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Nelson Rodrigues fala de Waldemar

O prêto que tinha a alma prêta


1.Ignorar o fato racial é tirar da luta Gracie X Waldemar todo o seu patético. É preciso ver, antes de
tudo e sobretudo, o drama da côr. O branco contra o preto e vice-versa. Eu sei que os anjinhos vão
estranhar: _ “Mas como? No Brasil não existe o preconceito racional!” Tanto existe, que a simples
sugestão do problema já irrita, já exaspera e todos o evitam com impressionante pusilanimidade.
Mas o que importa é o seguinte: _ o que houve, anteontem, na A.C.M., foi a forra ancestral do
negro sôbre o branco. No ring, os dois adversários decidiam misteriosas e irredutíveis
incompatibilidades.
2.E foi bom ou, por outra, foi terrível, foi trágico que assim acontecesse. Pois nada
mais desprezível, ou idiota, do que a luta estritamente esportiva. Acho desumano
ou imoral que, por esporte, alguém dê na cara de alguém. Não, amigos, o esporte
não justifica, jamais, a suprema humilhação de um homem por outro homem. É
preciso mais, é preciso que existam outros motivos, razões profundas e terríveis,
incompatibilidades laboriosamente cristalizadas. Então, sim, então a batalha
encontra a sua razão, a sua lógica e, ainda, a sua ética. Andou muito bem a
polícia permitindo a luta antidesportiva. Do contrário, devia proibi-la. E no choque
de anteontem o Waldemar não era própriamente o Waldemar, nem Hélio
simplesmente Hélio. E vamos e venhamos: _ que valem dois homens nomes
convencionais diante da luta de extermínio do branco com o negro?
3.Quando o Waldemar entrou no ring, tão preto, tão retinto, com o seu tórax de
Paul Robson, o que me impressionou, antes de mais nada, foi o nome comovente:
_ Waldemar. Por um momento, entreguei-me a uma breve meditação. Certos
nomes são, na vida de uma pessoa, um dêsses estigmas definitivos; marcam
fisicamente. Joana d’Arc só não foi uma dona de casa, uma lavadeira, uma
ouvinte de novela radiofônica, porque o nome traduzia uma predisposição, um
destino santo, um fabuloso martírio. Mas Waldemar sugere a piada, a anedota, o
deboche. A primeira conseqüência da luta foi esta: _ reabilitou, redimiu,
dramatizou um nome prosaico e quase deprimente. A partir da vitória prodigiosa e
brutal, qualquer um de nós pode chamar-se impunemente Waldemar, cinicamente
Waldemar. Pois bem. O lutador preto subiu ao ring. E, então, ocorreu, a meu lado,
um fato transcendente, que foi o seguinte: _ um sujeito, louro, barrigudo e
sanguíneo, falou em “negro boçal”.
4. “Negro boçal!” A partir deste momento eu vi tudo. A luta perdeu, para mim, todo
o sentido técnico e esportivo, que a poderiam banalizar. Adquiriu uma deminação
nova. E se me perdoarem a enfática subliteratura, direi que vi o retinto Waldemar,
não como “um negro”, mas como “o negro”. Êle transfigurou-se aos meus olhos.
Pensei no velho José do Patrocínio. Sempre que subia à tribuna, êle sofria uma
inibição inicial, que o esmagava. Era de uma timidez atônita diante da massa.
Então, os seus amigos, disfarçados na multidão, punham-se a fustigá-lo com
insultos: _ “Cala a boca, negro!”, “Moleque burro!”, etc., etc. Era o bastante.
Chamado de “negro”, de “moleque”, Patrocínio uivava a seguinte réplica: _ “Deus
deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes de minha pátria!” Era um delírio, uma
loucura, um histerismo total. E, anteontem, ao subir ao ring, na A.C.M., Waldemar
tinha um pouco da inconfessada, da envergonhada humildade de Zé do Patrocínio
antes do insulto. Dir-se-ia um derrotado por antecipação.
5.Antes de prosseguir, convenhamos: _ cada um de nós tem o seu racismo
irredutível. Vão argumentar com a ferocidade dos brancos norte-americanos. E,
com efeito, nós não linchamos, mas fazemos algo pior: _ nós humilhamos. Tôdas
as relações entre brancos e negros, no Brasil, se fazem, justamente, na base
dessa humilhação.
O negro mais nobre, mais ilustre, mais puro passa a ser apenas um “moleque”, se
experimentamos uma vaga e superficial irritação. Fingimos uma igualdade racial,
que é o cínico disfarce de um desprêzo militante, profundo. Pouco antes da
batalha, Waldemar foi ainda uma vez humilhado e ofendido. Êle cresceu, então,
irresistivelmente.
6.Existe, sim, algo de bestial nessa luta que foi necessária e legitimamente
antidesportiva. Mas, por outro lado, sinto no seu desfecho a doçura de uma
reparação. No triunfo do moço negro, existe como que a desforra de humilhações
imemoriais. E eu senti como se o golpe que liquidou Hélio fôsse desferido pelo pé
de um S. Benedito.
Nelson Rodrigues fala do campeão invencível
Os cúmplices de Waldemar
1.Há dias, escrevi eu a crônica “O preto que tinha a alma preta”, na qual
fixava a luta Waldemar X Hélio Gracie sob o ângulo racial. Um representava “o
negro”, o outro representava “o branco”. E os dois, com a baba do ódio, estavam
decidindo, no “ring”, incompatibilidades tremendas e seculares. Hoje, eu desejo
ver a mesma batalha sob um aspecto não menos patético: _ o de sua repercussão
em tôda a parte. Jamais uma peleja comoveu, traumatizou tanto a opinião pública.
Eu vi sujeitos grave,s gravíssimos, chorando, soluçando, rilhando os dentes de
alegria. A princípio, não entendi essa euforia geral, essa satisfação profunda, êsse
delírio coletivo. Senhoras, damas ilustres, rosnavam: _ “Bem feito! Bem feito!”
2.Tornou-se óbvio que a derrota de Hélio Gracie causava, aqui e alhures, o
que poderíamos chamar de exultação universal. E a impressão que se teve,
imediatamente, foi a seguinte: _ havia, em cada brasileiro, um inimigo pessoal,
embuçado ou ostensivo, de Hélio, dos Gracie. Houve quem abrisse champagna;
houve quem soltasse foguetes; houve, em suma, o diabo. Nas horas e nos dias
que se seguiram ao triunfo de Waldemar, nasceu, cresceu, a fauna, súbita e
misteriosa dos mecenas. Cobriram-no de presentes, de alto a baixo. Deram-lhe
aparelhos de rádio, de televisão, e, talvez, ferro elétrico. O lutador que, até à
véspera do triunfo, não tinha dinheiro para apanhar um taioba, podia rasgar
abobrinhas, se fôsse o caso. Não se conhecia exemplo de uma prosperidade
assim fulminante e feérica. Dir-se-ia que cada um de nós experimentava um
sentimento de gratidão pessoal: todo o mundo estava reconhecido à Waldemar. E
por quê?
3.Sim, porque até senhoras, até mocinhas, até magistrados pareciam
radiantes com a derrota de um Gracie, dos Gracie? É fácil explicar – porque essa
derrota traduzia um anseio geral, uma aspiração coletiva. Todo o mundo queria
ver, para usar uma imagem plebéia, “a caveira dos Gracie”. Certas ações
individuais implicam milhões de pessoas. Querem um exemplo? Vou recuar no
tempo.
4.O assassinato de Pinheiro Machado. Relevem-me que eu exemplifique
com um fato político e não esportivo. Mas faço isso de propósito. Quem matou
Pinheiro Machado? É claro: - Manso de Paiva. O episódio cesareano teve várias
testemunhas oculares e auditivas. Portanto, não devia haver a mínima dúvida, o
mínimo sofisma. E, no entanto, só aparentemente. Manso de Paiva foi um
assassino único. Na verdade, uma vontade coletiva armou-lhe o braço. Êle matou,
porque, naquele momento, dezenas, centenas, milhares desejavam fazer o
mesmo. Ao afundar o punhal nas costas do gaúcho, êle implicou, no seu gesto
singular, todos os que sonhavam com o crime. Subitamente, uma população
inteira acordou assassina ou, na melhor das hipóteses, cúmplice de um
assassinato.
5.Foi, mal comparando, o caso de Waldemar. Êle teve, a seu lado, o
handicap fabuloso, que, justamente, faltou aos Gracie: - o de ser a expressão de
uma vontade coletiva. Senão vejamos. Há vinte e tantos anos que os Gracie
mantinham uma invencibilidade que parecia definitiva. Não perdiam para ninguém.
Além dos meios normais do “jiu-jitsu”, pareciam dispôr de um arsenal de recursos
encantados. E vamos e venhamos: - nada mais humilhante para qualquer um de
nós que ver, na mesma cidade, quase no mesmo bairro, na mesma rua, um sujeito
invencível. Dir-se-á que não temos nada com o peixe. Que importa que um lutador
profissional devore outro lutador e vice-versa? Importa, sim. Os triunfos
sistemáticos dos Gracie, já nos aviltavam, já nos atingiam, já exasperavam os que,
como nós, vivem sob os signo da pusilanimidade. E, de fato, não temos coragem
de nada, somos uns encolhidos, uns acusados, a nossa vida e o n osso
comportamento traduzem uma derrota constante. Como suportar a euforia dos
Gracie? Essa estréia cordial, que não deixava nunca de brilhar, já nos parecia um
privilégio desproposital, um abuso nefando.
6.Quando Waldemar subiu ao “ring”, não estava só. Dir-se-ia que, atraz
dêle e com êle, subia uma população imensa, subiam todos os que gostariam de
esmagar, de baixo do tacão, como uma víbora hedionda, a invencibilidade dos
Gracie. Eu disse, na crônica anterior, que sua vitória foi uma desforra, uma
vingança racial. Hoje acrescento: - foi a revanche também, longamente sonhada,
dos tímidos, dos nervosos, dos frágeis, dos asmáticos, dos inibidos. Todo aquêle
que sobe dois degraus sem dispnéias asfixiante, todo aquêle que tem uns
bracinhos de Olívia Palito, uivou, exultou com a queda do campeão. Dir-se-ia uma
compensação para os que não dariam um tapa, um cascudo em ninguém.
7.Por isso há tanta gente querendo dar rádio, televisão e, até, ferro elétrico
a Waldemar. E não há dúvida que êle bem o merece. No dia de sua vitória, houve
uma alegria universal sim. O fraco sentiu-se menos fraco, o humilhado menos
humilhado e o marido que não pia em casa levantou, por 24 horas, a crista
abatida. Todos nós somos cúmplices de Waldemar.

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