm quatro
transformações urbanas aqui verificadas. retratos da Família Imperial e 74 vistas,
intercaladas por minuciosas descrições
Em m e a d o s do século XIX, o fotógrafo
da província do Rio de Janeiro e, em
francês Victor Frond, amigo do escritor
menor grau, da província da Bahia . A
Victor Hugo e igualmente proscrito pela
m o n a r q u i a f r a n c e s a r e s t a u r a d a por edição é bilíngüe e, na versão para o
riapoleào III, radicou-se no Rio de Janei- português, trabalhou o jovem Machado
ro. Foi q u a n d o concebe u e produziu, a de Assis, entre outros n o m e s contrata-
partir de 1857, a edição de uma obra dos por Frond.

Panorama de Rio de Janeiro. Litografia a partir de fotografia de Victor Frond. In: Ribeyrolles, C; Frond, V.
Brazil pittoresco: álbum de vistas, panoramas... Paris, Lemercier, 1861 (Estampa 4). Arquivo Nacional.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 87-98, jan/dez 1993 - pag. 91


A C E

As descrições a p r e s e n t a d a s na obra sáo O e n c a r r e g a d o d o t e x t o d e Brazil


antecedidas de um tomo inteiramente Pittoresco, convidado por Victor Frond
dedicado à 'história do Brasil', isto é, para escrevê-lo, era o não m e n o s pros-
das "primeiras velas" ao 'governo consti- crito escritor francês de nome Charles
tucional' de dom. Pedro II. Já o segundo Ribeyrolles, "republicano irredutível' e
tomo descreve detalhadamente a cida- 'abolicionista ferventíssimo', nas pala-
de e a província do Rio de Janeiro; o vras de Taunay."
terceiro trata do território, população e A associação entre Frond, que se auto
instituições do país, com ênfase na situ- definia "editor" da o b r a , e C h a r l e s
ação das colônias e no papel da impren- Ribeyrolles, apresentado como seu 'au-
sa; o quarto tom o integraria o terceiro tor', foi antes resultado de afinidades no
volume da publicação que, no entanto, plano pessoal e político do que motiva-
não chegou a ser lançada. da exclusivamente por relações profissi-
Num dos raros informes biográficos exis- onais e financeiras . A propósito, escre-
tentes a respeito de Victor frond, o his- veu o fotógrafo Victor Frond, depois da
toriador Affonso d' Escragnole Taunay, morte de seu colaborador (em j u n h o de
prefaciando a primeira reedição do livro 1860), ter estado ' d e s d e muito associa-
em 1 9 4 1 , indica-nos que "muito se cita- do a o s trabalhos de Ribeyrolles, (tendo
vam outrora a s páginas do seu Le Brésil sido) companheiro de s u a s excursões
pittoresque, impresso com textos em con- (e) confidente habitual de s e u s pensa-
fronto, em francês e português e acom- mentos-.'2
panhado pelo volumoso álbum de re- Considerados t o d o s e s s e s d a d o s , não
p r o d u ç õ e s litografadas d a s excelen- seria válido, então, e s t a b e l e c e r m o s uma
tes fotografias de Victor Frond.' 9 correspondência entre a s imagens do
De fato, o 'livro-álbum' BrazilPittoresco, Rio de Janeiro criadas por Victor Frond e
por s u a c o n c e p ç ã o , a b r a n g ê n c i a e a q u e l a s r e g i s t r a d a s com a p e n a de
riqueza visual, pode ser considerado no Charles Ribeyrolles ? Não teria uma ins-
gênero a obra mais importante realizada pirado a outra, e vice-versa ? Acredito
nò Brasil na segunda metade do século que sim .
XIX, só encontrando algum paralelo - Dentre as 74 fotografias que formam o
quanto à ambição do projeto - no Álbum conjunto de vistas litografadas no Brazil
de vues du Brésil, realizado muitos a n o s Pittoresco, e n c o n t r a m os 15 imagens do
mais tarde pela Imprimerie Lahure, por Rio de Janeiro, s e n d o que todas elas são
encomenda do barão do Rio Branco, p a n o r a m a s e vistas globais da cidade.
encarregado de divulgar na Europa (mais Da ilha das Cobras, a câmara de Victor
precisamente na Exposição Universal de Frond sacou o maior número de ima-
Paris de 1889) imagens do Brasil produ- gens: ' p a n o r a m a s ' da entrad a da baía,
zidas por alguns dos nosso s fotógrafos do morro do Castelo e Hospital Militar;
mais talentosos. 1 0 da Alfândega e cais (dois); do mosteiro

pag. 92. jan/dez 1993


R V O

de São Bento; do porto na Saúde. Há cados na composição da imagem com os


também panorâmicas do a q u e d u t o da recursos da litografia, j á que o longo
cidade (Arcos da Lapa), Hospital da Mi- t e m p o de exposição requerido pelo pro-
sericórdia, Outeiro da Qlória, Quinta da cesso fotográfico empregado por Frond,
Boa Vista, Hospital dom Pedro II e ainda impediam-no de fotografá-los em movi-
a entrada da barra, vista a partir do mento.
Corcovado, o n d e o Páo de Açúcar pode n e s s e conjunto de imagens, a arquitetu-
ser observado num ângulo pouco con- ra herdada (ou não) do período colonial
vencional e o elemento de d e s t a q u e é a a p a r e c e tão s o m e n t e 'inserida' numa
presença de um fotógrafo carregando cidade que se e x p a n de emoldurada pelo
sua câmera . Por fim, três cenas da cida- mar e pela montanha . Os prédios não
de, registrando o largo do Paço, a Lagoa foram fotografados isoladamente, com
e uma pedreira (vistas de São Cristóvão) exceção do Hospital dom Pedro II, de
contém alguns tipos h u m a n o s num pla- fachada em estilo neoclássico, vista em
no mais próximo. Possivelmente e s s e s perspectiva . Os demais, notadamente
p a s s a n t e s foram a c r e s c e n t a d o s ou reto- as igrejas que despontavam como os

Les aqueducs a Rio de Janeiro. Litografia a partir de fotografia de victor Frond.


In: Ribeyrolles, C; Frond. V. Brazil pittoresco: álbum de vistas, panoramas...
Paris, Lemercier. 186! (Estampa 10). Arquivo Nacional.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2, p. 87-98. jan/dez 1993 - pag. 93


A C E

edifícios de maior envergadura na paisa- beyrolles no Brazil Pittorescoserviu igual-


gem urbana, foram a p e n a s enquadrado s mente como paradigma para o discurso
na moldura natural da cidade, ria ima- sobre a cidade e s e u s problemas, ques-
gem do antigo convento do Carmo - tão privilegiada por muitos intelectuais
então s e d e do Instituto Histórico e Geo- da época. Por décadas , o tema da cidade
gráfico Brasileiro - e prédios vizinhos apareceu inserido num discurso centrado
(antiga Sé, igreja da Ordem Terceira do na dicotomia 'progress o x a t r a s o ' q u e
Carmo, hotel de France e arco do Teles), se exacerbou, particularmente, no iní-
a legenda é "Palácio Imperial do Rio de cio do século XX, com a destruição do
Janeiro*. Mas o paço da cidade, propria- ' a t r a s o ' r e p r e s e n t a d o pela cidade colo-
m e n t e dito, não a p a r e c e , muito m e n o s o nial e a edificação do ' p r o g r e s s o ' , tão
chafariz do mestre Valentim que, àquela bem encarnado pela metrópole afrance-
altura, era o local onde s e reuniam sada em que se transformou o Rio, com
h o r d a s de escravos incumbidos d e cui- s e u s novos edifícios e g r a n d e s avenidas
dar do abastecimento e limpeza das ca- ajardinadas .
s a s dos s e n h o r e s da cidade .
Ribeyrolles dedicou um capítulo para o
Em que pesem a s limitações técnicas mar, outro para a baía do Rio de Janeiro e
dos processos fotográficos da época, um terceiro para a cidade, onde e n t ão
nas 15 imagens do Rio de Janeiro nota- dividiu o tema nos seguintes a s s u n t o s :
se a ausência de cena s da vida urbana, ' e d i l i d a d e p ú b l i c a ' , ' a s á g u a s ' , ' o s es-
particularmente q u a n d o constatamos g o t o s ' , 'iluminação - c i r c u l a ç ã o ' , 'ba-
que o mesm o Frond produziu em sua n h o s - praças - j a r d i n s p ú b l i c o s ' ; 'igre-
obra um dos mais belos e expressivos j a s -hospitais - palácios - teatros - monu-
registros do cotidiano dos escravos nas m e n t o s ' ; ' p o p u l a ç ã o ' ; ' u s o s e costu-
fazendas, "uma abordagem da escrava- mes'.
tura sem similar na história da fotogra- O deslumbramento com a natureza é
fia", como apontou o pesquisador Pedro lugar comum no texto, liem é preciso
Vasquez. 1 3 O autor de Fotógrafos pionei-
insistir nesta tecla. Vejamos então a
ros no Rio de Janeiro ainda destaca o fato
cidade, propriamente dita. A primeira
de que Victor Frond, com suas imagens,
referência, logo no terceiro parágrafo, j á
'definiu os paradigmas da fotografia de é desfavorável:
paisagem no Rio de Janeiro que seriam
'De longe em longe, nessa espécie de
retomados por todos os fotógrafos que
quadrado central que é o coração da
o sucederam no século XIX".1*
cidade, as ruas formam ângulo reto.
Por outro lado, a visào do Rio de Janeiro São estreitas, mal calçadas, em sua
compartilhada por diversos estrangei- mor parte, e os acanhados passeios
ros que aqui estiveram no século passa- que as cercam pertencem menos aos
do e tão bem retratada por Charles Ri- pedestres que aos muares.'' 5

pag. 94. jan/dez 1993


R V O

Se o traçado é estreito e a c a n h a d o , o Mais adiante, contudo, para tratar das


paisagismo da cidade, castigada pelo igrejas, hospitais, palácios, teatros e
calor, é igualmente precário: m o n u m e n t o s , o tom é de menosprezo
"Onde achar o fresco, a brisa, a som- pela arquitetura mais expressiva da ci-
bra? não há árvores, não há galerias dade:
nas grandes praças. O largo do Faço, "Por onde começar ? Oratórios, cape-
que se estende ao longo da baia, não las, igrejas. Aqui abundam os sinos.
passa de um lugar árido, calcinante, Contam-se mesmo, o que é razoável,
sem um arbusto, sem uma simples co- templos protestantes. Como arquitetu-
bertura. Apenas o chafariz dá a sombra ra, escultura, obras de arte, que haverá
de um homem e o refrigério de suas que estudar nessas basílicas ? Elas são
águas'. ,e em geral carregadas de ouro, faustosas,
A oposição progress o x a t r a s o ' apare- ricamente dotadas. Mas nenhuma delas
ce claramente indicada ao longo de todo apresenta as grandes formas monu-
mentais. Mão se depara nelas, em ple-
o capítulo sobr e a cidade. Progresso -
no viço, nem a ogiva nem a linha grega.
por sinal, mais reclamado do que cons-
Messes edifícios, a disposição e a divi-
tatado - é, por exemplo, a iluminação a são são as mesmas; e graças a essa
gás que invade tudo: na capital do Impé- uniformidade de plano, pode-se dizer
rio, 'o bico irradia; o candieiro agoni- que no Brasil - filho de Portugal - só
za".17 existe uma igreja: a igreja barrominica-
na. Uma fachada com pequeno frontal e
Já o atraso... Esse aparece por todo o
pórtico algumas vezes esculpido. Por
lado: no 'esgoto q u e mata a c i d a d e ' , na
cima, duas torres quadradas, demasia-
presença da escravidão e no serviço dos do baixas, que não falam ao céu, nem
tigres' (escravos e n c a r r e g a d o s do des- pela flecha, nem pelas cúpulas . De-
pejo dos barris de águas servidas e ma- pois, ao longo da construção, a nave,
térias fecais), no serviço médico, na que segue em varias curvas até a ábside.
ausência de j a r d i n s públicos e monu- De um e outro lado, as capelas, sem
mentos, etc. Atraso, também, é a tradi- profundeza, apenas interrompendo a
ção portuguesa e a arquitetura herdada linha mestra. Eis a igreja .'' 9
do período colonial. O tom é irônico: Depois de mencionar as oito freguesias
"Aqui, as antigas ruas conservam a sua do Rio e s u a s igrejas, sem grandes admi-
fisionomia primitiva, atèo nome profis- rações, Ribeyrolles esclama um único
sional. São como arquivos de memória. elogio: "que explêndido pedestal esse
A pedra fala, e as legendas são quase outeiro da Glória!" 20 J u s t a m e n t e a igreja
todas em português' (...). "Estudai os
que aparece centralizando uma das vis-
hábitos, as tradições, os costumes e,
tas de Victor Frond, denominada "A Gló-
diga o que disser a Constituição,
achareis por toda parte o mesmo cu- ria" (há ainda um "panorama do Rio de
nho, a mesma lei. O brasileiro reina. O Janeiro" onde o Mosteiro de Sáo Bento
português governa'.1" centraliza a imagem). E só.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n" 1-2. p. 87-98, jan/dez 1993 - pag. 95


A C E

Com o seu c o n h e c i d o anti-clericalismo, pode ser encontrada nos mais diversos


o seu menosprezo pela tradição portu- registros p r o d u z i d o s desde o século
guesa e pela arquitetur a barroca, bem passado: "uma cidade que cresceu m u i -
c o m o aquele apego típico de sua época to e progrediu pouco" 2 4 . Para Afonso
às f o r m a s neoclássicas e ao gosto Arinos e toda uma geração de historia-
parisiense, não era difícil para Ribeyroi- dores, o Rio não deixava de ser, "como
les c o n c l u i r que "a arte não floresce no cidade higiênica e m o d e r n a , uma reali-
Brasil' 2I
e que o Rio "adormece em sua zação republicana." 2 5 Referia-se, natu-
-22
mole ociosidad e de capital. Por isso ralmente, ao intenso proces-
mesmo ele c o m p a r a : so de t r a n s f o r m a ç õ es urbanas
encenado no Rio de Janeiro
'O Rio não está aberto, alargado, refor-
c o m a administração do pre-
mado como o velho Paris, onde os
bairros históricos desaparecem e cada feito Francisco Pereira Passos

ano surgem novas avenidas e praças*. 13 (1902 - 1906). Daí resultará o


'bota abaixo' daquela cidade
A cidade do Rio de Janeiro comparada à
de feição c o l o n i a l que havia
cidade de Paris, tal como nos é apresen-
s o b r e v i v i d o ao século XIX e
tada no Brazil Pittoresco de Ribeyroiles e
que fora em grande parte rejei-
Frond, é uma imagem particularment e
tada pelas elites republicanas,
interessante, pois sugere, e c o m isto
após a derrocada do regime mo-
' a n t e c i p a ' , a r e f e r ê n c i a s i m b ó l i c a pre-
nárquico. Daí resultará t a m b é m
ferida pelas elites republicanas na vira-
o cenário afrancesado em que
da do século. Com sua fúria d e m o l i d o r a
se transformara o Rio de Janeir o
que ' b o t o u a b a i x o ' boa parte da heran-
como capital da república
ça c o l o n i a l do Rio de Janeiro , transfor-
oligárquica.
m a n d o a capital do país numa r e p r o d u -
Entre esses dois m o m e n t o s -
ção a mais ' f i e l ' possível da c a p i t a l
meados do século XIX e início
francesa, não f o r a m pouco s os que se
do século XX - p o d e m ser en-
utilizaram de imagens do passado para
contradas referências m u i t o ex-
c o n s t r u i r uma nova versão da cidade e
pressivas de uma certa ima-
de sua história que legitimasse a nova
g e m ' do Rio c o l o n i a l forte-
o r d e m estabelecida.
mente identificada c o m aque-
O historiador Afonso Arinos de Melo Fran- las imagens produzidas no Brazil
co, j á no século XX, em uma obra que se Pittoresco. Referências que se
t o r n o u famosa, Desenvolvimento da civili- c o m p l e m e n t a m , se e x p l i c a m e de cer-
zação material no Brasil, publicada em to m o d o nos ajudam a refletir sobre o
1 9 4 4 , r e s u m i u c o m u m a frase a imagem papel da fotografia, ao lado das crônicas
da cidade do Rio de J a n e i r o que t a m b é m e o u t r o s r e g i s t r o s , na c o n s t r u ç ã o da

pag. 9 6 , j a n / d e z 1 9 9 3
história e de determinadas versões Arquitetura nos Três Primeiros Séculos:
um
sobre a cidade e seus dilemas. * P«»qu»»a sobre Arquitetura no Brasil,
d o prof. Benedito Lima de Toledo, no dou-
Este ensaio foi escrito em 1992 como tra- toramento pela Faculdade de Arquitetura e
balbo de curso para a disciplina Arte e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

N O

1. Sobre as relações entre Fotografia e História, as idéias aqui apresentadas encontram-se mais
detalhadas no texto ainda inédito, intitulado Poses e trejeitos na era do espetáculo: a fotografia e
as exposições universais no século XIX (1839 -1889). Rio de Janeiro: 1992 mimeo. Bolsa de
Artes Vitae, 1990.
2. Le QOFF, J a c q u e s. "Documento / Monumento".In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Porto: Imprensa
nacional , Casa da Moeda, 1984, v. 1, p.103.
3. Ver MACHADO, Arlindo - A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense,
FUNARTE, 1984.
4. EXPILLY, Charles - Le Brésil tel qu'il est. Paris: [s.n) 1862, p. 52. Apud MAURO, Frédéric. O Brasil
no tempo de Dom Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, Círculo do Livro, 1991, p.14.
5. CARVALHO, M. Cristina W. de, WOLFF, Silvia F.S. "Arquitetura e fotografia no século XIX". In:
FABRIS, Annateresa- Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: EDUSP, 1991, p.159.
6. Idem - p. 144.
7. Idem - p. 1 6 1 .
8. FROND, Victor - Brazil pittoresco ( Texto de Charles Ribeyrolles ). Paris: Lemercier imprimeur -
Lithographe, 1861.
9. Transcrito (p.16) na última edição do Brazil pittoresco que tem a seguinte catalogação:
RIBEYROLLES, Charles, Brasil pitoresco; história, descrição, viagens, colonização, instituições;
ilustrado com gravuras de vistas, panoramas, paisagens, costumes, etc. por Victor Frond;
tradução e notas de Qastão Penalva; prefácio de Affonso d'E. Taunay. Belo Horizonte:Itatiaia,
EDUSP, 1980, 2v. As citações de Bra.z/7 pittoresco transcritas neste trabalho foram extraídas
desta edição contemporânea.
10. ÁLBUM de vues du Brésil. Execute sous Ia direction de J. M. da Silva Paranhos, Baron de Rio
Branco. Paris: Imprimerie A. Lahure, 1889.
1 1. TAUMAY, Affonso d'Escragnole - "Charles Ribeyrolles" -In: RIBEYROLLES, Charles. Op. cit., v.l
p.21.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 87-98, jan/dez 1993 - pag. 97


12. FROND, Victor - "Mota B" . In: RIBEYROLLES, Charles-Op. cit. , v.2, p . 2 1 1 .
13. VASQUEZ, Pedro. Fotógrafos pioneiros no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Dazibao, 1990, s/
paginação.
14. Idem.
15. RIBEYROLLES, Charles - Op. cit. , v.l , p. 183.
16. Idem - p. 190
17. Idem - p. 189
18. Idem - p. 207 e p. 188, respectivamente.
19. Idem - p. 194
20. Idem - p. 195
2 1 . Idem - p. 195
22. Idem - p. 185
23. Idem - p.207
24. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde , SPHAM, 1944, nB 11, p . l 10.
25. Idem.

A B S T R A C T
This article, starting with a reflexion on social memory and its construction within the relationship
between Fhotography and History, intends to analize the 'images' of the city of Rio de Janeiro,
during colonial times, registered and divulged by the 19th century photographic production, taking
as a reference the paradigmatic work of Victor Frond and Charles Ribeyrolles entitied Brazil
Pittoresco.

R É S U M É
À partir d'une reflexion à propôs de Ia memoire sociale et de sa constructio parmis les relations
entre photographie et histoíre, cet article veut analyser les 'images' de Ia ville de Rio de Janeiro
à 1' époque colonial , enregistrées et divulguées par Ia production photographique du XIXème
siècle, ayant par reference 1'oeuvre paradigmatique de Vitor Frond et Charles Ribeyrolles intitulée
Brazil Pittoresco.
Solange Ferraz de Lima
Historiadora no Museu Paulista-USP. Pós-graduanda na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

.lispaços IrFojeiÊad os
A s representações da cidade de Oão iraiil©
nos állbiams fotográficos do início do século

U
T ma caracterís- mato ' c a r t e d e visite'
tica marcante (1858), a fotografia pas-
da trajetória da sa definitivamente a in-
fotografia d e s d e sua in- tegrar o rol d e objetos
venção, em 1839, é o destinados a consoli-
fato de ter havido, mui- dar o modo de vida
to rapidamente, apri- burguês. A prática d e
moramentos técnicos fotografar-se, de presen-
que permitiram a sua massi- tear e n t e s queridos com
ficação num espaç o de menos de vinte retratos, inclusive d e p e r s o n a l i d a d es
anos. Do mesmo modo, é notável como ilustres (reis, rainhas, bispos, heróis de
ela foi absorvida, também rapidamente, guerra, etc), acaba por gerar a necessi-
em diferentes área s do conhecimento - dade de acondicionamento d a s peças
do meio artístico às instituições colecionadas.
disciplinadoras da s o c i e d a de (que ga- É em Paris, por volta dos anos de 1860,
nham s e u s contornos definitivos no final que s e fabricam o s primeiros cadernos
do século passado), como o s manicômi- destinados especialmente ao acondicio-
os, sanatórios, penitenciárias, interna- namento de retratos. A popularização
tos, etc 1 . d o s álbuns foi tão imediata quanto a da
Com a introdução, por Disdéri, do for- fotografia. Ellen Maas informa sobre a

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2, p. 99-1 10. jan/dez 1 9 9 3 - pág. 9 9


A C E

enorme variedade de encadernações selecionadas nos álbuns, popularizam-


produzidas nesse período, cujos elemen- se num momento de rupturas e de
tos decorativos, que primeiramente se profundas transformações na organiza-
restringiam às capas, vão, pouco a pou- ção da cidade moderna.
co, invadindo as páginas internas. Para o historiador interessado no estudo
O álbum surge, assim, atrelado à idéia do imaginário social urbano, o álbum,
de coleção, à prática de acumular obje- por se tratar de uma série fotográfica
tos revestidos de alto valor afetivo e que representa diversos aspectos da ci-
simbólico. Produzidos inicialmente va- dade, constitui um material privilegia-
zios, à espera do arranjo específico que do, na medida em que permite um alto
cada história de vida iria dar aos retratos grau de associações entre as imagens e,
acumulados, os álbuns não tardaram a conseqüentemente, entre as represen-
se transformar em coleções' montadas tações de que é o suporte.
por um editor, reunindo fotografias de A exploração da fotografia, enquanto
grandes eventos como as exposições fonte histórica para estudos dessa natu-
universais, 'souvenirs' de viagens e vis- reza, implica uma análise que tenha
tas urbanas de lugares exóticos. como pressuposto o reconhecimento da
As cidades de várias partes do mundo já especificidade da informação visual, ou
podiam, graças ã fotografia, serem co- seja, o entendimento de que ela não se
nhecidas e imaginariamente visitadas. restringe a ilustrar ou esclarecer o que
Esta vertente temática irá aprofundar-se outras fontes (verbais) podem dar a co-
na documentação fotográfica urbana nhecer, mas é o produto de uma prática
produzida na intersecçáo das preocupa- de significação socialmente apropriada 3 .
ções em torno da cidade enquanto obje- Mesta perspectiva, podemos pensar os
to de estudo e de intervenções urbanís- álbuns fotográficos de temática urbana
ticas 2 . Atuando como forma de registro como o meio de concretização de uma
da configuração espacial e arquitetônica imagem na qual se articulam representa-
em vias de desaparecer (como, porexem- ções especificamente comprometidas
plo, os trabalhos de Charles Marville
com a construção física e simbólica da
relativos às partes de Paris que iriam ser
cidade.
destruídas com as intervenções urbanís-
ticas de Haussmann) ou de obras em O grau de difusão dessas representa-
andamento (a documentação relativa ao ções e seu alcance social dependem do
Palácio de Cristal), a vastíssima produ- circuito que seus suportes materiais in-
ção nessa área revela a importância que tegram - qual instituição (pública ou pri-
as cidades assumem a partir do final do vada) é responsável pela produção,
século XIX, enquanto portadoras de sen- quem e quantos são os consumidores e
tidos conflitantes socialmente constitu- que uso fazem do produto.
ídos. As 'vistas urbanas', previamente A análise formal do arranjo fotográfico

pag. 100, jan/dez 1993


V o

que o á l b u m encerra, por sua vez, orien- nindo fotografias da capital paulista e
tada segundo p r o b l e m a s historicament e arredores (fazendas, a estrada de ferro,
d e f i n i d o s , p e r m i te inferir os padrões vi- o porto de Santos). Com imagens im-
suais segundo os quais essas represen- pressas encadernadas na forma de livro
tações sáo d i f u n d i d a s . A aplicação parti- o u coladas em caderno de papel cartão,
cular da linguagem fotográfica estabele- o u ainda acondicionadas, avulsas, em
cida na época se expressa na seleção caixa, o á l b u m , j u n t a m e n t e c o m o car-
dos m o t i v o s , no t i p o de e n q u a d r a m e n t o tão postal, p r o m o v e a comercialização
e nos recursos visuais m o b i l i z a d o s para de fotografias de temáticas urbanas ini-
representar o espaço urban o segundo ciada j á a partir dos anos 1860 do século
uma ótica c o m p a r t i l h a da por parcelas XIX.
o u g r u p o s da sociedade em questão.
I n i c i a l m e n t e , as vistas urbanas eram
Pio tocante à d o c u m e n t a ç ã o fotográfica produzidas e comercializadas pelos es-
urbana produzida nos vinte p r i m e i r o s t ú d i o s fotográficos, ou seja, pelo pró-
anos deste século, em Sào Paulo*, é prio p r o d u t o r da i m a g e m. O envolvimen -
significativa a produção de álbuns reu- to das livrarias e gráficas, comprando os

Jardim da Luz (lago). Sào Paulo. Do Álbum de vistas de São Paulo. São Paulo. Casa Garraux, 1914.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2, p. 99-1 10, j a n / d e z 1993 - pâg. 101


A C £

clichês dos fotógrafos, é o primeiro indí- n a n t e m e n t e no formato retangular hori-


cio de massificação por que a fotografia zontal, emolduradas e dispostas unitari-
irá passar neste século, resultando na amente na página. As informações refe-
sua total integração a o s meios de comu- rentes aos produtores e à data de produ-
nicação de massa. ção s ã o e s c a s s a s e não raro s e desco-
n ã o por acaso, a consolidação dess e nhece a autoria das fotografias.
gênero fotográfico se dá no período em Dos 12 álbuns, seis tratam a cidade
que a cidade de Sâo Paulo começa a se numa perspectiva comparativa, dispon-
expandir e a ter suas feições alteradas, do imagens urbanas atuais e p a s s a d a s
em virtude d a s novas funções que passa (muitas das quais extraídas do álbum
a d e s e m p e n h a r , enquant o capital do comparativo editado por Militáo). Os
mais importante produto de exportação outros seis apresentam aspectos urba-
na pauta econômica brasileira - o café. nos exclusivamente contemporâneos. Mo
Já em 1872, tem-se noticia da produção que se refere à seleção de motivos e sua
de um álbum fotográfico reunindo "...di- o r g a n i z a ç ã o i n t e r n a , há diferenças
versas vistas náo só de ruas e praças marcantes entre estes dois tipos de ál-
como também de muitas igrejas e edifí- buns.
5
cios importantes...' . Em 1887, Militáo Nos comparativos, predominam as ima-
Augusto de Azevedo noticia a venda de gens de ruas, avenidas e largos do cen-
seu Álbum Comparativo da Cidade de São tro da c i d a d e - triângulo central e
Paulo, cuja proposta era j u s t a m e n t e cha- adjacências, estendendo-se até o viadu-
mar a atenção para o crescimento da to do C h á . A d i m e n s ã o temporal
cidade num intervalo de 2 5 a n o s (1862- introduzida pela j u s t a p o s i ç ã o de foto-
1887). grafias p a s s a d as e atuais evidencia os
Em um levantamento efetuado nas insti- atributos do espaço considerados a p t o s
tuições públicas e em coleções particu- a servirem como índices das m u d a n ç a s
lares de São Paulo e do Rio de Janeiro, para as quais se quer chamar a atenção.
pode-se arrolar um total de 12 álbuns, Assim, a partir de uma t o m a da fotográfi-
produzidos entre 1887 e 1919 (ver lista ca mais antiga - de uma rua, por exemplo
em anexo) e que guardam característi- - produz-se outra, que tem como invari-
cas tipológicas c o m u n s . São publica- ável o motivo e s e m e l h a n t e o tratamen-
ç õ e s em que o sentido é dado funda- to formal dispensado (mesmo ponto de
mentalmente pelas imagens (a presença vista, condições de luz, etc). Essa opera-
de informações textuais reduz-se à le- ção induz à busca de diferenças, ou
genda identificando o motivo fotografa-, seja, daquelas variáveis que permitam
do); ond e as fotografias que náo constatar a ação do t e m p o . É a percep-
excedem, na sua maioria, a dimensão ção d e s s a s diferenças que dá sentido à
18 x 2 4 c m , a p r e s e n t a m - s e predomi- representação.

pag. 102, jan/dez 1993


R V O

Boa parte dos álbuns comparativos foi nistração urbana em relação à cidade,
produzida durante a gestão de Washing- associando as imagens de destruição e
ton Luís na prefeitura de São Paulo (1914- de obras urbanas às noções de progres-
1919), período em que o centro da cida- so e de crescimento econômico da capi-
de sofreu uma série de intervenções tal paulista.
urbanísticas que visaram, s o b r e t u d o , Já no caso dos álbuns c o n t e m p o r â n e o s
transformá-lo em pólo de integração de (aqueles que retratam os motivos na sua
vias de comunicação com o s bairros atualidade), predomina a produção pa-
adjacentes. As intervenções envolveram trocinada pela iniciativa privada. As edi-
o alargamento e a pavimentação das ções concentram-se nos quinze primei-
ruas centrais bem como a remodelação ros a n o s deste século e, muito embora
do vale do Anhangabaú em parque de não se tenham dados precisos relativos
inspiração francesa 6 . Os últimos vestígi- à sua circulação (número de tiragem,
os do tipo de o c u p a ç ã o colonial que preços), o tipo de impressão utilizada
caraterizava a área central desaparece- pressupõe publicações consumidas em
ram nessa época com o arrasament o de maior escala.
quarteirões inteiros e da antiga catedral
Quanto à seleção de motivos, n e s s e s
da Sé.
álbuns, ao contrário d os comparativos,
Produzida no âmbito da esfera pública são privilegiados os edifícios e e s p a ç o s
municipal, nesta d o c u m e n t a ç ã o fotográ- públicos recém-construídos, bem como
fica fica clara a intenção em divulgar, de as novas áreas residenciais que surgi-
forma positiva, os trabalhos da admi- ram a partir de loteamentos realizados

Avenida Paulista, Sào Paulo. Do Álbum de Vistas de São Paulo. Sào Paulo, Casa Garraux, 1914.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n* 1-2, p. 99-1 10, jan/dez 1993 pâg. 103
A C

na zona oeste da cidade. As ruas cen-


trais também integram a seleção, só que
em menor número e reduzidas àquelas
do triângulo central (Ruas 15 de novem-
bro, de São Bento e Direita). É notável a
presença de imagens que extrapolam o
contexto urbano de São Paulo - de fazen-
das de café, da estrada de ferro Santos-
Jundiaí e até mesmo do porto de San-
tos.
O tratamento formal utilizado nas distin-
tas tipologias de álbuns constitui outro
elemento diferenciador. rio caso dos
álbuns comparativos a articulação
espacial dos logradouros da região cen-
tral é perceptível graças à recorrência de
tomadas panorâmicas aliadas a legen-
das que indicam, por vezes, o ponto de
vista do fotógrafo. Já nos contemporâ-
neos ocorre justamente o contrário. A
predominância é de tomadas pontuais
que isolam o motivo principal de seu
contexto espacial, impedindo a noção
de conjunto.
Têm-se, assim, nos álbuns comparati-
vos, a imagem de uma cidade articulada
e dinâmica, calcada no símbolo de
centralidade enquanto polo de integra-
ção (de vias, pessoas); e nos álbuns
contemporâneos, a imagem de uma ci-
dade nova, recém-projetada, que ofere-
ce, pontualmente, novos marcos de re-
ferência.
A partir de um exercício de leitura de um
álbum contemporâneo típico da série
acima descrita, podemos demonstrar as
possibilidades de exploração desse tipo
de documentação.

pag. 104.jan/dez 1993


[de Novembro |vistas do Largo da Sé), Sio Paulo. Do Álbum de Vistas de São Paulo. São Paulo. Casa Garraux, 1914.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2, p. 9 9 - 1 1 0 . jan/dez 1993 - pág. 105


A C E

O Álbum de Vistas de São Paulo, editado coisas belas" é p r o n t a m e n t e enunciada.


pela Casa Qarraux de C. riildebrand e Ma seqüência, t e m o s a praça Antônio
Cia. em 1914, reúne 29 fotografias im- Prado e a rua 15 de Novembro, logradou-
p r e s s a s em process o fotomecânico. Mão ros que concentravam as atividades de
constam d a d o s relativos à tiragem e nem serviços e, sobretudo, as comerciais. O
à autoria das fotografias. Mo entanto, as ' p a s s e i o ' continua pelo viaduto Santa
s e m e l h a n ç a s no tratamento formal dis- Ifigênia - recém-construído ( 1 9 1 1 ) - que
pensado às imagens levam a acreditar é retratado tendo ao centro a presença
que se trata de um conjunto produzido de um bonde elétrico.
por um único fotógrafo. Se assim for, Daí em diante, são a p r e s e n t a d o s as pra-
p o d e m o s atribuir a autoria a Guilherme ças e os jardins (Praça da República,
Qaensly, pois uma d a s d u a s imagens da Jardins da Luz e da Aclimação), o s edifí-
Estação da Luz, que integra o álbum, cios de arquitetura i m p o n e n t e no estilo
encontra-se também na forma de cartão- eclético como o Museu do Ipiranga e o
postal assinado por ele 7 . Teatro São J o s é , as á r e a s residenciais
O fato de uma das fotografias do álbum da elite, um panorama do Brás com des-
circular na forma de cartão-postal é um taque para três chaminés que caracteri-
dado importante que informa a respeito zam o bairro como industrial e o limite
do grau de difusão d e s s a s imagens e, da c i d a d e, r e p r e s e n t a d o pela ponte
portanto, permite constatar a dissemi- Qrande sobre o rio Tietê. Fora do perí-
nação de um certo tipo de padrão visual metro urbano, figura uma imagem da

presente na constituição das represen- Cantareira, na zona norte, o n d e se loca-


lizava o sistema de a b a s t e c i m e n t o de
t a ç õ e s urbanas em questão.
água. A única grande panorâmica da ci-
Do total de fotografias, nove referem-se
dade, ocupando d u a s páginas, retrata os
ao porto de Santos, enfocando o embar- b a i r r o s de Santa Cecília e C a m p o s
que de café e a infra-estrutura das do- Elíseos, com d e s t a q u e para o traçado
cas. As vinte restantes concentram-se regular das ruas e o padrão homogêne o
em pontos da capital. O arranjo interno de ocupaçáo 8 .
das imagens apresenta uma narrativa
e a seleção e o arranjo d a s foto-
visual em que fica clara a alusão a o s
grafias j á fornecem elementos
a g e n t e s r e s p o n s á v e i s pelos a s p e c t o s
que permitem encaminhar algu-
' m o d e r n o s ' selecionado s para represen-
mas q u e s t õ e s relativas ao eixo nortea-
tar a cidade: a s duas imagens que abrem
dor da narrativa, é s o b r e t u d o a partir da
o álbum s ã o da estação ferroviária San-
análise do tratamento dispensado a cada
tos-Jundiaí (Estação da Luz) e as duas
um dos motivos q u e p o d e m o s e n t e n d e r
últimas, de navios cargueiros atracados
a forma específica pela qual certos atri-
no porto de Santos.
b u t o s visuais são engajados na constru-
A rota do capital que "ergue (e destrói) ção de sentido.

pag. 106, jan/dez 1993


V o

Os motivos p r e d o m i n a n t e m e n t e enfoca- perspectiva central como a lateral, com


dos - ruas localizadas na área central, destaque para os elementos móveis em
áreas residenciais, praças e jardins - primeiro plano. As á r e a s residenciais,
recebem um tratamento formal diferen- de que a avenida Paulista é um exem-
ciado. Mo caso das praças e jardins, a plo, s á o r e p r e s e n t a d a s a partir de toma-
ênfase recai no d e s e n h o paisagístico, j á das panorâmicas com exploração das
que é evitada a presença de pessoas: perspectivas laterais enfatizadas pela re-
opta-se por t o m a d a s pontuais enfocando p e t i ç ã o de e l e m e n t o s d i s p o s t o s ao
a vegetação e e l e m e n t os decorativos longo do trajeto como árvores e postes.
como espelho d á g u a , chafarizes e está- A ausência de pessoa s e de elemento s
tuas, n o s álbuns em que figuram ima- móveis faz com que a uniformidade dos

gens do jardim da Luz, o lago aparece lotes e a regularidade do traçado das


ruas sejam ressaltadas.
em primeiro plano, com o chafariz no
centro do quadro organizando, simetri- A disposição d e s s a s fotografias explicita
camente, os e l e m e n t o s da composição. a intenção de confronto entre o espaç o
A água é uma presença constante e o de concentração de atividades ligadas
efeito reflexivo que proporciona amplia ao setor terciário (imbricando um maior
o espaço e n q u a d r a d o pontualmente e número de práticas urbanas que a ima-
concorre para criar uma atmosfera visu- gem d a s ruas do centro denota) e o
almente aprazível e de estabilidade. e s p a ç o projetado, t e n d o em vista a
exclusividade de função, evidenciado
Mo Álbum de Vistas de São Paulo a dispo-
pela imagem de uma avenida residencial
sição, lado a lado, de uma imagem da
de ocupação relativamente recente.
avenida Paulista e de outra, da esquina
da rua Direita com a 15 de Movembro, A representação do espaço mais com-
contrasta os dois t r a t a m e n t o s dispensa- plexificado pela concentração de fun-
dos, respectivamente, às áreas residen- ções se dá a partir de uma imagem den-
ciais e à área central. sa e heterogênea, com maior contraste
de tons e na qual, em virtude da gama de
As imagens relativas ás ruas do triângulo
elementos em movimento, há uma mul-
central guardam características bem dis-
tiplicação das direções que articulam os
tintas das demais . Contam com uma
planos fotográficos. A composição re-
enorme v a r i e d a d e de e l e m e n t o s em
sulta, assim, mais dinâmica e expressi-
movimento - b o n d e s , carroças, bicicle-
va, em contraste com a representação
tas e p e s s o a s . Ma verdade, o movimento
do espaço funcionalmente construído,
parece ser o motivo principal: o recurso
da high camera (ponto de vista do fotó- que se apresenta mais homogênea gra-

grafo localizado no alto de alguma saca- ças à repetição cadenciada de elemen-


da) resulta em t o m a d a s mais abrangen- tos estáticos e na qual a articulação dos
tes, em que são privilegiadas tanto a planos se dá fundamentalmente pelas

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 99-110, jan/dez 1993 - pág. 107


A C E

linhas diagonais da extensão perspéctica. imobiliária, dos vazios urbanos localiza-


rio jogo de equivalências entre as quali- dos em áreas salubres, longe das várze-
dades físicas desses espaços e os atri- as inundáveis e infectadas dos rios que
butos com que são representados foto- cercam São Paulo.
graficamente, fica sugerido um modo de Os agentes sociais comprometidos com
vida urbano que pressupõe uma divisáo os investimentos imobiliários, assim
funcional do espaço: o centro, movi- como os agentes externos que subsidiam
mentado por concentrar diversas fun- a infra-estrutura necessária à circulação
ções, não serve para morar ou descan- do capital, são identificados nessa
sar; para essas práticas, novas áreas são seleção fotográfica por suas ações e pro-
projetadas. O álbum, ao apresentá-las dutos: os bondes e trilhos nas ruas do
cenograficamente, sem a presença de triângulo central remetem ao capital es-
atividade humana, oferece à apropria- trangeiro, representado, nesse momen-
ção simbólica uma nova concepção de to, pela The Sào Paulo Light and Power
urbanidade, onde a cidade surge como Co. Os loteamentos financiados pela
organismo ordenado pela racionalidade iniciativa privada, por sua vez, identifi-
técnica. cam as elites paulistas enriquecidas com
o café.
" " ^ ste procedimento explicita um
nesse contexto, o tipo de imagem veicu-
~**1 mecanismo de mascaramento de
lada pelo álbum fotográfico aqui tratado
uma realidade urbana bem lon-
explicita a intenção em promover a
ge da idealizada, pois Sào Paulo não
familiaridade com a nova ordem urbana
possuía, naquele momento, a homoge-
que se pretende para São Paulo.
neidade arquitetônica e urbanística que
transparece no conjunto dos aspectos Apoiando-se no estuto de veracidade
selecionados. O binômio funcionalida- subjacente ao discurso que acompanha
de e embelezamento urbano, que a com- a fotografia desde sua invenção, a docu-
posição ordenada sugere, acaba servin- mentação da cidade proposta pelo ál-
do como um dispositivo que aprofunda bum induz à naturalização das interven-
o processo de especialização espacial ções urbanísticas recém ocorridas. Ao
da cidade, sem gerar confrontos explíci- desprezar os motivos ou as partes da
tos, liáo há caos; o controle técnico do cidade que não guardam as característi-
crescimento urbano e, conseqüentemen- cas dessa nova ordem, enfatiza-se uma
te, dos possíveis conflitos sociais, é percepção de mudança que não leva em
imaginariamente alcançado. conta o processo de transformação ur-
bana e seu significado.
Novas construções, novos bairros, no-
vas áreas de lazer - a expansão da cidade Os recursos visuais mobilizados suge-
focalizada é aquela fruto da especulação rem estabilidade e cumprem a função

pag. 108. jan/dez 1993


V o

de ressaltar a abordagem racional da urbanas regidas pela lógica do capital


expansão da cidade, reduzindo, assim, especulativo 9 a um problema exclusiva-
os conflitos i n e r e n t e s à s s o c i e d a d e s mente técnico.

M O T A S

1. TAQQ, John. The Burden of Representation: Essays on Photographies and History, Amherst:
University of Massachusetts Press, 1988.
2. CARVALHO, Maria Cristina e WOLFF, Silvia Ferreira. 'Arquitetura e Fotografia no século XIX" In:
FABRIS, Annateresa (org). Fotografia: Usos e Funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991.
3. BURGIN, Victor ed. Thinking Photography. London: Macmillan, 1990.
4. Cuias Ilustrados, álbuns sobre a cidade montados por particulares, álbuns em que a cidade
aparece como motivo secundário (por exemplo, álbuns da Sociedade Construtora e de Imóveis, de
V/sfas da Estrada de Ferro de São Paulo), cartões-postais, relatórios ilustrados de obras públicas,
periódicos e almanaques ilustrados.
5. Correio Paulistano, 30 de agosto de 1876.
6. Os planos urbanísticos executados nas principais metrópoles européias (Paris, 1850, Viena,
1870, Londres, 1880) serviram de modelo para as intervenções urbanas em São Paulo (
TOLEDO,Benedito Lima de. Anhangabaú, São Paulo: FIESP, 1989). É certo que, pelos interesses
e fundos existentes, elas eram superficiais, restringindo-se a uma maquiagem da cidade -
projetos paisagísticos para praças e jardins e arborizaçâo de vias.
7. Cartão-postal circulado (1917) intitulado São Paulo- Estação da Luz S. P. R. III. Guilherme Qaensly.
n. 4. (Acervo do Museu Paulista/USP).Sobre Gaensly e sua produção fotográfica ver KOSSOY,
Boris. São Paulo, 1900. São Paulo: CBPO, 1988.
8. Esses bairros surgiram de loteamentos de chácaras na última década do século XIX; Campos
Elíseos - 1880, loteamento dos Irmãos Glette; Santa Cecília e fligienópolis, loteamento da
chácara das Palmeiras; e Vila Buarque, antiga propriedade de Rego Freitas, vendida a um grupo
de capitalistas estrangeiros que a loteou em 1894.(Cf.BRUriO, Ernani da Silva. Histórias e
Tradições da Cidade de São Paulo v.3. Sào Paulo: José Olímpio Editora, 1954.)
9. 'A modernização da economia brasileira que se opera após o fim do sistema escravocrata
ocorrerá, fundamentalmente, no âmbito das atividades comerciais, dinamizando os centros
urbanos que serviam de ligação entre a produção agrícola e o mercado externo. Os aspectos
mais relevantes desse processo de dinamizaçào serão a implantação de infra-estrutura de
transportes - agilizando o circuito produção/consumo - e os padrões de uso e ocupação do solo,
que passam a ser pautados pela lógica da especulação imobiliária."(FERNANDES, Florestan. A
Revolução Burguesa no Brasil, Rio de Janeiro: Zahar, 1975).

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2, p. 99-1 10, jan/dez 1 9 9 3 - pàg. 109


Á L B U N S C O N S U L T A D O S
Álbum comparativo da cidade de São Paulo: 1862-1887. Sào Paulo: Photographia Americana, 1887 (60
fotografias de Militào Augusto de Azevedo).
Álbum de São Paulo. Rio de Janeiro,São Paulo; Editores Laemmert e Cia., 1900 (1 2 fotografias).
Lembrança do governo de São Paulo. São Paulo: Qaensly e Lindemann, s.d. (aprox. 1905)(43
fotografias de autoria de Guilherme Qaensly).
São Paulo A- v o l. São Pauto: Menotti Levi Editor, s.d. (aprox. 1910) (50 fotografias).
Álbum lembrança de São Paulo III. São Paulo: Rothschild e Cia (aprox. 1911) (39 fotografias).
Vues de São Paulo. Comissariat General de L'Etat de São Paulo, 1911 (99 fotografias sendo 22 da
cidade de São Paulo).
Álbum de Vistas de São Paulo. São Paulo: Casa Garraux, 1914 (29 fotografias).
Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo: 1862-1887-1914. Sào Paulo: Casa Duprat, 1914, 2 vols
(103 fotografias).
Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo: 1862 - 1916. Organizado pelo Exmo. Sr. dr. Washington
Luís Pereira de Souza, Pref. Municipal de Sào Paulo, s.c.p., 1916, 2 vols (118 fotografias).
Álbum comparativo da cidade de São Paulo até o Anno de 1916. Organizado por Washington Luis Pereira
de Souza, Sào Paulo, s.c.p., s . d . , 2 vols (1 17 fotografias).
Álbum comparativo da cidade de São Paulo. Organizado com autorização do Exmo.Sr.dr. Washington
Luís Pereira de Souza, São Paulo, s.c.p., s.d.(aprox. 1916) (52 fotografias).
Álbum comparativo da cidade de São Paulo. Organizado pelo Exmo. dr. Washington Luís Pereira de
Souza, São Paulo:Casa Duprat, 1919 (62 fotografias).

A B S T R A C T
Among th e iconographic documents about the city of São Paulo, produced at the beginning of this
century, photographic álbuns have a special presence. A criticai reading of a representative álbum
shows how photography emphasizes the technical approach to the problems related to the city
expansion at that m o m e n t .

R É S U M É
L'existence d'albums photographiques concernant ia documentation iconographique de Ia ville de
Sào Paulo produite au début du siècle est significative. Partant de Ia lecture critiqu e d'un álbum
typique de cette série, 1'analyse dévoile Ia manière dont Ia photographie valorise un abordage de
haute technicité des problèmes relatifs à 1'expansion de Ia ville à ce moment-là.
Vânia Carneiro de Carvalho
Historiadora no Museu Paulista-USP. Pós-graduanda na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

A JPla§éicicla<áe Urlb> a m a
LS representações «ria cidade
Dao P a u l o nas fotografias cie 1

O
interesse crescente de documentaçã o iconográ-
pela fotografia, não fica.
mais como material É nesse conjunto de iniciati-
de apoio ã d o c u m e n t a ç ã o tex- vas que se insere a análise da
tual, mas como um corpo do- fotografia como um documento
cumental suficientemente capaz de articular às práticas
abundante, sistemático e auto- sociais os s e u s níveis de orga-
consistente, tem incentivado, nização simbólica. Os e s t u d os
em grande medida, a adoção da natureza fotográfica, das
simultânea de políticas de co- formas de a p r e s e n t a ç ã o de
leta, de tratamento e de pes- s e u s atributos visuais, das es-
quisa em nível institucional. colhas temáticas, e dos mo-
Mão são p o u c o s os cursos voltados para dos de apropriação informam sobre as
a organização, conservação e restauração estratégias do poder em sociedades as-
de acervos fotográficos, as publicações simétricas, logo, em constante situação
especializadas, as edições de álbuns de tensão e conflito. Trata-se, portanto,
temáticos ou de núcleos documentais de entender a fotografia como o suporte
inéditos, a implantação de b a n c o s de de representações que integram ativa-
imagens, ou m e s m o , a preocupação aca- mente e de maneira específica o fato
dêmica com o m a p e a m e n t o d a s múlti- social, ou seja, s ã o a g e n t es da produção
plas possibilidades de análise desse tipo de s e n t i d os s o c i a l m e n te n e c e s s á r i o s

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2. p. 11 1-120. jan/dez 1993 - pàg. 1 1 l


A C

para o pleno funcionamento da socieda- atuais 2 . As edições variavam entre a sim-


de. ples brochura e as e n c a d e r n a ç õ e s de
A escolha dos álbuns fotográficos im- luxo, a m b a s trazendo texto introdutório,
pressos sobr e a cidade de Sáo Paulo na cuja tônica gira em torno d a s inovações
d é c a d a de 1950, c o mo núcleo básico de urbanísticas, e m b e l e z a m e n t o s , novas
investigação, permite ao historiador per- construções e crescimento acelerado da
c e b e r n a s n o ç õ e s de c i d a d e a vida cidade, tanto econômico (industrializa-
subliminar de r e p r e s e n t a ç õ e s estrutura- ção e comércio) como demográfico.
doras de valores associados ao traba- Apresentando, por vezes, versões em
lho, ao consumo, à s etnias, a o s lugares língua estrangeira, a s legendas não se
sociais, à riqueza, ao desenvolvimento, restringem à simples identificaçào de
à s formas de a c e s s o e d e participação na motivos. Sáo, na verdade, p e q u e n o s tex-
rede de relações sociais. O estudo das tos que integram a narrativa do álbum,
r e p r e s e n t a ç õ e s urbanas, ou m e s m o da estando em estreita ligação com a ima-
cidade, não se constitui em um fim em si gem. Elas quase s e m p r e pretendem ele-
m e s m o . Trata-se de entendê-las como ger um sentido, restringindo a ambigüi-
vetores da construção de um quadro de dade visual, conduzindo o observador
referências com papel ativo na ordena- pela série fotográfica, a p o n t a n d o em
ção social. A sua absorção como algo cada unidade aquilo que deveria ser
não arbitrário, m a s como dado natural, retido e valorizado.
sensivelmente observável, garante a alta
A organização d a s fotografias na página
capacidade hegemônica d e s s e universo
varia muito. A novidade, em relação a o s
simbólico fotogra ficam ente apresenta-
álbuns do início do século, está na utili-
do.
zação de toda a extensão da página, ou
A década de 1950 mostrou-se rica na até de páginas duplas para uma única
produção de publicações voltadas para imagem. Nesses c a s o s , nào há nenhum
a cidade, especialmente de álbuns foto- tipo de moldura e a fotografia apresenta-
.gráficos editados por iniciativa privada s e para a leitura em retângulo vertical. A
(ver anexo), provavelmente estimulados verticalidade já n os indica a adaptação
pela ocasião d a s c o m e m o r a ç õ e s do ani- do formato a um motivo recorrente em
v e r s á r i o d o s q u a t r o c e n t o s a n o s de todos os álbuns - a exploração visual
fundação de Sáo Paulo, em 1954, cujos dos edifícios de alto gabarito.
festejos foram c o m a n d a d o s pela Comis- Apesar de haver, por vezes, indicações
são do IV Centenário 1 . de autoria, elas não s ã o de forma algu-
Sabe-se que as edições da série Isto É ma enfatizadas. Não há indicações de
São Paulo e de São Paulo Antigo, São personalização da produção fotográfica,
Paulo Moderno, lançadas pela editora ou seja, da idéia de obra de autor 3 .
Melhoramentos, atingiram ao todo O álbum ambiciona, pela sua própria
5 5 . 0 0 0 exemplares, número nada des- natureza, constituir uma visão globali-
prezível, até m e s m o para o s padrõe s zante da cidade. Mele estão p r e s e n t e s

pag. 1 12,jan/dez 1993


V o

imagens d o c e n t r o , dos bairros, de insti- t r a t a m e n t o pontua l a esses m o t i v o s .


tuições p ú b l i c a s (museus, hospitais, bi- As fotografias de residências de alto
bliotecas, i n s t i t u t o s ) , de m o n u m e n t o s e padrão em locais c o m o Higienópolis,
de temas ligados à indústria, ao comér- avenida Brasil, avenida Paulista e Jar-
cio, à agricultura, ao esporte, à religião, dins superam em m u i t o as imagens dos
etc. A seleção das imagens 'representa- bairros operários ou de baixo padrão.
tivas' do c o n j u n t o u r b a n o j á se oferece
Parte significativa das imagens retrata
como um p r i m e i r o nível de organização
pessoas em atividades ligadas à indús-
do s e n t i d o .
tria, ao comércio, às finanças, à constru-

O
s m o t i v o s são escolhidos pre- ção civil ou ao transporte . A cidade se
d o m i n a n t e m e n t e na área cen- prolonga nos interiores de fábricas, ban-
tral da cidade , que i n c l u i c o m cos, lojas e restaurantes, marcando uma
muita relevância a área do centro expan- ruptura com as imagens do início do
dido. As p a i s a g e n s urbanas mais século, onde os espaços interiores, além
requisitadas são aquelas que vão desde de raros, se mostravam sempre vazios.
o parque d . Pedro I I , passando necessa-
não são apenas as recorrências que po-
riamente pelo vale do Anhangabaú, até a
d e m informar sobre as representações
praça da República. Destas, as tomadas
urbanas em causa. O álbum possui uma
panorâmicas o u parciais quase sempre
estrutura narrativa, onde as imagens não
ressaltam a presença de pessoas e auto-
se encontram apenas j u s t a p o s t a s , mas
móveis.
m a n t ê m relações de significação que
As imagens de obras em construção, de dependem da existência do c o n j u n t o .
d e m o l i ç õ e s , de alargamentos de ruas o u Assim, uma imagem pouco recorrente
canalização de rio s a p a r e c e m como pode significar tanto uma posição inferi-
motivo p r i n c i p a l o u secundário . Com or na hierarquia de valores definida ,
exceção dos registros fotográficos da quanto um c o n t r a p o n t o, o u reforço do
construção do parque do Anhangabaú, c o n j u n t o ao propor recortes do tema, ou
4
com base no Plano Bouvard , este t e m a pode ainda estar associada ao clímax da
é m u i t o p o u c o e x p l o r a d o nos álbuns própria narrativa. Os sentidos variam
c o n t e m p o r â n e o s impressos do início do c o n f o r m e o lugar de inserção da ima-
século. g e m , dos recursos plásticos utilizados,
Os edifícios de gabarito elevado são pre- o u ainda, da legenda que a acompanha.
sença o b r i g a t ó r i a . A exploração da Pela sua própria natureza, o ' á l b u m de
verticalidade do centro da cidade é uma c i d a d e ' se c o n s t r ó i sob a tensão do
das tônicas em t o d o s os álbuns. Os bair- b i n ô m i o totalidade-exclusão, ou seja, a
ros mais afastados, zonas industriais o u dupla necessidade de apresentar todos
até mesmo áreas adjacentes ao centro, os elementos c o n s t i t u t i v o s da cidade e
quando não excluídos, contam c o m um ocultar aqueles que c o m p r o m e t e m as
n ú m e r o bastante r e d u z i do de fotografi- premissas sobre as quais estão ancora-
as, essencialmente aquelas que dão um das as representações.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n« 1-2. p. 11 1-120. Jan/dez 1993 - pàg. 113


A c E

Os recursos, portanto, não são simples- dade das imagens dos álbuns. Basta
mente de seleção, mas de arranjo e considerar que muitas das fotografias
tratamento qualitativo. Por isso mesmo, da cidade de Sáo Paulo na década de
um controle exclusivamente quantitati- 1950, que representavam para a época a
vo não responde á complexidade ine- imagem do progresso e bem estar, hoje
rente à organização do documento e aos seriam facilmente entendidas como ima-
problemas históricos de que através dele gens de denúncia da deterioração do
se pretende dar conta. padrão de vida da população urbana, da
Muitos dos recursos formais utilizados especulação imobiliária, dos interesses
nos álbuns são parte do repertório da da indústria automobilística, etc.
linguagem moderna da fotografia ou Assim, por um lado, pretende-se evitara
mesmo da pintura, que tem seus precur- abordagem da fotografia como vitrine,
sores mais remotos ainda no século XIX através da qual se observa uma realida-
e início deste século 5 , de para além do seu suporte visual. É
O uso quase abusivo da fragmentação, necessário, por outro lado, evitar a ar-
closes exagerados, rotações de eixo, madilha de uma análise estritamente
direções marcadamente oblíquas, for- formal que tende a subentender senti-
tes contrastes de textura e de tonalida- dos atemporais inerentes às técnicas
des, acentuados efeitos de convergên- visuais aplicadas. O fiel da balança, nes-
cia, a ênfase na plasticidade do motivo, tas duas polaridades indesejadas, acaba
o uso de justaposições e sobreposições, sendo a tentativa de reconstituir os sen-
em resumo, a tendência à desrealizaçáo tidos específicos, ou seja, históricos, de
do objeto representado está associada a uma determinada proposição visual. A
várias ordens de mudança. Algumas de- análise de uma das fotografias dos ál-
las sáo de caráter técnico-mercadológico buns pode servir de exemplo aos pro-
(ampliação de usos e circuitos de difu- blemas até agora tratados.
são) - a versatilidade permitida pela Trata-se de uma imagem do álbum Eis
câmera de mão, as lentes pequenas e São Paulo, que apresenta a avenida Sáo
rápidas, as técnicas de reprodução si- João, no centro da cidade, em obras de
multânea de texto e imagem6. Outras infra-estrutura. A opção pela organiza-
são de natureza histórica associadas ao ção do espaço através de planos linear-
amadurecimento do tenso diálogo que mente articulados e contíguos é aqui
se estabeleceu entre fotografia e artes descartada. A sobreposição é o modo
plásticas desde o aparecimento da pri- preponderante de composição do qua-
meira como desafiadora dos conceitos e dro fotográfico. Através dela se impõe
procedimentos tradicionais em relação uma hierarquia, que articula o sentido
ao que era considerado obra de arte. da imagem - a seqüência espacial aque-
Entretanto, a incorporação de uma lin- duto/veículo (primeiro plano), guindas-
guagem nào significa a transposição dos te (elemento de intermediação), e edifí-
sentidos constituídos fora da especifici- cios (plano de fundo) eqüivale a uma

pag. 114,jan/dez 1993


R V O

seqüência t e m p o r a l imaginária, constru- bidos enquanto unidades i n d i v i d u a i s .


indo u m a metáfora do progresso urba- Assim, as variações tonais intensas agem
no, o u seja, a intervenção urbana traz o de forma c o m p l e m e n t ar a esse tipo de
crescimento da cidade, na forma de sua organização do espaço. É possível notar
verticalização. O progresso pressupõe a como a sobreposição valoriza cada mo-
reciclagem física do espaço da cidade. A tivo u n i t a r i a m e n t e , em d e t r i m e n t o do
legenda 'não descansa' e x p l i c i t a a pre- e n t o r n o . Ela dispensa a territorialidade
sença do t r a b a l h o . como forma integradora do c o n j u n t o . A
Para que a sobreposição seja efetiva os unidade do quadro se dá através de
e l e m e n t o s do q u a d r o devem ser perce- ressonâncias formais e tonais: a

Avenida São João. Eis São Paulo. São Paulo.Ed. Monumento - Companhia ütográphica Ypiranga, 1954.
(Textos e imagens idealizados por Théo Gygas)

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 11 1-120, jan/dez 1 9 9 3 - pág. 115


São Paulo. SCHEYER, Peter. Sao Paulo-.fastest growing city in the world. Rio de Janeiro: Kosmos. 1954.

pag. 1 16. jan/der 1993


R V O

circularidade dos aquedutos e dos externo) e a figura (circundante inter-


pneus, a verticalidade do poste de luz no), d o t a n d o o c o n j u n t o de m a i o r
no plano médio e dos edifícios ao fun- dinamicidade.
do, a s distribuições equilibradas de áre- Nas imagens que se ocuparam em repre-
as com luminosidades contrastantes. sentar com fidelidade aspectos óticos
A estabilidade d a s linhas verticais e cir- da realidade sensível, a moldura servia
culares é rompida pela posição oblíqua como delimitador de um espaço pressu-
do guindaste, produzindo uma tensã o posto como infinito. J á neste século, o
visual reiterada pela ambigüidade entre tratamento da materialidade do quadro,
fundo e figura. isto é, da superfície plana da tela,
Pias c o m p o s i ç õ e s perspécticas tradicio- desautoriza a moldura tradicional, trans-
nais, o fundo p e r m a n e c e imóvel, inalte- formando-a, quando utilizada, em obje-
rável, e n q u a n t o a figura a s s u me papel to secundário de a c a b a m e n t o. A supres-
dinâmico 7 . A circunscrição do quadro s ã o da moldura no caso d o s álbuns ad-
pelo a q u e d u t o em primeiríssimo plano quire sentido inverso àquele inicialmen-
cria uma contaminação entre aquilo que te entendido no contexto das artes plás-
seria o espaç o ilimitado (circundante ticas. Mão se trata aqui de ressaltar a

Praça da República. KARFELD, Kurt Peter.


São Paulo: álbum de fotografias em cores. São Paulo: Melhoramentos, 1954.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n* 1-2. p. 11 1-120. jan/dez 1993 - pág. 117


A C E

materialidade do quadro, mas de drama- social.


tizar o espaço interior, quebrando a O sentido de beleza urbana é construído
estaticidade das imagens emolduradas, na imagem fotográfica através de recur-
de formato horizontal e tamanho aca- sos de linguagem originalmente usados
nhado. para questionar o caráter artificioso da
A inversão da escala através de aproxi- imagem e os sentidos comumente asso-
mações e recuos exagerados, ou a ten- ciados a objetos realisticamente repre-
dência a citações parciais, fragmenta- sentados 9 .
das, como no caso da tomada do veículo A descontextualização promovida pelo
ou dos contornos do aqueduto, ou a tratamento autônomo dos motivos valo-
geometrização da imagem, longe de riza as estruturas em detrimento do teci-
desconstruirem os motivos, funcionam do urbano. Assistimos aqui a uma quase
como efeitos de valorização de elemen- inversão de funções na aplicação dos
tos e de sentidos perfeitamente identifi- recursos modernos da linguagem foto-
cáveis: a imagem da cidade dinâmica, gráfica. A uma realidade desestruturante,
em constante crescimento, simultanea- a fotografia oferece a cidade como obje-
mente laboriosa e aprazível, se oferece to de fruição estética, substituindo uma
como objeto de fruição plástica, estéti- possível função de estranhamento por
uma função claramente apaziguadora.
ca.
Sob esta aura de modernidade é possí-
For outro lado, a conjugação de edifíci- vel percebera aproximação das noções
os com praças, jardins, alamedas e mo- de progresso e de trabalho, esvaziadas
numentos procura recriar visualmente de seus atributos sociais e de seus con-
um equilíbrio entre densidade de ocu- teúdos intrinsecamente conflituosos.
pação e espaço aberto8.A natureza, ago- Colocadas em relação de causa e efeito,
ra domesticada e inofensiva, quase or- estas noções alimentam um ideário que
namental, não é ameaçada pelo cresci- associa a cidade ao espaço de atuação
mento da cidade, pelo contrário, este individual, bem entendido, aquele da
crescimento é a garantia do bem estar iniciativa privada.

H O

1. A Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo foi criada em 1951 como entidade
autárquica municipal com a finalidade de organizar e viabilizar financeiramente as comemora-
ções relativas aos 400 anos de fundação da cidade. Através de patrocínios e convênios

pag. 1 18.jan/dez 1993


R V O

realizados dentro da esfera pública, a Comissão incentivou, direta e indiretamente, as


iniciativas que visavam a divulgação da cidade de São Paulo em nível cultural, econômico ou
turístico. Entre suas realizações constam o patrocínio de publicações, concursos para trabalhos
literários e históricos, urbanização do parque do Ibirapuera (construção do Palácio das Nações,
dos Estados, da Agricultura, da Indústria e do Comércio, do Pavilhão das Máquinas, Auditório,
Ginásio dos Esportes e Palácio de Exposições), organização da Exposiçào do IV Centenário com
a participação da indústria brasileira e dos governos das nações amigas e instalação da I* Feira
Internacional de Sào Paulo, com a participação de indústrias estrangeiras, naquilo que de mais
representativo pudessem oferecer. (Cf. reportagens jornalísticas da década de 1950 - O Estado
de S. Paulo, Diário de S. Paulo, A Gazeta, Jornal de Noticias, Folha da Manhã, Tribuna da Imprensa, etc).

2. Isto E São Paulo


Lançamento Tiragem Preço Brochura Preço Encad ernado Esgotado
08.11.1951 5.000 50,00 70,00 dez.1951
07.03.1952 10.000 50,00 70,00 out. 1952
25.1 1.1952 10.000 50,00 70,00 out. 1953
10.1 1.1953 10.000 50,00 80,00 set. 1955
12.12.1956 10.000 60,00 90,00 ...
11.04.1963 8.000 -- ~ agos.1967
São Paulo Antigo - São Paulo Moderno
oderno
Lançamento Tiragem Esgotado
Preço
1953 10.000 100,00 1962
alcançou 200,00
São Paulo: álbum com fotografias em cores
Lançamento Preço
1954 290,00 (em 1955)
3. O caso do álbum Eis São Paulo è significativo. O prefácio informa que de um conjunto de 8.000
fotografias foram selecionadas 200, produzidas pelos funcionários da Companhia Lithographica
Ypiranga, especialmente por Qeorg Paulus Waschinski.
4. O urbanista francês Joseph Antoine Bouvard foi convidado em 19 11, por Raymundo Duprat,
então prefeito de Sào Paulo, para avaliar propostas de intervenção urbanística no centro da
cidade. Em seu relatório de apreciação ele sugere a construção de três parques, entre eles o
do Vale do Anhangabaú (TOLEDO, Benedito Lima de. Anhangabaú. São Paulo: FIESP, 1989).
5. MUSÉE DORSAY. Uinvention d'un regard (1839-1918). Paris: Ed. de Ia Reunion des Musees
Mationaux, 1989.
6. As inovações técnicas d e reprodução e impressão permitiram uma abordagem extremamente
articulada entre imagem e texto, através de cortes seletivos e um fino trabalho de construção
de sentidos mediante a sobreposição de imagens, ou de texto e imagem (ROBIMSOM, Cervin e
HERSCHMAN, Joel. Architeture transformed. London: Massachusetts, MIT Press, 1987). O acesso
maciço a este novo tratamento de página, viabilizado por revistas ilustradas de alta circulação,
como era o caso de O Cruzeiro, possibilitou a familiarização com uma nova linguagem, que trazia
no seu repertório temático assuntos referentes à cidade.(COSTA, Helouise. Aprenda a veras
coisas: fotojornalismo e modernidade na revista O Cruzeiro. São Paulo, ECA-USP, 1992, pp.38.
Dissertação de mestrado).
7. ARMHEIM, Rudolf. Arte y percepción visual- Buenos Aires: ed. Universitária d e Buenos Aires, 1962.
8. As áreas verdes existentes no centro da cidade vêem suas dimensões cada vez mais reduzidas.
A última tentativa de ampliação e reorganização dos parques e jardins centrais foi elaborada por
Prestes Maiaem seu EstudodeUmplanodeavenidas.de 1930, que previa a ampliação dos espaços
abertos do centro através de três eixos - Anhangabaú, praça da República/rua Timbiras/praça
Alfredo Issa e praça da Sé/Pátio do Colégio/parque d. Pedro II. O projeto previa também uma
profunda reformulação do sistema viário, principalmente no centro, com a abertura de avenidas
diametrais, formação de um anel viário para distribuição do tráfego, alargamento de ruas e
construção de avenidas marginais. Em 1945, nas imagens presentes no relatório Melhoramentos

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2. p. 11 1120. jan/dez 1993 - pàg. 119


de São Paulo, q u e documentaram a implantação do plano de Prestes Maia, fica evidente a
subordinação das áreas livres ao sistema viário. As reformas no centro levaram à destruição de
áreas verdes e residenciais.
9. É necessário considerar que mesmo em um circuito d e produção fotográfica preocupado em dar
um tratamento 'artístico' à fotografia, como era o caso do Foto Cine Clube Bandeirantes, a
cidade aparece como um tema-suporte das experiências de linguagem. Trata-se da utilização de
um repertório de elementos urbanos que alimenta uma noção extremamente abstrata do que
seria a emblemática visual do universo citadino(Cf. COSTA, tielouise e RODRIGUES, Renato. A
fotografia moderna no Brasil. Sào Paulo: FUNARTE, 1986.ms).

Á L B U N S C O N S U L T A D O S
Isto é São Paulo. São Paulo, Melhoramentos, 1951 (96 fotografias impressas).
Isto é São Paulo. Sào Paulo: Melhoramentos, 1952 (104 fotografias impressas).
São Paulo Antigo, São Paulo Moderno: álbum comparativo.São Paulo: Melhoramentos, Obra Comemo-
rativa do IV Centenário de Fundação da Cidade de São Paulo, 1955.(78 páginas ilustradas).
KARFELD, Peter. São Paulo: álbum de fotografias em cores. São Paulo: Melhoramentos, 1954 (60
fotografias impressas).
MEDINA, José. São Paulo, o que foi e o que é . São Paulo: Oferta da Viação Cometa, 1954 (140
fotografias impressas).
SCHEYER, Peter. São Paulo: fastest growing city in the world. Rio de Janeiro: Kosmos, 1954 (70
fotografias impressas).
Eis São Paulo. São Paulo, Comemoração do IV Centenário de Fundação da Cidade de São Paulo,
Monumento. 1954 (200 fotografias impressas).
Isto é São Paulo. São Paulo: Melhoramentos, 1956 (99 fotografias impressas).
Isto é Sào Paulo. Sào Paulo: Melhoramentos, 1963 (130 fotografias impressas, reedição ampliada
de 1954).

A B S T R A C T
This article discusses three photographs that are part of a set of álbuns conceming the city of São Paulo.
The material comes from private sources and was published during the comemorations of the IV Centennial
of thecity's foundation. The primary goal is to study the construction of the notions of progress, workand
embelishment associated with the city and built up with the modem language of photography.

R É S U M É
Cet article analyse trois photographies qui font partie de 1'ensemble d'albums photographiques de Sào
Paulo, d'origine privée, publiés à 1'occasion du IV*""Centenaire de Ia fondation de Ia ville. L'analyse met
en évidence les notions d'embellissement, de progrès et de travail, associées à Ia ville et constituées à partir
de 1'utilísation de ressources du langage photographique moderne.
Maria Lúcia Cerutti Miguel
Historiadora. Chefe do Setor de Documentos Iconográficos do Arquivo Nacional

A F otogiraiia
como O o c u m è i i i o
U n i a imstigaça© à l e i t u r a

A s reflexões q u e desenvolve-
r e m o s s ã o r e s u l t a d o s de
nossa experiência com os
arquivos fotográficos do Setor de Do-
reunindo neste texto a s reflexões que
desenvolvemos paralelamente ao tra-
balho empírico de organização e tra-
tamento de acervos fotográficos em
cumentos Iconográficos do Arquivo Ma arquivo.
cional.
A HISTORIOGRAFIA
A escolha do tema - fotografia como
E O DOCUMENTO
d o c u m e n t a ç ã o histórica - advém da
nossa experiência profissional com Mào é mais possível imaginar que a his-
fotografia, da nossa formação de histori- tória s e faz estritamente com textos es-
adora e da ausência de um consenso critos.
sobre o uso da fotografia como fonte. A diversidade da documentação históri-
As considerações que t e c e r e m o s sobre ca contemporânea põe em cheque a
d o c u m e n t a ç ã o fotográfica histórica não noção de documento e seu tratamento.
têm o intuito d e supervalorizar ou ex- A idéia de que só se tem história a partir
cluir qualquer tipo de informação ou do aparecimento da escrita provocou
interpretação, seja a fotográfica, a ver- equívocos e levou historiadores a privi-
bal ou a escrita. Alinhando algumas idéi- legiar o document o escrito como fonte
as, p r e t e n d e m o s contribuir para a s ques- de reconstrução do passado, em detri-
t õ e s teóricas da fotografia como fonte. mento de fontes que, por fugirem dos

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 121-132, jan/dez 1993 - pag. 121


A C E

padrões vigentes, não se constituíam t a m b é m o caráter multiforme da docu-


em material nobre para serem arquiva- m e n t a ç ã o histórica.
das, tratadas e analisadas. A multiplica-
Segundo Lucien Febvre
ção dos d o c u m e n t o s audiovisuais, em
'a história faz-se com documentos es-
especial a fotografia, exige o estudo de
critos, sem dúvida. Quando estes exis-
seu significado e de seu conteúd o cultu-
tem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se
ral enquanto registro da história.
sem documentos escritos, quando não
Entretanto a historiografia relegou a uti-
existem. Com tudo o que a habilidade
lização da imagem fotográfica como ins-
do historiador lhe permite utilizar para
trumento de pesquisa e de reprodução
fabricar o seu mel, na falta das flores
de condições materiais até bem recente-
habituais. Logo, com palavras. Signos.
m e n t e . A ausência da utilização da foto-
Paisagens e telhas. Com as formas do
grafia em s e u s primórdios como docu-
campo e das ervas daninhas. Com os
mento decorreu, por um lado, dos limi-
eclipses da lua e a atrelagem dos cava-
tes determinados pelo seu desenvolvi-
los de tiro. Com os exames de pedras
mento tecnológico - que restringiam as
feitos pelos geólogos e com as análises
c h a m a d a s fotografias e s p o n t â n e a s e
de metais feitas pelos químicos. Numa
impunham as fotografias posadas , rene-
palavra, com tudo o que, pertencendo
gadas por historiadores que as conside-
ao homem, depende do homem, serve
ravam meros instantes congelados da
o homem, exprime o homem, demons-
realidade, sem valor informativo de pro-
tra a presença, a actividade, os gostos
va - e decorreu, por outro lado, da noção
e as maneiras de ser do homem".'
de d o c u m e n t o s , a que se costuma cha-
mar fontes, imposta pela historiografia Os d o c u m e n t o s históricos dignos de
tradicional. serem conservados, transmitidos e estu-
d a d o s não deveriam ser s o m e n t e aque-
A crítica profunda da noção de docu- les que se referissem à história da vida
mento começou a ser elaborada em 1929 dos grandes h o m e n s , dos grandes acon-
por Lucien Febvre e Marc Bloch, funda- tecimentos, nem a q u e l e s q u e s e referis-
d o r e s da revista Annales d' histoire s e m s o m e n t e à h i s t ó r i a p o l í t i ca e
économique et sociale. Pioneiros de uma institucional, mas t a m b é m os documen-
história nova, os fundadores da Escola t o s que guardam a história do h o m e m
dos Anais insistiram sobre a necessida- comum, do cotidiano, das formas de
de de ampliar a noção de d o c u m e n t o . vivência coletiva, dos c o m p o r t a m e n t o s,
Criticaram a historiografia positivista das atitudes, pois a história passa a
centrada na noção do fato histórico, no interessar-se por t o d o s os h o m e n s , pelo
qual o d o c u m e n t o era s e m p r e uma pro- coletivo e não mais se satisfaz com anti-
gas e cristalizadas idéias.
va e afirmava-se essencialmente como
um d o c u m e n t o escrito. A história nova, A história não mais centrada no aconte-
insistiam, deveria levar em conta o estu- cimento e no indivíduo suscita uma nova
do das conjunturas, das estruturas e hierarquia d o s d o c u m e n t o s . E coloca

pag. 122. jan/dez 1993


V O

problemas de ordem prática para a pró- gidas, permitindo assim guardar a me-
pria definição dos arquivos e para sua mória do tempo e da evolução cronoló-
organização interna. gica'2.
Os arquivos deixaram de ser exclusivos O documento escrito j á não detém todo
depósitos de atos oficiais resultantes o conteúdo do conhecimento humano.
de atividades econômica s ou adminis- Os criadores da memória - as comunida-
trativas. Tornaram-se instituições desti- des, os meios sociais e políticos - cons-
nadas a recolher, organizar, conservar e tituem seus arquivos de acordo com o
tornar a c e s s í v e is o s d o c u m e n t o s da uso que fazem da memória e de acordo
memória coletiva. Memória ligada a o s com os meios materiais de que dispõem.
comportamentos, às mentalidades. Me- Neste sentido, o desenvolviment o
mória captada não mais nos aconteci- tecnológico dá impulso notável para a
mentos, m a s no t e m p o longo, m e n o s constituiçáo de novos arquivos, onde a
nos textos e mais nas palavras, nas ima- memória visual, oral e eletrônica (a
gens e nos gestos. Diante das séries informática) têm seu lugar.
documentais que os arquivos guardam,
o documento único perde o seu valor, a Os trabalhos da Escola dos Anais de-
história individual do herói ou do grande monstraram a necessidade da historio-
homem cede ao coletivo e, ao lado do grafia dar conta de uma variedade de
qualitativo, abre-se um amplo espaço objetos que haviam ficado até entáo
para a quantificação e a comparação. Os ignorados, tais como: o amor, a criança,
arquivos passaram a constituir-se em a família, a educação, o filme, a fotogra-
reservas de d o c u m e n t o s onde o histori- fia, a festa...Todavia o processo de apro-
ador escolherá sua documentação. priação desses novos objetos para estu-
dos tem sido extremamente lento, em
A c o n c e p ç ã o de documento t a m b é m razão das resistências estruturais e men-
modificou-se e ampliou- se. Ela agora tais, advindas das novas maneiras de
abrange o d o c u m e n t o escrito, o ilustra- conceber o trabalho do historiador. Nes-
do, o microfilmado, o fotográfico - tais te sentido, os arquivos d e s e m p e n h a m
como o diapositivo e a própria foto - o um papel fundamental, pois, diversifi-
fonográfico ou sonoro como os discos e cando suas reservas documentais,
as fitas audiomagnéticas, o filmográfico, estarão contribuindo para a apropriação
como as películas cinematográficas e as desses objetos enquanto material de
fitas videomagnéticas, além de outros investigação histórica.
que surgem e se aprimoram graças ao
desenvolvimento tecnológico. U M A PROPOSTA
Dentre os d o c u m e n t o s visuais, a foto- DE I N T E R P R E T A Ç Ã O

A
grafia, como disse J a c q u e s Le Qoff, s ciências sociais e históricas
'revoluciona a memória: multiplica-a e demonstram, a partir da déca-
democratiza-a, dá-lhe uma precisão e da de 1980, uma disposição de
uma verdade visuais nunca antes atin- usar a fotografia como representação

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2, p. 12 1-132, jan/dez 1993- pag. 123


A C E

constitutiva de significado, isto é, como histórico precisa ser decodificada e apre-


fonte histórica válida para a reconstru- endida em sua conotação. É preciso rom-
ção do p a s s a d o . Os historiadores da per com as pesquisa s que se orientam a
história social e da história das mentali- partir da 'teoria do e s p e l h o ' , isto é,
d a d e s são os que mais têm se debruça- aquelas que encaram a fotografia como
do sobre o estudo das imagens, enquan- reflexo da realidade e tentam compreen-
to os sociólogos e os antropólogos utili- dê-la através de suas proposições evi-
zam a técnica fotográfica como instru- d e n t e s . Considerando a fotografia como
mento complementar da pesquisa. um corpo de signos e todo signo como
Contudo a bibliografia teórica sobre in- constituinte ideológico, a questão do
terpretação de fotografias ainda é escas- sentido que o permeia s o m e n t e pode
sa. Existem p o u c a s publicações sobre ser formulada a partir do estudo das
metodologia de análise de fotografias. A relações dos signos com a q u e l es que os
maior parte da bibliografia existente re- emitem ou recebem em determinadas
fere-se ao estudo d a s técnicas da foto- situações. A fotografia é s e m p r e uma
grafia que reconstitui a sua história. mensagem situada, produzida por al-
guém e com endereço determinado. É
Proliferam, ainda, os estudo s que utili-
essa articulação que devemo s destrin-
zam a fotografia como ilustração para
çar, uma vez que uma fotografia não se
reforçar o conteúdo do texto e os estu-
esgota em sua d e n o t a ç ã o . Denota em
dos que partem da utlizaçáo das fotogra-
um nível e conota em outro.
fias como objeto de trabalho, mas que
não passam de relatos superficiais, pois Ao nível da produção, o trabalho de
se restringem a narrar e a descrever as interpretação da fotografia tem que con-
fotografias. Esses trabalhos não se inse- siderar o estágio tecnológico alcançado
rem no âmbito da pesquisa histórica, pelos recursos fotográficos por ocasião
pois tanto em um, quanto em outro, são da tomada da imagem, a fim de que se
eliminadas t o d a s a s possibilidades de evite interpretações errôneas . Como dis-
polissemia d a s fotos, j á que elas s ã o se Ivan Lima, 'tentar desvendar a Histó-
e s t u d a d a s a p a r t i r de c o n c e i t o s e ria através da fotografia p r e s s u p õ e um
finalidades pré- definidos, que não le- conhecimento da História da Fotogra-
vam em conta s e u s outros significados. fia".J
Porém, não q u e r e m o s dizer que tais es-
Quanto mais antiga uma coleção, mais
tudos sejam desprovidos de importân-
necessária é a sua contextualizaçáo no
cia. Pelo contrário, eles dizem respeito a
nível de produção. Compreender que a
diferentes m o m e n t o s da pesquisa histó-
ausência de c e n a s noturnas e que as
rica (seleção e leitura), mas não consti-
e s p a r s a s cenas de interior em São Pau-
tuem a análise do texto fotográfico, na
lo, até aproximadamente 1917, eram
medida em que não procuram os signifi-
limitações impostas pela ausência de
c a d o s próprios d a s imagens.
flashes, evitará, sem dúvida, conclusõe s
A fotografia t o m a d a como d o c u m e n to desvirtuadas, n e s t e caso, se a interpre-

pag. I24,jan/dez 1993


| V o

tação partisse apenas do que a fotogra- c ô m o d o s , seus móveis...Também para a


fia expressa c o m o real, teríamos, por análise das fotografias contemporânea s
e x e m p l o , afirmações generalizadas as- a compreensão dos avanços tecnológicos
sociando as esparsas cenas noturnas a é f u n d a m e n t a l , principalmente na área
uma tendênci a da família brasileira de de f o t o - j o r n a l i s m o . É imprescindíve l no
permanecer em casa - pouco dada a m o m e n t o da interpretação c o m p r e e n -
reuniões e festas - a s s i m c o m o as der que a diversidade de abertura do
esparsas cenas internas levariam a con- diafragma, a velocidade do filme e a
cluir que era uma tendência em manter mobilidade da máquina fotográfica - ao
oculta a vida privada: sua casa, seus absorver o m o v i m e n t o da fotografia.

Getúlio Vargas em sua fazenda. Sào Borja, (RS), 1939. Agência Nacional.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n' 1-2, p. 12 1-132. jan/dez 1993 - pag. 125
A C E

a u m e n t a r a profundidade e assinalar dos comparativos, periódicos de época


melhor os ângulos - criaram infinitas e catálogos de exposições. Entrevistas
possibilidades de registro. Evita que se com os d e s c e n d e n t e s dos fotógrafos ou
trace c o m p a r a ç õ e s infundadas s o b r e com as p e s s o a s envolvidas com o assun-
c o m p o r t a m e n t o s sociais e políticos dos to retratado també m são importantes.
povos em é p o c a s diferentes. Assim, adquire-se os elementos de apoio
e as pistas necessárias para a correta
O conhecimento d a s técnicas fotográfi-
identificação dos a s s u n t o s representa-
cas permite ainda localizar no seu devi-
dos.
do tempo uma fotografia sem data, sem
local e ainda desmistificá-la. Por exem- Quanto à análise do conteúdo da foto-
plo, muitas fotografias de personalida- grafia, ela não se resume a uma leitura
d e s políticas entre 1945 e 1954 dão a frontal e explícita do que a imagem reve-
impressão de fotografias e s p o n t â n e a s , la. A análise da d o c u m e n t a ç ã o histórica
quando na realidade p e r c e b e m o s , com exige mais.
o auxílio da história da fotografia, que A análise do conteúd o d a s fotografias
eram fotos a r m a d a s, preparadas, pois a foi, durante muito t e m p o , prejudicada
câmera em uso era a Rolleiflex - pouco pela falsa premissa de que tudo o que a
maleável e que não disparava na altura fotografia registrou de fato ocorreu. Essa
do olho humano e sim na altura do premissa falseia a verdade na medida
umbigo. Em razão disso as fotografias em que não leva em consideração que a
eram ' m o n t a d a s ' , m a s davam impres- fotografia, enquanto signo visual, teve
são de serem e s p o n t â n e a s . um processo de produção, circulação e
c o n s u m o . Isto quer dizer q u e ela foi
As características externas da fotografia
investida de significações d e t e r m i n a d a s
também devem ser levadas em conside-
pela relação entre fotógrafo, cliente e
ração quando da interpretação. O tama-
receptores. Não se p o d e entendê-la se-
nho, tipo, data, local, fotógrafo e publi-
não relacionando-a com outras signifi-
cação são importantes para identificar o
c a ç õ e s que, embora funcionando como
contexto em que foram produzidas. Deve-
m o m e n t o s ou etapas da produção, não
se também examinar as informações que
aparecem na superfície da imagem 'ter-
constam na própria fotografia - n o m e s
m i n a d a ' , ' p r o n t a ' . Essa intertextuali-
de ruas, inscrições de cartazes, n o m e s
dade a s s u m e papel instrumental impor-
das lojas etc. - e o conteúdo .
tante na interpretação d a s fotografias,
pois permite detectar alguns dos meca-
A interpretação da fotografia tem que
nismos ideológicos em ação na produ-
levar em conta t o d a s e s s a s considera-
ção e que deixaram na imagem s u a s
ções, a c r e s c e n t a n d o a elas um contínuo
marcas. Segundo Boris Kossoy,
cruzamento com as informações escri-
tas adquiridas através de bibliografias "ao observar uma fotografia deve-se
especializadas, publicaçõe s que conte- estar consciente de que a interpretação
nham ilustrações necessária s aos estu- do real será forçosamente influenciada

pag. 126,jan/dez 1993


K V O

por uma ou várias interpretações (...) cultura ou aspecto estudado, pois só


As possibilidades do fotógrafo interfe- assim será possível do fenômeno indivi-
rir na imagem - e portanto na configura- dual observável se chegar à compreen-
ção própria do assunto no contexto da são do todo.
realidade - existem desde a invenção
Também deve-se fazer a articulação com
da fotografia. Dramatizando ou valori-
os elos ausentes, com aquilo que a
zando esteticamente os cenários, de-
câmera não registrou. Questionar as la-
formando a aparência dos seus retrata-
cunas, interrogar-se sobre o s esqueci-
dos, alterando o realismo físico da na-
mentos, os hiatos, enriquece a análise,
tureza e das coisas, omitindo ou intro-
j á que o visível possui a s marcas da
duzindo detalhes, elaborando a compo-
manipulação do real. Reduzir a história
sição ou incursionando na própria lin-
através dos documentos fotográficos a
guagem do meio, o fotógrafo sempre
uma história adocicada para dar prazer a
manipulou seus temas de alguma for-
toda gente, não é a nossa proposta.
ma: técnica, estética ou ideologicamen-
te. •«
O ACERVO FOTOGRÁFICO
A fotografia congela instantes do real DO A R Q U I V O NACIONAL
d e t e r m i n a d o s pela relação fotógrafo,

N
o Arquivo Nacional as fotogra-
cliente e receptores. A imagem fotográ-
fias são objeto de um setor
fica fixa fragmentos do real. Mão registra
especializado que se incumbe
a passagem do t e m p o . Segundo Míriam
a d e q u a d a m e n t e de seu tratamento e
Lifchitz Moreira Leite, "as mudanças ou
preservação. O Setor de Documentos
o prolongamento do mundo visível só
Iconográficos tem como funções bási-
podem ser obtido s pela justaposição de
cas preservar, organizar os documentos,
diversas imagens sobre a mesma ques-
respeitando, ante s de tudo, a proveni-
tão, t o m a d a s em m o m e n t o s diferentes". 5
ência (fundo), a organicidade e a nature-
Para a interpretação da fotografia en-
za do material e torná-los acessíveis a
quanto d o c u m e n t a ç ã o histórica o que
s e u s usuários.
interessa são as seriações, pois o retrato
isolado não permite captar ambigüidade O acervo de fotografias é originário do
do objeto- imagem e o seu sentido. As recolhimento legal nos órgãos da admi-
séries é que são reveladoras desse sen- nistração pública federal e de doações
tido. As s e q ü ê n c i a s de outras imagens particulares.
permitem ao observador captar a articu- A política de acervo desenvolvida por
lação entre as diferentes cenas da vida e este Setor não se limita a p e n a s a definir
possibilita, ainda, a articulação a outros os tipos de documentos que devem cons-
textos, orais ou escritos, capazes de tituir o acervo documental iconográfico
desdobrar as conotações das fotografias. num Arquivo nacional, nem a s e u s as-
A interpretação da imagem fotográfica pectos físicos e financeiros. Mossa polí-
requer, t a m b é m , o c o n h e c i m e n to da tica d e acervo implica t a m b é m uma

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n' 1-2. p. 12 1 1 3 2 , jan/dez 1993 - pag. 127


A C E

política de preservação, de difusão e Abordaremos algumas questões relati-


socialização do conhecimento. Encara- vas aos dois maiores acervos, o da Agên-
mos como meta última de um arquivo cia nacional e o do Correio da Manhã. As
público o atendimento ao seu usuário fotografias desses acervos pertencem
que, ao procurá-lo, está exercendo o ao ramo do fotojornalismo. Apresentam,
seu direito de cidadania cultural. La- todavia,' enfoques diferentes sobre a
mentamos a atitude daqueles que, em mesma realidade. Isto se explica pelo
nome da preservação, praticam o estudo de suas provenièncias e demons-
ocultamento e a 'privatização' da coisa tra que a fotografia, apesar de sua apa-
pública. rente neutralidade e de todo o verismo
iconográfico, será sempre uma interpre-
Esse Setor custodia o acervo fotográfico
tação.
da Agência nacional (1939-1979), do
jornal Correio da Manhã (1901-1974), dos As fotografias da Agência nacional são
arquivos particulares doados ao Arquivo de divulgação do Estado. Cobrem o dia-
Nacional e uma Coleção de Fotografias a-dia dos presidentes da República, dos
Avulsas (1866-19-). E trabalha em cons- ministros de Estado, das autoridades
tante interação com o Laboratório de públicas, dos eventos sociais dos gover-
Micro filmagem e Fotografias, que realiza nos (inaugurações, comemorações de
o trabalho de apoio técnico, processan- datas históricas...), de artistas, de escri-
do negativos e atendendo às solicita- tores, enfim, de pessoas que durante
ções de reprodução requeridas pelos algum momento estabeleceram um vín-
usuários. culo com os governos federais. Essas
fotografias representam a ótica do Esta-
Os usuários desses acervos são em sua
do, são formais e têm a carga ideológica
maioria publicitários, arquitetos, produ-
de cada governo, nào se encontram nes-
tores de vídeos independentes, produ-
te acervo fotografias de manifestações
tores de arte, emissoras de televisão,
de ruas, greves ou de reinvindicações
escritores, proprietários de estabeleci-
contrárias aos governos. Em geral, pre-
mentos comerciais e entidades que re-
tendem mostrar descontraçào e espon-
cuperam a memória nacional. Poucos
taneidade como presidentes tomando
são os historiadores especialistas em
cafezinho na intimidade com suas
estudos e análise de fotografia. Em sua famílias e amigos; ministros sorrindo
maioria, estão à procura de fotos que quando inauguram obras ou em festas.
ilustrem seus trabalhos. São poucos os Mas mesmo essas, consideradas 'espon-
que trabalham com a fotografia enquan- tâneas', foram feitas visando um recep-
to fonte. tor em especial, que era a sociedade
Do ponto de vista temático esses acer- brasileira. O p r e s i d e n t e t o m a n d o
cafezinho à vontade em sua sala e o
vos sáo riquíssimos e possuem seriações
ministro sorrindo poderiam ter a
que permitem estudos de várias nature-
finalidade de esconder crises políticas
zas.

pag. 128, jan/dez 1993


R V O

ou veicular a imagem de t r a n q ü i l i d a d e , p ú b l i c o de nível intelectua l mais ou


de h a r m o n i a . . . menos elevado - è fundamental para a
análise das fotografias. Má ainda que se
As fotografias do Correio da Manhã são
de imprensa privada . Cobrem o dia-a-dia lembrar o papel das legendas j u n t o às

da sociedade brasileira, em especial a fotos de imprensa, pois muitas vezes

do Rio de J a n e i r o , onde estava a sede do uma imagem pode ser verdadeira em

j o r n a l . Seus assuntos são os mais varia- seu conteúdo iconográfico, mas depen-

dos, c o m o carnaval, f u t e b o l , música, dendo da legenda que a orienta pode

teatro, c i n e m a , repressão policial de rua, tornar-se falsa numa perspectiva global.

censura, queda de presidentes, eleições, Outro critério a ser levado em conta é


c r i m e s , calamidades...Sã o fotografias aquele que se refere à estrutura do j o r -
onde o i m p a c t o é o elemento p r i n c i p a l . nal como empresa, o u seja, n u m j o r n a l
uma reportagem fotográfica nunca é obra
Segundo Ivan Lima, a fotografia de jor-
apenas de uma pessoa. É o resultado de
nal é "ação, flagrante e informação". 6 A
uma série de intervenções que começa
maior preocupação é comunicar infor-
pelo fotógrafo, passa pelo laboratorista,
mações e transmiti-las. Mão há uma pre-
pelos paginadores e, por f i m , pelos edi-
ocupação u n i f o r m e c o m a estética. A
tores que decidem , em última instância,
estética se manifesta nas fotografias que
o que irá ser p u b l i c a d o . A fotografia de
ilustram os fatos que j á f o r a m sabidos e
imprensa deve ser vista e analisada com
vistos por o u t r o s meios de comunicação
cuidado: todas as fotografias publicadas
(rádio e televisão). É o caso das fotogra-
visam a publicidade e a propaganda,
fias de esportes. Uma imagem sobre
ainda que esta não apareça claramente.
f u t e b o l , que t o d o s j á v i r a m , tem que sair
Uma sugestão para desenvolvimento de
no j o r n a l , no dia seguinte, c o m a beleza
trabalhos de análise, seria fazer um es-
estética da cena. Isto demonstra que
tudo comparativo de interpretação en-
análise das fotografias de j o r n a l não
tre fotografias que foram publicadas e
pode partir de suposições generalizadas
aquelas que não f o r a m . Outra sugestão
que m e n o s p r e z e m o t o d o em função da
seria buscar o sentido das fotografias
parte. Todas as fotografias são feitas e
utilizadas nas diferentes áreas temáticas
distribuídas de acordo c o m o o b j e t i vo
do j o r n a l e compará-las. Confrontar, por
que se quer alcançar. Cada assunto re-
e x e m p l o , as chamadas 'fotografias so-
quer um t i p o de fotografia. As fotografi-
c i a i s ' c o m as ' f o t o g r a f i a s c u l t u r a i s ' . . .
as sobre assuntos culturais, por exem-
Enfim, o vasto potencia l deste acervo
plo, são e m i n e n t e m e n t e ilustrativas. São
permite pesquisas de enfoques m u i t o
as imagens do que ainda irá acontecer;
do f i l m e , da exposição...As fotografias variados, como análises temáticas so-

do Correio da Manhã devem ser analisa- bre o cinema, o esporte, a República, as

das sem perder de vista o receptor, o u eleições ou até a vida p ú b l i c a de deter-

seja, o p ú b l i c o leitor. Refletir para qual minadas autoridades, vistas sob a ótica

p ú b l i c o este ou aquele j o r n a l se dirige - da imprensa.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2. p. 121-132. j a n / d e z 1993 - pag. 129


A C E

A Coleção de Fotografias Avulsas é bas- ção é formada por fotografias de prove-


tante diversa dos dois acervos j á descri- niência desconhecid a e que não possu-
tos. Não é constituída por fotografias em relação orgânica, doadas por m e m -
c o n t e m p o r â n e a s e não se enquadra na bros da classes d o m i n a n t e s É constituí-
categoria de f o t o j o r n a l i s m o . Esta Cole- da por retratos de crianças, militares,

Garrincha. Rio de Janeiro, maio de 1965. Correio da Manhã.

pag. 1 3 0 , j a n / d ez 1993
escravos, famílias, vistas de cidades, sempre trajando um figurino similar ao
praças, m o n u m e n t o s , igrejas, ruas, es- do mundo adulto, não aparece imbuída
colas, eventos sociais etc. Esta Coleção de trejeitos infantis característicos do
serve para complementar estudo s sobre comportamento contemporâneo e nem
a História da Fotografia, pois reúne ima- j u n t o aos seus objetos de distração,
gens do século XIX em papel albumina- como os brinquedos. As fotografias de
do, fotopinturas estereoscópicas e foto- família d e m o n s t r a m uma disposiçã o
grafias de diversos formatos (carte-de- espacial reveladora da hierarquia dos
visite, cabinet e t c ) , que trazem os no- seus elementos, das relações de afeto e
mes dos fotógrafos e os endereço s de dos costumes vigentes. Mas, como fotos
s e u s ateliês. Servem também para traba- do século XIX, são p o s a d a s e requerem
lhos de arquitetura, pois são fotografias uma análise rigorosa de suas condições
que reconstituem época. Fornece, ain- de produção para que se evite conclu-
da, subsídios para a história social da s õ e s tiradas a partir de sua simples leitu-
criança e da família. A criança aparece ra.

Foto de Pedro Gonsalves da Silva. Salvador, ca. 1880. Coleção de Fotografias Avulsas.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2, p. 121-132, jan/dez 1 9 9 3 - pag. 131


O potencial de investigação histórica gráficos do Arquivo Nacional a t e n d e m
desta Coleção é muito g r a n d e . Mo entan- a o s mais diversos objetivos, que pode m
to, c o m o coleção, tem que ser utilizada abranger d e s d e i n t e r e s s e s relativos a
de forma c o m p l e m e n t a r em qualquer p e s s o a s até a reconstituição da memó-
p e s q u i s a , pois não possui seriação , isto ria político-administrativa e cultural do
é, fotografias em q u a n t i d a d e s o b r e um país, constituindo-se em fontes precio-
m e s m o tema . s a s para pesquisa e interpretação histó-
P o d e m o s concluir q u e os acervos foto- rica.

H O

1. FEBRE apud LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa:


Imprensa nacional. Casa da Moeda, 1984. v.l Memória-história, p. 9 8 .
2. LE GOFF, Jacques. Memória, op. cit., p. 3 9 .
3. LIMA, Ivan apud LISSOVSKY, Maurício. A fotografia como documento histórico. In: Ciclo de Palestras
sobre Fotografia 1, 1982. Rio de Janeiro;Sobre Fotografia. Rio de Janeiro:Sindicato dos Jornalis-
tas, Funarte, 1983. p. 121.
4. KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ática, 1989.p.73 e 77
5. LEITE, Míriam Lifchitz Moreira. A imagem através das palavras. São Paulo:Ciência e Cultura, v. 3 8 ,
n. 9, p. 1491, set.1986.
6. LIMA, Ivan. Fotojornalismo brasileiro: realidade e linguagem.Rio de Janeiro: Fotografia Brasileira,
1989, p . 6 5 .

B R A
This article makes some considerations about photography as a historical source, relating it to a
new conception of an archival document and to what may be the object of the historian work. It
emphasizes the a b s e n se of a methodology for photography analysis and proposes an interpretation.
Finally, it indicates the potential of historical investigation of the National Archives photographies.

R U M E
Cet article présent des considerations sur Ia photographie comme source historique, Ia rapportant
à une nouvelle conception de document d' archive et de ce soit I' objet de travaill de I' historien.
II remarque, aussi, 1' absenc e d' une metolologie d' analyse photographique et propose une
interpretation. Finaiement, il indique le potentiel des collections photographiques des Archives
Nationales du Brésil pour 1' investigation historique.
Joaquim Marcai Ferreira de Andrade
Desenhista Industrial, coordenador do PROFOTO/Fundaçáo Biblioteca nacional
e professor adjunto de Fotografia do Departamento de Artes da PUC-Rio de Janeiro

N ovas Jr omí
mices p a i r a o
.hL/stuidlo cio e c m lo XIX
O acervo fotográfico cia Joilblioteca N a c i o n a l e o
projeío íle preservação e conservação P l R O J r O T O

A
o s dois de de- conforme afirma o historiador
zembro de J o s é Honório Rodrigues.
1881, quando
Examinando o catálogo, q u e
o imperador dom Pedro II
até hoje s e constitui em
comemorava 5 6 anos, fc
preciosíssima fonte de pes-
inaugurada na Biblioteca naci-
quisa, p o d e m o s observar que,
onal a grande Exposição de História do
além das fotografias j á então pertencen-
Brasil, organizada pelo bibliotecário
tes à Biblioteca nacional - algumas doa-
Ramiz Qalvão com o auxílio de inúmeros
d a s naquela ocasião -, vários cidadãos,
colaboradores. A exposição constituiu-
além do próprio imperador, contribuí-
se num fato marcante não a p e n a s pelo
ram através do empréstimo de docu-
evento em si. Seu principal produto, o
mentos fotográficos. Embora em núme-
Catálogo da Exposição de História do
ro muito inferior, se comparados às obras
Brasil,
dos 'artistas' participantes que se utili-
'é uma publicação de extraordinária zavam de outros processos, ali estavam
importância na historiografia brasilei- expostos o s trabalhos de Carneiro &
ra, não somente por ser única em sua Qaspar, Christiano Júnior, Ferrez,
época, em termos universais, como Fidanza, Qaensly, Henschel Se Benque,
porque nada melhor se construiu no niemeyer, Pacheco, Riedel e Terragno,
Brasil depois dele (...)"' entre outros. A participação da fotogra-

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2. p. 1 3 3 1 4 4 . jan/dez 1993 - pag. 133


A C E

fia nesse expressivo evento, assim como no Brasil, e acredito que essa visão
o início da formação do acervo fotográ- seja bastante equivocada. Penso que,
fico hoje existente na Biblioteca nacio- outra vez, é uma tentativa paternalistica
nal, ainda estão por merecer reflexão e oficial a uma forma de expressão, que
e s t u d o s mais aprofundados. a grande importância dos fotógrafos
A maior doação de fotografias j á recebi- estrangeiros é que eles estiveram não
da pela Instituição foi feita pelo impera- só no Brasil, mas em toda a América
dor dom Pedro II - como parte integrante Latina, independentemente de dom
da Coleção Tereza Cristina Maria - a p ó s Pedro ir. 2
o seu banimento do país em decorrência
da proclamação da República. Graças a
esse fato, consumado em 1892, a Bibli-
oteca Nacional passou a deter a coleção
N o entanto, parece haver uma
unanimidade quanto ao fato
de que a formação da sua co-
leção representou uma inigualável con-
mais significativa e a b r a n g e n t e d o s tribuição à fotografia brasileira. E ape-
primórdios da fotografia brasileira e es- sar do acervo da Biblioteca nacional ter
trangeira existente numa instituição pú- sido posteriormente enriquecido atra-
blica de nosso país. Parcelas m e n o r e s vés de compras e de outras doações,
da coleção do imperador foram destina- mantém-se até a p r e s e n t e data o perfil
d a s a outras instituições, ou permane- de acervo histórico, cujo período de
cem até hoje em poder dos descenden- abrangência, em sua maior parte, se
tes. estende até a virada do século XIX - e as
fotografias da Coleção Tereza Cristina
O recente plebiscito ocorrido em nosso
Maria despontam com absoluto desta-
país provocou um inédito d e b a t e sobre
que.
o fato do imperador ter sido ou não um
verdadeiro m e c e n a s da fotografia duran- As principais razões para a inexistência
te o Segundo Reinado. Boris Kossoy afir- de um acervo fotográfico consistente e
ma, em recente entrevista: representativo, referente ao século XX,
e s t ã o na a u s ê n c i a d e uma política
"os fotógrafos não foram estimulados institucional nesse sentido e no texto da
por dom Pedro II. Acredito que a ques- lei que trata do depósito legal em nosso
tão que se coloca é a seguinte: d. Pedro país, promulgada em 1907 e até hoje
teve interesse pessoal pela fotografia contemplando s o m e n t e os livros e pu-
enquanto forma de expressão, enquan- blicações periódicas impressas . Entre
to recente descoberta e aplicação téc- a s bibliotecas nacionais, a francesa nos
nica dos conhecimentos científicos an- parece a que melhor se aproveitou da
teriores. Ele era muito voltado às artes, condição de depositária legal para for-
e à filosofia, e sob esse aspecto não mar uma invejável coleção de fotografi-
podia deixar de ter interesse pela foto- a s , iniciada com a remessa e s p o n t â n e a
grafia, não vinculo esse interesse pes- do fotógrafo Blanquart-Evrard em 1 8 5 1 ,
soal ao desenvolvimento da fotografia atitude depois seguida por inúmeros

pag. 134, jan/dez 1993


R V o

outros. Curiosamente, só a partir de 1943 Sônia Rabeilo de Castro sobre os aspec-


7
a lei francesa e x p l i c i t o u o caso da foto- t o s j u r í d i c o s do t o m b a m e n t o e o traba-
grafia. Mas, p a r a d o x a l m e n t e , aponta o lho desenvolvido na década de 1980
curador Bernard Marbot, coleções repre- pelo Programa Nacional de Preservação
sentativas de alguns grandes nomes da- e Pesquisa da Fotografia da Funarte -
quele país no século XIX, c o m o Charles abordado num outro trabalho constante
Nègre, Felix Nadar, üustav e Le Gray e deste mesmo número da revista Acervo.
Eugène Atget, só foram incorporadas ao
O crescente interesse pelo uso de docu-
acervo da ' B i b l i o t h è q u e Nationale' atra-
mentos fotográficos como fonte de pes-
vés de aquisição e j á no século XX. 3
quisa em todo m u n d o , a partir da déca-
à parte o p r o b l e m a do depósito legal, da de 1960 e mais ainda da de 1980,
nosso país ainda carece do estabeleci- t o r n o u evidente uma forte limitação, um

mento de uma política nacional - envol- obstáculo, para aqueles que recorrem à

vendo b i b l i o t e c a s , arquivos e museus Biblioteca Nacional o u qualquer outra

de todas as esferas - no sentido de ga- instituição do gênero, na busca de fontes

rantir a p e r m a n ê n c ia de nosso patrimô- iconográficas para suas pesquisas. Tal-

nio fotográfic o no país, em instituições vez o primeiro a enfrentar esse proble-


ma, decorrente da falta de interesse por
franqueadas ao p ú b l i c o , além de provê-
aqueles acervos, tenha sido o historia-
lo das c o n d i ç õ e s m í n i m a s de acesso. Ma
dor e colecionador Gilberto Ferrez, estu-
apresentação de uma exposição de da-
dioso pioneiro da fotografia brasileira 8 .
g u e r r e ó t i p o s a r g e n t i n o s , ocorrid a em
Por um lado, os catálogos disponíveis
Buenos Aires, em 1988, o pesquisador
não atendem satisfatoriamente às ne-
Abel José Alexander advertia:
cessidades atuais, t o r n a n d o a pesquisa
"en Ia actualidad Ia antigua fotografia
lenta e acarretando o excessivo manu-
está en vias de extinción, Ia población
seio de originais - e este assunto mere-
carece de conceptos conservacionistas
ceria um trabalho específico, realizado
y destruye permanentemente sua
pelos colegas da área de t r a t a m e n t o téc-
archivos familiares y de época.
nico da Biblioteca Nacional, que vêm
Debemos sumar a estas perdidas
realizando um trabalho de extrema com-
irreparables, Ia acción de coleccionistas
petência no sentido de solucionar esse
y aún entidades extranjeras que, ano a
p r o b l e m a . Por outro lado, existem ainda
ano nos despojan de esta primitiva
milhares de imagens sem nenhum trata-
fotografia, que en su conjunto repre-
mento técnico, impossibilitando sua
senta nuestra historia gráfica' *.
consulta.
Para m e l h o r embasar esta discussão,
torna-se indispensáve l t o m a r como pon- Vale ressaltar que essa realidade não é

to de partida o trabalho de Rodrigo Melo peculiar do Terceiro Mundo. Uma visita,

Franco de Andrade 5
, as reflexões de hoje, aos grandes acervos de fotografia
6
Aloísio Magalhães , o recente estudo de do século XIX, no Primeiro Mundo - com

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n» 1-2, p. 133-144. j a n / d e í 1993 - pag. 135


A C E

o i n t u i t o de observar as condições de fotografia paisagística de Francis Frith,


acesso às i n f o r m a ç õ e s ali oferecidas - B o n f i l s e Muybridge, e n t r e inúmeros
seguramente traria enormes surpresas o u t r o s , há muito para se apreciar, estu-
aos menos i n f o r m a d o s . dar e comparar c o m a produçã o brasilei-
ra. Se considerado o extenso período da
Assim, arriscaríamos dizer que há muito
pré-fotografia, poderíamos recuar até a
ainda para se conhecer sobre o nosso
Magiae Naturalis de Qiovanni Battista
passado, na medid a em que mais ima-
delia Porta, encontrada na Seção de Li-
gens f o r e m identificada s e catalogadas,
vros Raros, para ler o o r i g i n a l , em l a t i m ,
representando novas fontes de pesqui-
da descrição de uma cãmera obscura .
sa. Embora m u i t o s não s a i b a m , o acervo
da Biblioteca n a c i o n a l é t a m b é m forte- Com relação à fotografia brasileira, len-
mente representativo do que de m e l h o r tamente vão surgindo preciosas imagens
se p r o d u z i u em t e r m o s de fotografia que c o n t r i b u i r ão para um m e l h o r estudo
d o c u m e n t a l na América do Morte, Euro- da tecnologia empregada pelos nossos
pa, Oriente Médio e Extremo Oriente. fotógrafos - uma das áreas em que so-

Mo texto de apresentação de uma expo- mos a b s o l u t a m e n te carentes de estu-

sição concebida por Jorge LuísGutiérrez, dos. Às vezes, são cãmeras e o u t r o s

em março de 1993 , com fotografias da aparatos que p o d e m ser vistos; em o u -


tras constata-se o emprego de diferen-
Biblioteca Nacional da Venezuela, ele
tes papéis fotográficos na confecção das
afirma que
cópias.
"Ia fotografia dei Siglo XIX no escapo a
influencias y estilos emanados de los À medida em que o trabalho avança,
grandes centros de poder e influencia formam-se c o n j u n t o s o u enriquecem-se
cultural, aun así Io fundamental en tor- o u t r o s a n t e r i o r m e n t e catalogados: no-
no a Ia fotografia latinoamericana dei vas imagens da colonização do Espírito
Siglo XIX es Ia ruptura de enfoques Santo, mais algumas da série de Frisch
simplistas de inventario fotográfico y Ia sobre a Amazônia, aspectos das celebra-
comprensión de Ia presencia de un ções da vitória na Guerra do Paraguai
fenômeno de producción fotográfica con fotografadas por Ferrez no Rio de Janei-
caracter propio, con fuerza suficiente ro e por Fidanza no Pará, imagens de
como para caracterizar su valor más escravos , de vendedores a m b u l a n t e s,
allá de los mecanismos de producción dos parques e j a r d i n s do Rio de J a n e i r o ,
fotográfica propios dei Siglo XIX'.9 extenso material sobre a construçã o das
estradas de ferro pelo país. Má m u i t o
Um estudo c o m p a r a t i vo nessa l i n h a, por
ainda por revelar, e c i t a m o s aqui apenas
e x e m p l o , p o d e r ia ser inteirament e de-
algumas imagens que nos v ê m à m e m ó -
senvolvido a partir das imagens disponí-
ria no m o m e n t o .
veis no a c e r v o . Desde o Manual de
Daguerreotipia de Lerebours e das Ex- Voltando ao acervo estrangeiro da Bibli-
cursões Daguerreanas, passando pela oteca Nacional, impressiona a riqueza

pag. 136. jan/dez 1993


R V O

dos conjuntos sobre arte e arquitetura particular do imperador dom Pedro II.
européias, a documentação arquitetôni- O Projeto de Preservação e Conservação
ca e urbanística d a s cidades mais im- do Acervo Fotográfico da Biblioteca na-
portantes, os trabalhos de engenharia cional - PROFOTO nasceu de uma idéia
(recentemente, por exemplo, foi identi- no inicio dos a n o s 1980. Foi concebido
ficado um belíssimo conjunto de origi- e debatido ao longo de muitos anos, por
nais relativos à construção do Canal do uma equipe interdisciplinar e interinsti-
Panamá) e uma série de outros t e m a s tucional, e se insere no trabalho de
que abordam grandes q u e s t õ e s do mo- conscientização e disseminação de in-
mento: fotografias de sistemas peniten- formações desenvolvido pelo Programa
ciários, de e s p é c i e s botânicas, equipa- Macional de Preservação e Pesquisa da
mentos agrícolas, grupos militares etc. É Fotografia da Funarte, naquela década.
importante lembrar que a maior parte O seu objetivo principal é o tratamento
desse material é oriunda da coleção integral de todo esse acervo, que se

DIETZE, Albert Richard. Colônias de imigrantes europeus,


Espirito Santo, entre 1869 e 1878: estúdio de fotógrafo.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2. p. 133-144. jan/dez 1 9 9 3 - pag. 137


A C E

concentra majoritariamente na Divisão projeto de longo prazo numa instituição


de Iconografia, mas está também pre- pública da área cultural , nos dias
sente na Divisão de Manuscritos e na atuais.Suas atividades abrangem as áre-
Divisão de Música e Arquivo Sonoro. as de tratamento técnico, automação,
conservação, reprodução fotográfica,
Ao iniciar-se a sua realização em 1989,
desenho de produto, química e planeja-
graças ao apoio financeiro da Fundação
mento e conservação arquitetônica. A
Banco do Brasil, as atividades foram
maioria dessas áreas se subdivide em
direcionadas às imagens não identifica-
outras, envolvendo boa parte da insti-
das, e portanto desconhecidas pelas
tuição.
nossas gerações - em sua maior parte,
pertencentes à Coleção Tereza Cristina A área de tratamento técnico engloba as
Maria. O trabalho tem sofrido todos os atividades de identificação, catalogação
percalços a que está sujeito qualquer e indexação. A identificação é feita por

STAHL & Ca. Estrada de Ferro do Recife ao São Francisco.


Pernambuco, entre 1858 e 1860: trecho entre Recife e Cabo.

pag. 138, jan/dez 1993


V O

uma equipe de b i b l i o t e c á r i o s e historia- t u i n d o de forma minuciosa esses frag-


dores, q u e , apesar de dispore m de um mentos visuais do nosso passado. Ê
invejável c o n j u n t o de fontes para suas metade do caminho j á p e r c o r r i d o , para
pesquisas na p r ó p r i a instituição, não quem pretende fazer dessas imagens
hesitam em buscar o u t r o s acervos, caso algum uso.
necessário. Identificar aquelas imagens
A catalogação segue as normas prescri-
é desvendar nosso passado, o que se
tas pelo Manual para Catalogação de
constitui n u m a das atividades mais emo-
Documentos Fotográficos, elaborado por
cionantes do p r o j e t o .
uma comissão de redação integrada por
Diz o historiador Boris Kossoy. técnicos da Funarte/IBAC, Fundação Bi-
"o valor e alcance dos documentos, blioteca Nacional, Museu Histórico naci-
bem c o m o sua viável interpretação, onal. Museu Imperial e CPDOC/Fundação

está na razão direta de quem consegue Qetúlio Vargas." Até o presente m o m e n -

- e m função de sua bagagem cultural , t o , utiliza-se o terceiro nível, que i n c l u i

sensibilidade, experiência humana e todos os elementos de descrição que

profissional - formular-lhes perguntas


constam do manual. Afora o fato de

adequadas e inteligentes. Jamais se


considerá-lo o nível ideal para essa cole-
ção, podemos ainda testar integralmen-
poderão decodificar tais informações -
te a aplicabilidade das regras,além de
que permitem enfoques multidiscipli-
formar experts no assunto. A descrição
nares - se não houver um mergulho
inclui também as características físicas
naquele m o m e n t o histórico, fragmen-
e o gênero das imagens - e um vocabulá-
tariamente congelado no conteúdo da
rio controlado específico para este fim
imagem e globalment e circunscrito ao
vem sendo estabelecido, uma vez que
ato da tomad a do registro. A fotografia
não encontramos nenhum trabalho
enquanto cerne de estudos de sua pró-
satisfatório em língua portuguesa. '2
pria história e enquanto instrumento de
apoio às mais diferentes pesquisas É t a m b é m digno de menção o cadastro
nunca escapará desta condição. Em de autoridades que vem sendo desen-
função dist o ela não sobreviverá sem v o l v i d o , graças a um elaborado trabalho
os dados que a i d e n t i f i c a m , sem a devi- de pesquisa e ao rígido controle dos
da interpretação que a situa e valori- nomes de pessoas, entidades e localiza-
1
za . '° ções geográficas. 1 3

É nesse s e n t i d o que t e m o s t r a b a l h a d o . A indexação se baseia n u m tesauro


E à medid a que a prática nos leva ao específico para assuntos de documen-
a m a d u r e c i m e n t o da metodologia de pes- tos fotográficos, que vem sendo paulati-
quisa adotada, visando à identificação namente estabelecido. Inspirado e par-
das imagens, nos damos conta de que cialmente traduzido de um tesauro se-
estamos, na verdade - embora possa melhante da Library of Congress '*, esse
parecer pretensios o afirmá-lo - reconsti- vocabulário guarda inteira COmpatibili-

Acervo, Rio de Jan iro. v. 6. n ' 1-2, p. 133144. jan/dez 1993 - pag. 139
* c E

dade com os cabeçalhos de assunto, d a s atividades encontra-se em fase de


usados para a classificação de monogra- e s t u d o s no present e m o m e n t o .
fias na Biblioteca nacional.
A área de conservação do PROFOTO está
A a u t o m a ç ã o do tratamento técnico é p r o c e d e n d o ao diagnóstico e à higieni-
irreversível, constituindo-se na única zaçâo das fotografias. Em alguns casos,
saída eficaz para uso dos acervos sem- seguem-se outras intervenções de con-
pre c r e s c e n t es que s e acumulam nas servação, chegando até a confecção do
grandes instituições. É impressionante acondicionamento individual e o arma-
a capacidade de recuperação de infor- zenamento em mobiliário a d e q u a d o . O
m a ç õ e s d e s s e s sistemas , capazes de objetivo maior é a estabilização do acer-
fornecer d a d o s precisos e específicos vo.
sobre qualquer aspect o de uma fotogra-
As atividades das áreas de d e s e n h o de
fia, a partir d e quantidade s massivas de
produto e de química estão estritamen-
d o c u m e n t o s . A área de automação do
te ligadas à conservação. A primeira tem
projeto cuida do desenvolvimento dos
como principal atribuição o desenvolvi-
aplicativos para catalogação e indexação
mento do sistema para acondicionamen-
automatizadas, a partir do software Micro
to de d o c u m e n t o s fotográficos (caixas,
CDS-Isis, buscando sempre a compatibi-
pastas, envelopes, fo/ders, j a q u e t a s, etc).
lidade de formato d o s registros catalo-
A segunda tem papel p r e p o n d e r a n t e na
gráficos com o formato CALCO (Catalo-
escolha dos materiais a c e s s ó r i o s - pa-
gação Legível por Computador) - versão
péis, cartões, polímeros e adesivos -
brasileira do formato MARC, adotado pela
q u e s ã o utilizados na confecção do sis-
maioria das g r a n d es bibliotecas e cen-
tema. Os trabalhos de pesquis a ness e
tros de informação em todo o m u n d o . I5
sentido, que foram iniciados pela análi-
Isso permitirá a transferência da base de
s e de papéis e cartões, têm a participa-
d a d o s do acervo fotográfico para um
ção do Instituto nacional de Tecnologia
e q u i p a m e n t o de maior porte da Biblio-
e do Centro de Conservação e Preserva-
teca, que será futuramente conectado a
ção Fotográfica do IBAC.
redes internacionais, possibilitanto con-
sultas a outras b a s e s e o intercâmbio de A área de reprodução fotográfica visa à
informações. constituição de um arquivo de negativos
de segund a g e r a ç ã o d a s fotografias,
O projeto t a m b é m prevê a conexão des- cujos negativos originais não mais exis-
sa base de d a d o s a um banco de ima-
tem. Esses negativos servirão c o m o
gens. Nesse caso, as imagens originais
matriz para todas as cópias futuras, que
seriam digitalizadas e a r m a z e n a d a s em
atenderão às n e c e s s i d a d e s dos pesqui-
meio magnético, diminuindo a necessi-
sadores, evitando-se assim que os origi-
dade de manuseio dos originais e possi-
nais tenham que ser reproduzidos a cada
bilitando, futuramente, a confecção de
novo pedido.
mais um produto do acervo - em CD-
ROM, por exemplo. Este d e s d o b r a m e n t o n o entanto, para que ess e novo arquivo

pag. 1 4 0 . j a n / d e z J 9 9 3
R V O

ATEUER Phot. de G. Leuzinger. Negro, Rio de Janeiro, entre 1860 e 1870 : retrato.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. „• 1 4 , p. 133-144. jan/dez 1993 - pa 8 . 141


A C E

seja eficientemente utilizado, torna-se nacional, é necessário que cada de um


necessária a implantação de uma políti- de n ó s contribua para q u e isso aconteça
ca de reprodução realista e eficiente. - e são inúmeras as possíveis formas de
Este é um dos a s s u n t o s que mais aflige contribuição.
os dirigentes de instituições públicas
Há muito ainda por fazer, e nào só em
d e t e n t o r a s de acervos fotográficos, e
nosso país. Já tivemos a oportunidade
que ainda está por merece maior aten-
de mencionar alguns fatos relacionados
ção. Toda biblioteca ou arquivo público
á América Latina. Vejamos agora o caso
deve garantir livre a c e s s o à s fotografias;
da Península Ibérica - a p e n a s para citar
no entanto, ao solicitar a reprodução de
uma outra região cuja cultura tem forte
uma imagem, é natural (ou deveria ser)
identidade com a nossa, na introdução
que o pesquisador pague uma taxa pelo
da sua t e s e de m e s t r a do s o b r e os fotó-
serviço - diferenciada no caso do uso
grafos de Lisboa de 1886 a 1914, apre-
p r e t e n d i d o envolver r e m u n e r a ç ã o ao
s e n t a d a à School of Photografic Arts and
solicitante. Os r e c u r s o s a r r e c a d a d o s
Sciences/Rochester Institute of Techno-
deveriam ser naturalmente revertidos
logy em 1989, o fotógrafo e pesquisador
para a s atividades de preservação do
Luis Pavão diz:
acervo.
Gostaria de dizer algo sobr e as limita-
É este, em linhas gerais, o perfil do ções deste trabalho. A História da foto-
trabalho que e s t a m o s realizando. Acre- grafia em Portugal é um vasto campo
ditamos que, desta maneira, e s t a m o s que ainda não foi extensamente estu-
contribuindo para o desenvolvimento dado-. 16
d a s Ciências da Informação e da Conser-
lia Revista de Historia de Ia Fotografia
vação, no que tange ao tratamento dos
Espanola (Sevilha), de abril de 1992, o
d o c u m e n t o s fotográficos - e isso é parte
editorial faz uma queixa v e e m e n t e quan-
do que se e s p e r a de uma biblioteca
to às dificuldades de penetração do as-
nacional. A partir de 1994, estaremo s
sunto em certos meios acadêmicos. 1 7
em condições de repassar a outras insti- Mas, paradoxalmente, o guia-inventário
tuições interessada s todo esse conheci- d o s fundos fotográficos, lançado em
mento acumulado, além das ferramen- 1989 pela Biblioteca nacional de Madrid,
tas desenvolvidas para viabilizar sua re- constitui-se num dos trabalhos mais pri-
alização, rio entanto, para concluirmos morosos do gênero que j á tivemos a
o tratamento de todo o acervo - estimado oportunidade de examinar IB - e é algo
em 40.000 imagens - é imprescindível assim q u e e s p e r a m o s realizar em nossa
continuarmos r e c e b e n d o , por mais dois Biblioteca nacional, q u a n d o concluir-
anos, o valioso apoio da Fundação Ban- mos a realização do presente projeto; um
co do Brasil, sem o qual nada do que foi guia que estabeleç a a s diversas possibi-
aqui descrito teria s e realizado. Além do lidades de pesquisa no acervo da insti-
incontestável apoio e incentivo que te- tuição, relacionadas à fotografia.
m o s recebido da direção da Biblioteca O futuro das atividades de pesquisa com

pag. 142, jan/dez 1993


R V O

imagens em n o s s o país é promissor. O difícil, dando margem a essa situação.


c r e s c e n t e n ú m e r o de trabalhos acadê- Mas e s t a m o s d e t e r m i n a d os a fazer a
micos, em nível de pós-graduação, q u e nossa parte, no sentido de reverter este
se valem da fotografia brasileira - alguns quadro.
d e l e s j á l a n ç a d o s no m e r c a d o editorial -
Ao prover os p e s q u i s a d o r e s d a s condi-
a t e s t a m esta afirmação. É verdade que ções que favoreçam o pleno êxito de
ainda fazem carreira entre n ó s alguns s u a s pesquisa s no acervo da Biblioteca
t e ó r i c o s q u e preferem b e b e r na fonte de nacional, p r e t e n d e m o s t a m b é m contri-
livros estrangeiros , sobre fotografia es- buir para o aprofundamento da reflexão
trangeira - teorizando aqui, baseados e dos e s t u d o s s o b re a fotografia brasilei-
em fontes d e lá. n a d a t e m o s contra eles, ra no século XIX e possibilitar o uso
especialmente se considerarmos que d e s s a s imagens como fontes primárias
n o s s o s e d i t o r e s nào traduzem os origi- nos trabalhos de pesquisa sobr e qual-
nais, e o a c e s s o a muitos d o s n o s s o s quer assunto relacionado ao c o n t e ú d o
acervos de valor, em qualquer área, é do acervo.

n o T A S
1. BIBLIOTECA Nacional do Rio de Janeiro. Catálogo da Exposição de História do Brasil. Edição fac-
similar, com introdução de José Honório Rodrigues. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1981.
2. KOSSOY, BORIS. Entrevista concedida a Rubens Fernandes Júnior. Irisfoto, n. 4 6 3 , p. 41-47, maio
1993.
3. MARBOT, Bernard. La photographie anciènne Art Métiers duLivre. n. 171, p. 80-89, 1992. Mumeró
spécial - le Départament d e s Estampes et de Ia Photographie.
4. DAGUERREOTIFOS en Ia Plaza de Mayo. Exposición organizada por ei Banco de Ia Nación
Argentina en Ia que s e exhiben piezas dei Centro de Investigaciones sobre Fotografia Antigua
en Ia Argentina C.I.F.A.A - 'Dr. Júlio F. Riobó'. Apresentação de Abel José Alexander. Buenos
Aires, jul-ago. 1988.
5. ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPH^fV.coletãnea de textos sobre o patrimônio
cultural. Rio d e Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação nacional Pró-Memória, 1987.
6. MAGALHÃES, Aloisio. E triunfo?: a questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Mova
Fronteira: Fundação Nacional Pró-Memória, 1985.
7. CASTRO, Sônia Rabello de. O estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar.
1991.
8. Gilberto Ferrez começou a escrever sobre a fotografia brasileira ainda na década de 1940. Autor
de várias obras sobre o assunto, destacamos A fotografia no Brasil: 1840-1900 <2« ed. Rio de
Janeiro: Funarte: Fundação Nacional Pró- Memória, 1985), já traduzida e publicada nos EUA.
Uma reportagem publicada em O Estado de São Paulo úe 19/9/78, intitulada - "Livros intactos há
25 anos", narra o que s e segue: 'Há 25 anos o historiador Gilberto Ferrez fez longas consultas
na seção de fotografias (sic) da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. (...) Somente agora(...(Ferrez
voltou a manusear aqueles velhos volumes e, surpreso, descobriu que os pedaços de papel

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n' 1-2, p. 133-144, jan/dez 1 9 9 3 - pag. 143


amarelecidos que encontrou entre suas páginas eram aquelas mesmas tiras que ele colocou ali,
tanto tempo atrás.' Ferrez desabafa: 'Esse é o quadro da fotografia no Brasil(...)".
9. GUTIERREZ, Jorge Luis. 'El paisaje, Ia fascinación tecnológica y ei sueho de progreso". Encuadre.
número especial, II Jornadas Fotográficas de Mérida. p. 12-15, março 1993.
10. KOSSOY, Boris. Fotografia e história.São Paulo: Editora Ática, 1989.
1 1. MANUAL para catalogação de documentos fotográficos. Versão preliminar. Instituto Brasileiro
de Arte e Cultura. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional: Instituto Brasileiro d e Arte e
Cultura, 1992.
12. O vocabulário para características físicas se relaciona aos aspectos tecnológicos (nomes dos
processos e formatos dos documentos fotográficos); um outro vocabulário designa o gênero
das imagens (ex: fotografia abstrata, fotografia aérea, panorama, retrato etc.)
13. O único levantamento até hoje publicado sobre os fotógrafos atuantes no Brasil no século XIX
é de autoria de Boris Kossoy, parte integrante de obra fundamental para o estudo daquele
período, infelizmente esgotada há mais de uma década (Origens e expansão da fotografia no Brasil
- século XIX.) Rio de Janeiro: Funarte, 1980.
14. LC thesaurus for graphic materiais: topical terms for subject access. Compiled by Elizabeth Betz
Parker. Washington, DC: LC, Cataloging Distribution Service, 1987.
15. A Fundação Qetúlio Vargas é a proprietária da rede de catalogação cooperativa Bibliodata/
CALCO, que congrega as principais bibliotecas do país - dentre elas a Biblioteca Nacional,
principal colaboradora.
16. PAVÃO, Luis. The photographers of Lisbon, Portugal from 1886 to 1914. Rochester Film et Photo
Consortium Occasional Papers, n B 5 . Rochester: Department ofUniversity Educacional Services,
International Museum of Photography at George Eastman House, 1990.
" I would like to say something about the limitations of this publication. The history of
photography in Portugal is a large field which has not yet been extensively studied.' (Tradução
do autor)
17. REVISTA de Historia de Ia Fotografia Espanola. Editada por Ia Sociedad de Historia de Ia
Fotografia Espanola. Sevilha, n. 4, abril 1992.
18. 150 anos de fotografia en Ia Biblioteca Nacional. Quia- inventário de los fondos fotográficos de
Ia Biblioteca Nacional coordinada y dirigida por Qerardo F. Kurtz/lsabel Ortega. Madrid:
Ministério de Cultura: Ediciones El Viso, 1989.

A B S T R A C T
The Brazilian National Library holds the most significant and comprehensive nineteenth century
photographic collection of brazilian and foreign images. Partly inacessible up to this date, the
collection is being submitted to an extensive work which includes the automated technical
treatment, conservation and reproduction, from techniques developed by the project staff.

R É S U M É
La Bibliothèque Nationale du Brésil est dépositaire de Ia collection Ia plus significative et
comprehensive de Ia photographie brésiliènne du XIXemt siècle existente dans une institution
publique du pays. Partiellement inaccessible jusqu'a u présent, cette collection est aujourd'hui
soumise à un vaste travaille de traitement thecnique automatisé, conservartion et reprodution,
selon techniques dévelopées par I' equipe du projet.
Márcia Ribeiro d e Oliveira
Museologa. mestranda em Comunicação e Semiótica da PUC/SP
e coordenadora do Módulo de Fotografia do Instituto Cultural Itaú.

A M e m ©ir i a
ir o t o g r á o c a cie u a o JPaul©
em Pr ©cesso (de l m i © r n n a i t i z a ç a©

A OPÇÀO PELA urbano, que modificam seu


FOTOGRAFIA COMO aspecto e seu uso, afirma o
SUPORTE PARA O jornalista Moracy de Olivei-
RESGATE DA MEMÓRIA ra, levam a população a ter
DA CIDADE E O dificuldade em relacionar o
FOTÓGRAFO ENQUANTO presente ao passado, a perder a
FILTRO CULTURAL noção da sua história.

^^ screver sobre o s velhos prédios A fotografia é um dos registros que me-

e casarões, prestes a serem de- lhor possibilita a percepção, a leitura e


L^/ molidos, ou relatar as histórias a interpretação do ambiente urbano, pela
contadas pelos antigos moradores, era sua capacidade de aglutinação de várias
uma forma d e resguardar a cidade das outras linguagens: a da arquitetura, da
transformações mais bruscas e resgatar programação visual e do desenho indus-
os antigos usos e costume s urbanos. trial, ao mesmo tempo em que cria uma
Desenhos, a q u a r e l as e mapas foram, até nova linguagem diferente das demais.
o advento da fotografia, o s outros meios Através dela é possível comunicar ao
utilizados para mostrar a s p e c t o s da ci- usuário as características físicas, os usos
dade e registrá-los. e as transformações da cidade enquanto
As intervenções c o n s t a n t e s no espaço organismo vivo. Como diz J a c q u es Le

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 145-154. jan/dez 1993 • pag. 145


A C E

Qoff, como ' p a t r i m ô n i o cultural', c o m o a


'a fotografia (...) revoluciona a memó- Faculdade de Direito, a igreja de São
ria: multiplica-a e democratiza-a, dá- Francisco, a Escola de Comércio Álvares
lhe uma precisão e uma verdade visu- Penteado, ou então, eleger c e n a s do
ais nunca antes atingidas, permitindo cotidiano como assunt o que mais lhe
assim guardar a memória do tempo e interessa, ou as esculturas, o restauran-
da evolução cronológica".1
te em frente ao largo, o e s t a c i o n a m e n to
A leitura da imagem fotográfica é mais do Jóquei Clube ou, quem s a b e , o respi-
carregada de significados para aquele s radouro do metrô e a s floriculturas. É
que procuram c o n h e c e r o contexto his- possível,ainda, fotografar a partir de um
tórico particular em que tal registro se tema pré-determinado, como a relação
originou, Por outro lado, e s s a s imagens dos e s t u d a n t e s da Faculdade de Direito
pouco contribuirão para o progresso de com o Largo, e outros. D e p e n d e n do de
c o n h e c i m e n t o histórico, sociológico, seu interesse, formação profissional,
antropológico e/ou estético, se delas domínio técnico, sensibilidade e objeti-
náo se extrair o potencial informativo e/ vos, o fotógrafo p o d e a p r e s e n t a r sua
ou estético que as caracteriza, lembran- visão, eventualmente rica e complexa
d e s s e logradouro, permitindo novas e
do, portanto, que as fotografias não se
múltiplas leituras.
constituem em mera s ilustrações aos
textos.
Para Bóris Kossoy , A DIVULGAÇÃO DA
MEMÓRIA F O T O G R Á F I CA
"a eleição de um aspecto determinado,
DA CIDADE DE SÃO PAULO
isto é, selecionado do real, com seu

N
respectivo tratamento estético- a preo- a década de 1930, Benedito
cupação na organização visual dos de- J u n q u e i r a Duarte, a convite
talhes que compõem o assunto, bem de Mário de Andrade, promo-
como a exploração dos recursos ofere- veu a primeira organização do acervo da
cidos pela tecnologia: todos são fatores
que influirão decisivamente no resulta-
do final e configuram a atuação do
fotógrafo enquanto filtro cultural.'2
Isto é, seu talento e intelecto determina-
rão a qualidade do registro e este, por
sua vez, atestará a visão de mundo do
fotógrafo.
O fotógrafo, ao registrar um logradouro
- por exemplo, o largo de São Francisco,
em São Paulo -, p o d e optar a p e n a s pelo
enfoque das edificações reconhecida s

pag. 146, jan/dez 1993


R V O

Seção de Arquivo de negativos do De- fotografia do século XIX e XX, além de


partamento de Cultura, atualmente liga- publicações da Seção de Obras Raras; o
do ao Departamento do Patrimônio His- Museu de Arte de São Paulo, com a
tórico da Secretaria Municipal de Cultu- coleção completa da Revista OCruzeiroe
ra. Messa época, o arquivo possuía cerca outras publicações na área de fotogra-
de d u a s mil imagens, entre a s quais, fia. Além d e s s e s , é importante lembrar o
negativos de vidro originais da obra do Condephaat, o Arquivo Histórico da Cúria
fotógrafo Quilherme Qaensly, negativos Metropolitana, o Museu Paulista, o Ar-
de vidro reproduzidos das matrizes do quivo Multimeios do Centro Cultural São
fotógrafo Militào Augusto de Azevedo - Paulo, os arquivos das agências fotojor-
Álbum Comparativo da Cidade de São Pau- nalístícas da Folha de São Paulo, O Esta-
lo 1862-1887, e negativos de Aurélio do de São Paulo e a Editora Abril e,
Becherini, que no período de 1914 a atualmente, a importante produção das
1919 continuou o trabalho sistemático agências particulares como a Fotograma,
de registro fotográfico da cidade, inicia- M-Imagens e Pulsar, entre outras.
do por Militão e Qaensly. A este acervo Alguns colecionadores particulares de
somou-se a produção fotográfica reali- fotografia e de cartões postais como
zada por Benedito Duarte na década de mons. Jamil Massif Abib, Benedito Lima
1930, além d a s fotografias produzidas
de Toledo, Rubens Fernandes Júnior e
por outros fotógrafos do Departamento
Bóris Kossoy, também prestam um servi-
de Cultura. 3
ço de preservação e divulgação de ima-
O Departamento do Patrimônio Históri- gens fotográficas da cidade.
co da Secretaria Municipal de Cultura de A partir da década de 1970 a memória
São Paulo s e m p r e colocou à disposição
fotográfica de São Paulo passou a ser
dos consulente s seu acervo de imagens
divulgada principalmente através do re-
fotográficas, q u e continuou a ser produ-
cém-criado Museu da Imagem e do Som,
zido n a s d é c a d a s seguintes, embor a en-
da Secretaria de Estado da Cultura, que
frentando muitos problemas para sua
realizou a exposição Memória Paulista-
conservação. Além desse Departamen-
na (1975) e A cidade também é sua casa
to, outros órgãos poderiam ser mencio-
(1980) - concurso que visava estimular
nados como p r e s t a d o r e s de serviço no
os cidadãos paulistanos a fotografarem
sentido da preservação e divulgação da
a cidade. Já o Departamento do Patrimô-
memória fotográfica da cidade de São
nio Histórico da Secretaria Municipal de
Paulo: o Departamento do Patrimônio
Cultura, com a criação do Museu de Rua
Histórico da Eletropaulo, com álbuns de
(1977), por Júlio Abe Wakahara, passou
fotografia do século XIX até a década de
1940 e publicações posteriores; a Bibli- a ter seu acervo exposto nas principais

oteca Mário d e Andrade, da Secretaria ruas, praças e viadutos.


Municipal d e Cultura, com álbuns de na década de 1980 as exposições do

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n° 1-2. p. 145-154. jan/dez 1993 - pag. 1


A C E

Museu de Rua continuaram, e no âmbito tas fotografias da avenida Paulista, que


dos m u s e u s foram realizadas algumas na época completava seu centenário.
mostras relativas à memória fotográfica
da cidade; em 198 1, o Museu de Arte de UMA EXPERIÊNCIA!

São Paulo fez uma exposição sobre a SISTEMATIZANDO A MEMÓRIA

obra de Militão Augusto de Azevedo - FOTOGRÁFICA DA C I D A D E DE


Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo SÀO PAULO ATRAVÉS DA
1862-1887, com e s m e r a d a s reproduções INFORMÁTICA
realizadas por J o ã o Sócrates de Olivei-
egundo o biólogo-urbanista esco-
ra. Entre 1979 e 1982 a Pinacoteca do
cês Patrick Qeddes, autor de City
Estado, através de seu Gabinete Foto-
Evolution,
gráfico, sob a curadoria de Rubens
'contar a história dos povos através das
Fernandes Júnior, realizou duas mos-
guerras é uma banalidade: todos são
tras sobre a memória fotográfica bons, isso não é história. A verdadeira
paulistana. Por sua vez, o Departamento história de um povo se faz todos os
do Patrimônio Histórico da Eletropaulo dias, é a história modesta"*.
passou a promover, na mesma década ,
Qeddes critica os historiadores de sua
exposições no saguão do edifício Ale-
época por serem como jornalistas mo-
xandre Mackenzie. A primeira exposição
dernos, que s o m e n t e narram fatos ex-
que ocupou a Qaleria do Chá, em 1984,
cepcionais, na realidade, o que conta na
teve como tema os b o n d e s e como cená-
história de um povo e na história de
rio o desenvolvimento urbano da cida-
s u a s cidades, e n t e n d e Qeddes, são os
de. Em 1982 uma grande parte do acer-
fatos cotidianos, aquilo que a c o n t e ce
vo fotográfico da Eletropaulo foi exposto
discretamente, todos os dias, na vida
no Museu de Arte de São Paulo, sob a
cotidiana de cada um. Portanto, a histó-
curadoria de Qeorge Love.
ria é o ponto chave a partir do qual o
A partir da Lei Sarney, que incentivava cidadão pode aceitar ou criticar a s mu-
as atividades culturais, o empresariado danças urbanas. O urbanista, por seu
também começou a participar da divulga- lado, ao propor alterações, não deve
ção da fotografia e, em particular, da memó- perder de vista a história e o p a s s a d o da
ria fotográfica das cidades brasileiras. cidade.

Mo final de 1990 o Citicorp/Citibank O Banco de Dados Informatizado - Setor


realizou a exposição A Cidade de São Memória Fotográfica da Cidade de Sáo
Paulo, com fotografias, cartões postais, Paulo, criado peio Instituto Cultural Itaú,
óleos e aquarelas ; e em dezembro de p r e t e n d e ajudar os cidadão s a e n t e n d e r
1991 foi inaugurado o Banco de Dados a sua própria cidade, a história de cada
Informatizado - Setor Memória Fotográ- região, através da informática, procedi-
fica da Cidade de São Paulo, pelo Insti- mento pioneiro no país. O Banco de
tuto Cultural Itaú, com mais de quinhen- Dados pode ajudá-los na sua relação

pag. 148. jan/dez 1993


R V O

As duas imagens aparecem simultaneamente nas telas dos computadores: no alto. a foto do
logradouro; acima, a plotagem ( ponto de tomada da foto no primeiro período: 1860-19111.

Acervo, Rio de Ja neiro, v. 6, n° 1-2, p. 1 4 5 1 5 4 . j a n / d e z 1993 - pag. 149


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p r e s e n t e e futura com a cidade, a Além d a s fotografias, o ent e urbano -


compreendê-la melhor no que diz res- nome técnico aplicado a o s logradouros,
peito à escolha d o s b e n s culturais que por exemplo, avenida Paulista - conta
devem ser preservados e sobre o modo com Informes Históricos, ou seja, relatos
como deve s e r efetuada essa política de sobre os períodos em que foram dividi-
preservação. Facilita també m seu posi- dos a história da avenida, de acordo
cionamento diante de novos projetos com critérios das principais transforma-
urbanísticos, a questionar o passado e ções. O primeiro período começa em
relacioná-los. 1 8 9 1 , época da sua inauguração, e vai
Segundo o diretor s u p e r i n t e n d e n te do até 1937; o segundo período tem início
Instituto Cultural Itaú e idealizador do em 1938, com a inauguração do túnel da
Setor Memória Fotográfica da Cidade de avenida 9 de Julho e termina em 1 9 7 5 ,
São Paulo,Ernest Robert de Carvalho por ocasião das obras de seu alargamen-
Mange, to. Finalmente, em 1976 c o m e ç a o ter-
'o objetivo básico desse programa é ceiro período que s e encerra em 1 9 9 1,
comunicar o processo histórico-social ano da c o m e m o r a ç ã o do centenário da
da evolução da cidade, de 1860 ao Paulista.
presente, tendo a fotografia como por-
Além d os Informes Históricos, o Banco de
tadora de informações. Ela é o docu-
Dados Informatizado conta com uma
mento fundamental da memória desse
processo, definitivamente preservada Cronologia para cada período; Notas so-
e acessível a todos' 3 . bre edificações ou eventos importantes,

Com a sistematização da Memória Foto- como o Movimento pelas Diretas em

gráfica de São Paulo em banco de d a d o s 1984, a Corrida de São Silvestre, etc. e


informatizado é possível mostra r ao Plantas (cartografias históricas), mostran-
consulente o processo de evolução da do as plotagens, isto é, ponto aproxima-
cidade a partir de 1860 (ano d a s primei- do de tomada das fotografias, a altura
ras fotografias realizadas pelo fotógrafo aproximada e tipos d e lente utilizados -
Militão Augusto de Azevedo) até hoje, normal, grande angular e teleobjetiva.
através dos logradouros. São utilizados dois monitore s no pro-
O Banco de Dados foi inagurado em c e s s o . Um, à esquerda, a p r e s e n t a ao
d e z e m b r o de 1 9 9 1 , com mais d e qui- consulente os textos e plantas cartográ-
n h e n t a s fotografias digitalizadas da Ave- ficas, e n q u a n to o da direita mostra a s
nida Paulista, a b r a n g e n do o período de fotografias com s e u s devidos créditos e
1891 a 1 9 9 1 . As fotos foram seleciona- informações c o n s i d e r a d a s relevantes:
das a partir de um universo de cinco mil título, ano da foto, o logradouro
imagens, a p r o x i m a d a m e n t e, utilizando enfocado, acervo a que pertence e nome
critérios de caráter urbanístico, históri- do fotógrafo.
co, arquitetônico, técnico e estético. As fotografias selecionada s para inte-

pag. 150, jan/dez 1993


R V o

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No alto. a tela com a imagem do logradouro, acima, com o informe histórico.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6 . n* 1-2. p. 145-154. j a n / d e z 1993 - pag. 151


A C

grar o Banco de Dados são digitalizadas


através de scanner, e cada uma delas
gera um arquivo contendo a informação
pixel a pixel {ponto a ponto). Elo com-
putador é instalada uma placa targa, que
decodifica a leitura de digital para
analógica, g e r a n d o uma imagem no
monitor de 1024 por 780 linhas. O Cen-
tro de Informática e Cultura I - CIC/I,
situado à avenida Paulista 2 4 2 4 -São
Paulo, funciona em rede e as imagens
digitalizadas podem ser impressas para
o consulente gratuitamente, dependen-
do da autorização do fotógrafo, agência,
instituição ou colecionador.

As entradas para o Banco de Dados são:


1. Entes Urbanos
Conta atualmente com:
-Avenida Paulista,
-Pátio do Colégio,
-Largo da Memória,
-Largo S ã o B e n t o / v i a d u t o Santa
Efigênia,
-Largo Santa Efigênia/viaduto Santa
Efigênia,
-Praça da Sé, praça do Patriarca/via-
duto do Chá,
-Praça Ramos de Azevedo/viaduto do
Chá,
-Parque da Independência,
-Largo de São Francisco
-Vila Heliópolis/São J o ã o Clímaco.
Em processo de pesquisa:
-Itaquera -Conjunto Habitacional Pa-
dre J o s é de Anchieta,
-Bela Vista,

pag. 152. jan/dez 1993


R V O

-Luz, dos pelo Setor Memória Fotográfica da


-Parque Ibirapuera, Cidade de São Paulo. Atualmente, a ima-
gem digitalizada também é garantia de
-Campos Elíseos,
preservação dessa memória e, nesse
-Tiradentes,
sentido, o Banco de Dados - Memória
-Praça da República, Fotográfica da Cidade de Sáo Paulo, é
-Brás colaborador direto ao registrar, com
2 . D e s c r i t o r es novas tecnologias, as imagens dos ar-
quivos públicos e privados e democra-
Os descritores permitem o acesso às
tizar o seu u s o ' .
fotografias conforme tema ou peculiari-
dade urbana de interesse do consulente, Os maiores usuários têm sido os estu-
como hospitais, meios de transporte, dantes e professores de l g e 2- graus,
tipos h u m a n o s e outros. Eles estão orga- seguidos por fotógrafos, museólogos,
nizados em categorias decorrentes tan- estudantes de arquitetura, jornalistas,
to da história da cidade e de seus com- advogados e outros. Mas a intenção é
p o n e n t e s quanto do conteúdo e signifi- atender a todo tipo de público, com
cado das fotos disponíveis. abrangência temática e diversidade de
olhares.
3 . Cronologia
Desde o final de 1992 vêm sendo publi-
As fotografias podem ser a c e s s a d a s
cados os Cadernos Cidade de São Paulo.
pelo ano. É possível, por exemplo,
que trazem um resumo do material con-
passear pela cidade em 1920, se este
tido no Banco de Dados, com informes
for o ano escolhido, através dos dife-
históricos, cartografias, fotos e cronolo-
r e n t e s logradouros.
gia do logradouro. Até agora já foram
4 . Fotógrafo editados:
Neste caso as fotografias sáo acessa-
- Praça do Patriarca/viaduto do Chá/pra-
d a s pelo fotógrafo. Se o seu nome,
ça Ramos/viaduto do Chá,
Qal O p p i d o (por e x e m p l o ) , for
- Pátio do Colégio,
digitado na tela, na seqüência se-
-Largo São Bento/viaduto Santa Efigênia/
guinte aparecerá a lista dos entes urba-
largo Santa Efigènia/viaduto Santa
nos e a quantidade de fotografias que
esse fotógrafo possui em cada um deles. Efigênia,
- Praça da Sé,
A informática possibilita uma quantida-
de infinita de entradas, cruzamentos e - Largo São Francisco,
acesso a diversos níveis de informações, - Largo da Memória
que gradualmente poderão ser explora- - Parque da Independência.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6. n" 1-2. p. 145-154. jan/dez 1993 - pag. 153
rí O T A s
1. LE GOFF, Jacques. "Documento/Momento". !n: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Porto: Imprensa nacio-
nal. Casa da Moeda, 1984. v. 1, p.39.
2. KOSSOY, Bóris. Fotografia e história. São Paulo: Ed. Ática, 1989. p. 27
3. DEPARTAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA. Guia
Preliminar do Arquivo de Negativos. São Paulo: 1992. p. 7
4. MAR1ANN1, Ricardo. "Patrick Qeddes e a presença da história no projeto urbano". In: DEPARTA-
MENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA - O direito a
memória, patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: 1992. p.58
5. INSTITUTO CULTURAL ITAÚ. Folheto de inauguração do Módulo Fotografia - Setor Memória
Fotográfica da Cidade de São Paulo. São Paulo, 1991.

A B S T R A C T
The Data Base System - Setor Memória Fotográfica da Cidade de São Paulo do Instituto Cultural ltaú has
the objective toshow ali the city evolution process through itsstreets, avenues and public áreas since 1680
till nowdays.

R E S U M E
La Base de Données - Setor Memória Fotográfica da Cidade de São Paulo do Instituto Cultural ltaú objetive
montrer au grand publique le procèsde 1'évolution de Ia ville parmis les modifications de Ia paysage urbaine
- les jardins, rues, avenues e t c , depuis 1860.
P E R F I L I N S T I T U C I O N A L

i_^entro cie L o n s e r v a ç a o e
ir FeseFTaçâo F ©éográiica

Solange Sette Q.de Zúniga


Diretora do Depto.de Pesquisa e Documentação da Funarte/lbac.
Pós-graduada em Administração de Projetos Culturais pela Fundação Qetúlio Vargas.
Mestre em Biblioteconomia e especialista em Administração
da Preservação pela Universidade de Columbia.

7^ m s e t e m b r o de 1987 iniciavam- quisa de Fotografia.


1 - s e a s atividades do Centro d e J á em agosto de 1979, n o Simpósio
Conservação e Preservação Fo- sobre o Cinema e a Memória do Brasil,
tográfica, localizado num velho casarão promovido pela Embrafilme, Fundação
abraçado por árvores frondosas, numa Cinemateca Brasileira (São Paulo) e
aprazível rua de Santa Tereza. Motivo de Cinemateca d o Museu d e Arte Moderna
alegria para o s fotógrafos brasileiros, do Rio de Janeiro, a constatação do mau
motivo de c o m e m o r a ç ão para a memó- estado de conservação d o s materiais
ria nacional. Começava desta forma mais fotográficos, bem c o mo da falta de in-
uma etapa do Programa nacional de Pre- formações s o b r e como preservá-los,
servação e Pesquisa da Fotografia, de-
havia se destacado enquanto preocupa-
senvolvido pelo INFoto d a Funarte.
ção. Constatação que fora reforçada por
Instituído por portaria d a Secretaria de ocasião dos seminários promovidos pela
Cultura da Presidência da República, em Funarte em agosto d e 1980 e pelo Mu-
13 d e abril d e 1984, o Programa dava seu da Imagem e do Som de São Paulo
seqüência ao trabalho iniciado em 1981 em setembro de 1 9 8 1 , e comprovada j á
pelo Projeto Preservação e Pesquisa da há longo tempo por quem possuia o
Fotografia, lançado no Seminário sobre hábito e a necessidade profissional d e
Arquivo Fotográfico, da Funarte, so b o recorrer a o s acervos fotográficos locali-
nome de Centro d e Preservação e Pes- zados em instituições públicas ou priva-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n* 1-2. p. 155-162. jan/dez 1993 • pag. 155


A C E

das. O alarmante estado em que se en- aperfeiçoamento da tecnologia referen-


contravam as fotografias, tanto históri- te ao material fotográfico no Brasil. 2
cas quanto c o n t e m p o r â n e a s , nas dife-
A solução para o problema que se havia
rentes regiões brasileiras, exigia uma
colocado partiria da premissa de que era
a ç ã o imediata do Estado.
impossível atender as diversas regiões
O Núcleo de Fotografia da Funarte, que do país, caso não se a t u a s s e de forma
tinha entre s e u s objetivos o estímulo e d e s c e n t r a l i z a d a . Inicialmente, foram
apoio à produção contemporânea, reco- identificados grupos e instituições que
nhecia na fotografia dita histórica um realizavam trabalhos em torno do docu-
instrumento importante para o atendi- mento fotográfico, e que tivessem inte-
mento a este objetivo, ao mesmo tempo resse em um e m p r e e n d i m e n t o mais pro-
em que reconhecia o estado deplorável fundo, voltado para a prospecção, orga-
das coleções fotográficas, praticamente nização, reflexão e divulgação d e s s e
em todo o pais. Apoiava, portanto, a objeto, bem como a formação de pesso-
busca de uma solução para o problema, al especializado na área de preserva-
reforçado pela q u a s e inexistência de ção. 3 Foi proposta a criação de uma
técnicos na área. Foi esta busca o que estrutura composta por centros de tra-
nos levou a J o ã o Sócrates de Oliveira, balho com atribuições e complexidades
professor de preservação da imagem distintas, ou seja, um organismo central
fotográfica no curso de Museologia da (Centro de Preservação), centros regio-
Fundação Escola de Sociologia e Política nais e centros locais, c h a m a d o s de 'mini-
de São Paulo, que havia publicado re- centros'.
c e n t e m e n t e um manual sobre preserva-
ção de fotografias. 1 J o ã o Sócrates cola- Caberia ao Centro de Preservação incen-
borou na elaboração do Projeto Preser- tivar, apoiar e supervisionar as unidades
vação, cujos objetivos eram: prospecção de trabalho regionais e os mini-centros,
d o s arquivos fotográficos brasileiros bem como desenvolver atividades que
públicos e privados, nas esferas federal, d e m a n d a s s e m mão-de-obra especializa-
estadual e municipal; formação de pesso- da. Isto é, atividades de caráter técnico,
al especializado (restauradores, arqui- incapazes de serem a s s u m i d a s , num
vistas, fotógrafos, pesquisadores etc); primeiro m o m e n t o , pelas regiões, como
pesquisa e divulgação do histórico da a pesquisa de técnicas de c o n s e r v a ç à o/
fotografia no Brasil; pesquisa de técni- restauração ou o aperfeiçoamento da
cas de conservaçào e restauração; cata- tecnologia referente ao material fotográ-
logação do acervo fotográfico brasileiro,- fico no Brasil. Caberia ainda ao Centro,
estruturação de um processo de difusão a formação de pessoal especializado
d a s informações e referências gerada s (conservadores / restauradores , arqui-
nos trabalhos de prospecção e pesqui- vistas, fotógrafos, p e s q u i s a d o r e s etc), e
sa; orientação e apoio aos arquivos que a difusão das informações e referências
possuam d o c u m e n t a ç ã o fotográfica e geradas tanto pelos trabalhos de

pag. 156, Jan/dez 1993


R V O

prospecçáo e pesquisa - desenvolvidos seu conteúdo significante e possibili-


pelos mini-centros através do país - quan- tando a sua valorização enquanto algo
to por s u a s próprias atividades. Com além de simples fetiche. Prende-se a
este intuito, foram p e n s a d a s as edições esta visão a proposta de dinamizaçáo
de uma coleção História da Fotografia dos acervos, e de sua utilização através
no Brasil, de guias informativos e de de um exercício de reflexão, bem como
manuais técnicos. da constituição de um elenco de proce-
O início d a s atividades do Projeto Pre- dimentos compatíveis com o trato des-
servação provocou intensa movimenta- tas informações.
ção na área, a c o m p a n h a d a por verdadei- Aos poucos, núcleos regionais e mini-
ra enxurrada de informações sobre a centros iam definindo s u a s linhas de
existência de coleções e sobre algumas trabalho, a partir de:
iniciativas j á em a n d a m e n t o , como o
- levantamento das fotografias existen-
notável trabalho desenvolvido pela equi-
tes (na cidade, no estado, na região);
pe do Museu Histórico de Caxias do Sul,
no Rio Qrande do Sul. - proposta de pesquisa sobre o acervo
levantado;
Um dos propósitos do Projeto era o de
incentivar o uso da fotografia enquanto - tratamento do acervo no que se refere
fonte histórica, sugerindo o resgate de à preservação (estabelecimento de proce-

Centro de Preservação e Conservação Fotográfica.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 155-162. jan/dez 1993 - pag. 157


A C E

dimentos de preservação, catalogação dos mostrava-nos a necessidade de criar


do material, estabelecimento de uma e adaptar, e não simplesmente impor-
política de incorporação de acervo). tar. Para isso, era necessário, entretan-
Para que o Projeto pudesse dar apoio to, descobrir um profissional com um
técnico e/ou financeiro ao crescente tipo de formação que o habilitasse a
número de solicitações, foram estabele- responder às nossas angústias. João
cidos os seguintes critérios: Sócrates, companheiro de trabalho no
início de elaboração do Projeto, não
- intrínsecos: levavam em conta a impor-
mais podia participar, por motivos pes-
tância histórica/artística da coleção
soais, è nào parecia haver, no Brasil,
(data, quantidade, qualidade, estado de
quem pudesse nos socorrer.
conservação); seu significado em ter-
mos locais, regionais, nacionais; sua Decidiu-se, então, a realização de um
importância para a história da fotogra- seminário que contasse com a participa-
fia. ção de profissionais das instituições
nacionais detentoras dos mais expressi-
- extrínsecos: avaliação da instituição vos acervos fotográficos, e com a parti-
onde se encontrava a coleção (possibili- cipação de técnicos estrangeiros envol-
dade de co-patrocínio, capacidade de vidos com o assunto. Os objetivos
gerenciamento do projeto, existência de
seriam:
equipe capaz de desenvolver a propos-
ta); possibilidade de provocar efeito - fazer-se ouvir um grito de alerta, quan-
multiplicador; inexistência ou concen- to ao estado de nossas coleções e quan-
tração de apoio à determinada cidade to à necessidade de um suporte expres-
ou região. sivo por parte do Estado;
Começou-se assim a subvencionar pro-
- estabelecer um plano de ação quanto à
jetos de implantação de áreas de guar-
formação de profissionais, tanto formal
da, com controle de temperatura e umi-
quanto informalmente;
dade relativas, para conservação de ma-
terial fotográfico; e montagem de labo- - estabelecer parcerias com centros téc-
ratórios para processamento de máxima nicos, no exterior, com trabalho já con-
permanência e pesquisa de história da solidado.
fotografia, junto a instituições públicas As surpresas a nós reservadas incluíam
ou privadas, estaduais ou municipais, a precariedade da área, mesmo em paí-
em diversos pontos do pais. ses tradicionalmente mais avançados.
Aos poucos, tornava-se evidente a fragi- Era uma especialização que engatinhava.
lidade das assessorias prestadas, graças Em correspondência com Qrant Romer,
a falta de um eficaz suporte técnico que conservador do International Museum
desse resposta segura a toda sorte de of Photography at Oeorge Eastman
perguntas sobre materiais e procedimen- Mouse, em Rochester, Estados Unidos,
tos adequados à nossa realidade. A sim- na qual se fez um convite para que
ples leitura de textos técnicos importa- participasse do seminário, nos foi men-

pag. 158. jan/dez 1993


R V O

cionada a participação de um brasileiro Messe meio tempo, o Núcleo de Fotogra-


em um recém-criado curso de mestrado fia foi transformado em Instituto nacio-
em museologia no Rochester Institute of nal da Fotografia (IMFoto), e o antigo
Technology. As próximas férias serviri- Projeto Preservação transformou-se em
am de pretexto para um contato com Programa Nacional de Preservação e Pes-
e s s e brasileiro de Rochester, Sérgio quisa da Fotografia (Propreserv) através
Burgi, e com os prováveis participantes de portaria da Secretaria de Cultura da
do seminário. Começava uma nova par- Presidência da República. Acrescida à s
ceria. Pensou-se, então, na incorpora- suas atribuições e propostas anteriores,
ção de Burgi ao Projeto, uma vez termi- estava a de definir e coordenar uma
nado o ano que lhe restava nos Estados política nacional de preservação. O mo-
Unidos. A Funarte o trouxe ao Brasil para mento era propício à realização do Se-
que, durante um mês, visitássemos al- minário. Realizado de 4 a 8 de março, o
guns dos mais importantes acervos foto- Seminário Internacional sobre Preserva-
gráficos do país, do Museu Antropológi- ção e Conservação da Fotografia contou
co Diretor Pestana, em Ijuí, Rio Grande com a presença de 250 técnicos de to-
do Sul, à Fundação Joaquim Nabuco, no dos os Estados do país e até hoje é
Recife. Era necessário, sobretudo para referência para a área. Seu eco serviu
quem estudava fora, c o n h e c e r a realida- para a desejada mobilização das auto-
de do país. ridades, e a Funarte ' c o m p r o u ' a velha

Centro de Preservação e Conservação Fotográfica - Ateliê de preservação

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6, n° 1-2. p. 155-162. jan/dez 1993 • pag. 159


A C E

idéia da montagem de um centro técni- Foram 3 a n o s de obras, prova de uma


co, que d e s s e suporte às atividades do inequívoca capacidade de resistência.
Programa. À Sérgio Burgi, ainda nos Es- Foi preciso refazer d a s fundações ao
tados Unidos, entregou-se a tarefa de telhado, além de adaptar a antiga resi-
levantar as informações necessárias a dência à sua nova função, e enfrentar
implantação do Centro, e de elaborar o mudança de ministros, transformação
projeto técnico. de Secretaria em Ministério e falta de
A escolha do espaç o envolveu outras materiais ocasionada pelo Plano Cruza-
instituições, e, entre galpões na Av.Brasil do!
e velhos casarõe s no centro da cidade, Nesse período , e m b o r a a s a t e n ç õ e s
foi definido, de comum acordo com a estivessem concentrada s nas obras, as
Fundação nacional Pró-Memória, o uso atividades do Programa tiveram prosse-
da residência contígua ao Museu Casa guimento. Foram 17 o s projetos apoia-
de Benjamim Constant, em Santa Tere- dos por todo o país, concretizando-se a
sa. Em 1984, foi assinado um termo de política descentralizadora proposta des-
cooperação técnica entre a Funarte e a de o início. E foi contratada, em caráter
Pró-Memória, no qual esta se encarrega- de excepcionalidade, a equipe que iria
ria da infra-estrutura necessária ao fun- trabalhar no Centro, formada por: dois
cionamento do Centro e à Funarte cabe- conservadores-restauradores, dois fotó-
ria a aquisição, instalação e manuten- grafos, um laboratorista, um químico e
ção dos e q u i p a m e n t o s bem como a uma funcionária administrativa. A equi-
s e l e ç ã o e c o n t r a t a ç ã o de p e s s o a l pe contava também com um coodenador-
e s p e c i a l i z a d o . F o r a m definidos c o m o técnico, Sérgio Burgi -já contratado pela
objetivos do Centro, c o n s t a n t e s do con- Pró-Memória e colocado imediatamente
vênio: a) pesquisar e desenvolver técni- à disposição da Funarte - subordinado à
cas, processos e sistemas de preserva- coordenação geral do Propreserv. O qua-
ção e conservação fotográfica; b) pres- dro se completava com uma documenta-
tar serviços técnicos especializados a
lista, també m vinculada diretamente à
acervos através de tratamentos de con-
coordenação do Programa. Era a equipe
servação e restauração fotográfica; c)
minimamente indispensável ao cumpri-
dar assessoria técnica, no campo da
m e n t o dos s e u s objetivos.
preservação e conservação, a entidades
públicas e privadas m a n t e n e d o r a s de Em setembro de 1987 o Centro come-
acervos fotográficos; d) difundir infor- çou a funcionar. Recebera apoio nacio-
m a ç õ e s sobre estabilidade e permanên- nal (Finep, CNPq, Vitae) e internacional
cia de materiais fotográficos históricos e (OEA e UNESCO), e investimentos equi-
contemporâneos, através de publicações valentes a US$500.000,00 (quinhentos
periódicas e manuais técnicos; e e) for- mil dólares), d e s d e o Início de sua im-
mar e treinar pessoal para as tarefas de plantação, tendo cabido à Funarte parte
conservação e catalogação de acervos substancial deste montante, investido
fotográficos. em e q u i p a m e n t o s.

pag. 160, jan/dez 1993


R V O

O Centro é parte integrante do Propre- tando-lhe o apoio a s instituições que


serv, atendendo prioritariamente às sua s mais necessitam.
linhas de atuação e à s n e c e s s i d a d e s de
Ameaçado de extinção por ocasião do
pesquisa sobr e a instabilidade e preser-
furacão Collor, com investimentos con-
vação dos d o c u m e n t o s fotográficos, e
gelados e equipe dizimada por demis-
desenvolvendo técnicas apropriadas de
sões, desistências e até um falecimen-
conservação, preservação e sistemas de to, o Centro hibernou. Hoje em dia,
arquivamento. Atua intensamente no trei- subordinado ao Departamento de Pes-
namento de pessoal especializado, tan- quisa e Documentaçào da Funarte/Ibac,
to através de cursos oferecidos no pró- absorveu as atividades desenvolvidas
prio Centro, como através de treinamen- pela coordenação geral do Propreserv.
to oferecido às instituições, em várias Aos poucos, vem recobrando o antigo
regiões brasileiras. Está ainda capacita- ritmo de trabalho, quando prestou servi-
do para a prestação de serviços técnicos ços e assessoria a mais de 70 institui-
especializados, de modo a suprir a s ne- ções públicas ou privadas em todo o
cessidades de tratamento em laborató- território nacional. Volta com grande
rio de originais fotográficos. O fato de força, publicando um trabalho elabora-
não possuir acervo lhe empresta uma do em conjunto com a Biblioteca Nacio-
grande liberdade de atuação, possibili- nal (também co-editora), o Museu Histó-

Centro de Preservação e Conservação Fotográfica - Laboratório fotográfico

Acervo, Rio de Janeiro, v. 6. n' 1-2, p. 155-162. jan/dez 1993 - pag. 161
rico N a c i o n a l , o CFDOC d a Fundaçào Maristela P e s s o a , e a c a b o u d e lançar u m
vídeo s o b r e o s p r o c e d i m e n t o s para pre-
Qetúlio Vargas e o Museu Imperial - o
s e r v a ç ã o de negativos de vidro, com
Manual d e C a t a l o g a ç ã o d e F o t o g r a f i a s .
uma versão em espanhol. A nós, resta
Publicou ainda o Manual Básico para
saudar esse retorno, lembrando a velha
A c o n d i c i o n a m e n t o e G u a r d a d e Materi- e x c l a m a ç ã o t ã o c a r a a o m e s t r e Aloisio
ais Fotográficos, de Mareia Mello e M a g a l h ã e s : VIVA!

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A B S T R A C T
Beyond furnishing a profile of the Funarte/lbac Center of Conservation and Preservation of
Photography, this article presents the history of that Center, showing its subordination to the
National Program of Preservation and Research of Photography, which originated it and dictates the
Unes on which are based its activities both on the internai as on the national levei.

R É S U M É
Bien plus que délineér un profil, l'article se préoccupe d' établir le parcours historique du Centre
de Conservation et Preservation Photographique, d e Ia Funarte/lbac, expliquant sa subordination
au Programme National de Preservation et Recherche d e Ia Photographie, duquel il tire son origine,
et qui est responsable de ses lignes d'action autant internes, autant au niveau national.
B I B L I O G R A F I A

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com a colaboração da Divisão de Referências e Informação da Biblioteca nacional, da
Biblioteca do Museu Paulista e do Centro de Conservação e Preservação Fotográfica do IBAC.

Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n' 1-2. p. 163-170. Jan/dez 1993 - pag. 169
v^olageiin A l c a l i na
Acervo, a revista que você acabou de ler, foi impressa em papel
Pólen Bold 70g/m 2 , um papel alcalino da Cia. Suzano,
desenvolvido especialmente para o mercad o editorial,
bibliotecas e arquivos. Suas vantagens principais são maior
durabilidade e opacidade superior, a u m e n t a n d o em 600% a
vida útil do papel. Este artigo sobre alcalinidade foi escrito por
Sérgio Rossi, da R.EPRO Fotolitos.

O
papel é constituído, essencialmente, de fibras de celulose, resinas (breu) e
cargas minerais (caulim, carbonato de cálcio), distribuídos homogeneamente,
d e modo a conferir ao produto características que atendam a o s requisitos do
processo de impressão, do produto impresso e do uso final.

As resinas têm a função de refrear a absorção de líquidos (águas, tinta). As cargas


minerais, c h a m a d a s de cinzas, conferem ao papel maior opacidade, melhor nivelamento
superficial (lisura) e maior alvura.
A combinação de resina de breu com sulfato de alumínio e caulim (10 a 15%) constitui
o que é c h a m a do de colagem ácida. A substituição de caulim por carbonato de cálcio,
a u m e n t a n d o o conteúdo de cinzas em cerca de 25%, constitui o que é conhecido por
colagem alcalina, o n d e o agente de colagem reage quimicamente com as fibras de
celulose.
A colagem alcalina, embora pouco empregada no Brasil, tem sido utilizada de modo
crescente nos Estados Unidos e Europa. Cerca de 7 5 % dos papéis para imprimir e
escrever s ã o produzidos com colagem alcalina nos Estados Unidos e 5 5 % na Europa.
Ela apresenta as seguintes vantagens:
- o s papéis fabricados com colagem alcalina têm maior opacidade, visto que o
conteúdo de cinzas é maior, favorecendo a qualidade de impressão em papéis de
menor gramatura;
- a permanência dos papéis produzidos em pH alcalino é maior, isto é, a reversão da
alvura é menor no decorrer do tempo e o papel estará menos sujeito ao amarelamento
por envelhecimento natural, aumentando a durabilidade de livros e documentos
impressos de cerca de 50 anos ( no caso dos papéis ácidos) para aproximadamente
300 anos. Sabe-se que isso já é uma exigência dos governos japonês e americano para
papéis oficiais;
- a secagem das tintas, no processo ofiset, é favorecida, uma vez que o ptl ácido do
papel inibe a ação dos secantes das tintas, retardando-a. Isto favorece a produtividade
e o custo dos processos gráficos, uma vez que os impressos podem ser processados
mais rapidamente nas operações de acabamento (envernizamento, plastificação,
encadernação etc) e o estoque intermediário pode ser reduzido. Outra vantagem é a
redução dos problemas de impressão associados à secagem das tintas; decalque,
perda de brilho causada pela drenagem do veículo das tintas pelo papel; uso excessivo
de pó anti-decalque, que causa redução do brilho e prejudica as operações de
acabamento (envernizamento, plastificação, colagem, hotstamping etc); perda de
saturação de cor durante a fase de secagem (dry back), consumo maior de tintas para
compensara penetração no suporte (secagem mais rápida mantém os sólidos da tinta
na superfície do papel); e outros.

Como se pode perceber, existe uma série de vantagens que aconselham o uso de
papéis produzidos com colagem alcalina,sobretudo na impressão de livros e documen-
tos. O Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar o aumento progressivo do uso dessa
classe de papéis nos principais países produtores de papel, sob o risco de ter que abrir
mão de parcela significativa de suas exportações.
Neste número
Aline Lopes de Lacerda
Ana Maria Mauad de S. Andrade Essus
Boris Kossoy
Helouise Costa
Joaquim Marcai Ferreira de Andrade
Márcia Ribeiro de Oliveira
Maria Inez Turazzi
Maria Lúcia Cerutti Miguel
Maurício LissovsKy
Pedro Vasquez
Solange Ferraz de Lima
Solange Sette Q. de Zúniga
Vânia Carneiro de Carvalho

O T O G R A F I A

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

ARQUIVO NACIONAL

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