O tema das reformas das políticas educacionais – ter exploratório, sem forte preocupação com análises
que vem alterando, de modo alargado e profundo, exaustivas dos documentos que examino ou mesmo
desde os anos de 1990, a educação brasileira em todos dos contextos históricos que os delimitam. Baseio
os níveis – já é lugar comum, mas sempre importante minhas observações em análises de outros estudos com
na agenda de nossas discussões. Abordar esse tema de a mesma preocupação e em minha própria experiência
uma perspectiva tal que possa articular novas ideias, de pesquisadora relativa às transformações por que vêm
ou outros olhares, sobre as transformações que vimos passando a profissionalização e o trabalho docente no
assistindo, é um desafio. Brasil (Anadon & Garcia, 2005; Garcia, 2008; Garcia
Inspirada em um conjunto de estudos que proble- & Anadon, 2009). Para descrever, a título de ilustração,
matizam o caráter global das reformas educacionais os imaginários sociais e éticos acerca da educação e
das últimas décadas e nos estudos de Michel Foucault da cidadania, propostos pelos discursos das reformas,
acerca do discurso (1995) e da governamentalidade trago ao texto observações e enunciados que percorrem
(1990), examino a racionalidade que tem pautado es- documentos oficiais promovidos tanto por organismos
pecificamente alguns documentos oficiais, destacando internacionais e supranacionais, como nacionais, que se
suas principais tecnologias de governo e relações com dirigem a estabelecer metas para a educação no mundo
a produção de certos imaginários sociais e regimes e no Brasil e transformar os currículos da educação
éticos dos indivíduos. Trata-se de um estudo de cará- básica e da educação de professores.
Meu olhar sobre os documentos aqui analisados
está ocupado pelos modos como os discursos das re-
*
Este texto foi apresentado pela primeira vez em sessão formas interpelam os indivíduos, inscrevendo-os em
especial do GT de Currículo e GT de Políticas Educacionais na posições sociais e em determinadas formas de existên-
31ª Reunião Anual da Associação Nacional da Pós-Graduação em cia, com suas esperanças e temores. A análise desses
Educação (ANPEd), em 2008, Caxambú-MG. discursos deteve-se sobre os enunciados que apontam
para as formas de identidade e atuação desejadas para Esse não é um fenômeno novo. Desde as re-
o sujeito econômico, político, educacional etc., fixadas formas sociais da Europa e da América do Norte no
e construídas, no próprio discurso, em relação ao seu século XIX, relaciona-se com a construção moderna
outro e às suas diferenças. de Estado como um aparato legal e administrativo
As reformas atuais são práticas globais que para cuidar não somente dos limites territoriais, mas,
visam a mudanças nos padrões de regulação social sobretudo, de suas populações, visando o progresso,
e nos regimes éticos que capacitam os sujeitos para utilidade, desenvolvimento, conquista, alargamento
as relações sociais. As reformas incorporam sistemas de territórios e influências. A escolarização de massas
de razão e conhecimento como práticas de inclusão e tem sido um dispositivo fundamental na construção
exclusão que produzem posições de sujeito, sistemas de regimes éticos do indivíduo, assentados na agên-
de classificações e distinções, que formam o horizonte cia, na autonomia regulada e na responsabilidade.
ético do indivíduo consigo mesmo e com os outros. Sistemas de conhecimento com efeitos de verdade
As reformas, além de serem um conjunto de direções unem as práticas de reforma à administração das po-
e princípios, e políticas, que devem guiar o trabalho pulações. A psicologia da criança, os conhecimentos
escolar e docente, são esforços calculados para inscre- acerca da infância e a pedagogia decretaram princí-
ver certas racionalidades políticas nas sensibilidades, pios para a construção de cidadãos, trabalhadores
nas disposições e na consciência dos indivíduos, autorresponsáveis e automotivados (Popkewitz,
capacitando-os diferentemente para a ação e a parti- 2004).
cipação no mundo (Popkewitz, 1997, 2004). As políticas educacionais instituem e incorpo-
“A reforma é a administração da liberdade per- ram uma economia de poder, um conjunto de tec-
sonificada em sistemas de conhecimento profissionais nologias e práticas, associações, experts, discursos
e especializados”. Isso implica racionalizações espe- “dominantes” e regimes de verdade que formam uma
cíficas que de modo geral estão ligadas à burocracia, rede e um complexo necessário para o alinhamento
seja ela do Estado ou dos organismos internacionais e de decisões e ações que, contemporaneamente,
supranacionais, que desempenham no mundo globa- exercem um “governo à distância” (Rose, 1996). As
lizado funções específicas e outras tradicionalmente políticas educacionais fazem parte dessas estratégias
associadas ao aparelho de Estado. Além disso, essas que tentam tornar o mundo legível e transparente,
racionalizações estão relacionadas a sistemas de co- anular a contingência e o acontecimento, por meio
nhecimento produzidos pelas disciplinas das ciências da manipulação da incerteza e dos cálculos da bu-
sociais (Popkewitz, 2004, p. 111). rocracia moderna, que sonha com a uniformidade e
O problema das reformas, e também das polí- a regularidade de um mundo em ordem (Bauman,
ticas educacionais, é centralmente o problema da 1999).
mudança nas capacidades interiores, cognitivas e Quero situar a seguir o problema das reformas
instrumentais dos indivíduos, de modo que essas e das políticas educacionais atuais no interior do
mudanças coincidam com os objetivos da administra- sistema de razão que as anima, denominado, pela
ção social das populações. As reformas e as políticas maioria dos autores entre nós, neoliberalismo, e por
estão relacionadas com a gestão dos indivíduos e das outros, como Rose (1996), “liberalismo avançado”.
agências encarregadas de educar esses indivíduos. Ambos os termos pretendem uma diferenciação
Para isso, estabelecem uma série de regulamenta- seja do liberalismo clássico do século XIX, seja do
ções, mobilizam discursos e tecnologias (como o liberalismo do Estado de bem-estar, e nomeiam as
currículo, a didática, modalidades de organização e profundas transformações políticas e econômicas que
gestão escolar etc.), tornando a alma e as capacidades têm pautado a gestão do Estado e das populações em
humanas objetos de disputa e governo. tempos de globalização.
seminários realizados com os partidos políticos sobre trabalho de Foucault, coloca essas problemáticas em
reforma constitucional, promovidos pelo gabinete da termos que me ajudam a caracterizar a racionalidade
Presidência da República, em Brasília, que, desde a política neoliberal, ou o novo gerencialismo, que está
restauração da democracia em 1985 e sua consolidação na base das reformas do Estado e dos princípios mais
com a Constituição de 1988, o Brasil não enfrentava gerais que pautam as reformas educacionais na con-
a causa fundamental das sucessivas crises econômi- temporaneidade. Essas reformas são ao mesmo tempo
cas que a partir de 1979, com o segundo choque do efeitos dos novos arranjos políticos e econômicos
petróleo, assolavam o país. Dizia ele: “Crise que se surgidos no pós-guerra e condições de possibilidade
define pela crise fiscal do Estado, pela crise do modo da articulação, funcionamento e expansão desses
da intervenção na economia e do social, e pela crise mesmos arranjos.
do aparelho do Estado” (Pereira, 1995, p.2). Como racionalidade política, as governamen-
Três anos depois dessa fala do ministro, era talidades devem ser analisadas como práticas, como
encaminhada ao Congresso a emenda constitucional conjunto de tecnologias de governo, “maquinaria” ou
n. 19 que alterou dispositivos da Constituição de 1988 “aparato intelectual” para tornar pensável a realidade,
referentes aos servidores e à administração pública “de tal modo que ela se ajuste ao programa político”.
e possibilitou a reforma do Estado nas bases de um E continua Rose (1996):
novo gerencialismo, implicando outras estratégias de
governo e controle aliadas à intensificação de uma A despeito de toda mesquinhez e corrupção da ativida-
economia de regulação moral dos indivíduos (Peters; de política, as racionalidades políticas possuem uma forma
Marshall & Fitzsimons, 2004). Novos imaginários moral, na medida em que afetam questões como a adequada
sociais e nacionais foram criados como condições de distribuição de tarefas entre as diferentes autoridades e os
possibilidade para a inscrição nos indivíduos de outras ideais ou princípios a que o governo deve dedicar-se. Além
consciências, disposições e capacidades. disso, as racionalidades políticas têm um caráter epistemo-
lógico, visto que incorporam concepções particulares dos
Governamentalidade neoliberal e tecnologias objetos a serem governados – nação, população, economia,
políticas de governo sociedade, comunidade – e dos sujeitos a serem governa-
dos – cidadãos, sujeitos, indivíduos. E desenvolvem um
O termo “governo” remete a uma racionalidade certo estilo de raciocínio: linguagem aqui compreendida
política que centra sua atenção na “conduta da condu- como um conjunto de “técnicas intelectuais” para tornar a
ta” ou, em outros termos, na previsão de um campo de realidade pensável e praticável, e constituir domínios que se
possibilidades para a ação dos outros (Foucault, 1990), ajustem – ou não se ajustem – à intervenção reformadora.
e para a ação do sujeito sobre si próprio. O Estado (idem, p. 42)
na Modernidade tornou-se um Estado de “governo”,
processo histórico que Foucault (1990) chamou de a O termo “racionalidade” está relacionado a uma
governamentalização do Estado moderno. Ou seja, a certa inteligibilidade, ou à introdução de uma ordem
introdução da arte do governo (entendido como a arte na disposição das coisas e dos objetos a governar, a
de bem dispor as “coisas” a fim de alcançar riqueza fim de alcançar resultados e eficiência com custos
e progresso) ao nível do Estado, atando, no dizer de mínimos ou previsíveis. As racionalidades políticas
Popkewitz (1997, p. 38), “o poder que circula através estabelecem laços entre razão, poder político e estru-
da macroestrutura do Estado ao poder que circula na tura de Estado, considerando que hoje é necessário
microestrutura do indivíduo”. lidar com uma noção de Estado “ampliado”, na qual
Rose (1996), comentando o sentido político que a clássica distinção entre sociedade civil e Estado é
os termos “governo” e “governamentalidade” têm no problemática. As racionalidades políticas modernas
são formas de poder político referidas ao “Estado” e Todos, realizada em Jomtiem, na Tailândia, em 1990,
implicam tecnologias de poder individualizador, que e, posteriormente, os firmados pelos participantes no
passam por regimes de verdade e conhecimento. Fórum Mundial de Educação, realizado em Dakar,
A implantação de programas de governo depende dez anos depois, são parâmetros para a orientação das
“da complexa agregação de diversas forças (legal, reformas educacionais no Brasil. Não foi uma “feliz
arquitetural, profissional, administrativa, financeira, coincidência”, como assinalam Efrem Maranhão,
judiciária), técnicas (notação, computação, cálculo, Sérgio Haddad e Jorge Werthein na apresentação do
exame, avaliação), instrumentos (levantamentos e grá- documento “Educação para todos: o compromisso
ficos, sistemas de treinamento, formas de construção)” de Dakar”, quando do seu lançamento no Brasil, em
(idem, ibidem), com o objetivo de ordenar decisões e 2001, que a discussão do “Marco de Ação de Dakar”
ações de indivíduos, grupos, organizações, em relação no país coincidiu com a aprovação do Plano Nacional
a critérios oficiais. Podem ser programas exógenos, de Educação (PNE). Também o Plano de Desenvol-
elaborados fora das fronteiras do Estado-Nação, ou vimento Educacional (PDE), lançado pelo ministro
no interior dessas, quando os definimos como elabo- Sérgio Haddad em 2007, é uma expressão desses
rados no interior da Nação. De qualquer modo, esses compromissos e metas.
programas dependem da translação (movimento de “O neoliberalismo não renuncia à vontade de
um lado para o outro) de pensamento e ação, de uma governar” (Rose, 1996). Simplesmente inventa, ou
“central de cálculo” para diferentes sítios dispersos reestrutura, novas estratégias, que vão no sentido da
em um território que guardam sua autonomia formal. “desgovernamentalização do Estado” e da “desesta-
Por isso mesmo, esses programas necessitam ser reas- tização das práticas de governo”, utilizando como
sentados a cada vez. É o alinhamento desses diversos estratégias a marketização e o empresariamento
pontos da rede que permite uma ação calculada sobre dos serviços sociais, a descentralização, a plurali-
a conduta através do espaço e do tempo, possibilitando zação, a autonomização e a autogestão induzidas
um “governo à distância” (Rose, 1996). pelo Estado, dentro de um mercado governado pela
Por exemplo, no campo educacional, organismos competição, pela responsabilidade e demanda do
como a UNESCO, desde as duas últimas décadas do consumidor.
século XX, têm tido uma importância capital na pro- Nas palavras de Peters, Marshall e Fitzsimons
moção de reformas e metas educacionais para os países (2004), o novo gerencialismo, como tecnologia po-
em desenvolvimento, contando com representações lítica de governo para a organização institucional no
regionais – no nosso caso a Oficina Regional de Edu- campo educacional, aposta na descentralização do
cação para a América Latina e o Caribe (OREALC) – e controle da gestão para a instituição individual, por
escritórios locais, para desenvolver, instrumentalizar meio do estabelecimento de novas formas de finan-
e avaliar os programas em curso nos países da re- ciamento e responsabilização.
gião. Nessa direção, esses organismos mobilizam um Há uma aparente “devolução” dos poderes re-
conjunto de experts, centros estatísticos, bancos de guladores do Estado para “baixo”, no caso, para as
dados, seminários mundiais e regionais, documentos, instituições educacionais e seus agentes, ou para as
programas de metas regionais, revistas etc., que, de instâncias intermediárias do sistema, no sentido de
modo refletido, fazem uma representação da realidade responsabilização pela gestão dos recursos e currículos
educacional desses países e o alinhamento de diretrizes e do estímulo ao planejamento, ainda que as metas e
e metas que efetivamente vêm direcionando as políti- diretrizes mais gerais sejam estabelecidas nos “centros
cas educacionais de cada país, entre eles o Brasil. de cálculo” e pelos seus documentos oficiais, sejam
Os compromissos e as metas assumidos pelos esses centros os gabinetes do Ministério da Educação,
governos na Conferência Mundial de Educação para ou a UNESCO, a OREALC, a OCDE etc.
Como sugere Rose (1996), o problema agora é nomeiam esse fluxo de ideias e políticas ao redor do
colocado em termos da “moldagem de vontades de en- globo e sua apropriação em contextos nacionais. O
tidades autônomas”, sejam empresas, escolas, organi- caso de J. Dewey é paradigmático desse movimento.
zações, comunidades, profissionais, indivíduos, dentro Suas ideias, no início do século XX, atravessaram
de uma lógica de competição, qualidade e demanda fronteiras e extrapolaram o seu contexto de emergência
dos “clientes”. Atividades e responsabilidades que nos Estados Unidos, sendo incorporadas por discursos
estavam anteriormente dentro do aparelho político do e políticas em lugares tão diferentes no mundo, para
Estado são reconfiguradas como responsabilidades de divulgar as virtudes da ciência e da agência humana
uma variedade de organizações não governamentais, no controle do mundo natural e no progresso da socie-
voluntários, fundações, empresas, por meio de parce- dade. Um discurso estrangeiro que se tornou indígena,
rias, colaborações, “amigos”, privatizações, terceiriza- quer dizer, aliou-se a outros e fez amálgamas e híbridos
ção etc. Contratos, metas, indicadores (como o Índice suficientemente diferentes conforme as realidades
de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB) e locais, lançando as bases sobre as quais foram edifi-
os bancos de dados que resultam dos exames nacio- cadas as reformas da escolarização e a modernização
nais, por exemplo), currículos prescritos, políticas de de países tão diferentes como o Brasil, a Colômbia, a
avaliação e auditoria garantem o governo à distância Bélgica, Portugal, Suécia, a Turquia, a China, o Japão,
e a responsabilização individualizada dentro de metas o México etc. (Popkewitz, 2005).
e estratégias definidas centralmente. Também conceitos como “recontextualização”,
Desde essa perspectiva, emerge o regime do eu, “ressignificação”, “hibridização” dão nome a proces-
que tem na autonomia, no autoempreendedorismo, sos em que estão em jogo as relações entre o global e
na autorresponsabilização e na performatividade o local, o geral e o particular, o texto e o contexto, na
características fundamentais. A descentralização e a construção das políticas educacionais e curriculares.
parceria, como tecnologias políticas de gestão ins- Mesmo considerando as diferenças entre os
titucional, impõem novas categorias e novos termos contextos nacionais na apropriação das tendências
para pensar o mundo, a sociedade, os indivíduos, res- “exógenas” das políticas de reforma ou os hibridis-
significando termos como qualidade, sucesso escolar, mos que resultam desses confrontos e negociações,
autonomia, cidadania, público, gestão democrática, uma questão impõe a unidade na diferença: o au-
participação. mento da “colonização das políticas educativas pelos
imperativos das políticas econômicas”, a revolução
As reformas educacionais no Brasil: tecnológica, e a obsessão com a performatividade dos
imaginários sociais e regimes éticos sistemas (Ball, 2001, p. 100). A presença constante
nos textos oficiais de termos como “sociedade do co-
Os fluxos de capitais e mercadorias ao redor do nhecimento”, aprendizagem para a vida toda (lifelong
mundo têm sido acompanhados de fluxos globais de learner), educação para a competitividade são indícios
ideias e culturas, que incorporam modos de vida e do enfraquecimento de uma ética da esfera pública no
determinadas formas de ser e existir. Esperanças e campo educacional.
medos são parte desses mesmos fluxos, funcionando Se tomarmos, por exemplo, o documento “Edu-
ora como perigos a serem evitados e combatidos, ora cação para todos: o compromisso de Dakar”, do qual
como promessas e seduções que estimulam modos o Brasil foi um dos signatários em 2001, observa-se
particulares de pensamento e vida. uma retórica de caráter salvacionista que coloca a
Termos como traveling libraries (livrarias que educação, a equidade e a elevação da qualidade da
viajam), traveling policies (políticas que viajam) ou aprendizagem, como a condição do desenvolvimento,
ainda indigenous foreigner (estrangeiro indígena) da redução da pobreza, da empregabilidade, da in-
do, na maior parte das vezes, a linguagem da reforma agentes num campo de hierarquias e visibilidades,
ao redor do globo. objetos de ações e programas gestados no MEC para
As políticas impulsionadas pela UNESCO e pelo a elevação dos índices de seu desempenho.
Banco Mundial nos anos de 1980, em que pesem as Os exames nacionais instituem uma política do
diferenças de orientação entre esses organismos, tive- conhecimento que tende a expulsar dos currículos
ram por foco a expansão do número de matrículas na escolares conteúdos e conhecimentos mais locais, cuja
educação fundamental, em meio a uma crise mundial significação está diretamente relacionada às experiên-
e desinvestimentos no campo social. Nos anos da cias culturais e modos de vida de comunidades locais
década de 1990, o foco foi a reforma da escola e do e regionais. Ao mesmo tempo, legitimam a ideia de
sistema em bases gerenciais e o controle da qualidade conhecimentos universalmente válidos e de uma cul-
da aprendizagem por meio da medição e elevação do tura comum que privilegia o letramento, a matemática
desempenho escolar, controle instituído pelo monito- e “habilidades essenciais à vida” (World..., 2001, p. 9).
ramento dos desempenhos das instituições escolares Nessa fórmula estão conteúdos e habilidades relacio-
e dos alunos, tendo como base políticas de exames nados a uma sociedade pós-industrial, baseada em uma
nacionais e índices como o IDEB. Atualmente essas razão tecnocrática, no individualismo, no consumismo
políticas fazem já parte da rotina das escolas em todos e em uma ética hedonista.
os níveis de ensino. As tecnologias políticas das atuais reformas na
A qualidade da educação resumiu-se ao rendi- fabricação de regimes éticos baseados na autonomia,
mento escolar, ou à performatividade, estimulando na automotivação e no autoempreendedorismo são a
ansiedades e a competição entre as escolas e os pro- descentralização da gestão financeira e administrativa,
fessores. Além disso, as políticas de avaliação nacional a (auto)responsabilização e a corresponsabilização.
vêm intensificando o controle sobre o trabalho escolar Responsabilização que implica a desresponsabilização
e docente, desencadeando uma série de expedientes crescente do aparelho de Estado com o aporte dos
e casuísmos para atingir as médias de desempenho recursos e condições para a melhoria da qualidade do
necessárias: o treinamento dos alunos para os exames, trabalho educacional. Essas tecnologias parecem fun-
as classes de “aceleração”, ou simplesmente a exclusão cionar de modo pleno e eficiente no caso das políticas
de alunos das classes populares, cujos desempenhos de avaliação nacional, porque elas unem as possibili-
possam comprometer a imagem e os índices de de- dades dadas por uma visibilidade individualizadora e
sempenho da escola. Freitas (2007) caracteriza os as “sanções” e ações necessárias à normalização dos
efeitos de poder dessas políticas como “a ocultação seus desempenhos e à conduta de seus agentes. O
da má qualidade de ensino” e a “exclusão adiada” próprio PDE reconhece que as políticas de avaliação
das classes populares, pela assepsia dos números e a nacional são a “base da regulação” (Brasil, MEC,
sedução das estatísticas. Ou seja, essas políticas, que s.d., p. 30-31).
pretensamente visam a elevar a qualidade da apren- Carnoy (2004), em artigo publicado pela revista
dizagem, estimulando a competição e uma lógica Prelac, fórum de debate e divulgação das políticas
produtivista, contribuem para a instituição de novas de reforma educacional na América Latina e Caribe,
formas de exclusão (a partir do interior das institui- publicada pela OREALC, avalia que os investimen-
ções) que naturalizam não só a lógica empresarial e tos das políticas de reforma na descentralização do
economicista na escola, como atribuem aos próprios financiamento e da gestão escolar, na privatização e
indivíduos e instituições escolares a responsabilidade nas mudanças curriculares, adotadas pela região nos
pelos fracassos ou pelos sucessos, vistos como (falta últimos vinte anos (décadas de 1980-1990), não apre-
de) empenhos e esforços individuais. Os exames na- sentaram evidências de que tenham dado resultados
cionais colocam as instituições educacionais e seus em termos da melhoria do acesso e da aprendizagem
para a grande maioria dos jovens da América Latina. FOUCAULT, M. A governamentalidade. In: ________. Mícrofísica
As reformas na educação não só não melhoraram o do poder. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990. p.179-191.
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capital econômico e cultural diferentes. FREITAS, L. C. de. Eliminação adiada: o ocaso das classes popula-
Nesses termos, pode-se pensar que os discursos res no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino.
da reforma e da qualidade da educação tenham sido Educação & Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial,
tomados de empréstimo para justificar o avanço das p. 965-987, out. 2007.
práticas de governo neoliberais e dos imaginários so- GARCIA, Maria Manuela Alves. Texto e contexto: a reforma em
ciais e formas de subjetividade que as acompanham. cursos de Licenciatura na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Quero dizer, são vinte anos de investimentos em políti- In: REUNIÃO ANUAL DA ANPEd, 31., 2008, Caxambú-MG.
cas, cujas “lições” mais significativas em nossos países Anais... Caxambú-MG: Rio de Janeiro: ANPEd, 2008. Constituição
parecem ter sido a reestruturação de nossas formas de Brasileira, Direitos Humanos e Educação, v. 1. p. 1-16.
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Nos últimos anos publicou, entre outros: Hypolito, A. M. ;
MARIA MANUELA ALVES GARCIA possui graduação Vieira, J. S.; Garcia, M.M.A. (Orgs.). Trabalho docente: formação
em Licenciatura Plena em Pedagogia pela Universidade Federal de e identidades (Pelotas, Seiva, 2002); Garcia, M.M.A.; Hypolito, A.
Pelotas (1986), Mestrado em Educação pela Universidade Federal de M.; Vieira, J.S. As identidades docentes como fabricação da docên-
Minas Gerais (1994) e Doutorado em Educação pela Universidade cia (Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 45-56, jan./abr.
Federal do Rio Grande do Sul (2000). Realizou estágio de pós- 2005); Garcia, Maria Manuela Alves. Didática e trabalho ético na
doutorado de outubro de 2006 a dezembro de 2007 na University formação docente (Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 136, p. 225-242,
of Wisconsin (UW), Madison (WI), E.U. A. , junto ao “Curriculum jan./abr. 2009). E-mail: garciamariamanuela@gmail.com
& Instruction Department”, no grupo de pesquisa do Prof. Thomas
Popkewitz. É professora da Faculdade de Educação, Universidade Recebido em fevereiro de 2009
Federal de Pelotas, atuando no Programa de Pós-Graduação em Aprovado em abril de 2010