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Políticas Públicas, Base Nacional Comum Curricular e

Currículo

Políticas Públicas, Base Nacional Curricular Común y Currículo

Public Policies, Common National Base and Curriculum

Marcia Oliveira Maciel Franco Reis1

Resumo: O presente artigo busca revelar o cenário político em torno da


discussão, elaboração e aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
na conjuntura das políticas públicas educacionais no Brasil, problematizando a
noção de currículo observada na versão oficial do documento e possíveis
implicações para o fazer docente.

Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular; políticas públicas em


educação; currículo.

Resumen: Este artículo busca contextualizar el escenario político em torno a la


discusión, elaboración y aprobación de la Base Nacional Común Curricular
(BNCC) em el contexto de las políticas públicas educativas em Brasil,
cuestionando la nocion de currículo observada en la version oficial del
documento y sus posibles implicaciones por el trabajo docente.

Palabras clave: Base Nacional Común Curricular; políticas públicas em


educación; currículo.

Abstract: This article seeks to reveal the political scenario around the discussion,
elaboration, and approval of the Common National Base (BNCC) in the context
of public policies in Brazil, questioning the notion of curricula observed in the
official version of the document and their possible implications in teaching.

Key words: Common National Base; public policies in education; curriculum.

1
Mestranda em Educação (PPGE/UFRJ). Integrante do Grupo de Pesquisa Conversas entre professores: alteridades e
singularidades (ConPAS). Professora de Inglês da Educação Básica da Rede Particular de Ensino. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8724534394146895 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3444-0317 E-mail:
marciaomfreis@gmail.com
Introdução

O presente artigo busca contextualizar as discussões e as disputas acerca


do processo de construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
enquanto política pública educacional que se inicia no governo de Fernando
Henrique Cardoso, passando pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma
Roussef, sendo enfim homologada no governo de Michel Temer.
Entendendo que a construção da BNCC assim como outros documentos
e políticas educacionais, evidenciam visões sobre a sociedade que desejamos,
o papel da escola, o que devemos ensinar, dentre outras questões, examino a
noção de currículo apresentada no documento, problematizando a versão final
da BNCC e os possíveis efeitos advindos de sua implementação para o trabalho
docente nas escolas no que diz respeito ao currículo.

Políticas Públicas Educacionais

Podemos dizer que as políticas públicas, de forma geral, são o meio pelo
qual o governo expressa seus propósitos para a sociedade através de ações ou
programas governamentais e que tais ações se dão dentro de um contexto de
disputas, de conflitos de interesses que mobilizam a sociedade e formam, a partir
daí, grupos sociais que cobram e pressionam o governo para que implementem
ações e programas que ajam a favor desses grupos. Em outras palavras,
podemos dizer que cabe ao governo criar e implementar tais ações e à
sociedade civil pressionar o governo para que tais ações estejam a serviço dela.
Há três tipos de políticas públicas, a saber: as redistributivas, que
buscamredistribuir renda na forma de recursos e/ou financiamento de
equipamentos e serviços públicos (bolsa-universitária, isenção de IPTU); as
distributivas, que visam ofertas serviços e equipamentos de forma pontual e/ou
de acordo com as demandas da sociedade ou de grupos sociais (podas de
árvore, consertos de creches); e as regulatórias, que irão determinar se uma
política pública será ou não implementada (c.f. OLIVEIRA, 2010) .
As políticas públicas educacionais dizem respeito às políticas públicas no
contexto educacional e, mais precisamente a BNCC, ao que diz respeito a
educação escolar.
A política pública educacional enquanto programa de ação social é um
acontecimento que se produz no macro contexto da política e, portanto, no
contexto das relações sociais que plasmam as assimetrias, a exclusão e as
desigualdades que se configuram na sociedade (AZEVEDO,2004: viii), ou seja,
não são neutras. Elas estão carregadas de valores, crenças e ideologias.
A partir das discussões, disputas e tensões que surgem na sociedade a
respeito da educação escolar, o governo, através das políticas públicas
educacionais, busca implementar ações e programas que abrangem diferentes
aspectos da educação como, por exemplo, a valorização e a formação de
professores, a construção de escolas, creches e universidades, a gestão escolar
e o currículo.
Neste estudo, lanço um olhar mais atento à Base Nacional Comum
Curricular enquanto uma política pública educacional curricular regulatória,
refletindo sobre que concepções carrega acerca de currículo e de que forma
impacta para o trabalho docente.
Defendo que o currículo é o núcleo e o espaço central mais estruturante
da função da escola, como nos diz Arroyo (2013:13), e, por essa mesma razão,
talvez seja o espaço mais normatizado, mais politizado e mais ressignificado na
contemporaneidade.
Quando falamos em currículo, estamos pensando não só nas grades
curriculares, que buscam determinar que conhecimentos entram nas salas de
aula e, consequentemente, quais não entram. Ainda, quais disciplinas fazem ou
não parte dos currículos, qual a carga horária de cada uma, determinando assim
a “importância” de cada uma. mas também em todos os outros aspectos que
estão atrelados às políticas de currículo como, por exemplo, as avaliações, que
acabam também determinando os currículos e a formação docente.
Como vimos anteriormente, as políticas públicas são pensadas e postas
em prática como consequência das questões de seu tempo e, sendo assim,
trazem em si as marcas de sua historicidade. Portanto, para entendermos o que
carregam das lutas postas, precisamos olhar para o momento histórico na qual
elas foram produzidas.

A chamada “crise da educação” não é algo pontual, mas uma situação


que reflete as condições desiguais de existência de um povo. As reformas
propostas são direcionadas, de acordo com Andrade e Gawryszewski
(2018:106), a atender demandas que variam da pressão da classe trabalhadora
por escolarização às necessidades do capital de ajustar a formação da força de
trabalho às exigências de sua reprodução ampliada. As políticas públicas
curriculares, mais especificamente a BNCC, parecem atender à grupos
específicos da sociedade, como as organizações internacionais e ao mercado.

E de onde vem esse interesse do mercado e de organizações


internacionais e a centralidade do currículo nas questões educacionais?

Para Arroyo (2013:14), a produção e apropriação do conhecimento


sempre entrou nas disputas das relações sociais e políticas de dominação-
subordinação. Ou seja, muitos dos conhecimentos produzidos por diversos
grupos sociais, a partir das disputas, podem se tornar invisibilizados, excluídos,
apagados, privilegiando outros saberes, determinadas culturas e modos de
existência, que por sua vez, irão contribuir para representar e significar o mundo,
naturalizando, mantendo ou transformando as significações que damos a ele e
as relações que estabelecemos com ele e com os seres que o habitam (c.f.
FAIRCLOUGH,2016).

Partindo desse entendimento, na próxima seção, contextualizarei as


discussões e disputas acerca do processo de construção da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) desde o governo FHC, passando pelos governos de
Lula, Dilma e, do governo golpista de Temer, época de sua aprovação.

Contextualizando a construção da BNCC como política pública curricular

Entendo que a construção da BNCC, assim como outros documentos e


projetos educacionais, evidenciam visões sobre a sociedade que se deseja, as
pessoas que habitam esses espaços, o que é currículo, o que entra e o que sai
dele, as formas e os porquês da avaliação, as possibilidades plurais de gestão e
a formação dos professores e professoras e que tais visões estão sempre em
constante disputa.
Historicamente, dentro do contexto da BNCC, havia duas concepções em
disputa, a saber, uma que buscava uma educação de qualidade para todos em
um país como o Brasil, de grandes desigualdades sociais, lutando por mudanças
econômicas e sociais que pudessem promover uma sociedade mais justa e
igualitária; e outra que visava atender ao mercado, à formação tecnicista, a
cultura da performatividade.

Na década de 902, com o fenômeno da globalização, muitos países


impactados pelas mudanças sociais e pela capacidade do Estado de
implementar e garantir direitos sociais, anunciaram suas reformas como forma
de garantir governabilidade e de superar a crise do Estado de bem-estar social
(AGUIAR, 2019:2).

As políticas públicas educacionais do governo FHC foram conduzidas e


subordinadas aos organismos internacionais gestores da mundialização do
capital e dentro da cartilha neoliberal, cujo núcleo central é a ideia do livre
mercado do mercado globalizado, isto é, transferir para os agentes econômicos,
sociais e educacionais a responsabilidade de disputar mercado e privatizar
direitos. É a própria sociedade contra o social.

Duas políticas públicas educacionais importantes foram aprovadas no


governo FHC: o PNE 2001-2010 e a LDB. Não é casual que a ideologia das
competências e da empregabilidade esteja presente nestes documentos.
Passamos para a ideologia da ditadura do mercado, adotando o pensamento
pedagógico empresarial e as diretrizes dos organismos e das agências
internacionais e regionais, dominantemente a serviço desse pensamento.

Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 previa uma a formulação


de uma política pública regulatória para a educação e que a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 reitera tal necessidade de se pensar
em uma política educacional nacional.

2
Como sinalizado por Andrade e Gawryszewski (2018), os debates sobre uma base comum se inicia nos anos 80, mas
somente em 2015, com a divulgação da sua primeira versão, ele se intensifica.
Oportuno observar também que se falava em base nacional comum e não
base nacional comum curricular, o que sinalizava a valorização dos percursos
formativos dentro de cada contexto sócio-político-educacional, transcendendo a
ideia de currículo único, modelar e padronizado, currículo mínimo, currículo
homogêneo, etapas estanques compreendidas como grades curriculares,
matérias, conteúdos mínimos (apud AGUIAR & TUTTMAN, 2020:79).

No entanto, somente com a elaboração do Plano Nacional de Educação


(PNE3), em 2001, que se retoma a discussão para a elaboração de diretrizes e
metas como um currículo unificado para todo o país, [onde] comunidades de
especialistas que defendem perspectivas de grupos de interesses (...) passam a
uma disputa de ideologias, valores e forças políticas (TISATTO & BENTO,
2021:768).

Em 2003, ao assumir a presidência da República, Lula deu continuidade


à várias políticas e programas da gestão FHC, recebendo, consequentemente,
severas críticas. Na esteira da popularidade do governo petista de Lula, Dilma
Rousseff se elege a 1ª Presidenta do Brasil, em 2011.

Nesse período, destaco alguns acontecimentos relevantes para a


discussão e entendimento sobre a BNCC: a volta do movimento dos educadores,
a reestruturação do MEC e da SEB conjugando as três etapas da educação
escolar (educação infantil, ensino fundamental e médio), a realização do CONAE
2010 e 2014, as Diretrizes Curriculares, o PNE 2014-2024, a formação do
Movimento pela Base Nacional Comum (MPB4), em 2013, organização
empresarial que tomou a frente dos processos de construção e implementação
da BNCC e a divulgação da primeira versão do documento, em 2015.

Após estruturação do MEC, temos a criação da Secretaria de Educação


Básica (SEB) que, preocupada com uma base nacional comum, promoveu

3
2.1) O Ministério da Educação, em articulação e colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
deverá, até o final do 2o ano de vigência deste PNE, elaborar e encaminhar ao Conselho Nacional de Educação,
precedida de consulta pública nacional, proposta de direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para os(as)
alunos(as) do ensino fundamental; 2.2) Pactuar entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no âmbito da
instância permanente de que trata o § 5o do art.o 7o desta Lei, a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem
e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular do ensino fundamental. (BRASIL, 2014).
4
MPB é composta por empresários e instituições como Fundação Leman, Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton
Senna, Instituto Natura, Todos pela Educação, Itaú, por exemplo.
debates sobre currículo e sua construção que envolveu a participação de
escolas, sistemas de ensino, pesquisadores e especialistas do campo do
currículo, que refletiam a diversidade de concepções e projetos curriculares no
país e que tratavam de temas relevantes para o campo da educação:

...a função da escola, da docência e da pedagogia (...) incluindo o direito


ao conhecimento, às ciências, aos avanços tecnológicos e às novas
tecnologias de informação. Mas também o direito à cultura, às artes, à
diversidade de linguagens. Formas de comunicação, aos sistemas
simbólicos e ao sistema de valores que regem o convívio social, à
formação como sujeitos éticos (AGUIAR & TUTTMAN, 2020:76).

Nessa perspectiva o debate tem como premissa um currículo que


contribua para a formação de uma sociedade democrática, igualitária e justa.
Além dos agentes públicos, a sociedade civil também participa das discussões
sobre a criação de uma base comum nacional, destacadamente, o Movimento
pela BNCC5. No entanto, não é o que veremos na condução do processo da
implementação da BNCC e tão pouco na versão oficial.

Nesse cenário, evidenciou-se as relações de poder - as disputas - entre


grupos distintos da sociedade. Quem cria e implementa políticas públicas
educacionais é o governo, entretanto outros atores participam do processo,
especialmente os grupos privados com ou sem fins lucrativos (...) incluídos
fundações, institutos e empresas cuja relevância é crescente em todo o mundo
(AVELAR, 2019: 74)6.

Observa-se que após a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais,


a visão de currículo presente é a que abraça as experiências educacionais e
escolares a partir das singularidades de cada contexto e de cada indivíduo e que

5
Apoiado pela Fundação Lemann, o MPB tem papel fundamental no processo, interferindo nas políticas públicas de
currículo (c.f TISATTO & BENTO, 2021).

6
Segundo AVELAR (2019), o Brasil é um mercado de grande interesse do setor privado com fins lucrativos, que percebe
o potencial lucrativo da educação nos chamados edubusiness ou edunegócios, colocando as questões pedagógicas,
éticas e sociais em segundo plano (AVELAR, 2013:75) e as organizações sem fins lucrativos, que buscam instaurar uma
nova filantropia; i.e, visam promover grandes impactos e mudanças sistêmicas na educação, uma gestão eficiente e um
ensino padronizado e passível de avaliação em larga escala (AVELAR, 2013:75). Empresas e organizações do setor
privado acabam por desequilibrar a balança na hora das decisões, pois possuem muito dinheiro6 para pressionar os
representantes dos governos a atuarem a favor de suas agendas comerciais, o que evidencia a não neutralidade nas
propostas de políticas públicas curriculares.
nada tem a ver com a ideia de currículo homogeneizante, único e padronizado
(c.f. AGUIAR & TUTTMAN, 2020).

No entanto, ao assumir a SEB, Manuel Palácios prioriza a elaboração de


uma Base Curricular Nacional, mesmo diante das críticas feitas por especialistas
do campo do currículo como a ANPED e a ABdC, que viam nessa base curricular
obrigatória um retrocesso na educação e sua mercantilização.

A propósito, as associações cientificas ligadas aos estudos dos currículos


não foram acionadas de forma sistemática quando da elaboração da BNCC,
diferentemente do que aconteceu com o MPB, que foi um dos atores mais
atuantes no processo. Mesmo assim, tais associações emitiram seus
posicionamentos e os encaminharam a SEB e ao CNE, sem que houvesse
alguma mudança.

Após a divulgação da primeira versão da BNCC, em setembro de 2015,


abre-se consulta pública. Segundo Tarlau e Moeller (2020:555), esse movimento
fez com que a BNCC parecesse ser um outro exemplo impressionante do debate
e da vasta participação da sociedade civil, com milhares de pessoas opinando
na primeira versão do documento por meio de um fórum online.

Entretanto, as escolas tiveram pouco tempo para ler, analisar e debater o


documento que era bastante extenso. Na Academia, a comunidade teceu críticas
severas ao documento que julgavam prescritivo e que atendia não mais as
particularidades das escolas e dos indivíduos, mas sim ao mercado com suas
exigências de padronizar, avaliar em grande escala e de responsabilização de
professores e gestores (c.f. AGUIAR & TUTTMAN, 2020).

Em abril de 2016, ano do golpe jurídico-parlamentar que destituiu Dilma


Rousseff da presidência7, a segunda versão incompleta da BNCC é divulgada,
mesmo não contendo nela as propostas para o ensino médio, que passaria a ser
por blocos temáticos. Conforme mencionado por Aguiar (2019:4), ao longo da

7
sua gestão foram implementadas medidas de políticas que desagradaram vários
grupos sociais, especialmente as elites brasileiras, ressaltando a aprovação do
PNE 2014-2024 que estabelece o percentual de 10% do PIB a ser destinado à
educação.

Ao assumir o governo após o golpe, Michel Temer revert[e] muitas


políticas públicas adotadas no governo anterior e paralis[a] inúmeros outros
programas governamentais, mas a BNCC permaneceu intacta, como destacam
Tarlau e Moeller (2020: 554).

Além da celeridade com a qual a versão final da BNCC foi aprovada – um


ano depois da 2ª versão – chama a atenção a MP que alterou o currículo do
ensino médio8 e a LDB, permitindo que houvesse a ruptura da educação básica
em sua organização, bem como enfraquecendo o papel do professor ao permitir
que profissionais com notório saber ministrassem conteúdos de áreas afins sem
a necessidade de formação específica, além da obrigatoriedade de atrelar os
currículos dos cursos de formação de professores à BNCC.

Tais medidas sinalizaram a retomada do projeto político neoliberal do


governo FHC que buscara atender as demandas empresariais. Após a
homologação da BNCC, que é fragmentada – exclui o ensino médio - e restritiva
– onde direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento se expressam
pelo atrelamento do currículo à lógica da avaliação por desempenho (c.f.
AGUIAR & TUTTMAN, 2020), fica claro as motivações - a geração de lucros e
a obtenção de poder e influência em diferentes escalas para refazer a educação
pública à sua imagem e semelhança - e os atores que tiveram maior influência

8
A BNCC do EM é homologada em 14 de dezembro de 2018, mesmo sofrendo críticas contundentes das associações
científicas e dos protestos de profissionais da educação e estudantes, encerrando, assim, um momento de grande disputa
de projeto de sociedade, de educação e de formação humana (AGUIAR & TUTTMAN, 2020:87).
na construção da BNCC - as corporações e as fundações privadas (TARLAU &
MOELLER, 2020:555).

Na próxima seção deste artigo, discutirei o currículo proposto pela BNCC


e seu impacto no fazer docente.

O currículo da Base Nacional Comum Curricular e as possíveis implicações


para o trabalho docente

No contexto de implementação da BNCC e do papel que instituições e


organizações não governamentais assumiram no processo9, situação possível
graças ao poder econômico das organizações/fundações e dos cortes ou falta
de verbas do setor público para a educação – uma das características de uma
perspectiva econômica neoliberal que impactou severamente a educação – é
possível perceber o intuito destas organizações em tornar técnico os debates
políticos que impactam políticas educacionais relacionadas a equidade e a
qualidade da educação (c.f. TARLAU & MOELLER, 2020).

A busca por transformar o que é político em técnico ou, em outras


palavras, despolitizar a arena educacional é uma disputa travada entre duas
visões de educação, como sinaliza Avelar (2019): de um lado a educação vista
como bem público e a gestão para o público; e de outro lado a educação
enquanto ferramenta para desenvolvimento econômico e a gestão como
empresa.

No caso da BNCC, uma das implicações do protagonismo do setor privado


na elaboração dessa política pública foi reforçar uma formação cujo currículo se

9
Para Tarlau & Moeller (2020:593), a Fundação Lemann, principal financiadora da BNCC, através de um processo
chamado de consenso por filantropia, usou de recursos econômicos, da produção de conhecimento, do poder da mídia
e das redes formais e informais, para transformar a qualidade e a equidade da educação em problemas com soluções
técnicas, assim obtendo amplo apoio para essa iniciativa política.
centra em desenvolvimento de competências e habilidades10 voltadas para o
mercado de trabalho, em avaliação de resultados, numa busca por eficiência,
por um trabalho “técnico”, deixando de considerar as vivências dos educandos,
as relações que se estabelecem na sala de aula e os currículos que emergem
dessas relações.

Se olharmos para o documento da BNCC, que é um documento normativo


e que, portanto, define as aprendizagens essenciais necessárias para preparar
[os estudantes] para o futuro (BRASIL, 2017: 5) ou, em outras palavras, para o
mercado, notamos que o que deveria contemplar uma diversidade de saberes,
culturas e valores, acaba empobrecendo a experiencia de aprendizagem à uma
lista limitada de conteúdos selecionados a fim de atender às demandas
mercadológicas.

No entanto, a BNCC se afirma como um “documento completo”


(BRASIL,2017, p. 5) e assim o é, ao normatizar em suas 600 páginas
listagens extensas de conteúdos a serem trabalhados em cada disciplina
de cada ano de escolaridade. (REIS & CAMPOS, 2019)

O documento que deveria garantir os conteúdos mínimos para assegurar


uma base nacional mínima comum, prescreve, na verdade, o que deve ou não
entrar em nossas salas de aula e impede que os estudantes tenham acesso a
outros conhecimentos, a ampliação de seus repertórios e limitando suas
possibilidades de futuro.

Ao atender às demandas do mercado e aos interesses econômicos, a


BNCC também estabelece que tais conteúdos sejam trabalhados por meio do
desenvolvimento de competências e habilidades que possam ser avaliadas por

10
Em nota, a ANPED afirma que é preocupante também a retomada de um modelo curricular pautado em competências.
Esta “volta” das competências ignora todo o movimento das Diretrizes Curriculares Nacionais construídas nos últimos
anos e a crítica às formas esquemáticas e não processuais de compreender os currículos.
provas, testes padronizados produzidos local e globalmente, o que restringe o
trabalho docente e despreza os percursos de aprendizagem dos estudantes,
além de subjugar o processo educativo à mecanismos de controle de qualidade
da escola que visam a subordinação do sistema educativo ao mercado, fazendo
apelo à eficiência, à eficácia, à excelência e à qualidade (REIS & CAMPOS,
2019: 27).

Esse empresariamento da educação traz, como efeito, a mercantilização


da educação - o entendimento de que o propósito da educação é puramente
capacitar para o trabalho - e a mercadorização da educação – que é
transformada em nicho de mercado e, consequentemente, atende às suas
demandas (c.f. MOTTA & ANDRADE, 2020).

Como o propósito da educação dentro da lógica neoliberal, mercadológica


é capacitar os indivíduos para o mercado e de acordo com as demandas dele e
criar meios de gerar lucros, as parcerias público-privado com o discurso de
ajudar na melhoria da qualidade da educação, produzem materiais prontos –
livros, apostilas, manual do professor, plataformas com exercícios e testes,
capacitações, sistemas de ensino – para serem entregues às escolas. Esses
materiais são dados aos professores e professoras como a (única) solução para
resolvermos o problema da qualidade educacional do país, bastando aos
docentes seguirem fielmente o material tal qual ele é dado.

Para Reis e Campos (2019), esse modo de entender a educação


desconsidera a individualidade dos sujeitos envolvidos no processo: estudantes,
professores e professoras. Para além disso, sinalizam que o papel docente é o
de puro aplicar de conhecimentos, que nós, professores e professoras, não
pensamos sobre nosso fazer docente e que os estudantes também não pensam
e não colocam seus saberes, valores, crenças em disputa com o que está sendo
posto.
Parece claro, aqui, a intencionalidade de esvaziar, desqualificar o
trabalho docente, reduzindo nossa identidade (c.f. ARROYO, 2013:30). Ao
cercear nossas possibilidades de desenhar currículos que tentem dar conta da
diversidade de saberes que nos cercam, de pensar possibilidades de ensino, de
criar outras formas de avaliações, buscando dialogar com aquilo que surge na
vida cotidiana, no nosso serestarpensarsentir o mundo que nos cerca, a BNCC
acaba na contramão do que seria uma educação que potencialmente contribui
para a emancipação social, pois a atrela ao mercado neoliberal – capitalista,
individualista, utilitarista – que nada lembra uma sociedade solidária, fraterna,
igualitária.

Nossa identidade profissional sempre foi manipulada por


totalitarismos conservadores, sejam políticos e de políticas,
sejam do mercado. As políticas curriculares do que ensinar e
como ensinar, do que avaliar, exigir dos professores e dos
alunos nas provas escolares e nacionais ou estaduais têm agido
como um marco conformador e controlador do trabalho e das
identidades profissionais. Carregam um significado político
tenso; na medida em que os docentes são obrigados a olhar
para as marcas de um indigno viver que levam às escolas e têm
de olhar para o ensinar e o educar, as políticas conservadoras
até de reorientações curriculares os obriguem a fechar seu olhar
apenas para o que ensinar para obter bons resultados nas
avaliações. Submetem a que seu trabalho profissional seja
avaliado em função apenas desses resultados, que sua carreira,
até seus salários sejam condicionados a resultados
matemáticos, estatísticos (ARROYO, 2013: 30-31).

O papel das avaliações e seu impacto tanto no trabalho docente e na


(des)valorização de professores e professores é outro aspecto que assume
centralidade ao discutirmos a BNCC, pois associa-se o baixo
rendimento/resultado dos estudantes nos exames nacionais e internacionais à
precária formação docente, culpabilizando o professor e a professora pela
ineficiência do sistema educativo (c.f. REIS & GONÇALVES, 2020).

Nessa esteira, defendem um discurso formativo em que professores


deveriam aprender, de forma engessada e tecnicista, o conteúdo a ser
ministrado em sala de aula (REIS & GONÇALVES, 2020: 165), ou seja, precisam
ensinar o professor a ser professor11. Aqui também podemos ver, mais uma vez,
a concepção tecnicista, burocrática, utilitária de que a formação e, por efeito, o
trabalho docente é mecânico, o de um mero aplicador de conteúdos,
desconsiderando a complexidade do nosso trabalho, do contexto, das relações
e dos indivíduos.

Consideraçoes finais

A Base Nacional Comum Curricular, desde o primeiro movimento no


governo FHC até sua aprovação e implementação no governo Temer, traz em si
muitas disputas, debates e nenhuma unanimidade.

Defendendo um ideário mercadológico, utilitarista, tecnicista e


meritocrático, ela afirma que o conceito de escola enquanto negócio e, portanto,
que deve ser gerida como tal.

Baseia-se em um currículo estreito, fragmentado, sem vínculo com os


contextos locais, onde a educação é apenas mais uma mercadoria que visa a
geração de lucros e a capacitação de mão de obra para o mercado de trabalho
e como massa de manobra para controle do próprio mercado.

Ao buscar despolitizar o que é político em sua essência, corrobora para


uma educação que, ao invés de promover transformação social, reforça as
injustiças sociais, a inequidade, o preconceito, a exclusão.

Esse modelo de educação proposto pela BNCC é incompatível com o


desejo e a luta de tantos e tantas professoras e professores por uma educação
emancipatória, libertadora, transgressora, amorosa que possa promover justiça
social, justiça cognitiva através de escolas que também são democráticas,
plurais, transgressoras e amorosas.

11
A capacitação dos docentes é o primeiro passo para a melhoria dos índices de educação no país. Pensando nisso, o
Ministério da Educação (MEC) publicou resolução que institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de
Professores da Educação Básica (BNC-Formação) e define diretrizes para a política (REIS & GONÇALVES, 2020: 165).
Nessas escolas reconhecemos que o currículo não é uma lista de
conteúdos a serem aplicados, mas criações cotidianas daqueles que fazem as
escolas e como prática que envolve todos os saberes e processos interativos do
trabalho pedagógico realizado por alunos e professores (OLIVEIRA, 2007:9) em
busca de uma transformação social que possibilite a criação de mundos mais
bonitos, fraternos, democráticos e amorosos.

Por fim, enquanto as políticas públicas educacionais não forem pensadas


para considerarem os contextos, os sujeitos e as experiências dos sujeitos que
habitam as escolas, a educação ficará reduzida a questões técnicas, não se
beneficiando do potencial de transformação social que pode advir de uma política
educacional curricular comprometida com a emancipação social.

Referências

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