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De 18 a 22 de Maio de 2009
Aluna da Graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do PIBIC pela
FACEPE/CNPQ.
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O Conceito de Panoptismo, divulgado por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir constitui um dispositivo
idealizado por Bentham no século XVIII. Trata-se de um modelo de vigilância, em que o prédio da instituição
deveria ter uma forma circular, e em seu centro uma grande torre de vigilância. Nesta torre, o carcereiro poderia
observar todas as celas, contudo os sentenciados não poderiam observar o carcereiro, visto que suas
extremidades estariam vazadas para permitir a passagem da luz, impossibilitando a visão desses. A eficiência
deste dispositivo se faz a partir do momento que os sentenciados não sabem se estão ou não sendo vigiados.
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E na prática esse controle acontecia, visto que o citado autor fala ainda sobre normas
existentes sobre classificação e hierarquia dos presos, passeios pelo interior dos corredores e
pátios da prisão, recebimento de correspondências, aparência dos sentenciados, entre outros.
Ao adentrarmos na realidade do presídio de Fernando de Noronha, verificamos uma
outra conjuntura, sui generis, em que paisanos e sentenciados conviviam no mesmo espaço,
desfrutando muitas vezes das mesmas condições. Primeiramente, é importante destacar que
até meados da década de 1860 a rotina prisional de Fernando de Noronha era regida por
ordens e instruções recebidas pelos governadores, e depois da independência, dos presidentes
da província. Só em 11 de fevereiro de 1865, baixou-se o decreto promulgando o primeiro
regulamento do presídio, com o fim de preencher as necessidades mais emergentes do
presídio. Esse regulamento, como outros que viriam a posteriori, não alcançou seus objetivos,
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pois não se adequou a realidade daquela ilha-prisão; o equivoco desses documentos era o fato
de eles serem elaborados com um olhar da província para ilha, e não com um olhar insular, o
que seria mais sensato. Logo, a não aplicabilidade de leis e normas, facilitou a um
afrouxamento das relações sociais dentro do presídio, estabelecendo uma conjuntura singular,
em que paisanos e sentenciados estabeleceram intimas ligações. Percebemos que muitos
sentenciados ganhavam gratificações por ocuparem cargos de confiança, trabalhando nas
residências dos oficiais, ou até mesmo ocupando cargos públicos, como o de carcereiro,
auxiliar de almoxarife, guarda diurno e noturno. A liberdade de atuação que eles possuíam,
difere bastante do conceito de liberdade aplicado nas prisões provinciais, onde a realidade era
bem diferente, como já foi verificado.
Torna-se relevante situar a presença feminina dentro dessa realidade, visto a importante
influência que também estabeleceram dentro dessa conjuntura social. É impreciso datar o
início da presença feminina no presídio, mas sabe-se ao certo que no princípio era proibida
sua entrada, ordem essa que se estendia até mesmo às mulheres dos funcionários militares.
Contudo, partindo de dados oficiais, é a partir da década de 1860, mas precisamente com o
regulamento de 1865 que nota-se um acentuado aumento da entrada de mulheres no presídio,
sentenciadas, ou até mesmo paisanas, que iam para lá viverem ao lado de seus maridos. A
presença feminina passa a ser uma unidade fundamental de manutenção da ordem no presídio,
pois além de trabalhar na questão de moralização e disciplinarização do sentenciado,
funcionava como um meio de prender tanto o funcionário como o sentenciado na ilha,
evitando fugas e sublevações constantes.
Isso posto, percebemos a teia social que se estabelece em Noronha, onde homens e
mulheres, paisanos ou sentenciados, conviviam nesta conjuntura, constituindo importantes
relações nos diversos espaços do presídio. Um espaço bem interessante que podemos
verificar essas relações foi o comércio independente desenvolvido na ilha. Nesse ambiente, a
liberdade de atuação alcançada por ambos os gêneros, merece nossa atenção, pois ultrapassou
os limites oficiais que regiam a sociedade da época. As fronteiras entre o que era livre e
proibido se faziam tênues, frente a essa realidade singular. È importante ressaltarmos que
neste artigo acreditamos que a história não se constrói das narrativas ditas oficiais, nem sob o
um discurso secularmente estabelecido; pelo contrário, ela se faz através das lacunas não
exploradas, das histórias tidas como não oficiais, dos excluídos. Assim torna-se interessante
realizar a análise do comércio edificado no presídio, a partir das relações de gêneros
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(...) algumas mulheres de sentenciados tinham nas casas em que habitam com seus
maridos, gêneros a venda, apresentado-se elas como donas de tais negócios,
alegando não serem sentenciadas, estarem no gozo de seus direitos civis, e
haverem obtido portarias da presidência para trazerem ou receberem gêneros do
Recife, resolvi pedir a Vossa Excelência se digne esclarecer-me se devo ou não
consentir que elas continuem a negociar aqui.( APEJE. FN 14. 1869: 90)
O discurso agora, já toma uma outra vertente, pois não se trata apenas da questão da
liberdade alcançada por essas mulheres dentro do presídio, mas relaciona-se diretamente com
os códigos morais e patriarcais que predominavam na sociedade da época, e que
transpassavam aqueles paredões de água salgada. È comum verificarmos nas fontes da época
que a atenção é direcionada ao mundo público e aos personagens que dela participam, ou seja,
os homens, sendo as mulheres totalmente excluídas desse espaço. Prevaleciam fortemente no
imaginário social do período crenças que moças de boa família, moças honestas, não
poderiam trabalhar, principalmente em atividades que tinha haver com o ser masculino, como
instituições políticas, atividades jurídicas, comerciais, entre tantas. A essas moças caberia
estritamente o mundo privado, ou seja, preocupações em garantir um bom casamento, lições
direcionadas ao trabalho doméstico, e ao cuidado com os maridos e as crianças. Era algo que
aparecia como algo instintivo e emanado do amor.
Apenas as mulheres de baixa renda, ou as tida como desonestas ou perdidas, que
realizavam algumas atividades fora do mundo privado. Em virtude de suas condições, tinham
que trabalhar em pequenas atividades, para poderem ajudar seus esposos ou pais. Atuavam
nos mercados e feiras, com a venda de víveres; realizavam trabalhos domésticos, nas casas
das famílias de alta renda; entre outros. No recife oitocentista, percebemos claramente essa
realidade, visto que a cidade demandava essa mão de obra barata, já que o trabalho escravo
estava sendo paulatinamente substituído pelo trabalho livre. O cotidiano das cidades
realmente tornava-se um atrativo para a imigração, principalmente para as mulheres sozinhas
e de baixa renda, pois como salienta Carvalho “Era mais fácil trançar relações significativas
como maior independência do que permitiam os rígidos códigos morais” (CARVALHO.
2003: 43).
O preconceito e a discriminação faziam parte do cotidiano dessas mulheres, que devido
as suas condições financeiras, contrariavam os padrões de uma sociedade tradicional, que via
nos trabalhos fora de casa um espaço inseguro, pouco honroso para mulheres direitas: “Havia
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assim uma noção popular de honra que impelia a mulher a evitar a rua, um espaço masculino
nos códigos patriarcais” (CARVALHO. 2003: 48). Contudo não havia muitas alternativas, e
muitos trabalhos fora de casa tornaram-se característicos de mulheres, inclusive as atividades
comerciais, pois como sublinha Perrot, no período oitocentista nota-se um acentuado
desenvolvimento na aptidão comercial feminina, que negocia tanto em lugares fechados,
como em lugares livres.
Contudo, embora fossem mulheres honestas, a demanda sexual fazia parte de seu
cotidiano, e muitas vezes exigências de trabalhos sexuais eram algumas das obrigações das
empregadas que trabalhavam nas casas de família. Não descartamos, porém, que a
prostituição também se tornava uma alternativa para essas mulheres de baixa renda, não sendo
um trabalho fixo, como percebemos na realidade atual, mas sim uma opção de sobrevivência
frente às dificuldades que enfrentavam. Era comum a mentalidade da época, associar a
mulher à culpa de seduzir o sexo oposto, e até mesmo pelo o estupro, sendo a causadora de
desordens na sociedade.
No cotidiano da ilha – prisão, esses discursos patriarcais carregados de conceitos de
moralidade e honestidade se faziam presentes, e torna-se comum verificarmos nas fontes,
depoimentos de comandantes acerca da desordem causada por certas mulheres, as quais eram
as responsáveis por pequenas sublevações entre os sentenciados:
Códigos morais e discursos patriarcais á parte, percebemos que existia uma presença
ativa no comércio independente da ilha de homens e mulheres, que alcançaram uma notável
liberdade de movimento, dirigindo essas atividades. Essa prática possibilitou aos seus
participantes uma maior aproximação com a liberdade vivenciada do outro lado das águas,
visto que tinham contato os comerciantes da província, e com uma gama de produtos além das
necessidades essenciais.
Muitas vezes a realização dessas práticas era conseguida com a conivência de muitos
funcionários e comandantes do presídio, que tiravam seus proveitos dessa cumplicidade. Um
caso interessante que podemos analisar foi um fato ocorrido em meados de 1853, sobre a
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quitanda de uma negra livre, chamada de Preta Izabel, tida como parte da família do
comandante. O comandante Francisco Félix de Macedo e Vasconcelos sofreu fortes acusações
que na quitanda de Isabel estavam sendo vendidos gêneros proibidos, como podem ver numa
portaria aonde ele se defende das acusações:
O escrivão e Alferes do presídio (...) inventavam denuncias contra mim, e entre elas
ser a quitanda da Preta livre Izabel um venda, em que são vendidos gêneros por
minha conta, contra o artigo 6° do regulamento de 21 de dezembro de 1849.
(APEJE. FN 5. 1853: 61)
Nas portarias seguintes, ele não apenas se defende das acusações, como também
defende a honra de sua família, representada neste caso pela preta livre Izabel. Não sabemos
ao certo se de fato o comandante Francisco estava infringindo as normas do presídio, mas por
ocupar um cargo importante dentro do presídio, ele tira proveito da situação, e sua quitanda,
junto com outras vendas, é responsável por abastecer parte das dietas do hospital, como
podemos verificar na portaria do almoxarife Joaquim Mendes: “Declaro que as aves, galinhas,
comprados para as dietas do hospital, são fornecidos por diversas pessoas, bem como por
pessoas de vossa família, a Preta Izabel da Conceição, pertencente a família do senhor (...)”
(APEJE. FN 5. 1953: 69)
Um outro aspecto interessante que podemos abordar deste caso, é referente ao
tratamento que é dado a Preta Izabel pelos funcionários e sentenciados do presídio, a qual é
tratada muitas vezes com discriminação por ser uma mulher negra a frente de uma atividade
comercial, e também por ser da “família” do comandante, o qual se aproveita da sua condição
superior para possuir uma venda e abastecer alguns espaços do presídio. Essas atitudes dos
funcionários e sentenciados leva o comandante a solicitar que “o senhor comandante do
destacamento, ajudante do presídio, almoxarife, escrivão, declarem (...) que tratamento dão os
soldados, os sentenciados, e outras pessoas do presídio a Preta Izabel, que faz parte de minha
família.” (APEJE. FN 5. 1853: 74)
A resposta dos funcionários solicitados respondeu a expectativa do comandante, pois
eles declararam que a preta Izabel tinha o tratamento de escrava pela maior parte dos
funcionários e sentenciados, tendo alguns uma maior intimidade, a chamando de “comadre”.
Logo a discriminação quanto a sua condição se revela presente nas narrativas desses homens,
que a tratavam de acordo com os padrões secularmente estabelecidos pela sociedade, mesmo
esta não sendo mais escrava.
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Referências
Fontes Documentais
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