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Para Além de ‘Plandemic’:

Uma resposta cristã às conspirações

Por Deborah Haarsma, Jim Stump e David Buller

11 de maio de 2020

Reproduzimos aqui um texto sobre o grave problema das “teorias” de conspiração em


meio à pandemia, publicado originalmente no site da Fundação BioLogos. Não obstante
seu conteúdo esteja condicionado pelo contexto norte-americano, os leitores
certamente reconhecerão que a realidade nele retratada, infelizmente, em muito se
assemelha à que observamos em nosso país. Ao endossar as advertências quanto às
questões médico-científicas aqui referidas, reafirmamos também nosso compromisso de
promover “ciência sólida, no serviço amoroso a Deus e ao nosso próximo”.

Se seus feeds de notícias nas redes sociais são como os nossos, então eles foram
inundados de teorias conspiratórias sobre o coronavírus e sobre a resposta do nosso
governo a ele. Vemos muitos de nossos amigos cristãos considerando teorias
conspiratórias — se não acreditando nelas, pelo menos ouvindo-as. Por que
conspirações são tão atraentes agora?

O vídeo Plandemia ganhou grande atenção com suas falsas alegações sobre a pandemia
de COVID-19. O filme é estrelado por Judy Mikovits, que já foi uma pesquisadora médica
legítima, mas desde então caiu em descrédito com o establishment científico. Ela
promove a visão de que as vacinas são prejudiciais e que o novo coronavírus foi
manipulado por engenheiros genéticos. O vídeo foi removido do YouTube (o que para
alguns apenas fornece evidências de quão profunda é a conspiração!). E não demora
muito para descobrir que o trabalho de Mikovits foi devidamente desacreditado.

Também na semana passada, houve uma imagem viral circulando pelo Facebook
alegando que nenhum funcionário do Walmart, Amazon, Target, Costco ou Kroger
[grandes lojas de departamento norte-americanas] testou positivo para COVID-19, por
isso é ridículo que as pequenas empresas tenham que permanecer fechadas. É tão fácil
fazer ou compartilhar tal gráfico, e “parece correto” para as pessoas que estão
frustradas que as empresas estejam sob restrição. Mas uma rápida verificação de
fatos mostrou várias agências de notícias reportando que muitos Walmarts se tornaram
epicentros da COVID e tiveram que ser fechados.

Desejaríamos que esse tipo de conspiração e a disseminação de informações falsas e


perigosas se limitassem a amigos do Facebook e grupos marginais. Mas, infelizmente,
este não é o caso — líderes cristãos também estão alimentando as chamas.

Quando conspirações são alimentadas por cristãos

Como exemplo, há vários dias, um líder sênior de uma proeminente organização cristã
enviou um e-mail “urgente” sobre a pandemia. Ele deixou claro que não falava em nome
de seu empregador ou organização, mas sua plataforma e credibilidade com seu público
vem de lá. Seu e-mail de 2700 palavras estava cheio de avisos em caixa alta e
conspirações sobre “pessoas muito más” empurrando “ciência falsa e medicina falsa”
na população. Seu principal argumento é que o Dr. Anthony Fauci e outros estão
envolvidos em uma “farsa globalista” demoníaca para enganar e controlar a população
para estabelecer as bases para uma “nova ordem mundial”. Adicione a isso alguns links
como uma palestra sobre os Illuminati, (“isso não é teoria da conspiração, mas fato de
conspiração”) e uma revelação auto-filmada sob um banner QAnon, [teoria da
conspiração relacionada a extrema-direita americana] e… bem, você tem um e-mail e
tanto. O e-mail não só continha conselhos que contradizem diretamente o consenso
esmagador de cientistas e especialistas em saúde pública, mas também pede orações
para que “as pessoas se levantem em desobediência civil pacífica” contra tais diretrizes.

Quando os líderes cristãos insistem em rejeição de medidas de saúde pública,


precisamos ser francos sobre o impacto que suas palavras podem ter. Um modelo
influente da Universidade de Washington citado pela Casa Branca recentemente
dobrou a estimativa de mortes por coronavírus até agosto para surpreendentes 137.000
(com a estimativa pessimista se aproximando de 250 mil!), em grande parte devido à
diminuição do distanciamento social e ao aumento do total de mortes. Isso é sério e
ameaça várias vidas.

A desinformação sobre coronavírus recentemente chegou a estágios ainda maiores. A


conferência Q Ideas atrai milhares de líderes cristãos todos os anos para ouvir palestras
no estilo TED dos líderes e pensadores cristãos mais proeminentes do mundo, com
milhares mais alcançados online por vídeos de conversas passadas. Aplaudimos muito
do que a Q Ideas fez ao longo dos anos, com análises reflexivas de questões culturais
complexas a partir de uma perspectiva cristã. Infelizmente, este ano algumas das falas
ficaram muito aquém, e de forma perigosa para a saúde pública. A liderança da Q mudou
o evento deste ano para ocorrer apenas no ambiente virtual, anunciando-o como uma
oportunidade para equipar cristãos para o nosso momento de pandemia atual. No
entanto, duas das mais proeminentes falas, que ganharam o dobro do tempo das
demais, foram de oradores que forneceram um impressionante bombardeio de teorias
da conspiração e alegações já há muito desmascaradas.

Uma dessas falas foi uma entrevista que o fundador da Q Ideas, Gabe Lyons, teve
com Robert F. Kennedy Jr. , um conhecido ativista antivacinação. Nela, Kennedy afirmou
sem contestação uma série de falsidades há muito desmascaradas sobre vacinas, desde
a alegação de que vacinas não são testadas com segurança ou com placebo (são), até
alegações de que as vacinas envenenam crianças e causam autismo (não causam). Em
outra conversa com o dobro do tempo das demais, Josh Axe, um quiropraxista e
naturopata que vende suplementos nutricionais on-line, destacou os poderes curativos
de vários remédios “naturais”, que ele vende como reforços imunológicos biblicamente
obrigatórios. “Deus criou seu corpo para ser capaz de combater vírus”, disse Axe. “Você
só tem que seguir sua Palavra e seguir os princípios da Bíblia” — princípios que, segundo
Axe, incluem o uso de óleos, suplementos de ervas e pensamentos felizes. Ao seguir esta
receita, mostraremos que temos fé em Deus, em vez de “fé em uma pílula ou em uma
injeção” — uma tradução perturbadora da velha dicotomia fé-versus-ciência para o
campo da medicina. Lyons deu apoio entusiasmado a essas falas (“nós… temos outra
opção para combater vírus do que apenas depender da medicina)” e defendeu a
divulgação dessas ideias (para que qualquer um possa decidir se “achamos que é
verdade ou achamos que não é verdade”).

Não questionamos a motivação dessas pessoas. Achamos que eles realmente acreditam
que estão fornecendo um serviço importante para espalhar a verdade. E concordamos
com muitas de suas convicções cristãs. Mas, infelizmente, neste assunto eles estão
minando a confiança do público nas mesmas pessoas que estão tentando nos manter
seguros. Em nosso recente livestream com o fundador da BioLogos e diretor do
Instituto Nacional de Saúde (NIH), Francis Collins, ele referiu-se elogiosamente a seu
“querido colega e amigo” Anthony Fauci, com quem fala diariamente, como “o mais
notável especialista em doenças infecciosas do mundo”. “Então, quando Tony
responder a pergunta, ouça com atenção”, disse Collins. “Você vai ter o furo de
reportagem. Tony é um contador de verdades”. Que pena que Fauci se tornou o foco de
tantas conspirações equivocadas.

Como a revista Christianity Today relatou há algumas semanas, os cristãos parecem


desproporcionalmente suscetíveis a desinformação e conspirações sobre o COVID-19.
Isso se deve, sem dúvida, à forma como as ideias são embaladas nas guerras culturais
em nosso país. Os cientistas e seus conhecimentos foram colocados lado a lado com
outros acadêmicos e causas de esquerda. E todos nós estamos programados para
encontrar afinidade com os grupos com os quais nos identificamos.

Respondendo com Ciência

Não é difícil ver como teorias conspiratórias podem ser atraentes em épocas como a
que vivemos. Um mundo complexo inevitavelmente deixa lacunas em nosso
entendimento finito. Mas uma “boa” teoria da conspiração pode preencher todas as
lacunas, todas as incógnitas, conjurando forças invisíveis, motivos secretos e agentes
duplos. (Você já viu um teórico da conspiração do 11 de setembro dizendo que ainda
existem algumas contradições e lacunas explicativas que ele não foi capaz de descobrir?)
Há um apelo implícito ao nosso orgulho humano, também — quem não iria gostar de
ter o ego massageado por “saber” o que a maioria não sabe, de vislumbrar por detrás
da cortina, de ser mais inteligente — ou pelo menos mais perspicaz — do que os
melhores cientistas do mundo?

Também não podemos dizer que os defensores de ideias marginais não são inteligentes.
O químico Linus Pauling foi um dos maiores cientistas de todos os tempos, mas passou
os últimos anos de sua vida defendendo que grandes doses de vitamina C intravenosa
eram um tratamento eficaz para o câncer — uma ideia que ele defendeu até sua própria
morte (ironicamente, embora tragicamente, de câncer). Pauling era um verdadeiro
gênio e construiu argumentos apaixonados que nós, não especialistas, dificilmente
poderíamos refutar. E, no entanto, de modo crucial, ele foi incapaz de reunir evidências
científicas para convencer a comunidade científica mais ampla da qual ele fazia parte.

Quando nós da BioLogos priorizamos as visões de consenso da comunidade científica


credenciada, não o fazemos porque achamos que qualquer cientista é infalível. Fazemos
isso precisamente porque sabemos que não são. Os processos minuciosos da
comunidade científica, desde uma rigorosa revisão por pares até questionamentos
pontuais em uma conferência científica profissional, não teriam razão de existir se os
cientistas (pelo menos coletivamente) não estivessem conscientes de sua própria
capacidade de cometer erros e de ignorar explicações concorrentes. E embora nenhum
desses processos sejam, por si só, garantias de infalibilidade, eles são os melhores
métodos que temos para eliminar erros e concordar em torno das explicações científicas
mais prováveis de serem verdadeiras. O que é incrível sobre a ciência é que ela
está continuamente se auto-corrigindo. Erros científicos são corrigidos por outros
cientistas — quase nunca por um comentarista de poltrona sentado na frente de uma
webcam.

Respondendo com Fé

Confiar na expertise pode soar elitista, mas está fundamentado no princípio bíblico de
que temos dons diferentes. 1 Coríntios 12:14-26 nos lembra que todas as partes do
“corpo”, das mais proeminentes às mais negligenciadas, servem a um papel essencial
como parte do todo maior. Não há espaço no cristianismo para desdém frente ao
humilde e muitas vezes ingrato trabalho de profissionais do saneamento, produtores
rurais e caminhoneiros. Mas também não há espaço para descartar o papel essencial de
cientistas, médicos e especialistas em saúde pública. Todos nós temos um papel a
desempenhar:

“O olho não pode dizer à mão: “Não preciso de você!” Nem a cabeça pode dizer aos pés:
“Não preciso de vocês!”… Mas Deus estruturou o corpo dando maior honra aos membros
que dela tinham falta, a fim de que não haja divisão no corpo, mas, sim, que todos os
membros tenham igual cuidado uns pelos outros. Quando um membro sofre, todos os
outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com
ele.”

Como mordomos do poder de nossa influência em cada post no Facebook e em cada


retweet, devemos lembrar que não estamos seguindo o comando de Jesus para sermos
“prudentes como as serpentes” se formos influenciados pela manipulação emocional de
uma teoria da conspiração ou de um vídeo bem produzido. E não somos “inofensivos
como as pombas” se espalharmos desinformação ou semearmos confusão no meio de
uma emergência global de saúde.
Nós percorremos um longo caminho desde o mundo dos escribas medievais, até a
imprensa, até o nosso mundo atual de retweets, blogs, documentários do YouTube e e-
mails em massa. As fronteiras do nosso conhecimento cresceram exponencialmente e,
ainda assim, muitas vezes parece que cada grão de verdade é diluído em um mar de
desinformação. Os algoritmos das plataformas de mídia social são projetados
especificamente para aumentar o engajamento (e, portanto, a receita de anúncios)
recompensando conteúdo emocionalmente carregado. Ironicamente, enquanto os
teóricos da conspiração protestam se suas ideias são “censuradas”, a realidade é que as
inúmeras vozes contraditórias contribuem para o que tem sido chamado de “censura
pelo barulho” que abafa informações reais.

Na última década, a fundação BioLogos e os numerosos cientistas, estudiosos bíblicos e


líderes cristãos em nossa rede trabalharam duro para mostrar que ciência de qualidade
e a fé bíblica podem andar juntas em uma harmonia mutuamente enriquecedora. Ao
longo dos anos, abordamos uma série de questões difíceis, da evolução à edição de
genes às mudanças climáticas. Mas a urgência da crise atual dá um lembrete gritante de
porque precisamos tanto da boa ciência quanto da fé cristã responsável.

Em um mundo de conspirações e desinformação, estamos conseguindo oferecer


podcasts e artigos de cientistas de primeira linha. Tivemos novos insights do estudioso
do Antigo Testamento John Walton sobre o livro de Jó e como ele pode reformular
nosso pensamento sobre esses pedaços caóticos do mundo de Deus. Dezenas de
milhares de pessoas assistiram nossa conversa ao vivo com o diretor do NIH Francis
Collins. E produzimos vários outros artigos e podcasts sobre o tema (você pode
encontrá-los todos navegando pela seção de Recursos com a tag coronavirus).
Estamos trabalhando duro em conteúdos como estes porque estamos convencidos de
que isso é necessário agora mais do que nunca. Nosso objetivo é promover uma fé cristã
que seja profunda e relevante para nossos tempos — moldada por uma leitura
cuidadosa das Escrituras e da tradição cristã, e informada pelo melhor da ciência
contemporânea.

Nos comprometemos mais uma vez a encontrar fontes respeitáveis, vetando alegações
errôneas, lutando contra a desinformação, e promovendo ciência sólida, no serviço
amoroso a Deus e ao nosso próximo.

Publicado originalmente aqui.


Tradução de Tiago Garros.

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