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SOCIOLOGIA

JURÍDICA E
JUDICIÁRIA

autora
EDNA RAQUEL HOGEMANN

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2015
Conselho editorial  Solange Moura; Roberto Paes; Gladis Linhares

Autora do original  edna raquel hogemann

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  rodrigo azevedo de oliveira

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão de conteúdo  solange moura

Imagem de capa  flynt | dreamstime.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

H715s Hogemann, Edna Raquel


Sociologia jurídica e judiciária / Edna Raquel Hogemann
Rio de Janeiro : SESES, 2015.
136 p. : il.

isbn: 978-85-5548-123-9

1. Sociologia. 2. Direito. 3. Sociedade. 4. Mudança social. I. SESES.


II. Estácio.
cdd 340.2

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

1. Direito e Sociedade: uma Visão


Sociológica do Direito 7
1.1  Conceito sociológico do direito 9
1.1.1  Considerações gerais: 9
1.1.2  O ser humano e a sociedade: duas realidades inseparáveis. 9
1.1.3  Direito como manifestação de cultura social 10
1.2  Função social do direito 10
1.2.1  Socialização e controle social 11
1.2.2  A presença do direito na sociedade e
as atividades de cooperação e de concorrência 12
1.2.3  Função social do Direito: 12
1.2.4  Conceito sociológico do direito 13
1.2.5  Normas de conduta 13
1.2.6  Norma jurídica, norma moral e norma de trato social 14
1.2.7  Distinção entre as diversas normas sociais
controladoras da conduta 14
1.2.8  Origem das normas de conduta jurídicas 14
1.2.9  Provisoriedade e mutabilidade das normas de direito 15
1.3  Objeto da sociologia jurídica e judiciária 15
1.3.1  O entendimento de Emile Durkheim 16
1.4  A sociologia jurídica e judiciária
no campo das ciências sociais 17
1.4.1  Importância da Sociologia Jurídica e Judiciária 17
1.5  Aspectos sociais do fenômeno jurídico segundo
a teoria tridimensional do direito de Miguel Reale 18
1.5.1  Aspectos do fenômeno jurídico segundo
a Teoria Tridimensional do Direito 19
1.5.2  Diferença entre a Sociologia Jurídica,
a Ciência do Direito e a Filosofia do Direito 20
1.6  Litigiosidade social e formas de composição de conflitos 21
1.6.1  Critérios de composição dos conflitos 21
1.6.2  Formas de composição dos conflitos 22
1.7  Formas de resolução dos conflitos 24
1.8  Monismo, pluralismo jurídico e o direito além do estado 26
1.8.1  O Pluralismo Jurídico 27
1.8.2  O Pluralismo comunitário- participativo 30

2. Dinâmica Social da Norma e das Instituições de


Direito 33

2.1  Eficácia das normas jurídicas e seus efeitos sociais 35


2.2  Noções de validade e eficácia 35
2.2.1  Validade da norma jurídica 36
2.2.2  Eficácia da norma jurídica 36
2.3  Repercussões sociais da norma jurídica formalmente válida. 38
2.3.1  Efeitos positivos da norma 39
2.4  Efeitos negativos das normas. O
círculo vicioso impunidade-ilicitude 40
2.4.1  Sobre o círculo vicioso impunidade-ilicitude 41
2.5  Sociedade brasileira e instituições de direito 43
2.5.1  A Constituição brasileira de 1988 45
2.5.2  A relevância das instituições de Direito 46
2.6  O processo de escolha dos legisladores,
qualidade do sistema eleitoral e da produção legislativa brasileira. 47
2.6.1  O Sistema Eleitoral 48
2.6.2  O processo de escolha dos legisladores e
a qualidade do sistema eleitoral 49
2.6.3  Como se elege um senador? 50
2.6.4  E os deputados e vereadores, como são eleitos? 50
2.6.5  A Reforma política e eleitoral 52
2.6.6  Sobre a produção legislativa brasileira 54
3. Os Instrumentos Humanos da Realização
Social do Direito 57

3.1  A Função Social Do Poder Judiciário. 59


3.1.1  Estrutura e infraestrutura do Judiciário 61
3.1.2  A criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ 63
3.2  As funções essenciais a realização da justiça. 65
3.2.1  A Magistratura 65
3.2.2  Sistemas seletivos adotados para o recrutamento de juízes: 65
3.2.3  Sistema adotado no Brasil: 67
3.2.4  As Garantias Constitucionais dos Magistrados: 67
3.2.5  O Ministério Público 69
3.2.6  A Defensoria Pública 70
3.2.7  A Advocacia 70
3.3  Efetividade do direito, democratização dos
tribunais e acesso à justiça. 71
3.3.1  Democratização dos tribunais e acesso à justiça 74
3.3.2  A deficiência da produção jurídico-normativa 77
3.4  Sociologia das profissões jurídicas 78

4. Mudança Social e Direito 83

4.1  Fatores de transformação sócio-jurídica. 85


4.2  Participação popular: opinião pública e
o sentimento de justiça 86
4.2.1  O que é opinião pública? 87
4.2.2  Qual a Importância da Opinião Pública para
a Sociologia Jurídica e para o Direito? 87
4.2.3  O Anseio coletivo pela justiça 87
4.2.4  A utilidade social da opinião pública sobre
o Direito e suas instituições 88
4.3  Movimentos sociais, cidadania, etnodiversidade, questões de gênero e
novos arranjos familiares. 88
4.3.1  Movimentos Sociais 88
4.3.2  Cidadania e Etnodiversidade 90
4.3.3 Etnodiversidade 91
4.3.4  Questões de gênero e novos arranjos familiares. 92
4.3.5  Novos arranjos familiares 94
4.4  Direitos humanos no Brasil 97
4.4.1  Os direitos humanos em crise? 99
4.5  As transformações nas relações sociais e
econômicas do cotidiano. 100
4.5.1  O consumo e o consumismo 102
4.6  Sociologia jurídica e desvio social:
o caso brasileiro e a economia global do crime. 104
4.6.1  Desvio social: o caso brasileiro 106
4.6.2  A economia global do crime 108

5. Questões Sócio-Jurídicas no
Mundo Globalizado 113

5.1  Sociedade global e direito. 115


5.2  Sociologia jurídica e a luta pela mundialização do direito. 118
5.3  Fragmentação, hegemonia e participação
política na sociedade global 120
5.4  Contornos globais dos novos desafios:
meio ambiente, relações de trabalho, sociodiversidade e minorias. 122
5.4.1  Sociodiversidade e minorias 123
5.4.2  Relações de trabalho e globalização 124
5.5  Educação ambiental face às novas políticas
de preservação e desenvolvimento 127
5.6  A exclusão social e os desafios para o direito. 130
1
Direito e Sociedade:
uma Visão
Sociológica do
Direito
Este primeiro capítulo de nosso livro enfoca as relações entre o Direito e a So-
ciedade sob um olhar sociológico, pelo qual a Sociologia Jurídica conceitua o
Direito e examina a influência dos fatores sociais sobre este e suas incidências
na sociedade, ou seja, os elementos de interdependência entre o social e o jurí-
dico, concretizando uma leitura externa do sistema jurídico.
Em outras palavras, vamos examinar as causas, os fatos (sociais) e os efeitos
(sociais) das normas jurídicas quando de sua aplicação. Vamos perceber que o
objeto de análise da Sociologia Jurídica e Judiciária é a "realidade jurídica", na
tentativa de responder a questões fundamentais, como por exemplo, o porquê
da existência do sistema jurídico ou quais são as consequências do direito na
vida social.
Assim, iremos estudar as relações entre o direito e a sociedade em três mo-
mentos: a produção, a aplicação e a decadência da norma, bem como os aspec-
tos sociológicos da norma na perspectiva tridimensional do direito, na concep-
ção do jurista Miguel Reale.

OBJETIVOS
•  Conceituar o Direito na concepção sociológica;
•  Estabelecer a distinção entre as normas de conduta em geral e as normas de Direito;
•  Analisar a funcionalidade do Direito na vida social;
•  Identificar o Direito como instrumento de controle social e compreender a norma jurídica
como forma de prevenir e compor conflitos;
•  Compreender e criticar as diferentes formas de composição do conflito.

8• capítulo 1
1.1  Conceito sociológico do direito
1.1.1  Considerações gerais:

Existe um ramo da Sociologia, denominado de Sociologia Jurídica cuja vocação


é perceber a relação existente entre duas ciências de grande importância para
a vida da sociedade (Sociologia e Direito), por tratarem das relações, dos con-
flitos, das normas, do controle, enfim, de todas as ligações que possam surgir
entre os indivíduos e que necessite de normas reguladoras.
Para Cavalieri Filho (2010, p.90) ¨... podemos conceituar a Sociologia
Jurídica como sendo a ciência que estuda o direito como fenômeno social(ser),
a fim de observar a adequação da ordem jurídica aos fatos sociais, o cumpri-
mento pelo povo das leis vigentes, aplicação destas pelas autoridades e os efei-
tos sociais por elas(leis)produzidos(eficácia)¨.
Quanto à Sociologia Judiciária, esta tem como objeto de análise científica os
atos praticados pelos instrumentos humanos de realização do Direito (magis-
trados, advogados, promotores, serventuários da Justiça, etc), como por exem-
plo o ato de julgar dos magistrados, buscando superar a visão do senso comum
que enxerga na figura do Juiz um mero agente passivo, o "aplicador da lei”. O
estudo da Sociologia Judiciária leva a que se perceba que não são autômatos a
executar uma programação estritamente demarcada pela lei, tomada ao pé da
letra.

1.1.2  O ser humano e a sociedade: duas realidades inseparáveis.

O homem é um ser social (Aristóteles)


A sociedade não é um mero somatório de indivíduos.

Sociedade: um conjunto complexo de indivíduos permanentemente asso-


ciados e equipados de padrões comuns, próprios para garantir a continuidade
do todo e a realização de seus ideais. É um conjunto de grupos sociais inter-re-
lacionados e em constante transformação.

capítulo 1 •9
© LORRAINE SWANSON | DREAMSTIME.COM
© MICHAEL BROWN | DREAMSTIME.COM

SOCIEDADES HUMANAS SOCIEDADES DE ANIMAIS


- organização sociocultural - natureza biológica
- Raciocínio - instintos
- criação cultural
- evolução social

1.1.3 Direito como manifestação de cultura social

O direito é um fenômeno cultural. Só existe nas sociedades humanas. Somente a vida


humana pode necessitar de normas que a antecipem e pretendam regular, buscan-
do a prevenção da conduta antissocial por meio de sanção que a norma pressupõe.
Cultura social – produtos do espírito (arte, religião, ciência e filosofia), co-
nhecimento vulgar; normas do trato social (folkways), normas morais (mores),
o próprio direito, os sistemas de governo e as normas técnicas etc.
O direito reflete a sociedade e a sociedade reflete o direito.

1.2 Função social do direito


Considerações iniciais:

•  O direito, se por um lado está ligado à ideia de conduta do indivíduo, de


outro também se liga à organização social. O mundo do direito é o mundo das
relações entre os indivíduos, pois na junção dessas duas noções - sociedade

10 • capítulo 1
e indivíduo – é que se encontra a sua razão de ser. Importante lembrar que
não somente as relações entre os indivíduos são objeto do direito, mas também
aquelas que se realizam entre o indivíduo e o grupo social, o grupo social e o
indivíduo e o grupo social em relação a outro grupo social.
•  O direito do ponto de vista sociológico é um fato social. A Sociologia
Jurídica estuda o fato social em sua estrutura e funcionalidade, procurando sa-
ber como os grupos humanos se organizam, se relacionam e desenvolvem, em
razão dos inúmeros fatores que atuam sobre as formas de convivência.

Segundo Durkheim, fato social é:

“toda maneira de agir ou pensar fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma co-
erção exterior; ou ainda que, é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentan-
do uma existência própria independente das manifestações individuais que possa ter.”
(Durkheim, 1991, p. 1)

•  A preocupação da Sociologia Jurídica e Judiciária é saber até que ponto as


normas jurídicas se tornam realmente válidas, se na prática correspondem aos
objetivos dos legisladores e seus destinatários.

1.2.1  Socialização e controle social

através dela o indivíduo aprende os papéis que assumirá


SOCIALIZAÇÃO na sociedade. Tais papéis implicam no desempenho de
várias obrigações que necessitam de um controle social.

visa cuidar que não se deixe de cumprir o necessário


CONTROLE SOCIAL para a manutenção do equilíbrio da organização social.
O Direito é o modo mais formal do controle social formal.

capítulo 1 • 11
1.2.2  A presença do direito na sociedade e as atividades de
cooperação e de concorrência

O ser humano, por se configurar como um ser social, desenvolve um sem-nú-


mero de relações em sociedade e desempenha diversas atividades sociais. Tais
atividades assumem múltiplas formas e podem ser classificadas do seguinte
modo:

caracteriza-se pela convergência de interesses. Por exem-


plo, os trabalhadores de uma fábrica em relação ao produto
COOPERAÇÃO fabricado ou a atividade do vendedor e a do comprador: o
vendedor tem mercadorias para vender e o comprador tem
interesse em adquirí-las, precisa delas.

constata-se um paralelismo de interesses. Um em relação ao


outro, em posição de competidor ou concorrente. Por exemplo,
CONCORRÊNCIA os comerciantes de um shopping center ou mesmo dois proprie-
tários de prédios vizinhos: cada um deles usa sua propriedade
como quiser, sem a interferência ou colaboração do outro.

O importante é compreender que tanto nas atividades de cooperação como


nas de concorrência podem ocorrer conflitos de interesses. Os conflitos geram
o litígio e este, por sua vez, rompe o equilíbrio e a paz no grupo social. A so-
ciedade não admite o estado litigioso porque precisa de ordem, tranquilidade,
equilíbrio nas relações sociais em nome da manutenção e da sobrevivência do
próprio grupo.

1.2.3  Função social do Direito:

Que funções o direito cumpre na sociedade?

1. Preventiva
Valendo-se do disciplinamento social, estabelecendo regras de conduta so-
cial, direitos e deveres, o direito preocupa-se em evitar ou prevenir o conflito. O
direito assume então a função social de prevenir conflitos.

12 • capítulo 1
2. Função compositiva do direito
O conflito por vezes é inevitável, e necessário se faz solucioná-lo. E aí está
outra função social do direito: compor conflitos, solucionando-os. Isto quer
dizer que o direito identifica, arranja e resolve os conflitos que poderiam per-
turbar o equilíbrio e a ordem social.
3. Controle social
O direito é socializador em última instância. Só é necessário quando a con-
duta humana já se distanciou da tradição cultural aprendida pela educação,
pela moral e religião, e alcançou o nível do ilícito, ou do crime.

4. Função de Regulação Social


Essa é uma função de tipo organizacional, na medida em que sua finalidade
última é, justamente, a organização da vida em sociedade. Nesta função, o caráter
organizador do direito conduz o comportamento jurídico, influenciando na for-
mação dos hábitos dos sujeitos sociais, seu agir e suas perspectivas, e com isso evi-
tando que venham a surgir conflitos. Assim, os comportamentos vão se orientando
no sentido recomendado pelos modelos normativos do ordenamento jurídico.

A regulação social é possibilitada por meio do caráter persuasivo das normas


jurídicas, que trazem o poder de influenciar, condicionar e convencer os membros
de um grupo social. Caso contrário, a própria norma estabelece sanções corretivas.

1.2.4  Conceito sociológico do direito

Conjunto de normas de conduta universais, abstratas, obrigatórias e mutáveis,


impostas pelo grupo social, destinadas a disciplinar as relações externas do in-
divíduo, objetivando prevenir e compor conflitos.
O jurista-sociólogo analisa o processo de criação do direito (normas jurídi-
cas de conduta) e sua aplicação na sociedade.

1.2.5  Normas de conduta

São um enunciado que estabelece a forma pela qual deve se orientar determi-
nada relação social, ou seja, uma relação entre duas ou mais pessoas. Nas rela-
ções intersubjetivas na sociedade podem ser encontradas as seguintes normas
de conduta: Norma jurídica, norma moral e norma de trato social.

capítulo 1 • 13
O direito é um conjunto de normas de conduta que disciplinam as relações
sociais, resultado das relações entre o homem e a sociedade.

1.2.6  Norma jurídica, norma moral e norma de trato social

do ponto de vista formal tem por objetivo influir no com-


portamento de alguém para modificá-lo.
É composta de dois elementos: 1. Preceito; 2. Sanção.
NORMA JURÍDICA O primeiro contém a regra de conduta a ser observada
por seus destinatários; o segundo, a pena (punição) a
ser imposta a quem a desobedeça;

tem sua origem na consciência do indivíduo, cuja execução


NORMA MORAL não é obrigatoriamente exigível e que tende ao aperfeiçoa-
mento do homem. Por exemplo, as normas religiosas.

são padrões de conduta social, elaboradas pela socie-


NORMA DE TRATO dade que visam tornar o ambiente social mais ameno,
SOCIAL (OU DE sob pressão da própria sociedade. Por exemplo, usar
MERA CONDUTA) talheres à mesa.

1.2.7  Distinção entre as diversas normas sociais controladoras da


conduta

Essa distinção é fundamental para que o legislador possa desempenhar com preci-
são sua função demarcando claramente os campos da moral, do jurídico e do trato
social, para poder proteger melhor as liberdades fundamentais do ser humano.

1.2.8  Origem das normas de conduta jurídicas

•  Para a Sociologia Jurídica – as normas de direito surgem do grupo social;


•  Para os Jusnaturalistas - as normas de direito têm origem divina;
•  Para os Contratualistas - as normas de direito são fruto da razão;
•  Para os Historicistas - as normas de direito são derivadas da consciência
coletiva do povo;

14 • capítulo 1
•  Para os Marxistas - as normas de direito são oriundas do Estado, para ma-
nutenção da desigualdade entre as classes sociais.

1.2.9  Provisoriedade e mutabilidade das normas de direito

Os defensores do Direito Natural (jusnaturalistas e contratualistas) consideram


o direito como um conjunto de princípios permanentes, imutáveis e estáveis.
Para a Sociologia Jurídica essa concepção é equivocada, pois o direito é um
produto social. Logo, se o direito deriva do grupo social não pode ser mais es-
tável que o próprio grupo. E o grupo, por sua vez, vive sofrendo constantes mo-
dificações. Isso acontece porque o ser humano está sempre em permanente
mudança, muitas vezes até sem perceber.

1.3  Objeto da sociologia jurídica e judiciária


Sendo o direito um fato social, como já dito anteriormente, apresentando ca-
racterísticas típicas do fato social, a saber: coerção, integração com os demais
setores da sociedade e representação coletiva, tudo isso, bem como seu relacio-
namento concreto com os demais aspectos da realidade coletiva constituem o
objeto próprio da Sociologia Jurídica.
Pode-se afirmar que o objeto da Sociologia Jurídica busca estabelecer uma
relação funcional entre a realidade social e as diferentes manifestações jurídi-
cas, sob forma de regulamentação da vida social, fornecendo subsídios para
suas transformações no tempo e no espaço.
Nas palavras do professor Cavalieri Filho (2010, p. 76), não há uma total con-
cordância entre os autores, a saber:

a) Investigar como as regras jurídicas se constituiríam real e


efetivamente – das causas e dos fatos sociais e as necessidades
E. DURKHEIM que visam satisfazer;
b) O modo como as normas jurídicas funcionam na sociedade.

capítulo 1 • 15
a) Estudo das normas jurídicas e dos efeitos sociais deles de-
rivados;
b) Estudo dos instrumentos humanos de realização da ordem
R. TREVES jurídica e de suas instituições;
c) Estudo da opinião do público a respeito do direito e das
instituições jurídicas.

a) Para este autor a Sociologia jurídica e a Ciência do Direito


seriam uma só disciplina, cujo objeto é o fenômeno jurídico, ten-
do a Sociologia do Direito as seguintes atribuições:
E. JORION b) Observação e análise dos fatos; seu tratamento tipológico;
c) Estudo da gênese das regras jurídicas e sua evolução;
d) Relação do direito com outros fenômenos sociais;
e) Definição pela Sociologia do Direito de seus próprios limites

1.3.1  O entendimento de Emile Durkheim

Nas palavras do professor Cavalieri Filho (2010, p. 76), não há uma total con-
cordância entre os autores. Mas, para o sociólogo francês Emile Durkheim,
“um dos fundadores da escola sociológica do direito, seria objeto da Sociologia
Jurídica:

a) investigar como as regras jurídicas se constituíram real e efetivamente;


b) o modo como as normas jurídicas funcionam na sociedade (Leçons de
Sociologie, PUF, Paris, 1950).

No primeiro item estaria incluído o exame das causas que determinam o sur-
gimento das regras jurídicas, dos fatos sociais que as suscitam, bem como das
necessidades que visam satisfazer. Somente quando as normas estão ajustadas
aos fatos é que poderão atender aos objetivos para os quais foram elaboradas.
No segundo item procurar-se-ia saber dos resultados decorrentes da exis-
tência da norma, isto é, se está ou não sendo aplicada, se há ou não estrutura
para isso etc.”

16 • capítulo 1
1.4  A sociologia jurídica e judiciária no
campo das ciências sociais

A autonomia da Sociologia Jurídica é hoje reconhecida, pois é uma ciência com


objeto próprio (o direito como fato social), métodos e leis. Antigamente essa
autonomia era questionada porque alguns autores a enquadravam como uma
parte especial da Sociologia, enquanto outros a confundiam como a própria Ci-
ência do Direito.

1.4.1  Importância da Sociologia Jurídica e Judiciária

fornece os elementos sociais existentes e as relações entre


eles existentes, necessários para a elaboração de leis. Isto
PARA O porque é fundamental que o legislador esteja antenado com
LEGISLADOR a realidade social para que elabore leis ajustadas às novas re-
alidades sociais, para que a lei não acabe se tornando logo
obsoleta ou ultrapassada;

possibilita a aplicação mais compatível do direito com as ne-


cessidades sociais, pois ao assim agir poderá valer-se de uma
PARA O JUIZ interpretação ora extensiva, ora restritiva, ou mesmo através da
analogia, fazer o direito acompanhar a evolução social;

comporta uma visão maior e mais real do fenômeno jurídico.


Mostra que o direito não é somente um amontoado de nor-
mas estáticas que devem ser aplicadas independentemente de
PARA O qualquer finalidade ou objetivo, mas também um fato, a realida-
ADVOGADO de social dinâmica em permanente evolução, à qual as normas
devem se acertar, senão findam perdendo sua finalidade, tor-
nando-se ineficazes e obsoletas.

capítulo 1 • 17
possibilita saber-quais os limites para a atuação do direito esta-
tal e extra-estatal diante do sistema oficial de normas, na pers-
pectiva de sua inclusão social e, como, a partir do conhecimen-
PARA O to do cidadão do papel dos diversos instrumentos humanos
CIDADÃO ligados à Justiça, conseguir a facilitação do acesso à justiça
para que grupos excluídos da sociedade atinjam um grau maior
de cidadania.

1.5  Aspectos sociais do fenômeno jurídico


segundo a teoria tridimensional do direito de
Miguel Reale
Para o jusfilósofo Miguel Reale, que você conheceu quando estudou a discipli-
na Introdução ao Estudo do Direito o fenômeno jurídico pode ser considerado
sob três aspectos distintos, a saber: fato, norma e valor, sendo certo que:

FATO -
a Sociologia
Jurídica tem
o direito como
fato social

DIREITO
como fenômeno
juridico
NORMA – VALOR -
a Ciência do a Filosofia do
Direito se Direito dedica-se
preocupa ao direito em
com a norma seu aspecto
valorativo

18 • capítulo 1
1.5.1  Aspectos do fenômeno jurídico segundo a Teoria Tridimensional
do Direito

Essa teoria considera que o sistema jurídico tem três dimensões: justiça, vali-
dade e eficácia:

a questão da justiça interessa aos filósofos do direito, que exami-


nam a justificação do sistema jurídico atual, as relações existentes
JUSTIÇA entre o direito e a moral e entre normas positivas e ideais de justiça
(idealidade do direito);

aos dogmáticos ou intérpretes do direito interessa o estudo das


normas formalmente válidas e buscar o sentido de cada elemento
VALIDADE do ordenamento jurídico, solucionar os conflitos entre normas e
adaptá-las aos casos concretos;

a questão da eficácia das normas jurídicas interessa os sociólogos


do direito. A função do sociólogo do direito é analisar a realidade
social do direito, tendo em vista que a finalidade da Sociologia Jurí-
EFICÁCIA dica é estabelecer uma relação funcional entre a realidade social e
as diferentes manifestações jurídicas, sob a forma de regulamenta-
ção da vida social, fornecendo subsídios para suas transformações
no tempo e no espaço.

Porém, é importante apontar que essas três dimensões não estão isoladas,
mas se relacionam entre si. Assim, se por acaso uma sociedade considera uma
lei injusta, esta provavelmente será revogada ou permanecerá sem efeitos práti-
cos e, portanto, ineficaz. Dessa forma, o intérprete do direito não pode ignorar
que a falta de legitimação de uma lei em vigor pode levar à sua revogação ou
à sua ineficácia. Entretanto, o sociólogo e o filósofo do direito não são indife-
rentes ao tema da interpretação do direito positivo, uma vez que necessitam
conhecer o conteúdo das normas vigentes para poder analisar a realidade e a
idealidade do direito.

capítulo 1 • 19
Por exemplo, as leis sobre a família no Código Civil: cabe ao intérprete tra-
balhar com as respectivas normas indicando quais são as condições para o ca-
samento, segundo a lei em vigor; por outro lado, compete ao filósofo do direito
analisar a justificação e as consequências morais e políticas da instituição do ma-
trimônio e da filiação, e buscar uma avaliação sobre o significado do matrimônio
e da filiação , tal como é configurado por este mesmo direito; por fim, o sociólogo
do direito examinará o impacto social das previsões legais com relação ao casa-
mento e a filiação, buscando, por exemplo, analisar o grau de conhecimento e
de aceitação destas normas pela população, diante dos novos arranjos familiares
que se apresentam (uniões homoafetivas, famílias monoparentais, etc).

1.5.2  Diferença entre a Sociologia Jurídica, a Ciência do Direito e a


Filosofia do Direito

SOCIOLOGIA FILOSOFIA DO
CIÊNCIA DO DIREITO
JURÍDICA DIREITO

Estuda o direito, o fenô- A dogmática jurídica es- Investiga os princípios


meno jurídico, como um tuda a norma jurídica e fundamentais do direito,
fato social, decorrente sua aplicação aos casos como norma, poder, rea-
das relações sociais particulares, como foi lidade, valor ou conheci-
concebido e equaciona- mento.
do pelo legislador.

O sociólogo estuda e O cientista do Direito (ju- O filósofo se preocupa


analisa os múltiplos as- rista) interpreta e aplica a com a valoração jurídica
pectos do fato jurídico e norma jurídica, excluindo dos bens existentes na
sua interação com de- qualquer elemento não sociedade, tais como a
mais fatores sociais jurídico. justiça, o bem comum, o
interesse social, a liber-
dade etc., preocupan-
do-se com as correntes
filosóficas e ideológicas.

20 • capítulo 1
SOCIOLOGIA FILOSOFIA DO
CIÊNCIA DO DIREITO
JURÍDICA DIREITO

A sociologia jurídica se A Ciência do Direito se A Filosofia do Direito


preocupa com o direito preocupa com a normati- procura identificar a es-
vivo, que se passa segun- vidade do direito positivo sência do direito para
do a vontade do homem, – o DEVER SER definí-lo visando sua apli-
o SER. cação – PODER SER

O que interessa é a eficá- O que interessa é a vi- O que interessa são os


cia das leis. gência das leis. fundamentos, a razão de
ser das leis.

1.6  Litigiosidade social e formas de composição


de conflitos

1.6.1  Critérios de composição dos conflitos

O conflito provoca o litígio e este, por sua vez, rompe o equilíbrio e a paz social.
Do ponto de vista do funcionalismo clássico a função do direito é a de resolu-
ção do conflito. Se o sistema social está caracterizado pela a coesão social em
relação a um número de valores básicos, então o direito tem como função o
restabelecimento da paz social e do equilíbrio, quando os conflitos de interes-
se os turbam. Assim, ainda que o conflito exista, será sempre produzido sob o
controle do sistema jurídico.
Atualmente é possível uma outra interpretação da função de resolução dos
conflitos. Isto porque, parte-se do pressuposto de que conflito é elemento per-
manente na sociedade, isto é, que a interação social é conflituosa por si só.
Assim, há que se admitir que o direito não resolve plenamente todos os confli-
tos extirpando-os do tecido social (no sentido funcionalista, fazendo com que
ele desapareça do contexto social). O que o direito pode pretender é um trata-
mento jurídico aos conflitos de interesses antagônicos que surjam. O direito

capítulo 1 • 21
apresenta ou comina regras, isto é, modelos de comportamentos próprios à de-
cisão que o conflito recomenda e às modalidades de acordo com as quais essa
decisão pode ser adotada.

Funcionalismo
O Dicionário de Ciências Sociais define o funcionalismo como:
a perspectiva utilizada para analisar a sociedade e seus componentes característicos
enfocando a mutua integração e interconexão deles. O funcionalismo analisa o cami-
nho que o processo social e os arranjos institucionais contribuem para a efetiva manu-
tenção da estabilidade da sociedade.

O direito quando na sua função de composição de conflitos atua, então, na


medida em que a capacidade persuasiva de suas normas reguladoras de condu-
ta (sua função reguladora) não determina os efeitos esperados. Aí, os interesses
antagônicos findam por não poder chegar a um acordo por si mesmos. Neste
caso, o direito indica normas para conter os conflitos. Ou seja, o direito não
busca fazer, radicalmente, que o conflito desapareça, mas traz para si o conflito
e indica um tratamento possível, sempre mantendo-o sob seu controle.
Por fim, é relevante apontar que surgiram, nas últimas décadas, as chama-
das formas "alternativas" de resolução de conflitos, isto é, sujeitos e órgãos que
funcionam paralelamente aos órgãos jurisdicionais que o direito estatal for-
malmente designou para a resolução jurídica dos conflitos.

1.6.2  Formas de composição dos conflitos

a) Critério de composição voluntária – se estabelece por mútuo acordo


das partes. Quando surge o conflito, as partes discutem entre si e o resolvem da
melhor maneira possível, através do exercício da autonomia de sua vontade. A
cliente, por exemplo, entra numa sapataria e compra um par de sandálias. Ao
chegar em casa observa que os pés da sandália possuem numeração diferente;
volta à loja, reclama ao vendedor e este, imediatamente, substitui aquele par
por outro. Houve um conflito de interesses - resolvido por meio da composi-
ção voluntária. É a forma mais antiga de composição de conflitos que existe
e está baseada tão-somente na vontade das partes (autotutela). A autotutela

22 • capítulo 1
possibilita o exercício de coerção por particular, em defesa de seus interesses.
Ocorre quando o próprio sujeito busca afirmar, unilateralmente, seu interesse,
impondo-o à parte contestante e à própria comunidade que o cerca.
Atualmente, o exercício da autotutela encurtou-se, em consequência do for-
talecimento do Estado, autor das principais modalidades de coerção.

b) Critério autoritário – cabe ao chefe do grupo o poder de compor os con-


flitos de interesses que ocorrem entre os indivíduos que se encontram sob a
sua autoridade. Normalmente a autoridade lança mão do seu foro íntimo, do
próprio senso de Justiça, do que lhe guia a consciência, para desempenhar a
tarefa de compor conflitos.
Forma antiga de composição de conflitos nas sociedades antigas. Um exem-
plo famoso deste tipo de composição de conflitos é a chamada justiça salomô-
nica, eternizada na célebre fórmula usada pelo Rei Salomão para resolver um
conflito entre duas mulheres que disputavam a mesma criança como filho. O
Rei ordenou que cortassem a criança ao meio, dando uma metade para cada
mulher. Assim constatou qual era a mãe verdadeira – a que se opôs à ordem,
preferindo que seu filho, vivo, fosse entregue à falsa mãe. A solução para o con-
flito ditada por Salomão teve origem em seu foro íntimo e que, no caso, conse-
guiu pôr fim no conflito.
Atualmente o critério autoritário é ainda utilizado no meio familiar, quando
há conflitos de interesses que surgem entre os seus membros, filhos, parentes,
empregados, etc., o (a) chefe da família busca soluções tiradas da sua vontade
(seu foro íntimo), nas relações laborais.
Os dois critérios, contudo, são imperfeitos e insuficientes para resolver os
conflitos de interesses que ocorrem nas sociedades complexas. Por isso, surge
um terceiro critério de composição.

c) Critério de composição jurídica – o critério é previamente elaborado


e enunciado, sendo aplicável a todos os casos que ocorrem a partir de então. A
composição jurídica surge a partir do momento em que o Estado traz para si o
monopólio de dizer o direito (tutela jurisdicional), que agora não é mais fruto
da vontade das partes envolvidas ou da vontade de uma autoridade, mas fruto
da vontade da lei. Tem como características a anterioridade, a publicidade e a
universalidade das normas aplicadas ao caso.

capítulo 1 • 23
1.7  Formas de resolução dos conflitos
Elencam-se como meios autocompositivos no Direito: a negociação individual
ou coletiva, a conciliação extrajudicial e a renúncia.

A conciliação constitui negócio jurídico por meio do qual se


CONCILIAÇÃO extingue um conflito entre as partes. Tem natureza contra-
tual e pode ser judicial ou extrajudicial.

A renúncia configura meio de solução de conflitos coletivos,


à medida que efetiva a pacificação do litígio. É ato unilateral
RENÚNCIA e implica alguém abrir mão de um direito, dotado de certeza
jurídica que lhe pertença.

A heterocomposição acontece quando o conflito se soluciona por meio da


intervenção de agente exterior à relação conflituosa original. As partes subme-
tem a terceiro seu conflito, em busca de solução, a ser por ele resolvido.
Na heterocomposição, não há exercício de coerção pelos sujeitos partici-
pantes. Distingue-se das formas anteriores pelo fato de a decisão ser proferida
por um terceiro, enquanto na autodefesa (autotutela) e na autocomposição há
resultado alcançado pelas próprias partes.
Segundo lição de NASCIMENTO (1990, p.09), são técnicas heterocompositi-
vas: mediação; arbitragem; jurisdição.

técnica de composição de conflitos, caracterizada pela partici-


MEDIAÇÃO pação de terceiro, cuja função é ouvir as partes.

forma de composição extrajudicial dos conflitos, considerada


por alguns doutrinadores como um equivalente jurisdicional, na
ARBITRAGEM medida em que a decisão proferida pelo juiz arbitral vale como
uma sentença judicial.

24 • capítulo 1
Jurisdição vem do latim "juris" e "dicere", que significa “dizer
direito”. Jurisdição é o poder/dever que o Estado tem para apli-
car o direito a um determinado caso que lhe é submetido para
apreciação pelas partes interessadas, com o objetivo de solu-
JURISDIÇÃO cionar conflitos de interesses e com isso resguardar a ordem
jurídica e a autoridade da lei, quando não há outra alternativa.
Por isso deve ser considerado como forma secundária de re-
solução de conflitos.

Importante demarcar que o processo judicial cada vez mais se revela como um fator de
acirramento de ânimos e não de pacificação. A decisão, unicamente como um comando,
coloca as partes nas posições de vencedor e vencido, ganhador e perdedor, vitorioso e
derrotado, não promovendo a paz almejada, razão pela qual, a própria sociedade busca
formas não judiciais do modelo de composição jurisdicional para a solução dos conflitos.

EXEMPLO
Segundo matéria publicada no site do Conjur (http://www.conjur.com.br): “De acordo com
projeção feita pelo Conselho Nacional de Justiça, deve chegar à marca de 114,5 milhões o
número de processos em tramitação na Justiça brasileira em 2020 se a quantidade de ações
continuar superando a capacidade do Poder Judiciário de julgar.
A previsão é de que 36,37 milhões de novas ações judiciais sejam propostas em 2020.
Ainda segundo a entidade, um estoque composto por outros 78,13 milhões de processos
chegará ao início do mesmo ano sem julgamento. Os dados foram apresentados no VIII En-
contro Nacional do Poder Judiciário”.
Enquanto isso, a União Europeia promove ativamente modos de resolução alternativa de
litígios («RAL») como, por exemplo, a mediação, obrigatória desde 2012. A Diretiva «Media-
ção», que diz respeito à mediação em matéria civil e comercial, de maio de 2011, está agora
sendo aplicada nos Estados‑Membros europeus. Para saber mais consulte o link: https://e-
justice.europa.eu/content_eu_overview_on_mediation-63-pt.do

capítulo 1 • 25
1.8  Monismo, pluralismo jurídico e o direito
além do estado

Nas sociedades de tipo complexo como as atuais que se distinguem seja pela
desigualdade e exclusão social e econômica (como é o caso do Brasil), seja por-
que existem diferentes grupos sociais com identidade étnica, cultural, religio-
sa, etc, coexiste um grande dilema sobre como ser tratado legalmente e sobre
os sistemas de autoridade, políticas e procedimentos, que estejam à disposição
ou não dos indivíduos para requisitar e regular a vida social. Nesse sentido, há
dois pontos de vista que enfrentam doutrinariamente estas questões:

a) Escola Monista – entende que somente o grupo político está apto a


criar as normas de direito. Esta doutrina tem como base a ciência do direito,
razão pela qual diverge da ótica da Sociologia Jurídica que entende que mesmo
antes de existir o Estado já havia prescrições jurídicas.
Para os monistas somente o Estado possui tanto o monopólio da violência
legal, quanto o monopólio da produção do direito (direito positivo). Inexistindo
outra fonte de produção do direito que não a estatal. Esta é a posição dos posi-
tivistas e dos marxistas.
Hans Kelsen defendia que o Direito é o Estado, e o Estado é o direito.
Essa concepção, expoente máximo do monismo jurídico contemporâneo no
Ocidente, vai coincidir com um período marcado por duas guerras mundiais,
pela depressão econômica, crises, e pelos tremendos avanços da ligação entre a
ciência e a técnica que produzirá o crescimento organizado das forças produti-
vas sob o intervencionismo estatal.
Nos fins do século XX, a cultura jurídica, marcada pelos princípios do
Monismo entra em um processo de esgotamento.

b) Escola Pluralista –o Pluralismo jurídico surge com uma alternativa em


virtude da insuficiência da crítica jurídica tradicional. Levanta a possibilidade
da existência de uma pluralidade de ordenamentos em um mesmo espaço tem-
poral e geográfico.
A crítica do Direito de acordo com a tradição se preocupou em mostrar os
efeitos do Direito como instrumento de dominação. O Pluralismo considera
que todo grupo social de certa consistência ou expressão pode criar normas

26 • capítulo 1
de funcionamento, as quais ultrapassando o caráter de simples regulamen-
tos adquirem o alcance de verdadeiras regras jurídicas. O advento do Direito
Alternativo busca resgatar a possibilidade transformadora do jurídico, colocan-
do-a a serviço da libertação, naquelas sociedades marcadas pela desigualdade
e pela exclusão social.

1.8.1  O Pluralismo Jurídico

A sociedade brasileira sempre conviveu com sistemas distintos de direito, um


oficial, do Estado, e outro, não oficial originado no interior da própria socieda-
de. Vale conferir: houve aqui um pluralismo jurídico clássico ou colonial que
ocorreu até meados do séc. XIX, na medida em que eram vigentes, ao mesmo
tempo, dois sistemas distintos, o da metrópole e o colonial, só que numa rela-
ção de subordinação. Isso porque era difícil ao poder da Metrópole (Portugal)
controlar devidamente as atividades da colônia e regulamentar as situações no-
vas que surgiam, principalmente por conta das distâncias geográficas.
Nos dias atuais prevalece um outro modelo de pluralismo jurídico: o plu-
ralismo novo ou industrial. Surge a partir do século XX, em razão do advento
das complexas redes sociais que se formaram nas sociedades urbanas e fizeram
com que o modelo anterior fosse ultrapassado. Não que o primeiro tenha perdi-
do sua importância para o estudo da sociologia jurídica.
Ocorre que, se no pluralismo clássico os dois sistemas (oficial e não oficial)
podiam ser nitidamente opostos, com o aparecimento desse novo pluralismo
tal distinção já não é tão evidente, uma vez que há um maior número de atores
sociais (sujeitos).
Na sociedade industrial, a relação entre o direito estatal e o direito não-es-
tatal não é de subordinação. Há uma coexistência entre os sistemas distintos
(e muitas vezes opostos) de Direito. Existem vários grupos da sociedade cons-
truindo o Direito a cada dia e que, acabam por interferir uns nos outros, como
também na dinâmica do direito produzido pelo Estado (positivo), tais como
os movimentos sociais – Movimento pela Anistia (durante a ditadura militar),
Movimento Feminista, Movimento Estudantil, Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) – e
os grupos minoritários – GLBTS, pessoas especiais, portadores do vírus HIV,
quilombolas, índios.

capítulo 1 • 27
Assim, esse novo pluralismo jurídico se relaciona a questões sobre ao efei-
to da lei na sociedade, ou mesmo, o efeito da própria sociedade sobre as leis
existentes, no sentido da construção de uma relação mais complexa e interativa
entre formas oficiais e extra-oficiais de sistematização do Direito.
O pluralismo jurídico encanta os juristas atuais, que não se preocupam
mais com o direito oficial posto somente pelo Estado e sua pretensa de abstra-
ção, generalização e universalidade.
Esse novo pluralismo pretende indicar que existem vários campos de ema-
nação do direito que não apenas o Estado, ou seja, que o direito não se reduz
apenas à lei. É possível vislumbrar, então, quatro esferas de intervenção:

a) Esfera institucional: crítica ao monismo estatal;


b) Esfera sociológica: crítica ao legalismo estatal;
c) Esfera pós-moderna: crítica à ideia de unidade social (fragmentação);
d) Esfera antropológica: crítica ao imperialismo.

Essas esferas críticas e seus temas próprios do pluralismo jurídico e relação


ao direito além do Estado (extra-estatal) certamente representam o que há de
mais atual em termos da Sociologia Jurídica e Judiciária e dizem respeito ao
denominado “direito vivo”, que brota das ações promovidas pelos grupos mi-
noritários, os novos movimentos sociais, dentre outros.
Entre os muitos autores que se voltaram para essa reflexão teórica nesse sen-
tido está Boaventura de Sousa Santos, em Portugal e Antonio Carlos Wolkmer,
no Brasil, dois dos maiores nomes do pluralismo jurídico na atualidade.

Boaventura de Sousa Santos (Quin-


tela, 15 de Novembro de 1940)
licenciou-se em direito pela Uni-
versidade de Coimbra em 1963.
No final do curso, rumou a Berlim
para estudar filosofia do direito. Fez
uma pós-graduação e viveu a expe-
riência dos dois mundos da guerra
fria separados pelo Muro de Berlim.

28 • capítulo 1
Dois anos depois, regressou a Coimbra e durante um breve período foi assistente da
Faculdade de Direito. Em finais dos anos 1960, partiu para a Universidade de Yale com
o objetivo de se doutorar. A sua tese de doutoramento, publicada pela primeira vez
em português em 2015 (Direito dos Oprimidos, Almedina), é um marco fundamental
na sociologia do direito, que resultou do trabalho de campo centrado em observação
participante numa favela do Rio de Janeiro.
(Disponível no site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Boaventura_de_Sousa_Santos)

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos demonstra o caráter


próprio do novo pluralismo jurídico nos resultados de sua pesquisa sobre a re-
lação entre o que chama de "lei da favela" e "lei do asfalto". Nesse estudo, o au-
tor procura explicar a normatização que ocorre dentro de uma favela localizada
no Rio de Janeiro (do Jacarezinho) em relação aos mais variados assuntos do
dia a dia de seus habitantes. Assinala, além disso, o papel fundamental do líder
comunitário que funciona como intermediador entre esses dois mundos que
convivem na mesma cidade; um dominado pelo “poder paralelo” e outro pelo
Estado. Existiria, em ambos os casos, um conjunto de “leis próprias” conheci-
das e obedecidas pelo grupo. Na favela (agora chamada de comunidade), foram
encontradas normas próprias formuladas dentro de uma realidade à parte do
contexto do asfalto, este vinculado ao direito positivo do Estado.

GRUPOS MINORITÁRIOS
O termo grupos minoritários é amplamente utilizada na sociologia, sendo mais que
uma distinção numérica, existem muitas minorias. Ex.: pessoas altas, magras, baixas,
porém estas não são minorias segundo o conceito sociológico, minorias são um grupo
inferior numericamente e estão em desvantagens sociais se comparados com a grande
parte da população majoritária, sendo objeto de preconceito de tal grupo dominante, tal
comportamento reforça a ideia de lealdade e de interesses comuns. Por isso quando
a expressão “minoria” é usada pelos sociólogos não é em caráter numérico e sim a
posição subordinada do grupo dentro da sociedade, pois o termo minoria expressa a
situação de desamparo, os membros deste grupo estão normalmente isolados física e
socialmente, costumam se concentrar em certos bairros, cidades ou regiões.

capítulo 1 • 29
1.8.2  O Pluralismo comunitário- participativo

Na mesma linha de Sousa Santos, o professor Antonio Carlos Wolkmer propõe


um novo modelo jurídico, de conteúdo comunitário-participativo, comprome-
tido com a emancipação social e procedente dos valores e das práticas dos mo-
vimentos sociais.

Conhecendo o autor
Antonio Carlos Wolkmer é um professor e advogado brasileiro. É um teórico do direito
vinculado aos estudos sobre Pluralismo Jurídico.1 Professor titular de História do Direito
na Universidade Federal de Santa Catarina, atuando na graduação e no curso de pós-
graduação em direito dessa instituição. Conferencista convidado em universidades do
Brasil e do exterior. Um dos iniciadores do debate sobre o Direito Alternativo no Brasil.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Antonio_Carlos_Wolkmer

O Professor Wolkmer apresenta os movimentos sociais como sujeitos co-


letivos de direito e estabelece as necessidades desses sujeitos históricos, bem
como a alteridade e a busca pela emancipação. O autor assim conceitua o plu-
ralismo comunitário-participativo:

“ [...] destinado a se contrapor e a responder às insuficiências do projeto monista le-


gal-individualista, produzido e sustentado pelos órgãos do Estado moderno. Este plu-
ralismo [...] encontra a força de sua legitimidade nas práticas sociais de cidadanias
insurgentes e participativas. Tais cidadanias são, por sua vez, fontes autênticas de nova
forma da produção dos direitos, direitos relacionados à justa satisfação das necessida-
des desejadas”. (WOLKMER, 2011 p. 347)

Assim, os novos sujeitos coletivos de direito e a reunião das necessidades hu-


manas fundamentais são as principais marcas da teoria pluralista. Sobre os no-
vos movimentos sociais, Wolkmer dispõe que precisam ser entendidos como su-
jeitos coletivos transformadores, que surgem dos mais diversos estratos sociais
e integrantes de uma prática política cotidiana com certo grau de "institucionali-
zação", imbuídos de princípios valorativos comuns e objetivando a realização de
necessidades humanas fundamentais. (WOLKMER, 2011. P.122)

30 • capítulo 1
Aponta como princípios valorativos do pluralismo a autonomia, a descen-
tralização, a participação, o localismo, a diversidade e a tolerância (WOLKMER,
2011, p. 174-183).
A autonomia diz respeito aos poderes e à liberdade de articulação e mobili-
zação que os movimentos coletivos ou as associações possuem. “A ‘autonomia’
se manifesta não só diante do poder do Estado mas no próprio interior dos vá-
rios interesses particulares, setoriais e coletivos”. (WOLKMER, 2011, p. 175).

Síntese

Neste primeiro capítulo você conheceu:

•  O conceito sociológico do Direito e a sua função social


•  Foi apresentado à disciplina Sociologia Jurídica e Judiciária e ao seu objeto,
a saber, o direito como um fato social.
•  Pode rever a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, agora res-
saltando os aspectos sociais do fenômeno jurídico.
•  Percebeu que os conflitos sociais precisam ser compostos e que há for-
mas alternativas de resolução dos conflitos.
•  Conheceu as correntes do Monismo, Pluralismo jurídico e o direito além
do Estado

FILMES
1. O Homem do Ano. É um filme brasileiro de 2003, do gênero drama, dirigido por José
Henrique Fonseca e com roteiro baseado no romance O Matador, de Patrícia Melo, adaptado
para o cinema por Rubem Fonseca. Estúdio Conspiração Filmes.
2. Cidade de Deus. Drama brasileiro de 2002 dirigido por Fernando Meirelles e codirigido
por Kátia Lund. Foi adaptado por Bráulio Mantovani a partir do livro de mesmo nome escrito
por Paulo Lins. O filme retrata o crescimento do crime organizado na Cidade de Deus entre o
final da década de 1960 e o início da década de 1980. Estúdio Globo Filmes.

capítulo 1 • 31
LEITURA
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: Novo paradigma de legitimação. Disponível em: http://
www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Wolkmer_Pluralismo.pdf

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica, 12ª. Ed, RJ:Forense, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Nota sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: SOUSA,
José Gerardo (Org.).Introdução crítica ao direito. 4ªed. Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p.42-49.
WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Pluralismo Jurídico. Novos Caminhos da Contemporaneidade.
2a. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
________________________________. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 8ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.

32 • capítulo 1
2
Dinâmica Social
da Norma e das
Instituições de
Direito
O tema da eficácia do Direito é um dos principais objetos da Sociologia Jurídica e
Judiciária. Em relação à definição e as dimensões da eficácia da lei constatam-se
grandes questões que interessam ao estudo dos sociólogos do direito. Temos
desse modo, termos como "eficácia", "eficácia social", "efetividade" e "eficiên-
cia" do direito, recebendo estes termos variadas definições, que indicam as di-
ferentes concepções do fenômeno em sua dinâmica social.
O presente capítulo trata das questões atinentes à eficácia da norma social
quando de sua aplicação nas relações juridicamente relevantes na sociedade
que é considerado um dos temas de maior complexidade e importância, não
só para juristas e intérpretes do direito, mas também para filósofos e soció-
logos, na medida em que diz respeito aos estudos relacionados à validade e à
eficácia das normas jurídicas em seus reflexos sociais, tanto quando é eficaz,
como quando sua ineficácia produz efeitos sociais negativos.
Teremos oportunidade, também, de conhecer os meandros da produção
da norma, envolvendo desde o processo de escolha dos legisladores, até a
qualidade do sistema eleitoral e da produção legislativa brasileira.

OBJETIVOS
•  Eficácia das normas jurídicas e seus efeitos sociais
•  Noções de validade e eficácia
•  Repercussões sociais da norma jurídica formalmente válida.
•  Efeitos negativos das normas. O círculo vicioso impunidade-ilicitude
•  Sociedade brasileira e Instituições de Direito
•  O processo de escolha dos legisladores, qualidade do sistema eleitoral e da produção
legislativa brasileira.

34 • capítulo 2
2.1  Eficácia das normas jurídicas e seus
efeitos sociais

A Sociologia Jurídica e Judiciária não traça e nem define as normas, seu objeto
de investigação trata tão-somente de perquirir os fatores sociais determinantes
(causas e efeitos) que possam provocar no âmbito jurídico, especialmente, so-
bre a efetividade ou eficácia da norma jurídica como fato social.
Tendo como objeto de conhecimento a vida social em seus aspectos jurí-
dicos, examina a facticidade do direito, ou seja, a realidade social do direito.
A partir daí elabora uma teoria sociológica dos fenômenos jurídicos, que não
se confunde com as questões técnicas da interpretação do direito nem com os
aspectos axiológicos (valorativos), que são objeto respectivamente da Ciência
do Direito e da Filosofia Jurídica.
Importante apontar que sobre o sentido e as extensões da eficácia da lei,
entre sociólogos do direito há grandes controvérsias teóricas e terminológicas.
É possível encontrar os termos "eficácia", "eficácia social", "efetividade" e "efi-
ciência" do direito, com várias definições, que sugerem as distintas percepções
do fenômeno.
De modo sintético, esse texto apresenta algumas dessas perspectivas traba-
lhadas na análise dos reflexos sociais de uma norma jurídica.

2.2  Noções de validade e eficácia


De forma geral, válido é o que é feito com todos os seus elementos essenciais.
Elementos essenciais são os requisitos que constituem a própria substância
da coisa, sem os quais não existiria.
Em direito para que um ato ou negócio seja considerado válido, terá que
revestir-se de todos os elementos essenciais que a lei prevê, pois faltando um
deles o negócio será inválido, nulo. Portanto, a validade decorre sempre de o
ato ter sido executado com a satisfação de todas as exigências legais.
Já a eficácia, numa visão positivista, é uma consequência da validade, con-
sistente na força do ato para produzir os efeitos desejados. Só o ato válido, re-
vestido de todos os seus elementos essenciais, tem força para alcançar seus ob-
jetivos. Eficácia é, pois, a força do ato para produzir seus efeitos.

capítulo 2 • 35
2.2.1  Validade da norma jurídica

A validade da norma jurídica, é a existência específica da norma - segundo o


jurista austríaco Hans Kelsen -, sua capacidade de legalmente obrigar a con-
duta de seus destinatários (a sociedade em geral), representa um conjunto de
requisitos que comporta três aspectos, já analisados sob a ótica da Ciência do
Direito - validade formal, fática e ética.
Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, concebeu que, tendo em conta a dife-
renciação e distinção entre ser e dever ser – ambiência do Direito, que é dever-ser
- que a validade da norma jurídica representa sua existência específica, demons-
trando uma propriedade das relações entre as normas jurídicas, a saber, a de que
uma norma busca seu fundamento de validade em outra que lhe é superior, reve-
ladora do órgão competente e do devido processo legislativo para sua elaboração.
Mas Kelsen, em determinado momento revela que, a despeito de tais pro-
priedades, um mínimo de eficácia é condição necessária de validade da norma
- pois uma norma que nunca foi observada em canto algum e por um mínimo
de tempo não pode ser considerada uma norma válida - com o que recoloca o
ser no âmbito do dever-ser.

2.2.2  Eficácia da norma jurídica

A eficácia é o nível de cumprimento da norma tendo em conta as relações so-


ciais a elas referentes. Uma norma é considerada socialmente eficaz quando é
observada por seus destinatários, apresentando os efeitos esperados quando
de sua aplicação, seja porque impediu a instalação do conflito ou quando a sua
violação é efetivamente punida pelo Estado. Em ambos os casos a previsão nor-
mativa é respeitada: seja de forma espontânea, seja através de uma intervenção
coercitiva ou punitiva do Estado.
Denomina-se eficácia do preceito (ou primária) a que decorre do respeito
espontâneo à norma e como eficácia da sanção (ou secundária) a que resulta
da intervenção repressiva do Estado. Então imagine que, por exemplo, 30% dos
contribuintes sonega o imposto de renda, subtraindo informações em sua de-
claração anual. No caso de todos serem identificados e punidos, pode-se afir-
mar que a norma que regula a arrecadação do imposto de renda foi eficaz: o
preceito teve eficácia para 70% dos contribuintes e a sanção teve eficácia para
100% dos sonegadores.

36 • capítulo 2
É fácil perceber que, em verdade, as normas jurídicas nunca conseguem ser
plenamente eficazes. Por mais que as autoridades do Estado (nacional ou estran-
geiro) se empenhem em descobrir e punir todas as violações de normas, sempre há
casos de transgressão que permanecem impunes. A eficácia indica então, a distân-
cia entre o direito "nos códigos", estabelecido na norma legal (o dever ser jurídico),
e o direito "em ação" (o nível de cumprimento do direito na sociedade real).
Para a socióloga Ana Lucia Sabadell, as repercussões sociais de uma norma
jurídica formalmente válida se dão em três dimensões:

qualquer repercussão social provocada pela norma constitui um


efeito social. Exemplo: uma lei estadual estabelece um aumento de
QUANTO AOS 50% dos impostos a serem pagos por empresas de capital estran-
EFEITOS DA geiro. Algumas empresas decidem mudar-se para outros estados
NORMA onde a tributação é menor. Não se trata de descumprimento da
lei, apenas um dos seus efeitos.

é o grau de cumprimento da norma na prática. Uma norma é consi-


derada eficaz quando é respeitada por seus destinatários ou quando
QUANTO À a sua violação é efetivamente punida. Exemplo: se todos os condu-
EFICÁCIA DA tores de veículos que ultrapassem o limite de velocidade nas estra-
NORMA das brasileiras forem efetivamente punidos, então é possível afirmar
que as normas em questão são plenamente eficazes. O mesmo
aconteceria se todos os condutores respeitassem essas normas.

é a capacidade da norma de atingir a finalidade social estabeleci-


da pelo legislador. Exemplo: a lei que prevê a responsabilidade
do empregador em caso de acidente de trabalho. O empregador
tem o dever de indenizar os empregados vítimas de tais acidentes
ADEQUAÇÃO (responsabilidade objetiva). Para prevenir-se de eventuais gastos,
INTERNA DA muitos empresários estabelecem contratos com seguradoras. Os
NORMA prêmios pagos por tais seguros são embutidos no preço dos pro-
dutos fabricados e incorporados no valor final da mercadoria. Des-
se modo, o objetivo do legislador não é alcançado: não é o empre-
gador, mas o consumidor que arca com os custos dos acidentes
trabalhistas, ao adquirir os produtos.

capítulo 2 • 37
2.3  Repercussões sociais da norma jurídica
formalmente válida.

Como visto, norma eficaz é a que tem força para realizar os efeitos sociais para
os quais foi elaborada, seja o cumprimento da norma ou a sanção imposta em
caso de descumprimento. No entanto, essa norma só tem essa força se estiver
adequada à realidade social e ajustada às necessidades do grupo. E isso deveria
ser a primeira preocupação do legislador quando da elaboração das normas:
adequar o direito positivo à realidade social, sob pena de nunca produzir uma
norma eficaz. Ou seja, a quota de eficácia distingue a distância entre o direito
na teoria e o direito na prática.
Conheça, agora, alguns dos possíveis fatores que contribuem para a eficácia
social da norma:

a) Fatores instrumentais – são os que dependem da atuação dos órgãos


de elaboração e de aplicação do direito (Legislativo e Judiciário), entre os quais:
•  Divulgação do conteúdo da norma entre a população;
•  Conhecimento da norma por seus destinatários;
•  Perfeição técnica da norma – clareza da redação, brevidade, precisão do
conteúdo, sistematicidade;
•  Estudos preparatórios sobre o tema que se objetiva legislar;
•  Preparação dos profissionais do direito responsáveis pela aplicação da norma;
•  Previsão de consequências jurídicas, sanções, adaptadas à situação e so-
cialmente aceitas;
•  Expectativa de consequências negativas – efetividade na aplicação da san-
ção prevista na norma.

b) Fatores referentes à situação social – são fatores ligados às condições


da vida na sociedade, em determinado momento histórico. O sistema de rela-
ções sociais e a atitude do poder político frente à sociedade civil influenciam
diretamente as chances de aplicação das normas vigentes, tais como:
•  Participação dos cidadãos no processo de elaboração e aplicação das
normas;
•  Coesão social – isto é, quanto mais consenso houver entre os cidadãos com
relação à política do Estado, mais forte será o grau de eficácia das normas vigentes;

38 • capítulo 2
•  Adequação da norma à situação política e às relações de força dominantes
– uma norma que corresponde à realidade política e social possui mais chances
de ser cumprida;
•  Contemporaneidade das normas com a sociedade

2.3.1  Efeitos positivos da norma

Segundo Cavalieri Filho, a norma quando eficaz, produz normalmente efeitos


positivos, e a eficácia é o principal desses efeitos, mas, além dela o autor cita:

a) Função de controle social – é exercida pelo direito primeiramente pela


prevenção geral, sendo uma coação psicológica, ou seja, uma intimidação exer-
cida por todos.
Por outro lado, o controle também é exercido pela prevenção especial, ou
seja, isolamento do transgressor do meio social, ou a aplicação de uma pena pe-
cuniária (multa), visando ajustar sua conduta às condições existenciais. O pró-
prio Estado, a sociedade como um todo, sofre esse controle do direito quanto à
sua conduta, tanto assim que não pode punir sem que alguém tenha praticado
um fato típico (uma ação ou omissão que provoca um resultado, que é contrá-
rio ao direito), não pode apoderar-se da propriedade de quem quiser, a não ser
através dos meios constitucionais;

b) Função educativa – certos assuntos passam a ser mais conhecidos do


grupo social depois de serem disciplinados pela lei. Isso é assim, porque a lei,
antes de se tornar obrigatória, tem que se divulgada, publicada, e assim, à me-
dida que vai se tornando conhecida pelo grupo, também vai educando e escla-
recendo a opinião pública;

c) Função conservadora da norma – as normas jurídicas tutelam determi-


nados bens da vida social, que se transformam em jurídicos quando recebem a
proteção do direito. Não somente os bens, mas também instituições recebem
esta proteção jurídica, como é o caso das famílias e do próprio Estado.
A função conservadora do direito está vinculada também ao caráter estático
que ele representa ao garantir a manutenção da ordem social vigente. Isto pode
significar a perpetuação do atraso. Daí a importância do direito ser visto ao mesmo
tempo, como um instrumento de transformações sociais, como será visto, a seguir.

capítulo 2 • 39
d) Função transformadora da norma – muitas vezes, em função das ne-
cessidades objetivas, a norma estabelece novas diretrizes a serem seguidas, fixa
novos princípios a serem observados em certas questões, para tanto determina
a realização de certas modificações. A sociedade então, a fim de cumprir a lei,
tem que se adequar, equipar, aparelhar e assim, aos poucos, vai operando sen-
síveis transformações em seu meio. Eis aí a função transformadora da lei.

2.4  Efeitos negativos das normas. O círculo


vicioso impunidade-ilicitude

Como se pode observar a eficácia da norma está ligada ao reconhecimento,


aceitação ou adesão da sociedade a essa norma.
No entanto, quando as leis entram em conflito com os fatos acabam ven-
cidas por estes e findam por desmoralizar-se, provocando desapreço a toda
legislação.
Assim, a ineficácia se dá em casos nos quais a norma não foi obedecida e
não houve imposição de sanção.
O Senador Acyoli Filho, citado por Cavalieri (2010, p. 90), aponta três causas
principais para a ineficácia da lei:

a lei pode estar em perfeita adequação com a realidade no


momento de sua criação, mas, com o passar do tempo, aca-
DESATUALIZAÇÃO ba sendo ultrapassada, pois os fatos são dinâmicos, estão
DA LEI sempre evoluindo, enquanto a a lei é estática. Logo, com o
passar do tempo a lei se torna ineficaz, desatualizada.

é a aversão às inovações ou transformações do status


quo. Velhos hábitos, costumes emperrados, privilégios de
grupos, impedem que lei seja aplicada e mesmo elabora-
MISONEÍSMO da. Quase sempre são grandes interesses de grupos que
estão por trás ou mesmo é comodismo da autoridade
que não leva a sério a aplicação da lei;

40 • capítulo 2
muitas vezes o legislador vê uma lei que funciona em de-
ANTECIPAÇÃO DA terminado país e quer implantá-la em seu país. Mas, nem
LEI À REALIDADE sempre há correspondência entre as realidades sociais
SOCIAL EXISTENTE dos países e a lei cai no vazio.

Os resultados contrários aos interesses da sociedade são considerados os


efeitos negativos da norma. Assim, se a norma é ineficaz, produz efeitos negati-
vos. Isso pode acontecer:

a) Quando é ineficaz – lei ineficaz é a que está ultrapassada, desatuali-


zada socialmente. A consequência dessa ineficácia é a desmoralização da lei
e do próprio sistema. Exemplo: o jogo do bicho, previsto no art. 58 da lei de
Contravenções Penais, mas tolerado pela sociedade, o que leva a desmoraliza-
ção e à corrupção;
b) Por omissão da autoridade em aplicá-la - nesse caso a sanção por des-
cumprimento não é aplicada o que pode estimular novas transgressões;
c) Pela falta de estrutura adequada à aplicação da lei – as leis podem ser
boas e eficazes, as autoridades competentes e responsáveis, mas a norma não
atingirá seus objetivos sociais se não houver uma estrutura para que possa ser
aplicada devidamente. É o caso da estrutura do Judiciário em nosso país. De
modo que, se pode afirmar que pior que não ter leis é tê-las e não aplicá-las.
Montesquieu afirmava que quando vou a determinado país não indago se aí há
leis boas, porque leis boas há em toda parte, mas sim se as executam.

2.4.1  Sobre o círculo vicioso impunidade-ilicitude

Sobre esse tema, vale fazer a leitura do ensaio intitulado: Criminalidade: uma
doença social?, de autoria de Fernanda Tonetto, Procuradora do Estado do Rio
Grande do Sul.

“A criminalidade é inerente ao homem e é por essa razão que sempre se fez pre-
sente na história da sociedade. Ao que tudo indica, não é passível de ser eliminada.

capítulo 2 • 41
Assim já disse DURKHEIM, quando escreveu As regras do método sociológico e afirmou
que o crime é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente impossível.
Também KANT tratou da sociabilidade insociável dos homens, afirmando que o homem
sente inclinação para exercitar a resistência contra os outros. KANT era extremamente
otimista e via essa insociabilidade como um instrumento de evolução, como se existisse
um fio condutor que leva a humanidade a evoluir, à medida em que é instada a encon-
trar mecanismos para solucionar o problema da transgressão.
Sob essa ótica, a criminalidade não seria uma patologia social.
Talvez não contassem KANT e DURKHEIM com o fato de que a criminalidade atingiria
os níveis insuportáveis em que se encontram, a ponto de comprometerem a paz e a
convivência harmônica entre as pessoas.
Vista dessa forma, a criminalidade é, sim, uma doença social e como tal deve ser tratada
em suas causas, e não com medidas meramente punitivas ou remediadoras. É assim,
afinal, que são tratadas com êxito as doenças. (...)
Criminalidade se controla (e não se combate) em três fases: a fase primária, cuja imple-
mentação se dá a médio e longo prazo, consiste no desenvolvimento de um ambiente
social desestimulante do caminho da ilicitude, com fortalecimento de setores como a
educação; a fase secundária é fulcrada no investimento em mecanismos persecutórios
impeditivos da criminalidade, ou seja, investimento em segurança pública; a fase terci-
ária concentra-se no controle da reincidência, partindo da premissa de que o cárcere é
um dos mais significativos fatores criminógenos.
Em outras palavras: não se controle a criminalidade sem investir na ressocialização.
Do contrário, é do presídio que continuarão saindo os mais perigosos delinquentes. Os
mais simplistas pensariam então na pena de morte, esquecendo-se o quanto foram
sacrificados os Direitos Humanos em nome dela.
A pergunta que fica é: continuaremos buscando soluções paliativas para um problema
complexo em nome da satisfação de nossos atávicos sentimentos de vingança privada
(com a ideia de que quem cometeu um delito deve ser, de preferência, esquecido den-
tro de um estabelecimento prisional) ou trataremos a criminalidade como uma verda-
deira patologia social, cuja cura exige uma total mudança de paradigma?
Enquanto não resolvemos, vamos arcando com as consequências: nos trancafiamos
em casa, contratamos segurança privada, dirigimos carros blindados e, para um caso
de falha, carregamos um pouco de dinheiro no bolso pra contentar o assaltante.(...)
(Disponível no site: http://www.apergs.org.br/site/apergs_na_midia_detalhe.php?cd_
publicacao=395)

42 • capítulo 2
2.5  Sociedade brasileira e instituições de
direito

Segundo Marilena Chaui (2006), um direito, ao contrário de carências e privilé-


gios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo
é válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora
diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das
minorias).
O ordenamento jurídico que confere direitos e deveres às pessoas, em suas
relações com a sociedade, tal como se está estudando, é produto de uma cons-
trução social, de fundo ético, resultado de um processo histórico e dinâmico de
lutas por conquistas e de consolidação de ambientes emancipatórios da digni-
dade humana.
Em relação a essa constatação, o jurista Norberto Bobbio (1992, p. 45) sina-
liza que a questão da efetivação dos direitos das pessoas, não é nem filosófico
nem moral. Mas tampouco é um problema jurídico. É um problema cuja solu-
ção depende de um certo desenvolvimento da sociedade e, como tal, desafia até
mesmo a Constituição mais evoluída e põe em crise até mesmo o mais perfeito
mecanismo de garantia jurídica.
Para compreender como as instituições do direito foram sendo construí-
das e se desenvolvendo na sociedade brasileira é importante ter presente que
o Brasil viveu diferentes períodos históricos. Essa diversidade foi originando
características próprias na expectativa e na ação da sociedade em relação aos
direitos.
Até os anos 1930, o Estado brasileiro voltava-se estritamente para o atendi-
mento dos interesses das oligarquias primário-exportadoras e considerava as
questões sociais que se punham à sociedade, em relação aos problemas decor-
rentes do não acesso da maior parte da população aos bens e serviços por ela
produzidos, simplesmente como "um caso de polícia". A família, a propriedade
e o contrato, eram os pilares de sustentação do sistema jurídico. O direito era
conservador tanto nas relações de ordem patrimonial, contratual e familiar,
fiel ao contexto histórico e à história dos valores dominantes.
Um exemplo disso é o antigo Código Civil, de 1916, o qual segundo Antônio
Carlos Wolkmer, em que pesem seus reconhecidos méritos de rigor metodo-
lógico, sistematização técnico-formal e avanços sobre a obsoleta legislação

capítulo 2 • 43
portuguesa anterior, era avesso a grandes inovações sociais que já se infiltra-
vam na legislação dos países mais avançados do Ocidente, refletindo a mentali-
dade patriarcal, individualista, e machista de uma sociedade brasileira agrária,
preconceituosa, presa aos interesses dos grandes fazendeiros de café, dos pro-
prietários de terra e de uma gananciosa burguesia mercantil.
Uma importante mudança se dará a partir da entrada do Brasil na 2ª. Grande
Guerra, na medida em que haverá um salto de qualidade quanto ao processo de
desenvolvimento industrial. Naquele momento histórico, quando as potências
democráticas tinham vencido o nazi-fascismo, um clima de confiança nas li-
berdades democráticas tomava conta do País. Era o fim da ditadura do Estado
Novo, de Getúlio Vargas.
Emergiu daí, então, um Estado nacional que já assumira, como responsabi-
lidade sua, os direitos sociais relacionados ao trabalho urbano (direitos traba-
lhistas). Para Emir Sader (in Silveira, 2007) este é o período, até então, no qual
o país, passou pelo mais extenso processo de promoção de direitos, em que o
reconhecimento, pelo Estado, dos indivíduos como cidadãos passava pelo di-
reito de sindicalização — através do qual tinham acesso aos direitos sociais.
O golpe militar de 1964, iniciou, na história brasileira, mais de duas décadas
de ditadura. Milhares de pessoas foram presas de modo irregular, e a ocorrên-
cia de casos de tortura foi comum, especialmente no Nordeste. As instituições
de direito foram frontalmente atacadas.
Durante todo esse período houve, de forma intensa, a violação sistemática
dos direitos: os direitos políticos da população foram reprimidos, quando não
suprimidos e os direitos econômicos e sociais, sonegados. Houve perseguição
e repressão às entidades de classe dos trabalhadores (os sindicatos) e prisão
de líderes sindicais. Os direitos de organização, de expressão e de privacidade
foram desconsiderados.
Foi nesse contexto de supressão e falta de respeito pela pessoa humana, per-
petrado pelo próprio Estado que a discussão sobre o direito e suas instituições
começou a ter a conotação que tem nos dias atuais: os direitos humanos, con-
figurados como liberdades públicas e direitos de viés social, fazendo parte do
discurso que cobrava a volta da democracia no Brasil e, na medida em que as
condições de vida nas grandes cidades foi-se tornado cada vez pior — especial-
mente nas suas periferias —, passou, também, a servir como foco de denúncia
da falta de condições de segurança individual.

44 • capítulo 2
Nesse processo, alguns setores foram expressivos, como a Comissão
Pastoral da Terra, os Centros de Defesa dos Direitos Humanos (da Confederação
Nacional dos Bispos -CNBB), as Comissões de Justiça e Paz, a Ordem dos
Advogados do Brasil — OAB, a Associação Brasileira de Imprensa — ABI, as no-
vas lideranças políticas e sindicais, bem como as entidades estudantis.

2.5.1  A Constituição brasileira de 1988

Depois de muita resistência por parte dos setores mais progressistas da popu-
lação brasileira, que nunca aceitaram o regime militar e não desistiram apesar
das perseguições, mortes, desaparecimentos e dos exílios forcados.

CONSTITUIÇÃO GARANTIA E CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE


A CONSTITUIÇÃO GARANTIA é um tipo clássico de constituição que protege as liber-
dades individuais e coletivas, e limita o poder do Estado. Por exemplo, a Magna Carta
inglesa, de 1215, a Constituição Norte Americana de 1787 e a francesa de 1791.
A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE estabelece um plano diretivo que tem por finalidade a
evolução política. Delineia diretrizes para a utilização do poder e progresso social, econô-
mico e política a serem seguidas pelos órgãos estatais e pela sociedade como um todo.
Então, como atual Constituição Federal possui diversas normas que garantem os di-
reitos individuais e coletivos, ela é uma constituição garantia; e também dirigente, pois
possui normas programáticas e constitui diretrizes para cumprimento pelo Poder Públi-
co buscando a evolução política.

A Constituição brasileira de 1988 — a "Constituição Cidadã" no dizer de


Ulisses Guimarães — é o que se pode chamar de Constituição garantia e diri-
gente. Define, por meio de normas constitucionais programáticas, fins e pro-
gramas de ação futura para a melhoria das condições sociais e econômicas da
população. A intensa participação popular no decorrer de sua construção criou
condições para que o Brasil tivesse uma Constituição democrática e compro-
metida com a supremacia do direito e a promoção da justiça. A partir dela, o
Estado brasileiro passou a ter o dever jurídico-constitucional de realizar a jus-
tiça social. Nas palavras de Marilena Chaui (2006) este avanço é fruto da "ati-
vidade democrática social [que] realiza-se como um contrapoder social que

capítulo 2 • 45
determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes
com a criação de direitos reais, a ampliação de direitos existentes e a criação de
novos direitos".
Os constituintes de 1988 registraram no texto da Constituição os direitos
fundamentais da pessoa humana e previram os meios para garanti-los, afixan-
do responsabilidades. Definiram, no seu art. 1º, os fundamentos que consti-
tuem sua base em relação aos direitos individuais e coletivos, entre os quais a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da
livre-iniciativa e o pluralismo político.
No art. 3º, determinaram como finalidades principais do Estado brasilei-
ro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desen-
volvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redu-
ção das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
No art. 6º foram consagrados os denominados direitos sociais, tais como: a
educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro-
teção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
O reconhecimento constitucional desses direitos cria também a possibili-
dade de intervenção de uma das instituições do Estado, a Justiça no sentido
de obrigar a implementação das ações estabelecidas na Constituição e de res-
ponsabilizar o agente ou a autoridade pública a quem essa omissão lesiva é
atribuída.
O maior problema da Constituição de 1988 tem sido a sua concretização, ou
seja, tirar a lei do papel e torna-la realidade, não obstante não lhe faltem meios
jurídicos. A sociedade em geral não vai às ruas lutar para que haja mais direitos,
mas para que haja a garantia da implementação dos que já possui: a prática po-
lítica viciada e o contexto social demarcado de um lado pelo preconceito e pela
cultura da corrupção e de outro pela ausência de conscientização, levam a uma
concretização limitada e excludente dos dispositivos.

2.5.2  A relevância das instituições de Direito

A garantia de direitos, no seio da sociedade brasileira, está a cargo de diferen-


tes instituições que operam de acordo com suas próprias competências: as ins-
tituições legislativas nos diferentes níveis governamentais (Senado e Câmara

46 • capítulo 2
Federal, Assembleias Legislativas estaduais e Câmaras de Vereadores, nos mu-
nicípios); as instituições de direito ligadas ao aparelho judiciário — a Promoto-
ria, o próprio Judiciário, a Defensoria Pública (estadual e federal), os Conselhos
Tutelares. Também merece relevo o papel das instituições responsáveis pelo
estabelecimento das políticas e pela implementação dos serviços e programas
de atendimento social (organizações governamentais e não governamentais)
que atuam nas diversas áreas (educação, saúde, trabalho, esportes, lazer, cul-
tura, assistência social).
Entretanto, no que diz respeito à proteção e garantia dos direitos, as ações
tomadas têm sido historicamente localizadas, isoladas e fragmentadas, sem
que se possa identificar um grande projeto comum que permita a efetividade
de seu alcance e maior eficácia na abrangência dos principais objetivos por elas
buscados, salvo alguns programas que tem obtido reconhecimento até mesmo
fora do país, como é o caso do Programa Minha Casa Minha Vida.
Importante agora, conhecer um pouco da estrutura e função dessas distin-
tas instituições, a começar pelo Poder Legislativo, responsável pela produção
normativa do país.

2.6  O processo de escolha dos legisladores,


qualidade do sistema eleitoral e da produção
legislativa brasileira.
O atual regime político brasileiro é democrático (mas, nem sempre foi assim.
É só recordar suas aulas da disciplina História do Direito Brasileiro) porque o
povo é quem determina quem serão os seus governantes, e presidencialista,
sendo composto por três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
O poder Executivo é exercido pelo Presidente da República (pelos gover-
nadores, nos estados e pelos prefeitos, nos municípios) e o Poder Legislativo,
pelo Congresso Nacional (nosso Parlamento) – dividido entre Câmara dos
Deputados e Senado Federal, além dos representantes nos estados (deputados
estaduais) e nos municípios (vereadores). O Poder Judiciário cuja função de é a
de garantir o cumprimento e a aplicação das leis, julga os conflitos e as pessoas
neles envolvidas.

capítulo 2 • 47
2.6.1  O Sistema Eleitoral

Originalmente o sistema eleitoral no Brasil era censitário (baseado na renda


ou na escolaridade), o voto era indireto (os eleitores municipais indicavam os
eleitores da província) e a descoberto, o que facilitava a fraude e legitimava a
exclusão social.

Sufrágio, voto e escrutínio são a mesma coisa? Não são!


Embora por vezes empregados como sinônimos, voto, escrutínio e sufrágio têm signifi-
cados distintos, a saber:
Sufrágio é o direito que alguém tem de votar e de ser votado.
Voto é o instrumento que possibilita o exercício do direito ao sufrágio por alguém.
Escrutínio é o modo pelo qual alguém pratica o voto, seu procedimento.

Muita coisa mudou e hoje, de acordo com a Constituição Federal, artigo 14,
“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e se-
creto, com valor igual para todos”. Desse modo, nosso sistema eleitoral está base-
ado no voto direto e secreto, ou seja, o eleitor (qualquer brasileiro, a partir dos 16
anos, facultativamente) vota diretamente no candidato ao cargo a ser preenchi-
do, de maneira secreta, já que seu voto não pode ser divulgado a terceiros. Assim,
os representantes de todos os níveis dos poderes Legislativo e Executivo são esco-
lhidos diretamente através do voto. São considerados válidos os votos nominais
aos candidatos (por nome escolhido) e os votos nas legendas (partidos) nas elei-
ções proporcionais e majoritárias. Os votos nulos e em branco são descartados.

GERAL Sufrágio universal secreto e coligações partidárias

FINANCIAMENTO DE Misto (privado: doações de pessoas físicas e jurídicas;


CAMPANHA público: Fundo Partidário e propaganda política gratuita

MAJORITÁRIO Presidentes, senadores, governadores e prefeitos

48 • capítulo 2
PROPORCIONAL Deputados federais, deputados estaduais e vereadores

Voto nominal e na legenda, em lista aberta. Vencem os


ELEIÇÕES mais votados por partido, tendo em conta o coeficiente
LEGISLATIVAS eleitoral.

Há segundo turno, se o vencedor não atingir maioria


ELEIÇÕES absoluta de votos, exceto as eleições municipais com
EXECUTIVAS menos de 200 mil eleitores

Tabela 2.1 – Quadro atual do Sistema Eleitoral no Brasil. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/


Sistema_eleitoral_do_Brasil

2.6.2  O processo de escolha dos legisladores e a qualidade do


sistema eleitoral

No Brasil, o Poder Legislativo é composto por duas casas, o Senado e a Câmara


dos Deputados, e ambas compõem o Congresso Nacional. Mas, embora façam
parte do mesmo poder, senadores e deputados são escolhidos por sistemas
eleitorais diferentes e a justificativa para tal estaria baseada na representativi-
dade das casas. No entanto, há quem critique esta distinção e até mesmo pro-
ponha a extinção do Senado.
O Senado representa os estados e têm o mesmo número de representan-
tes - três senadores - para cada unidade federativa do Brasil (quem critica ar-
gumenta que um estado pequeno como o Acre – em termos de população - por
exemplo, não poderia ter o mesmo número de senadores que São Paulo). Já na
Câmara dos Deputados – onde ficam os deputados federais - ,o número de ca-
deiras por Estado é proporcional à sua população, com um mínimo de oito e o
máximo de 70 representantes.

capítulo 2 • 49
2.6.3  Como se elege um senador?

Os senadores são eleitos por meio do chamado voto majoritário: são eleitos os
candidatos mais votados em cada Estado, em um único turno.
Acontece que o mandato de senador é de oito anos e as eleições são realiza-
das a cada 4 anos. Assim, em uma eleição são renovados dois terços das 81 ca-
deiras do Senado (dois senadores por estado). Na eleição seguinte, é renovado
apenas um terço, e aí a opção é de apenas um senador.

CURIOSIDADE
Cada candidato a senador tem direito a indicar 02(dois) suplentes, você sabia? Acontece
então que, quando você vota num candidato ao Senado está, mesmo sem querer ou saber,
votando em outras duas pessoas de quem nunca ouviu falar. O pior é que se o candidato
eleito tem algum impedimento ou assume alguma outra função, por exemplo ministro ou se-
cretário de governo, o suplente assume no lugar dele como senador e vai ficar lá por 8 anos,
sem nunca ter tido um voto sequer em seu nome. Entende agora porque tem gente que acha
que o Senado está muito, digamos, complicado?
Para saber mais, não deixe de acessar a notícia intitulada Suplentes: A (boa) vida dos
senadores sem voto, disponível no site: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/os-suplentes
-a-boa-vida-dos-senadores-sem-voto

2.6.4  E os deputados e vereadores, como são eleitos?

Eles são eleitos por um outro sistema eleitoral chamado de proporcional de lis-
ta aberta. Por este sistema o número de votos para se eleger um deputado ou ve-
reador depende da relação entre o número de eleitores e o número de cadeiras
que cada estado (deputados) ou município (vereadores) tem em sua respectiva
Câmara (estadual ou municipal).
Então, cada partido ou coligação conquista um número de cadeiras na
Câmara proporcional ao número de votos que obteve.

50 • capítulo 2
CURIOSIDADE
Partidos políticos
Dizem que os primeiros partidos políticos surgiram no Brasil em virtude da disputa entre duas
famílias paulistas, que formaram os primeiros grupos políticos rivais. Entretanto, a expressão
"partido político" só foi oficialmente adotada a partir da Segunda República. Até então, eles
eram considerados como "grupos" políticos. Ao todo, foram sete fases partidárias na política
brasileira, de acordo com cada Constituição existente, iniciando pela fase monárquica, em
1824, até o pluripartidarismo, estabelecido pela Emenda Constitucional nº25, em 1985.

O número mínimo de votos necessário para eleger um deputado ou verea-


dor é chamado de quociente eleitoral e é obtido pela divisão do total dos votos
válidos pelo número de cadeiras do estado ou município na Câmara (estadual
ou municipal). Cada eleitor vota nominalmente em um candidato ou num par-
tido, mas serão eleitos os candidatos que alcançam esse quociente. Com um
detalhe particular: há transferência de votos para que se elejam os mais votados
do partido ou coligação (dois ou mais partidos que concorrem unidos).
Então, imagine que numa determinada eleição para deputado estadu-
al, o quociente eleitoral seja de 10 mil votos para que se eleja um deputado.
Participaram do pleito os partidos A, B, C e D, sendo que C e D estavam coliga-
dos. Vejam abaixo o resultado da apuração:

PARTIDO A PARTIDO B PARTIDO C PARTIDO D


Candidato/votos Candidato/votos Candidato/votos Candidato/votos
José 19.000 Maria 9.100 Tonho 3.000 Bilu 12.000
João 1.500 Carlos 380 Quim 5.000 Juca 4.000
Ivo 20 Rui 300
Legenda 250 80 150 200
Total 20.750 9.580 8.150 16.500

Por este quadro tem-se que João e Quim apesar de terem menos votos que
Maria, foram eleitos, e ela não. Isto porque, o partido de João atingiu o quocien-
te eleitoral para eleger 02 deputados e a existência da coligação entre os parti-
dos C e D, fez com que a soma de seus votos atingisse o quociente eleitoral tam-
bém para eleger 02 deputados, Bilu em primeiro e como Quim foi o segundo

capítulo 2 • 51
mais votado, ganhou a eleição. Apesar de Maria receber 9.100 votos, totalizando
9.580 votos, com a inclusão da legenda, o partido de Maria não conseguiu ele-
ger. Enquanto isso, João que teve somente 1.500 votos, foi eleito.
Significa que não necessariamente o candidato será eleito somente com os
votos que recebeu, pois a soma dos votos recebidos por outros candidatos ajuda
em sua eleição. Assim, você votou em X, porque não concorda com as posições
assumidas por Y que é de outro partido. Mas se há entre esses partidos uma
coligação, seu voto poderá ajudar a eleição do candidato Y. É o que dispõe a lei
eleitoral. Isso é justo?

2.6.5  A Reforma política e eleitoral

A reforma política, para Lidson José Tomass (2015), é a medida inicial a ser
tomada, decorrente de um movimento social que aponta nesse sentido, indis-
pensável para que se possa pensar na melhora real e verdadeira na qualidade da
política brasileira, na maneira como o processo eleitoral é conduzido (votar e
ser votado), além de ser um ato social essencial para moralizar a forma de fazer
política. Reformar a política brasileira é o mínimo a ser feito no sentido de se
conseguir, finalmente, alcançar uma proba e eficiente administração pública.
Veja nossas posições e sugestões para a reforma.
Tomass (2015) apresenta abaixo, a relação dos temas que estão sendo deba-
tidos sobre a reforma política:

“ I - Voto Distrital – Chega de se eleger e depois sumir:

a) O que é Voto Distrital


Sistema de escolha do candidato no qual este tem que morar em um distrito
eleitoral, região definida por espaço geográfico pré-estabelecido, não podendo
colher votos em todos os distritos, visando mais proximidade do eleitor com
o eleito, maior fiscalização e menos candidatos no momento da escolha, para
facilitar o conhecimento da vida do candidato pelo eleitor.
Este sistema de eleição por distrito vem sendo apoiado por vários movi-
mentos contemporâneos que o vem debatendo na internet, e outros foros
políticos(...),

52 • capítulo 2
b) Voto Distrital Misto e Voto Distrital Puro
No voto distrital puro, todos os candidatos na eleição proporcional (depu-
tados estaduais e federais) são escolhidos somente entre os candidatos de uma
determinada região (ou distrito) eleitorais, que devem possuir, obrigatoria-
mente, domicílio eleitoral nessa região (perto do eleitor), e são escolhidos de
forma majoritária (o mais votado, por exemplo). Nesse sistema puro, não existe
o voto para deputados de fora da região do eleitor e não se facilita a represen-
tação por categorias homogêneas de interesses, tendendo-se a diminuição de
partidos políticos.
No voto distrital misto, parte das vagas é escolhida pelo sistema distrital e a
outra parte é escolhida pelo sistema atual (proporcional), de forma que o eleitor
tem acesso a uma escolha de representante da sua região e, também, pode votar
em um candidato que represente uma área política de seu interesse, como, por
exemplo, uma projeto nacional, uma proposta de trabalho de amplo alcance, não
só local, como um candidato nacionalista, a favor da segurança, meio ambiente,
etc., ou o que defenda políticas sociais e ideológicas específicas, como o traba-
lhador, o empresariado, a igualdade racial, direitos civis, consumidor, relações
homoafetivas, ambientalistas, socialistas, etc., tendendo-se a manter um pluri-
partidarismo para defender tais grupos de interesses coletivos fragmentados.

c) Efeitos e vantagens do Voto Distrital


Como pelo voto distrital o candidato só pode pedir voto na região onde
mora, ele não some depois das eleições – fica sempre e obrigatoriamente per-
to do eleitor. Assim, o eleito pode ser melhor conhecido, melhor fiscalizado e
mais cobrado, durante e, principalmente, após as eleições. Com o voto distrital
a sobrevivência política depende de alianças fortes, permanentes, e honestas,
a serem traçadas com uma comunidade de eleitores de tamanho menor, cons-
tante, imutável, fixa, o que torna mais difícil o enganar e o ludibriar, o que, por
sua vez, é uma qualidade ótima para o eleitor e péssima para o mau político.
Justamente por tal modernidade e por ser tão eficiente (do ponto de vista do in-
teresse do eleitor) é que nossos políticos (em maioria) ainda fogem do voto dis-
trital, como o diabo foge da cruz! Justamente o que os políticos atuais querem
evitar, é ter que prestar, de verdade, contas do que fazem, para o seu eleitorado,
já que um grupo menor de eleitores (só os eleitores de seu distrito) é mais difícil
de ser enganado e manipulado indevidamente do que o eleitorado de todo o
Estado da federação (que são milhões)”.

capítulo 2 • 53
2.6.6  Sobre a produção legislativa brasileira

Quando se aborda a questão da produção legislativa brasileira, merece espe-


cial atenção considerar os fatores que envolvem uma constatação a respeito do
distanciamento que existe entre o tempo social (em que os fatos ocorrem na
sociedade) e o tempo legislativo (tempo de produção das leis). Percebe-se uma
lentidão na produção de normas jurídicas que sejam devidamente adequadas
e ajustadas às transformações ocorridas na realidade social, como decorrentes
das exigências sociais.
Temas juridicamente relevantes chegam aos tribunais sem que haja qual-
quer norma jurídica que especificamente os normatize. Os exemplos são mui-
tos: desde as uniões homoafetivas, a interrupção da gestação de fetos anence-
fálicos, os conflitos decorrentes da gravidez substituta (barriga de aluguel) e
outros.
Constata-se que a sociedade vivencia uma realidade em seu cotidiano que
não se reflete no ordenamento jurídico, seja pela ausência de legislação ou pela
existência de leis desatualizadas que não conseguem mais dar conta dos confli-
tos decorrentes do convívio social. Isso acaba sendo muito mais preocupação
dos juristas que dos legisladores (deputados e senadores), porque os conflitos
decorrentes acabam sempre chegando nos tribunais e carecem de uma respos-
ta correta, sob pena de comprometimento do acesso à justiça que se espera al-
cançar em um tempo adequado e justo.
Percebe-se que a distância entre o tempo social e o tempo legislativo está
cada vez maior, levando ao descontentamento social que se reflete em dimen-
sões distintas e variadas, mas que sempre ocorrem no que diz respeito à atua-
ção do executivo, do judiciário e do legislativo.
Sobre essa questão da qualidade e quantidade da produção legislativa brasi-
leira, as autoras, Loreny Nunes e Elda Bussinguer (2015), assim se posicionam:

54 • capítulo 2
“A Constituição da República Federativa do Brasil em seus artigos 59 e seguintes, re-
gula a criação das leis e todo o seu funcionamento, criação está submetida ao regime
de votação nas duas casas do Congresso Nacional, tornando-o bastante moroso. É fácil
a percepção, pela simples leitura dos mencionados artigos, da expressiva formalidade
da produção legislativa. Sendo assim, podemos concluir de imediato que o próprio pr-
Não bastasse o lento procedimento formal para a produção legislativa, no que tange à
sua esfera material a situação também não é diferente. As matérias que fazem parte do
objeto de um projeto de lei podem ser discutidas e rediscutidas pelas comissões par-
lamentares. O debate é comum e muito utilizado, tornando o processo, evidentemente,
ainda mais prolongado.
Nota-se, portanto, que um acontecimento do mundo demora a se tornar objeto de uma
iniciativa de lei. O tempo para a absorção dos atos e sua inserção no mundo jurídico é
demasiadamente longo. Depois de um lapso considerável de tempo até que se tenha um
projeto de lei sobre o tema, este projeto ainda passa por um procedimento que é moroso
tanto em sua esfera formal, quanto material, além das composições políticas, que por
muitas vezes atrasam o andamento normal dos projetos, tudo que, por via de consequên-
cia, gera a incapacidade do legislativo em acompanhar as aceleradas mudanças sociais.
Por fim, outro colaborador para a lentidão do processo legislativo é o conteúdo das leis
aprovadas. Existe uma vasta produção de leis desnecessárias e até inúteis. Leis que
elegem um lugar para ser capital nacional de algo regional, leis que criam datas come-
morativas, leis que distorcem o posicionamento jurisprudencial ou até mesmo o ignoram,
dentre outras situações que demonstram a falta de qualidade da produção legislativa.
O conteúdo da legislação é voltado, por vezes, para beneficiar interesses dos próprios
parlamentares, que têm, em sua grande maioria, como principal objetivo a reeleição.
Para tanto, garantem benefícios locais, direcionando-os ao público eleitoral de seu re-
duto. Diante deste contexto, pode-se dizer que o problema não é a falta de produtivida-
de, mas a falta de qualidade da produção legislativa”.

Síntese

Nesse capítulo você conheceu:


•  Como é relevante para o fenômeno jurídico a eficácia das normas e seus
efeitos sociais sendo, assim, fundamental entender as noções de validade e
eficácia

capítulo 2 • 55
•  As repercussões sociais de uma norma jurídica formalmente considerada
válida, que pode produzir efeitos negativos das normas que criam um círculo
vicioso impunidade-ilicitude.
•  Um breve histórico da importância das instituições de Direito na socie-
dade brasileira, demarcando a importância da atual Constituição Federal na
proteção dessas instituições.
•  O quadro do sistema eleitoral existente no país, responsável pelo proces-
so de escolha dos legisladores (deputados, senadores e vereadores), a qualida-
de e os problemas relativos à produção legislativa brasileira e as perspectivas de
uma reforma política e eleitoral.

LEITURA
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010 p.
112-116.
TOMASS, Lidson José. A reforma política – um Brasil que queremos. Disponível em:http://ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12559&revista_caderno=28.
NUNES, Loreny Sofiatti e BUSSINGUER, Elda Coelho Azevedo. Tempo social x tempo legislativo:
uma análise da produção de Leis no Brasil. Disponível em: http://www.ajuris.org.br/attachments/
article/1928/TEMPO%20SOCIAL%20X%20TEMPO%20LEGISLATIVO.pdf

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

56 • capítulo 2
3
Os Instrumentos
Humanos da
Realização Social
do Direito
Nos capítulos anteriores foram apresentados o conceito sociológico do Di-
reito e seu objeto de estudo, que é o direito como fato social, como também
estudou-se a construção da norma jurídica em seu aspecto social. Foi pos-
sível conhecer e saber como são escolhidos os responsáveis pela elaboração
normativa, assim como a sociedade brasileira tem se colocado em relação às
instituições do Direito ao longo dos tempos.
Agora, é importante considerar que não basta que haja normas boas e váli-
das. Para que essas normas consigam realizar sua função social, se faz neces-
sário pessoas especializadas, em número satisfatório e uma estrutura material
apropriada para a aplicação e a garantia da lei.
Cavalieri (2005, p.128) define os instrumentos humanos da realização so-
cial do direito como “ (...)aqueles órgãos ou instituições através dos quais a or-
dem jurídica de uma sociedade é declarada, assegurada, mantida e modificada.
(...) Do bom funcionamento dessas instituições e da eficiência do pessoal que
nelas atua dependerá a eficácia da ordem jurídica, inclusive os efeitos sociais
positivos que toda norma tem por finalidade produzir”

OBJETIVOS
•  Compreender o papel dos magistrados, sua formação profissional e as razões sociais para as
suas garantias constitucionais;
•  Identificar a função social e a atuação dos membros do MP, da Defensoria Pública e da
Advocacia;
•  Conhecer os novos perfis destes profissionais;
•  Conhecer o funcionamento do Conselho Nacional de Justiça dentro da lógica da sociologia
das profissões;
•  Compreender o processo de judicialização da política.

58 • capítulo 3
3.1  A Função Social Do Poder Judiciário.
Ultrapassada a fase da justiça privada, a sociedade organizada política e juridi-
camente resolveu assumir essa função, que após a separação dos poderes foi
conferida ao Poder Judiciário, constituindo a chamada função jurisdicional.
A principal função é julgar, dizer o direito, tornar efetiva a norma objetiva,
solucionando conflitos e promovendo a paz social, valendo-se para tanto de
uma estrutura complexa e integrada regulada pelas normas de Organização
Judiciária.
A Função Social do Poder Judiciário, considerado como o terceiro poder do
Estado Democrático de Direito, consiste na garantia, manutenção e principal-
mente na efetivação dos direitos conferidos pela cidadania.

O que é função jurisdicional?


É o poder de formular e tornar efetiva a norma jurídica concreta que deve regular de-
terminada situação jurídica.
É ao mesmo tempo poder, função e atividade, sendo um poder, na medida em que a
jurisdição é a capacidade de decidir imperativamente e de impor suas decisões. Tam-
bém é uma função, porque promove a pacificação dos conflitos de interesses entre os
jurisdicionados, mediante o direito e através do processo. Mas ao mesmo tempo é uma
atividade – a jurisdição é o complexo de atos jurídicos praticados pelo juiz no processo,
exercendo o poder que lhe é conferido por lei e cumprindo suas funções.
Desse modo, jurisdição é o poder de formular e tornar efetiva a norma jurídica concreta
que deve regular determinada situação jurídica.

Três são os fatores que devem ser levados em consideração por quem pre-
tenda valer-se do trabalho dos instrumentos estatais da nossa justiça e que
estão diretamente relacionados com a função social do Judiciário: a incerteza
do direito, a lentidão e o alto custo do funcionamento da máquina judiciária.
Isto leva a algumas consequências: a falta de realização ou a realização tardia,
muitas vezes ineficaz, dos ideais da justiça; um sentimento de desconfiança da
opinião pública; fuga da justiça estatal e tendência a buscar novas formas subs-
titutivas da própria justiça, consideradas mais vantajosas do ponto de vista da
celeridade da solução e de menor formalismo processual.

capítulo 3 • 59
Não há como negar que a sociedade considera a Justiça brasileira lenta (os
processos levam anos quando não décadas para chegar ao fim), ultrapassada
(existe todo um formalismo, verdadeiro ritual místico que afasta e amedronta
o cidadão comum) e de difícil acesso (as custas são caríssimas e as dificuldades
para ter acesso à gratuidade de justiça desencorajam os postulantes de menor
poder aquisitivo), havendo um distanciamento que se opera entre a magistra-
tura e o povo a quem presta seus serviços.
Em parte, esses problemas estão particularmente relacionados a uma pos-
tura mecanicista no exercício da jurisdição, por parte dos juízes, que se limitam
à aplicação pura e simplesmente da lei ao caso concreto, descomprometida
com as possíveis repercussões de ordem prática procedentes da decisão judi-
cial que foi proferida.
Pesquisa realizada em 2003, pelo Instituto Toledo & Associados, a pedido da
OAB, das 1,7 mil pessoas entrevistadas em 16 capitais do Brasil, 41% revelaram
não acreditam na Justiça. Outros 57% não souberam distinguir o trabalho do
promotor do juiz e 50% dos entrevistados não sabia a diferença entre o trabalho
do advogado e do promotor público. De lá para cá pouca coisa mudou.
Apesar da criação dos Juizados Especiais (estaduais e federais), buscando
desafogar os tribunais comuns e atender a um número maior de cidadãos, nas
causas de menor valor ou de pequeno potencial ofensivo, o que se vê é que nem
a Justiça comum está dando conta dos inúmeros processos em curso, nem os
Juizados, porque atolados com centenas de milhares de pequenas causas. Sem
contar com o fato de que é notório que muitos brasileiros ainda não recebem
essa proteção que é o próprio acesso à Justiça. Importante apontar que na pes-
quisa mencionada, o Poder Judiciário ficou em quinto lugar na lista das insti-
tuições mais confiáveis, quando deveria ser uma das primeiras.
A extensão do problema e os contornos do modelo estrutural e funcional
do Judiciário ambicionado pela sociedade brasileira foram reconhecidos pelo
então ministro Nelson Jobim, em seu discurso de posse na presidência do
Supremo Tribunal Federal, em que enfatizou:

A questão judiciária passou a ser tema urgente da nação. O tema foi arrancado do
restrito círculo dos magistrados, promotores e advogados.
Não mais se trata de discutir e resolver o conflito entre esses atores. Não mais se trata do es-
paço de cada um nesse poder da república. O tema chegou à rua. A cidadania quer resultados.

60 • capítulo 3
Quer um sistema judiciário sem donos e feitores. Quer um sistema que sirva à nação
e não a seus membros. A nação quer e precisa de um sistema judiciário que responda
a três exigências:
- acessibilidade a todos;
- previsibilidade de suas decisões;
- e decisões em tempo social e economicamente tolerável.
Essa é a necessidade. Temos que atender a essas exigências. O poder judiciário não
é fim em si mesmo. Não é espaço para biografias individuais. Não é uma academia
para a afirmação de teses abstratas. É, isto sim, um instrumento da nação. Tem papel
a cumprir no desenvolvimento do país. Tem que ser parceiro dos demais poderes. Tem
que prestar contas à nação. É tempo de transparência e de cobranças.

Assim, é possível falar-se em uma crise que permeia a Justiça Brasileira e


que não pode ser considerada exclusivamente a partir da autuação processual
do juiz, das partes ou da falência do ordenamento jurídico em sua função social
de prevenir ou compor os conflitos. Questões ligadas à gestão administrativa
do Poder Judiciário, do cartório ou dos casos que por lá tramitam passou faz
parte do dia-a-dia das discussões e urge uma solução para o problema da pouca
eficiência do Judiciário Brasileiro.
Os problemas que comprometem a função social desse Poder, começam a
partir de como está estruturado e como vem funcionando o Poder Judiciário,
por isso é importante conhecer esta estrutura e seu funcionamento.

3.1.1  Estrutura e infraestrutura do Judiciário

O Judiciário está dividido em dois grandes grupos: federal e estadual.


O Poder Judiciário Federal é o competente para apreciar todas as causas em
que houver interesse da União ou de seus desdobramentos administrativos (au-
tarquias e empresas públicas) como autora, ré ou simples interessada (arts. 106
e 109 CF/88). Dele fazem parte os tribunais federais, eleitorais, trabalhistas e
militares.
Quanto ao Poder Judiciário Estadual, a ele compete apreciar todas as de-
mandas envolvendo conflito de interesse entre particulares, bem como as cau-
sas em que há interesse dos próprios Estados, Municípios e seus desmembra-
mentos administrativos – art. 126, CF/88.

capítulo 3 • 61
Além disso, há as instâncias superiores, instaladas na capital do país: o
Superior Tribunal de Justiça, cuja competência é a de zelar pela supremacia das
leis federais e promover a uniformização de sua interpretação – art. 105, III, a,
b, c, CF/88. Qualquer decisão dos Tribunais Estaduais ou Federais em que haja
violação de lei federal poderá ser reexaminada pelo STJ, por meio de recurso
especial; e o Supremo Tribunal Federal – órgão máximo do Judiciário, abai-
xo do qual se encontram todos os demais e que tem por competência atuar em
hipóteses especiais, previstas pela Constituição (art. 102) e através do recurso
devido (recurso ordinário – art. 102, II ou extraordinário – art. 102, III).
O STF pode reexaminar decisões de qualquer dos órgãos do Judiciário (es-
tadual, federal ou especial). Ele dá a palavra final e sua decisão é imutável (art.
102, §2º, CF/88). O STF como guardião da Constituição, declara a inconstitucio-
nalidade das leis sempre que violem os princípios constitucionais. Tem ainda
por função atuar como moderador dos demais poderes, sendo o fiel da balança,
função eminentemente política.
De fato, o que a sociedade busca é a figura do “juiz-resolutor” de conflitos,
ou seja, mais ativo e participativo no cenário jurídico processual, que se preo-
cupe com a importância do diálogo com e entre as partes e com a tomada de
decisões orientadas pelo conjunto dos princípios constitucionais norteadores
do ordenamento jurídico e dotadas de real efetividade. Por outro lado, é fato
que a efetividade da atividade desempenhada pelos magistrados não depende
apenas de sua postura no curso processual. O problema possui nuances que
extrapolam as paredes do poder Judiciário e se colocam num plano muito mais
complexo, pois está condicionado à análise de um sem-número de variáveis
que estão para além à dinâmica exclusivamente processual.

Medidas socioeducativas são medidas aplicáveis a adolescentes autores de atos


infracionais e estão previstas no art. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). Apesar de configurarem resposta à prática de um delito, apresentam um caráter
predominantemente educativo e não punitivo.

Um bom exemplo é o caso das medidas sócio-educativas de meio aberto im-


postas aos adolescentes infratores que dependem, para a sua satisfatória exe-
cução, da intervenção obrigatória da administração municipal e de convênios

62 • capítulo 3
com um conjunto de entidades parceiras que tenham aderido à proposta peda-
gógica do Estatuto da Criança e do Adolescente. Outro exemplo a ser citado é o
de algumas das penas restritivas de direito que substituem as penas privativas
de liberdade, que para que tenham êxito – com reflexo na diminuição dos ín-
dices de criminalidade e reincidência – requerem a constituição de parcerias
com instituições variadas que viabilizem, por exemplo, a prestação de serviços
à comunidade imposta pelo juízo.

As Penas restritivas de direitos estão previstas no art. 43 do Código Penal


Art. 43. As penas restritivas de direitos são:
I – prestação pecuniária;
II – perda de bens e valores;
III – (VETADO)
IV – prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas;
V – interdição temporária de direitos;
VI – limitação de fim de semana.

3.1.2  A criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ

Um grande avanço para a justiça foi a criação do Conselho Nacional de Justiça,


em 31 de dezembro de 2004, apesar de sua instalação ter sido realizada somen-
te em 14 de junho de 2008.
Com previsão constitucional (art. 103-B), o CNJ tem se revelado um marco
na busca da eficiência do Poder Judiciário Nacional.
A Emenda Constitucional n. 45/2004 inseriu na Constituição Federal o art.
103- B e em seu § 4º, está prevista a competência do CNJ, que abarca:

a) zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do


Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de
sua competência, ou recomendar providências;

capítulo 3 • 63
b) cuidar pela observância do art. 37, da CF ( que trata da administração
pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, im-
pessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e apreciar, de ofício ou me-
diante provocação, a legalidade dos atos administrativos cometidos por mem-
bros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar
prazo para que sejam adotadas as medidas necessárias ao cumprimento da lei,
sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
c) receber e conhecer das reclamações contra qualquer dos membros ou
órgãos do Poder Judiciário, até mesmo contra seus serviços auxiliares, serven-
tias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro, que atuem por de-
legação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disci-
plinar e correicional dos tribunais, podendo assumir processos disciplinares
em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com
subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras san-
ções administrativas, assegurada ampla defesa;
d) representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a adminis-
tração pública ou de abuso de autoridade;
e) rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de
juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;
f) elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sen-
tenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder
Judiciário;
g) elaborar relatório anual, indicando as providências que julgar serem
necessárias, a propósito da situação do Poder Judiciário no País e as atividades
do Conselho.

O CNJ é composto por 15 Conselheiros, que deverão ser aprovados pelo


Senado e nomeados pelo Presidente da República.
Os trabalhos já desenvolvidos pelo CNJ abrangem temas como nepotismo,
teto salarial, corrupção e lentidão. Além desses temas, foram enfatizados o de-
senvolvimento da informatização, a virtualização dos autos, o fortalecimento
da criação do sistema de estatísticas judiciais e a mobilização em favor da con-
ciliação de conflitos.

64 • capítulo 3
3.2  As funções essenciais a realização da
justiça.

3.2.1  A Magistratura

A magistratura é elemento essencial no Estado Democrático de Direito. Sendo


certo que não pode haver democracia sem uma magistratura consciente de seu
papel social. Não pode haver democracia sem esse poder que, por atribuição
constitucional, desempenha a relevante função de garantir o respeito aos direi-
tos fundamentais do cidadão. Além desse aspecto eminentemente político, aos
representantes direitos do judiciário também está delegado o exercício de um
serviço público que se revela indispensável em qualquer Estado que possa se
dizer “democrático de direito”: a prestação jurisdicional. Ao longo da história
da civilização ocidental, os primeiros “juízes” foram concebidos como tercei-
ros encarregados da resolução de conflitos provenientes da convivência social
– ocupavam a posição de mediadores, tentando aproximar os interesses das
partes, até mesmo propondo sugestões – que poderiam, ou não, serem aceitas
pelas partes conflitantes – para a solução do conflito.
Com o passar do tempo, apareceram os juízes-árbitros, que de modo dife-
rente dos anteriores, buscavam diretamente na sociedade os critérios para a
solução do caso que lhe era submetido.
Atualmente tem-se os juízes-profissionais, que são integrantes do aparelho
estatal, compondo o Poder Judiciário estatal vinculados à resolução de con-
trovérsias não porque foram previamente escolhidos pelas partes em litígio –
como em alguns dos modelos anteriores –, mas por conta de normas preexis-
tentes, de natureza estatal, que lhes atribuem essa missão.

3.2.2  Sistemas seletivos adotados para o recrutamento de juízes:

No Brasil, até a Constituição de 1934, não havia qualquer menção à realização


de concurso público para o ingresso nos cargos da Magistratura. Os juízes eram
escolhidos pelo chefe do Executivo, embora caiba registrar, já houvesse realiza-
ção incipiente de concursos em alguns estados.
Assim, percebe-se que o concurso público para juízes nas categorias iniciais
no ordenamento jurídico-constitucional é relativamente recente.

capítulo 3 • 65
Mas a seleção por meio do concurso público é apenas uma das diversas for-
mas existentes para a escolha de juízes, inclusive no Brasil, a saber:

a) Sistema eletivo – o magistrado é escolhido por votação, ou seja através


do voto da população, como ocorre com os representantes do legislativo e do
executivo. Era adotado em Roma e no Brasil Colônia. Ainda é utilizado nos EUA
e na Suíça.
A magistratura norte-americana é exercida por mandatos, cuja duração va-
ria de Estado para Estado. Especificamente na Geórgia, o mandato de juiz é de
seis anos. Neste Estado os candidatos às vagas de magistrado devem preencher
os seguintes requisitos: ter sete anos de prática anteriores à sua eleição e ter, no
mínimo, vinte e cinco anos de idade.

é mais democrático ( o povo elege); mais rápido ( no mesmo


dia todos os juízes são eleitos) e mais econômico ( as des-
pesas correm por conta dos candidatos) e há um controle
VANTAGENS sobre o desempenho do juiz por parte da população, já que
ela o elegeu e poderá não reelegê-lo, dependendo de sua
atuação .

Os critérios políticos podem interferir na escolha e nem


DESVANTAGENS sempre os melhores são eleitos.

b) Sistema da nomeação – o magistrado é indicado pelo Chefe do


Executivo, mediante proposta do Poder Legislativo ou do Judiciário. É o siste-
ma da Inglaterra. O magistrado é escolhido por livre nomeação do Executivo,
dependendo da aprovação do Judiciário, ou a escolha é do próprio Judiciário,
ou então, como na França e na Itália, a escolha se dá por um órgão especial de
composição mista, incluindo advogados. Também é utilizado no Brasil para o
preenchimento de 1/5 das vagas nos Tribunais de Justiça dos estados – escolha
do governador – e nos Tribunais Superiores (STJ e STF) – escolha do presidente
da república.

66 • capítulo 3
VANTAGENS rapidez e economia

é antidemocrático, pois não dá oportunidades iguais a to-


DESVANTAGENS dos, somente a quem tem conhecimento; quem nomeia o
juiz passa a ter influência política sobre ele.

c) Sistema do Concurso Público – o ingresso na magistratura se dá por


concurso público de provas e títulos, com os melhores classificados preen-
chendo as vagas existentes. É obrigatória a presença de um membro da OAB na
Banca Examinadora do Concurso.

mais democrático, pois oferece oportunidades iguais a


VANTAGENS todos; pressupõe que só os melhores passem; evita o
protecionismo; garante a independência do magistrado.

mais oneroso (exige uma comissão de alto nível para


DESVANTAGENS realizar o concurso) e é mais demorado.

3.2.3  Sistema adotado no Brasil:

Sistema misto – concurso público de provas e títulos para os magistrados de 1ª


instância. Para os tribunais superiores é nomeação pelo Presidente da Repúbli-
ca após aprovação pelo Senado Federal. Nos Tribunais de Justiça a nomeação
é feita pelo Governador em 1/5 dos membros para ingresso nesses tribunais,
através de uma lista tríplice feita pelo próprio Tribunal, sendo que metade das
vagas é da OAB e outra metade para os membros do Ministério Público estadual.

3.2.4  As Garantias Constitucionais dos Magistrados:

Falar em direitos e garantias constitucionais do Judiciário, num primeiro mo-


mento pode parecer como uma forma de privilegiar este Poder. Razão pela qual,
necessário se faz relembrar que os demais Poderes Legislativo e Executivo tam-

capítulo 3 • 67
bém possuem garantias especiais previstas no texto constitucional. O Poder
Legislativo possui a previsão constitucional da garantia da inviolabilidade dos
deputados e senadores durante o mandato, por suas palavras, opiniões e votos.
Além disso, não é possível processar criminalmente nenhum parlamentar sem
uma prévia licença da Casa (Câmara ou Senado Federal) a que ele pertence.
Na medida em que os três poderes são independentes e harmônicos entre si,
nos termos do artigo 2º da Constituição Federal, esses poderes são distintos em
relação ao desempenho de suas funções, embora, excepcionalmente, possam de-
sempenhar funções atípicas. No caso do Judiciário, cabe a ele não somente a apli-
cação da norma jurídica, mas também, excepcionalmente, legislar e administrar.
Por outro lado, para que os juízes possam desempenhar seu papel consti-
tucional da prestação jurisdicional, sem a preocupação com qualquer tipo de
pressão interna ou externa, necessário se faz a existência de algumas garantias
que estão dispostas no artigo 95, da Constituição Federal. Nele, vêm expressas
as seguintes garantias: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de ven-
cimentos. Na verdade, as garantias da magistratura, nada mais são do que um
meio legal de assegurar o livre desempenho do juiz.
De maneira sintética, aqui estão elas:

I. Garantias institucionais – são a repercussão das funções atípicas.


Servem para proteger a magistratura contra a pressão dos outros órgãos.
São elas: autonomia orgânico-administrativa e autonomia financeira.
II. Garantias funcionais – dizem respeito aos próprios membros da ma-
gistratura, dando segurança às decisões. São elas:

a) Vitaliciedade – o juiz, em princípio, não pode perder o cargo, a não ser


por decisão judicial. É adquirida após 2 anos de exercício – art. 93, VIII; 95, I e par.
único.
Objetivo – dar ao juiz segurança e tranquilidade para que possa julgar sem
sofrer qualquer pressão quanto ao seu cargo.

b) Inamovibilidade – o magistrado não pode ser transferido do lugar onde


exerce as suas funções; nem é obrigado a aceitar promoção que implique em
transferência, a não ser pelo interesse público e pelo voto de 2/3 dos membros
de seu tribunal.
Objetivo – garantir o exercício da função de julgar sem a possível pressão de
uma transferência compulsória.

68 • capítulo 3
c) Irredutibilidade de Vencimentos – com a CF/88 o vencimento dos ma-
gistrados passou a ser irredutível.
Objetivo – segurança financeira.

As garantias conferidas aos juízes encontram-se estabelecidas no artigo 95 da Cons-


tituição Federal:
Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício,
dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz
estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III - irredutibilidade de vencimentos, observado, quanto à remuneração, o que dispõem
os arts. 37, XI, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.
III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150,
II, 153, III, e 153, § 2º, I. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

3.2.5  O Ministério Público

•  Origem – no direito lusitano. Ordenações Filipinas (1603) foi prevista a


figura do procurador de justiça, nomeado pelo rei, cuja função era fiscalizar o
cumprimento da lei e formular acusação criminal.
•  Nas Constituições Brasileiras – até 1988 não tinha uma posição exata na
estrutura constitucional que determinasse sua posição de um quarto poder.
•  Com a CF/88 – art.127. O MP foi elevado a capítulo especial: Das Funções
Essenciais à Justiça. Trata-se de uma instituição permanente, essencial à fun-
ção jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do re-
gime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

O MP possui independência e autonomia funcional e administrativa. Sendo seus


princípios institucionais: unidade, indivisibilidade e independência funcional.
•  Funções do MP: de acordo com o art. 129, CF/88.
a) defensor da sociedade fiscal da lei (custus legis);
b) proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e dos inte-
resses difusos e coletivos, promovendo o inquérito civil e a ação civil pública;

capítulo 3 • 69
c) propor ação de inconstitucionalidade;
d) controle externo da atividade policial;
e) defesa dos direitos humanos.

•  Sistema de escolha: Concurso público de provas e títulos, sendo que o


procurador-geral é escolhido pelo Chefe do Executivo.

3.2.6  A Defensoria Pública

Trata-se de uma instituição que, ao lado da Advocacia, da Advocacia Pública e


do Ministério Público, é essencial à jurisdição.

•  Atribuições:
a) orientação jurídica e defesa, em todos os graus, aos necessitados, ou
seja, aqueles que comprovarem insuficiência de recursos;
b) concede isenção ao preparo de pareceres e consultoria.

A Gratuidade: é estendida também à requisição dos serviços cartoriários ex-


trajudiciais, segundo entendimento pacífico jurisprudencial e doutrinário. Sua
finalidade é a de garantir o acesso à justiça aos necessitados.
A jurisprudência tem aos poucos, estendido o benefício da assistência judi-
ciária a pessoas jurídicas, que também gozam da prezunção de pobreza, previs-
ta no art. 4º, § 1º da lei 1060/50, caso não tenham condições de arcar as custas
do processo e honorários sem prejuízo próprio.

•  Sistema de escolha – concurso público de provas e títulos


OBS.: apesar de sua previsão constitucional, poucos são os Estados que pos-
suem um corpo de Defensores Públicos, com destaque ao Rio de Janeiro que
possui essa instituição desde 1982.

3.2.7  A Advocacia

A advocacia é uma das atividades consideradas essenciais para a administração


da justiça. Daí a importância do advogado na sociedade, na medida em que o
advogado possui a capacidade de postular os interesses das pessoas em juízo
ou fora dele e também de prestar assessoria e consultoria.

70 • capítulo 3
Surge nesse meio o papel do advogado como negociador, aquele capaz de
solucionar conflitos de uma forma mais célere, antes mesmo de se formar
um litígio, que será objeto de análise quando se estudar o tópico relativo à
Sociologia das profissões.
A profissão de advogado é considerada uma das mais antigas profissões de
que se tem notícia. Muito embora somente tenha aparecido como tal com o
Direito Canônico (eclesiástico), segundo Maciel e Aguiar (2007, p. 62) sempre
existiram, desde os tempos da Grécia Clássica, aquelas pessoas encarregadas
de redigir discursos para as partes que atuavam nos processos, os chamados
logógrafos.
No Brasil, a lei 8906/94, que instituiu o Estatuto da Advocacia e da Ordem
dos Advogados do Brasil, reforça a delineação do perfil profissional, traçado no
art. 133 da CF/88, com grande preocupação com os aspectos sociais.

3.3  Efetividade do direito, democratização


dos tribunais e acesso à justiça.

Ainda que se tenha em conta que função social do Direito é o controle social,
prevenindo e compondo conflitos, há de se admitir que a pura e simples criação
do Direito por si só não garante sua obediência. Razão pela qual necessário ao
estudioso da Sociologia Jurídica e Judiciária procurar os atributos que compor-
tam a sua realização efetiva.
É de se constatar que o ordenamento jurídico estatal não é conhecido em
sua totalidade pela população – quantos de nós sequer conhece a Constituição,
que é a lei Maior-, ainda assim, ele é respeitado pela maioria os indivíduos, de
maneira voluntária.
Esse é um fenômeno sociológico que por sua peculiaridade tem sido objeto
de pesquisas tanto por sociólogos quanto por filósofos do Direito. As questões
levantadas giram em torno do que levaria a essa constatação, ou seja, o que leva
o indivíduo a se submeter ao ordenamento jurídico e com isso dar efetividade
do Direito?
As respostas são as mais variadas e você irá conhecer algumas delas.

capítulo 3 • 71
CONTRATUALISMO
Corrente do pensamento que considera a sociedade civil e o Estado originados por um
acordo ou contrato estabelecido entre cidadãos autônomos, valorizando desta maneira
a liberdade individual, contra os excessos da ingerência estatal. Conquistou relevância
tanto teórica quanto política no pensamento liberal moderno.

Para os contratualistas, a efetividade se daria a partir de um pacto ou contra-


to social (hipotético ou não) que seria o impulso criador do Direito, pelo qual os
seres humanos concordaram em abrir mão de parcela de sua autonomia (liber-
dade original do estado de natureza) para viver harmoniosamente em socieda-
de, incumbindo essa parte de sua liberdade e seu controle a um ente superior e
preparado para exercer esse controle social: o Estado.
Essa afirmação do filósofo francês Rosseau (1989, p.p. 20 e 21), demonstra a
posição do contratualismo: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo
o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos, coletivamen-
te, cada membro como parte indivisível do todo... Essa pessoa pública, assim
formada pela união de todas as demais, tomava outrora o nome de Cidade, e
hoje o de República ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros
de Estado...”.

Jean Carbonnier (1908–2003)


Sociólogo francês, considerava que como a nossa sociedade é multicultural, a lei deve
adaptar-se às suas transformações - por exemplo, a respeito da família. No livro So-
ciologie juridique (1968), explicou suas teorias sobre as relações entre direito e socie-
dade. Este trabalho representa o seu mais famoso a nível internacional, especialmente
graças aos conceitos desenvolvidos por ele, bem como seu relato sobre a relação entre
a jurisprudência e as ciências sociais.

Há também pensadores, como Durkheim entre outros, que defendem que


somente a coação é capaz de fazer com que as normas emanadas do Estado se-
jam devidamente respeitadas pelo povo. Assim, os indivíduos se submeteriam

72 • capítulo 3
às normas por receio do aparelho repressor do Estado, trata-se da corrente clás-
sica . Um exemplo disso se encontra nas palavras de Jean Carbonnier (1979,
p. 192) para quem a efetividade do Direito se encontra na noção pela qual:
“(...) a norma, sendo feita para se aplicar, requer uma coação que assegure a sua
aplicação. A sociedade que produz as normas produz também uma coação que
se exerce sobre o que se desvia de sua observância...a coação do direito, dir-se-á
então, é a que tem a sua origem num órgão diferenciado, especializado. O órgão
que tem o nome de Estado nas sociedades modernas é constituído pelos gover-
nantes, pelos chefes, pelos detentores do poder.”.
Os argumentos levantados por esses pensadores que se prendem à coação
para fundamentar a efetividade do Direito seriam razoáveis no sentido de justi-
ficar a efetividade das normas de Direito Penal (normas de direito público), que
são normas coativas por excelência e núcleo da repressão estatal.
Além do que, tem-se que considerar que, mesmo que o aparato jurídico es-
tatal, responsável pela aplicação do Direito, utilize-se todo o tempo da coação,
não conseguirá garantir o cumprimento voluntário do Direito. Isto porque os
meios coativos do Estado conseguem, máximo, impor a norma, mas não que
ela seja acatada por todos e com isso tenha o Direito efetividade.
Esses argumentos também não conseguem explicar, por exemplo, o aca-
tamento àquelas normas de direito privado, as chamadas normas promocio-
nais, que ao invés de punir o indivíduo o premiam quando executam certas
atividades.
A função promocional do direito é, segundo Bobbio (2007, p.12) a “ação
que o direito desenvolve pelo instrumento das “sanções positivas”, isto é, por
mecanismos de forma genérica conhecidos como “incentivos”, que objetivam
não a realização de atos socialmente condenáveis, como é o caso das sanções
negativas (penas, multas, indenizações, reparações, restituições, ressarcimen-
tos, etc.), mas, sim, a “promoção” o incentivo da realização de atos socialmente
desejáveis.

capítulo 3 • 73
Niklas Luhmann (1927 -1998)
Sociólogo alemão considerado um dos mais importantes representantes da sociologia
alemã atual.
Adepto de uma teoria particularmente própria do pensamento sistémico.
Defende que o direito, em seu viés autopoiético, se (re)cria com base nos seus próprios
elementos. Sua autorreferência permite que o direito mude a sociedade e se altere ao
mesmo tempo movendo-se com base em seu código binário (direito/não-direito). Tal
característica permite a construção de um sistema jurídico dinâmico mais adequado à
hipercomplexidade da sociedade atual.

A Constituição brasileira de 1988, além de estabelecer normas de proteção


(artigo 5º, II – princípio da legalidade) e de repressão (artigo 5º, XLI – atentado
a direito ou liberdade fundamental), também contém normas de promoção.
Realmente, são objetivos da República diversas normas promocionais, como
a construção de uma sociedade livre, erradicar pobreza e promover o bem co-
mum (artigo 3º).
Um outro sociólogo que busca analisar a questão da efetividade do Direito é
o alemão Niklas Luhmann, para quem o Direito se torna legítimo e efetivo, por
meio da utilização do procedimento, que formalmente iguala a todos os sujei-
tos, fornecendo a eles as mesmas possibilidades de se submeter às formas de
resolução de conflitos normatizadas pelo Estado.
No entanto, como se pode observar, existe um problema na teoria de
Luhmann: na medida em que ele iguala formalmente todas as pessoas na so-
ciedade, ele esquece dos aspectos materiais envolvidos nos conflitos de interes-
ses, a saber, as desigualdades materiais e sociais que existem em todas as socie-
dades e, em particular, naquelas como a nossa em que milhões se encontram à
margem do acesso ao mínimo. Assim a questão de fundo não é tao somente ter
acesso ao Judiciário, mas ter acesso à justiça.

3.3.1  Democratização dos tribunais e acesso à justiça

Em palestra intitulada “Reforma do poder judiciário – visão abrangente e ana-


lítica” ministrada, em agosto de 2004, o professor J. Bernardo Cabral discorrer
numa abordagem, naquele momento, ainda preliminar, sobre a necessidade
da democratização rumo a um maior acesso à justiça e aponta o que, a seu

74 • capítulo 3
sentir, seriam as origens dos problemas do Poder Judiciário num espectro que
vai do despreparo técnico de juízes às deficiências na elaboração das norma
jurídicas, passando pelo desaparelhamento do Judiciário, pela prática de um
sistema abusivo de recurso e pelo excessivo apego ao formalismo, num devota-
mento à vertente romanista do Direito que já deveria estar vencido.
A amplitude de causas possíveis à situação problemática do Judiciário bra-
sileiro mereceu, de diversos analistas, entre sociólogos e juristas uma aborda-
gem sistemática.
Uma das sistematizações foi elaborada por Diogo de Figueiredo Moreira
Neto (1999, p. 30). O autor separa o problema do Judiciário em três grupos: as
causas estruturais, as causas funcionais e as causas individuais, como a seguir:
Causas Estruturais:
a) Sistema judiciário complexo e obsoleto: há muitas justiças especializa-
das, muitas instâncias (quatro) e inúmeros tribunais;
b) Inexistência de uma Corte Constitucional: é constitucional, principal-
mente num país em que tudo se constitucionalizou;
c) Morosidade e deficiência espacial: há a necessidade de proximidade e
de celeridade de atuação dos órgãos de primeira instância e do aperfeiçoamen-
to dos sistemas de justiça alternativa e prejudicialidade;
d) Deficiência de controles: falta de cumprimento de prazos, de assidui-
dade e de residência dos titulares nas respectivas comarcas;
e) Controle do Judiciário: necessidade de um sistema nacional de contro-
le que superasse o corporativismo sem expor o Judiciário à politização;
f) Número insuficiente de juízes: a proporção em 2004 era de um juiz por
25.000 habitantes. Essa proporção em países desenvolvidos é de um juiz por
5.000 habitantes. Necessidade de incentivo para atrair as legítimas vocações
para preencher o impressionante número de cargos vacantes na 1ª Instância;

Causas Funcionais:
a) Impropriedade das leis: muitas leis, mas inadequadas aos fatos que
pretendem reger e má confecção das leis;
b) Complicação procedimental: predominância do hermetismo, proces-
sualística sobre valorizada, excesso de meandros técnicos e sistema irracional
de recursos;
c) Deficiência no sistema de provocação: descaso do Poder Público na
motivação, seleção e aperfeiçoamento dos membros das funções essenciais à
Justiça, notadamente nas defensorias públicas;

capítulo 3 • 75
Causas Individuais:
a) Deterioração da formação acadêmica do bacharel: proliferação de fa-
culdades sem bom nível científico. Currículos deficientes nas matérias de
Direito Público. Reprovação em massa nos exames de ordem;
b) Carência na formação específica dos magistrados: seleção para a carrei-
ra através de concursos para ingresso nas Escolas da Magistratura. Promoções
condicionadas a cursos de reciclagem ou titulação em pós-graduação;

Carlos Aureliano Motta de Souza (2000, p.p.22-24), discorrendo sobre o


assunto também apresenta aquilo que classifica como as causas da crise do
Judiciário, sendo:

A ampliação do campo temático da Constituição, com a


CAUSAS consequente ampliação do leque de proteção ao cidadão, o
OPERACIONAIS encorajou a buscar o Judiciário em defesa de seus direitos,
aumentando o número de processos em trâmite.

A notória deficiência no número de juízes no Brasil, em rela-


ção à sua população, aponta para a necessidade de dez vezes
mais juízes para que o país estivesse dentro da média dos
CAUSAS países de primeiro mundo. Além disso, a eliminação da ida-
ESTRUTURAIS de mínima para recrutamento de magistrados possibilitou a
nomeação de juiz de vinte e dois anos de idade, inexperiente,
facilmente seduzível pela argumentação ágil, envolvente, la-
boriosa e algumas vezes falaciosa de advogados experientes.

Dizem respeito ao aumento da população, à necessidade que


o direito tem de acompanhar as fronteiras das modernas tec-
nologias e à feroz capacidade legislativa do Estado, criando
CAUSAS leis e normas com força de lei com tal velocidade que se torna
CONJUNTURAIS difícil, impossível quase, dirimir todos os conflitos decorrentes
dessa fúria lefigerante, mesmo para um Judiciário bem equi-
pado, atento e com número razoável de juízes.

76 • capítulo 3
CAUSAS Referem-se ao processo praticado no Brasil e à necessida-
ORGÂNICAS de urgente de sua visão.

Algumas dessas deficiências listadas foram apanhadas topicamente pela


doutrina especializada.
Aqui cumpre apontar a relevância da publicação do Novo Código de Processo
Civil (Lei 13.105/2015), cuja vigência começa em 2016.

3.3.2  A deficiência da produção jurídico-normativa

O professor J. Bernardo Cabral aponta que a deficiência dos textos legislativos é


uma realidade cujo enfretamento está a exigir profunda reflexão do parlamen-
to nacional, com alterações ponderáveis no próprio processo legislativo, no sis-
tema de decisão sobre o conteúdo na norma e nas diretrizes de sua inserção no
direito nacional. Embora reconhecendo que o presente trabalho não propicia
nem o momento adequado nem a justificativa para a abordagem do tema, cre-
mos oportuno frisar que urge instituir-se um mecanismo de controle de quali-
dade da norma jurídica produzida no Legislativo Federal, de forma a impedir a
inovação imperfeita, assistemática e e causídica do direito brasileiro.
Cabral cita o juiz Fernando da Costa Tourinho Neto, ex-Presidente do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que num diagnóstico preliminar sobre
a crise do judiciário, admite que a produção normativa é certamente uma das
causas da ineficácia e emperramento do aparelho judiciário, dispondo que:
“As causas são várias, a começar pelo atuar letárgico de certa parte dos ju-
ízes parece até doença. Existe o vírus da preguicite? A falta de juízes é também
razão para a lentidão paquidérmica do Judiciário. A pletora de leis é outro fator:
o Governo, perdido, a editar medidas provisórias cada vez mais. O Legislativo, a
elaborar uma profusão de leis. Leis casuísticas, feitas ao capricho do momento.
Leis sem sentido, confusas. Um emaranhado, um cipoal de leis mal prepara-
das, mal discutidas”. (1995, p.186).
Mas pouco a pouco as mudanças vão sendo operadas, veja algumas delas,
a seguir:

a) A criação do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, em dezembro de 2004.


b) A Resolução nº 75 do Conselho Nacional de Justiça estabeleceu novos

capítulo 3 • 77
critérios de avaliação para o ingresso na Magistratura, inserindo em seu rol de
disciplinas obrigatórias, além das tradicionais, matérias de cunho subjetivis-
ta e sociológico. São as seguintes disciplinas ligadas à formação humanística:
Sociologia do Direito, Psicologia Jurídica, Ética e Estatuto Jurídico.
c) O Novo Código de Processo Civil abre portas para uma Justiça mais ágil
e descomplicada, pois entre outras novidades, elimina recursos que hoje dila-
tam a duração dos processos e impõe custos advocatícios adicionais na fase re-
cursal para desestimular aventuras judiciais e litigância de má-fé. Além disso,
as partes poderão firmar acordo podendo modificar procedimentos que hoje
são rígidos, ajudando a destravar os processos. E o estímulo ao uso de instru-
mentos eletrônicos deve potencializar a velocidade de muitos atos. A concilia-
ção e a mediação serão instrumentos privilegiados a serem utilizados na solu-
ção dos conflitos que chegam aos tribunais. Por isso os tribunais terão de criar
centros específicos para que as partes, em audiências prévias, sejam estimula-
das a buscar acordo antes de o processo começar a correr. Outro avanço é um
mecanismo que permitirá aos tribunais adotar uma mesma decisão para cau-
sas iguais, o que, às vezes, pode valer para dezenas de milhares de processos.

3.4  Sociologia das profissões jurídicas


A Sociologia das Profissões começou da ser estudada por sociólogos ingleses,
em 1933, com o trabalho intitulado The Professions de Carr-Saunders, que pro-
moveu um extenso levantamento da história de grupos profissionais que pode-
riam ser classificados como profissões, permitindo sistematizar uma discipli-
na especial denominada: Sociologia das Profissões, a qual está “(...) sustentada
teoricamente por alguns modelos analíticos com concepções distintas sobre os
processos de profissionalização” (Bonelli, 1993, p. 31).
O professor André Santos (2012), em seu artigo intitulado: Uma introdução
à Sociologia das profissões jurídicas revela que as primeiras preocupações aca-
dêmicas com as profissões jurídicas aconteceram já na segunda metade do sé-
culo XIX. Mas até o primeiro quarto do século XX, os interesses nas profissões
jurídicas ainda estavam voltados para os seguintes assuntos:

78 • capítulo 3
a) A qualidade do ensino jurídico;
b) A consolidação das profissões jurídicas no mercado de trabalho como
um campo de atuação intelectualmente fecundo e economicamente próspero:
c) A ética dos profissionais da área jurídica.

De acordo com Santos (2012) as análises sociológicas a respeito das pro-


fissões jurídicas ainda tinham um caráter mais histórico e prospectivo e eram
realizadas na maioria das vezes pelos próprios juristas que estavam ligados ao
estudo das ciências sociais.
A partir de finais do século XIX e início do XX, seguindo uma linha funciona-
lista de análise, autores como Blackwell (1895), Platt (1903) e Andrews (1908),
além de outros, vão iniciar seus estudos em torna da questão se as profissões
jurídicas estariam ou não se tornando profissões meramente de mercado, vol-
tadas estritamente ao lucro, e assim, se distanciando daquilo que constituía
seu fim mais precioso, qual seja a luta pela realização do direito, deixando de
lado o aspecto vocacional da profissão.
Este desenvolvimento da sociologia das profissões no tocante à área jurídi-
ca teve um impacto positivo sobre a produção de conhecimento nas ciências
sociais brasileiras.
Este tipo de análise sobre a indefinição dos limites entre profissão e negó-
cio no mundo do direito foi muito realizado ao longo de todo o século XX, se-
guindo a tendência também encontrada entre os sociólogos funcionalistas de
confundir o ser como dever ser, de apresentar uma análise moral das profissões
jurídicas.
Para Santos (2012, p. 79), esta é uma discussão que costuma a seguir um
rumo muito conservador, porque concebe as profissões jurídicas numa ótica
idealista e em descompasso com a realidade, porque ela passa longe das ex-
pectativas idealizadas (assim como a profissão de professor, que é vista mais
como um sacerdócio, como se professor não dependesse de seus proventos
para sobreviver).
Nas análises sociológicas de viés funcionalista, a profissão jurídica é fre-
quentemente idealizada como uma profissão nobre, mas, na prática, é desco-
berta como um nicho de atuação para ganhar dinheiro, bastante dinheiro.
Esta constatação não é aceita com facilidade por aqueles que gostariam
que os profissionais do direito (seja o advogado, o juiz, o promotor etc.) fos-
sem pessoas convocadas (por vocação) a desempenhar uma função social,

capítulo 3 • 79
independente do que possa vir a ganhar pelos serviços prestados. Nesse sen-
tido, as profissões jurídicas são percebidas como uma espécie de missão a ser
cumprida na sociedade: os profissionais do direito seriam verdadeiros guerrei-
ros a lutar pelo direito, posto como única e suficiente maneira de resolução de
conflitos e defender os valores (da sociedade liberal burguesa), que são a base o
direito moderno e a razão de ser das profissões jurídicas.
Após o advento da II Guerra Mundial, a sociologia deixou um pouco de lado
as profissões jurídicas, com raras pesquisas e análises sobre o tema, só voltan-
do a produzir análises relevantes a partir das décadas de 1960 e 1970. As pesqui-
sas realizadas pelos professores Mauro Cappelletti, Bryant Garth(1988), no pro-
jeto ambicioso denominado Acesso à Justiça, entre outros, colaboraram para
reconduzir as profissões jurídicas no centro do debate com uma abordagem
mais sociológica, ainda que estivessem mais relacionadas com a sociologia do
direito do que com uma sociologia das profissões jurídicas.
Na atualidade, novos estudos sobre a sociologia das profissões jurídicas vão
surgindo. Mas, como alerta Santos (2012, p. 83) agora, os estudos analíticos so-
bre as profissões jurídicas estão saindo não estão mais na órbita da sociologia
do direito, mas especificamente no âmbito da sociologia das profissões. E no
caso das profissões jurídicas, a sociologia das profissões jurídicas está se cons-
truindo como uma área de conhecimento sociológico específico.
Diversos autores americanos, franceses e canadenses vão se firmando como
grandes figuras da sociologia das profissões, dando ênfase ao mundo do direito
em suas análises. Em particular, alguns desses autores têm interesse de pes-
quisa no papel das mulheres nas profissões jurídicas, discutindo a feminização
destas profissões.
O venezuelano Rogelio Perez-Perdomo (2005) é outro que vem destacando
nas análises atuais das profissões jurídicas, com duas ênfases:

a) As profissões jurídicas na América Latina e sua relação com a política


nacional;
b) as transformações ocorridas nas profissões jurídicas em tempos de
globalização.

Para Santos ( 2012, p.89), uma análise das profissões jurídicas se revela de
fundamental importância, “ levando em conta três aspectos fundamentais para
as análises sociológicas: 1) a relação entre profissões jurídicas e burocracia

80 • capítulo 3
estatal como mecanismo de reforço do poder das próprias profissões do direi-
to; 2) o ensino do direito como via de acesso à atividade profissional do direito
e como meio de incorporação dos habitus profissionais do direito e 3) o poder
das associações profissionais do direito para conformação do próprio campo
de atuação profissional, atuando politicamente como ator coletivo na estrutura
burocrática do estado, influenciando na discussão e elaboração de leis, e no
controle da formação (e conformação).”

Síntese

Nesse capítulo você conheceu:


•  A função social do Poder Judiciário, como terceiro Poder do Estado e os
problemas que envolvem a prestação jurisdicional.
•  Os instrumentos humanos que desempenham funções essenciais a reali-
zação da Justiça.
•  A relevância da efetividade do direito e sua estreita relação com a necessá-
ria democratização dos tribunais que se materializa, entre outros, com acesso
à justiça.
•  Um novo ramo da Sociologia que está sendo construído, a Sociologia das
profissões jurídicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JOBIM, Nelson. Discurso de Posse na Presidência do Supremo Tribunal Federal. 3 jun. 2004.
Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=62841
&caixaBusca=N>. Acesso em: 24 abr 2015.
MACIEL, José Fábio Rodrigues; AGUIAR, Renan. História do direito. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 62.
ROUSSEAU, Jean Jacques, O Contrato Social. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo. Martins
Fontes. 1989. Págs. 20 e 21.
CARBONNIER, Jean, Sociologia Jurídica. Trad. Diogo Leite de Campos. Coimbra, Livraria Almedina.
1979, pág. 192.
LUHMANN, Niklas, Legitimação pelo Processo. Trad. Maria da conceição Corte Real. Brasília.
Editora da Universidade de Brasília. 1980.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Poder Judiciário e seu papel vinculante na reforma do
estado. O controle jurisdicional dos atos administrativos e a súmula vinculante. In: Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política da Revista dos Tribunais, nº 27, 1999, p. 30.

capítulo 3 • 81
SOUZA, Carlos Aureliano Motta. O Papel Constitucional do STF: uma nova aproximação sobre o
efeito vinculante, Brasília Jurídica, 2000
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal
Federal: uma solução para o Judiciário, in: Revista de Informação Legislativa 128:186, Brasília, out-
dez, 1995.
BONELLI, M. G. As Ciências Sociais no Sistema Profissional Brasileiro, In: BIB,
Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 36, 1993,
pp. 31-61.
SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos. Uma introdução à Sociologia das profissões jurídicas,
in: Prisma Jurídico 2012, 11 (1). Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=93426128007.
Acesso em: 24 abr 2015.

82 • capítulo 3
4
Mudança Social e
Direito
O Direito concebido como ciência social deve acompanhar as mudanças que
ocorrem na sociedade, a fim de tutelar novos direitos ou prevenir novos confli-
tos, apontando solução para os conflitos inevitáveis. Isto porque, como um pro-
duto cultural, o Direito, é influenciado e reflete a realidade social, econômica e
política que o envolve.
Por outro lado não podemos esquecer que a mudança acelerada que se ve-
rificou desde o último século XX, colocando em destaque a importância do ser
humano e sua dignidade, consagrados nos documentos internacionais relati-
vos aos Direitos Humanos, nos levou a uma tomada de consciência da necessi-
dade de defesa de interesses de toda a sociedade, a começar pelos que interfe-
rem na qualidade de vida.
Neste capítulo vamos aprender um pouco do olhar sociológico sobre os fa-
tores sociais, culturais, religiosos, econômicos, entre outros, que interferem di-
retamente nas transformações sócio-jurídicas, na medida em que penetramos
no campo da mídia e da opinião pública, dos movimentos sociais, da cidada-
nia, da etnodiversidade, das questões de gênero e dos novos arranjos familia-
res, a partir da contribuição doutrinária de autores como Boaventura de Sousa
Santos, Zygmunt Bauman .
Conheceremos o sociólogo Manuel Castells e sua obra “Fim de milê-
nio”(1999) que dedica um capítulo, para a analisar “A conexão perversa: a eco-
nomia global do crime”, tecendo considerações a respeito do crime e sua atual
acepção em caráter organizado global.

OBJETIVOS
•  Reconhecer a provisoriedade e a mutabilidade das normas de Direito em face da mudança
social.
•  Reconhecer os efeitos das transformações econômicas na legislação, na aplicação do Direito
e nas instituições jurídicas.
•  Compreender a importância da opinião pública para a formulação, interpretação e aplicação
do Direito.
•  Conhecer as diversas teorias e representações a respeito do desvio social sobre a economia
global do crime num mundo globalizado.

84 • capítulo 4
4.1  Fatores de transformação sócio-jurídica.
O direito na concepção sociológica é um produto de múltiplas influências so-
ciais, sujeitas a constantes modificações porque se originam no grupo social, o
qual vive em constante transformação. Estas influências podem ser, de acordo
com Cavalieri (2005, p.31-33) principalmente, ligadas aos seguintes fatores:

a) Fatores econômicos
A organização social está articulada basicamente no modo como os ho-
mens produzem, possuem e comerciam. Assim, é fácil concluir que o direito
vai se modificando à medida em que se vai alterando a estrutura econômica da
sociedade.
Marx e Engels consideravam que o fator econômico era determinante para a
história da humanidade, sendo os demais fenômenos culturais consequências
das relações econômicas.
Exemplos: a) com a ascensão da burguesia mercantil europeia ao poder novos
ramos do direito foram surgindo, a partir do direito civil: direito comercial – des-
membrado do Jus Civile romano, marcando o início da Idade Moderna; b) resul-
tado da Revolução Industrial e do aparecimento da classe urbana do proletariado
com suas lutas por melhores condições de trabalhos e vida, surgem o direito do
trabalho e o direito industrial – assinalam o início da História Contemporânea.

b) Fatores políticos
A influência desses fatores torna-se ainda mais evidente em caso de mu-
danças políticas profundas (por exemplo, revolução). Mal concluída a tomada
do poder pelo grupo revolucionário surge um novo direito. Esse novo direito,
refletindo as novas tendências políticas, traz em si a intenção de legitimar e
justificar esse poder.
O Direito se revela como produto da correlação das forças políticas que atu-
am na sociedade. Assim, se prevalecem as forças conservadoras, as normas ju-
rídicas tendem a ter um perfil também conservador, retrógrado. Mas por outro
lado, se prevalecem as forças políticas progressistas, democráticas, certamente
o ordenamento jurídico irá refletir esse caráter avançado.
Foi o caso do Brasil, que durante os períodos de ditadura (Era Vargas e
Regime Militar de 1964) teve sonegados os direitos e garantias mais elemen-
tares dos cidadãos em suas constituições (de 1937 e 1967). No entanto, o fim

capítulo 4 • 85
da ditadura militar e com a transição democrática possibilitaram a construção
de uma constituição baseada nos mais caros princípios democráticos, a atual
Constituição Federal, em vigor desde 1988.

c) Fatores culturais
O direito reflete a sociedade para a qual se destina, e evolui acompanhando
a evolução cultural, a ponte de se poder dizer que o direito é um aspecto cultu-
ral de um povo.
Nos dias de hoje a intercomunicação social é um fator determinante de for-
mação e desenvolvimento cultural, ao passo que o isolamento atrasa o progres-
so da cultura do povo.
A maior prova de que o direito é uma manifestação cultural social, um fe-
nômeno cultural, está no fato de que vão surgindo novos ramos do direito à
medida em que se expande o mundo cultural de um povo. Atualmente se fala
em Biodireito, Direito Espacial, Nuclear, Virtual etc, realidade somente possí-
vel graças ao desenvolvimento científico dos tempos modernos.

d) Fatores religiosos
Nos povos antigos o direito se confundia com a religião. As legislações eram
cheias de rituais, preceitos e proibições de caráter sagrado.
Somente após um processo lento e prolongado de secularização é que reli-
gião e direito foram sendo separados.
Hoje, de um modo geral, a religião se ocupa do foro íntimo do indivíduo, en-
quanto que o direito disciplina as relações sociais entre os homens e a sociedade.
Seja lá como for, temas polêmicos e de forte acento religioso como o aborto
e o casamento homossexual, continuam sofrendo fortes barreiras por conta da
influência dos políticos vinculados às igrejas.

4.2  Participação popular: opinião pública e o


sentimento de justiça

Se por um lado a sociedade entende que o direito utilizado como instrumento


controlador dos comportamentos é eficaz, pois na vida não se pode prescindir
de regras; por outro, o direito como efetivador de justiça, sob o ponto de vista de
cada cidadão, tem-se demonstrado inoperante.

86 • capítulo 4
Assim sendo, a opinião pública passa a ser uma matéria de especial inte-
resse para o profissional do direito em geral. Porque o sentimento social sobre
o que é o justo e o injusto e o papel do direito é sinalizado pelo próprio pen-
samento social coletivo, que a cada momento, funcionando como uma bússo-
la, aponta e orienta esses operadores no que a sociedade necessita e espera do
Estado em sua função de distribuir a justiça e manter a paz social.

4.2.1  O que é opinião pública?

É o pensamento predominante do grupo sobre uma determinada pessoa ou


questão. É o juízo coletivo adotado e exteriorizado por um grupo.
A opinião pública não é a soma nem a síntese da opinião de todos, é um
novo produto, uma nova realidade. Representa a tendência geral, mas sem ser
necessariamente a opinião de todos os membros nem a opinião de qualquer
pessoa em particular.

4.2.2  Qual a Importância da Opinião Pública para a Sociologia


Jurídica e para o Direito?

A opinião pública nos países de livre manifestação de pensamento constitui


elemento decisivo de interação social.
Tem especial importância, pois age como um verdadeiro termômetro, re-
velando ao legislador e demais autoridades que atuam na área jurídica o senti-
mento social em torno de questões sociais relevantes e indicando as mudanças
necessárias nas leis e instituições jurídicas.

4.2.3  O Anseio coletivo pela justiça

Existe não só um sentimento individual de justiça, mas um sentimento coleti-


vo, no qual a sociedade se baseia para estabelecer padrões de comportamento
e que varia de tempo em tempo e de lugar para lugar.
Ao legislador especialmente importa conhecer o sentimento coletivo de jus-
tiça para que possa elaborar leis justas, adequadas aos interesses e conveniên-
cia sociais.
O exame do sentimento de justiça abrange:
a) o exame das normas existentes, sua adequação ou não ao que é tido
como justo;

capítulo 4 • 87
b) a aprovação social das sanções que o direito estabelece, garantidoras da
validez e eficácia das normas;
c) a opinião do público acerca do comportamento ilícito;

4.2.4  A utilidade social da opinião pública sobre o Direito e suas


instituições

Muito embora o Direito seja considerado e aceito como a forma mais eficaz de
controle social em sua organização e aplicação, sofre um questionamento cada
vez maior da opinião pública quanto à sua equidade.
Para muitos o Direito é um meio do qual se valem os mais fortes, as classes
dominantes da máquina estatal, para se manterem no poder contra os oprimi-
dos. Outros entendem que ele se presta a manobras que o desvirtuam comple-
tamente, e que isso é uma constante.
A opinião pública formada em torno do Judiciário foi no sentido de conside-
rá-lo deficiente, emperrado e moroso.
Há uma grande parcela que considera os tribunais ou juízes influenciáveis
pelos poderosos, ou passíveis de corrupção, e portanto parciais, assunto da
maior gravidade a merecer uma especial atenção, sob pena de uma desmorali-
zação cada vez maior da instituição.

4.3  Movimentos sociais, cidadania,


etnodiversidade, questões de gênero e novos
arranjos familiares.
4.3.1  Movimentos Sociais

Pode-se afirmar que movimento social é aquele relacionado à ação coletiva de


um grupo organizado que tem por fim a promoção de transformações sociais
por meio do engajamento político, de acordo com seus valores e ideais no seio
da sociedade a partir de um contexto característico, que se caracteriza pela
existência de tensões sociais. Tais movimentos buscam sempre uma mudança,
uma readequação ou mesmo a revolução de uma realidade imprópria ou injus-
ta a certo grupo ou classe social.

88 • capítulo 4
Assim, a luta por um determinado ideal revela a identidade dos movimentos
sociais que estão sempre atuando na defesa de seus interesses. Eles se trans-
formam em representantes políticos dos indivíduos que estejam numa mesma
situação inapropriada, seja social, econômica, política, religiosa, etc.
“ Os movimentos sociais no Brasil têm sua história marcada pelos grandes
embates realizados contra os governos autoritários, sobretudo ainda nas lutas
pela liberdade e democracia, na década de 70 e parte da década de 80 é conside-
rada como inspiração no que diz respeito à ideologia que movia mentes e cora-
ções desses movimentos sociais. Nos anos 90 o Brasil se encontrava no auge do
Neoliberalismo, que tinha como influência diretamente por Ronald Reagan e
Margareth Thatcher que foi tido como berço das lutas contra os governos FHC,
do sucateamento de todos os aparelhos estatais, das “privatarias”, do desres-
peito aos trabalhadores e as trabalhadoras do Brasil e de todos os traços básicos
de um governo que não dialogava com os movimentos sociais, pois estava ao
lado das elites brasileiras e internacionais em nome do capital privado, sem
levar em consideração o povo que vivia a margem da “democracia” então vivida.
A existência de um movimento social exige uma organização muito bem es-
truturada, o que requer a disponibilidade de recursos e pessoas que estejam re-
almente engajadas.
São exemplos de movimentos sociais: o Movimento Abolicionista, no Brasil
Império; o Movimento Feminista, que tem suas origens no início do século XX;
o Movimento Estudantil, sempre presente na história das grandes transforma-
ções políticas em nosso país – vide os Cara-Pintadas do processo de impeachment
do ex-presidente Fernando Collor; o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST) surgiu em 1997 da necessidade de organizar a reforma urbana e garan-
tir moradia e a todos os cidadãos; o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, também conhecido pela sigla MST, cujo objetivo é a implantação da re-
forma agrária no Brasil; o Movimento Negro, o Movimento GLBTT que luta em
prol da liberdade e do respeito pela orientação sexual.
O sociólogo português Boaventura do Sousa Santos (2005), defende a existên-
cia de ‘novos’ movimentos sociais, cuja identificação com as formas de opressão
vai além daquelas tradicionais como a exclusão social, o machismo, o racismo
etc, na medida em que lutam por um novo paradigma social baseado na cultura e
na qualidade de vida, com a utilização das redes sociais e da internet.
Caracterizam-se pela inexistência de líderes ou lideranças articuladas. As
mobilizações são organizadas tendo em conta a participação dos cidadãos em

capítulo 4 • 89
solidariedade com alguma atitude de um grupo social ou mesmo a partir da
manifestação indignada de um cidadão.
Manuel Castells (2013) também fala sobre esse novo momento, ao analisar
a ação de movimentos como a primavera árabe, os indignados da Espanha e a
ocupação de Wall Street, identificando nessa nova forma de organização dos
movimentos sociais em rede nova concepção de exercício da democracia.
O cenário desses novos movimentos se mantém sendo uma correlação de
forças entre, de um lado um Estado que detém o poder e de outro o contrapoder
dos movimentos que se utiliza de meios autônomos de comunicação como o
facebook, o twiter, os celulares, sem um espaço físico definitivo para encontros
permanentes.

4.3.2  Cidadania e Etnodiversidade

Etimologicamente a palavra cidadania tem sua origem na expressão latina civi-


tas, que significa cidade. A expressão cidadania foi usada na Roma antiga para
apontar a situação política de um indivíduo e os direitos que tinha ou podia
exercer. Nas palavras do autor Dalmo Dallari (1998. p.14):
“A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibili-
dade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem
cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de deci-
sões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social”.
A cidadania é status referencial que historicamente tem sido conquistado
por meio daqueles homens e mulheres que lutam pelo reconhecimento de seus
direitos, por liberdade, pelas garantias individuais e coletivas, pela participa-
ção ativa e legítima nos destinos da sociedade, enfrentando a opressão dos
dominantes, seja do próprio Estado ou de outras instituições ou pessoas que
insistem em manter privilégios, de opressão e de injustiças contra uma maioria
oprimida e que não se consegue fazer ouvir, exatamente por que se lhe nega a
cidadania plena. Ser cidadão é ter consciência de ser sujeito não somente de
deveres, mas de direitos.
No Brasil, a cidadania assim concebida ainda está em processo de constru-
ção. É importante demarcar que passos importantes foram dados com o fim
de uma Ditadura Militar que perdurou por vinte anos (1964 a 1984), com o pro-
cesso de redemocratização e, em especial com a promulgação da Constituição
de 1988, a primeira a ter uma participação popular por meio das emendas

90 • capítulo 4
populares. Mas, ainda há muito a ser feito para que o povo brasileiro possa se
sentir realmente titular de cidadania plena. Ainda prevalece uma visão reducio-
nista da cidadania (o voto sendo obrigatório e não como um direito pertencente
ao povo que poderá exercê-lo ou não, o processo eleitoral distorcido e tenden-
cioso), além de prevalecerem muitas barreiras tanto culturais quanto históricas
para a vivência da cidadania.
Ao abordar o tema da cidadania, que necessariamente importa em partici-
pação nos destinos da sociedade, Sousa Santos (2007, p.92) se refere ao fenô-
meno da “cidadania bloqueada” que seria característico nos sistemas demo-
crático representativos, na medida em que não lhes garantem as condições de
participação social ou política, muito embora o próprio sistema esteja baseado
na ideia de participação. O autor aponta três condições que a seu ver são funda-
mentais para a participação cidadã:

“ ...temos de ter nossa sobrevivência garantida, porque se estamos morrendo de fome


não vamos participar; temos de ter um mínimo de liberdade para que não haja uma
ameaça quando vamos votar; e finalmente temos de ter acesso à informação “. E com-
pleta “ Parece-me que com essa cidadania bloqueada está se banalizando a participa-
ção; participamos cada vez mais do que é menos importante, cada vez mais somos cha-
mados a ter uma opinião sobre coisas que são cada vez mais banais para a reprodução
do poder.”(2007, p.92)

4.3.3  Etnodiversidade

Essa expressão foi cunhada no Partido Verde, em 1994, por Tibor Rabóczkay,
significando a presença de diversas etnias e "raças" num mesmo país, ou mes-
mo território. Sua inspiração é a analogia com "biodiversidade".
A etnodiversidade brasileira resulta da presença de vários povos indígenas,
descendentes de imigrantes de variadas origens (europeus, asiáticos), além da
forte contribuição de povos africanos que para cá vieram como escravos.
Da etnodiversidade brasileira se origina a grande capacidade de adaptação
do brasileiro.

capítulo 4 • 91
4.3.4  Questões de gênero e novos arranjos familiares.

As relações de gênero se revelam como elementos indispensáveis para a com-


preensão da sociedade. Inegavelmente, o conceito institucionalizado de gêne-
ro contribui para a justificação das desigualdades sociais entre homens e mu-
lheres que nada tem a ver com o biológico.
As desigualdades biológicas entre homens e mulheres são nítidas, mas no
mais das vezes são explicadas superficialmente, revelando um mero entendi-
mento reprodutivo. No reducionismo do entendimento dessas relações entre
homens e mulheres a sociedade acaba por naturalizar as pretensas caracterís-
ticas que cada um têm, seja por meio de imagens, estereótipos, problematiza-
ções de questões, de textos literários e até mesmo nos livros didáticos. Mas o
que é gênero?
A identidade de gênero ou sexual, é um conceito extremamente complexo,
composto por componentes conscientes e inconscientes. Possuindo elemen-
tos altamente associados ao sexo a que se pertence e às características estabe-
lecidas pela estrutura social a cada gênero. Assim “a ideia de gênero, não é um
constructo mental unitário, pois grande número de diferentes componentes
estruturados em diversas épocas do desenvolvimento e advindos de várias in-
fluências, formarão a composição final do que se convencionou chamar de
identidade de gênero”. (SILVA, 1997, p. 80).
Tendo em conta este entendimento sobre a questão de gênero é possível
reconhecer a importância do movimento feminista, na luta pelo fim da cul-
tura que consagra uma suposta superioridade do homem (cultura machista),
batalhando pela inserção da mulher no mercado de trabalho em igualdade de
condições com o homem, passando pela reivindicação do sufrágio universal
(direito ao voto) como forma de reconhecimento de cidadania, até a sua com-
preensão a respeito da maneira pela qual se estabelecem formas das relações
intersubjetivas na sociedade demarcadas por interesses políticos e ou econô-
micos. O que leva à compreensão de que “sexo é política”.
Um bom exemplo disso segundo Alves e Pitanguy (1981), se encontra no pe-
ríodo de ascensão do nazi-facismo em que a propaganda para que as famílias
tivessem mais filhos era uma forma de aumentar a população e propagar o mo-
delo étnico ideal para os líderes desses movimentos.

92 • capítulo 4
Outro exemplo digno de uma profunda análise sociológica é a revelação de
que a maioria dos brasileiros concorda que o comportamento da mulher pode
motivar o estupro. Segundo a socióloga Nina Madsen, integrante do Colegiado
de Gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), a pesquisa do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que 58,5% dos entre-
vistados concordaram totalmente ou parcialmente com a frase "Se as mulheres
soubessem como se comportar, haveria menos estupros". Os pesquisadores
também avaliaram a seguinte frase: "Mulheres que usam roupas que mostram o
corpo merecem ser atacadas". O levantamento mostrou que 42,7% concordaram
totalmente com a afirmação e 22,4% parcialmente; 24% discordaram totalmente
e 8,4% parcialmente. Das 3.810 pessoas entrevistadas, 66,5% eram mulheres.

“Nossa sociedade é violenta contra as populações marginalizadas e as mulheres com-


põem essa população. A culpa da violência sexual nunca é das mulheres. Temos que
educar os meninos a não estuprar. Hoje eles aprendem que uma menina que se veste
de uma determinada forma está provocando e que eles têm uma pretensa autorização
para fazer uso daquele corpo que está sendo exposto. Temos que interferir nesse pro-
cesso” (MADSEN, 2014).

Ultrapassar os limites sociais e jurídicos previamente estabelecidos e deter-


minados em relação ao gênero ou sexualidade, na medida em que se põe em
xeque e se altera esses códigos pré-estabelecidos pela sociedade como padrão
de conduta é assumir uma identidade rotulada como “desviante” e “anormal”,
suscetível a retaliações e julgamentos porquanto minoria de direitos. Impende
considerar que o tema da diversidade sexual é uma das feições mais complexas
e de difícil tratamento da sexualidade por parte da sociedade humana.
Uma questão básica é que as pessoas sejam nomeadas e reconhecidas pelo
modo como elas se identificam para o outro, e sejam respeitadas como tal.
Transgêneros (transgenders), travestis e transexuais, por exemplo, são alvos
em potencial da discriminação social e da omissão dos agentes estatais, oca-
sionando um alto índice de discriminação e violência contra estes segmentos.
Na luta por um espaço social mais acolhedor, que não legitime qualquer prá-
tica de violência, levantar a discussão sobre identidade e diversidade sexual ad-
quire uma conotação política, sendo preciso problematizar, dentro dos Direitos
Humanos, a violência social e institucional praticada contra a comunidade GLBTT.

capítulo 4 • 93
A Constituição brasileira estabelece a proteção da dignidade do ser humano en-
quanto tal e o respeito às diferenças individuais e de grupos sociais em observância
a ordem social. Nesse âmbito de tutela aos direitos do homem e do cidadão, a de-
vida adequação da designação nominativa de travestis, transexuais e transgêneros
aponta ao nosso país integração e coerência com nossa Constituição Federal neces-
sária observância aos preceitos dos Direitos Humanos e do Direito Internacional.
No entanto, nos dias atuais, há que se apontar que mesmo as pessoas que conse-
guem ser submetidas à cirurgia de redesignação sexual não encontram no Judiciário
a agilidade e prontidão necessários a permitir a descontinuidade de situações cons-
trangedoras (quando não preconceituosas) a que são expostas diuturnamente.
Necessário demarcar que a inexistência de leis específicas quanto a esta
matéria faz com que a mudança de nome tão somente pela via judicial se torne
uma deliberação que depende de cada julgador (com a possibilidade do resulta-
do ser penetrado por valores, costumes, moralismos e preconceitos vinculados
à condição de indivíduo que existe por trás de cada toga) (HOGEMANN, 2014).

4.3.5  Novos arranjos familiares

A família é um grupo social que existe em praticamente todas as formas de so-


ciedade; ao tentar defini-la, o sociólogo Lévi-Strauss, afirma:

“(. . .) tal palavra serve para designar um grupo social que possui pelo
menos, as três características seguintes: 1) Tem a sua origem no casamento. 2) É
formado pelo marido pela esposa e pelos filhos (as) nascidos do casamento, ainda que
seja concebível que outros parentes encontrem o seu lugar junto ao grupo nuclear.3)
Os membros da família estão unidos por a) laços legais, b) direitos e obrigações eco-
nômicas, religiosas e de outro tipo c) uma rede precisa de direitos e proibições sexuais
além duma quantidade variável e diversificada de sentimentos psicológicos tais como
amor, afeto, respeito, temor, etc”. (STRAUSS, 1980, p. 16)

Essa é uma definição de família nos moldes tradicionais. Numa visão mais
atual, tendo em conta as atuais estruturas familiares, se constatará que a defi-
nição de família hoje não necessariamente corresponde a essa visão. Isso signi-
fica que inexiste uma definição geral de família, mas tipos históricos de família
estabelecidos socialmente ao longo do tempo e do espaço.

94 • capítulo 4
Philippe Ariès (1981) esclarece que, na civilização ocidental a família já exis-
tia como realidade desde a Antiguidade, embora ela ainda não existisse como
sentimento ou como valor. Para o autor, esse sentimento de família surge e se
desenvolve a partir do século XV e, somente a partir no século XVIII é que tal
concepção se estende a toda a população.
Essa família teria por finalidade basicamente a geração da prole, a trans-
missão da linhagem, do nome e do patrimônio. Nela, cumpre destacar o papel
central do patriarca, detentor do poder patriarcal e a prática dos casamentos
arranjados tendo em vista exclusivamente a transmissão de patrimônio.
Entre o final do século XVIII e meados do século XX “(. . .) a prática do casa-
mento arranjado foi deixada de lado em nome do amor romântico e de um novo
conceito da família como refúgio frente ao mundo do comércio e da indústria
altamente competitivo e frequentemente brutal.” (LASCH, 1991, p.27)

HEDONISMO
A palavra hedonismo vem do grego hedonikos, que significa "prazeroso", já que hedon
significa prazer. Como uma filosofia, o hedonismo surgiu na Grécia e teve Epicuro e
Aristipo de Cirene como alguns dos nomes mais importantes.
Esta doutrina moral teve a sua origem nos cirenaicos (fundada por Aristipo de Cirene),
epicuristas antigos. O hedonismo determina que o bem supremo, ou seja, o fim último
da ação, é o prazer. Neste caso, "prazer" significa algo mais que o mero prazer sensual.
Os utilitaristas ingleses (Bentham e Stuart Mill) foram os continuadores do hedonismo
antigo. (http://www.significados.com.br/hedonismo/)

Nos dias de hoje, muitos autores consideram que é a época do pós-moder-


nismo, período marcado pelo capitalismo, neoliberalismo, individualismo,
hedonismo e pelo consumo desenfreado, pela busca incessante do prazer ime-
diato. A busca do casamento, a partir de meados do século XX está voltada mais
à busca do prazer e da sexualidade na relação conjugal. Cresceu o número de
separações e divórcios, a religião foi perdendo sua força, não mais conseguindo
segurar casamentos com relações insatisfatórias. A igualdade passou a ser um
pressuposto em muitas relações matrimoniais. (SIMIONATO, 2003, p. 60)
As novas configurações familiares estão ligadas a um debate sobre a atu-
al noção de entidade familiar. Fazem parte de uma construção histórica e so-
cial demarcada por valores e contradições existentes na sociedade de maneira

capítulo 4 • 95
geral. A discordância ou concordância com os novos arranjos familiares se re-
vela de diversas maneiras, em diferentes contextos e pode sofrer influências de
modelos de ordem hegemônica.
O fato é que a família contemporânea continua como relevante instituição, a
despeito das mudanças. Importante apontar que, para além do casamento (ele-
mento simbólico que originava a formação das famílias), valores como amor, cui-
dado, proteção, investimento, apoio na velhice, afinidades conjugais, sexualida-
de, intimidade, entre outros seguem sendo os deveres familiares (SIERRA, 2011).
De todo modo, com o desenvolvimento da sociedade, a família foi se recon-
figurando e não se pode falar que existe um único modelo, mas vários tipos de
organização de unidades domésticas que configuram uma família.
Pereira e Schimanski (2013, p. 171) consideram que “A existência das novas
configurações familiares passa por uma linha tênue de análise entre o que se
considera politicamente/moralmente correto e a possibilidade da felicidade
no rompimento de valores tradicionais construídos em conjunto com a família
nuclear tradicional. A busca por novas formas de relações pode ser considerada
um tabu. Por outro lado, é fato a existência de novas estruturas familiares, o que
confirma a transformação da concepção em relação à instituição familiar e às
relações conjugais”.
No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu
como balizador principiológico fundamental a dignidade da pessoa humana,
desencadeou-se um processo de despatrimonialização ou repersonalização do
direito civil com a consagração da pluralidade de formas de família. Assim, a
entidade familiar passa a ser entendida como um meio instrumental de pro-
moção da felicidade de cada um dos seus integrantes, independente de orien-
tação sexual. É reconhecido constitucionalmente o instituto da união estável.
Surgem as famílias homoparentais como realidade social.
O reconhecimento legal das uniões homoafetivas no Brasil tem um marco funda-
mental representado pela decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade
4.277 e a Arguição de Descumprim ento de Preceito Fundamental 132. Essas duas
ações foram julgadas conjuntamente em maio de 2011. Naquele momento, por
votação unânime, o Supremo Tribunal Federal deu interpretação conforme ao ar-
tigo 1.723 do Código Civil, “para dele excluir qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo
sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.
Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas
consequências da união estável heteroafetiva”.

96 • capítulo 4
Em março de 2015, considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal
que reconheceu a união homoafetiva como um núcleo familiar como qualquer
outro, a ministra do STF Cármen Lúcia manteve decisão que autorizou um ca-
sal gay a adotar uma criança, independentemente da idade.
Uma outra forma de núcleo familiar atualmente existente, de acordo com
Roudinesco e Derrida, é a da coparentalidade: “A coparentalidade é uma situ-
ação na qual uma mãe lésbica ou um pai gay elaboram o projeto de ter e criar
uma criança com um parceiro, sendo que um é o pai biológico e o outro o pai
social que cria a criança. Assim, o coparente pode ser um pai legal, um pai so-
cial ou um pai biológico.” (p.48, 2004).
Também os avanços alcançados com as técnicas de reprodução (fertilização
in vitro) possibilitaram novas formas de constituição familiar. Esta representa
a procriação através da tecnologia reprodutiva disponível na atualidade, que
pode ser utilizada como recurso para homens e mulheres solteiros que dese-
jam formar um núcleo familiar monoparental ou para casais homoafetivos,
existindo a possibilidade da chamada gravidez por substituição (barriga de alu-
guel) na impossibilidade gestacional.
Outra possibilidade de arranjo familiar se configura para os casais paren-
tais homossexuais que já tinham filhos antes da união homossexual e que pas-
sam a criá-los agora, enquanto um casal homossexual.

4.4  Direitos humanos no Brasil


Peter Sloterdijk é um filósofo alemão. Estudou
Filosofia, Germanística e História em Munique
e Hamburgo.
Desde a publicação de Crítica da razão cínica (Kri-
tik der zynischen Vernunft, 1983) é considerado
um dos maiores renovadores da filosofia atual.
Interessado na mídia, dirigiu e apresentou com
Rüdiger Safranski o Quarteto filosófico (Das
philosophische Quartett), programa cultural
da cadeia de televisão estatal alemã ZDF, por
quase dez anos. (http://pt.wikipedia.org/)

capítulo 4 • 97
Os direitos humanos são inegavelmente o resultado de um longo proces-
so histórico de lutas, que deita suas raízes desde o Cristianismo, do Medievo,
com a afirmação da defesa da igualdade entre os homens numa mesma dig-
nidade, fruto da condição de igualdade e semelhança ao próprio Criador, res-
ponsável último pela criação de um ordenamento normativo cuja aspiração
maior era o ideal de justiça. Sloterdijk, considera que a descoberta da lingua-
gem dos direitos humanos pelo próprio povo foi um passo fundamental. Para
esse autor, muito embora esses direitos que são articulados desde a Guerra
dos Camponeses, de 1525 chegando até a resistência russa e polaca de nosso
tempo, sejam concebidos como direitos cristãos, o componente acrescido pe-
las Revolução Americana e Revolução Francesa, os permite serem entendidos
como direitos naturais seculares. E prossegue:

“Mistura de revolta e de reivindicações de liberdade, o sentimento exaltante de ser não


um escravo (robot), mas também um ser humano, deu a primeiro movimento operário
a sua força moral, psicológica e política, a qual aumentou ainda com a repressão. (...)
Enquanto a miséria do proletariado era tão enorme como o provam os documentos do
século XIX, bastava a descoberta do sentimento dos direitos humanos para propiciar
necessariamente ao operário um núcleo político de um eu”. (2011, p. 110).

Aqui no Brasil, a constituição que mais contempla esse conjunto de direitos


é a Constituição Federal de 1988, que assim positivados recebem o nome de
direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais são os direitos do homem juridicamente garan-
tidos e limitados. Demarcam a situação do cidadão perante o Estado e dizem
respeito à estruturação constitucional.
O estudo dos direitos fundamentais é demarcado por quatro gerações
diferentes:
1ª GERAÇÃO: as liberdades públicas e os direitos políticos são fruto do arbí-
trio governamental. (Estado Liberal-burguês)
Ex.: liberdade de voto, de culto, de planejamento familiar = LIBERDADE.
2ª GERAÇÃO: a fase ditada em face dos desníveis sociais, com os direitos
econômicos e sociais (Estado do Bem-Estar Social). Ex.: direito ao trabalho, à
seguridade social (art. 5º, XIII e art. 6º CRFB/1988) = IGUALDADE.

98 • capítulo 4
3ª GERAÇÃO: a defesa dos interesses difusos, com os direitos de solidarie-
dade. (Pós-2ª. Guerra Mundial) Ex.: proteção ao patrimônio histórico e cultu-
ral do povo (art. 5º, inc. LXXIII CRFB/1988), a defesa coletiva dos direitos do
consumidor (art. 81, inc. III CDC); direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado (art. 225 CRFB/1988); FRATERNIDADE.
4ª GERAÇÃO: o direito a ser diferente (momento atual). Ex.: recusar trata-
mento à saúde (art. 15 CC/2002); não discriminação ou direito à diferença.
Na Constituição Federal de 1988, tanto a primeira dimensão, como a segun-
da dimensão de direitos fundamentais estão absolutamente contempladas.
Aos direitos de 1ª Dimensão - individuais (art. 5º), políticos (art. 14 ao 17),
e à nacionalidade (arts. 12 e 13) -, e aos de 2ª Dimensão - sociais (arts. 6º ao 11)
– juntam-se aos de terceira geração ou, de terceira dimensão (direitos difusos).
São exemplos típicos destes direitos, o meio-ambiente saudável, o direito ao
patrimônio histórico, o direito a cultura, o direito ao desenvolvimento de um
povo, o direito a manutenção das raízes culturais de um povo.
Os direitos políticos expandem-se, o conceito de cidadania se amplia: além
dos eleitores tradicionais (via de regra, os maiores de 18 anos alfabetizados),
dá-se a faculdade de voto ao analfabeto – que pela primeira vez, é reconhecido
como potencial cidadão – e ao jovem maior de dezesseis e menor de dezoito
anos.
OBS: segundo o § 3º do art. 5°, dispositivo incluído pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004, os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.

4.4.1  Os direitos humanos em crise?

Barretto (2013, p. 25) situa bem a questão ao interrogar-se em “Como podemos


explicar que nem todos os humanos têm humanidade no mundo dos direitos
humanos?”; mais que isso, uma imensa massa de indivíduos que representa a
maioria da população mundial não possui a titularidade dos direitos humanos,
muito embora seja objeto de discursos de direitos humanos. Desse modo, além
da compreensão do que venham a ser direitos humanos e o discurso que os
contempla, resta entender e refletir sobre os motivos que levam a sua ineficácia
e as perspectivas que apontem para superar tal situação.

capítulo 4 • 99
Diante do saldo negativo apresentado pela realidade paradoxal em torno do
discurso dos direitos humanos nos últimos tempos, Sousa (2013, p.13) ques-
tiona “será a hegemonia de que goza hoje o discurso dos direitos humanos o
resultado de uma vitória histórica ou, pelo contrário, de uma derrota históri-
ca?”. Para o autor, qualquer que venha a ser a resposta, os direitos humanos
como “linguagem hegemônica da dignidade humana” foram estabelecidos
como instrumentos do mesmo modo que outros tantos, numa conjuntura que
legitima e perpetua a opressão. Então, em que medida poderiam os direitos
humanos ser utilizados para modificar esse status quo e se possível, como se-
ria isto exequível? Além disso, se a linguagem dos direitos humanos permite a
exclusão, a discriminação e a opressão, haveria outras linguagens dos direitos
humanos? E, caso haja, estariam aptas a contribuir para promover a superação
das violações e injustiças contra os direitos humanos?

4.5  As transformações nas relações sociais


e econômicas do cotidiano.

Em texto intitulado “Estudar as transformações sociais”, Stephen Castles trata


com particular maestria das questões relacionadas às transformações ocorri-
das nas relações sociais e econômicas do cotidiano. A saber:
“ O último quartel do século XX foi um período de rápido crescimento das
ligações e dos fluxos transnacionais que afectam todas as esferas da vida huma-
na: economia, política, ambiente, cultura, sociedade e mesmo as relações inter-
pessoais. Estes processos globais deram origem a importantes transformações
sociais em todo o mundo, fazendo com que velhas dicotomias económicas e
culturais, como “moderno e tradicional”, “altamente desenvolvido e menos
desenvolvido”, “Oriente e Ocidente”, “o Sul e o Norte”, perdessem saliência.
Tornou-se cada vez mais difícil agir localmente sem pensar globalmente (como
diz o slogan), enquanto o nível de análise nacional foi perdendo parte da sua
proeminência como enquadramento para a compreensão da sociedade.
Sousa Santos (1997) considera que as sociedades contemporâneas e o siste-
ma mundial em geral, desde o último quarto do século XX passam por proces-
sos de transformação social muito rápidos e muito profundos que colocam na
ordem do dia a discussão sobre teorias e os conceitos, os modelos e as soluções

100 • capítulo 4
que até então eram tidos como eficazes para diagnosticar e resolver crises so-
ciais. A pobreza e a miséria de uma parte significativa e crescente da população
mundial, o aprofundamento claramente irreversível das desigualdades sociais
em praticamente todos os países independentemente de serem desenvolvi-
dos ou não – há um aumento impressionante dos moradores de rua por toda
Europa e EUA - , a degradação ambiental e a ausência propostas objetivas de
soluções para qualquer destes problemas, levam o autor a pensar que, em ver-
dade, o que está em crise é o próprio modelo civilizacional no seu todo, isto é, o
paradigma da modernidade ocidental.
Os cientistas sociais que se lançaram no estudo destas transformações
sociais e se depararam com os limites das teorias e das metodologias existen-
tes, como apontado por Sousa Santos. Disciplinas centrais, como o Direito, a
Economia ou a Sociologia, possuem suas bases culturais e seus modelos teóri-
cos derivados da experiência ocidental do capitalismo e da industrialização e
de um modelo de desenvolvimento que refletem e regulam.
No entanto, essa noção de desenvolvimento, com a adoção das práticas ne-
oliberais a partir do fim da década de 80, provocou profundas e problemáticas
transformações sociais, econômicas, geopolíticas, tecnológicas e culturais, en-
tre as quais se pode citar:

•  As tendências para a globalização econômica e cultural se aceleraram


amplamente, como consequência da revolução no campo das tecnologias da
informação. A estrutura e os mecanismos de controle dos mercados mundiais
transformaram-se velozmente. Novos meios de comunicação (via satélite) pos-
sibilitaram uma rápida difusão dos valores culturais próprios da sociedade de
consumo, nos padrões norte-americanizados – o mundo veste calça jeans e
bebe coca-cola. O avanço no domínio da tecnologia militar e na produção de
armamentos por uns poucos países, impossibilita a manutenção da paz e fo-
menta focos de conflito permanentes.
•  A globalização e o rearranjo tanto nos modelos econômicos quanto nos
de produção industrial tiveram como resultado a extinção de diversas profis-
sões (datilógrafo, desenhista industrial, por exemplo) e o desemprego traduzi-
dos em pobreza e exclusão social, tanto nos países considerados do Primeiro
Mundo como no resto do planeta, superando a suposta dicotomia entre econo-
mias desenvolvidas e subdesenvolvidas (veja o caso da crise norte-americana de
2009 e o desemprego endêmico nos países europeus);

capítulo 4 • 101
•  O fim da Guerra Fria, o colapso da antiga União Soviética e a mudança
parcial para uma economia de mercado na China foram o anúncio do fim do se-
gundo mundo e de um sistema global bipolar (comunismo versus capitalismo).
A derrocada dos países do então bloco socialista tornou o capitalismo como
padrão de modelo econômico;
•  O crescimento das economias dos países denominados “tigres asiáticos”
- Cingapura, Coreia do Sul, Taiwan (República da China) e Hong Kong (região
administrativa da República Popular da China) - e as tendências para a indus-
trialização em algumas partes da América Latina (Brasil), por exemplo, tem pa-
pel de destaque no campo das transformações econômicas ocorridas.

Todas estas transformações fragilizaram a autonomia dos estados-nações e a


sua capacidade para controlar as suas economias, as suas políticas sociais e as suas
culturas. As noções-chave das teorias do desenvolvimento, como “desenvolvido”,
“sub-desenvolvido”, “modernização”, “dependência”, tornaram-se problemáticas.
As transformações sociais afetam todos os tipos de sociedade, tanto em re-
giões desenvolvidas como em regiões menos desenvolvidas, no contexto da glo-
balização, da regionalização e da emergência de diversas formas de governação
supranacional.
A globalização tem dado origem a novas formas de diferenciação social, ao
nível internacional como à escala nacional. A polarização entre ricos e pobres,
e a exclusão social são problemas que afetam a maioria dos países, bem como
as relações entre eles.

4.5.1  O consumo e o consumismo

Não se pode tratar o tema das transformações nas relações sociais e econômi-
cas do cotidiano sem abordar a questão da sociedade de consumo e da tendên-
cia atual ao consumismo.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra “Vida Para Consumo – A
transformação das pessoas em mercadoria” analisa como a sociedade baseada
no consumismo eclodiu nas últimas décadas em substituição a anterior socie-
dade de produtores. Considera o autor que as próprias pessoas se transforma-
ram em mercadorias na intenção de serem aceitas no espaço social e, assim,
conseguirem visibilidade numa sociedade onde, a tendência geral é que tudo
se torne efêmero.

102 • capítulo 4
ZYGMUNT BAUMAN (Poznań, 19 de novembro
de 1925) é um sociólogo polonês. Iniciou sua
carreira na Universidade de Varsóvia, de onde foi
afastado em 1968, após ter vários livros e artigos
censurados. Emigrou então da Polônia, por moti-
vo de perseguições antissemitas, e na Grã-Bre-
tanha tornou-se professor titular da Universida-
de de Leeds (1971 em diante). De acordo com
Bauman, cada vez mais a sociedade em geral,
tem menos contatos entre os indivíduos e que
duram menos. Uma das suas frases, em portu-
guês se traduzem que "as relações escorrem pelos vãos dos dedos". E que os valores
estão se perdendo, diante disso, o sociólogo revela que não é necessário buscar as-
pectos positivos do passado, mas sim redefinir valores atuais.

Isto porque, na atualidade os sites de redes influenciam, em particular, a


vida dos jovens, exibindo seus perfis para relacionamentos virtuais on-line,
numa conjuntura em que os indivíduos literalmente se despem e exibem seu fí-
sico, seu psíquico e seu social como forma de garantir a aceitação social. Dessa
forma, as próprias pessoas e suas imagens se transformam em mercadorias
como se fossem produtos expostos, à venda, uma espécie de autopromoção,
que se valem do consumo para que sejam atraentes e desejadas. Assim, usam
roupas, calçados e outros produtos de marca, num processo de consumismo
no qual ao mesmo tempo em que promovem as mercadorias, também são pro-
movidas por elas.
Ghizzo (2010, p. 209), em resenha realizada sobre a retro referida obra de
Bauman, aponta que:
“ Para Bauman, na década de 1920 iniciou-se a transformação da socieda-
de de produtores em sociedade de consumidores, concluída nos anos 1970 e
condicionada pela comodificação e recomodificação do capital e do trabalho,
envolvendo desregulamentações e privatizações contínuas e profundas. A reco-
modificação do trabalho foi favorecida ainda pela terceirização que tem levado
o capitalismo a desejar relações flutuantes, flexíveis e até mesmo descartáveis.
Para o autor, a sociedade de consumo é o encontro de potenciais consumido-
res com potenciais objetos de consumo numa rede de relações e interações

capítulo 4 • 103
humanas e é no bojo destas relações que o espaço social configura-se em es-
paço de contatos e de segregação. Por isso o consumo torna-se espaço de sobe-
rania, quando se faz valer de virtudes, de raciocínios e de autonomia, além da
alienação”.

4.6  Sociologia jurídica e desvio social: o caso


brasileiro e a economia global do crime.

A Sociologia Jurídica ao abordar a temática do desvio social está a se referir a


um fenômeno social complexo e na maioria das vezes confuso, que levanta uma
série de questões em torno dos atributos que, via de regra, são elencados e po-
dem ser utilizados quando se concebe a noção de desvio social.
Antes, porém, é importante demarcar a distinção entre criminalidade e des-
vio social. A criminalidade é uma derivação do desvio social, pois nem todos os
comportamentos que são rotulados como desviados não podem ser automati-
camente rotulados criminosos. Então, o desvio social inclui quebrar regras for-
mais e informais. Na sociedade moderna o comportamento criminal é bem es-
pecífico. Comportamentos criminais e não criminais são subjetivos e flexíveis.
Inicialmente, existe uma explicação para o desvio social que reflete a con-
cepção funcionalista da sociedade (Parsons) e que reflete a teoria da anomia de
Durkheim, segundo a qual o desvio social é uma violação da norma ou das re-
gras de comportamento esperado. O controle social, nesse caso, aparece como
uma reação que ocorre após a violação da norma. Por esta visão, o controle so-
cial que o direito promove é coercitivo mas ocorre a posteriori, promovendo
a reafirmação dos valores sociais tutelados pelo sistema, responsáveis pela a
coesão e a ordem social.
Numa outra concepção funcionalista da sociedade, Robert Merton conce-
be o desvio social como o resultado de um erro da estrutura do sistema social.
Mais precisamente, como o resultado de uma estruturação insuficiente das ex-
pectativas sociais. Isso significa que não se trata apenas de um erro no proces-
so de "socialização" como proposto por Parsons, e, por isso, de uma situação
excepcional.
O autor aponta que o elemento econômico apresenta uma importância
muito grande na formação do conceito de sucesso nos EUA, e assim desenvol-
veu sua tese:

104 • capítulo 4
•  em toda sociedade há metas sociais a serem alcançadas, estendendo-se
como metas, em uma sociedade capitalista, o sucesso na vida, sendo esta tra-
duzida como fortuna, poder, prestígio, popularidade etc;
•  para atingir as metas há os meios socialmente prescritos para atingi-los;
•  os meios existentes além de insuficientes, não estão ao alcance de todos,
levando ao desequilíbrio entre os meios e as metas. Resulta daí um desajusta-
mento, um descompasso entre fins sugeridos a todos e insistentemente esti-
mulados (metas) e os recursos (meios) oferecidos pela sociedade para alcançar
aqueles objetivos.

Segundo Merton, o fracasso em atingir as metas culturais devido à insufici-


ência dos meios institucionalizados pode produzir o que ele denomina de ano-
mia: manifestação de um comportamento no qual as “regras do jogo social”
são abandonadas ou contornadas. O indivíduo não respeita as regras de com-
portamento que indicam os meios de ação socialmente aceitos. Surge então o
desvio, isto é, o comportamento desviante.
O exemplo típico envolve a criminalidade, mas também podem ser incluí-
das as faltas disciplinares, os comportamentos não convencionais e os que de-
monstram desinteresse pelas metas culturais. Em todos estes casos se percebe
a inobservância das regras de conduta social
A teoria desenvolvida por Merton significou um grande avanço na análi-
se do desvio social (anomia), e isto em razão de ter sido o primeiro, depois de
Durkheim, a se dedicar ao tema e por ter desenvolvido o conceito de desvio so-
cial em consonância com os problemas da sociedade moderna, sendo reconhe-
cido mundialmente.
Essa teoria explica porque os membros das classes desfavorecidas cometem
a maior parte das infrações penais: sendo excluídos do circuito dos meios ins-
titucionalizados para atingir a riqueza, recorrem à delinquência para realizar
os objetivos que a sociedade difunde. Em geral, a delinquência por motivos
econômicos pode ser bem explicada através da teoria da anomia de Merton.
O mesmo acontece com os crimes de origem política (terrorismo, manifesta-
ções violentas, ocupações, saques) que decorrem de uma conduta de rebelião.
Finalmente o modelo de evasão explica comportamentos desviantes autodes-
trutivos como o alcoolismo ou a toxicodependência.

capítulo 4 • 105
Por outro lado essa teoria é alvo de muitas críticas. A principal sustenta que
o autor entende as condutas de inovação, ritualismo, evasão e rebelião como
manifestação de uma disfunção dentro do sistema social. O autor parte da ideia
de haver um equilíbrio social e considera o desvio como manifestação patoló-
gica, apesar de reconhecer a contribuição do sistema para a produção do com-
portamento desviante.
Os teóricos da anomia identificam no comportamento desviante, especial-
mente o rebelde e inovados, um incentivo à mudança social, ou então conside-
ram esse comportamento como consequência de mudanças sociais que deso-
rientam os indivíduos.
Todavia, cumpre dizer mais uma vez que se tratam de teorias que devem ser
respeitadas, mas que estão longe de ser a verdade absoluta.
Uma outra perspectiva, mais atual, é a subjetivista que coloca mais evidên-
cia às reações sociais a um comportamento do que tentar determinar o que seja
o desvio social em si. Ou seja, o desvio não existe isolado, há de um lado aque-
les que são os detentores do poder e que estabelecem as normas. Mas, quando
essas normas não são aplicadas adequadamente torna-se difícil rotular qual-
quer comportamento de desviado. Então, a tarefa é buscar compreender como
a sociedade estabelece o que é desvio, e o que essas determinações ou critérios
demonstram sobre a própria sociedade.
Esta maneira de explicar o comportamento de desvio, defendia por Becker
(2008), consiste em entender o desvio social como resultado de um processo
social de rotulação ou de estigmatização social (labelling).
Assim, se revela fundamental para os indivíduos que examinem os seus
ideais conscientes ou subconscientes sobre desvio social. Na medida em que
rotular um comportamento como de desvio serve apenas para categorizar, não
para o explicar.
Ou seja, o desvio é uma resposta ao próprio controle social.

4.6.1  Desvio social: o caso brasileiro

Silva Filho (2015), em texto intitulado “A Violência no Brasil”, traz dados quanti-
tativos importantes sobre a situação da materialização do desvio social no país
e elenca uma série de causas justificadoras desses números, propondo ações
que se implementadas contribuiriam para a redução e melhoria desse quadro.
Abaixo, alguns trechos de seu texto:

106 • capítulo 4
“Trezentos milhões de reais por dia é o custo estimado da violência no
Brasil, o equivalente ao orçamento anual do Fundo Nacional de Segurança
Pública, e um valor superior ao envolvido na reforma da Previdência que tan-
to mobilizou os governos. Esses valores não contabilizam o sofrimento físico
e psicológico das vítimas da violência brasileira, uma das mais dramáticas do
mundo. Com 3% da população mundial o Brasil concentra 9% dos homicídios
cometidos no planeta. Os homicídios cresceram 29% na década passada e entre
os jovens esse crescimento foi de 48%. As mortes violentas de jovens aqui são 88
vezes maiores do que na França. E poucos países sofrem as ações de terrorismo
urbano como as praticadas por traficantes no Rio de Janeiro.
Alguns indicadores mostram a precariedade dos sistemas de contenção da
violência. Cerca de 2.000 roubos ocorrem diariamente na Grande São Paulo e
em menos de 3% os assaltantes são presos no momento do crime. Se mesmo as-
sim há um explosivo crescimento de nossa população carcerária é porque não
basta prender. As estratégias reativas da polícia e os métodos obsoletos de in-
vestigação não estão conseguindo conter significativamente o grande volume
de crimes. No Rio de Janeiro, apenas 1% dos homicídios chega a ser esclarecido
pelos trabalhos de investigação, segundo revelação do Ministério Público. Se
essa "eficiência" da polícia e da justiça for dobrada, a um custo impagável, o vo-
lume de crimes mal será afetado. Esse retrato da impotência de nosso sistema
de controle criminal é revelador da necessidade de uma profunda reforma no
sistema de prevenção criminal e não apenas isso, é necessário que as causas da
violência também sejas adequadamente tratadas, sem o que a crise da seguran-
ça pública no País não será alterada significativamente.
Causas da violência:
Entre as principais causas da violência no país, pode-se citar:

•  As múltiplas carências das populações de baixa renda, precariamente as-


sistidas nas periferias das grandes cidades, tornam seus integrantes, especial-
mente os jovens, suscetíveis de escolha de vias ilegais como forma de sobrevi-
vência ou adaptação às pressões sociais.
•  A opção ilegal é favorecida pela tolerância cultural aos desvios sociais e pelas
deficiências de nossas instituições de controle social: polícia ineficiente, legislação
criminal defasada (o que gera impunidade), estrutura e processos judiciários obso-
letos, sistema prisional caótico. A interação entre essas deficiências institucionais
enfraquece sobremaneira o poder inibitório do sistema de justiça criminal.

capítulo 4 • 107
•  De maneira geral as polícias têm treinamento deficiente, salários incom-
patíveis com a importância de suas funções e padecem de grave vulnerabilida-
de à corrupção. A ineficiência da ação policial na contenção dos crimes, assim
como o excessivo número de mortes de civis e de policiais, decorre dessas defi-
ciências e do emprego de estratégias policiais meramente reativas e frequente-
mente repressivas.
•  O emprego de tecnologia de informação ainda é incipiente, dificultando
o diagnóstico e o planejamento operacional eficiente para a redução de pontos
de criminalidade. Nesse planejamento são precárias as iniciativas de integra-
ção entre os esforços policiais e as autoridades locais para promover esforços
conjuntos de prevenção e redução dos índices de violência.

Possíveis medidas contra a violência:

1. Realização de projetos sociais com intuito de diminuir a desigualdade


social. Abrindo outros caminhos, além dos caminhos criminosos que fomen-
tam a violência, à população de baixa renda (principalmente aos jovens). Por
exemplo: É fato que, hoje, a Informática é um pré-requisito básico para as pes-
soas que disputam um lugar no mercado de trabalho. No entanto, grande parte
da população não tem condições financeiras para adquirir este conhecimen-
to. Uma primeira forma de ajudar, seria oferecendo condições a estas pesso-
as de disputarem um emprego, através da disseminação do conhecimento em
Informática.
2. Criação de um instituto de estudos e pesquisas de segurança pública
para desenvolver pesquisas sobre o controle da violência e promover o desen-
volvimento de modelos de organização, de gestão e de processos mais eficien-
tes e eficazes para as polícias. Outra função importante desse instituto seria o
planejamento e coordenação de programas de formação e capacitação das polí-
cias, e, para tanto, deveria assumir a direção da Academia Nacional de Polícia”.

4.6.2  A economia global do crime

Manuel Castells, em sua obra “Fim de milênio”(1999) dedica o terceiro capítu-


lo, intitulado “A conexão perversa: a economia global do crime”, a tecer consi-
derações a respeito do crime e sua atual acepção em caráter organizado global.

108 • capítulo 4
MANUEL CASTELLS OLIVÁN (Hellín, 1942) é um
sociólogo espanhol. Entre 1967 e 1979 lecionou
na Universidade de Paris, primeiro no campus de
Nanterre e, em 1970, na "École des Hautes Études
en Sciences Sociales". No livro "A sociedade em
rede", o autor defende o conceito de "capitalismo
informacional".
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Castells)

Para Castells (1999), a prática do crime é tão antiga quanto a própria huma-
nidade. Mas o crime global, com a formação de redes entre influentes organiza-
ções criminosas e seus associados e atividades partilhadas mundialmente, re-
vela-se um novo fenômeno que compromete fortemente as economias mundial
e nacional, a política, a segurança e, em última instância, todas as sociedades.
As principais atividades promovidas pelo crime organizado envolvem o tráfico
- de drogas, armas, material nuclear, mulheres e crianças, órgãos e tecidos hu-
manos -, o contrabando de imigrantes ilegais e de armas, e a lavagem de dinhei-
ro. O autor reconhece que, apesar de o tráfico de drogas ser a atividade ilícita
mais importante do crime global, mantendo ramificações e contatos por todo o
mundo, o contrabando de armas também se revela um mercado extremamente
lucrativo. Segundo Castells (1999), o centro desse sistema é representado pela
lavagem de dinheiro, de centenas de bilhões (quiçá trilhões) de dólares. Redes
de comércio internacional são alimentadas por esquemas financeiros comple-
xos que instituem a vinculação entre a economia do crime e a economia formal,
adentrando nas imbricadas teias dos mercados financeiros e constituindo um
elemento ambiguamente fundamental e incerto na atual economia global, ca-
racterizada por sua debilidade e inconstância.
Nas últimas décadas, as organizações criminosas vêm assumindo um ca-
ráter cada vez mais transnacional em suas operações, muito devido à própria
tendência globalizante da economia e em razão das novas tecnologias de comu-
nicações e transportes. O autor faz referência à Conferência realizada pela ONU
em 1994 sobre o crime global organizado que aferiu que o comércio global de
drogas tenha atingido a cifra de US$ 500 bilhões por ano; ou seja, foi maior que

capítulo 4 • 109
o valor de todas as transações comerciais mundiais do comércio do petróleo.
Em relação aos lucros globais originários de todos os tipos de atividades ilegais
globais, esses foram orçados, àquela época, em nada menos que US$ 750 bi-
lhões ao ano. Imagine em quanto estará esse valor nos dias de hoje?
Para Castells (1999), a globalização gerou uma grande revolução na estraté-
gia institucional do crime organizado. O autor exemplifica afirmando que es-
conderijos seguros ou relativamente seguros vêm sendo encontrados em todo o
planeta: “pequenos (Aruba), médios(Colômbia), grandes (México) ou enormes
(Rússia)”, entre muitos outros. Além disso, a grande mobilidade e extrema fle-
xibilidade das redes lhes permite livrar-se dos ordenamentos jurídicos nacio-
nais e dos procedimentos rigorosos necessários à cooperação entre as polícias
dos diversos países.
A reação do Estados democráticos sitiados pelo crime global, como forma
de autodefesa, tem se materializado em medidas que acabam por comprometer
as liberdades democráticas e revelam insegurança. Essa situação combinada
com a influência (inclusive, política) crescente do crime global pode provocar
um retrocesso significativo dos direitos, valores e instituições democráticas, na
medida em que a influência do crime organizado não se dá apenas a partir de
pontos externos às fronteiras nacionais. Esse mal está fazendo o Estado demo-
crático ruir por dentro.
Detalhe extremamente relevante aponta pelo autor indica que quanto mais
o crime organizado se globaliza, mais seus componentes, os mais importantes,
valorizam sua identidade cultural. Ao assim proceder, preservam suas bases ét-
nicas, culturais e, sempre que possível, territoriais (No Brasil é sintomática a
influência do crime organizado em demonstrações culturais como o carnaval
e as escolas de samba). Aí reside sua força. É possível que as redes criminosas
estejam, inclusive, à frente das empresas multi e transnacionais buscando aliar
identidade cultural a negócios globais.
(Adaptado do site: https://www.academia.edu/2084867/AN%C3%81LISE_
DO_LIVRO_FIM_DE_MIL%C3%8ANIO, acesso em 06 mai 2015)

Síntese

Neste capítulo você:


•  Conheceu alguns dos fatores responsáveis pela transformação
sócio-jurídica.

110 • capítulo 4
•  Tomou conhecimento do conceito e da importância da Opinião Pública
para a Sociologia Jurídica e para o Direito.
•  Aprendeu sobre a relevância dos movimentos sociais na sociedade
contemporânea.
•  Conheceu as questões que envolvem as relações de gênero e os novos ar-
ranjos familiares.
•  Distinguiu as especificidades das questões relacionadas às transforma-
ções ocorridas nas relações sociais e econômicas do cotidiano.
•  Conheceu as diversas teorias e representações a respeito do desvio social
e o que significa a economia global do crime num mundo globalizado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BAUMAN, Zygmunt, Vida para consumo: a transformação das pessoas em
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CAFFREY, Susan and MUNDY Gary. Sociology of Crime and Deviance: Selected Issues, 1995Eds.
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capítulo 4 • 111
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112 • capítulo 4
5
Questões Sócio-
Jurídicas no Mundo
Globalizado
Este último capítulo aborda questões emergentes da realidade atual relativas
às questões sociais e jurídicas inerentes a um mundo globalizado.
As mudanças no mundo globalizado afetam diretamente o direito na me-
dida em que a sociedade contemporânea passa por um período no qual es-
tamos deixando a ordem interestatal moderna para trás e uma nova ordem
mundial está sendo construída.
Nas palavras de Giácomo Marramao, professor de Filosofia Política na
Universidade de Roma III “ Há um sistema de negociação entre grupos so-
ciais que demonstra que o direito não é o produto, como o chamava Nietzs-
che, do monstro frio. O direito é um produto da dinâmica social, da dinâmica
de trocas socioculturais e não somente um produto da vontade soberana. Não
há mais monopólio da decisão. Não há mais monopólio das fontes de direito,
há uma pluralização das fontes de direito”.
Esta nova ordem mundial que se constrói leva a novos desafios: a preser-
vação do meio ambiente, a flexibilização das relações de trabalho, o direito à
diferença que diz respeito à sociodiversidade e às minorias, a defesa da demo-
cracia participativa e a luta pela efetividade dos Direitos Humanos, contra a
exclusão social.

OBJETIVOS
•  Compreender o processo de mundialização do Direito.
•  Distinguir os conceitos relativos à fragmentação, hegemonia e participação política na socie-
dade global.
•  Conhecer os novos desafios globais relativos, aos trabalhadores e ao meio ambiente.
•  Dimensionar o grau de relevância das questões sobre a biodiversidade.
•  Reconhecer a gravidade da exclusão social no cenário das sociedades contemporâneas.

114 • capítulo 5
5.1  Sociedade global e direito.
Fala-se muito no advento de uma sociedade global como consequência de um
processo de globalização, processo que para muitos teria começado com o pe-
ríodo das grandes navegações realizadas pelas então potências mundiais, Por-
tugal e Espanha, no século XV, mas que se intensificou e adquiriu novas feições
nas últimas três décadas do século XX.
Essas novas feições estão diretamente ligadas aos avanços tremendos ocor-
ridos da junção entre a ciência, a técnica e a informação que permitiram desco-
bertas até então inconcebíveis: os avanços biotecnológicos, a robótica, o domí-
nio do espaço virtual e das telecomunicações via satélite, são alguns exemplos.

GUERRA FRIA
A guerra fria é a designação dada ao conflito político-ideológico entre os Estados Uni-
dos (EUA), defensores do capitalismo, e a União Soviética (URSS), defensora de uma
forma de socialismo. Não existe um consenso sobre a data exata do início da Guerra
Fria. Para alguns estudiosos, o marco simbólico foi a explosão nuclear sobre as cidades
japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. Outros acreditam que seu
início data de fevereiro de 1947, quando o presidente norte-americano Harry Truman
lançou no Congresso dos Estados Unidos a Doutrina Truman, que previa uma luta sem
tréguas contra a expansão comunista no mundo. E há também estudiosos que indi-
cam a divisão da Alemanha em dois Estados, em outubro de 1949. O surgimento da
Alemanha Oriental, socialista, estimulou a criação de alianças militares dos dois lados,
tornando oficial a divisão da Europa em dois blocos antagônicos, o que poderia ser o
marco inicial da Guerra Fria.

Em seu livro intitulado Sociedade Global, Octavio Ianni aponta, dois even-
tos cronológicos e políticos que serviram como ponto de partida para as pro-
fundas transformações que estão em curso na sociedade mundial: o início da
chamada Guerra Fria (1946) e a queda do Muro de Berlim (1989). A elas se pode
acrescentar uma outra consequência do fim da Segunda Guerra Mundial, além
da Guerra Fria: o advento da sociedade de massas e a criação da mídia.
A Guerra Fria foi superada, muito em função da crise e posterior ruptura do
bloco socialista, a partir da queda do Muro de Berlim.

capítulo 5 • 115
Esse processo proporcionou uma verdadeira “mundialização” do espaço
geográfico do planeta e o controle do tempo, fenômeno que vai muito além dos
limites das fronteiras dos Estados- nacionais (países) e que alcança e promove
também a universalização de ideias, dos valores, padrões e procedimentos, tan-
to e especialmente nos aspectos da economia, como no quadro social, político,
científico, informacional, cultural e ecológico desses Estados atingidos.
Como consequência, tem-se um mundo cada vez mais conectado, o que
provoca a impressão de que o planeta está cada vez menor. O progresso con-
quistado no campo das telecomunicações e da informática permitem que ima-
gens em tempo real possam ser vistas em todas as partes do planeta, encurtan-
do tanto o tempo como a distância em termos de acesso à comunicação.
Mas todo esse processo não se dá sem contradições: Uma parte da popula-
ção do planeta, em especial nos países pertencentes ao denominado Primeiro
Mundo, incorpora ao seu cotidiano humano a informática, os computadores e
tablets, a internet, o telefone celular, os cartões magnéticos, a medicina nucle-
ar, etc.
Enquanto isso, outra parcela considerável de pessoas vive na mais extrema
miséria e no atraso tecnológico. Para se ter uma ideia, atualmente 1 em cada 8
pessoas no mundo não come o suficiente para se manter saudável, segundo a
FAO (Food and Agricuture Organization). Isso significa que 842 milhões de pes-
soas ainda não comem satisfatoriamente, ou seja, passam fome. Ou seja, num
mundo considerado global e majoritariamente capitalista, pelo menos 12% da
população mundial passa fome a níveis críticos.
Além do que, se era da comunicação via satélite diminuiu os limites entre as
nações, também deu origem a problemas comuns entre os povos.
Um desses problemas está relacionado aos aspectos decorrentes das mu-
danças na natureza das operações tecnológicas, consequência do processo de
robotização e da informatização. São mudanças que possibilitaram uma fan-
tástica produção de riquezas, sustentadas e estimuladas pelas grandes corpo-
rações mundiais, mas que trouxeram em seu bojo a concentração injusta da
renda e o consumismo, com mais um componente para o aumento das desi-
gualdades entre ricos e pobres.
Esse processo leva ao aumento da discriminação e da exclusão, e o enfraque-
cimento da solidariedade. Tem-se, de um lado os países de primeiro mundo,
que possuem o domínio e controle dos processos tecno-científicos, econômicos

116 • capítulo 5
e políticos e, de outro, uma população dos países não desenvolvidos (mormen-
te os povos africanos) vivendo em situação de sub-existência, quando não de
miséria, mas que querem fazer parte dessa nova condição global.
Um exemplo típico é o caso dos milhares refugiados dos países africanos
que seja pelo medo da guerra, seja pelo sonho de uma vida melhor, diariamente
colocam suas vidas em risco e buscam chegar às costas da Europa utilizando
frágeis e superlotadas embarcações.
As consequências no que diz respeito ao direito internacional são as mais
díspares, pois podem ser recebidos como refugiados e obter abrigo, como tam-
bém podem ser simplesmente deportados para seus países de origem, retor-
nando aos caos político e à miséria e ao desrespeito a seus direitos mais funda-
mentais como seres humanos.
Uma outra contradição diz respeito aos temas ligados à ecologia. Relatórios
e pesquisas realizadas por vários organismos internacionais - ONU, Cruz
Vermelha Internacional, e diversas ONGs -, apontam para uma preocupação
crescente com o estado global do planeta.
Em nome da ciência, do progresso, da tecnologia, da economia e da polí-
tica cada vez mais se está contaminado o ar que se respira, os reservatórios da
água potável, o solo, por conta dos agrotóxicos e a riqueza da biodiversidade do
planeta.
No entanto, tanto as questões ligadas ás violações contra os recursos natu-
rais, como aos Direitos Humanos, quanto a pressão econômica da globalização
dos mercados financeiros apontam no sentido de uma uniformização dos or-
denamentos jurídicos nacionais.
A necessidade de uma maior eficiência do Poder Judiciário já foi tema de
debates calorosos no Banco Mundial através do documento 319 (estudo sobre
o Judiciário na América Latina e no Caribe), publicado em meados de 1996, nos
EUA e que sinaliza pela aproximação dos ordenamentos jurídicos de países em
desenvolvimento dos chamados países desenvolvidos.
O referido documento internacional ainda faz alusão à necessidade efetiva
de alterações legislativas e de procedimentos administrativos bem como nos
códigos de processo a fim de que o processamento das demandas seja mais
célere e eficiente sem abrir mão da segurança e certeza jurídica.

capítulo 5 • 117
5.2  Sociologia jurídica e a luta pela
mundialização do direito.

Os processos de expansão do mercado econômico, bem como da universaliza-


ção dos usos e costumes, por conta da globalização, provocam a demanda por
uma uniformidade normativa nos diversos Estados envolvidos nesse processo.
Isso importa na aceitação da adoção de ordenamentos normativos similares
com a intenção de facilitar as relações econômicas e até mesmo políticas, em
caráter internacional. Por outro lado, ainda que a assimilação de normas e de-
cisões de tribunais internacionais seja uma realidade – por exemplo a Corte
Penal Internacional (ou Tribunal Penal Internacional – TPI), incorporada pelo
Brasil através do Decreto 4.388/02 -, é necessário respeitar as particularidades
soberanas de cada Estado e região.
Isto se deve ao fato de que a síntese dos dois grandes sistemas jurídicos
(Common Law e Civil Law) ainda não está sendo possível em sua plenitude.
Por isso se trata, nesta fase do direito em termos mundiais, da busca de uma
harmonização dos métodos no sentido da aproximação dos sistemas, sem que
signifique a eliminação por completo as diferenças.
De toda sorte, nota-se que o Direito precisa se adequar a uma tendência que
cada vez mais se consolida, na medida em que as fronteiras nacionais já estão
sendo superadas seja pelo comércio virtual, seja pelos avanços no campo da
biomedicina, seja pelas novas práticas culturais globais. Assim, o aspecto nor-
mativo carece dar respostas as expectativas e conflitos derivados desse cenário
global de relações mundializadas.
Delmas-Marty (2003, p.148) promove a seguinte indagação:
“[…] é desejável promover um direito mundial? Se o direito interno é insufi-
ciente, não parece que o direito internacional tradicional, limitado às relações
entre Estados, aporte repostas satisfatórias… Além das questões de delimita-
ção de território entre ‘internos’, como se designa os especialistas do direito
interno, e ‘internacionalistas’ especializados em direito internacional é, na re-
alidade, de uma quebra de fronteira das disciplinas jurídicas que se tem neces-
sidade aqui, agregando-se a necessidade invocada mais acima, de uma quebra
entre especialistas de direito comparado e especialistas de direito nacional.”

118 • capítulo 5
Após a Segunda Guerra Mundial houve um movimento, motivado pela ur-
gência humanitária, no sentido da concessão de capacidade normativa pelos
Estados aos organismos internacionais. Isso fica evidente no advento da Carta
da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1945, que é o ponto de partida
para uma capacidade normativa que tem por base política não o poder sobera-
no de um Estado em si, mas a reunião de vontades dos Estados-nacionais, de
forma voluntária, na busca da promoção de ações mínimas visando a paz e a se-
gurança mundiais no início da chamada Guerra Fria. São estabelecidas sanções
para obrigar as nações ratificadoras dos pactos, para o seu fiel cumprimento.
Esse movimento de internacionalização da capacidade normativa di-
fundiu-se com a publicação de várias outras normas de caráter internacio-
nal, como é o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948,
do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos de dezembro de 1966, e o
Protocolo de Kyoto, em vigor desde fevereiro de 2005.
Questões atinentes aos Direitos Humanos, ao direito econômico e ambien-
tal fazem parte da maior parte do conteúdo dessas normas internacionais.
Por outro lado, a tendência vai no sentido de uma gradativa aproximação
metodológica entre o sistema da Common Law e o da Civil Law (romano-ger-
mânica), ou seja, o sistema que tem por base o precedente judiciário e o siste-
ma cuja fonte mais importante do direito é a norma legal. Essa tendência refle-
te o cenário contemporâneo de uma sociedade globalizada constituindo uma
imensa aldeia onde desaparecem ou são desconsideradas antigas diferenças e
muito se aproximam dos anseios e necessidades e soluções para os conflitos.
Um exemplo muito relevante disto é a criação do instituto da Súmula
Vinculante pelo ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Emenda
Constitucional nº 45/04, que prevê, em seu art. 103-A, caput, a possibilidade
de uma súmula ter eficácia vinculante sobre decisões futuras e, com isso, ter
força de lei.
Já no que diz respeito às normas com validade internacional, constata-se a
existência de um elemento comum a tais direitos que os elegem a fazer parte de
um disciplinamento mundial uniforme: o fato de terem uma natureza difusa
muito grande e que o seu desrespeito importa em riscos globais. Um exemplo
disso são as violações ao meio ambiente (emanação de gases poluentes na at-
mosfera, derrubada sem controle das árvores, etc) responsáveis pelo acelerado
aquecimento do planeta. O certo é que tanto a queima de uma floresta, uma

capítulo 5 • 119
perseguição étnica ou um massacre genocida, em qualquer lugar do mundo,
são fatos que provocam reflexos negativos para toda a espécie humana, de
tal maneira que nesse sentido não há que se falar em nacionalidade, mas em
humanidade.

5.3  Fragmentação, hegemonia e participação


política na sociedade global

A participação política dos indivíduos na sociedade global apresenta-se como


um caminho, uma das principais vias alternativas, para o alcance da inser-
ção social e da diminuição das desigualdades econômicas reveladas pela
globalização.
O processo de globalização que se vivencia, objetivamente, por um lado aca-
bou com os limites geográficos, mas por outro, é de se constatar que não elimi-
nou problemas que também seguem sendo globais, como a fome, a miséria e
os problemas políticos de milhões de globalizados que vivem (ou sobrevivem)
abaixo da chamada linha da pobreza absoluta e à margem da cidadania.
A lógica neoliberal vai no sentido de afastar dos centros das decisões aque-
les indivíduos, cuja existência é tão marcada pelas carências que lhes limita a
própria capacidade de compreensão dos conceitos neoliberais; razão pela qual
não encontram pontos de referência que os possibilitem como agentes de in-
fluência política no processo global.
Não são poucas as dificuldades de participação política dos indivíduos na
sociedade globalizada e seus reflexos na construção de um processo de autono-
mia dos indivíduos na tomada dessas decisões numa sociedade global.
O problema da participação política dos indivíduos na globalização aparece
na análise do processo de influências das instituições sociais e se revela nas
dificuldades do uso da liberdade política para o enfrentamento dos desafios de
uma realidade que subjuga, destrói, cria e recria valores étnicos sociais e cultu-
rais excludentes e fragmentários.
O neoliberalismo é a expressão ideológica da globalização. Ao contrário do
que proclamam os princípios neoliberais, as diferenças sociais na globalização
exacerbam-se quanto maior for o nível alienante da exclusão social a que esteja
submetido o indivíduo.

120 • capítulo 5
A governabilidade na receita do neoliberalismo é alcançada por meio de uma
estratégia de máxima fragmentação (divisão) da sociedade. Uma sociedade di-
vidida (seja em grupos por seu poder aquisitivo, seja por razoes étnicas ou reli-
giosas, etc), na qual diferentes grupos minoritários não conseguem constituir-se
numa maioria capaz de questionar o sistema vigente, é a melhor fórmula para
enfraquecer as resistências para que o poder hegemônico atue sem problemas.
Esta é uma estratégia muito utilizada pela patronal em relação aos traba-
lhadores - dividi-los, diferenciando-os, separando-os quando não colocando-os
uns contra os outros em distintas categorias e formas de remuneração. Só que
no projeto neoliberal esta prática se estende a toda a sociedade.
Através do estímulo ao individualismo exacerbado e à intolerância o poder
hegemônico se vale de instrumentos (a mídia desempenha um importante
papel) para fomentar a construção de grupos sociais isolados uns dos outros.
Nesse processo é buscado que estes grupos lutem tão somente por objetivos
exclusivos e parciais, de modo a não promover adesão de outros grupos, levan-
do ao convencimento de que não existem objetivos comuns. Razão pela qual o
discurso difundido sobre o fim das ideologias e das das utopias sociais é extre-
mamente conveniente para que as pessoas percam tanto as esperanças quanto
o espirito de solidariedade e desenvolvam o raciocínio pífio do “farinha pouca,
meu pirão primeiro”.
Ao mesmo tempo em que são estimuladas práticas de enfrentamento entre
os distintos grupos, também se fomenta a cultura do naufrágio, do "salve-se
quem puder", que desconsidera qualquer tipo de solução coletiva. A tendência
é a de impedir a criação de espaços de encontro que possibilitem a criação de
objetivos que possam ser compartilhados por outros grupos, com margem a po-
tenciais acordos e alianças. A sociedade fragmentada implica em uma maioria -
e às vezes um povo inteiro - que perdeu o rumo de sua própria causa nacional. A
identidade nacional se perde, se liquefaz, numa alusão ao termo baumaniano.
Trata-se, pois, de uma estratégia do poder hegemônico que se reflete por
todo o planeta, que busca fragmentar a sociedade e impossibilitar, de um
modo absoluto, a construção de um conceito de maioria que possa questionar
o sistema tanto no âmbito interno quanto global.
Neste sistema visão individual e individualismo não significam autodeter-
minação, mas o seu contrário, a alienação e a subordinação à lógica imposta
por este. Razão pela qual a saída possível passa necessariamente pela da con-
quista da autonomia do indivíduo na globalização, como contraponto essencial

capítulo 5 • 121
para ascender à participação política. O domínio da autodeterminação, é o ins-
trumento para que o indivíduo possa enfrentar uma sociedade tecnocrática e
consumista, crescente, e que constantemente impõe novos e cada vez mais alie-
nantes regulamentos globais de comportamento.

5.4  Contornos globais dos novos desafios:


meio ambiente, relações de trabalho,
sociodiversidade e minorias.
Bernard Cassen, membro do Conselho internacional do Fórum Social Mun-
dial, afirma que existe uma crise em curso em relação ao sistema capitalista na
sua versão neoliberal e que tal crise apresenta “várias dimensões: a financeira,
monetária, alimentar e energética. Ela provoca contradições dentro do siste-
ma e coloca em xeque a hegemonia dos EUA e do Consenso de Washington,
principalmente na América Latina, onde figuras progressistas chegaram ao
poder. O recurso às nacionalizações feito por governos tão liberais quanto os
de Londres e Washington, o definhamento das instituições financeiras inter-
nacionais, a emergência de uma nova correlação de forças mundial multipolar,
o peso econômico e geopolítico dos países que integram o Bric (Brasil, Rússia,
Índia e China), as guerras no Cáucaso, os fracassos no Iraque e no Afeganistão,
as tensões com o Irã e a evolução de regimes políticos nacionais para formas
autoritárias na Europa são mudanças que nos levam a perguntar se o concei-
to que o neoliberalismo representava nos anos 90, englobando uma simbiose
entre política (governos, instituições multilaterais e elites), economia (atores
de mercado, instituições bancárias e financeiras) e ideologia (imprensa), ainda
tem atualmente a mesma pertinência.”
Segundo Cassen (2015) essa crise aponta no sentido de uma “falência to-
tal das políticas neoliberais e a necessidade do retorno do Estado como ga-
rantia de sobrevivência da economia e da manutenção de um mínimo de coe-
são social. Paradoxalmente, esta crise, que já vem se aprofundando há algum
tempo e poderia ter reforçado o “movimento dos movimentos”, provocou seu
enfraquecimento”.
Esta crise envolve, em especial, as questões pertinentes à própria sobrevi-
vência do planeta e de seus recursos naturais, na medida em que a busca sem

122 • capítulo 5
limites do lucro a qualquer custo levou à utilização dos recursos advindos da
natureza sem qualquer controle, aliada a uma cultura que coloca o meio am-
biente sempre em segundo plano, ainda que aparentemente haja uma preocu-
pação com a ecologia global.
Tem-se, por um lado, as grandes empresas ao redor do planeta poluindo
o ar, o solo, os rios e lagos, derrubando florestas e levando à extinção diversas
espécies tanto da flora quanto da fauna, mas não se pode olvidar a contribuição
individual nesse processo.
Um exemplo disso faz parte do dia a dia de todas as cidades brasileiras: ex-
perimente ir ao supermercado e procure quem se preocupa em levar consigo o
carrinho de feira ou sacolas de compras de material reciclável para evitar o uso
excessivo de bolsas de plástico? Este simples exemplo serve para demonstrar o
quanto a consciência da população ainda está alienada em relação a questão
ambiental.

5.4.1  Sociodiversidade e minorias

O neologismo sociodiversidade foi criado pela Antropologia e em sua origem


estava relacionado às comunidades indígenas encontradas no Brasil, com
hábitos e cultura próprios e que merecem ser respeitados e preservados. Aos
poucos este conceito foi se ampliando e hoje sociodiversidade significa a exis-
tência simultânea de grupos humanos que possuem recursos sociais próprios,
ou seja, cuja organização social está sedimentada por padrões próprios, que
envolvem modelos diferentes de autoridade política, de acesso e utilização do
espaço territorial, de hierarquias de valores éticos ou morais, etc.
A existência de culturas e grupos humanos diversos coexistindo num mun-
do globalizado ocasiona uma série de questões que envolvem desde os modos
de construção de uma sociedade democrática, plural e justa, até e ao mesmo
tempo, a conciliação do direito à diferença com o à direito igualdade.
Assim, falar em sociodiversidade significa destacar a questão da convivên-
cia dos diferentes com suas diferenças num contexto de tolerância e solidarie-
dade que consiga ultrapassar a violência, as hierarquias excludentes, o trata-
mento perverso, as desigualdades econômico-sociais.
Em nome de uma pretensa igualdade, comumente, as diferenças têm sido
desconsideradas ou relativizadas. Mundialmente os povos indígenas e os imi-
grantes estrangeiros tem sido os grupos sociais mais diretamente atingidos

capítulo 5 • 123
pelo processo de homogeneização ou padronização cultural que desconside-
ra suas especificidades culturais e tradições próprias. Mas, ao revés, posições
multiculturalistas radicais, que priorizam e estimulam o fetiche da diferença,
levam ao estabelecimento de políticas sociais que findam por criar profundas
desigualdades e injustiças. Assim, a busca do equilíbrio é o ideal, na medida em
que se revelam prejudiciais tanto a padronização cultural quanto a discrimina-
ção quando exacerbadas.
Objetivamente, o processo de globalização também traz em seu bojo uma
tendência de padronização cultural, na medida em que a sociedade consumis-
ta utiliza os meios de comunicação em massa para induzir o estabelecimento
de valores culturais artificialmente estabelecidos e que determinam o que e
como se deve comer vestir, assistir, ouvir, comprar e pensar.
Como forma de resistir a esse processo que desrespeita as diferenças e ni-
vela todos os indivíduos, existem tanto no nível interno (nacional) como no
internacional, diversos grupos que se distinguem pela defesa de suas práticas
culturais, de sua orientação sexual, de seus credos e etnias próprios. Esses são
grupos são denominados como minorias, correspondem a grupos sociais ou
mesmo nações que lutam na defesa de seus ideais. Os grupos sociais (negros,
mulheres, homossexuais, transgêneros, quilombolas, pessoas especiais, ido-
sos etc.) lutam pelo respeito à sua dignidade e cidadania; as nações (povos indí-
genas, palestinos, bascos etc.) almejam sua independência territorial, cultural,
religiosa e política.
O ponto em comum dessas minorias é situação de exclusão e/ou discrimi-
nação que provoca o surgimento de organizações (movimentos sociais) que
procuram conquistar a dignidade e respeito por meio de ações políticas.

5.4.2  Relações de trabalho e globalização

A globalização da economia e das relações de produção vem promovendo pro-


fundas e rápidas transformações no sistema capitalista contemporâneo pro-
movendo, segundo Hobsbawn (1995) três extraordinários fenômenos:

1. o processo de urbanização ocorrido entre as décadas de 50 e 70, fazen-


do com que a população das áreas rurais corresponda nos dias de hoje a uma
minoria na população mundial;
2. a intelectualização como um fenômeno de massa, com a multiplicação
do acesso à educação superior, ou mesmo secundária; e

124 • capítulo 5
3. o reposicionamento social da mulher, também entre as décadas de 50 e
70, sobretudo com sua inserção no mercado de trabalho.

O autor considera que esses fenômenos seriam importantes para demostrar


“(...) que as sociedades humanas, e as relações de pessoas dentro delas, passa-
ram por uma espécie de terremoto econômico, tecnológico e social na vida das
pessoas que mal chegaram à meia-idade”. (HOBSBAWN ,1995, p.214-5).
No que diz respeito, em específico, aos aspectos ligados à economia do
processo de globalização, ocorre uma internacionalização tanto do comporta-
mento como da ação dos agentes econômicos, caracterizada pelo movimento
acelerado e crescente do comércio internacional de bens, de serviços e de movi-
mentos dos capitais internacionais entre as fronteiras nacionais.
Uma comprovação desta tendência é apresentada por Baumann, ao apre-
sentar os dados da UNCTAD - sigla em inglês da Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento – no período compreendido entre 1950 e
1980, no qual a taxa média de crescimento anual do comércio mundial superou
o ritmo de crescimento da produção, “elevando o grau de abertura da maior
parte das economias” (1996, p. 40).
Albuquerque (2015) tece as seguintes considerações sobre a questão dos
efeitos da globalização nas relações do trabalho:
“ A partir da década de 80 alguns fatores, de ordem política e econômica,
alteraram a cena mundial: o advento da “sociedade informacional”, como de-
corrência dos avanços na microeletrônica, na robótica, na telemática; a glo-
balização econômica; a disseminação do neoliberalismo, impulsionado pelas
mudanças políticas internacionais desencadeadas com o desaparecimento,
no final dos anos 80, do bloco comunista, solapando a ameaça socialista. Tais
fatores contribuíram para desencadear a Terceira Revolução Industrial que,
novamente, acarretará mudanças no mundo do trabalho. Esta, sob diversos as-
pectos, difere das anteriores.
Ela traz consigo acelerado aumento da produtividade do trabalho, tanto
da indústria como em numerosos serviços, sobretudo dos que recolhem, pro-
cessam, transmitem e arquivam informações. [...] Além da substituição do
trabalho humano pelo computador, parece provável a crescente transferência
de uma série de operações das mãos de funcionários que atendem ao público
para o próprio usuário.[...] muitas atividades desconectadas do grande capital
monopolista passam a ser exercidas por pequenos empresários, trabalhadores

capítulo 5 • 125
autônomos, cooperativas de produção etc.; o que transforma um certo núme-
ro de postos de trabalho de ‘empregos’ formais em ocupações que deixam de
oferecer as garantias e os direitos habituais e de carregar os custos correspon-
dentes.[...] O que dá para admitir com razoável segurança é que ela afeta pro-
fundamente os processos de trabalho e, com toda certeza, expulsa do emprego
milhões de pessoas que cumprem tarefas rotineiras, que exigem um repertório
limitado de conhecimentos e, sobretudo, nenhuma necessidade de improvisar
em face de situações imprevistas.[ SINGER, Paul. Globalização e Desemprego:
diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998. p. 17-18..]
Todas essas mudanças tecnológicas “invadiram o universo fabril, inserin-
do-se e desenvolvendo-se nas relações de trabalho e de produção do capital.”[
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1999. p. 15]
Com o emprego da ciência como técnica produtiva, novas formas de organi-
zação produtiva surgem. Dentre as experiências mais expressivas, pode-se citar
o “toyotismo” ou “modelo japonês” ou “pós-fordismo”.(...)
Estas novas formas de organização do trabalho, não se pode deixar de enfati-
zar, estão plenamente ligadas ao neoliberalismo e à globalização. Demonstram,
destarte, o intento capitalista de perpetuar a exploração da classe operária, em
intensidade cada vez maior, tudo em nome da maximização do lucro. Por outro
lado, pretendem acabar com o conflito de classes – iludindo os trabalhadores,
que, agora, são designados de “colaboradores”, de que há identidade de inte-
resses entre o capital e o trabalho em busca do incremento da produtividade –
assim como os benefícios que a relação dialética entre elas poderia trazer para
os trabalhadores.

TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL


A Terceira Revolução Industrial começou em meados da década de 40, com o término
da Segunda Guerra Mundial e continua até os dias de hoje. Os Estados Unidos da
América, que se tornou a grande potência econômica deste período lideram esse pro-
cesso. Sua mais importante característica é o uso de tecnologias avançadas no sistema
de produção industrial.

126 • capítulo 5
A Terceira Revolução Industrial, nesse contexto, provocou drásticas mudan-
ças no universo do trabalho. Todas as revoluções industriais desencadearam o
aumento da produtividade, trazendo, como consequência, o desemprego tec-
nológico[SINGER, Paul. Globalização e Desemprego: diagnóstico e alternati-
vas. São Paulo: Contexto, 1998. p. 16.].
Todavia, a Terceira Revolução Industrial foi mais além: desencadeou, além
do desemprego tecnológico, o que Singer denomina de “descentralização do
capital”. Com os avanços na telemática, as grandes empresas verticalmente in-
tegradas, têm sido forçadas pelo mercado, em nome da diminuição dos custos
e aumento da produtividade, a desintegrarem-se, terceirizando diversos seto-
res produtivos, formando uma espécie de rede. Com isso, atividades antes de-
sempenhadas por empregados dessas empresas, agora passam a ser exercidas
por trabalhadores autônomos, temporários, pequenos empresários, sem as ga-
rantias e os direitos sociais e trabalhistas que antes possuíam, diminuindo os
postos de empregos formais [p.17-18].
E, aliada ao neoliberalismo, que propõe, com a não-intervenção do Estado,
o encolhimento dos mecanismos de efetivação dos direitos sociais, a Terceira
Revolução Industrial também opera mudanças, protagonizadas pelo Estado,
no sentido de flexibilizar direitos, desregulamentar a economia, privatizar em-
presas estatais.
O que se verifica, pois, no capitalismo contemporâneo, é a precarização das
relações de trabalho. Os novos postos de trabalho que surgem em virtude da
divisão internacional do trabalho e das inovações tecnológicas não mais ofere-
cem, na sua grande maioria, as garantias sociais e trabalhistas, conquistadas
pelos trabalhadores ao longo de anos de luta operária”.

5.5  Educação ambiental face às novas


políticas de preservação e desenvolvimento

A preocupação com a preservação do meio ambiente tem sido objeto de muitos


discursos de governantes, seminários e congressos nacionais e internacionais,
mas concretamente, o que se tem visto são ações que não correspondem em
termos de eficácia diante dos atentados sistemáticos ao ecossistema em todo o
mundo e, principalmente, nas nações mais desenvolvidas.

capítulo 5 • 127
O alto poder de risco ambiental é uma característica das sociedades atuais, nas
quais a exploração desenfreada dos recursos naturais está promovendo a rapina-
gem da natureza e de tudo que ela pode fornecer. A busca do lucro a qualquer custo
leva o homem a promover um sem número de eventos que põem não somente a
própria sobrevivência da espécie humana em risco, mas também a vida do planeta.
Os exemplos são inúmeros e são consequência direta de alguns processos
como a industrialização, a globalização, a lógica do lucro pelo lucro do sistema
capitalista e o consumismo desmedido, o crescimento populacional descon-
trolado, as condições precárias dos países subdesenvolvidos e a irresponsabili-
dade dos países desenvolvidos. Encontra-se, assim, comunidades que não pos-
suem uma estrutura mínima adequada para a construção de uma vida saudável
e com um mínimo de conforto e, por outro lado, comunidades que pouco se
interessam com um convívio mútuo em respeito com a natureza, na medida em
que se voltam exclusivamente para a riqueza material e para o conforto irres-
ponsável. Todas essas situações contribuem para a crise ambiental.
Diante disso, urge que se invista numa educação ambiental de maneira con-
sequente, através de políticas públicas – até porque o dever de tutelar o direito
à educação é do Estado - que implantem na sociedade a compreensão de que
consciência ambiental é pressuposto fundamental da cidadania, ou seja uma
nova consciência para os cidadãos.
A educação ambiental deve estar presente no dia a dia, seja nas escolas, na mí-
dia, pelos meios de comunicação de massa, nas empresas, dentro de casa. A edu-
cação pode cumprir a tarefa de despertar uma cidadania ecológica que parta do
pressuposto de que a todas as pessoas é garantido o direito a um meio ambiente
saudável e ecologicamente equilibrado, sem que isso signifique abrir mão do de-
senvolvimento, ou seja, é possível construir um desenvolvimento sustentável.

RELATÓRIO BRUNDTLAND
Encomendado pela assembleia geral da ONU em 1983 e publicado em 1987, faz
parte de uma série de iniciativas, anteriores à Agenda 21, as quais reafirmam uma visão
crítica do modelo de desenvolvimento adoptado pelos países industrializados e repro-
duzido pelas nações em desenvolvimento, e que ressaltam os riscos do uso excessivo
dos recursos naturais sem considerar a capacidade de suporte dos ecossistemas. O re-
latório aponta para a incompatibilidade entre desenvolvimento sustentável e os padrões
de produção e consumo vigentes.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Relat%C3%B3rio_Brundtland)

128 • capítulo 5
Miraglia e Murieta (2004) ao discorrer sobre o desenvolvimento sustentá-
vel, revelam que “Os custos ambientais gerados pelo desenvolvimento indus-
trial das sociedades humanas têm sido uma preocupação desde o século XIX.
Contudo, foi a partir da década de 1980, sob a égide do desenvolvimento expo-
nencial da revolução tecnológica e seus efeitos desastrosos na biosfera, que os
países centrais e agências multilaterais foram forçados a refletir sobre a for-
mulação de uma racionalidade alternativa ao industrialismo. O termo "desen-
volvimento sustentável" é produto desse debate e se popularizou no final da
década de oitenta com a publicação do Relatório Brundtland. Paralelamente,
no mesmo período, a noção "etnodesenvolvimento" apareceu com a função pri-
mordial de sublinhar a necessidade de respeitar “em conjunto com as conside-
rações ambientais” a diversidade sociocultural. São esforços que vêm tentando
articular em um único paradigma preocupações tanto ambientais e conserva-
cionistas quanto sociais e políticas, sem abrir mão da perspectiva de desenvol-
vimento econômico”.
Desenvolvimento sustentável e consciência ambiental são questões que an-
dam necessariamente juntas e exigem a existência de uma legislação ajustada e
eficaz. No Brasil, a legislação existe, mas a ausência de uma consciência ambien-
tal se revela como um dos maiores obstáculos para a implementação da legisla-
ção ambiental brasileira, que é uma das mais avançadas do mundo, a saber:
Constituição Federal de 1988 – É importante demarcar que antes mesmo
do advento da CF de 1988, o Brasil já dispunha de algumas leis que tratavam da
questão ambiental, como é o caso da lei no. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que
dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos
de formulação e aplicação, além do O Código Florestal, que é de 1965 e que já
previa sanções penais para os crimes cometidos contra o meio ambiente. Mas,
como sempre, o problema nacional não é a existência das leis, mas sua eficaz
implementação.
A Constituição de 1988 tem o mérito de constitucionalizar o processo e
institucionalizar a questão da tutela ambiental, ao abrir um capítulo próprio a
regulamentação normativa do meio ambiente no qual põe ênfase na necessida-
de de sua defesa e preservação e estabelecendo os mecanismos constitucionais
para tal. Mas, mais uma vez, a grande questão reconhecida pelos especialistas
no assunto, é conseguir que essas normas saiam do papel e sejam aplicadas de
fato, na medida em que muitas dessas normas sequer foram regulamentadas, a
exemplo da que tem por objeto a proteção de nossa biodiversidade, considera-
da a mais rica em biodiversidade do mundo.

capítulo 5 • 129
Lei de Crimes Ambientais – A lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1988, dispõe
sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades
lesivas ao meio ambiente, à fauna e à flora no país. Prevê, entre outras, penas
restritivas de direitos da pessoa jurídica, multas que chegam a 50 milhões de
reais para diversos tipos de infrações: pesca em locais proibidos, crimes con-
tra o patrimônio cultural e ambiental, soltura de balões, pichações, caça ilegal,
obras ou qualquer outra atividade poluidora, queimadas e desmatamento.

5.6  A exclusão social e os desafios para o


direito.

Nas palavras de Sarah Escorel (2015) “A origem mais contemporânea do ter-


mo exclusão social é atribuída ao título do livro de René Lenoir, Les exclus: un
français sur dix (‘Os excluídos: um em cada dez franceses’), publicado em 1974,
ainda que o trabalho não contivesse qualquer elaboração teórica do conceito de
exclusão social. A preocupação do então Secretário de Ação Social do governo
gaullista de Jacques Chirac concentrava-se nos ‘inadaptados sociais’, nos po-
bres que precisavam ser amparados por ações governamentais, representando
gastos sociais crescentes.
(...)
Em 1976, na França, o processo de pauperização começou a atingir não ape-
nas os grupos populacionais ‘tradicionalmente marginalizados’ (imigrantes e
moradores das periferias), mas também os que até então pareciam inseridos
socialmente e usufruindo, mesmo que nas margens do sistema capitalista, dos
benefícios do desenvolvimento econômico e da proteção social. A partir de me-
ados dos anos 80, frente a uma situação objetiva de aumento das desigualdades
e de mudança do perfil de pobreza, a noção de exclusão social estabeleceu-se
no debate público e acadêmico e foi em solo francês que o tema adquiriu pre-
ponderância e estatuto teórico, relevância e publicidade.
Exclusão social passou a ser usado para denominar o fenômeno integrante
de uma “nova questão social” (Rosanvallon, 1995; Castel, 1991, 1998), proble-
mática específica do final de século XX, cujo núcleo duro foi identificado na cri-
se do assalariamento como mecanismo de inserção social. Essa crise, por sua

130 • capítulo 5
vez, era oriunda de mudanças no processo produtivo e na dinâmica de acumu-
lação capitalista gerando a diminuição de empregos, inviabilizando essa via de
constituição de solidariedades e de inserção social, constituindo os ’inválidos
pela conjuntura’ e provocando fraturas na coesão social. A exclusão foi então
percebida como uma marca profunda de disfunção societal que assume uma
multiplicidade de formas. O conceito expressa a existência de um fenômeno
diferente de uma ’nova pobreza’, e ao mesmo tempo, tem a capacidade de voca-
lizar a indignação com esse mundo partido em dois.”
No Brasil este processo assume feições ainda mais dramáticas porque são o
produto de múltiplas causas entre as quais pode-se citar algumas: os processos
históricos de uma problemática inserção social da imensa população negra,
desde a abolição da escravatura; os movimentos de movimentação populacio-
nal provocados pelo fenômeno denominado “êxodo rural”; e, o advento desas-
troso do governo Collor que, nos anos 90 inseriu no Brasil as mudanças promo-
vidas no processo produtivo capitalista como consequência da implementação
de políticas neoliberais de aprofundamento das desigualdades sociais, que
tem como consequência a exclusão, porque se somam a uma falta de políticas
públicas consequente.
Não obstante, deve-se demarcar que o combate a essas desigualdades é um
preceito constitucional previsto no artigo 3º, da Constituição Brasileira, que vai
além ao prever:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I. construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II. garantir o desenvolvimento nacional;
III. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades so-
ciais e regionais;
IV. promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Esta disposição legal constitucional deve ser vista como uma forma de pro-
moção dos Direitos Humanos. A exclusão gera os “marginalizados” que cos-
tumam ser rotulados como “desviantes”, e não como vítimas, de um sistema
que lhes sonegou todas as oportunidades. A conscientização dessa violação é
fundamental para uma cobrança dos setores governamentais.

capítulo 5 • 131
Cabe ao Direito não somente a promoção dos estudos da proteção dos
Direitos Humanos e sua relação com a consagração do princípio da dignidade
da pessoa humana, à luz da Constituição Federal Brasileira, mas também, na
medida em que o fenômeno jurídico importa em um fato social, valorado que
se torna norma, numa perspectiva multidisciplinar buscar alternativas que ve-
nham a contribuir para a concretização da justiça social e dos ideais democrá-
ticos e de justiça social constitucionalmente consagrados.
Como diria o poeta: “ A lição sabemos de cor, só nos resta aprender...” (Beto
Guedes)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_
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DELMAS-MARTY, Mireille. Três Desafios para um Direito Mundial. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 8-9.
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GUERRA, Paula. Da exclusão social à inclusão social: eixos de uma mudança paradigmática,
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1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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estud. - CEBRAP no.73 São Paulo Nov. 2005. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
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