Ensino de História e propostas curriculares em tempos do ódio como política no Brasil
João do Prado Ferraz de Carvalho
O processo político em curso no Brasil no tempo presente tem aberto e interditado
diversos e diferentes projetos educacionais de natureza e origem conflitantes. Num breve inventário dos acontecimentos políticos nas últimas décadas, temos a retomada do processo político democrático-liberal pós Ditadura Civil-Militar, cada vez mais tenso e demarcador de blocos definidores de opções partidárias que se afirmaram no processo de disputas eleitorais, e várias foram os acontecimentos que acirraram o panorama político nesses últimos anos, redundando em políticas educacionais nem sempre conciliáveis e contínuas. Entre um impeachment (1992), um golpe (2016) e o crescimento da direita que ora ocupa o Palácio do Planalto, explicitou-se o que alguns autores indicam como tempos nos quais o ódio como política nos desnuda enquanto sociedade (GALLEGO, 2018). Vivenciamos tempos de agudização desse processo que pode ser exemplificado com as chamadas Jornadas de Junho de 2013, com as eleições de 2014 e o quadro de radicalização política que resultou no Golpe parlamentar, judiciário e midiático de 2016, com a judicialização da política, com as redes sociais e as fake news e seus impactos na vida dos sujeitos, etc. Tempos de intolerância e ódio, naturalmente radicalizado em função da estrutura de classe decorrente da divisão social do trabalho, do racismo estrutural (ALMEIDA: 2019) e da desumana distribuição de renda parteira do ornitorrinco, “mostrengo social” que nos caracteriza enquanto sociedade (OLIVEIRA, 2006). Nesse contexto, diversos e diferentes projetos apontam para novas e antigas questões e leituras da sociedade brasileira, lançando luz e possibilitando maior nitidez à debates que tomam perspectivas de classe, gênero e etnia. No campo da Educação, não poderia ser diferente. Para ficar apenas no contexto das questões relativas à escola e ao ensino, podemos citar vários temas que guardam maior ou menor proximidade com os acontecimentos dos últimos anos e que compõe o cenário de atuação e debate entre educadores brasileiros. Uma pequena lista dos temas polemizados ajuda a dimensionar melhor do que estamos tratando: a elaboração e a aplicação do Plano Nacional de Educação; o debate sobre cotas nas universidades e a as reação as leis 10.639/03 e 11.645/08; a reforma do ensino Médio; os debates em torno das diferentes versões da BNCC; os debates sobre o Ensino de História nas diferentes propostas de BNCC; etc. Pode parecer um esquema um tanto conservador, linear, pouco criativo a citação desses exemplos, porém, é instrumental e metodológico, pois uma das sensações/impressões/representações do processo histórico atual no Brasil é o sentido de fragmentação, agudização e aceleração do tempo histórico. Nessa comunicação, inspirada em provocações urgentes em tempo de “golpes na história e na escola” (MACHADO & TOLEDO: 2017), o objetivo é pensar o ensino de história e a produção de propostas curriculares à luz desse processo. Nesse sentido, toma como objeto de estudo as diferentes versões da BNCC e o ensino de história, assim como as propostas curriculares para o ensino de história nos últimos governos da cidade de São Paulo. Busca pensar a produção de diferentes propostas curriculares na sua relação com manifestações do processo político aludido acima, propostas essas conformadas por tal processo, assim como conformadoras do mesmo, certamente nunca somente mero reflexo ou mesmo contraponto. A pergunta que guia a reflexão é como a agudização do quadro político se faz presente, ou não, na elaboração e materialização das propostas tomadas aqui como objeto de estudo, e se as mesmas tensionam eventuais tradições arraigadas. Pergunta importante porque, embora, como defende Ivor Goodson, o currículo seja um “exemplo perfeito de tradição inventada”, no sentido que Hobsbawm & Ranger (1984) dão a um conjunto de práticas e ritos , também é algo a ser construído e reconstruído, como sentenciou o autor de Currículo: teoria e História, que completa sublinhando que “se os especialistas em currículo, os historiadores e sociólogos da educação ignoram, em substância, a história e construção social do currículo, mais fácies se tornam tal mistificação e reprodução de currículo tradicional, tanto na forma como no conteúdo” (GOODSON: 2008, p. 27). Para pensar esse processo recente fazendo um exercício de leitura comparativa, pretende-se estudar as propostas curriculares apresentadas em diferentes governos federais nos últimos anos no Brasil cotejando com o cenário educacional na cidade de São Paulo, onde desde 2007 foram apresentadas , em diferentes governos municipais, três propostas de ensino de história para a rede educacional da cidade. Certamente que, por trata-se de um universo complexo e amplo, o recorte é necessário e é feito em torno dos objetivos do ensino de história enunciados nessas propostas e o lugar do fazer da política. O objetivo é fazer esse exercício cotejando o quadro nacional com o debate na cidade de São Paulo e as diferentes propostas de ensino de história materializadas em diferentes governos, buscando as aproximações e distanciamentos com o contexto de radicalização e do ódio como política. Se o currículo é resultante da seleção cultural (FORQUIN: 1994) e é produzido na relação com as questões acerca da tradição seletiva (APPLE: 1982), é pertinente se perguntar pelos vestígios do debate político no Brasil do tempo presente entranhados nas propostas curriculares para o ensino de história, nunca perdendo de vista que o campo cultural é eivado de disputas políticas que o conformam (THOMPSON: 2001). Tendo a perspectiva da história social do currículo (GOODSON: 2008) como referência e sua construção enquanto resultante de contextos complexos como preocupação, toma a produção e a prescrição de propostas curriculares como elemento essencial no processo de compreensão da produção social da escola pública contemporânea brasileira, “ampliada para menos”, no dizer de Algebaile (2009).