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Resenha - Divertida mente (inside out)

O luto da Riley

O filme se trata de uma animação que conta a história de Riley e seus processos psicológicos
e emocionais perante às mudanças da vida. As 5 principais emoções da menina são personificadas a
partir dos personagens Alegria (Joy), Tristeza (Sadness), Nojinho (Disgust), Medo (Fear) e Raiva
(Anger). Esses personagens se encontram na Sala de Comando, que seria uma possível representação
do córtex cerebral. Nesta sala existe uma mesa de controles que, dependendo de qual personagem a
opera, Riley reage de acordo com a emoção correspondente; por exemplo, se o personagem Medo
aperta algum botão, a emoção que a Riley irá sentir e expressar será o medo. Conforme vive seus dias,
Riley vai criando novas memórias que são representadas por esferas coloridas, cada uma com a cor
correspondente à emoção que a gerou (amarelo para alegria, azul para tristeza, lilás para medo, verde
para nojo e vermelho para raiva). Em uma análise literal, essas memórias podem ser vistas como as
memórias de trabalho, que são armazenadas durante o dia, e processadas e armazenadas nas memórias
de longa duração durante a noite - o que também acontece no desenho. Acontecimentos muito
marcantes na vida de Riley são chamados no filme de Core Memories. Essas memórias são
armazenadas na própria sala de comando e se tornam as bases das “ilhas de personalidade” de Riley,
ou seja, o que a define como pessoa. Apesar da presença das outras emoções, as Core Memories de
Riley são todas muito felizes: a Ilha do Hóquei, esporte que ela joga desde criança com os pais e com
seu time; a Ilha da Amizade, por conta da sua melhor amiga de infância; a Ilha da Família, que
representa a união entre ela e seus pais; a Ilha da Bobiça ou Travessuras, simbolizando que ela é
brincalhona e a Ilha da Honestidade. Essas memórias são muito significativas e foram geradas na sua
primeira infância, e agora regem sua personalidade fazendo com que Riley seja uma criança feliz
(seus pais a chamam inclusive de “Happy Girl” - garota feliz).
O filme inicia mostrando o nascimento da Riley, que desde o início, por conta da alegria e
carinho dados pelos seus pais, desenvolve a sua primeira emoção principal: a Alegria. Em seguida
surge a Tristeza, que foi vista como algo chato pela Alegria. Nessa primeira parte é possível perceber
como seu sistema de emoções e reações ainda não está desenvolvido, pois a mesa de controle só
possui um botão, mas isso muda de acordo com o crescimento dela, ficando cada vez mais complexo.
Outras emoções também desenvolvem. Algo interessante na apresentação dos personagens (no filme
quem faz essa apresentação é a Alegria) é que todos têm uma função: a Nojinho é para evitar
envenenamento, o Medo para proteção, a Raiva para mostrar insatisfação, a Alegria para trazer alegria
(como ela mesma diz) e a única que não possui uma função - pelo menos para a Alegria - é a Tristeza,
sendo para ela uma emoção desnecessária. Toda a tensão do filme é desencadeada a partir desta
negligência para com o sentimento da tristeza.
O filme segue para a mudança da família para São Francisco. Inicialmente Riley estava
animada e feliz; porém, ao chegar na casa nova, há um misto de emoções de Raiva, Nojo e Medo, mas
por ser uma “happy girl” ela tenta contornar isso fazendo graça e ignorando esses sentimentos ruins.
Esse soterramento de emoções negativas com alegria e brincadeiras é reforçado pela sua mãe que a
agradece por ter tentado animar seus pais em um momento ruim. Enquanto isso, na Sala de
Comandos, a Tristeza começa a agir de forma estranha: ela tem impulsos de tocar em memórias,
deixando-as tristes, e de tomar o controle da mesa, sendo veementemente repreendida pela Alegria.
Após uma cena embaraçosa em que a Riley chora na frente dos seus colegas de classe, uma primeira
Core Memory triste é formada, o que gera grande comoção entre os personagens. Em uma tentativa de
impedir que essa memória fosse armazenada, a Alegria e a Tristeza entram em conflito e ambas
acabam lançadas para fora da sala de comando, junto com todas as Core Memories, deixando somente
o Medo, a Raiva e a Nojinho no controle. No início essas emoções restantes tentam agir normalmente
fingindo serem a Alegria, mas isso não funciona e acaba gerando conflitos dentro de casa. A Riley
além de estar impossibilitada de sentir alegria ou tristeza, pois essas emoções não se encontram mais
na Sala de Comando, ela ainda perdeu suas Core Memories, sua personalidade, então ela não
consegue mais agir como ela mesma. Uma coisa importante de comentar é que a primeira Ilha de
personalidade a ser derrubada por conta da perda das Core Memories é a da Bobiça ou Travessura, no
entanto, antes desse desastre acontecer, essa Ilha já se mostrava frágil. A Core Memory dela havia
caído para fora da sua “prateleira” por causa da mudança , e isso significa que essa Ilha já estava
fadada à destruição por conta do amadurecimento da Riley a partir desse acontecimento tão difícil
para ela. Uma a uma, a ausência da Alegria e a perda das Core Memories levam a queda de todas as
Ilhas de personalidade. Após a Ilha da Bobiça ou Travessura, a segunda ilha a cair foi a da Ilha da
Amizade, por ciúmes e distância. A terceira foi a do Hóquei, e a partir disso ela não consegue mais se
sentir feliz jogando. Neste ponto, a Raiva tem a ideia de Riley fugir de casa e voltar para Minnesota.
Riley aceita essa ideia, pois sente muita raiva dos pais por terem feito ela mudar de cidade. Para
conseguir fugir, ela rouba o cartão de sua mãe, o que derruba as duas Ilhas de personalidade que ainda
restavam: Honestidade e Família.
Riley chega a pegar um ônibus para Minnesota. Na Sala de Comando, a mesa de controle
começa a ficar escura e para de funcionar - possivelmente simbolizando um estado depressivo - e as
emoções não conseguem mais se manifestar para impedir que ela fuja. Nesse momento, a Alegria e a
Tristeza retornam e a Tristeza assume o controle. A Tristeza consegue fazer com que a mesa de
controle volte ao normal e, assim, Riley entra em contato com os seus sentimentos e desiste de fugir.
Ao chegar em casa, ela tem um momento de sinceridade com os pais. Todos expressam suas tristezas,
ela chora e é reconfortada. Isso gera uma nova Core Memory, que é uma mistura de Alegria e
Tristeza, porque com a tristeza ela foi reconfortada pelos seus pais e ficou feliz de novo. A partir disso
todas as novas Core Memories são mistas, simbolizando como seus sentimentos passaram a ficar mais
complexos com o amadurecimento e ela pôde se adaptar a cidade nova e a sua nova realidade.

Pelo que é mostrado, Riley era uma criança feliz. Tinha uma família estruturada, amigos, um
esporte com seu time, possuía uma educação e uma noção de ética palpável, era brincalhona e grande
parte das suas memórias, tanto de personalidade quanto de trabalho, eram felizes. Isso mostra uma
criança saudável, que nunca teve que lidar com problemas sérios, que sempre está feliz e gosta de
deixar os outros felizes. Quase uma “criança perfeita”. A mudança de cidade foi, para ela, algo muito
grande, e isso gerou um sentimento de luto pela perda de tudo que ela tinha de familiar. Pessoas em
luto podem desenvolver uma variedade de sintomas, como o desenvolvimento de uma frieza em seus
relacionamentos (Riley com seus pais e com sua amiga), facilidade de se irritar e comportamentos
raivosos (a briga que ela teve na mesa com seus pais), a retirada social (Riley não é mostrada falando
com ninguém na escola) e frequentemente a pessoa também desenvolve um sentimento de estar
perdido em relação a quem é, por causa dessa perda que antes era um porto seguro (a perda das suas
ilhas de personalidades) (Dunne, 2004).
Todos esses sintomas vêm dos reajustes que são necessários por conta da perda desse objeto, a
pessoa é obrigada a enfrentar uma nova realidade a qual ela não estava preparada (Martin e Weston,
1998). O fato de Riley ser sempre conhecida como “feliz” fez com que ela não pudesse viver esse luto
apropriadamente. Ela não se permitia ficar triste, o que tornou esse momento mais traumático ainda. O
luto deve ser vivido, sem evitar sentimentos ou enterrá-los. A tristeza fisiológica (não patológica) é
uma emoção extremamente importante para o ser humano. Sendo uma emoção muito focada para o
interior, em objetivos e crenças passadas, que está relacionada ao sentimento de impotência (Oh e
Tong, 2020), ela traz uma redução da motivação, isolamento, procura de ajuda, renúncia de planos
inatingíveis e planejamento de novos objetivos (Levine, 1996). Então é uma emoção negativa, mas
que traz mudanças por justamente fazer o indivíduo parar e pensar. Ela causa uma ativação áreas
centrais do cérebro, como o giro occipital inferior e medial, o giro fusiforme, os giros póstero-medial
e superior, a amígdala dorsal e possui participação também do córtex dorso medial prefrontal (Barrett
e Janta, 2016). Não sentindo essa emoção, se torna difícil refletir sobre a realidade e
consequentemente, poder evoluir.
Pelo que é mostrado de Riley, vê-se uma criança que nunca teve contato com a tristeza, que
provavelmente a via como algo desnecessário, sendo condicionada a se sentir apenas uma criança
feliz, não importando seus sentimentos negativos. E isso começa a se tornar inviável nessa situação.
Por isso a personagem Tristeza começou a agir estranho, porque a Riley deveria estar triste e ela
deveria ter sido incentivada desde o início pelos seus pais a se familiarizar com esse sentimento.
Mudanças em geral são dolorosas e essa dor gera o amadurecimento - que é possível ver no final do
filme. A cena em que ela está no ônibus e suas emoções e não conseguem mais se manifestar a partir
da mesa de controle poderia ser um simbolismo de uma depressão, que pode surgir a partir de um luto
que não foi processado corretamente.
Em conclusão, o filme é muito agradável, muito profundo e baseado na neurociência. Muitos
elementos e representações do filme não foram abordados nesta resenha, mas foram maneiras muito
criativas e visuais de explicar coisas complicadas. Seria possível falar de diversos outros assuntos da
neurociência usando somente esse filme, a tristeza foi abordada aqui por passar uma mensagem
importante, pois muitas vezes os sentimentos das crianças são abafados para facilitar a vida dos pais,
mas essa repressão depois é sentida na forma de transtornos psicológicos, dificuldade de lidar com
estresse e situações difíceis, reações inadequadas e muitos outros problemas. No caso da Riley isso
não aconteceu, porque ela teve o momento de comunhão com seus pais, mas na vida real muitas vezes
isso não acontece e deixa marcas profundas tanto na relação familiar quanto na vida do futuro adulto.
As crianças têm sentimentos assim como os adultos, e elas especialmente precisam ser guiadas nestes
momentos pois ainda estão aprendendo a lidar com essas emoções.

Bônus : Breve interpretação da estética dos personagens

Os personagens emoções, Medo, Nojinho, Alegria, Tristeza e Raiva possuem cores específicas, lilás,
verde, amarelo, azul e vermelho, respectivamente, e observando suas roupas é possível fazer uma
análise um pouco mais profunda de algumas emoções. A Alegria, por exemplo, é amarela, por conta
da sua cor, mas seu cabelo é azul, a cor da tristeza. Isso pode representar o que foi aprendido no filme,
que para haver alegria, é preciso ter tristeza. Já a tristeza é totalmente azul, porque ela é independente
da alegria. É possível (não saudável) alguém só ser triste, mas não é possível alguém ser só feliz,
senão essa felicidade depois se torna uma tristeza. Nojinho representa o nojo e a aversão e é possível
perceber que seu lenço de pescoço é lilás, a cor do medo, porque no fundo da aversão, existe um medo
do desconhecido. A Raiva e o Medo também são inteiros da mesma cor, porque eles são emoções
independentes, assim como a tristeza. Então com isso temos duas emoções dependentes de outras e 3
independentes.

Referências
Barrett, F.S., & Janata, P. (2016). Neural responses to nostalgia-evoking music modeled by elements of dynamic
musical structure and individual differences in affective traits. Neuropsychologia, 91, 234–246. doi: 10.1016/
j.neuropsychologia.2016.08.012

Linda J. Levine (1996) The Anatomy of Disappointment: A Naturalistic Test of Appraisal Models of Sadness,
Anger, and Hope, Cognition and Emotion, 10:4, 337-360, DOI: 10.1080/026999396380178

Martin T, Weston R (1998) A theoretical framework for understanding loss and the helping process. In Weston
R et al (Eds) Loss and Bereavement Managing Change. London, Blackwell Science.

NS251, Dunne K. (2004) Grief and its manifestations. Nursing Standard. 18, 45, 45-51.

Vanderson Esperidião-Antonio, Marilia Majeski-Colombo, Diana Toledo- Monteverde, Glaciele


Moraes-Martins, Juliana José Fernandes, Marjorie Bauchiglioni de Assis,Stefânia Montenegro & Rodrigo
Siqueira-Batista (2017): Neurobiology of emotions: an update,International Review of Psychiatry,
DOI:10.1080/09540261.2017.1285983

Vincent Y. S. Oh & Eddie M. W. Tong (2020): Sadness, but not anger or fear, mediates the long-term
leisure-cognition link: an emotion-specific approach, Cognition and Emotion, DOI:
10.1080/02699931.2020.1743237

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