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A DESVALORIZAÇÃO FEMININA

AO LONGO DA HISTÓRIA (DO OCIDENTE)


Dos primórdios à atualidade

Fernando A. P. Pereira

Julho 2016

Fevereiro 2019
A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

NOTA
Este livro tem por base minha Dissertação de Mestrado que foi adaptada e à qual
foram adicionados alguns elementos da atualidade, bem como imagens.

Fernando A. P. Pereira
Mestre em História

À minha esposa, que sempre me empurrou para onde eu queria ir!

À minha filhota adolescente, que se irá tornar uma incrível mulher!

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 2


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

«Cuida-te quando fazes chorar uma mulher, pois Deus conta as suas lágrimas. A mulher foi
feita da costela do homem, não dos pés para ser pisada, nem da cabeça para ser superior, mas
sim do lado para ser igual, debaixo do braço, para ser protegida e do lado do coração para ser
amada.»

Talmude babilónico1

Índice

1.- Introdução 4
2.- Preconceitos Introdutórios 6
3.- Desvalorização feminina na História 12
3.1- A Deusa-mãe torna-se Deus-pai 12
3.2- O mito de Adão e Eva revisitado 18
3.3- Conceções da conceção 26
3.4- A bruxaria 35
4.- Desvalorização feminina na Memória 40
4.1- A Língua 40
4.2- Testemunhos 42
5.- Desvalorização feminina na Sociedade 46
5.1- Violência doméstica 46
5.2- Assédios e abusos 52
6.- Portuguesas inconformadas 56
7.- Especificidade feminina? 66
8.- Reflexões finais 75
Bibliografia 80

1
Coleção de opiniões rabínicas escrita entre os séculos III e V na Babilónia (atual Iraque) e no local que é hoje
Israel. Cf. https://www.wdl.org/pt/item/8910/. Citação geralmente atribuída ao Rabbi Chelbo, 3.ª geração de
Amoraim ou estudiosos do Talmude. Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Amora%C3%ADta; Cf.
http://www.jewishencyclopedia.com/

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

1. – Introdução

A temática da desvalorização feminina está na ordem do dia, pois por fim a sociedade
começa a aperceber-se de uma realidade que até recentemente tem sido escamoteada sob
aforismos como “Entre marido e mulher ninguém meta a colher!”; como habitualmente, é
necessário que as situações se tornem dramáticas para que as instâncias e as pessoas de bem
acordem para o problema. É uma temática que tem vindo a ser abordada por muitos e variados
trabalhos meritórios, em que o feminino expressa as suas preocupações acerca dos vários
ângulos da sua vivência: doméstica, profissional, conjugal, etc. De tal forma que seria
redundante propor mais um na mesma linha, não trazendo qualquer valor acrescentado e
limitando-se a repetir aquilo que, com melhor conhecimento de causa, já insignes
investigadoras elaboraram.

Contudo, do ponto de vista histórico, será talvez produtivo procurar uma


fundamentação para essa desvalorização, começando por uma hipótese de explicação
recuando ao Neolítico – de forma a demonstrar uma possível relação causa/efeito que sirva a
perceção da atualidade – para, de forma breve, traçar uma panorâmica sobre o que poderá ter
estado na origem de uma mentalidade que encara como natural uma pretensa inferioridade
feminina. Dispensando a arrogância de tecer considerações sobre realidades de que apenas se
ouve falar, optou-se pelo debruçar somente sobre a vivência ocidental com particular ênfase
na sociedade portuguesa.

Para o efeito decidiu-se começar por descrever o ponto da situação relativamente à


condição feminina e ilustrar a desvalorização que existe em vários aspetos da vida nas
sociedades ocidentais, desde os primórdios da História – onde se abordará a transformação
do culto à Deusa-mãe inicial no culto ao Deus-pai que vigora nas religiões monoteístas
dominantes na atualidade e que, conjuntamente com o mito de Adão e Eva, teve profunda
influência no modo como se tem, até tempos recentes, encarado a mulher na cultura
contemporânea ocidental, procurando-se ainda demonstrar de que forma o ato de conceção do
ser humano foi passível de deixar a esfera exclusivamente feminina para passar a ser do
domínio masculino, evoluindo depois para a perseguição furiosa às imaginárias bruxas, de
que resultaria um novo subjugar da mulher (tendo por base, entre outros, a monografia com o
título sui generis de «As Putas do Diabo» da autoria de Arnelle Le Bras-Chopard, professora

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de Ciência Política na Universidade de Versailles) –, na Memória – em que a Língua assume


um insuspeito papel determinante na formação dos preconceitos, a que se acrescentarão
diversos testemunhos de mulheres que se tornaram vultos de referência na cena internacional
– e finalmente na Sociedade – onde se coloca a interrogação sobre uma eventual
especificidade feminina ao nível profissional e pessoal, que tornará a mulher suscetível de ser
descriminada. Em ‘Portuguesas inconformadas’ há a pretensão de apresentar os casos de
cinco mulheres – entre muitas outras – cujo inconformismo marcaria indelevelmente a
História de Portugal dos sécs. XIX e XX: D. Carlota Joaquina (1755-1830) e as intrigas
palacianas, Maria da Fonte ou um símbolo de rebelião popular, Isabel Aboim Inglês (1902-
1963), feroz lutadora antifascista, Elina Guimarães (1904-1991), que sempre se guiou pela
máxima “dar à lei força da vida”, e Maria de Lurdes Pintasilgo (1930-2004), que, chefiando o
V Governo Constitucional, lançou as bases do que é hoje a Segurança Social.

As reflexões finais pretendem ser o sumário de tudo o que anteriormente foi exposto,
tendo como epílogo a caracterização da premissa assente no título: “A desvalorização
feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade”.

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2. – Preconceitos introdutórios

“Quanto ao sexo, a diferença é indelével: qualquer que seja a idade da mulher, o


homem deve conservar sua superioridade”.2

“É típico dos dominadores reconhecer como universal a sua particular maneira de


ser”.3
“O varão pois não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a
mulher é a glória do varão. / Porque o varão não provém da mulher, mas a mulher do varão. /
Porque também o varão não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do
varão”.4

Se há algo que transmite um sentimento de profunda injustiça, é precisamente a


desigualdade que subsiste em relação ao universo feminino, quando comparado com a
espontaneamente aceite prevalência do universo masculino.

Apesar das enormes conquistas alcançadas nas últimas décadas, não será descabido
considerar que muitos homens – assim como muitas mulheres – olham para a longa e
ininterrupta história de dominação masculina ainda abrigando a suspeita – ou firmemente
sustentando a convicção – de que o sexo feminino é, em vários aspetos, inferior.

2
Aristóteles, A Política, “Dos Poderes Marital e Paternal”, p. 27 [Consult. 8 jan. 2009]. Disponível em
http://www.clube-de-leituras.pt/upload/e_livros/clle000021.pdf
3
Pierre Bourdieu, La Dominaciòn Masculina, Anagrama, 2000 apud Margarita Rivière, O Mundo segundo as
Mulheres, p. 25.
4
Cf. Primeira Epístola de S. Paulo aos Coríntios, I Cor. 11:7-9 in Bíblia Sagrada e Chave Bíblica, João Ferreira
Almeida, trad.

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“Nos maus velhos tempos do ‘antigamente’, as mulheres sabiam qual era o seu lugar.
Em casa, naturalmente! Havia uma figura chamada ‘chefe de família’ 5 6 (o homem, claro)7 e,
portanto, elas não seriam mais do que ‘subordinadas’8 9. Havia áreas que em absoluto não lhes
competiam, como a política ou o exercício de profissões ‘incompatíveis’ com a condição
feminina. Por isso, seria impensável ver mulheres a presidir a tribunais, a conduzir transportes
públicos ou a ser agentes de Polícia.10 Porque as mulheres não tinham capacidade para isso,
nem para decidir por si próprias. Assim, só podiam ir ao estrangeiro, sozinhas, se
formalmente autorizadas pelos maridos11, e o voto estava limitado a um pequeno número de
licenciadas, essas já com capacidade intelectual suficiente para escolher entre o partido único
e o partido único (os homens não precisavam de ‘canudo’, pois a sua capacidade de decisão
era inata, não adquirida na Universidade)12. Mas hoje é o que se vê, com as mulheres

5
Pelo Código Civil de 1867, da autoria do visconde de Seabra auxiliado por uma comissão constituída – entre
outros – por Alexandre Herculano, no seu artigo 138º, “As mães participam do poder paternal e devem ser
ouvidas em tudo que respeita ao interesse dos filhos. Mas é ao pai que especialmente compete durante o
matrimónio, como chefe de família, dirigir, representar e defender os filhos”. Cf. “A mulher portuguesa na
legislação civil”, Elina Guimarães in Análise Social, vol. XXII (3º-4º) 1986 (n.º 92-93), pp. 557-577 [Consult. 28
mar. 2009]. Disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/index.htm
6
Segundo o Código Civil de 1966, no seu artigo 1674º do Poder Marital, “O marido é o chefe da família,
competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir em todos os atos da vida em comum, sem prejuízo do
disposto nos artigos susequentes”; mais adiante, no artigo 1678º, da Administração dos Bens do Casal, no seu n.º
1, refere-se que “A administração dos bens do casal, incluindo os próprios da mulher e os bens dotais, pertence
ao marido como chefe da família”. Cf. “As mulheres em Portugal: datas e factos significativos”, Comissão para a
Cidadania e Igualdade de Género [Consult. 28 dez. 2008]. Disponível em http://tinyurl.com/9jgx2z; Cf. Código
Civil de 1966, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, publicado no Diário da República n.º 274, Série I de 25-11-
1966, INCM/Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros [Consult. 25 Jan. 2009]. Disponível em
http://dre.pt/pdfgratis/1966/11/27400.pdf.
7
Em 1911 a médica Carolina Beatriz Ângelo, viúva e mãe, pretendeu votar para a Assembleia Constituinte
invocando a condição de chefe de família sendo-lhe recusado o recenseamento, numa primeira fase, mas
conseguindo que um tribunal lhe reconhecesse esse direito (à revelia) com base no sentido do plural da
expressão ‘cidadãos portugueses’ cujo masculino se refere, ao mesmo tempo, a homens e a mulheres ; no ano
seguinte a legislação seria alterada para evitar a repetição da façanha, sendo publicada a Lei n.º 3 de 3 de julho
de 1913 que, no seu artigo 1.º refere explicitamente que “São eleitores de cargos legislativos e administrativos
todos os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos, ou que completem essa idade até o termo
das operações de recenseamento, que estejam no gôzo dos seus direitos civis e políticos, saibam ler e escrever
português, e residam no território da República Portuguesa”. Nem uma palavra acerca da possibilidade de
existência de mulheres eleitoras. Cf. “As mulheres em Portugal: datas e factos significativos”, Comissão para a
Cidadania e Igualdade de Género [Consult. 28 dez. 2008]. Disponível em http://tinyurl.com/9jgx2z. Cf.
“Carolina Beatriz Ângelo” [Consult. 8 jan. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/8j6q7e. Cf. Lei n.º 3 de 03-
07-1913.
8
O Código Civil de 1867, refere no seu artigo 1885º: “Ao marido compete especialmente a obrigação de
defender a pessoa e os bens da mulher e a esta obrigação de prestar obediência ao marido”, nem, segundo o
mesmo Código, a mulher poderia praticar qualquer ato sem autorização do marido sob pena de nulidade (artigos
1115º, 1117º, 1193º e 1194º); por outro lado, o marido podia dispor dos bens móveis da esposa de forma legal,
quer fossem joias, mobiliário, utensílios de trabalho, papéis de crédito, etc., podendo até vendê-los se assim o
desejasse; já a esposa, em rigor, não poderia sequer entrar num transporte público sem autorização do marido por
tratar-se de um contrato de transporte. De referir que este Código Civil, também conhecido por Código Seabra,
esteve em vigor durante todo um século, só sendo substituído pelo Código Civil de 1966, que seria publicado em
1967. Cf. “A mulher portuguesa na legislação civil”, Elina Guimarães in Análise Social, vol. XXII (3º-4º) 1986
(n.º 92-93), pp. 557-577 [Consult. 28 mar. 2009]. Disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/index.htm
9
Pela Lei do Divórcio surgida com o Decreto de 3 de novembro de 1910, o casamento passa a ser baseado na
igualdade e a mulher deixa de dever obediência ao marido. Cf. “As mulheres em Portugal: datas e factos
significativos”, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género [Consult. 28 dez. 2008]. Disponível em
http://tinyurl.com/9jgx2z. Cf. Decreto de 3 de novembro de 1910 do Governo Provisório da República
Portuguesa, publicado no Diário do Governo n.º 26 de 04-11-1911 [Consult. 25 jan. 2009]. Disponível em
http://tinyurl.com/c3zvf9

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instaladas em tudo o que é sítio e oficialmente autorizadas a pensar pela sua própria cabeça.”
13

“Em Portugal é fácil tornarmo-nos adultos sem nos cruzarmos com o feminismo ou
nos questionarmos sobre a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. É baixa a
visibilidade social deste e de outros movimentos, ainda que há dez anos fosse menor.” - Pedro
Ferreira, psicólogo.14

Por outro lado, “A história do feminismo está cheia de homens. Os pioneiros são
Condorcet (séc. XVIII) e John Stuart Mill (séc. XIX), mas a eles seguiram-se muitos outros
defensores do movimento” explica João Manuel Oliveira, investigador do ISCTE em
Psicologia Social e especialista em estudos de género15.

A ideia generalizada de que a masculinidade é a condição ‘normal’ do ser humano tem


sido um conceito recorrente ao longo dos anos. Em 1940, o National Institute of Aging,
americano, iniciou um estudo de longa duração sobre o Envelhecimento Humano Normal
[Normal Human Aging], contando com o contributo de cerca de 650 voluntários;
significativamente, só 38 anos depois se consideraria relevante incluir dados correspondentes
àquela parte da população que sofre da ‘anormalidade’ de ser do sexo feminino. 16 Também
por esta altura, os fundos eram escassos para a pesquisa em doenças que ocorrem
exclusivamente em mulheres, como o cancro nos ovários. Mais caricato ainda, até ao começo
da década de 1990, praticamente todas as experiências médicas e investigações usavam
sujeitos masculinos, ao ponto de se usarem unicamente ratos machos nas experiências, ainda
que o sexo das cobaias fosse irrelevante para o estudo em questão. 17

10
O Decreto n.º 4:676 de 19 de julho de 1918 veio autorizar o exercício da advocacia às mulheres, prática que
anteriormente lhes era vedada. Cf. “As mulheres em Portugal: datas e factos significativos”, Comissão para a
Cidadania e Igualdade de Género. [Consult. 28 dez. 2008] Disponível em http://tinyurl.com/9jgx2z
11
Só em 1969 a mulher casada deixa de precisar da autorização do marido para transpor a fronteira nacional,
através do Decreto-Lei n.º 49:317 de 25 de outubro, promulgado em 15 de outubro de 1969. Cf. “As mulheres
em Portugal: datas e factos significativos”, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. [Consult. 28 dez.
2008] Disponível em http://tinyurl.com/9jgx2z
12
Através do Decreto com força de lei n.º 19:694 de 5 de maio de 1931, para eleição dos vogais das Câmaras
Municipais, é expressamente reconhecido o direito de voto às mulheres com cursos superiores ou secundários
(artigo 2.º n.º 5) enquanto que aos homens apenas é exigido “(…) [serem] maiores de vinte e um anos, que por
qualquer diploma de exame público provem saber ler, escrever e contar (…)” (artigo 2.º n.º 1). Cf. “As mulheres
em Portugal: datas e factos significativos”, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. [Consult. em 28
dez. 2008] Disponível em http://tinyurl.com/9jgx2z
13
Cf. Sérgio de Andrade, “Bravo, minha senhora!”, Jornal de Notícias, 2008-03-18. [Consult. 12 Dez. 2008]
Disponível em http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=924207
14
Cf. Isabel Freire, “Homens Feministas”, Gingko, n.º 6, setembro 2008, pp. 67-71
15
Idem
16
Cf. NIH Publication n.º 80-134 (reprinted August 1980) [Consult. 17 Dez. 2008]. Disponível em
http://www.grc.nia.nih.gov/blsahistory/blsa_2.htm
17
Ellen Goodman, “’People’ Studies Exclude Females” in The Clarion-Ledger (Missouri), 24/06/1990 apud
Robert S. McElvaine, op. cit., p. 378.

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Em muitas regiões do mundo os casais preferem filhos em detrimento de filhas, o que


resulta num pesado ónus sobre o sexo feminino que vai desde o aborto ao infanticídio. Nos
EUA há uma prática crescente de seleção sexual pelos pais. A amniocentese ou os ultrassons
são utilizados para determinar o sexo do feto, o qual é consequentemente abortado se não for
o sexo desejado. Num inquérito realizado em 1994 pela National Public Radio, nenhum
médico obstetra com quem esta prática foi discutida conseguia recordar um caso em que um
rapaz fosse abortado por os pais quererem uma menina; em contrapartida, em todos os casos
de aborto motivado por seleção sexual, o sexo que não era desejado era o feminino.18

Noutro ângulo:
“(…) A facilidade com que se recorre ao insulto, muito particularmente se o objeto
visado é uma mulher, tornou-se uma das marcas do comportamento da sociedade em Portugal.
Insultar instintivamente mulheres sempre que possível e vestir roupas de mulher no Carnaval
parece ser o fado de muito macho lusitano de todas as classes, políticos, juristas, empresários.
Quando faltam ideias, estratégias ou argumentos, escolhem-se formas de insultar e dá-se
largas à boçalidade. Insiste-se nisso e não resulta. (…) Desta vez, foi o tal ataque instintivo
pela via mais fácil e habitual do eterno humilhar do feminino. Tratando-se de uma mulher,
não pode, no Mundo segundo Rui Gomes da Silva, ter ideias próprias nem carreira
independente. Para este ayatollah, até ser repudiada, a mulher é uma extensão do seu
companheiro masculino e tudo o que faz é para o servir ou a seu mando. Para ele, pelo que
disse, tudo o que eventualmente uma mulher possa conseguir é prémio do maior ou menor
‘relacionamento’ com um macho protetor. Para este mullah, a mulher não tem existência
independente. O problema é que Rui Gomes da Silva não é o único a pensar e a manifestar
despudoradamente este fundamentalismo na nossa vida pública. Se uma mulher tem o azar de
cair no desagrado de um qualquer operador com acesso aos media, tem garantido um rol de
insultos e enxovalhos públicos. Se está no Parlamento, claro que a sonância do termo
deputada passa a ganhar um conteúdo injurioso cheio de cargas reles e cobardes porque,
obviamente, em termos jurídico-formais o seu uso não é passível de sanção. Portanto, insulta-
se impunemente com crueldade, crueza e assinalável cobardia. Por extraordinário que seja,
esta condição de ser mulher na vida pública em Portugal ainda é uma fragilidade tão gritante
quanto Simone de Beauvoir a identificou no seu Segundo Sexo: «Quando me pedem para me
descrever, tenho de começar por dizer que sou mulher». Esta perceção de menoridade
associada à condição feminina é um dos sintomas do nosso real atraso. Um primitivismo que
se reforça e propaga quando vultos da nossa vida pública não hesitam em marcar com os
ferretes da injúria pessoas dignas que são mulheres. Esta injúria ao feminino é antiga, é
recente e é presente em Portugal. Foi lastimável há uns anos que a opção política tomada por
uma senhora tenha sido equiparada, num lamentável escrito num jornal importante, à fugaz
carreira no Parlamento italiano de uma atriz porno. Não refiro nomes para não causar mais
desconforto às pessoas já maltratadas. Refiro os factos para dizer que isto ainda se faz hoje
nos jornais e no discurso público e não pode ser tolerado. Como leitor, é com profundo asco
que constato na Imprensa de referência este género de prática reiterada sem qualquer sanção
social ou reparo editorial. No caso de senhoras no Parlamento, a potencialidade de ofender
que os pacóvios encontram no termo é óbvia. Mas, se não estiverem no Parlamento, há

18
Weekend Edition (National Public Radio), 11/09/1994.

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sempre uma qualquer construção semântica que inclua, com ou sem propriedade, o termo
putativa para levar o insulto mais longe e humilhar mais. Tanto quanto ele vale aqui fica o
meu enojado desagrado registado. É saloio insultar. É boçal e é cobarde estar a escolher
insultos com palavras comuns que soam a injúrias ou a insinuar ‘razões que todos conhecem’
para tentar desgastar pela ofensa aquilo que não se consegue obter com frontalidade leal.
Envergonhem-se e calem-se.”19

No seu relatório relativo a 2003, a Organização Internacional do Trabalho estima o


número de desempregados em 6,2% da população ativa do planeta. Uma pequena subida em
relação a 2002, quando a OIT calculou o número de desempregados em 185,4 milhões de
pessoas. Destes números, uma percentagem significativa são mulheres. Com 1,208 mil
milhões de trabalhadoras (1,006 em 1993), as mulheres já representam mais de 40% da mão
de obra mundial, sublinha esta organização no relatório intitulado ‘Tendências mundiais do
emprego para as mulheres’. Porém, as mulheres são também mais afetadas pelo desemprego,
sobretudo as jovens: cerca de 35,8 milhões de mulheres com idades entre os 15 e os 24 anos
procuram emprego em todo o mundo, ou seja, perto de metade do total de mulheres
desempregadas (77,8 milhões). “Ser mulher e jovem pode implicar uma dupla discriminação”,
diz a OIT. “As jovens têm dificuldade de entrar no mercado de trabalho e de conservar o
emprego em períodos de abrandamento económico”. Os empregos que ocupam são também
mais precários, caracterizados por salários muito baixos, rendimentos irregulares, pouca ou
nenhuma segurança de trabalho e ausência de proteção social. Em consequência disso,
constituem a maior parte da categoria de ‘trabalhadores pobres’, dispondo de menos de um
dólar por dia [cerca de €0,78, correspondendo a um salário-base de cerca de €23,50 por mês
ao câmbio atual] representando 60% da população, ou seja, 330 milhões de indivíduos.
Finalmente, “as mulheres são pior pagas do que os homens em todo o mundo”, usufruindo, na
melhor das hipóteses, de 90% do salário dos seus colegas masculinos, além de constituírem
70% do 1,3 biliões de pessoas que vivem na pobreza em todo o mundo, realizando cerca de
66% do trabalho mundial e recebendo menos de 5% dos rendimentos.20 21

“Ouvimos e dizemos que a vida é injusta, mas o que este relatório demonstra é que a
vida é dramaticamente injusta para as mulheres”, assim declarava a administradora do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, na apresentação, em 1995, de uma

19
Cf. Mário Crespo, “Envergonhem-se e calem-se”, Jornal de Notícias, 21-4-2008 [Consult. 28 dez. 2008].
Disponível em http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=934312.
20
Cf. “Desemprego e Precariedade Laboral Ameaçam as Trabalhadoras”, Jornal Público [Consult. 18 mar.
2004] Disponível em http://tinyurl.com/6koguf
21
Cf. http://www.actionaid.org.br/p/pdf/gender.pdf [Consult. 18 mar. 2004].

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pesquisa mundial sobre a condição feminina.22 Em 6 de março de 2008, a mesma OIT


publicou, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, um relatório intitulado ‘Tendências
Mundiais do Emprego das Mulheres’ no qual se salienta que, embora o número de mulheres
no mercado de trabalho seja o mais alto da História, estas trabalhadoras estão mais expostas
que os homens a trabalhos de baixa produtividade, mal pagos e vulneráveis, sem proteção
social ou direitos.23

Se estas afirmações ainda podem ser feitas com relevância em finais do séc. XX e
princípios do séc. XXI, serão certamente aplicáveis aos últimos cinco milénios acerca dos
quais temos alguma informação sobre o modo como as pessoas viviam. Mas porquê? Serão os
homens naturalmente dominantes como é subjetivamente entendido pelas sociedades
contemporâneas? E, em caso afirmativo, quando e como é que isso aconteceu? E por que
motivo os homens consideraram do seu interesse essa dominação? Que significou a
subordinação feminina para a sociedade em geral? Terá a História sido moldada de forma
drástica pela crença na inferioridade feminina?

Segundo a tradição judaico-cristã, a resposta para o tratamento diferenciadamente


negativo da mulher reside na punição imposta por Deus ao pecado original perpetrado por
Eva, pelo que não se tratará de um tratamento injusto mas sim de um castigo.

Outra explicação reside na hipótese de os homens terem usado a sua relativa


superioridade física para impor a sua vontade sobre as mulheres, começando desde a Pré-
História a usar a força bruta para estabelecerem um ascendente, que perdura até aos dias de
hoje nos seus descendentes, de modos mais refinados.

Terá sido apenas a incapacidade dos homens de gerar e nutrir por si próprios os filhos
que levou à insegurança masculina? A qual, por seu turno, conduziria à afirmação de que as
mulheres são, por natureza, inferiores, escondendo o secreto receio de que, em certos aspetos,
seriam, por natureza, superiores? Assim, implementava-se a ideia de que a mulher era
culturalmente inferior excluindo-a de certas atividades ou de certos papéis, visando

22
Barbra Crossette, “U. N. Documents Inequities for Women as World Forum Nears”, The New York Times
[Consult. 18 mar. 2004]. Disponível em http://tinyurl.com/6bcddo
23
Cf. http://www.cite.gov.pt/cite/destaques/Notic21.htm, site da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no
Emprego [Consult. 14 dez. 2008].

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compensar aquilo que os homens não podiam efetuar, por aquilo que se impediam as
mulheres de desempenhar.

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3.- Desvalorização feminina na História

Ao longo da História muitos foram os pretextos e as oportunidades de estabelecer uma


dominação masculina nas sociedades. Como será exposto adiante, tudo começa com a
mutação da Deusa-mãe, nutridora e protetora, em Deus-pai, bélico e agressor. O mito de Adão
e Eva será o corolário dessa inversão de termos, não apenas em termos mitológicos como
também em termos da distribuição de tarefas entre homem e mulher. O receio da perda de
protagonismo masculino, já em parte esvaziado com a menor necessidade de caçar fruto da
sedentarização das populações, leva a que se transforme aquilo que até aí era
reconhecidamente feminino, a conceção, numa prerrogativa atribuível exclusivamente ao
homem passando a mulher a constituir apenas um reservatório de incubação. Daí até surgir a
caça às bruxas foi meramente mais um passo, pois não só as mulheres começavam a adquirir
certo protagonismo na sociedade, como continuavam a deter um invejável entendimento dos
mistérios femininos relacionados com a conceção.

3.1- A Deusa-mãe torna-se Deus-pai.24


O ser humano de há cerca de 35 ou 40 mil anos atrás, época em que se calcula que
tenha aparecido o homem de Cro-Magnon, nosso antepassado direto, sobrevivia penosamente
num mundo extremamente hostil, onde conseguir alimento constituía verdadeira proeza. O
frio era intenso – temperaturas da ordem dos doze a quinze graus centígrados 25 no pico de
julho e Invernos com temperaturas entre 30º e 40º negativos 26 – no auge da última glaciação.
A caça pequena escasseava e matar um bisonte, um mamute ou um urso não era tarefa fácil,
exigindo vários caçadores – que na maior parte das vezes corriam sério risco de vida ou de
ferimentos graves como atestam as fraturas encontradas nas ossadas datadas das idades do
gelo – e grande dispêndio de energia – que também não era abundante dada a má nutrição – o
que não os deixava mais fortes. Só a primavera permitia um enriquecimento da dieta com
frutos selvagens e aves tenras.

24
Cf. Gerald Messadié, História Geral de Deus – Da Antiguidade à Época Contemporânea, Mem-Martins,
Publ. Europa-América, 2001, pp. 33-78.
25
Richard Leakey, Roger Lewin, Les Origines de l’Homme, Yves Coppens (pref.), Arthaud, 1977 apud Gerald
Messadié, op. cit., p. 55.
26
“Climate and Weather”, The New Encyclopaedia Britannica, 1994 apud Gerald Messadié, op. cit.

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Fig. 1 – A Deusa-mãe
personificada na “Vénus”
de Willendorf.

Assim enfraquecidos, todos ficavam expostos à doença, em particular as mulheres que


sofriam com a esterilidade e os abortos; a relação entre reservas de gordura, fecundidade,
escorbuto ou septicemia, embora apenas tenha sido percebida nos tempos modernos,
influenciava de forma igualmente marcante o homem primitivo. A criança que nascia era
regularmente ameaçada pelo raquitismo, pelas feras ou pela má nutrição; sem uma tribo 27 que
a protegesse, não teria muito tempo de vida, indo servir de refeição aos igualmente
esfomeados tigres dentes-de-sabre, ursos e leões das cavernas, entre muitos outros predadores.

Deste modo não será de estranhar que na arte da Pré-História, a morte fosse associada
a figuras femininas magras e a fecundidade a figuras femininas anafadas. Embora se ignore o
tempo médio de vida dos hominídeos de então, pode facilmente conjeturar-se que as fêmeas
da espécie – esgotadas por sucessivas gravidezes e mal nutridas – não durassem muito, sendo
vistas como um bem a preservar, inconscientemente defendendo a sobrevivência comum.

Com o fim da última Era Glacial, há cerca de dez mil anos atrás, o clima sofre uma
mutação tornando-se progressivamente mais quente, criando as condições favoráveis ao
aparecimento da agricultura. No chamado Crescente Fértil – faixa em forma de meia-lua que
se estende do Golfo Pérsico à Península do Sinai, desde o vale do Nilo aos contrafortes dos
Montes Zagros no Irão, incluindo Israel, a Jordânia Ocidental, o Líbano, a Síria Ocidental os
contrafortes do Monte Taunus e ainda uma franja do Iraque – a presença dos rios Tigre,
Eufrates e Jordão permitiu a irrigação apesar da aridez da região, bem como cultivo da cevada
e de duas variedades de trigo28.
27
N.A.: O termo “tribo” é aqui empregue num sentido lato, querendo significar apenas uma forma primitiva e
rudimentar de sociedade.
28
Cf. “Crescente Fértil” in Diciopédia 2003, op. cit.; Gerald Messadié, op. cit., p. 73.

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Fig. 2 – A Deusa da
Fertilidade de Çatal
Hüyük.

Numa demonstração feita pelo Prof. Jack Harlan, docente de Ciências Agrárias da
Universidade de Oklahoma, em 1966, colheu-se nas encostas de um vulcão na Turquia
Oriental um trigo selvagem como aquele que teria interessado aos caçadores-recolectores
primitivos e futuros agricultores. Servindo-se de uma foice em sílex com cerca de nove mil
anos, colheu numa hora 2,8 kg que, após a debulha, lhe renderam 2 kg de um cereal 50% mais
rico em proteínas que o atual “trigo de inverno” americano e canadiano. As populações do
Neolítico não saberiam certamente reconhecer este valor proteico, mas não poderiam ter
deixado de reparar nas qualidades alimentícias deste cereal; não terá sido difícil calcular que
dez homens em dez horas poderiam colher 200 kg, algo muito mais seguro e compensador
que perseguir um animal com lança e flechas 29. E, por falar em animais, porque não os ter
próximos em vez de correr montes e vales em sua perseguição? A domesticação de animais
começaria sensivelmente nesta altura, sendo criados pela sua carne, lã, leite e pela sua força.

29
Gerald Messadié, op.cit., p. 57.

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Fig. 3 – Crescente fértil

Gigantesca revolução: o ser humano é, pela primeira vez, produtor de alimentos. Já


não precisa de mendigar a sua subsistência junto da natureza, já não precisa de ir arrancar o
seu vestuário ao dorso dos animais, tornou-se o mestre que produz através do seu trabalho
aquilo de que necessita para viver.

Claro que isto exigia a sedentarização das populações. Era imperioso habitar junto das
terras semeadas quer para colher o fruto do trabalho quer para o proteger das investidas dos
que pretendiam aproveitar-se dele; também não seria prático criar animais longe dos locais de
habitação. Assim, com o cultivo e as manadas estabeleciam-se trocas entre povoados, em que
cada um escoava os seus excedentes, o que permitia o desenvolvimento da indústria mineira e
metalúrgica. A rapina, por seu lado, também encontrava terreno fértil, pois as populações
mais desfavorecidas tendiam a efetuar razias às mais ricas. Enquanto o instinto maternal
retinha as mulheres junto das crianças, os homens iam lutar contra os que tentavam roubar-
lhes os dividendos do seu trabalho árduo; o chefe do povoado ou da aldeia não era o que tinha
mais experiência mas sim o que melhor manobrava o chuço. Nascia o deus da guerra e a
comunidade iria conhecer a partir daí duas divindades supremas: a que dá a vida e aquela que
a protege.

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Fig. 4 – Deusa-mãe minoica.

Todavia, se a urgência da fecundidade e da fertilidade estava um pouco atenuada, não


tinha de modo nenhum desaparecido. A Grande Deusa protegia as colheitas contra a seca e as
intempéries, os grãos contra os ratos e o gorgulho, os animais contra as doenças que podiam
dizimar manadas inteiras; era importante render-lhe culto para assegurar a sobrevivência. Por
outro lado, convinha que o desfecho dos inúmeros e inevitáveis conflitos que surgiam pela
posse do produto do labor da comunidade fosse favorável aos defensores e não aos atacantes,
pelo que se impunha a homenagem a um deus de igual poder em relação à Grande Deusa.
Começaria aqui um progressivo e gradual declínio da Deusa-mãe em favor de um deus
masculino, que começava a ganhar ascendência.

Os deuses masculinos transportados na bagagem dos indo-arianos através dos Celtas,


seus descendentes indo-europeus, percorreram um longo caminho desde o norte da Índia até
aos confins da Europa. Na sua maior parte deuses guerreiros, a sua aparição não seria fruto do
acaso mas sim motivada por mudanças climáticas. Tendo saído mais cedo da última glaciação
que a tinha afetado tanto como ao resto do mundo, a Índia sofreu uma transição brusca (em
alguns séculos ao invés de em alguns milénios) para um clima mais quente do que antes, o
que, obviamente, resultou em alterações na fauna e na flora, agora muito mais abundantes.

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Fig. 5 – Divindade masculina celta.

Uma vez que a necessidade de sobrevivência deixara de ser tão premente, sobrava
tempo para a exploração de novos territórios, para a competição física e, por fim, a guerreira.
À medida que as terras ficavam exauridas pela sobre-exploração, tornava-se necessário partir
em busca de outras e este nomadismo conquistador certamente provocaria conflitos com as
populações que surgiam no caminho, pelo que uma organização semimilitar da sociedade
comandada por homens era a resposta adequada. Um povo (nesta altura já se podia falar em
povos) personificou este modelo de sociedade: os Árias ou Arianos, provenientes do Irão.
Modelarão o mundo tanto a Este, avançando sobre a Índia e outros territórios orientais, como
a Oeste, em direção à Europa.

Nas suas conquistas encontravam frequentemente cultos à Deusa-mãe, mas, à medida


que alargavam e afirmavam a sua influência, iam impondo as suas ideias e os seus sistemas de
governo; o universo passaria a pertencer aos homens, desde o céu ao inferno. Deus, ou Ahura
Mazda, e o seu inimigo, o Diabo, ou Ahriman, seriam homens; as mulheres ficavam remetidas
ao papel de consolo dos guerreiros e de procriadoras da sua descendência, pois, segundo o Rig
Veda ou Livro dos Hinos, conjunto de textos sagrados coevos, “O espírito da mulher não
suporta a disciplina. O seu intelecto tem pouco peso.”30 Doze séculos antes da nossa era e com
absoluta clareza, surge caracterizado o machismo que irá influenciar o conjunto das culturas
ocidentais, conduzindo progressivamente à conceção de um deus masculino único, base dos
três monoteísmos atuais.

30
“(…) The mind of woman brooks not discipline, Her intellect hath little weight”. Hino XXXIII Indra, linha 17,
p. 325 [Consult. 28 abril 2010]. Disponível em http://tinyurl.com/33ylueo

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3.2 – O mito de Adão e Eva revisitado31

Este é um mito sobejamente conhecido. Será, seguramente, o mais conhecido do


mundo ocidental ou mesmo do mundo inteiro. Muitos Judeus e Cristãos aceitam os primeiros
capítulos do Livro do Génesis como um registo exato e acreditam que os acontecimentos aí
relatados moldaram o curso de toda a História subsequente. Todavia as descobertas científicas
dos últimos séculos, não levando já em conta as flagrantes contradições na história do
Génesis32, tornaram impossível para pessoas instruídas levar a história de Adão e Eva e do
Jardim do Paraíso a sério. Tem sido encarado nos meios intelectuais como apenas outro mito,
significativo apenas para considerar como a crença nele influenciou a visão e as ações das
pessoas na história recente.

Contudo há uma diferença entre olhar para uma história de forma literal ou olhá-la de
forma séria. Os mitos podem, por vezes, ser quase tão reveladores sobre os temas de que são
eco, como a mais objetiva análise histórica. A história da expulsão do Paraíso contida no
Génesis33 deverá ser vista de forma séria, conquanto não literal, como um reflexo de

31
Cf. Robert S. McElvaine – Eve’s Seed: Biology, the Sexes and the Course of History.
32
Génesis 1:27, “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou.”;
Génesis 2:18,21-23, “E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só: far-lhe-ei uma adjutora que
esteja como diante dele.”, “Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu: e
tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;”, “E da costela que o Senhor Deus tomou do
homem, formou uma mulher: e trouxe-a a Adão.”, “E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da
minha carne: esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada.”. Cf. Bíblia Sagrada e Chave Bíblica,
João Ferreira Almeida (trad.). N.A.: numa primeira fase Deus cria o homem em duas versões: macho e fêmea;
posteriormente decide criar Eva a partir de uma costela de Adão…
33
Génesis 2:15-17, “E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.”, “E
ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente,”, “Mas da árvore
da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.”;
Génesis 3:1-13, “Ora a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito.
E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?”, “E disse a mulher à
serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,”, “Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim,
disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.”, “Então a serpente disse à mulher:
Certamente não morrereis.”, “Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e
sereis como Deus, sabendo o bem e o mal.”, “E vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e
agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu
marido, e ele comeu com ela.”, “Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e
coseram folhas de figueira e fizeram para si aventais.”, “E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no
jardim pela viração do dia: e escondeu-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do
jardim.”, “E chamou o Senhor Deus a Adão e disse-lhe: Onde estás?”, “E ele disse: Ouvi a tua voz soar, e temi
porque estava nu, e escondi-me.”, “E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que
te ordenei que não comesses?”, “Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da
árvore, e comi.”, “E disse o Senhor Deus à mulher: Por que fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me
enganou, e eu comi.”; Génesis 3:16-19, “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua
conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.”, “E a Adão disse:
Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela:
maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.”, “Espinhos, e cardos também,

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acontecimentos-chave ocorridos na Pré-História34 que são a base sobre a qual foi construída a
cultura ocidental.

Fig. 6 – Adão e Eva.

Uma das características que distingue os seres humanos relativamente às outras


espécies é a sua incrível adaptabilidade, a habilidade única de alterar a equação entre os
organismos e o ambiente que os rodeia; não apenas conseguem adaptar-se a mudanças
ambientais, como também procedem a importantes modificações no meio em que vivem. A
mais significativa destas transformações foi certamente o cultivo intencional de grandes
quantidades de plantas comestíveis e a criação de animais. Estas duas atividades anularam a
contingência que pesa sobre todos os animais: a de estar dependente de reservas alimentares
que ocorram naturalmente. Isto iria transformar a vida humana de forma muito mais drástica
que qualquer das anteriores modificações produzidas pela mão do Homem, desde a confeção
de utensílios à descoberta do fogo.

Para ajuste às novas circunstâncias, foi necessária uma mutação cultural significativa
que servisse de transição entre uma natureza humana adaptada à vida em pequenos bandos de

te produzirá; e comerás a erva do campo.”, “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra;
porque dela foste tomado: porquanto és pó e em pó te tornarás.”; Génesis 3:22-24, “Então disse o Senhor Deus:
Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, pois, para que não estenda a sua mão, e tome
também da árvore da vida, e coma e viva eternamente:”, “O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden,
para lavrar a terra de que fora tomado.”, “E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim
do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida.”. Cf. Bíblia
Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.
34
N.A.: o termo “Pré-História” é aqui tomado num sentido abrangente e não corresponde a uma época
específica.

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caçadores-recolectores em regulares migrações, para outra de comunidades totalmente


sedentárias.
Deste modo, os primeiros capítulos do Génesis contam sobre a criação de um paraíso
auto sustentável no qual os seres humanos tinham tudo aquilo de que careciam sem qualquer
esforço. Não havia necessidade de intervenção humana para produzir comida no Éden 35 e esta
abundância estava disponível para ser colhida, ou seja, para a recolha e recoleção. Porém este
Paraíso seria perdido se o homem comesse do único fruto que era proibido: aquele da Árvore
do Conhecimento36, ou seja, o fruto resultante do conhecimento adquirido pelos seres
humanos sobre como produzir comida, que os obrigaria a trabalhar a terra com o suor do seu
rosto para obter o alimento.37

Trata-se simplesmente de um lamento pelo facto de ser necessário trabalhar duramente


na agricultura (o conhecimento), enquanto que a há muito acabada vida de caçador-recolector
(agora tornada num Paraíso perdido) era uma de dádiva sem trabalho, em que as pessoas
viviam muito bem só precisando de colher os frutos das árvores quando tinham fome. Seria
certamente uma idealização, uma nostalgia de um passado radiante que nunca existira, pois
efetivamente a agricultura exigiria maior disciplina e trabalho mais árduo e mais organizado
que a caça ou a simples recolha de alimentos.

Mas então porquê culpar a mulher por ter colhido o fruto do conhecimento?

É provável que tenha sido a mulher a inventar ou descobrir a agricultura. Apesar de


não poder ser concludentemente provada, esta afirmação tem vindo a ser comummente aceite
nos anos mais recentes graças à junção de evidências de cariz antropológico, arqueológico,
mitológico ou religioso, que se combinam para mostrar que há muito maior probabilidade de
ter sido a mulher e não o homem a descobrir ou inventar a agricultura. Aliás, a única razão
pela qual se tem desde sempre assumido que teriam sido os homens a inventar a agricultura é

35
Génesis 2:9, “E o Senhor Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista e boa para comida: e a árvore
da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal”. Cf. Bíblia Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.
36
Génesis 2:16-17, “E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo : De toda a árvore do jardim comerás
livremente.”, “Mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás ; porque no dia em que dela
comeres, certamente morrerás”. Cf. Bíblia Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.
37
Génesis 3:17-19, “E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te
ordenei, dizendo: Não comerás dela: maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua
vida.”, “Espinhos e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo.”, “No suor do teu rosto comerás o
teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado: porquanto és pó, e em pó te tornarás”. Cf. Bíblia
Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.

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por, reflexivamente, se considerar que eles desempenharam tudo o que foi relevante para a
História.

Plantas comestíveis constituíam uma área sob a responsabilidade das mulheres nos
bandos de caçadores-recolectores, pelo que será razoável considerar que foram as mulheres
que primeiramente levaram a cabo o cultivo intencional e sistemático de plantas,
provavelmente quando as mudanças climáticas reduziram a quantidade de plantas que
cresciam naturalmente. As mulheres conheciam as plantas e, porque eram elas quem
preparava a comida, teriam sido as primeiras a reparar no que sucedia após as sementes
caírem à terra.

Fig. 7 – Tentação e expulsão


do Paraíso representadas por
Miguel Ângelo nos frescos
da Capela Sistina. (Fall and
Expulsion, 1509-1510,
Bridgeman Art Library).

Muitas religiões antigas e muitos mitos atribuem a invenção da agricultura a uma


deusa. Estelas encontradas na Mesopotâmia, por exemplo, agradecem à deusa Ninlil ter
ensinado às pessoas a agricultura. Outros mitos mesopotâmicos consideram a deusa Nisaba
como a responsável pelo crescimento dos grãos e a fundadora da civilização e do
conhecimento. Os egípcios atribuíam à deusa Ísis, conhecida como a “Senhora do Pão” e
“inventora de tudo”, o começo da agricultura. Os gregos referiam a deusa Demeter como
aquela que ensinou às pessoas a agricultura. Também a serpente do Jardim do Paraíso no

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Génesis representará uma deusa, como é intuído por Miguel Ângelo ao representar a cabeça e
o torso de uma mulher no topo da serpente tentadora de Eva; além disso a serpente era
frequentemente associada a divindades femininas quer nos tempos pré-históricos quer nos
tempos antigos, possivelmente porque a mudança de pele dos répteis era associada à
menstruação feminina.38 Todos estes mitos contribuem para o fortalecimento da tese de que
foi a mulher a descobrir ou inventar a agricultura.

A ligação entre uma existência mais sedentária – facilitando à mulher o nascimento de


outro filho enquanto o primeiro ainda era criança – e uma fonte de alimentos com que se
poderia sempre contar, produziu um crescimento populacional sem precedentes, o que trouxe
outra importante transformação. Os bandos de caçadores-recolectores não obtinham grande
proveito de terem famílias grandes, não apenas porque os juvenis não poderiam logo
contribuir para o seu próprio sustento, mas também porque estes grupos viviam sob o
princípio do equilíbrio, pois os animais e as plantas de que dependiam para a sobrevivência
existiam em quantidades limitadas e, uma vez que não conheciam formas de aumentar o
fornecimento de comida, o benefício trazido pelos pares de mãos extra era suplantado pelo
perigo derivado dos estômagos adicionais que era preciso encher; quando os recursos são
escassos, o acréscimo do número de pessoas irá consumir o alimento necessário às que já
existem, pelo que o crescimento demográfico constitui uma ameaça. A radical alteração
ambiental trazida pela agricultura impulsionou os seres humanos a uma mais prolífica
reprodução procurando tirar provento da maior abundância de recursos. Isso mesmo é
interessantemente defendido em Génesis 1:28: “E Deus os abençoou, e Deus lhes disse:
Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a (…)”. 39 Antes do desenvolvimento da
agricultura e da criação de gado, tais mandamentos seriam um convite ao desastre, tal como o
são no mundo superpovoado atual.
“Os papéis económicos do homem e da mulher estão diferenciados em todos os grupos
de caçadores-recolectores que sobrevivem, algo comum a todas as sociedades humanas até ao
nascimento da agricultura dez mil anos atrás. Os homens invariavelmente passavam mais
tempo caçando grandes animais, enquanto que as mulheres passavam mais tempo recolhendo
plantas comestíveis ou pequenos animais e cuidando das crianças.”40

38
Cf. Robert S. McElvaine, op. cit., p. 90, 100.
39
Cf. Bíblia Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.
40
Jared Diamond, Why Is Sex Fun?, New York, Basic Books, 1997, p. 91 apud Robert S. McElvaine, op. cit.,
p. 107.

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Durante as longas eras que os seres humanos passaram como caçadores-recolectores,


ambos os sexos tinham claros e obviamente úteis papéis. As mulheres produziam,
alimentavam e cuidavam da descendência e também contribuíam com muita – senão a maior
parte – da comida para o grupo através da recoleção. Os homens tinham a seu cargo o grosso
da caça, contribuindo com a altamente valiosa carne, uma vez que as proteínas da carne são
de muito melhor qualidade em termos de aminoácidos essenciais que as encontradas na
maioria das plantas, algo instintivamente observado pelos primeiros hominídeos ao saciarem
melhor a fome com carne do que com plantas. Os homens tinham também a responsabilidade
de defender o bando contra os predadores. Uma vez que as mulheres podiam desempenhar
funções fora do alcance dos homens, estes provavelmente teriam já determinado as suas
próprias definições culturais de masculinidade em separação e oposição às de feminilidade,
permitindo-lhes considerarem-se superiores através de ritos de passagem à condição adulta ou
de iniciação como caçadores, algo que ainda hoje se pode observar em muitos povos
africanos. Contudo, havia uma aceitável divisão do trabalho, uma certa igualdade entre os
sexos.

Fig. 8 – Os novos papéis do


homem e da mulher depois de Eva
ter descoberto a agricultura, numa
interpretação de Johann
Ramboux.[pintor alemão (1790-
1866)]: Deus bane a mulher e o
homem do Paraíso (em segundo
plano), após o que a mulher fica
inteiramente ocupada com as
crianças e o homem tem de
ganhar a subsistência de ambos,
trabalhando arduamente o solo.

A agricultura veio mudar drasticamente as vidas de ambos os sexos. Uma vez que o
cultivo veio colocar ênfase no crescimento populacional, um dos tradicionais papéis da
mulher – a reprodução – surgiu ainda mais valorizado que antes. Gradualmente deixou de ser
uma importante produtora de comida – além da fiação, tecelagem e fabrico de cerâmica – para
se tornar produtora de crianças quase a tempo inteiro. O estatuto da mulher, que teria
presumivelmente subido após a sua descoberta da agricultura, começou a declinar à medida

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que era forçada a estar mais tempo entregue à reprodução e ao cuidar da descendência do que
à produção de alimento para a sua família e para a comunidade.41

Porém, por muito que a agricultura tenha alterado o modo de vida das mulheres, este
novo sistema teve um impacto ainda mais devastador nas vidas dos homens. “Transformou as
vidas dos homens para lá do imaginável. Ou, para ser mais exato, nos seus estágios iniciais
destruiu os seus antigos modos de vida e deixou-os livres para descobrir ou inventar para si
próprios outros, se pudessem e soubessem como.”42

À medida que a produção intencional de comida – incluindo a carne de animais


domesticados – começava a suprir quase todas as necessidades das sociedades, a caça ia
perdendo importância. Simultaneamente a necessidade de proteção contra os predadores
também ia declinando, graças à proliferação de comunidades agrícolas que iam afastando os
animais selvagens. Os homens iam assim sendo dispensados das suas funções tradicionais.
Cultivar plantas e domesticar animais não é uma questão de vencedores/perdedores como a
caça, mas sim de cultivadores/nutridores, ou seja, é um modo de vida essencialmente
feminino. Caçar envolve a obtenção de comida através da subjugação e conquista de outras
criaturas, características provavelmente desenvolvidas pelos homens para a defesa e que
foram depois aplicadas à caça. Cultivar plantas e domesticar animais não envolve conquista
mas nutrição, requerida para os frágeis organismos durante os períodos em que são mais
vulneráveis; aqui pode facilmente estabelecer-se um paralelo entre a agricultura/pecuária e o
cuidar das crianças, traduzindo uma ênfase em valores tipicamente femininos.

41
Margaret Ehrenberg - Women in Prehistory. Norman, University of Oklahoma Press, 1989, pp. 105-106
apud Robert S. McElvaine, op. cit., pp. 107-109.
42
Eric J. Hobsbawm - Industry and Empire – An Economic History of Britain since 1750. New York,
Pantheon, 1968, p. 80 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 109.

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Fig. 9 – O primeiro assassínio: Caim


mata Abel despeitado por ter sido
preterido por Deus em favor do
irmão, nas oferendas.

E, uma vez que a agricultura foi conotada com valores femininos, os homens passaram
a sentir-se algo excluídos, reprimindo os seus impulsos de cuidado e nutrição por serem
considerados incompatíveis com a masculinidade. Além disso, os homens que sempre lidaram
com animais, quer como caçadores quer como pastores, iriam olhar os que trabalhavam a
terra, isto é, os que se dedicavam a uma atividade ‘tipicamente feminina’, como não
pertencendo à categoria de ‘verdadeiros homens’. Cultivar plantas era um ‘trabalho de
mulher’ e, por conseguinte, impróprio para servir de oferenda a uma divindade masculina,
como é ilustrado na história de Abel e Caim constante do Génesis. 43 Deus mostra-se agradado
com a oferta de carne e despreza a de produtos da terra. De realçar que quem fica com o ónus
da culpa é Caim, o lavrador, que mata o irmão Abel, o pastor, ou seja, depois do pecado
original cometido por uma mulher, eis que o primeiro homicídio é cometido por um homem
que vive segundo os valores femininos.

Porém, ainda subsistia algo que constituía uma prerrogativa exclusivamente feminina:
a maternidade. De facto, se havia algo que os homens jamais poderiam alcançar era a
faculdade de dar à luz e nutrir a partir de si próprios a descendência e, nesse aspeto, as
mulheres estariam em vantagem.

43
Génesis 4:1-5, “E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e teve a Caim, e disse: Alcancei do
Senhor um varão.”, “E teve mais a seu irmão Abel: e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra.”,
“E aconteceu que ao cabo de dias Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor.”, “E Abel também trouxe
dos primogénitos das suas ovelhas, e da sua gordura: e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta,”, “Mas
para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente e descaiu-lhe o seu semblante.”. Cf. Bíblia
Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.

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3.3- Conceções da conceção

Não se sabe ao certo quando foi que os seres humanos perceberam o papel masculino
na procriação. Não será difícil acreditar que os hominídeos do Paleolítico tardio, cujos
cérebros equivaliam ao do Homem moderno, tenham já percebido uma relação entre a cópula
e a gravidez, se bem que de contornos misteriosos, possivelmente entendendo que uma
mulher teria de estar com um homem antes de conceber, embora o ato criativo parecesse ser
algo que a mulher fazia por si própria. Isso mesmo é demonstrado numa plaquinha de pedra
datando de cerca de 5000 a.C. proveniente de Çatal Hüyük (na atual Turquia), em que a arte
dos primórdios do Neolítico fez representar um homem e uma mulher enlaçados, seguidos de
uma mãe com uma criança.44

Fig. 10 – A deusa Azteca Tlazolteotl, a “Mãe dos


Deuses” e deusa do parto, gerando da forma
natural.

Assim, o dom de criar nova vida era um poder místico associado às fêmeas da espécie
e daí que muitas sociedades primitivas fossem matrilineares; seria difícil a pessoas que não
entendessem a existência da figura do pai traçar a sua ascendência a partir da linha masculina.
Um bom exemplo dessa dificuldade é dado pelos aborígenes australianos. A Austrália não
conheceu a agricultura senão com a chegada dos colonizadores ingleses no séc. XVIII, pelo
que constitui uma janela para a visualização de como as sociedades que não dispunham do
conhecimento obtido a partir da observação do processo de plantação de sementes e do seu
crescimento. As mulheres aborígenes acreditavam ser necessário um homem para ‘abrir o
caminho’ à criança, mas que os homens não tinham qualquer outro papel na procriação.
Recusaram-se a acreditar na realidade biológica desempenhada pelo sémen masculino,
quando lhes disseram. Uma mulher indicou inclusive uma prova concludente – para ela – de
que o homem nada tinha a ver com a reprodução, pelo facto de ter tido um filho alguns meses

44
James Mellaart, Çatal Hüyük, New York, McGraw-Hill, 1967, pp. 148 (Plate 83), 184 apud Robert S.
McElvaine, op. cit., p. 119.

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depois de o companheiro ter morrido; outra declarou perentoriamente, sumariando a filosofia


reprodutiva aborígene e talvez a das sociedades pré-agrícolas: “Ele, nada!”45

Muitas pessoas nas sociedades modernas poderão encarar com um sorriso


condescendente a ignorância destes povos ‘primitivos’, por estarem tão obviamente errados
acerca da reprodução. Todavia, ao longo da História, muitas pessoas ‘civilizadas’ aceitaram
uma noção igualmente errónea da conceção. Uma das mais importantes consequências do
desenvolvimento da agricultura foi substituir a visão errada expressa pelos aborígenes
australianos por outra, igualmente desacertada, mas de sentido oposto. Deste modo, a ideia de
que as mulheres possuem todo o poder reprodutivo foi invertida e substituída pela sua
antítese, pela qual são os homens que têm todo esse poder reprodutivo. Nenhum erro foi tão
importante como este no evoluir das relações entre ambos os sexos e, consequentemente, da
História em várias outras áreas.

Esta transição de um ato reprodutivo exclusivamente feminino para outro


completamente masculino, foi enormemente facilitada ou mesmo totalmente causada pela
emergência de uma irresistível metáfora que se desenvolveu à medida que o homem ia
tomando a seu cargo a tarefa de colocar sementes em sulcos abertos na terra. O processo de
plantação assemelhava-se extraordinariamente ao ato masculino de ‘plantar’ sémen no ‘sulco’
aberto na vulva da mulher.46 Não tardaria muito que o homem se apropriasse inteiramente do
poder de procriação até aí exclusivamente feminino, como é ilustrado em vários textos
antigos.

Depois de Zaratustra47, um texto antigo budista refere que “a filha deve obedecer ao
pai; a esposa, ao marido; por morte deste, a mãe deve obedecer ao filho”48.
Numa composição literária da Mesopotâmia do segundo milénio, intitulada «Cultiva a
Minha Vulva»49, a deusa Ishtar canta: “A minha vulva é um campo bem irrigado – quem o

45
P. M. Kaberry, Aboriginal Women – Sacred and Profane, Philadelphia, Blakiston, 1939, p. 43 apud Bruno
Bettelheim, Symbolic Wounds: Puberty Rites and the Envious Male, New York, Collier Books, 1962, p. 104
apud Robert S. McElvaine, op. cit., pp. 120, 121.
46
N.A.: De notar que a palavra “sémen” provém do Latim, significando “semente”.
47
Vide pág. 17
48
Cf. Pe. Anselmo Borges, “As mulheres na Igreja e na sociedade”, DN 2018-02-09 [Consult. 09 fev. 2018]
Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/as-mulheres-na-igreja-e-na-
sociedade-9107693.html
49
“Who Will Plow My Vulva? – Inanna as an Insatiable Goddess of Love”, Melissa Seims, The Wica [Consult.
28 mar. 2009]. Disponível em http://www.thewica.co.uk/whowp.htm

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cultivará?”50. Ao que Dumuzi, rei de Uruk, responde ansiosamente: “Dumuzi o cultivará para
ti.”51

Em As Euménides52 (458 a.C.), parte da trilogia Oresteia, uma das peças do trágico
grego Ésquilo (c. 525a.C. – 456 a.C.)53, são colocadas na boca de Apolo as seguintes palavras:
“Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe – ela somente é a nutriz do
germe nela semeado –; de facto, o criador é o homem que a fecunda; ela, como uma estranha,
apenas salvaguarda o nascituro quando os deuses não o atingem.” O Apolo de Ésquilo
continua: “Oferecer-te-ei uma prova cabal de que alguém pode ser pai sem haver mãe.” E
aponta para Atena, filha de Zeus. “Eis uma testemunha aqui perto de nós – Palas 54, filha do
soberano Zeus olímpico – que não nasceu nas trevas do ventre materno; alguma deusa poderia
por si mesma ter produzido uma criança semelhante?” 55 A lenda refere que Zeus engoliu
Métis, sua esposa então grávida de Atena, para evitar que a criança viesse um dia a destroná-
lo como ele fizera a seu pai Cronos; o deus ferreiro Hefesto colaborou no trabalho de parto ao
desferir um golpe de machado na cabeça de Zeus por onde nasceria Atena, completamente
adulta.56 Daí que a própria Atena, ainda na obra de Ésquilo, declare solenemente: “(…) Nasci
sem ter passado por ventre materno; (…)”57

Um século depois de Ésquilo, Aristóteles, cujo pensamento iria marcar profundamente


a cultura ocidental, perpetuava o erro fundamental criado alguns milhares de anos antes vendo
o pai como o agente único da procriação, argumentando exaustivamente a favor da
superioridade masculina: «Como o macho contribui para a geração e como o sémen produzido
pelo macho é a causa da prole.»58 Entendia, com toda a sua autoridade científica, que “A
mulher e a fêmea em geral está privada do calor que lhe daria a capacidade de gerar; ela é
incapaz de produzir sémen. Apenas o macho pode ser considerado como fecundo.” 59
Declarava que a mulher é essencialmente ‘um macho deformado’, pois “(…) a mulher é como
50
“My vulva is a well-watered field – who will plough it?” Vide supra.
51
“Dumuzi will plough it for you.” Vide supra, n. 47.
52
As três Fúrias que, segundo a mitologia, atormentavam as almas dos condenados no inferno. Cf. “Euménide”
in Diciopédia 2003, [CD-Rom], Conceição Pinheiro, Jorge Ferreira Silva, Pedro Cunha Lopes, (coord. edit.).
53
Cf. “Ésquilo” in Diciopédia 2003, op. cit.
54
Epíteto da deusa Atena, conhecida frequentemente pelo nome de ‘Palas Ateneia’. Cf. Wikipédia, The Free
Encyclopedia [Consult. 15 fev. 2009]. Disponível em http://pt.wiktionary.org/wiki/Palas
55
Ésquilo – Euménides [Consult. 15 fev. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/d77dkg
56
Cf. “Atena” in Diciopédia 2003, op. cit.
57
Vide supra n. 54
58
“Teoria da Geração Sexual”, Aristóteles – Da Geração dos Animais [Consult. 28 mar. 2009]. Disponível em
http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/HCTex-Aristoteles-Geracao.pdf
59
Sylvianne Agacinsky apud Magarita Rivière – O Mundo Segundo as Mulheres, Ed. Âmbar, 2000, p. 69.

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se fosse um macho impotente, pois é apenas por uma certa incapacidade que a fêmea é fêmea,
sendo incapaz de transformar o nutrimento em sémen” 60, por lhe faltar o spiritus ou ‘princípio
de Alma’, pois
“Embora seja necessário para a fêmea prover um corpo e a massa material, [tal] não é
necessário para o macho, porque não é na obra ou no embrião que as ferramentas do
fabricante devem existir. Enquanto que o corpo é da fêmea, é a alma que é do macho, pois a
alma é a realidade de um corpo em particular.”61

No antigo texto egípcio Instruções de Ptahhotep surge esta passagem: “Ela é um


campo fértil para o seu senhor”.62 No Hino a Aton, escrito durante o reinado do faraó
Akhenaton no séc. XIV a.C., o Deus-Sol é louvado porque “Plantou uma semente na
mulher.”63

No Alcorão, Allah diz ao Seu povo (isto é, aos homens): “As mulheres são como
campos para vós; portanto semeiem-nos à vossa vontade.”. Ou, noutra tradução: “As vossas
mulheres são os vossos campos, portanto cultivem-nos como quiserem.” 64 E ensina também
que “Os homens têm autoridade sobre as mulheres em virtude da preferência que Deus deu a
uns sobre outros”.

Também na Bíblia cristã abundam referências a esta metáfora: “Então disse Judá a
Onã: Entra à mulher do teu irmão, e casa-te com ela, e suscita semente a teu irmão. / Onã,
porém, soube que esta semente não havia de ser para ele; e aconteceu que quando entrava à
mulher de seu irmão, derramava-a na terra, para não dar semente a seu irmão. / E o que fazia
era mau aos olhos do Senhor, pelo que também o matou.” 65; “Também o homem, quando sair
dele a semente da cópula, (…) / Também todo o vestido, e toda a pele em que houver semente
da cópula, (…) / E também a mulher, com quem o homem se deitar com semente da cópula,

60
Aristotle – On Generation of Animals, Bk. 1, Ch. 20 [Consult. 9 maio 2009]. Disponível em
http://ebooks.adelaide.edu.au/a/aristotle/generation/book1.html
61
Aristotle – On Generation of Animals, Bk. 2, Ch. 4 [Consult. 10 maio 2009]. Disponível em
http://ebooks.adelaide.edu.au/a/aristotle/generation/book2.html
62
“She is a fertile field for her lord”. Cf. “The Instructions of Ptahhotep”, verso 20 [Consult. 7 Jan. 2009].
Disponível em http://www.humanistictexts.org/ptahhotep.htm
63
“The Hymn to Aten” [Consult. 7 Jan. 2009]. Disponível em http://www.touregypt.net/hymntoaten.htm
64
Al-Qur’an, Surah II, Al-Baqara (The Cow), linha 223. Cf. “The Holy Qur’an”, Islamic City, [Consult. 7 jan.
2009] Disponível em http://www.islamicity.com/mosque/arabicscript/2/2_7-11.htm
65
Génesis 38:8-10. Cf. Bíblia Sagrada e Chave Bíblica, op. cit. N.A.: repare-se no encorajamento explícito ao
adultério, como mandamento divino…

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(…)”.66 Noutros casos a importância dos órgãos sexuais masculinos é por demais evidente,
dado considerar-se que eram a “fonte da fertilidade que não deveria ser maculada”67:
“Quando pelejarem dois homens, um contra o outro, e a mulher dum chegar para livrar
a seu marido da mão que o fere, e ela estender a sua mão e lhe pegar pelas suas vergonhas”,
“Então cortar-lhe-ás a mão: não a poupará teu olho.”68

“As mulheres estão essencialmente feitas para satisfazer a luxúria dos homens. Não
permito à mulher ensinar nem ter autoridade frente ao homem, mas estar em silêncio” (São
João Crisóstomo). “A ordem justa só se dá quando o homem manda e a mulher obedece”
(Santo Agostinho). "Nada mais impuro do que uma mulher com a menstruação. Tudo o que
toca fica impuro” (São Jerónimo). Livro de Jesus filho de Sirach (Jesus Ben Sirá), também
conhecido como Eclesiástico: “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia da mulher”. 69
Tomás de Aquino, um dos Doutores da Igreja Católica, na sua Summa Theologicae
datada do séc. XIII, afirmava que uma criança “(…) recebe a sua forma somente por meio do
poder que está contido na semente do pai.” 70; proclamava ainda que “Entre os animais
perfeitos o poder ativo da geração pertence ao sexo masculino, e o poder passivo à fêmea”.
“A mulher é defeituosa e não geradora, pois o poder ativo da semente do macho tende
à produção de uma perfeita semelhança com o sexo masculino: enquanto que a produção de
uma mulher provém de defeito no poder ativo, ou alguma indisposição material.”.71

Os equívocos e animosidade que surgiram como consequência da descoberta pela


mulher do uso prático das sementes ainda constituem tema de debate na esfera religiosa na
atualidade. Em 1991, no sermão do Dia do Pai, o Cardeal John J. O’Connor de Nova Iorque
foi citado como tendo defendido “a incontestável masculinidade de Deus”. 72 A reação hostil
foi suficiente para que o prelado ‘clarificasse’ a sua posição alguns dias depois, dizendo que
tinha sido mal interpretado.73

66
Levítico 15:16-18. Cf. Bíblia Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.
67
Herbert G. May, Bruce M: Metzger, (edit.) – The New Oxford Annotated Bible with the Apocrypha. New
York, Oxford University Press, 1977, p. 247n apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 126.
68
Deuteronómio 25:11,12. Cf. Bíblia Sagrada e Chave Bíblica, op. cit.
69
Vide supra n. 48. Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Eclesi%C3%A1stico
70
Apud Alcuin Blamires, (edit.), Women Defamed and Women Defended: An Anthology of Medieval Texts,
Oxford (GB), Clarendon Press, 1992, p. 47 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 126.
71
St. Thomas Aquinas, Summa Theologicae, Part I, Question 92, Article 1, “Whether the woman should have
been made in the first production of things?”. [Consult. 7 jan. 2009] Disponível em
http://www.newadvent.org/summa/1092.htm
72
“Cardinal Avers that God Is Masculine” in Boston Globe, 18/06/1991 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p.
372.
73
Cf. Ari L. Goldman, “Cardinal Said God Is a Man? Not Really?”,The New York Times, 1991-06-22. [Consult.
7jJan. 2009] Disponível em http://tinyurl.com/a3n6kz

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Em 1992, um bispo católico americano dizia: “Uma mulher sacerdote é tão impossível
como é para mim dar à luz”.74 Repare-se na comparação usada pelo clérigo.
Como seria recitar o Credo usando a fórmula: “Creio em Deus, Mãe todo-poderosa,
criadora dos céus e da terra.”75
Foi um escândalo quando o Papa João Paulo I disse que Deus também é Mãe. Mas o
Papa Francisco disse recentemente que “Deus é Pai e é Mãe”.76

Em 1993, responsáveis católicos em Boston declararam nulos batismos oficiados por


um sacerdote que usou o preceito “Deus, nosso Criador, através de Jesus, o Cristo, pelo poder
do Espírito Santo” ao invés do tradicional (inequivocamente masculino) “Pai, Filho e Espírito
Santo”.77

Ainda em 1992, a Igreja de Inglaterra admite finalmente, após aceso debate (e por uma
margem de apenas dois votos), permitir a ordenação de mulheres sacerdotes; o Vaticano faz
saber que esta decisão constitui «um novo e grave obstáculo» à reconciliação entre as Igrejas
Anglicana e Romana; a Conferência Nacional de Bispos Católicos nos Estados Unidos
declara que está tão dividida sobre o papel das mulheres na Igreja e na sociedade que iria dar
por findo um esforço de nove anos para produzir termos em que os seus membros pudessem
concordar para a publicação de uma carta pastoral sobre o assunto.78

Então e Jesus? Escandalosamente, tinha discípulos e discípulas. Segundo o Evangelho


de São Lucas, “acompanhavam-no os Doze e algumas mulheres”, ensinava tanto homens
como mulheres, ficando em casa, por exemplo, de Marta e Maria. Deixou-se tocar e acarinhar
publicamente por uma prostituta, louvando o seu gesto de o perfumar e perdoou-lhe os
pecados. Seguiram-no até à morte, como se lê no Evangelho segundo São Mateus: “Junto à
cruz havia muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia, entre elas Maria

74
Cf. Peter Steinfels, “Ordination of Women Puts New Fire in Bishop’s Debate”, The New York Times, 1992-11-
18. [Consult. 1 dez. 2008]. Disponível em http://tinyurl.com/7jo6h7.
75
Vide supra n. 68
76
Idem
77
“Paulist’s Baptisms Are Called Not Valid”, Boston Globe, 1993-10-08. [Consult. 1 Dez. 2008] Disponível
[mediante pagamento] em http://tinyurl.com/79qd5k; “Without a ‘Father’ or ‘Son’, Baptisms Are Ruled
Invalid”, The New York Times, 1993-10-09. [Consult. 1 dez. 2008]. Disponível em http://tinyurl.com/9va45l.
78
Cf. William E. Schmidt, “Anglicans in Britain Vote to Let Women Be Priests”, The New York Times,
12/11/1992. [Consult. 1 dez. 2008] Disponível em http://tinyurl.com/96thlu; Cf. Peter Steinfels, “Catholic
Bishops in U.S. Reject Policy Letter on Role of Women”, The New York Times, 1992-11-19. [Consult. 1 Dez.
2008]. Disponível em http://tinyurl.com/7lqj8v; Cf. Richard N. Ostling, “The Second Reformation”, Time, 1992-
11-23. [Consult. 1 dez. 2008]. Disponível em http://tinyurl.com/8mxjeh.

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Madalena, Maria mãe de Tiago e José, e a mãe dos filhos de Zebedeu.” Contra a Lei,
defendeu a adúltera e curou a filha de uma estrangeira, a cananeia, bem como a mulher com
um fluxo de sangue, que o tocou. Contra os preceitos da época, que impediam normalmente
as mulheres de se dirigir aos homens em público, foi à samaritana - tinha tudo contra ela:
outro povo, herética, ia no sexto marido... - que Jesus se revelou como o Messias. As
primeiras testemunhas da ressurreição, da fé em que Jesus, na morte, não caiu no nada, mas
está vivo em Deus para sempre, foram mulheres, a começar por Maria Madalena, chamada
por Rábano Mauro e Tomás de Aquino a “Apóstola dos Apóstolos”.79

Fig. 11 - Maria Madalena


em ícone da Igreja
Ortodoxa Russa.

S. Paulo era misógino? Há textos temíveis: “As mulheres estejam caladas nas
assembleias, porque não lhes é permitido tomar a palavra e, como diz também a Lei, devem
ser submissas” (Primeira Carta aos Coríntios). “A mulher receba a instrução em silêncio, com
toda a submissão. Não permito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem,
mas que se mantenha em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi
Adão que foi seduzido, mas a mulher que, deixando-se seduzir, incorreu na transgressão”
(Primeira Carta a Timóteo). Hoje, os exegetas (intérpretes das Sagradas Escrituras) sabem que
estes textos não pertencem a São Paulo, são posteriores e interpolações indevidas. Como
poderiam ser de São Paulo, que está na base da tomada de consciência da igual dignidade de
todos, ao proclamar, na Carta ao Gálatas: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem
livre; não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus”? E não chamou
“Apóstola” a Júnia?80

Em 1994, na Carta Apostólica intitulada «Reservando a Ordenação Sacerdotal Apenas


para os Homens», o Papa João Paulo II reafirmava a posição da Igreja Católica de que a
ordenação de mulheres não é sequer um assunto aberto à discussão, usando o velho

79
Vide supra n. 68
80
Vide supra n. 68

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

argumento de que os apóstolos de Jesus eram todos homens 81 – o que equivale a afirmar,
seguindo este raciocínio, que os eclesiásticos da atualidade teriam de ser todos judeus,
pescadores e casados para serem como os apóstolos. Contudo, para a Igreja Ortodoxa Russa,
Maria de Magdala ou Maria Madalena, por exemplo, é considerada a “Santa Portadora de
Mirra” (para ungir o corpo morto de Jesus) ou “Igual-aos-Apóstolos”, sendo o mesmo grau de
importância atribuído nos Evangelhos apócrifos, isto é, aqueles não aceites pela autoridade
canónica.82 83

Em 1998, o Vaticano reafirmou a sua insistência de que as mulheres não podem ser
sacerdotes pela lei canónica, ameaçando assim com a excomunhão os fiéis que protestem
contra estes resquícios da crença na procriação exclusivamente masculina.84

Por fim, em 2000, a Convenção Batista defendeu uma tese comum à Igreja de Roma
ao proclamar que “a função de pastor é limitada aos homens tal como é estabelecido pelas
Escrituras”.85

Por outro lado, teólogos eminentes, como Karl Rahner, Yves Congar, o cardeal
Martini, o cardeal José Policarpo, o cardeal Karl Lehmann, já mostraram que não há nenhuma
razão teológica que se oponha à ordenação sacerdotal de mulheres.86

81
Cf. William D. Montalbano, “Pope Reaffirms His Stand: No Women Priests” in Los Angeles Times, 1994-05-
31 [Consult. 6 Jan. 2009] Disponível em http://tinyurl.com/85a3ly; Cf. Alan Cowell, “Pope Rules Out Debate on
Making Women Priests” in The New York Times, 1994-05-31 [Consult. 6 Jan. 2009] Disponível em
http://tinyurl.com/a6fodc; Cf. Anna Quindlen, “Public & Private; To the Altar” in The New York Times, 1994-
06-04. [Consult. 6 Jan. 2009] Disponível em http://tinyurl.com/7bk262.
82
Cf. O Código de Cristo: O Túmulo Perdido, [Documentário em DVD], Simcha Jacobovici (realização),
James Cameron (produção executiva), Discovery Channel, SIC Televisão, Círculo de Leitores, 2007.
Empreendendo uma autêntica caça ao tesouro, o realizador, judeu nascido no Canadá, procura provar que os
ossários encontrados num túmulo descoberto em Jerusalém em 1980 contêm os restos mortais da família e do
próprio Jesus Cristo; pelo caminho, traz à luz documentos que lançam uma nova e radicalmente diferente leitura
sobre o papel desempenhado pelas escassas personagens femininas do Novo Testamento. Cf. Reinaldo José
Lopes, “Maria Madalena e Jesus tinham relação de aluna e mestre, dizem especialistas”, Globo Notícias, 2008-
07-27 [Consult. 1 mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/5nnmpg
83
Cf. Moacir Sader, “Evangelhos apócrifos segundo Judas, Maria Madalena, Tomé e Filipe” [Consult. 1 mar.
2009]. Disponível em http://www.moacirsader.com/evangelh.htm
84
“Pope Moves to Quell Dissent Over Ban on Female Priests”, Los Angeles Times, 1998-07-01. [Consult. 8 jan.
2009] Disponível em http://articles.latimes.com/1998/mar/14/local/me-28724
85
“Southern Baptist Convention Passes Resolution Opposing Women as Pastors” in The New York Times, 2000-
06-15. [Consult. 7 jan. 2009] Disponível em http://tinyurl.com/9p9cur
86
Vide supra n. 68

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

A progressão deste conceito foi natural e lógica. Subitamente os homens perceberam


que eram parte do processo reprodutivo, podendo até parecer serem eles o seu causador, uma
vez que ninguém conseguia ainda presenciar a dinâmica fisiologia que ocorria dentro do
corpo da mulher. Os homens plantavam a semente. As mulheres eram como a terra: ricas e
férteis, mas vazias a menos que uma semente aí ganhasse raízes. Ninguém sabia que eram
precisas duas sementes para gerar um bebé.

Ainda nos dias de hoje esta metáfora é muito útil para explicar a crianças curiosas o
fenómeno da procriação, quando estas fazem aquela pergunta incómoda para a moral judaico-
cristâ vigente: “Como é que eu nasci?”, “O pai plantou uma semente na barriga da mãe e
depois nasceste tu.”

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3.4- A bruxaria87 88

Entre os séculos XV e XVII, os processos de bruxaria condenam à fogueira sobretudo


mulheres, que representam 80% das condenações. Os tratados de demonologia como o
Malleus Maleficarum ou Martelo das Bruxas89, escritos por teólogos, inquisidores ou
magistrados a partir de confissões obtidas sob tortura, descrevem as práticas a que as bruxas
se entregam, desde a cópula com Satanás para obterem os seus poderes maléficos, ao roubo de
crianças recém-nascidas para serem transformadas em unguentos ou simplesmente comidas…

Mas como surgiu esta perseguição tão acirrada?

Ao contrário do que se convencionou quer nas crenças populares quer na tradição, a


Igreja de Roma nunca estabeleceu uma autoridade tão completa como desejaria sobre os
povos da Europa Ocidental. Decerto que a sua palavra era lei e podia chamar qualquer um,
monarca ou camponês, à responsabilidade. Podia expandir-se localmente em dioceses e
bispados, promover a compra de indulgências ou extorquir dízimos. Tinha o poder de punir
quem contestasse as suas doutrinas ou a quem conviesse acusar disso, bem como de obrigar as
comunidades a assistir à missa e a observar ritos, dias santos ou festivais. Porém, no que hoje
em dia se denomina ‘batalha pelos corações e mentes’ não teve um sucesso total e inequívoco.
Se é verdade que muitos acreditavam fervorosamente na Virgem e nos santos, não é menos
certo que muitos outros os encaravam como novas manifestações ou novas máscaras de
princípios ou divindades bem mais antigos, sendo que muitos mais permaneceram, pelo
menos em parte, indiferentemente pagãos.

87
Cf. Arnelle Le Brás-Chopard – As Putas do Diabo, Círculo de Leitores, 2007.
88
Cf. “Cruzada Contra a Bruxaria” in Michael Baigent, Richard Leigh – A Inquisição, Imago, 2001, pp. 116-
137.
89
Espécie de manual de diagnóstico para reconhecer bruxas, publicado em 1487, que se divide em três partes: a
primeira ensinando aos juízes a reconhecer bruxas através dos seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda
expondo todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os; finalmente uma terceira, regulamento
todas as atividades para agir de forma ‘legal’ contra as bruxas, demonstrando como as inquirir e condenar (não
necessariamente por esta ordem). Cf. “Malleus Maleficarum” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 1
mar. 2009]. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Malleus_Maleficarum

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Fig. 12 - Estátua de Pã
encontrada num teatro
de Pompeia.

Há que referir que as aldeias e cidades, assim como as abadias e mosteiros, subsistiam
‘cercadas’ por densa floresta, refúgio certo de todo o desconhecido, fonte de vários perigos
(particularmente depois do pôr do sol), em suma um campo hostil que havia que apaziguar
por meio de oferendas. Por outro lado, no Império Romano pré-cristianismo, havia sido
reconhecido o deus Pã como regente do mundo natural; era uma figura com prerrogativas
especiais em matéria de sexualidade e fertilidade, representado com orelhas, chifres, cauda e
cascos de bode. Sob a autoridade da Igreja seria oficialmente demonizado e caracterizado
como satânico. Não seria aliás a primeira vez que tal acontecia, pois habitualmente os deuses
de qualquer religião tendem a tornar-se os demónios da religião que a suplanta.

De qualquer das formas, ao mesmo tempo que passaram a frequentar a missa ao


domingo e até assimilavam em certa medida os novos ritos, os camponeses europeus
continuavam a prestar culto às antigas forças à espreita na floresta ao redor. Continuavam a
esgueirar-se nas alturas certas do ano para os festivais pagãos de equinócios e solstícios em
que os deuses da velha religião surgiam em destaque, embora disfarçados e cristianizados.
Além disso, quase todas as comunidades tinham no seu seio uma velha reverenciada pela sua
sabedoria, capacidade de ler a sorte ou o futuro, o conhecimento de ervas e meteorologia ou a
habilidade de parteira; muitas vezes confiavam mais nela – sobretudo as outras mulheres –
que no pároco local. O padre podia representar poderes que talvez determinassem a sorte e o
destino futuro das pessoas; no entanto, em variadíssimas questões esses poderes pareciam
juízes majestáticos e intimidantes, severos e abstratos demais para serem incomodados. Ao
invés, a típica velha da aldeia oferecia um canal para poderes mais imediatos e prontamente
acessíveis, sendo a ela, muito mais que ao padre, que as pessoas recorriam quando tinham

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

questões relacionadas com clima e colheitas, a saúde do gado, a saúde pessoal, a sexualidade,
a fertilidade e o parto.

Fig. 13 – Capa do tratado Malleus


Maleficarum, manual medieval de
caça às bruxas.

Para se impor, a Igreja teve de demonizar e expulsar todas estas divindades e é neste
contexto que surge o Malleus Maleficarum. Em detalhes legais, chocantes e frequentemente
pornográficos, este tratado constitui um compêndio de psicopatologia sexual, um exuberante
desvario de fantasia patológica. Concentra-se avidamente em cópulas diabólicas, relações
com íncubos e súcubos, além de várias outras experiências eróticas e atividade ou inatividade
sexual atribuíveis por imaginações abundantemente férteis às forças demoníacas. Como refere
Montague Summers90 o Martelo das Bruxas “estava no banco de todo o juiz, na mesa de todo
o magistrado. Era a autoridade última, irrefutável, indiscutível. Era implicitamente aceite não
só pela legislatura católica, mas também pela protestante.”91

Nos textos do Malleus, não há lugar para dúvidas: a mulher é encarada como fraca,
pois “(…) deve assinalar-se também que ocorreu um defeito na formação da primeira mulher,
pois que foi formada de uma costela encurvada (…), em direção contrária à de um homem. E
devido a este defeito é um animal imperfeito, sempre engana” 92, sendo “bonita de se olhar,
90
Augustus Montague Summers (1880-1948) foi um excêntrico autor inglês e clérigo. É conhecido
principalmente pela sua tradução inglesa, em 1928, do manual medieval de caça às bruxas, o Malleus
Maleficarum, bem como por vários estudos sobre bruxas, vampiros e lobisomens, nos quais afirmava acreditar.
Cf. “Augustus Montague Summers” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 2 mar. 2009]. Disponível
em http://en.wikipedia.org/wiki/Montague_Summers
91
Cf. Michael Baigent, Richard Leigh op. cit. p. 125
92
Malleus Maleficarum – Español – Parte II, p. 50 [Consult. 2 mar. 2009]. Disponível em
http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/livros/malleus.htm (download em espanhol).

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contamina pelo contacto, e é mortal para se manter”, é “mentirosa por natureza” 93, pois que
“toda a bruxaria vem do apetite carnal, que na mulher é insaciável”. 94 Se as mulheres bonitas
eram especialmente suspeitas, o mesmo acontecia com as parteiras, com o seu íntimo
conhecimento e experiência daquilo que para os Inquisidores eram insondáveis mistérios
femininos. Acreditava-se habitualmente que um bebé nado-morto havia sido assassinado por
uma parteira como oferenda ao demónio e era a sua bruxaria que produzia crianças
deformadas, desfiguradas, doentias ou até mal comportadas.
“Se ela suspeita que a morte do seu filho foi causada por bruxaria, uma mãe
normalmente não dirá nada às vizinhas, mas antes porá a roupa da criança a ferver numa
caldeira de água esfaqueando-a uma e outra vez com um objeto contundente. Estas facadas
serão sentidas pela bruxa sobre o seu próprio corpo e ela será obrigada a vir à casa pedir
perdão. Outra alternativa será a mãe pegar na vassoura (o símbolo da bruxaria) e varrer a casa
no sentido errado, ou seja, da porta para dentro, enquanto repete: «Assim como eu na minha
casa ando a varrer, assim quem matou o meu menino aqui venha ter.»”95

Devido à confiança que inspirava noutras mulheres e à perda de autoridade para o


padre, a parteira era um alvo ideal. De salientar que as mulheres assim acusadas – que, regra
geral, são analfabetas e não saberiam sequer assinar as suas próprias confissões quanto mais
escrever um diário pormenorizado das suas atividades – não têm qualquer ideia da sua
condição nem da sua movimentada vida noturna, que inclui participação em reuniões de
bruxas, o sabat ou shabbat, para onde seguiam montadas nas suas vassouras ou nos seus lobos
e se juntavam nas clareiras dos bosques praticando estranhos e misteriosos rituais (como a
preparação dos unguentos resultantes da cozedura de crianças os quais se destinariam a voar
ou a praticar feitiços).
“As bruxas portuguesas assumem o corpo de um animal sempre que o desejem e são
mais vezes referidos os patos, ratos, gansos, pombas e até formigas do que os mais comuns
gatos e lebres. Os seus poderes duram entre a meia-noite e as duas da manhã e durante este
tempo podem ser ouvidas a bater palmas, a rir ou a gritar de tristeza. Embora não seja dado
nenhum nome em especial ao sábado, as bruxas encontram-se nos cruzamentos às terças e
sextas e é por isso que há um preconceito popular contra aqueles dias expresso neste
provérbio: «Às terças e sextas-feiras não cases a filha nem urdas a teia.»”96

Obviamente, todas as ‘confissões’ eram arrancadas através dos maiores vexames e


tortura frequente; como referia Friedrich Spee von Lagenfeld (1591-1635), jesuíta alemão, na

93
Vide supra n. 84, p. 53
94
Vide supra n. 68, p. 54
95
Rodney Gallop – Portugal, a Book of Folk-Ways, Cambridge, Cambridge University Press, 1936, pp.55-56
apud Ana Vicente – As Mulheres Portuguesas Vistas por Viajantes Estrangeiros: séculos XVIII, XIX, XX,
Lisboa, Gótica, 2001, p. 240
96
Vide supra

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sua Cautio Criminalis97: “aquela que for condenada como bruxa tem de o ser”, 98 afirmando
ainda que quanto às acusações de que a alegada bruxa se defende “(…) ninguém lhe dá
importância nem faz qualquer caso do que ela diz.” 99 Fundamentalmente, estipula-se que as
bruxas têm cópula voluntária com o Demónio para dele obterem os seus poderes e os
processos destinados a ‘apurar’ a verdade, mais não são que a justificação legal para os
maiores abusos sobre as acusadas, pois não passam de “putas do Diabo” como Lutero as
classificará.

97
“Cautio Criminalis sea des Processibus Contra Sagas Liber. Ad Magistratus Germania hoc tempore
necesarius tum autem Consiliariis, & Confessariis Principum, Inquisitoribus, Judicibus, Advocariis,
Confessariisreorum, Concionatoribus, caeteristiq; lectu utilissimus Avctore Incerto Theologo Orthod” ou
“Precaução para os Promotores nos processos contra bruxas, abertura necessária hoje aos magistrados da
Alemanha assim como aos conselheiros e aos confessores dos príncipes, aos inquisidores, aos juízes, aos
advogados, aos confessores dos acusados, aos pregadores e a muitos outros” (1631), obra em que Spee condena
vigorosamente a tortura como meio de obter confissões. Cf. “Friedrich von Spee” in Wikipédia, The Free
Encyclopedia [Consult. 6 Mar. 2009]. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Friedrich_von_Spee , em
http://la.wikipedia.org/wiki/Fridericus_Spee e em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cautio_Criminalis
98
Arnelle Le Bras-Chopard, op. cit., p. 13.
99
Idem, p. 17

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

4. – Desvalorização feminina na Memória

A Memória tem sido encarada exclusivamente do ponto de vista individual. Só com o


renovado interesse pela História dos povos sem História, se começou a aperceber que a sua
vertente coletiva tem particular relevância para o estudo das sociedades, pois embora seja o
indivíduo que recorda, fá-lo enquanto parte de um grupo social e, por conseguinte, sujeito a
todas as influências que atuam sobre esse grupo. É aliás a memória coletiva que permite a
identificação de uma determinada sociedade como diferente das demais.100

Um componente fundamental dessa identificação é precisamente a linguagem, a qual


reflete a cultura dos povos, que não é mais que o produto da sua Memória.

4.1- A Língua

Quase todos nós utilizamos terminologia masculina para falar de ambos os sexos. O
argumento mais comum é o de que, ao falar-se de ‘Homem’, se está a incluir tanto os homens
como as mulheres, isto é, se está a falar do ser humano. Porém, não será tal proposição um
engano? Não será antes o resultado direto do mito de que a procriação é um papel
exclusivamente masculino e de que Deus é masculino?101 Tendo o Homem sido feito à
imagem e semelhança de Deus – segundo nos diz a religião – isso significa que o homem é o
‘verdadeiro humano’, o modelo do que um ser humano deverá ser quando comparado com
Deus. Extrapolando, pode então considerar-se que a mulher será uma aproximação imperfeita
desse ideal, o que levará à utilização de termos masculinos de uma forma genérica. Um
interessante exemplo deste modo de pensar é dado pelo total da entrada ‘mulher’ na 1.ª edição
da Enciclopédia Britânica em 1771: “Mulher – A fêmea do homem. Ver Homo”.102

100
Cf. Elsa Peralta, “Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha crítica” in Arquivos da
Memória – Antropologia, Escala e Memória n.º 2 (nova série), Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa,
2007 [Consult. 15 fev. 2009]. Disponível em http://www.ceep.fcsh.unl.pt/ArtPDF/02_Elsa_Peralta[1].pdf
101
Cf. Mark Brumley, “Why God is Father and not Mother?” [Consult. 9 Jan 2009]. Disponível em
http://www.ignatiusinsight.com/features2005/mbrumley_father1_nov05.asp
102
Apud Ashley Montagu, The Natural Superiority of Women, New York, Macmillan, 1968, p. 3 apud Robert S.
McElvaine, op. cit., p. 379.

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O subtil mas extremamente poderoso efeito da linguagem pode ser melhor percebido
se houver uma inversão dos termos da equação: se o termo ‘Homem’ engloba obviamente a
mulher, o que aconteceria se o termo ‘Mulher’ designasse também o homem? Seria um
absurdo? O senso comum, isto é, o conjunto das opiniões geralmente aceites sobre qualquer
questão pela maioria das pessoas, é deveras ilustrativo sobre como a linguagem é usada na
desvalorização feminina: dizer “a minha mulher” ao invés de “a minha esposa”, por
exemplo…

Apelidar uma menina de ‘maria-rapaz’, conquanto não seja exatamente um elogio


(dado que indica uma futura mulher que deseja assumir valores masculinos, impróprios para
ela), é muito mais benigno que apodar de ‘mariquinhas’ um menino (que sofre assim um
prematuro desprestígio ao ser considerado um fraco, como futuro homem). A língua
portuguesa contém, além destes, muitos outros exemplos da desvalorização feminina. Eis
alguns:

Aventureiro – homem que se arrisca, viajante, desbravador, temerário;


Aventureira – prostituta;
Homem da vida – pessoa letrada pela sabedoria adquirida ao longo da vida;
Mulher da vida – prostituta;
Homem de má vida – gatuno, malandro, trapaceiro, burlão;
Mulher de má vida – prostituta;
Menino da rua – menino pobre, que vive na rua;
Menina da rua – prostituta;
Puto – miúdo, garoto, catraio;
Puta – prostituta;
Touro – homem forte e possante;
Vaca – prostituta;
Vadio – meliante, arruaceiro, biltre, gandulo;
Vadia – prostituta;
Vagabundo – homem que não trabalha;
Vagabunda – prostituta.

Alguns provérbios populares portugueses103 são também bastante elucidativos:


A mulher e a mula, o pau as cura;
Ao Diabo e à mulher nunca falta que fazer;
Mulher que assobia, ou cabra ou vadia;
O melão e a mulher são maus de conhecer;
Só há duas mulheres boas no mundo: uma que já morreu, outra que ainda não nasceu.

103
Cf. Provérbios Populares Portugueses [Consult. 6 maio 2009]. Disponível em http://proverbios.aborla.net/

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No vernáculo da língua portuguesa, os dois piores insultos que se podem dirigir a um


homem são: ‘cabrão’ e ‘filho-da-puta’. Em ambos os casos, o homem é desvalorizado pelo
suposto comportamento leviano das mulheres que lhe estão diretamente relacionadas, quer
seja a sua esposa quer seja a sua mãe. Ou seja, apesar de serem as mulheres as verdadeiras
insultadas, é o homem que vê o seu prestígio abalado ou por não ‘ter mão’ na sua esposa ou
por o seu pai não a ter tido na sua mãe. Isto porque, já se sabe, as mulheres são todas umas
levianas sempre em busca de uma oportunidade de enveredar por maus caminhos…

4.2 - Testemunhos

Vivemos uma era em que se deram importantes mudanças na condição feminina.


Todavia um estudo das Nações Unidas datado de 1995 refere que 70% dos pobres no mundo
são mulheres e que:
“(…) apesar de duas décadas de avanços na educação e saúde da população feminina
em todo o mundo, centenas de milhões de mulheres, quer em nações ricas quer em nações
pobres, ainda são economicamente subvalorizadas, é-lhes negado o acesso a um efetivo poder
político e são mantidas na submissão por gritantes desigualdades à face da lei.”104

“Mãe e esposa: filhos, cozinha e igreja era o ideal de vida feminina no começo do
século. Existiam as senhoras e existiam as mulheres; era essa a grande divisão moral de um
género feminino que não teve pernas visíveis até bem entrados os anos vinte [da centúria de
1900], escondendo o corpo em férreos espartilhos e a vida no lar. A casa era o seu território e
todo o seu mundo, a gaiola para rir, chorar ou desesperar. O marido, imaginado como príncipe
encantado, era a razão básica desta existência feminina, o sentido que tudo decidia: um deus
humano. Sem marido, uma mulher burguesa era um fracasso; uma mulher seca, uma puta ou
uma solteirona, mas ambas imagens de um grande fracasso. A mulher, fosse o que fosse, era
uma máquina reprodutora. As mulheres burguesas eram criadas sem iniciativa, atadas a um
destino parasitário e sem outro horizonte além do delírio da fantasia servido por folhetins,
romances e sonhos impossíveis.”105

“As mulheres tornaram-se perigosas quando começaram a ler e a escrever.”106

“(…) [As mulheres] descobriram que a História tinha sido masculina e que os homens
a tinham feito à sua medida, sem nenhum lugar para elas. E começaram a pensar no porquê de
tal disparate.”107

104
Cf. Barbara Crossette, “U.N. Documents Inequities for Women as World Forum Nears” in The New York
Times, 18/08/1995. [Consult. 7 Jan 2009] Disponível em http://tinyurl.com/8pmeoj
105
Margarita Rivière, op. cit., p. 17.
106
Rita Süssmuth [ex-Presidente do Bundestag] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 189.
107
Margarita Rivière, op. cit., p. 18.

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A gravidez, a maternidade e a amamentação sempre constituíram territórios exclusivos


da mulher. Como resposta, os homens criaram através da História e permeando todas as
culturas, uma variedade de territórios exclusivos para si próprios: a guerra, a política, o clero,
os negócios e assim por diante. Desvalorizaram as mulheres e classificaram-nas como
inferiores por duas razões básicas: primeiro por recearem serem eles biologicamente
inferiores; segundo porque eles próprios foram desvalorizados pelo desenvolvimento da
agricultura.

Contudo, apesar das resistências encontradas, algumas transformações ocorreram ao


longo do séc. XX na condição feminina: o parto deixou de ser uma ameaça incontornável à
vida da mulher; os contracetivos garantem uma ideia de responsabilidade perante a
reprodução; o sexo passou de castigo a prazer; o trabalho veio possibilitar a independência
feminina; a mulher tem cada vez mais acesso à educação e à cultura; os eletrodomésticos
vieram aliviar o trabalho do lar; a mulher obteve o direito de voto.

Porém, as mulheres não governam, as relações sociais empurram os homens para uma
situação em que, fazendo muito pouco, controlam a vida das suas famílias, a economia e a
política. “Em África as mulheres produzem mais de 75% da comida, cultivam os campos e
fazem tudo o necessário para assegurar a sobrevivência e não se morrer de fome, mas... não
decidem.”108

Os homens no poder não terão interesse em partilhar o dinheiro ou os lucros; de modo


geral, as mulheres nos governos ocupam-se da saúde ou da educação.

“As pressões para que as mulheres sejam conformistas são enormes.”109

“[Fui educada] para falar francês, pôr bem a mesa e sentar-me com as pernas juntas.
Não fui à universidade, saí do colégio com a ideia de que me ia casar e ser mamã…”110

“Existe diferença no sentido do poder entre mulher e homem. Eles, por vezes, têm
mais o sentimento do poder pelo poder que é o objetivo por que desejam o poder. Pelo
108
Graça Machel [ativista dos direitos das crianças e das mulheres] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 202.
109
Idem, p. 190.
110
Rita Süssmuth apud Margarita Rivière, op. cit., p. 191.

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contrário, as mulheres concentram-se mais no objetivo, no que querem fazer, o que as leva a
esquecerem-se do poder e perdem-no.”111

“Ela [a sua mãe] foi o caso típico de mulher abandonada, sem ter havido divórcio,
regressou a casa dos pais, mas nunca se colocou a hipótese de se manter a si mesma: dependia
sempre de alguém. Vi-a sempre como vítima… por isso me esforcei em não dever nada a
ninguém.”112

“Naquele trabalho [de hospedeira] o cliente era um deus e nem sequer existiam
palavras para exprimir o assédio sexual nem nada do estilo. (…) Sucedeu que o meu marido,
que era estudante, precisou de uma cirurgia dental e o seguro da companhia [aérea] disse que
não cobria os cônjuges dos empregados que eram mulheres; em contrapartida, cobria todos os
familiares dos empregados homens.”113

“Porque é que há tão poucas ministras? Porque é que o Fundo Monetário Internacional
só tem dois diretores? Gostaria de falar como Betty Friedan e pensar que existe um ‘complot’
contra a mulher, mas acontece muitas vezes que o pior inimigo da mulher é a própria mulher.
Crescemos num mundo que não nos ensinou a valorizarmo-nos; temos uma falta de
autoestima brutal, uma espécie de sentido maternal em relação ao homem… passamos por
alto coisas que depois nos obrigam a lavar pratos. Se as mães dos rapazes de dezoito anos
fossem apenas mães e não se preocupassem com a gestão e o conforto, os rapazes
aprenderiam a cozinhar e a lavar… Embora também me preocupe estar no ano 2000 e que as
mulheres do Afeganistão não possam, não só realizar filmes, como ir ao cinema! Há muitas
coisas, a educação não te ensina a valorizares-te, misturando com o pânico de que, se não te
comportas como um homem, vais perder os valores que te tornam atraente como mulher…”114

“Pensei sempre que as mulheres são mais lutadoras porque têm necessidade. Somos
mais numerosas e somos diferentes dos homens (…). Hoje o feminismo não tem dúvidas
sobre o direito à igualdade, mas diz que, por serem diferentes, as mulheres podem trazer
outras coisas, como é olhar para a sociedade de outra maneira da que fazem os homens.
Seguramente temos mais em conta o indivíduo, a pessoa, as relações, a colaboração e a
conciliação. Temos umas relações diferentes com as crianças e uma ideia da sociedade menos
rígida e com mais imaginação.”115

“Quando as mulheres são ambiciosas, são sérias, procuram as coisas bem feitas até ao
pormenor e, além disso, têm a convicção de que há coisas definitivamente importantes, como
é o laço que as une à vida. Quando se faz política, isso nota-se; os homens são um clube que
atua, em política, como tal. Pelo contrário, as mulheres sabem, também, que não se podem
impor para não serem imediatamente acusadas de autoritarismo ou de histeria, pelo que
procuram o equilíbrio e o pacto constantemente.”116

As mulheres mandariam de forma diferente dos homens?

111
Vide supra n. 102
112
Isabel Allende [escritora chilena] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 226.
113
Patrícia Ireland [Presidente da Organização Nacional de Mulheres – National Organisation of Women (NOW)
nos Estados Unidos] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 242.
114
Isabel Coixet [realizadora de cinema espanhola] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 207.
115
Simone Weil [ex-ministra francesa e ex-Presidente do Parlamento Europeu] apud Margarita Rivière, op. cit.,
p. 223.
116
Idem.

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“Espero que não. É um disparate pensar que se podem mudar as características do


poder que é, sobretudo, responsabilidade. E esta responsabilidade deve ser utilizada da melhor
maneira possível, faça-se o que se fizer, administre-se uma empresa ou um país. É preciso
conhecer as pessoas, ajudá-las a melhorar, fazer bem as coisas e, em tudo isso, tanto faz que
se seja homem ou mulher. Talvez as mulheres possam emprestar uma certa sensibilidade…
No meu caso, sei que, quando via que tinha de fazer algo, o fazia; se tinha de decidir, decidia,
assim como quando decidimos ir embora, vamos. O trabalho tem as suas leis e normas para
todos, seja-se o que se for.”117

117
Katharine Graham [empresária e proprietária do Washington Post] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 211.

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5. – Desvalorização feminina na Sociedade


Corolário dos anteriores, este capítulo aborda a forma como a desvalorização feminina
está presente na Sociedade. Resultado das influências da História e da Memória que
previamente foram expostas, os indivíduos assumem determinados comportamentos
preconceituosos, com maior ou menor violência explícita, de que a consequência é, sempre e
inevitavelmente, a desvalorização da condição feminina.

5.1- Violência doméstica

Surgem na comunicação social com assustadora frequência títulos evidenciando uma


ainda bem presente chaga social neste começo do séc. XXI. Aqui ficam alguns, bem como
algumas notícias desenvolvidas que, só por si, são esclarecedoras… e arrepiantes!

“43 mulheres assassinadas só este ano. Vítimas e agressores cada vez mais jovens”118

“10 mil casos e apenas 12 presos preventivos”119

“Homem atinge mulher com tiro de caçadeira”120

“Linha recebe treze chamadas por dia, 115.201 chamadas recebidas em dez anos.
Mulheres protagonizaram a maioria dos pedidos de ajuda”121

“Pelo menos duas vítimas de violência doméstica por hora. Registadas 132 mil vítimas
nos últimos oito anos, mas deverão ser muitas mais na realidade”122

118
“Violência doméstica: 43 mulheres assassinadas só este ano”, IOL Portugal Diário, 2008-11-19 [Consult. 10
fev. 2009]. Disponível em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=1014872&div_id=4071.
119
“Violência doméstica: 10 mil casos e apenas 12 presos preventivos”, IOL Portugal Diário, 2009-01-03
[Consult. 10 fev. 2009]. Disponível em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=1028548&div_id=4071.
120
Alexandra Serôdio e Sílvia Reis, “Homem atinge mulher com tiro de caçadeira”, Jornal de Notícias, 2004-06-
13 [Consult. 28 dez. 2008]. Disponível em http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=445353.
121
“Violência doméstica: linha recebe 13 chamadas por dia”, IOL Portugal Diário, 2008-11-12 [Consult. 10 fev.
2009]. Disponível em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=1012135&div_id=4071.
122
“Pelo menos duas vítimas de violência doméstica por hora”, IOL Portugal Diário, 2009-01-14 [Consult. 10
fev. 2009]. Disponível em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=1032301&div_id=4071.

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“Homem com 70 anos suspeito de matar mulher de 80. Octogenária foi encontrada
morta com sinais de violência”123

“Polícia na prisão por matar mulher. Agente roubou arma a colega e disparou à frente
do filho”124

“Sequestrou, violou e baleou a mulher. Homem de 31 anos já foi detido pela PJ.
Vítima atingida com dois tiros na cabeça”125

“Violência doméstica leva duas mulheres e três crianças ao hospital. Homem agrediu
família «a murro, a pontapé e à bengalada» e ainda não foi detido”126

“O empresário de Gondomar acusado de maus-tratos continuados à mulher por mais


de 30 anos, até se divorciar, negou hoje, na primeira audiência de julgamento, alguma vez tê-
la agredido, acusando-a de ‘esquizofrenia’”.127

“Mortas pelos maridos à queima-roupa


Maria de Lurdes Madureira Costa tinha 43 anos e morava em Alpendurada (Marco de
Canaveses). Maria do Rosário Ribeiro, de 30 anos, residia em Alijó. Nada tinham em comum,
mas o destino foi-lhes igualmente brutal: foram mortas a tiro pelos respetivos maridos,
alegadamente por questões passionais. Os homens entregaram-se à GNR.”128

“Carta de uma vítima de violência doméstica


Os meus 39 anos de idade não denunciam os 12 anos de agressões psicológicas e, mais
recentemente, físicas, que têm ocorrido no meu casamento. Sou licenciada, coleciono pós-
graduações e mestrados em diferentes áreas de conhecimento e tenho um sorriso aberto nos
lábios e no olhar que conquista amizades. Por isso, ninguém podia imaginar o que se passava
em minha casa. Tinha a típica família cartão-postal. Um marido de 1,87m, com cara de
menino e peso a mais, a denunciar a vida desafogada e estável do casal com 2 filhos, e uma
mãe bonita. Agarro-me a esta imagem para justificar os anos de silêncio e, sobretudo, a opção
por manter um casamento que a cada dia me fragilizava enquanto mulher e me entrincheirava
numa crescente solidão interior. A culpa que me atormenta é a de não ter saído a tempo de
123
“Homem com 70 anos suspeito de matar mulher de 80”, IOL Portugal Diário, 2009-01-08 [Consult. 10 fev.
2008]. Disponível em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=1030427&div_id=4071.
124
“Polícia na prisão por matar mulher”, IOL Portugal Diário, 2008-09-30 [Consult. 10 fev. 2009]. Disponível
em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=997010&div_id=4071.
125
“Sequestrou, violou e baleou a mulher”, IOL Portugal Diário, 2009-01-12 [Consult. 10 fev. 2009]. Disponível
em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=1031496&div_id=4071.
126
“Violência doméstica leva duas mulheres e três crianças ao hospital”, IOL Portugal Diário, 2009-01-07
[Consult. 10 fev. 2009]. Disponível em http://diario.iol.pt/noticia.html?id=1029869&div_id=4071.
127
“Suspeito chama mulher de esquizofrénica”, Jornal Destak, 2008-11-20 [Consult. 26 nov. 2008]. Disponível
em http://www.destak.pt/artigos.php?art=16443.
128
Almeida Cardoso, António Orlando e Nuno Silva, “Mortas pelos maridos à queima-roupa”, Jornal de
Notícias, 19-08-2004 [Consult. 28 dez. 2008]. Disponível em http://tinyurl.com/dlpw98.

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 48


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

salvar os meus filhos. Conseguirá o pequenino esquecer o dia em que viu o pai levantar a mãe
pelo pescoço esmagando-lhe uma omoplata contra a ombreira da porta? Conseguirão eles
esquecer o rasto de sangue no chão do corredor, o sangue a escorrer pela parede do quarto
quando o nariz da mãe tomou nova forma? Queira Deus que sim! Este relato em jeito de
desabafo é a minha forma de agradecer os artigos que o Destak tem publicado a denunciar
situações como a minha, que ocorrem no silêncio cúmplice da relação marido-mulher, e que
destroem os filhos. Fui educada na convicção de que não se expõe a vida íntima e de que o
sucesso da vida familiar depende sobretudo da mulher. Tentei viver de acordo com este
modelo. Até ao dia em que, de braço ao peito e cara desfigurada, deixei de poder andar na rua.
Passei a ter medo. Saber que pessoas que nunca estiveram expostas a agressões não condenam
a vítima (como no passado) e não viram a cara com indiferença é importante. Devolve
humanidade!”129

“Matou mulher à paulada e já preparava o funeral


Uma mulher de 47 anos foi morta à paulada, alegadamente, pelo marido, na noite da
última quinta-feira, em Bustelo, Aguada de Cima, Águeda. Segundo fonte policial, «há largos
anos» que a vítima vinha sendo sovada, quase diariamente, pelo mesmo indivíduo». O
suspeito homicida terá tentado fazer crer que a esposa tivera morte natural. Chegou mesmo a
comprar roupa para vestir a defunta, assim como uma camisa preta para ir ao funeral. O logro
durou pouco. A PJ deteve-o, no dia seguinte. Vários vizinhos afirmaram, ao JN, que todos
conheciam o drama daquela família, sublinhando que, por várias vezes, a mulher esteve
internada no hospital com fraturas provocadas pelas agressões, e que o marido lhe batia quase
todos os dias. O suspeito, funcionário camarário, a quem agora se imputa um crime de
homicídio qualificado e um crime de maus-tratos a cônjuge, na forma continuada, foi detido
no dia seguinte, ao final da tarde, pela PJ de Aveiro. Segundo fonte policial, quando o
agressor se apercebeu de que a mulher, Maria Emília Rodrigues, não tinha resistido à sova, foi
chamar o cunhado e telefonou para uma agência funerária a encomendar o funeral.
Argumentou que as causas da morte eram naturais, uma vez que tinha saído e, quando
regressou a casa, deparou com a mulher morta. «Quando chegámos, tudo indicava que se
tratava de uma morte provocada por causas naturais. Quase fomos iludidos pelo marido»,
revelou, ao JN, uma fonte policial. Entretanto, porque se levantaram algumas dúvidas, foram
efetuados vários atos investigatórios, pela PJ, para além da realização da autópsia médico-
legal, que confirmou ter havido crime. A mulher apresentava alguns hematomas e
escoriações, com particular evidência na zona da nuca. A mesma fonte refere que um forte
clima de desavenças familiares terá desencadeado um quadro de grande violência física e
psicológica, que culminou com o agressor, que aguarda julgamento em prisão preventiva, a
bater na mulher e a dar-lhe uma pancada mais forte na zona da nuca. Um vizinho revelou, ao
JN, que na noite do crime não ouviu qualquer barulho, embora fosse ‘habitual’ ouvir o
homem a espancar a mulher. «Ouvíamos pancadas secas, dadas possivelmente com paus ou
ferros, durante meia hora seguida. Era assim quase todos os dias». Este vizinho, que se
remeteu ao anonimato, afirma que nunca denunciou a situação porque teve medo de
represálias. Já Cipriano Pereira e Maria Cecília, proprietários de um café na pequena aldeia de
Bustelo, conviviam com Maria Emília há vários anos. Cipriano afirma que «era uma boa
mulher, mas sofria muito. Aparecia aqui muitas das vezes maltratada, com hematomas e
escoriações. Imagine-se que no dia em que saiu do hospital, depois de ter apanhado uma carga
de porrada, o marido partiu-lhe um braço». «Toda a população tinha conhecimento desta
situação, mas ninguém teve coragem para denunciar o problema», admite.”130

129
Isabel Stilwell, “Carta de uma vítima de violência doméstica”, Jornal Destak, 19-11-2008 [Consult. 27 dez.
2008]. Disponível em http://www.destak.pt/artigos.php?art=16324.

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 49


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Fig. 14 - Mulheres
continuam a ser vítimas
de violência no seio do
lar.

“Violência doméstica mata mais mulheres em 2008


O número de mulheres vítimas mortais de violência doméstica quase duplicou de 2007
para 2008. A denuncia parte da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que
detetou um aumento de 21 casos registados no ano passado para cerca de 40 este ano. O
estudo da UMAR não resulta de estatísticas oficiais mas antes da análise de notícias
publicadas na comunicação social pelo Observatório das Mulheres Assassinadas que a UMAR
criou. (…) Salomé Coelho, dirigente da UMAR, afirma que «houve um aumento» de vítimas
mortais por violência doméstica, explicando que pela análise das notícias publicadas na
comunicação social é possível chegar à conclusão de que o número de mulheres mortas pelos
seus companheiros ou ex-companheiros aproximavam-se do número de 21 que foi o número
total registado em todo o ano transato. «Este ano, que ainda não acabou, são à volta de 40» as
mulheres que não resistiram às agressões de maridos, companheiros, namorados ou de
relações já antigas. A UMAR considera, aliás, que o ano de 2008 voltou a ser «um ano negro
da violência doméstica em Portugal», já que os «homicídios e tentativas ultrapassam os
números dos últimos cinco anos». O número de vítimas «na zona Norte e no distrito do
Porto» é o mais preocupante para a Associação, que obriga a «respostas mais sustentadas, em
termos de serviços de atendimento e acompanhamento das vítimas». O relatório de 2007
revelava que sete em cada dez homicidas mantinham uma relação de intimidade com a vítima
quando cometeram o crime, sendo que apenas em 19 por cento dos casos essa relação já tinha
terminado. «O fim da relação não impediu que os agressores tivessem continuado a perseguir
a vítima até à morte. Para alguns homens, ‘até que a morte nos separe’ é levado literalmente»,
lê-se no relatório do ano passado. No ano de 2007, para além das 21 mulheres assassinadas,
57 foram vítimas de tentativas de homicídio (…). Segundo indicam os dados dos últimos
anos, os meses de verão – julho, agosto e setembro –, «são sangrentos para as mulheres». De
realçar, que muitos casos de violência doméstica continuam a não ser conhecidos, já que as
vítimas, por variadíssimas razões optam pelo silêncio e pelo sofrimento secreto e isolado sem
dele dar conhecimento às autoridades.”131

Ainda segundo o relatório da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, esta


contabilizou em 2008 cerca de 18.700 crimes dos quais 90% se referiram a casos de violência
130
Pedro Fontes da Costa, “Matou mulher à paulada e já preparava o funeral”, Jornal de Notícias, 2005-04-27
[Consult. 28 dez. 2008]. Disponível em http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=478013.
131
“Violência doméstica mata mais mulheres em 2008”, Notícias RTP, 2008-11-19 [Consult. 19 nov. 2008].
Disponível em http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php?article=373729&visual=26&tema=1.

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 50


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

doméstica em que também 90% das vítimas foram mulheres e 90% dos agressores foram
homens.132

Fig. 15 - Mulheres continuam a ser vítimas


de violência no seio do lar.

A violência doméstica define-se como o tipo de violência (física, sexual ou


psicológica) que ocorre em ambiente familiar, seja entre os membros de uma mesma família,
seja entre aqueles que partilham o mesmo espaço de habitação. É uma problemática delicada
de abordar e muito difícil de combater, pois as próprias vítimas sentem grande ambivalência
relativamente aos autores dos atos violentos. Existe ainda a dificuldade acrescida de,
geralmente, não existirem testemunhas destes atos e a existirem nem sempre desejarem
apresentar o seu testemunho para não se envolverem em conflitos familiares que se
apercebem têm um caráter cíclico, pois uma das características deste tipo de violência é ser
cíclica. O ciclo da violência doméstica é caracterizado por três fases distintas: uma 1.ª fase em
que a crise se desencadeia e na qual surgem discussões decorrentes da acumulação de tensão

132
“Crimes: APAV contabilizou quase 19 mil crimes em 2008”, Diário Digital/Lusa, 2009-02-12 [Consult. 3
mar. 2009]. Disponível em http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=0&id_news=372853&page=0

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 51


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

dentro e/ou fora de casa, com aumento de ansiedade; uma 2.ª fase em que surge o episódio
agudo, com explosão de violência e no qual o autor do ato violento descarrega a tensão sobre
a vítima, independentemente da sua atitude; e, finalmente, uma 3.ª fase, chamada de ‘lua de
mel’, em que surge o arrependimento e as promessas de alteração de comportamento. Estas
fases vão-se sucedendo, em espiral, com episódios agudos cada vez mais intensos e com um
ciclo cada vez mais curto, até que as vítimas deixam de acreditar na mudança prometida e
decidem denunciar as agressões de que são vítimas.133

De facto, surge esta constante em todos os estudos: os maus-tratos, qualquer que seja a
sua natureza, acontecem em família, à porta fechada, sendo que a maioria dos crimes de
sangue são cometidos por pessoas próximas. Os assassínios de mulheres, particularmente no
âmbito conjugal, são mascarados pela expressão ‘crimes passionais’ – mais suscetível de
ganhar a simpatia dos jurados – ou escamoteados pelo aforismo ‘entre marido e mulher
ninguém meta a colher’ – muito cómodo para que a vizinhança não se mexa a fim de evitar a
tragédia. Verifica-se assim que de entre todos os domínios da sua vida (trabalho, lugares
públicos, família, casal), o da vida conjugal torna-se o mais perigoso para as mulheres.134

Mas, afinal, porque ficam elas?

Para responder a esta pergunta, há que partir do princípio de que têm opção de
escolha, isto é, que têm possibilidade de assegurar a sua subsistência e a dos filhos, que têm
acesso a um local onde podem estar a salvo das represálias graves e frequentes do ex-cônjuge,
que podem recusar a pressão familiar e da tradição. Caso nenhuma destas condições possa
verificar-se, elas ficam e calam por medo, vergonha ou culpa, minimizando a violência que
sobre elas é exercida, quando não chegam a negá-la totalmente. Além de que os homens mais
dominadores não toleram que a mulher que lhes pertence tome a decisão de os deixar.135

De referir que tem sido publicada legislação relevante para combater o problema,
nomeadamente a violência doméstica passar a constituir crime público denunciável por
qualquer pessoa (não dependendo de queixa das vítimas e seguindo o seu curso mesmo que

133
“Violência doméstica e familiar aumenta em Portugal”, A Página da Educação [Consult. 7 dez. 2008].
Disponível em http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=3217.
134
Cf. Maryse Jaspard, “Os maus-tratos conjugais na Europa” in O Livro Negro da Condição das Mulheres,
Christine Ockrent (dir.), pp. 217-239
135
Idem.

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 52


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

estas desistam da queixa), a implementação de teleassistência para as vítimas e a utilização de


meios eletrónicos para controlo à distância dos arguidos, a possibilidade de detenção dos
agressores mesmo sem flagrante delito no quadro de um regime específico, a criação de um
«estatuto de vítima de violência doméstica» que consagra um conjunto de direitos e deveres
que vai além do âmbito judicial, a criação de medidas urgentes de proteção à vítima
imediatamente após notícia do crime e passando a existir assistência direta por técnicos
especializados no campo do Serviço Nacional de Saúde.136 137

5.2- Assédios e abusos

Ainda mais oculto que o problema anteriormente tratado, o do assédio sexual no local
de trabalho raramente é denunciado. Segundo Fausto Leite, advogado especialista em Direito
do Trabalho, estima-se que 40% das mulheres sejam alvo de assédio sexual no emprego.
Contudo, os casos que chegam a julgamento “são só a ponta do icebergue”. O assédio sexual
a mulheres no local de trabalho em Portugal é hoje uma realidade muito semelhante à da
violência doméstica há uns anos, permanecendo a ideia de que “as mulheres é que provocam”,
revela Maria José Magalhães da direção da UMAR (União de Mulheres Alternativa e
Resposta). Além da situação fragilizada que o sexo feminino já tem a nível profissional –
salários mais reduzidos e empregos menos seguros – as mulheres são ainda vítimas deste tipo
de violência laboral e sentem-se, na maioria dos casos, atadas de pés e mãos para agirem. Dos
mais de 300 processos que em 2007 chegaram ao gabinete jurídico da Associação Nacional de
Pequenas e Médias Empresas, “apenas três resultaram em despedimento”, refere o presidente
da associação. Acresce ainda que um grande número de mulheres evita denunciar o crime por
medo de perder o emprego – o que normalmente acontece –, mas que noutras situações a
própria empresa tenta resolver o caso através de “um castigo ou despromoção do
prevaricador” ou com “uma indemnização à funcionária”; porém, mesmo nestas situações,
muitas delas são perseguidas pelos homens que as assediaram no trabalho e até pela família
dos mesmos. Significativamente, de acordo com Augusto Morais presidente da Associação
Nacional de PME’s, “há um trabalhador que já assediou várias colegas e que já teve uma

136
Cf. “Normas reforçam combate à violência”, Jornal Destak, 2009-01-16 [Consult. 17 jan. 2009]. Disponível
em http://www.destak.pt/artigos.php?art=19531
137
Naturalmente que a violência doméstica dirigida contra homens, não sendo expressiva, também existe. O
facto de o homem se sentir menos afetado em termos de stresse e autoconfiança poderá explicar que a violência
exercida sobre ele seja subestimada.

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 53


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

semana de suspensão. É reincidente, mas é bom trabalhador. (...) Para nós, empresários, o
problema do trabalhador tentar assediar a colega é secundário”.138

Foi só na década passada que o mundo acordou para o flagelo do tráfico de seres
humanos. Por todo o globo há mulheres e crianças escravizadas ou obrigadas a prostituir-se,
quando tudo a que aspiravam era fugir à miséria. Definição do crime:
“O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de
pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força ou a outras formas de coação, ao rapto, à
fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra, para fins de exploração.” – Protocolo de Palermo adicional à
Convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional Organizado, 2000.139

Fig. 16- Mulher vista


como mercadoria.

Em 1996, Nita tinha 18 anos, estava casada, tinha uma filha de oito meses e vivia com
o pai viúvo e a irmã de sete anos. As milícias sérvias que a capturaram levaram o bebé e a
menina e conduziram o marido e o pai dela para outro campo. Durante quatro dias Nita,
juntamente com sete outras mulheres, foi repetidamente violada. Foram depois metidas num
carro e largadas perto da fronteira albanesa, onde encontraram milhares de outras pessoas
aterrorizadas que fugiam dos sérvios. Em Tirana, capital da Albânia, um homem acolheu Nita
no seu apartamento durante algumas semanas. Foi simpático para ela, levou-a a comer a
restaurantes e de carro a vários campos de refugiados para que ela procurasse a família. Sem
sucesso, não havia rasto de nenhum deles. Uma noite disse-lhe que iam dar um passeio de
lancha. Quando viu o barco cheio de mulheres e raparigas e a afastar-se da costa, Nita ficou
aterrorizada e tentou debater-se mas o homem bateu-lhe com força e ela desmaiou. Quando
acordou, estava em Itália no início de uma viagem que a levaria, alguns dias mais tarde, a um
apartamento em Turim onde, pelas mulheres que aí encontrou, ficou a saber que tinha sido

138
Cf. Patrícia Susano Ferreira, “Assédio sexual no trabalho afeta 40% das mulheres”, Lusa/Jornal Destak,
6/10/2008 [Consult. 19 fev. 2009]. Disponível em http://www.destak.pt/artigos.php?art=14708
139
Cf. Caroline Moorehead, “Mulheres e crianças para venda” in The New York Review of Books, 11/10/2007 in
Courrier Internacional, Edimpresa, n.º 147, maio 2008, trad. Campo das Estrelas e Fábrica do Texto, p. 87

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

traficada, vendida como prostituta a uma rede de chulos italianos e albaneses. Ao longo dos
seis anos seguintes, Nita proporcionou sexo a pelo menos dez homens todas as noites, sete
dias por semana, primeiro num apartamento, como prisioneira proibida de sair, e
posteriormente na rua. Quando não conseguia angariar clientes suficientes, era espancada por
um dos homens que dirigiam o bordel. Partilhava o passeio com jovens russas, sendo
constantemente vigiadas pelos respetivos chulos. Quando uma vez tentou fugir foi apanhada e
espancada sem piedade. Um dia a sua sorte mudou, totalmente por acaso. Foi escolhida por
um homem que afirmou ter conhecido o seu marido e que ouvira dizer que conseguira fugir
para o Reino Unido e que lhe poderia proporcionar uma forma de escapar. Hesitou durante
um mês, mas depois pensou que a sua vida não poderia piorar mais do que já estava e aceitou
embarcar numa viagem clandestina até Inglaterra. Afinal revelou-se um gesto altruísta, em
que já tinha deixado de acreditar, e foi largada em território inglês perto de uma cabine
telefónica com algumas moedas. O seu marido foi buscá-la e durante algum tempo pareceu
que o casamento bruscamente interrompido teria condições para sobreviver. Com medo de
perguntas sobre a sua vida até então, Nita absteve-se de interrogar o esposo sobre como tinha
conseguido sobreviver; desde cedo percebeu também que ele preferia não saber de factos com
os quais sentia não iria saber lidar. Só que quando, através do pedido de asilo submetido ao
Ministério do Administração Interna britânico, soube que ela tinha sido traficada para fins de
prostituição e passara seis anos nas ruas, não suportou a situação e pô-la fora de casa. Sem
saber falar inglês, sem amigos, sem confiar em ninguém e grávida de três meses foi instalada
numa pensão pelos serviços sociais, aterrorizada com a possibilidade de ser mandada de volta
para o Kosovo.140

Entre 700 mil a dois milhões de mulheres e crianças são traficadas todos os anos. Os
lucros situam-se entre 7,6 e 10,8 mil milhões de euros. A Organização Internacional para as
Migrações considera o tráfico de seres humanos a “forma mais ameaçadora de migração
ilegal, devido ao facto de as suas cada vez maiores escala e complexidade envolverem, como
se sabe, armas, drogas e prostituição”. O Gabinete da ONU contra a Droga e o Crime
descreve este tráfico como a forma de crime organizado com mais rápido crescimento
mundial. No entanto, continua a constituir um campo em que se verificam contradições,
anomalias, diferenças de definição e profundas divisões entre organizações nacionais e
internacionais quanto à forma de lidar com o problema. Na verdade, não faltam os

140
Cf. Caroline Moorehead, op cit. pp. 86-87

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instrumentos legais que podem ser usados. Nos últimos anos, a Organização para a Segurança
e a Cooperação na Europa elaborou o seu próprio plano de combate a este tráfico. Em abril de
2007, a Bulgária tornou-se o sétimo Estado a ratificar a Convenção do Conselho da Europa
relativa à Luta Contra o Tráfico de Seres Humanos, bem como as suas linhas de orientação
globais que deverão ser lançadas. A organização Anti-Escravatura Internacional, sedeada em
Londres, referiu existirem já leis adequadas contra este tráfico, mas que é necessário aplicá-
las. Continua a existir uma grande distância entre a retórica dos que combatem o tráfico e a
vontade de proteger e prestar assistência aos traficados ou de apanhar e julgar os traficantes,
que, mesmo quando são detidos, raramente são condenados. Tem-se revelado extremamente
fácil elaborar e aprovar os muitos acordos internacionais. Mas enquanto as raízes do tráfico
não forem seguidas até às suas origens, entre jovens crédulas empurradas pela pobreza e
enganadas por estranhos, os acordos não passarão de bonitas palavras. É mesmo por não
passarem disso que, quando conseguem escapar aos traficantes, as mulheres são deportadas
quase de imediato; de volta aos seus países, poucas são as que não têm de enfrentar a rejeição
das famílias, a discriminação, a hostilidade e o regresso à pobreza a que tinham esperado
escapar.141

Fig. 17- Mulher vista como


mercadoria.

Nita tem agora 29 anos. É praticamente certo que o seu pai, a irmã e a filha bebé,
vistos pela última vez naquela terrível manhã de inverno em que foi raptada e violada, estejam
mortos. Se fosse repatriada, as poucas pessoas que poderiam lembrar-se dela em Pristina
saberiam o que lhe aconteceu. Os traficantes italianos e albaneses certamente que se
141
Cf. Caroline Moorehead, op. cit., pp. 86-92

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 56


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

lembrariam dela. Com baixo nível de educação, sem família e sem dinheiro, antevê que
poucas hipóteses lhe restam além de voltar para as ruas para poder alimentar o novo bebé.
Reza para que seja um rapaz, porque se for uma rapariga terá sempre medo que acabe por cair
na mesma vida que ela.142

142
Idem, p. 92

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 57


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6. – Portuguesas inconformadas

Ao longo da História de Portugal muitas foram as portuguesas que se destacaram pelo


seu inconformismo, nos mais variados contextos, quer usando de astúcia, quer rebelando-se,
quer mantendo-se firme nos seus ideias, quer lutando pela via da legislação, quer lutando por
promover uma agenda social.

Fig. 18 – D. Carlota Joaquina, óleo sobre tela


da autoria de Domingos Sequeira [pintor
português (1768-1837)].

Carlota Joaquina (1775-1830) sentia ter nascido para algo mais que esposa de rei e
mãe de infantes. Filha do rei de Espanha Carlos IV, deixaria os seus pais aos dez anos para se
casar com o segundo filho de Maria I de Portugal, que já completara dezoito anos. Como
refere a investigadora Francisca Azevedo, se esta personagem pudesse ter feito uma
retrospetiva da sua vida poderia ter chegado à conclusão de que o seu temperamento
independente, a sua personalidade autoritária e a sua negação à submissão foram os seus
maiores obstáculos para vencer no mundo dos homens.143 Com a morte do príncipe herdeiro
passará a ter no seu horizonte o título de rainha e, de facto, com a progressão e
irreversibilidade da doença mental de D. Maria I, abalada pelo falecimento do marido e tio D.
Pedro III e do filho primogénito José e também apavorada pelos acontecimentos da
Revolução Francesa, o seu marido, o futuro rei João D. VI, tem de assumir a regência.
Começará aqui a progressiva divergência entre os esposos, com Carlota Joaquina a não aceitar
não ter sido convidada para o Conselho de Regência e constituindo uma rede de informadores
que lhe proporcionaria um contrapoder na corte e uma guerrilha conjugal. Pensa em efetivar o
seu poder e consegue que o marido lhe conceda autorização para distribuir comendas;

143
Francisca L. Nogueira de Azevedo – Carlota Joaquina na Corte do Brasil, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2003, apud “Carlota Joaquina”, Anabela Natário – Portuguesas com História – Século XVIII,
Círculo de Leitores, 2008, pp. 198-207

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 58


A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

demoraria pouco tempo até o seu nome ser envolvido na autoria moral de uma tentativa
frustrada de deposição do regente. Também fracassou em fazer valer os seus direitos e tornar-
se regente da América espanhola, o que não a impediu de continuar a conspirar. Regressada
do Brasil, recusa-se a jurar a Constituição liberal de 1822 e participará em várias conspirações
e tentativas de golpe como a ‘Vilafrancada’ e a ‘Abrilada’ ambos promovidos pelo infante D.
Miguel para restabelecer o absolutismo. Morrerá feliz por ter ouvido gritar “Viva D. Miguel,
nosso senhor! Viva a imperatriz Rainha, sua mãe!” sem saber que o reinado seria de curta
duração.144

Fig. 19 – A Revolta da Maria da Fonte vista


por Bordalo Pinheiro.

Em 1846 rebenta um motim popular encabeçado por mulheres. Ficaria conhecido


como ‘Revolta da Maria da Fonte’, mas a verdade é que não houve uma única líder e sim
várias: Joana Maria Esteves, Joaquina Carneira, Josefa Caetana, Maria Angelina, Maria
Custódia Milagreta, Maria da Fonte do Vido, Maria da Mota, Maria Luísa Balaio, Maria
Vidas… Não houve uma só causa para esta revolta camponesa, num país em que mais de 70%
144
Cf. “Carlota Joaquina”, Anabela Natário, op. cit. n. 4

Fernando A. P. Pereira – 2016-2019 59


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da população vivia da agricultura e estava a braços com uma praga da batata e com a seca que
só faziam aumentar a já gritante pobreza, mas a mais emblemática foi a lei que obrigava a
romper com a tradição dos enterramentos nas igrejas, esperar pelo comissário de saúde para a
declaração de óbito e, por fim, pagar as despesas do funeral. Maria da Fonte do Vido foi
encontrada num embrulho de recém-nascido abandonado junto da fonte do Vido; foi criada ao
deus-dará e não seria mais conhecida que na própria terra se não tivesse encabeçado, com
uma cruz erguida na mão, o enterro forçado na igreja de Fonte da Arcada, concelho de Póvoa
de Lanhoso, quando já todos se preparavam para um funeral dentro da legalidade. A segunda
rebelião ocorreria novamente na Póvoa de Lanhoso, a propósito do enterro de uma camponesa
de uma freguesia do concelho; quando se soube que estaria para chegar o comissário de saúde
para atestar o óbito, adivinhou-se que o corpo iria para o cemitério, onde ficaria ao abandono,
em vez de para solo consagrado. O médico não apareceu mas muitas mulheres armadas de
paus, ancinhos e alfaias agrícolas agarraram no caixão e transportaram-no em correria até um
mosteiro a cerca de um quilómetro onde sepultaram a vizinha, sem sequer esperar pelo
serviço religioso; à frente, empunhando a cruz e com uma pistola à cintura, ia Maria
Angelina. Perante o sucedido, as autoridades prenderam os cabecilhas da revolta e tentaram
exumar o cadáver enterrado à força no mosteiro para repor a lei; os sinos voltaram a tocar a
rebate e centenas de mulheres com foices, chuços e varapaus afugentaram os representantes
da Justiça e correram os coveiros à pedrada. Como dirá a investigadora Paixão Bastos:
“Possuídas do espírito belicoso de Marte no coração e reforçadas (é de presumir) pelo
turbulento espírito de Baco no miolo, romperam num entusiasmo delirante, com vivas à Maria
da Fonte. E para berrar não há como as goelas das camponesas minhotas.”145

Perante a insurreição das mulheres, que incluíram assalto à cadeia para libertar as
companheiras, as autoridades emitiram mandatos de captura, mas apenas prenderam Josefa
Caetana, que julgou que poderia livrar-se dizendo-se dona daquele temido nome; contudo os
guardas conheciam-na bem e o juiz mandou-a para a prisão de Braga. No caminho, porém, os
seis polícias que a escoltavam forma subjugados por centenas de mulheres e mais esta Maria
da Fonte foi libertada.146

Ousara pensar pela sua própria cabeça, tomara certas atitudes e Salazar não lhe
perdoou. Fundou um colégio, ele fechou-lho; conquistou o direito a ser professora
145
Paixão Bastos – Maria Luiza Balaio ou Maria da Fonte, Lisboa, Tipografia Moderna, 1945 apud “Maria da
Fonte”, Anabela Natário – Portuguesas com História – Século XIX, Círculo de Leitores, 2008, pp. 64-71.
146
Cf. “Maria da Fonte”, Anabela Natário op. cit. n. 6

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universitária, ele proibiu-a de dar aulas; surgiu a oportunidade de tentar a sorte no estrangeiro,
ele não a deixou sair do país. Mas nunca desistiu de lutar contra a ditadura, nem mesmo
quando, já viúva, viu perigar o seu futuro e o dos seus filhos. Maria Isabel Hahenneman
Saavedra Aboim Inglês (1902-1963) foi presa, pela primeira vez, nos fins de 1946. Dizia que
ninguém a podia impedir de pensar, de falar ou de escrever e disse-o na cara de um juiz do
Tribunal Plenário do Estado Novo, lugar onde a justiça estava a priori decidida, sem qualquer
possibilidade de defesa para os réus que saíam dali regra geral acusados de crimes contra a
segurança do Estado. “Não te mostres fraca perante a PIDE, mas procura também manter-te
como uma senhora perante eles, não os deixes de maneira nenhuma diminuírem-te” 147
aconselharia às mulheres mais jovens que também lutavam contra a opressão.

Fig. 20 – Isabel Aboim


Inglês.

“Eu, na minha vida prisional, fazia sempre o seguinte: tomava duche, mesmo quando o
duche era frio, arranjava-me, vestia-me e punha-me como se fosse tomar chá à Baixa. Aí,
quando eles me chamavam para os interrogatórios, ou fosse para o que fosse, deparavam
comigo, uma senhora. Eles sabiam que estava firme, que eu estava absolutamente convicta
das minhas ideias, mas assim era de uma forma imediata, visual, de ter impacto, de «com esta
não fazemos nada».”148

147
“Isabel Aboim Inglês”, Anabela Natário – Portuguesas com História – Século XX, Círculo de Leitores,
2008, p. 36.
148
Idem

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Fig. 21 - Isabel Inglês com


ficha na PIDE.

Isabel Aboim Inglês vestia-se sempre a preceito, usava o cabelo apanhado atrás, deixando
bem descoberto o rosto branco, que gostava de maquilhar ligeiramente. “Quando vinham
buscar-nos para os interrogatórios eu dizia sempre, vou-me pentear, vou-me pentear, porque o
que é preciso é que eles nunca nos vejam despenteados.” 149 De facto, não era uma mulher que
se amedrontasse com facilidade. Nem cedia a ameaças; ceder uma vez, ceder para sempre. Em
1958, na campanha do general Norton de Matos à Presidência da República, ignora a
chantagem da polícia política e faz o seu discurso como estava previsto. A polícia política
cumpre a ameaça e o seu filho é preso, mas não será só este a sofrer a perseguição; a raiva que
o regime tem a Isabel estende-se também às filhas: uma, pintora, é proibida de dar aulas, a
outra, engenheira agrónoma, é impedida de trabalhar na função pública, mesmo tendo ficado
em primeiro lugar num concurso. Destaca-se no movimento pró-amnistia aos presos políticos,
sendo presa pela PIDE em 1946 e 1948 e em 1960 é agredida na prisão de Caxias, onde se
deslocara para ver o filho aí preso. O regime impediria o seu filho, preso no Forte de Peniche,
de ir comparecer no velório e de acompanhar o funeral da mãe, que reuniu centenas de
pessoas sem medo.150

Elina Guimarães (1904-1991) guiou o seu pensamento pela máxima ‘dar à lei força da
vida’. Tinha a preocupação constante de divulgação das leis referentes às mulheres, ao mesmo
tempo que denunciava as situações de discriminação legal. Como referia: “Durante séculos e
séculos as leis foram escritas, aplicadas, estudadas e comentadas por homens” portanto, “não
admira que fossem masculinas”.151 Elina Júlia Chaves Pereira Guimarães cedo começa a

149
Vide supra n. 10, p. 38
150
Cf. “Isabel Aboim Inglês”, Anabela Natário, op. cit. n. 10, pp. 34-43
151
Sofia Branco, “Elina Guimarães”, Público, 2006-06-25 apud “Elina Guimarães”, Anabela Natário, op. cit. n.
11, p. 46

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aperceber-se da disparidade do papel feminino em relação ao masculino, uma submissão que


as mulheres, no seu entender, aceitam com demasiada prontidão o que a irrita. Observa que a
mulher não tem qualquer ideia do quanto é discriminada e tratada injustamente, o que
considera ser o mais grave. Indecisa entre Medicina e Direito, fez rapidamente a sua opção
pelo estudo das leis quando quis propor-se a exame no liceu feminino Maria Pia, criado em
1906, e lhe foi recusada a inscrição por na caderneta não constar a assinatura do pai, ausente
na guerra, e só a da mãe não ser suficiente. Quando acabou o curso ficou surpreendida por
descobrir que o liceu cometera uma ilegalidade, a que habitualmente ninguém dava
importância, pois há muito que o Código Civil previa que a mulher tomasse o lugar de chefe
de família na ausência deste; para o servilismo do regime, o excesso de zelo era sempre bem-
visto. Frequentará o liceu misto Pedro Nunes para poder ingressar na Faculdade e cursar
Direito. Mais tarde, já no curso superior, um dos seus colegas de faculdade afirma, em plena
aula, que a inteligência feminina era inferior à masculina, suscitando de imediato o desafio
por parte de Elina para uma prova pública, tendo o reitor e alguns professores como
testemunhas; terminada a exposição, ela teria a classificação de 18 valores e ele de 16
valores.152 Sente que, como em tudo o resto que irá viver, para a mulher tudo se apresenta
mais difícil de concretizar sendo alguns professores muito mais exigentes com as provas das
raparigas do que com as dos rapazes, enquanto estes partilham normalmente a ideia de que o
sexo feminino devia estar em casa a coser meias. Tudo isto faz com que Elina sinta cada vez
mais vontade de se envolver na luta pela igualdade.

Fig. 22 – Elina Guimarães.

“Para muita gente ainda, embora menos do que dantes, a palavra feminista evoca uma
espécie de megera masculinizada, horrenda e feroz, cujo único fim na vida é vociferar contra
os homens e tentar tiranizá-los. Como semelhante criatura nunca existiu entre nós, facilmente
152
Madalena Barbosa, “Elina Guimarães: uma feminista portuguesa, vida e obra (1904-1991)”, Comissão para a
Igualdade e para os Direitos das Mulheres [atual Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género], 2004, p.
16, apud “Elina Guimarães”, Anabela Natário op. cit. n. 14, p. 48

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

se depreende que esta deliciosa imagem é de importação estrangeira. E, investigando mais


detalhadamente a sua origem, encontramo-la, não na realidade, mas… nos jornais
humorísticos e nos números de ‘music-hall’. Essas caricaturas, manifestamente exageradas e
tendenciosas que lá fora caíram já em desuso, são entre nós tomadas a sério.”153

É este o seu pensamento em 1930, escrevendo para uma das muitas publicações periódicas em
que colaborou sempre na defesa dos seus ideais. E não sabia que no ano seguinte o regime iria
estender o direito de voto à mulher licenciada enquanto que ao homem bastava saber ler e
escrever...154

Fig. 23 – A Lei em Que Vivemos… (Lisboa,


1937 [reencapamento de 1942]
Editorial «O Século»
1.ª edição, 19 cm x 12 cm, 244 págs.
Subtítulo: Noções de Direito Usual Relativo à
Vida Feminina

Fig. 24 – A lei em que vivemos…: noções de


direito usual relativas à vida feminina por
Elina Guimarães, 1977, BNP Esp. N42/5,
datiloscrito em preto e vermelho com emendas
autógrafas.

“É muito duvidoso que pudesse chamar-se àquilo direito a voto. Davam direito
de votar às mulheres que tivessem curso secundário ou superior. Eu estava
nesse caso, mas pensei: eu acho isto extremamente humilhante, que ponham
essa condição. Quer dizer que uma mulher tem de ter um curso universitário
para estar igual mentalmente ao homem. E ainda para mais isto não é votar. É
deitar um papelucho que o governo nos dá”155

153
N. A.: estranhamente, este conceito ainda mantém uma certa atualidade. Vide “Capítulo 1 – Preconceitos
introdutórios”.
154
Vide supra n. 7
155
“Elina Guimarães”, Anabela Natário op. cit., p. 50

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Afirmação produzida em 1975 numa entrevista a programa da RTP. O feminismo não


pretende masculinizar a mulher, mas sim assegurar-lhe o livre desenvolvimento pessoal para
poder colaborar com o homem e não para o tiranizar, assim entendia Elina Guimarães. Seria
condecorada em 1985 com a Ordem da Liberdade.156

Fig. 25 – Maria de Lurdes


Pintasilgo.

Primeiro-ministro, primeira-ministro ou primeira-ministra? Ninguém tinha a certeza


de como lhe chamar, nunca uma mulher desempenhara esse cargo em Portugal. Maria de
Lurdes Pintasilgo (1930-2004) aceitou liderar o V Governo Constitucional, composto por
homens, durante cento e quarenta e nove dias; poderá ter sido pouco tempo, mas conseguiu
deixar as bases para um sistema de Segurança Social para todos. A sua atividade de
intervenção social inicia-se nos tempos de Faculdade, presidindo à Juventude Universitária
Católica Feminina entre 1952 e 1956, sendo depois eleita presidente do Movimento
Internacional de Estudantes Católicos. Em 1957 traz para o país o Graal, movimento cristão
feminino lançado na Holanda em 1921 com o objetivo de criar uma cultura de solidariedade e
de paz; entre 1964 e 1969 será sua vice-presidente internacional e coordenadora de programas
de formação e de projetos ligados à emancipação da mulher, à ação sociocultural e à
evangelização. Quando Salazar é afastado do Governo, acredita que Marcelo Caetano irá
mudar o estado das coisas; sendo contra o sistema de partido único, recusa o convite para
integrar as listas à Assembleia Nacional, porém aceita o lugar de procuradora à Câmara
Corporativa, onde irá permanecer até 1974.
“Foi extraordinariamente interessante! Pude aperceber-me (…) do que era a política
concreta, e pude observar, do interior, as suas estruturas, o seu modo de funcionamento, os
erros, etc. (…) Por outro lado, esta experiência foi-me impedindo de julgar as pessoas e as
questões de forma maniqueísta…”157

156
Idem, pp. 44-53

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Fig. 26- Maria de Lurdes Pintasilgo


tomando posse na chefia do V Governo
Constitucional.

Quando se dá a Revolução dos Cravos, encontra-se em França num retiro espiritual,


regressando de imediato e em maio estava a tomar posse como Secretária de Estado da
Segurança Social. O primeiro-ministro é Adelino da Palma Carlos, marido de Elina
Guimarães cuja ação foi atrás abordada. Além dela só há mais uma mulher no Governo:
Maria de Lurdes Belchior, Secretária de Estado dos Assuntos Culturais e Investigação
Científica. No terceiro e quarto governos provisórios, liderados pelo general Vasco
Gonçalves, será ministra dos Assuntos Sociais; uma mulher ministra era outra novidade
trazida pela Revolução.
“Eu passara as três semanas que se seguiram ao 25 de Abril tentando perceber o que se
estava a passar na sociedade portuguesa, tentando compreender a que é que aquilo tudo
conduziria. Num congresso que a Françoise Giroud [jornalista, escritora, cronista, ensaísta e
política suíça radicada em França, nascida Lea France Gourdji (1916-2003)] 158 realizou em
Paris, por essa altura, lembro-me de ter dito que, «em Portugal, se fazia uma revolução no
masculino, apesar de a palavra ser feminina». As notícias visavam apenas os homens, tudo se
passava entre eles, etc. Estava eu nesta constatação quando Mário Murteira – indicado para
titular dos Assuntos Sociais – me convidou para sua Secretária de Estado.”159

Ao longo de cinco anos tomam posse seis governos provisórios e quatro constitucionais;
ficando em média cada um seis meses no poder. Lurdes Pintasilgo é nomeada em 1975
embaixadora de Portugal na UNESCO e segue para Paris, mas quando o presidente Ramalho
Eanes a escolhe para liderar o V Governo Constitucional, não fica surpreendida, sentia-se
preparada e não hesitou. O país, contudo, foi apanhado de surpresa. Decerto que em maio
havia sido eleita, pela primeira vez na Europa, uma primeira-ministra, a líder do Partido
Conservador Margaret Thatcher, mas isso foi na distante Inglaterra… Imbuída do espírito da
Revolução, propôs-se construir as estruturas de uma sociedade mais justa.
“(…) o desenvolvimento supõe a participação de todos no processo que leva uma
sociedade a fazer face à sua própria evolução histórica. Ora no caso português as condições de
157
Entrevista a Maria João Avillez apud “Maria de Lurdes Pintasilgo”, Anabela Natário – Portuguesas com
História – Século XX, Círculo de Leitores, 2008, p. 226
158
Cf. “Françoise Giroud” in Wikipédia, a enciclopédia livre [Consult. 2009-03-21]. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7oise_Giroud
159
Op. cit. n. 21, p. 228

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participação das mulheres no processo de desenvolvimento são extremamente precárias, como


o são praticamente em todos os países do mundo. Na Suécia, que nos aparece como modelo
de igualdade entre os sexos, o último relatório governamental sobre a participação da mulher
no desenvolvimento do país dizia: «Se o nosso país eliminasse as discriminações entre os
sexos, o produto nacional bruto (quer dizer, a quantidade de riqueza disponível no país)
aumentaria de 50%». Ninguém fez as contas para Portugal. Mas é fácil estabelecer um certo
paralelo, pelo menos numa regra de três simples, para uma aproximação…”160
“(…) é um problema tão geral que na Assembleia Geral da Nações Unidas que vai
começar dentro de poucas horas (…), um dos pontos da agenda é precisamente a
reivindicação feita pela Comissão do Estudo da Mulher relativamente à possibilidade das
Nações Unidas empregarem mulheres nos altos postos da organização – também na ONU
como em qualquer grande organização nacional ou internacional os chefes de departamento
são sempre homens, havendo uma abundância de mulheres que servem café ou escrevem à
máquina…”161
“[As] diferenciações salariais entre homens e mulheres, que no nosso país são da
ordem dos 40%, (…) existem em todos os países do mundo sem exceção. (…) No nosso país
essas diferenciações têm causas muito variadas, e são tanto mais graves quanto uma mulher
qualificada no setor operário ganha menos que um operário não qualificado no mesmo setor
de trabalho.”162

Para Maria de Lurdes Pintasilgo, as mulheres, como todos os grupos socialmente


desfavorecidos, tendem a interiorizar a sua situação, considerando-a natural. Não se tratará de
uma relação de opressores versus oprimidos, mas de um contexto em que todos são opressores
e oprimidos, na medida em que se aceita sem questionar situações de desigualdade, aquilo que
denomina de ‘colonizados-por-dentro’ aspirando ao padrão proposto pela sociedade de tipo
masculino que é característica da civilização ocidental, chegando até a, inconscientemente,
tentar uma identificação com esse padrão.
“As mulheres têm sido sempre tentadas a aceitar os pontos de vista tradicionalmente
condicionados e concebidos pelos homens. E tanto assim é, que os homens têm sido
considerados como pessoas, as mulheres que trabalham como semipessoas, e as mulheres que
ficam em casa como não-pessoas. É lícito, por isso, perguntar o que é que quer dizer a
realização de uma semipessoa ou de uma não-pessoa. O conceito de realização pessoal supõe
a reconsideração de todas as mulheres como pessoas, isto é, com liberdade de escolherem
uma entre muitas alternativas para a sua vida. E, como será possível falar de realização para
alguns membros, se a possibilidade de realização pessoal está completamente excluída para
outras por causa do seu sexo, da sua cor ou de outras limitações resultantes de preconceitos
sociais? Não pode conseguir-se uma realização pessoal numa sociedade em que alguns são
oprimidos. (…) E assim posso dizer que aquilo que nós procuramos como mulheres é uma
sociedade global, onde cada indivíduo tenha oportunidade de lutar para o maior bem-estar de
todos. Temos, sem dúvida, de poupar energia, mas temos de poupar sobretudo energia
160
Cf. Maria de Lurdes Pintasilgo, “A década da promoção da mulher”, comunicação proferida na Semana
Missionária em Lisboa, em setembro de 1971. Fundação Cuidar o Futuro, Centro de Documentação e de
Publicações, Dossier Temático – Inscrição das Mulheres no Espaço Público: Identidade(s) em Construção,
“Desenvolvimento e Qualidade de Vida”, compilação de textos por Rosa Monteiro e Virgínia Ferreira [Consult.
29 mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/ckhhmp
161
Idem
162
Ibidem

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

humana. Nós temos suficiente energia humana para melhorar as condições de todos nós, se
não dissiparmos essa energia no luxo do ódio e da competição destrutiva entre grupos, sexos e
classes.”163

Em 1981, já enquanto ex-primeira-ministra, comentaria numa entrevista164, falando da sua


experiência como líder político: “O simples facto de as mulheres exercerem funções
governativas, independentemente da forma como o fazem, quebra o caráter quase religioso de
que estas funções se revestem. São funções que se democratizam e se tornam acessíveis a toda
gente (…)”. Mas a intervenção das mulheres deveria resultar “de um imperativo da sua
própria consciência”. A criatividade nas decisões políticas nasce de atos de revolta contra as
injustiças e “a presença das mulheres só faz sentido se, pela sua maneira de viver a política,
contribuírem para rasgar um horizonte novo para a sociedade”.

163
Cf. Mrs. Washington, Diretora-Adjunta dos programas de educação para mulheres do Ministério do Trabalho
dos EUA e esposa do Mayor de Washington apud Maria de Lurdes Pintasilgo, comunicação à Reunião de
Peritos da OCDE: “O Papel das Mulheres na Economia”, Washington, EUA, 3-6 dez. 1973. Fundação Cuidar o
Futuro, Centro de Documentação e de Publicações, Dossier Temático – Inscrição das Mulheres no Espaço
Público: Identidade(s) em Construção, “Desenvolvimento e Qualidade de Vida”, compilação de textos por Rosa
Monteiro e Virgínia Ferreira [Consult. 26 abr. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/ckhhmp
164
Cf. Elisabete Franca, “Mulher Atenta à Problemática da Condição Feminina”, Alavanca, n.º 44, maio 1981,
CGTP-IN. Fundação Cuidar o Futuro, Centro de Documentação e de Publicações, Dossier Temático – Inscrição
das Mulheres no Espaço Público: Identidade(s) em Construção, “Liderança e Poder”, compilação de textos por
Marijke de Koning [Consult. 26 abr. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/c35vuq

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

7. – Especificidade feminina?

Existirá, todavia, uma especificidade feminina que constitua causa necessária e


suficiente para essa desvalorização ou, pelo contrário, tal será apenas mais um mito
apaziguador de má consciência? Algo que constitua fator negativamente discriminatório para
a mulher, isto é, será o sexo feminino intrinsecamente mais fraco e mais delicado, logo,
inferior ao masculino, mais forte e mais capaz, ou tudo não passará de estereótipos e mitos
passados ao longo de gerações para justificar uma dominação por parte do homem?

“As mulheres portuguesas são parvas”, assim inicia Maria Filomena Mónica 165 uma
das suas crónicas166, insurgindo-se contra a utopia de as mulheres exigirem de si próprias:
“(…) levar as crianças à escola, atender os clientes no escritório, ir à hora de almoço
ao cabeleireiro, voltar ao escritório onde a espera sempre um problema urgente, fazer compras
num moderno supermercado, ler umas páginas de Kant antes de mudar as fraldas ao
pimpolho, dar um retoque na maquilhagem, telefonar a três babysitters antes de encontrar
uma, ir ao restaurante jantar com os amigos do marido, discutir a última crise governamental e
satisfazer as fantasias sexuais difundidas pelos canais de televisão.”167

Por outro lado,


“As mulheres já se cansaram de ouvir dizer (e de dizerem) que são discriminadas,
donde umas desgraçadas. Vamos percebendo, cada vez em maior número, que o estatuto de
vítima e de queixosa não nos é benéfico porque nos enfraquece e porque não nos permite
desafiar, em plena igualdade, aqueles e aquelas que insistem que o poder é, por natureza,
masculino. Já nos apercebemos que reconhecer as nossas imensas forças, capacidades,
tenacidade, responsabilidades, é muito mais produtivo do que o discurso das limitações.”168

Numa altura em que diversos estudos indicam ser maior a presença feminina nas
Universidades, em que a expressão ‘feminismo’ soa algo anacrónica, em que várias mulheres
têm o seu lugar no hemiciclo, é revelador aferir que nos lugares de topo, onde realmente está
o poder efetivo, o feminino não está presente. Porquê? Segundo Simonetta Luz Afonso 169 os
filhos têm primazia e como não podem interromper a carreira, as mulheres mantêm-se em

165
Socióloga portuguesa doutorada em Oxford (n. Lisboa 1934). Cf. “Maria Filomena Mónica”, Wikipédia, a
enciclopédia livre [Consult. 21 Jun. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/pnnroe
166
Crónica publicada pela primeira vez em 02/03/2005 e republicada em Confissões de uma Liberal, Quasi
Edições/Sábado, Vila Nova de Famalicão, 2007
167
Cf. Maria Filomena Mónica, Confissões de uma Liberal, op. cit., pp. 77, 78.
168
Ana Vicente, Os Poderes das Mulheres, Os Poderes dos Homens, Gótica, Lisboa, 2002, p. 15
169
Museóloga portuguesa (n. Lisboa, 1946), exerceu diversos cargos importantes entre os quais comissária de
Portugal para a EXPO’98. Cf. “Simonetta Luz Afonso”, Infopédia [Consult. 21 Jun. 2009].
Disponível em http://www.infopedia.pt/$simonetta-luz-afonso

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lugares intermédios.170 Assim, optaram por empregos seguros e com horas certas,
nomeadamente na Administração Pública, onde acabaram por superar numericamente os
homens. Muitas vezes só existia um homem. Não seria o mais competente, mas, como era
homem, era ele o chefe.171

Porém, para Ana Paula Rosa, sócia de uma empresa na área da comunicação e mãe de
três filhos, hoje já não faz sentido que uma mulher que queira ser “boa executiva, ter uma
profissão ou estatuto enquanto empresária, tenha de abdicar da família”. O ‘truque’ estará em
não criar uma fronteira entre os dois mundos, familiar e laboral, mas antes procurar formas de
os conciliar. Quando teve oportunidade de viver seis anos na Holanda, verificou que uma
mulher que quisesse ter filhos podia fazer um intervalo na sua carreira sem que isso
significasse perda de oportunidades no regresso ao trabalho, não ficando mal vista nem
ultrapassada pelos colegas. Pelo contrário, era valorizada por ter desempenhado um
importante papel social, conferindo-lhe competência e diferenciação pela positiva.172 Em
Portugal, em muitas empresas, pergunta-se diretamente à candidata a emprego se tenciona
engravidar, servindo a afirmativa como fator de exclusão ou então impõem-lhe a assinatura de
um documento, perfeitamente ilegal, em que esta se compromete a não engravidar no prazo
de cinco anos…

Outra questão é a da diferença salarial entre homens e mulheres, que pende claramente
para o homem.
“As empresas portuguesas lucram mais de seis milhões de euros pelo facto de pagarem
um salário menor ao sexo feminino. Os dados constam de um estudo do Eurofound [European
Foundation for the Improvement of Living and Working – Fundação Europeia para a
Melhoria de Vida e de Trabalho] que incidiu sobre 28 países e que utilizou apenas dados
oficiais dos quadros de pessoal das empresas divulgadas pelos próprios governos. No caso
português, os dados foram divulgados pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social.
Portugal é mesmo o país onde a discriminação de remunerações com base no género é maior.
Em média, as mulheres recebem menos 25,4% do que os homens e estima-se que em 2008 a
diferença entre o ganho médio dos homens e das mulheres seja de 249,65 euros/mês. Para
além da discriminação sexual, os elementos femininos – segundo o estudo – recebem menos
quanto maior for a sua escolaridade e qualificação. A discriminação remuneratória das
mulheres é também desigual no que diz respeito aos setores de atividade. A este nível, por
exemplo, as diferenças são bem patentes na Indústria Transformadora e nas Atividades de
170
Cf. Alexandra Marques, “Elas não predominam porque eles já lá estão”, Jornal de Notícias, 2005-03-08
[Consult. 28 Dez 2008]. Disponível em http://jn.sapo.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=497067
171
Cf. J. L. Pio Abreu, “Galinheiros”, Jornal Destak, 2008-12-05 [Consult. 28 Dez. 2008]. Disponível em
http://www.destak.pt/artigos.php?art=17202
172
Cf. “Mulheres usam «truques» para serem boas mães e empresárias”, Diário Digital, 2008-11-06 [Consult. 26
Nov. 2008]. Disponível em http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=357611

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Serviços Coletivos, Sociais e Pessoas. O ganho médio da mulher na Indústria Transformadora


é inferior ao do homem em 32,6% e no setor de outras Atividades de Serviços Coletivos,
Sociais e Pessoais, o ganho médio da mulher era inferior ao dos homens em 43,5%.”173

É um assunto delicado em que a preocupação de numerosas pessoas contrasta com a


completa indiferença de outras tantas: um relatório recentemente publicado no Reino Unido
(“Should we mind the gap?” pelo Prof. J. R. Shackleton) concluiu que “não deveríamos fazer
tanto barulho em torno das disparidades salariais entre homens e mulheres”. É um facto
comprovado que as mulheres ganham em média menos 15% que os homens, em números de
2006. Várias razões explicam esta disparidade salarial. Antes de mais a segregação no
mercado de trabalho: as mulheres continuam largamente confinadas a certos setores e
empregos pior remunerados; mais de quatro mulheres em dez trabalham na Administração
Pública, no ensino, na saúde ou em atividades sociais contra menos de dois homens em dez. A
isto junta-se o denominado ‘muro de vidro’, uma barreira invisível que impede o sexo
feminino de aceder aos lugares de direção melhor remunerados. O domínio de estudos (há
menos raparigas em engenharia e economia, por exemplo) é um fator que acresce aos sistemas
de classificação de emprego e aos sistemas remunerativos, mais favoráveis

Fig. 27 - Disparidade salarial


entre homens e mulheres

aos homens. Há ainda o problema da


conciliação das responsabilidades profissionais e familiares: um grande número de lugares de
direção atuais não são flexíveis e não se coadunam com uma família a cargo, uma
responsabilidade que, na maior parte das vezes, recai sobre a mulher. A falta de estruturas de
acolhimento para crianças física e financeiramente acessíveis constitui igualmente um
obstáculo: numerosas são as mulheres que, quando têm os filhos, se veem na contingência de
deixar o mercado de trabalho ou de trabalhar a tempo parcial com a correspondente redução

173
Cf. Marta Araújo, “Mulheres recebem menos 25% de salário do que os homens”, Jornal Destak, 2008-10-01
[Consult. 1 Out. 2008]. Disponível em http://www.destak.pt/artigos.php?art=14607.

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

salarial. Outros fatores têm também influência, como a discriminação baseada em


preconceitos e estereótipos.174

O desporto foi durante muito tempo outro campo completamente vedado às mulheres.
Na Grécia antiga era inteiramente proibido à mulher participar em competições desportivas,
quer como atleta quer como espetadora, exceção feita às mulheres solteiras a quem era
permitido assistir. A pena aplicada a uma mulher casada que fosse surpreendida a observar os
atletas era a morte, já que estes competiam nus, exibindo os corpos como símbolo de
perfeição e dedicação. O maior obstáculo à participação feminina em competições viria,
curiosamente, de Pierre de Coubertin (1863-1937), fundador dos Jogos Olímpicos da Era
Moderna: “Para elas a graciosidade, as sombrinhas, o lar e as encantadoras crianças; para os
homens as competições desportivas”; “Uma olimpíada feminina não seria nem prática, nem
interessante, nem estética, nem correta”. A sua fórmula era a exaltação solene do atletismo
masculino, tendo o internacionalismo por base, a lealdade por meio, a arte como marco e o
aplauso feminino como recompensa. Para ele, esta combinação do ideal antigo e das tradições
cavaleirescas, era a única sã e satisfatória. 175 Manteve obstinadamente o seu ponto de vista e
durante muito anos foi esta a opinião dominante no mundo do desporto. A realidade atual é
assaz diferente. Constata Carlos Lopes, campeão olímpico: “Tem vindo a verificar-se uma
aproximação cada vez maior ao nível dos resultados. As mulheres começaram mais tarde a
competir em massa, mas hoje surgem já com muito ímpeto e agressividade”. 176 Como refere
Vanessa Fernandes, várias vezes campeã de triatlo:
“A grande conquista já não é convencer a sociedade a aceitar a mulher no desporto,
mas sim convencer as mulheres que o desporto deve fazer parte do seu dia-a-dia e que lhes
pode trazer uma qualidade de vida muito superior, quer do ponto de vista da saúde quer do
exemplo a transmitir aos seus filhos”.177

Contudo, Elisabete Jacinto, piloto de rali em camião, assinala alguns problemas:


“O problema em Portugal também é que não se valoriza o desporto. Só interessa
futebol. E vivemos numa sociedade onde se educa as mulheres de uma determinada maneira e
os homens de outra. Quando há uma mulher que sai dentro daquela esfera que foi concebida
para ela, as pessoas reagem mal. Este é um desporto de homens, é um desporto difícil porque
só os homens o fazem, então se aparecem mulheres é porque isto já não é tão difícil e os
174
Cf. “De plus en plus entreprises européennes s’attaquent au problème de l’écart de rémunération entre
femmes et homes”, Agenda Social, Bruxelles, Commission Européenne, n.º 19, Décembre 2008, pp. 7-9
175
Cf. Miquel Pascual Aguiló, “As mulheres e o desporto, história de outra discriminação”, Notícias, Lisboa,
Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, n.º 81, outubro 2008, pp. 10, 11
176
Cf. Carlos Lopes, “Evolução positiva da mulher no desporto”, Notícias, op. cit., p. 19
177
Cf. Vanessa Fernandes, “Desporto no dia-a-dia das mulheres”, Notícias, op. cit., p. 18

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

homens sentem-se desvalorizados. Então ela está aqui a mais, não pode estar. Se conseguiu
um bom resultado, é porque só havia dois camiões, se foi 10.ª na geral dos carros, é porque
não havia equipas boas.”, “As pessoas acham que uma mulher que faz um desporto que
geralmente é feito por homens, é mulher-homem ou age como um homem. Não.”, “As
mulheres auto excluem-se. E para as mulheres é tudo muito mais difícil.”, “(…) o primeiro
passo é a pessoa questionar-se: "O que me impede de fazer?". E tem de ir à luta, acreditar
seriamente para conseguir eliminar todas as barreiras porque são muitas.” 178

E na política? Onde estão as mulheres?

Geralmente, os ‘retratos de família’ de chefes de Estado ou de governo – na Europa ou


em qualquer outro lugar do mundo – têm uma coisa em comum: a grande maioria, quando não
a totalidade, dos participantes são homens. Apesar de todo o progresso já feito, é um facto que
ao aproximarmo-nos do final da primeira década do séc. XXI, as mulheres continuam a ser a
minoria no mundo político. Nos parlamentos, nos ministérios e governos, são os homens que
continuam a manobrar os cordelinhos. Isto é tanto mais relevante na União Europeia no ano
em que se avizinham importantes mudanças para a democracia europeia. Em 2009 ocorrerão
as eleições para o Parlamento Europeu e um novo conjunto de Comissários Europeus,
incluindo o Presidente da Comissão, tomará posse.

Fig. 28 – Conselho da
Europa

Naturalmente que as mulheres fizeram enormes progressos nas últimas décadas e a


maioria das pessoas pode facilmente nomear uma lista de senhoras em posições de poder:
Hillary Clinton, nos EUA; Angela Merkel, na Alemanha; Tansu Çiller, na Turquia; Margareth
Thatcher, no Reino Unido; Maria de Lurdes Pintasilgo, em Portugal; Benazir Bhutto, no
Paquistão; Indira Gandhi, na Índia; Golda Meir, em Israel. Comparativamente, porém, poucas
mulheres tiveram verdadeiro poder político. E porquê? Na maior parte dos países do mundo
178
Entrevista a Elisabete Jacinto por Alexandra Simões de Abreu em Tribuna Expresso (suplemento desportivo
do jornal Expresso) realizada em 27/01/2019, disponível em http://tinyurl.com/y4ptvfoy

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

não há barreiras legais que impeçam o sexo feminino de concorrer a eleições. Mas então
porque é o mundo político ainda dominado por homens? Não existe uma única resposta, mas
antes a conjunção de diversos elementos.179

Regra geral, na política, são atribuídas às mulheres pastas ministeriais consideradas


‘leves’ como assuntos sociais, educação e ambiente, o que em todo o caso é uma classificação
algo duvidosa: afinal a educação e os assuntos sociais costumam absorver a maior fatia dos
Orçamentos de Estado. Nas sociedades mais tradicionais, por outro lado, a mulher que busca a
liderança é amiúde discriminada: a política é vista como um domínio masculino e muitos
eleitores veem os homens como melhores líderes. Além disso, as mulheres sentem relutância
em enveredar pela política, encarada como hostil e agressiva e estão ainda em desvantagem
por não fazerem parte das importantes redes de contactos, de negócios e profissionais, que
existem fora da estrutura partidária e que trazem contactos e recursos financeiros, significando
isto que os homens são frequentemente capazes de fazer campanhas de forma mais efetiva.
Ainda recentemente, a Vice-Presidente da Comissão Europeia Margot Wallstrom, criticou o
que considerou o ‘cartel masculino’ europeu, argumentando que não se verifica a falta de
mulheres capazes, mas trata-se antes de uma questão de homens escolherem homens.180

Um exemplo: existia em torno de Golda Meir (1898-1978), duas vezes ministra e


também primeira-ministra israelita entre 1969 e 1974, um mito a propósito de uma expressão
utilizada por David Ben-Gurion (1886-1973), primeiro chefe de governo em Israel entre 1948
e 1953, que pretendia ser respeitosa para com ela ao apelidá-la de “o homem mais forte do
meu Governo”; Golda Meir nunca conseguiu perceber o elogio que era suposto a expressão
conter, por a ver como um desprestígio à sua condição de mulher. Interrogava-se sobre qual a
reação se aquilo que Ben-Gurion tivesse dito fosse “Os homens do meu Governo são fortes
como uma mulher” e recordava um discurso que proferiu em Nova Iorque, saudado
efusivamente por um escritor amigo: “Bravo! Fizeste um discurso maravilhoso! E pensar que
és apenas uma mulher!”181 Ou, como rezam os homens judeus ortodoxos: “Obrigado, meu
Deus, por não me teres feito mulher.”182

179
Cf. “Where are the women in politics?”, Social Agenda, Brussels, The European Commission, n.º 18, October
2008, pp. 7-9
180
Idem
181
Cf. “Golda Meir”, Oriana Fallaci – Entrevista com a História, Círculo de Leitores, 1975, p. 149.
182
Cf. Ana Vicente – Os Poderes das Mulheres, Os Poderes dos Homens, op. cit., p. 152

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Quão diferente seria o mundo político se existissem mais mulheres em posições de


poder? “As mulheres trazem coisas diferentes para a política, diferentes assuntos e questões
para debate” – refere Bibiana Aído, Ministra Espanhola para a Igualdade. “Com as mulheres
envolvidas, o debate político alarga-se quer de um ponto de vista quantitativo, quer
qualitativo.”183

Talvez que a mais importante razão seja cultural. Desde que, entre o Renascimento e o
Iluminismo, as monarquias da Europa sacrificavam as suas filhas às exigências de Estado em
cerimónias sumptuosas que não escondiam o facto de as princesas europeias não passarem de
peões no grande tabuleiro da política europeia, que a figura feminina foi sendo relegada para
segundo plano. Enviadas para terras estrangeiras, roubadas à infância para satisfazer as
ambições das dinastias, sujeitas ao assédio por parte do marido – que podia ser um tio ou um
primo direto – com o fito de gerar uma prole abundante, para muitas destas princesas a morte
chegou antes dos trinta anos.184

Fig. 29 – A mulher vista como


‘fada-do-lar’

Em tempos mais recentes, nomeadamente nas décadas de 50 e 60 do século XX,


exigia-se da mulher que fosse submissa e atenta aos desejos do homem, um ser sem opinião

183
Vide supra, n. 178
184
Bartolomé Bannassar – A Cama, o Poder e a Morte – Rainhas e Princesas da Europa do Renascimento
ao Iluminismo, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2009

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própria e mera extensão de seu marido. Aqui ficam alguns exemplos retirados de revistas
femininas da época185 que ilustram na perfeição a mentalidade então vigente:

Não se deve irritar o homem com ciúmes e dúvidas. - Jornal das Moças, 1957

Se desconfiar da infidelidade do marido, a esposa deve redobrar seu carinho e provas


de afeto. - Revista Cláudia, 1962

A desarrumação numa casa-de-banho desperta no marido a vontade de ir tomar


banho fora de casa. - Jornal das Moças, 1965

A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas. Nada de incomodá-lo com
serviços domésticos. - Jornal das Moças, 1959

Se o seu marido fuma, não arranje zanga pelo simples facto de cair cinza nos tapetes.
Tenha cinzeiros espalhados por toda casa. - Jornal das Moças, 1957

A mulher deve estar ciente que dificilmente um homem pode perdoar a uma mulher
que não tenha resistido a experiências pré-nupciais, mostrando que era perfeita e única,
exatamente como ele a idealizara. - Revista Cláudia, 1962

Mesmo que um homem consiga divertir-se com sua namorada ou noiva, na verdade
ele não irá gostar de ver que ela cedeu. - Revista Querida, 1954

O noivado longo é um perigo, mas nunca sugira o matrimónio. ELE é quem decide –
sempre. - Revista Querida, 1953

É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido. - Jornal das


Moças, 1957

O lugar da mulher é no lar. O trabalho fora de casa masculiniza. - Revista Querida,


1955

Sempre que o homem sair com os amigos e voltar tarde da noite, espere-o linda,
cheirosa e dócil. - Jornal das Moças, 1958

A esposa deve vestir-se depois de casada com a mesma elegância de solteira, pois é
preciso lembrar-se de que a caça já foi feita, mas é preciso mantê-la bem presa. - Jornal das
Moças, 1955

185
Cf. “Veja qual o tipo de mulher que os homens sentem mais saudades” in http://tinyurl.com/nvqblp [Consult.
15 Jul 2009]

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Numa observação interessante, citando obras de dois prestigiados académicos


estrangeiros (Steve Jones [Universidade de Londres], Y: The Descent of Man, Penguin
Books, 2002; Bryan Sykes [Universidade de Oxford], Adam’s Curse, Bantam Press, 2003),
Maria Filomena Mónica alerta para a possibilidade de o sexo masculino ser, a prazo, uma
espécie condenada já que o cromossoma Y não consegue metamorfosear os seus genes para
evitar mutações fatais, isto é, não tem a capacidade de reparar os ataques que sofre ao longo
da sua existência, o que aponta para que dentro de 125.000 anos os homens estejam extintos.
Se bem que ainda seja necessário esperma masculino para a reprodução da espécie, cientistas
há que defendem ser possível unir um óvulo a outro, ao invés de a um espermatozoide,
mantendo assim viva a espécie humana, embora exclusivamente sob a forma feminina.186

Considerando as opiniões anteriormente expressas, desde Aristóteles à moderna Igreja


Católica, será certamente irónico contemplar este cenário.

186
Cf. Maria Filomena Mónica, “O declínio do cromossoma Y e a sociedade civil portuguesa”, crónica publicada
pela primeira vez em 15/02/2004 e republicada em Confissões de uma Liberal, op. cit., pp. 78-82.

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

8. – Reflexões finais

Os desafios da condição feminina começaram desde os primórdios da História como


resultado da modificação de papéis entre homem e mulher trazida pelo sedentarismo humano
que se seguiu à fase precedente de caçadores-recolectores. Os homens asseguraram para si
próprios uma posição dominante e as funções de importância, relegando a mulher para um
papel menor. Esta modificação teve reflexos que se propagaram nas gerações seguintes,
pondo a tónica na desvalorização feminina, menosprezando e empurrando a mulher para
tarefas secundárias, mesmo só existindo o preconceito a validar esta atitude.

Ao longo da História muitos foram os pretextos e as oportunidades de estabelecer uma


dominação masculina nas sociedades. Tudo terá começado com a mutação da Deusa-mãe,
nutridora e protetora, em Deus-pai, bélico e agressor. O mito de Adão e Eva será o corolário
dessa inversão de termos, não apenas em termos mitológicos como também em termos da
distribuição de tarefas entre homem e mulher. O receio da perda de protagonismo masculino,
já em parte esvaziado com a menor necessidade de caçar fruto da sedentarização das
populações, leva a que se transforme aquilo que até aí era reconhecidamente feminino, a
conceção, numa prerrogativa atribuível exclusivamente ao homem passando a mulher a
constituir apenas um reservatório de incubação. Daí até surgir a caça às bruxas foi meramente
mais um passo, pois não só as mulheres começavam a adquirir certo protagonismo na
sociedade, como continuavam a deter um invejável entendimento dos mistérios femininos
relacionados com a conceção.

A Memória, encarada exclusivamente do ponto de vista individual, foi com o interesse


pela História dos povos sem História, que se começou a ser percebido que a sua vertente
coletiva tem particular relevância para o estudo das sociedades, pois embora seja o indivíduo
que recorda, fá-lo enquanto parte de um grupo social e, por conseguinte, sujeito a todas as
influências que atuam sobre esse grupo. A linguagem, que surge como referência comum aos
povos, carrega todas as noções e preconceitos vigentes na sua cultura, as quais são
transmitidas de geração em geração e só muito lentamente são modificadas.

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Na Sociedade, resultado das influências da História e da Memória, os indivíduos


assumem determinados comportamentos preconceituosos, com maior ou menor violência
explícita, de que a consequência é, sempre e inevitavelmente, a desvalorização da condição
feminina.

Será pertinente concluir-se que, como já se referiu, a mulher está plenamente


consciente do seu valor e do seu lugar na sociedade. E, o que é de igual importância, também
a generalidade dos homens deixou de se rever no estereótipo machista vigente até algumas
décadas atrás. Para trás ficaram os tempos em que ser mulher era estar subordinada a um
papel menorizante, ainda que certas desigualdades subsistam, nomeadamente no setor laboral.

Muito caminho foi percorrido desde os primórdios da história humana. Os avanços da


ciência na explicação da vida deitaram por terra os preconceitos associados à procriação
exclusivamente masculina, ao mesmo tempo que os avanços culturais trouxeram uma outra
consciência do papel da mulher, pelo menos nas sociedades ocidentais.

Partindo-se do princípio de que foi ela a inventora ou descobridora da agricultura, tal


só lhe granjearia uma animosidade que perduraria por gerações, levando a que os homens,
uma vez que a caça se tornou uma função de menor importância, buscassem formas de
desvalorizar esse feito e, simultaneamente, reservar para si próprios esferas de atuação que
tornaram incompatíveis ao setor feminino. Com o passar dos tempos, essa animosidade
sedimentou-se, encarando-se como natural que o feminino fosse discriminado ou
subalternizado em prol de uma pretensa superioridade masculina.

Tudo parece girar em torno da maternidade. Vive-se a dicotomia de, por um lado, se
encorajar a fertilidade dos casais e, por outro, se discriminar a mãe empregada precisamente
por esta necessitar de se ausentar com maior frequência para assistência aos filhos. A licença
de parto ainda é vista nalguns setores empresariais como um empecilho que vem junto com a
funcionária e que há que tornear ou evitar a todo o custo. Daí que a mulher seja a primeira a
ser despedida quando rebenta a crise.

Os valores desempenharam uma importante função em mediar entre uma largamente


imutável natureza humana e um meio ambiente alterado e em alteração. Atualmente torna-se

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

necessário encontrar um equilíbrio entre valores femininos e masculinos. Porém, isso


dificilmente será alcançado sem que se verifique a mais radical mudança dos últimos cinco
milénios: o fim da anacrónica visão de que Deus é masculino. E isto constitui apenas o
primeiro passo. Daí poder-se-á passar à aceitação da noção de que os sexos são
correprodutores e, por fim, ao ultrapassar da errónea crença de que os sexos são opostos, de
que, um ‘verdadeiro homem’ tem de ser algo de totalmente diferente e superior a uma
mulher.187

Fig. 30 – “Eve was framed”, “Eva foi


tramada” pode ler-se no cartaz
empunhado por uma das manifestantes
num protesto nos EUA em 1970. “Eva”,
representando a Mulher, já cumpriu uma
sentença de milhares de anos como
castigo pela invenção da agricultura. O
seu caso merece ser revisto…

Na religião, terá de haver uma redefinição do pensamento. Ao desvalorizar-se a


Deusa-mãe em favor de um Deus-pai a atividade religiosa passou a ser a expressão do
domínio masculino; Deus teria os homens como interlocutores privilegiados, os quais
transmitiriam a Sua vontade às mulheres e assim modelariam a existência comum. Não se
pode entender Deus como masculino e, ao mesmo tempo, acreditar seriamente na igualdade
entre os sexos. Alguns sinais parecem indicar que a própria Igreja vai gradualmente tomando
consciência desse pressuposto, motivada pela realidade dos importantes ganhos alcançados
pelas mulheres no mundo contemporâneo. Em 1995 o Papa João Paulo II emitiu outra carta
apostólica, desta feita dirigida «às mulheres do mundo», na qual reconheceu o papel que a
Igreja desempenhou no estabelecimento da «cultura global que explora e domina as

187
Fig. 29 – Uma das mensagens da ‘segunda onda do Movimento Feminista’ ou Movimento de Libertação das
Mulheres nos EUA entre o início da década de 1960 e o final da década de 1970. Foto UPI/Bettmann/Corbis,
disponível em https://tinyurl.com/y3nafzj9

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

mulheres» – pedindo pessoalmente desculpa por aqueles, dentro da Igreja, que contribuíram
para a opressão da mulher –, louvou muitos dos objetivos do movimento de libertação
feminino, apoiou a igualdade entre os sexos e propôs a elaboração de uma legislação mundial
que punisse a violência sexual e corrigisse as desigualdades sociais e económicas. O Papa
referiu ainda que, após séculos de descriminação, a igualdade para as mulheres é uma questão
de necessidade assim como de justiça. Todavia, João Paulo II continuava obstinadamente a
batalhar contra as mulheres no sacerdócio e contra o controlo da natalidade; o «Frutificai e
multiplicai-vos» constante do Génesis 1:28 fez todo o sentido numa época em que os seres
humanos eram comparativamente escassos perante a vastidão de territórios inexplorados, mas
atualmente constitui uma receita para o colapso total. Poderá esta obstinação ser um resíduo
do impulso coletivo que levou os homens a sobrevalorizarem o papel de reprodutores que
ainda lhes restava após a desvalorização da caça?

Por fim, no Dia Internacional da Mulher:

 Na Guatemala, duas mulheres serão mortas pelos seus parceiros.

 Na África do Sul, uma mulher será assassinada a cada seis horas por um
homem com quem tem uma relação.

 Na Índia, 22 mulheres serão mortas ou violadas em nome da honra da família.

 Nos EUA, três mulheres serão mortas pelos seus maridos ou namorados e nove
mulheres sofrem assédio sexual.

 De todos os crimes sexuais cometidos neste dia, apenas 0,6% vão acabar com o
criminoso na cadeia.

 Nas próximas 24 horas mais de seis mil pessoas serão raptadas e vendidas
como escravas sexuais; 71% dessas vítimas serão mulheres ou raparigas.

 No mundo inteiro apenas 40% de todas as mulheres que sofrem assédio sexual
procurarão ajuda; menos de 10% procurarão a polícia.

 Até ao fim do dia, mais de 600 milhões de mulheres irão continuar a viver em
países onde a violência contra as mulheres não é considerada um crime.

Se isto acontece no Dia Internacional da Mulher, imagine-se nos outros dias.188

188
Fonte: AMCV – Associação de Mulheres Contra a Violência

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

Não será já tempo de a mentalidade evoluir?

Até quando as sociedades vão ignorar?

Olhar para o outro lado?

Permitir?

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A desvalorização feminina ao longo da História (do Ocidente) – Dos primórdios à atualidade

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