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O Jogo da Morte.

Trevanian.
Círculo de Leitores, 1ª Edição, 1983.
A Edição original é americana, 1973.
Título Original: The Loo Sanction.
Romance.
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se
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O Jogo da Morte
Trevanian
Círculo de Leitores
Título Original: The Loo Sanction
Tradução De: Paula Reis
Sobrecapa de: Manuel Dias
1973, by Trevanian
Crown Publishers, Inc. Nova Iorque
encadernado por Printer Portuguesa
no mês de Março de 1983
Número de edição: 1071
Primeira edição: 6000 exemplares
Só é permitida a venda aos Sócios do Círculo de Leitores.

St. Martin-in-the-fields
A dor era terrível. Mas, pelo menos, surgia
transitoriamente. Vagas cortantes de agonia culminavam em
intensidade até o corpo dele se convulsionar e a mente ser
levada pelas ondas. Então, precisamente antes da loucura
surgir, as cristas quebravam e enrolavam-se-lhe no limiar
da consciência, deixando-o sumir-se no âmago do
esquecimento.
Mas sempre, uma e outra vez, ele emergia do delírio, gelado
e transpirado, mais fraco do que dantes e mais aterrorizado.
Um vento crespo flauteava através da arcaria do campanário
onde estava prisioneiro e empurrava-lhe as lágrimas para
trás das fontes, na horizontal. Durante as depressões,
entre as cristas da dor, quando a consciência lhe voltava,
o cérebro aclarava-se-lhe, e sentia-se desconcertado pelas
suas reacções à morte iminente. Matthew Parnell- Greene
("Uranus no código planetário da agência da contra-
espionagem que o empregava) sempre concebera que a morte
violenta era uma alternativa muito real para a reforma
naquele tipo de trabalho. Fisicamente não era corajoso -
possuía uma imaginação demasiado viva para tal - portanto,
procurara amordaçar o medo calejando essa imaginação.
Forçara-se intimamente a ensaiar a sua morte ao ser
baleado, anavalhado, ao tomar cianeto gaseificado através
dum tubo dissimulado num jornal dobrado, ou veneno - o seu
faro urbano sempre insistira no veneno contido em alimentos
exóticos e consumidos em restaurantes genuinamente bons. E
tentara endurecer a sua imaginação sensível esmerilando-a
com antecipações das escolhas mais odiosas. Tinha sido
afogado na banheira; fora sufocado, o rosto azul e os olhos
abaulando um saco de plástico; tinham-lhe injectado ar no
coração. De todas as vezes morrera como devia ser, com uma
certa dignidade; não a lutar silenciosamente contra
probabilidades irrealizáveis. Imaginara a dor, mas o fim
chegara sempre depressa. Há muito que percebera que não
suportaria a tortura e decidira que colaboraria
inteiramente com aqueles que o interrogassem, se as coisas
acontecessem dessa forma.
Medo, dor, fúria, até autopiedade, tinham sido tantas vezes
mentalmente visionados que não traziam consigo qualquer
horror que ele não pudesse aguentar. Mas as suas fantasias
ansiosas não o haviam preparado para a emoção que agora lhe
dominava a mente: o asco. O asco era mais amargo no fundo
da garganta. O asco encurvava-lhe os cantos da boca e
dilatava-lhe as narinas. Quando eles o encontrassem devia
estar disforme, repulsivo. Essa ideia embaraçava-o
intensamente.
Naquelas duas horas, desde que uma alvorada chuvosa tornara
Londres visível, os olhos de Parnell-Greene tinham-se
ofuscado muitas vezes a cada nova crise de dor, que o
transportava para a margem da inconsciência como se alguma
membrana dentro dele se dilacerasse e enviasse vagas de
choque através do seu corpo.
Há quanto tempo estaria ali? Seis horas? Metade da sua
vida? A existência aparecia-lhe dividida em secções, uma,
contendo quarenta e sete anos activos e agitados; a outra,
seis horas de dor. E era a segunda metade que realmente
contava.
Lembrava-se de o terem levado para a Igreja de St. Martin.
Embora estivesse muito drogado, era tudo perfeitamente
claro. As drogas tinham sido agradáveis, eufóricas; haviam-
lhe aniquilado a vontade, mas não lhe tinham afectado a
memória. Dois tipos arrastaram-no. Mantiveram-no de pé,
amparando-o, visto que oscilava. Sentara-se por momentos
com um deles - o mudo - num banco preto, enquanto o outro
fora ao campanário ver se o mecanismo estava no seu lugar.
Lembrava-se da caixa das esmolas, em carvalho, e do dístico:
Contribuições para conservar esta igreja sempre aberta e
para
manter os seus serviços.
Haviam-no conduzido pela escada de metal e depois, mais
para cima, até à plataforma do campanário. E em
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segredo tinham... e depois eles... Parnell-Greene
lacrimejava perante a tristeza de tudo aquilo.
Soluçara e isso fora um erro. A convulsão rompera algo no
seu interior, a dor cravara-lhe as unhas no corpo e
latejara-lhe na cabeça. Desmaiara.
As ruas à roda da igreja eram percorridas por uma multidão
que se deslocava aos magotes. Centenas de pessoas irrompiam
pela Villiers Street acima e brotavam da estação de Charing
Cross, precipitando-se todas para o trabalho ou estacando
com visível obediência em bichas, esperando para entrarem
em autocarros vermelhos de dois andares, os corpos tocando-
se, os olhos cuidadosamente desviados. As escadas rolantes
despejavam gente anónima proveniente dos metropolitanos:
jovens escriturários sem chapéu e de olhos avermelhados;
operários de boné, mal-humorados e turvados por vidas
monótonas; empregadas de balcão e secretárias, de mini-saia
apesar dos rigores da estação, com mãos, rostos e pernas
rubicundas e gretadas pelo frio; mulheres velhas procurando
pechinchas, gingando através da multidão com objectos
pesados balouçando nos sacos de cordel dependurados - uma
ameaça para as canelas dos transeuntes.
Qualquer delas poderia ter visto a silhueta confusa de
Parnell-Greene na arcaria do campanário, mas ninguém olhou
para cima. À maneira automática dos trabalhadores
britânicos, os seus queixos enterravam-se nos colarinhos,
os cérebros permaneciam vazios.
A transpiração esfriava-lhe a testa quando recobrou a
consciência. Respirou cautelosamente, a boca aberta para
não ter que se mexer. Por fim, os seus braços,
apertadamente ligados, estavam dormentes - o que era uma
bênção. Durante a primeira hora, mais ou menos, a falta de
circulação causara-lhe uma dor uniforme e penosa que era
mais exaustiva que os regulares êxtases agónicos quando
qualquer coisa se quebrava no seu íntimo.
Não gritou por auxílio. Primeiro tentara, mas ninguém
poderia ouvir uma voz tão fraca vinda do topo do
campanário, e cada tentativa fora recompensada com a
ruptura de um saco de dor líquida.
Lentamente, o entorpecimento dos seus nervos, demasiado
cansados, entrou em equilíbrio com este novo nível de
agonia e neutralizou-o. Ele sabia que outros níveis
estranhos de dor sobreviriam, mas já não era um inimigo
movente que ele pudesse agarrar pelo pescoço e esmagar! A
dor e a vida tinham-se caldeado numa só coisa. Agora
estariam sempre juntas. Quando já não houvesse dor, também
já não haveria vida.
Sentia-se cheio de frio e muito triste.
Olhou para longe, através do rio, por sobre a cúpula do
Hotel Charing Cross. Ali estavam os elementos da nova
Londres. O domo inarticulado e utilitário do Royal Festival
Hall. A arquitectura deteriorada do Queen Elizabeth Hall;
um compromisso entre uma instituição penal e uma estação
espacial. Nova Londres. Uma arquitectura económica e
implacável. E, mais além, cubos de aluminio e vidro
persuadindo o horizonte de Londres a imitar Chicago.
Algumas das estruturas inanimadas permaneciam por acabar,
vítimas de greves continuadas. Acima destes feios
amontoados, os guindastes estavam de atalaia à construção
gigantesca, como esqueletos de dinossauros pousados até se
nutrirem de enormes blocos de terreno salobro.
Desgostoso, ele desviou os olhos. Tinha desaparecido tanta
coisa! Até as fachadas temporariamente afastadas do
Progresso estavam mascaradas por andaimes e anúncios de
saldo como se tivessem sido limpas e esfregadas para lhes
retirar a sua pátina característica.
Tudo tinha desaparecido.
Sentiu gotas a deslizarem-lhe pelas pernas. E não era só
sangue, como entendeu, desesperado. Repulsivo. Asqueroso.
Uma réstia de sol penetrou através das camadas mais baixas
das nuvens cor de zinco. Começou a sentir calor. Luz. Como
se flutuasse. Devia ser bom não ter peso. Uma obnubilação
abençoada começou a espalhar-se por ele acima. A garganta
tornou-se-lhe espessa. Estava tão cansado:
O zumbido e o clangor da maquinaria devolveu-lhe a
consciência. O badalo do sino grande estava a ser puxado
para baixo, por meio do seu cordão, ficando suspenso
durante um segundo antes de ser largado. O campanário
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rugiu e vibrou! O mecanismo abanou com violência. A dor foi
pirotécnica enquanto tudo dentro dele estoirava!
Foi então que Parnell-Greene gritou.
Ninguém o ouviu.
Nessa noite, os factos vinham nos vespertinos, cada um
deles reflectindo o gosto dos seus leitores:
TOCADOR DE SINOS INVESTIGA GOLPE!
A OPOSIÇÃO PÕE A QUESTÃO DA SEGURANÇA " DOS CAMPANÁRIOS
NACIONAIS.
TOCADOR DE SINOS INVESTIGA GOLPE!
FREQUENTADOR DA IGREJA HABITUADO A MADRUGAR VAI DIREITO A
QUESTãO!
A BBC interrompeu a sua longa série sobre o desenvolvimento
da viola de gamba para transmitir um noticiário especial
onde três altos dignitários da universidade descreveram o
uso da tortura em geral e da empalação em particular no
mundo ocidental. Depois um grupo de peritos discutiu as
implicações desta última empalação em vésperas da entrada
da Inglaterra para o Mercado Comum. Por fim, uma mulher do
Partido Trabalhista tornou claro que esta empalação literal
tinha chocado e enojado a nação, enquanto a mesma se
mantinha perfeitamente indiferente à empalação figurada do
sexo feminino no falo do chauvinismo masculino anos após
anos, o que, afinal de contas, era...

BLOOMSBURY
"Tu! " acusava o cantor, apontando por cima das cabeças da
multidão com um dedo curvado, o outro punho na anca, os
olhos esbugalhados e rolando nos seus círculos de pintura
verde, a sua vistosa peruca dourada brilhando à luz da
ribalta. "Tu!.
estás a pôr- me louco
Que posso fazer? Que posso fazer?
O meu amor por ti obscurece tudo... "
O tom de contralto misturava-se com o dos instrumentos em
surdina, enquanto o seu torso se inclinava a compasso com a
canção e os joelhos se flectiam mecanicamente. Estava numa
plataforma elevada, e a sua face sem sobrancelhas, de
palhaço esbranquiçado, oscilava ritmicamente sobre as
cabeças das pessoas que chalravam. Os salões de exposição
das Tomlinson's Galeries zumbiam com as conversas:
conversas íntimas, significativas e intensas; conversas
cheias de sentido sobre a arte e a vida; conversas
espirituosas destinadas a serem ouvidas e repetidas.
"... portanto coloquei-me simplesmente nas suas mãos. Ele
desenha todos os meus fatos e até escolhe as minhas camisas
e gravatas. De facto, faz de mim aquilo que vê em mim... "
"... por amor de Deus, Midge, ele não é apenas teu marido,
também é meu amigo. Achas que eu queria feri-lo? "
"... será uma mudança fazer um retrato seu. Gostaria de
tentar captar a sua... hmm... profundidade e expressá-la em
- bem, francamente - em termos sexuais... "
"... bem, já que me pergunta, dir-lhe-ei que foi um acto
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intolerável de desafio - um repto lançado à Polícia.
Empalar um homem numa estaca de madeira no campanário de
St. Martin-in-the-Fields! Dás-me outro martini, meu amor? "
No momento em que Jonathan Hemlock pisou a sala de
recepções lamentou ter ido. Olhou sobre as cabeças, mas não
viu a mulher com a qual se deveria encontrar, portanto,
começou lentamente a escapar-se em direcção à porta,
brincando habilidosamente com os óculos e acenando para os
modelos esqueléticos que se penduravam impacientemente nos
braços dos homens mais velhos e sorriam à sua passagem. Mas
quando ia precisamente transpor a porta David Tomlinson
agarrou-o por um braço, dirigindo-o para o meio da sala e
saltou para um pufe.
- Ouçam todos! Todos! - Um silêncio que se encrespou
ligeiramente desde o centro para o exterior. - Tenho a
enorme honra de vos apresentar o doutor Jonathan Hemlock
que veio direitinho da América para nos mostrar exactamente
o que, é a arte e tudo o mais. Risos à socapa e um "Ouçam,
ouçam". Todos os tipos de pessoas se reuniram aqui para se
encontrarem com ele: o Guggenheim, o Conselho das Artes,
toda essa gente dedicada à beneficência. E temos obrigação
de tirar bom proveito dele. Não precisamos de comentários
teus, Andrew! - Risos disfarçados. Agora todos vocês têm
que ver o que fazem porque o doutor Hemlock sabe realmente
alguma coisa acerca de arte. Gemidos e uma risadinha. -
Tenho a certéza de que todos vocês leram os seus livros e
agora aqui está ele em carne e osso. E lembrem-se disto!
Viram-no pela primeira vez na Tomlinson. - Risos e grandes
aplausos.
Tomlinson saltou do pufe e falou com tanta sinceridade que
parecia ter dores.
- Estou na verdade encantado por Van o ter convencido a vir
cá. Você fez a noite. Posso chamar-lhe Jonathan?
- Não. Olhe, não viu realmente Van, pois não?
- De facto, não vi.
Jonathan grunhiu e deslizou para o bar "onde pediu um
Inphroaig duplo. Não reparou em Fforbes-Ffitch, que se
aproximava, a tempo de poder evitá-lo.
- Ouvi dizer que estaria aqui, Jon. Acho que desisti de
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muita coisa por causa deste acontecimento. - Fforbes-Ffitch
falava com o sotaque nítido "mais-activo-que-você" do
académico incansável. Tinha-se doutorado nos Estados
Unidos, onde aparentemente se fizera perito na gerência de
fundos, treino esse que aplicou com tanto engenho que se
tornara o dirigente mais novo do departamento do Royal
College of Art, e, recentemente, um dos administradores da
National Gallery. - Fale, Jon. Diga-me se recebeu o meu
memorando? - Jonathan nunca usava o primeiro nome de
Fforbes-Ffitch. Nem sequer sabia qual era.
- Que memorando?
Fforbes-Ffitch ajeitou o bigode caído, carregando-lhe para
baixo com o polegar, e aclarou a garganta para proferir com
importância:
- Aquele acerca duma série de conferências na Escandinávia.
Jonathan recebera-o semanas antes e havia-o classificado
como uma tentativa de Fforbes-Ffitch para fazer brilhar a
sua reputação de homem que conhecia pessoas importantes e
conseguia que as coisas se fizessem.
- Não, não recebi nada.
- Que acha da ideia?
- Péssima.
- Oh! Oh! Bem, isso é mau. Há muita gente aqui esta noite,
não acha?
- Não.
- Bem, sim. Concordo consigo. Não são realmente eruditos, é
claro. Mas... gente importante. Bom! Tenho que ir. A
secretária abarrota de trabalho a gritar para ser feito.
- É melhor ir fazê-lo.
- Certo. Saúde!
Jonathan sentiu uma grande fadiga social enquanto observava
a partida de Fforbes-Ffitch através da multidão, apertando
as mãos de alguns "nomes" e ignorando elaboradamente os
outros. Não restavam dúvidas: Fforbes-Ffitch era um homem a
caminho do grau de cavaleiro.
Jonathan acabara justamente o seu uisque e aprontava-se
para sair quando Vanessa Dyke apareceu ao seu lado.
- Estás a divertir-te, querido? - perguntou maldosamente.
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Ele sorriu suavemente para as pessoas que se atropelavam e
falou com ela pelo canto da boca.
- Onde tens estado? Disseste-me que já não haveria mais
nenhuma destas.
Ela acenou para alguém através da mesa.
- A verdade é que menti. Tão simples como isso.
- Um destes dias, Van...
- Daqui em diante eu cuido disso.
Bateu um Gauloise na unha do polegar e acendeu-o,
envolvendo o fósforo com as mãos como um marinheiro num
deck ventoso. Depois, olhou através do fumo acre que se
espiralava para ver se descobria um cinzeiro e, não o
encontrando, deixou cair o fósforo na carpeta espessa. Com
um punho na anca, olhou com desdém para os convidados, o
penetrante cigarro francês oscilando ao canto da boca, os
olhos duros e inteligentes examinando e rejeitando os
indivíduos. Apesar de ser uma americana expatriada, Vanessa
escrevia a crítica de arte mais incisiva, mais penetrante
de Inglaterra, sob o nome Van Dyke que os não-iniciados
julgavam ser um pseudónimo. Jonathan conhecia-a há anos e
sempre a admirara e gostara dela, mesmo durante o
extravagante estádio da sua vida em que percorria as festas
com uma jovem prostituta pendurada em cada braço,
ostentando a sua homossexualidade com um vigor defensivo.
Em arte, eles discordavam totalmente e em privado travavam
grandes batalhas, mas quisesse alguém menos informado
juntar-se-lhes que imediatamente o destruíriam.
Jonathan observou-lhe o perfil e reparou com surpresa que a
idade fazia rápidos estragos em Van. Ainda esbelta como um
junco sob as calças pretas e a camisola de "gola de
tartaruga", que eram a sua marca registada, já mostrava
salpicos no cabelo curto, e os movimentos vigilantes,
nervosos, das suas mãos expressivas revelavam unhas roídas
até ao sabugo.
- Encontraste o "jovem que se debate"? - perguntou ela,
apoiando-se no bar com os cotovelos e vigiando as pessoas
impiedosamente.
- Não. Por que me pediste para vir aqui?
Vanessa evitou a pergunta.
- Viste a merda que ele fez?
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- Olhei em volta quando entrei.
- É ele que está ali - apontou ela com o queixo bicudo.
Jonathan olhou através dos muitos copos para umjovem
sorumbático, com uma barba desgrenhada e um casaco de
caçador em belbutina, que mostrava a sua falta de classe
emborcando cerveja. Estava rodeado por pessoas tão ansiosas
por serem vistas com ele que se sentiam dispostas a pagar o
preço de o ouvir. Em segundo plano, andando dum lado para o
outro, via- se uma jovem com ar indeciso, envergando um
vestido comprido, o nariz pontiagudo espreitando entre
cascatas de longo cabelo oleoso. Aparentava o ar
concentrado da esposa dum estudante graduado preocupada com
a injustiça social, e Jonathan pensou que devia ser a
amante do pintor.
Na verdade, elas pareciam todas iguais!
Sabendo que o curso dos pensamentos dele deveria ser
idêntico ao seu próprio, Vanessa encolheu os ombros,
comentando:
- Bem, pelo menos parece absolutamente despretensioso.
Jonathan olhou novamente para as garatujas modernas
penduradas nas paredes alcatifadas.
- Quais são as opções dele?
Um par empurrava a multidão enquanto rompia caminho em
direcção a Jonathan.
- Oh, meu Deus! - disse este entre os dentes arreganhados
num sorriso.
- Anda! - exclamou Vanessa, entrelaçando o braço no dele e
guiando-o, ao mesmo tempo que se lhe agarrava arvorando a
máscara duma conversa romântica. Mas, mal voltaram a
primeira esquina, foram cair num grupo de três que debatia
um assunto qualquer e lhes bloqueou a passagem.
- Van, és uma puta! - saudou um jovem de casacco de camurça
azul-pálido com franjas de ponta metalizada. Trouxeste aqui
o teu perito em arte tão elogiado, por iniciativa tua, e
agora estás a devorá-lo sozinha! - Olhou para Jonathan com
os sobrolhos erguidos à espera duma apresentação.
Vanessa ignorou-o, voltando-se para um homem de
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meia-idade que vestia roupas pesadas e exibia uma expressão
notória e ansiosa de quem possuía um faro canino.
- Sir Wilfred Pyles, Jonathan Hemlock. Julgo que a sua
comissão tem algo a ver com o facto de o encontrar aqui.
- Ainda bem que o vejo, Jon.
- Quer dizer, nesta festa, Fred?
- Bem, não exactamente. Referia-me a encontrá-lo no país
neste momento.
- Ah... Ah! - comentou Vanessa. - Não fazia a menor ideia
de que os dois se conheciam.
- Pois conhecemos - explicou Sir Wilfred. - Há anos que sou
um dos admiradores de Jon. Mas não como crítico de arte.
Receio bem ser apenas um daqueles compradores que sabem do
que gostam. Não, o meu conhecimento com Jonathan Hemlock
foi sob um tópico bastante diferente. Eu costumava ser um
alpinista amador entusiasta, não sei se sabem. Na
realidade, só resfolegava e martelava os montes. Mas lia
todos os jornais e sabia todas as proezas deste camarada. E
quando me surgiu uma hipótese de o conhecer, agarrei-a.
Foi... há quanto tempo, Jon?
Jonathan sorriu, incomodado como ficava sempre que se
falava de alpinismo.
- Fiz montanhismo durante anos.
- Bem, não conseguiria lembrar-me. Isto é, aquele negócio
do Eiger" deve ter sido desagradável. Três homens, não era?
Jonathan aclarou a garganta.
- Nunca mais fiz alpinismo a sério.
- E não foi só isso - disse Vanessa apertando-lhe o braço e
percebendo que ele queria mudar de assunto. - Ele também
desistiu de fazer crítica a sério. Ou não leu o seu último
saco de lixo? - Virou-se para a bela mulher de caracóis e
idade indefinida que estava ao lado de Sir Wilfred. - E a
senhora é...:
- Oh, sim, desculpe - disse Sir Wilfred. - Mrs. Amelia
Farquahar. Uma amiga minha.
" Ele refere-se ao tema do livro Missdo Eiger do mesmo
autor e já publicado pelo Círculo de Leitores. (N. da T. ).
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- Ainda ninguém me apresentou - declarou o jovem de casaco
de camurça.
Vanessa deu-lhe uma palmadinha na cara.
- É porque ninguém deu ainda por si, meu querido.
- Oh, duvido. Duvido muito. - Mas a irritação durou um
segundo. - De facto, estávamos a ter uma conversa muito
animada quando apareceu. Animada e um pouco imprópria.
- Sim? - perguntou Vanessa a Mrs. Farquahar.
- É verdade. Estávamos a discutir, na realidade, o mito do
clímax vaginal. - Mrs. Farquahar rodou até ficar de frente
para Jonathan. - Qual é a sua opinião nesse capítulo,
doutor Hemlock?
- Como crítico de arte?
- Se prefere, como alpinista.
Sir Wilfred grunhiu:
- Tudo por causa da libertação da mulher. Não devia
admirar-me. Ouvi dizer que no seu país tem havido muito
disso.
- A maior parte entre os vencidos - respondeu Jonathan,
sorrindo.
Vanessa sorriu por sua vez.
- És uma droga.
- E a senhora, Miss Dyke? - perguntou Mrs. Farquahar. Tem
alguma opinião pessoal?
Vanessa sacudiu a cinza do cigarro no copo de vinho do
rapaz de casaco de camurça.
- Não há nada que seja um mito. O que está errado é pensar-
se que é preciso um pénis para se conseguir isso.
- Que interessante - disse Mrs. Farquahar.
- Não me diga! - intrometeu-se o do casaco de camurça,
sentindo que, de qualquer forma, fora afastado da conversa.
- Leram a história daquele homem que encontraram empalado
em St. Martin-in-the-Fields?
- Oh, que assunto horrível - exclamou Sir Wilfred.
- Não sei... Se se tiver que ir... - Mexeu um ombro e bebeu
um gole de vinho.
Enquanto este apanhava o pedacinho de tabaco, Vanessa disse
para Mrs. Farquahar:
- Venha, deixe-me apresentá-la ao jovem que reuniu este
brilhante grupo.
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- Sim. Gostaria muito.
Romperam através da multidão, com Vanessa a abrir caminho
naquele mar de gente. O rapaz do casaco de camurça pôs-se
nos bicos dos pés e acenou extravagantemente para alguém
que acabara de entrar, depois esforçou-se por se afastar
após uma palavra de desculpa. Jonathan e Sir Wilfred
ficaram lado a lado, encostados à parede.
- O que era aquilo tudo acerca de alpinismo, Fred? Jonathan
falava sem olhar para ele. - Ficou com uma hemorragia
mental só porestarem cima duma carpeta grossa?
- Foi a primeira coisa que me ocorreu, Jon. - As entoações
grosseiras do desajeitado funcionário do serviço civil
tinham desaparecido da sua fala.
- Estou a ver. Ainda está nos serviços?
- Não, não. Há uns anos que me puseram na prateleira. A
extensão das minhas actividades de contra-espionagem agora
consiste em saber se o meu motorista contou muitas ou
poucas coisas à minha mulher.
- Quando vi o seu nome no meu convite para vir hoje aqui,
calculei que o MI-5 lhe tinha arranjado uma cobertura
bastante elástica.
- Receio que não. Estou completa e verdadeiramente a
"pastar". A era da electrónica apanhou-me. Nos nossos dias
é preciso ser um raio dum engenheiro para continuar no
jogo. Não sirvo o meu país presidindo a comités devotados à
tarefa de enriquecer culturalmente as nossas costas. Você
constitui um enriquecimento cultural. - E riu. - Quem teria
pensado nos velhos tempos quando flanávamos pela Europa,
tão depressa na mesma equipa como em equipas opostas, que
cairíamos tão baixo?
- Como sabe você que agora estou completamente fora?
- Jonathan queria ter a certeza.
- Oh, estou certo disso. Primeiro que nada verifiquei as
vezes que o seu nome aparecia. Os tipos do velho gabinete
disseram que você era, para usar o seu cumprimento pouco
lisonjeiro, politicamente subpotente. Por aí percebi que
você e a CII estavam de relações cortadas.
- Isso é verdade. A propósito, parabéns pelo seu grau de
cavaleiro.
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- Não foi uma aquisição assim tão grande como se poderia
imaginar. Hoje em dia poucas pessoas escapam a essa
distinção. Quando você deixou o serviço eles pespegaram-lhe
automaticamente com a KBE. Devem ter achado que era mais
barato que um relógio de ouro, suponho. Ah! Eis que as
senhoras regressam!
Quando Vanessa se aproximou disse a Jonathan:
- Não te atraí aqui só para te castigar com as pessoas
minhas conhecidas. Há uma coisa que te quero mostrar.
Voltou-se para Mrs. Farquahar. - Jon e eu temos que fugir
por um momento.
Mrs. Farquahar sorriu e inclinou a cabeça.
No hall, onde havia uma certa tranquilidade, Jonathan
perguntou:
- O que é isto, Van?
Já vais ver. Uma hipótese de arranjares algum dinheiro
miúdo. Mas lembra-te: não fiques nervoso e não causes
sarilhos. Isso poderia ser péssimo para mim.
Encaminhou-se por um corredor, por trás da mesa na qual os
criados e as ajudantes da copa namoriscavam e dirigiu-se à
porta duma sala de exposições pequena e privada.
- Anda.
Jonathan entrou e estacou a seguir. Um cavalo e cavaleiro,
em bronze, de Marino Marini estava no centro duma sala
escurecida, as suas formas rudes acentuadas pelo ângulo
agudo duma luz dramaticamente colocada. Com cerca de um
metro de altura, uma pátina cor de areia, a escultura
parecia combinar aquelas características etruscas,
primitivas e granulosas de Marini com uma torção quase
oriental das cabeças do cavalo e do cavaleiro, menos típica
do autor. Mas o grosso pénis do cavaleiro, em feitio de
charuto, era uma assinatura de Marini. Jonathan caminhou
lentamente à roda da peça fundida, parando ocasionalmente
para reparar nalgum pormenor, com a atenção completamente
absorvida. Tão absorvida que passou um bocado antes de se
dar conta dum homem que se apoiava contra a parede mais
afastada, situado debaixo duma luz opaca que fora colocada
com tanto cuidado como a que iluminava o cavalo. Envergava
um conjunto extremamente típico de
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veludo dourado, coberto de pó, e um rufo de renda engomada
em redor do pescoço. Tinha os braços cruzados sobre
o peito, a posição equilibrada, mas com uma tensão interior
que a impedia de parecer descontraída. Olhava Jonathan
firmemente, seguindo-o com os seus olhos cinzentos, tão
pálidos que pareciam não ter cor.
Jonathan examinou o homem com franca curiosidade.
Tinha o mais belo busto masculino que ele já vira - uma
beleza que não era deste mundo, onde não se via o sangue,
que
os mestres da Renascença às vezes captavam. Intuitivamente
soube que o indivíduo tinha consciência do efeito da sua
beleza fria, e se colocara sob aquela luz especial para a
realçar.
- Então, Jonathan? - Vanessa parara para lá da luz.
A sua voz soava duma forma muito pouco habitual.
Jonathan olhou oútra vez para o homem da Renascença.
Algo na sua conduta tornava patente que não tencionava
falar e não queria que falassem com ele. Jonathan decidiu
deixá-lo jogar o seu estúpido jogo.
- Então, o quê? - perguntou a Van.
- É genuíno?
Jonathan sentiu-se surpreendido com a interrogação,
esquecendo-se das inúmeras vezes em que se apercebera que
o seu dom era quase único. Tal como algumas pessoas
tinham no desporto um lançamento perfeito, a vista de
Jonathan era também perfeita. Uma vez tendo visto o
trabalho de alguém jamais se enganava. Na realidade, era
sobre esse dom que se construíra a sua reputação e não,
como às vezes preferia que os outros acreditassem, sobre a
sua erudição.
- cláro que é genuíno. Marini fundiu três e mais tarde
quebrou um. Ninguém sabe porquê. Provavelmente, devido
a qualquer defeito. Mas agora só existem dois. Este é o
Cavalo de Dallas. Não sabia que estava em Inglaterra.
- Ah!... - Vanessa pegou num Gauloise para disfarçar
o nervosismo, depois perguntou repentinamente: - Que
preço julgas que poderá atingir?
Jonathan olhou para ela, estupefacto.
- É para vender?
Van puxou uma ampla fumaça e expeliu o fumo para o
tecto.
19
Jonathan olhou para o homem da Renascença, que não movera
um só músculo, continuando a observá-lo, os olhos sem cor
apanhados por um raio de luz precisamente abaixo das
sobrancelhas negras.
- Roubado? - perguntou Jonathan.
- Não - respondeu Vanessa.
- Ele não fala?
- Por favor, Jonathan. - E tocou-lhe no braço.
- Que se passa? Ele vai vender isto?
- Sim. Mas quer que tu o examines primeiro.
- Porquê? Você não precisa de mim para o autenticar. A sua
proveniência é incontestável. Até um perito inglês podia
tê-lo confirmado.
Dirigia-se ao homem de pé no lado oposto do feixe luminoso
que batia no cavalo. Quando o individuo falou a sua
pronúncia era tal qual ele havia previsto: exacta,
cuidadosamente modulada, descolorida.
- Como sabe que é o Cavalo de Dallas, doutor Hemlock?
- Ah, então fala! Julgava que só posava.
- Como sabe que é o Cavalo de Dallas?
Tão brevemente quanto possível, Jonathan explicou que
qualquer pessoa que conhecesse alguma coisa sobre os
Cavalos de Marini saberia a história do que fora comprado
pelo jovem milionário de Dallas que a seguir o levara para
o avião, e depois o transportara para o rancho. Ao ser
descarregado caíra e partira-se. Seguidamente fora soldado
por um aparelho automático, e, como ficara imperfeito,
relegaram-no para adorno do canto dos churrascos.
- Qualquer leigo o poderia reconhecer - disse ele apontando
para a soldadura grosseira.
O homem da Renascença acenou com a cabeça.
- claro que eu sabia a história.
- Então porque perguntou?
- Para o testar. Diga-me uma coisa: Quanto calcula que
valeria numa venda aberta ao público?
- Sou um profissional. Pagam-me para fazer avaliações.
Vanessa pigarreou.
20
- Ah... Jon, ele deu-me um envelope para ti. Tenho a
certeza de que corre tudo bem.
Nem a voz nem as palavras iam a carácter com a áspera e
grande bebedora que era Vanessa Dyke e Jonathan sentia
aversão por toda aquela montagem teatral. Respondeu
decisivamente:
- É impossível dizê-lo. O que o comprador quiser despender.
Depende da força do seu desejo ou do desejo que tem de que
os outros saibam que o possui. Se a memória me não falha, o
texano a quem você o comprou deu por ele qualquer coisa na
ordem dum quarto de milhão.
- O que poderia valer agora? - perguntou Vanessa. Jonathan
encolheu os ombros.
- Já te disse. Não posso sabê-lo.
O homem da Renascença falou sem mover sequer uma prega do
seu traje.
- Deixe-me fazer-lhe uma pergunta mais simples. Algo a que
você possa responder.
A meninice de Jonathan num bairro da lata transpareceu na
sua resposta:
- Ouça, amador da arte, guarde a sua gorjeta. Ou melhor
ainda, meta-a no cu.
E voltou-se para sair, mas Vanessa pôs-se-lhe no caminho.
- Por favor, Jon? Fazes-me uma coisa?
- O que tem este selvagem a ver contigo?
Ela franziu a cara e sacudiu a cabeça, não querendo
discutir aquilo no momento. Ele não compreendia e estava
furioso, mas Vanessa era uma amiga. Voltou para trás.
- O que quer saber?
O homem da Renascença abanou a cabeça, aceitando a
capitulação de Jonathan.
- O Cavalo será em breve posto à venda. Atingirá um preço
muito alto. Até que nível as pessoas do mundo da arte
achariam o preço inacreditável? Até que ponto os jornais
falariam nele?
Jonathan presumiu que aquilo era um ardil.
- Haverá comentários mas ninguém ficará particularmente
espantado até, digamos, meio milhão. Se ele vier duma fonte
digna de confiança.
21
- Meio milhão? De dólares?
- Sim, de dólares.
- Eu paguei mais por ele. O que acontecerá se o preço for
mais alto?
- Mais alto quanto?
- Digamos que... cinco milhões... de libras.
Jonathan riu.
- Nunca! A outra entidade privada tem um que pode ser
adquirido por um décimo dessa quantia. E que nunca se
quebrou.
- Talvez o comprador não queira o outro. Talvez tenha um
fraco por estátuas com defeito.
- Cinco milhões de libras é muito para um gosto pervertido
em relação a peças defeituosas.
- Então, nesse caso, um preço assim provocaria falatórios.
- Sim, provocaria.
- Estou a ver. - O homem da Renascença olhou para o chão. -
Obrigado pela sua opinião, doutor Hemlock.
- Acho que agora é melhor retirarmo-nos, Jon - disse
Vanessa tocando-lhe no braço.
Jonathan parou no hall e pediu o sobretudo ao porteiro.
- Então? Vais dizer-me o que foi esta história toda?
- O que hei-de dizer-te? Um amigo mútuo pediu-me para
arranjar um contacto entre vocês dois. Pagaram-me para
isso. Oh! Toma! - E deu-lhe um envelope grosso que continha
um grosso maço de notas.
- Mas quem é este tipo? Ela encolheu os ombros.
- Nunca o vi na minha vida, amor. Anda. Pago-te um copo.
- Não vou outra vez voltar para aquilo. De qualquer forma,
tenho um encontro esta noite.
Vanessa olhou por cima do ombro na direcção de Mrs.
Farquahar.
- Acho que também tenho.
Enquanto deslizava para dentro do sobretudo, ele olhou
novamente na direcção da porta da sala privada de
exposições.
- Tens alguns amigos estranhos, pequena.
22
- Achas realmente que sim?
Ela riu-se e sacudiu a cinza na salva de prata preparada
para receber os cartões, encaminhando-se depois para a sala
de recepção onde o cançonetista, de peruca loura e sombra
azul, se balouçava sobre as cabeças dos visitantes,
cantando num falsete flébil algo acerca duma chávena de
café, duma sanduíche e de "ti".
O homem da Renascença instalou-se no assento para o
passageiro do seu Interceptor Jensen e ajustou o fato para
evitar que se enrugasse.
- Ele já partiu?
O mudo acenou afirmativamente.
- E está a ser seguido?
O mudo tornou a acenar que sim.
O homem da Renascença carregou no botão do gravador e
encostou-se para ouvir um pouco de Bach, enquanto o carro
percorria ruidosamente o caminho privado com todas as luzes
acesas.
Um homem jovem vestindo um casaco desportivo em xadrez, e
tendo uma máquina fotográfica dependurada do pescoço,
estava parado dentro duma cabina onde se via um telefone
vermelho ao pé dum candeeiro público, numa esquina.
Enquanto do outro lado da linha se ouvia o zumbido duplo,
entalou inabilmente o receptor debaixo do queixo ao mesmo
tempo que rabiscava num bloco. Tinha
decorado o número da matrícula repetindo-o insistentemente
para si mesmo. Ouvindo em resposta um estalido e
um "hum", carregou na moeda e proferiu no seu sotaque
americano duro e carregado de erres.
- Olá, sou eu.
Uma voz bem educada respondeu:
- Sim? O que aconteceu, Yank?
- Como soube que era eu?
- Esse seu sotaque hermafrodita.
- Oh! Bem vejo. - Crestfallen, o jovem, abandonou o seu
sotaque americano mas continuou, no entanto, em tom
nasalado. - Ele deixou a festa, senhor. Tomou um táxi.
- Sim?
23
- Bem, pensei que gostaria de saber. Está a ser seguido.
- Óptimo. Óptimo.
- Devo ir atrás dele?
- Não, não seria prudente. - A voz bem educada silenciou
por um momento. - Muito bem. Suponho que você tem o truque
da Baker Street montado, não?
- Sim, senhor. Já agora, só no caso de querer saber,
reparei na hora em que partiu. Ele saiu exactamente às...
Meu Deus: .
- O que aconteceu?
- O meu relógio parou!
O homem do outro lado do fio suspirou profundamente.
- Boa-noite, Yank.
- Boa-noite, senhor.

COVENTGARDEN
Jonathan atirou-se para o assento de trás do táxi,
reparando apenas vagamente no sibilar do tráfego passando
sobre as ruas molhadas. Sentia a sua habitual náusea social
após as reuniões públicas com críticos literários,
professores, donos de galerias, protectores das artes - as
lesmas
paracriativas que oprimiam a arte com a sua atenção - os
parasitas que pretendiam ser simbiontes e que apoiavam, com
a sua liderança bajuladora, a teratogénica liberdade de
acção da arte democrática.
"Esquece-te disso", disse ele para consigo. "Não os deixes
agarrarem-te. " Pensou antecipadamente numa ou duas horas
agradáveis com MacTaint, a pessoa de quem mais gostava em
Londres. Um ladrão, um embusteiro e um vigarista com um
fino sentido da escatologia e um desdém insolente por
alguns imperativos sociais como a limpeza. Mac Taint
parecia ter saído das páginas de Dickens ou do coro da
Ópera dos Três Vinténs para visitar Londres. Mas conhecia
pintura como poucos na Europa, e na Grã-Bretanha era o
negociante mais activo no mercado negro " da arte roubada.
Embora Jonathan jamais tivesse visitado a
casa de MacTaint, encontrara-se muitas vezes com ele em
pequenos pubs perto de Covent Garden para beber, pilheriar
e falar de pintura.
Sorriu para si próprio ao recordar o seu primeiro encontro
três meses atrás. Regressava ao seu apartamento após
um dia arruinado por conferências dirigidas a estudantes
sérios e pouco dotados; reuniões com comités cujas regras
de procedimento parlamentar obscureciam os seus objectivos;
e encontros com gente da Academia e críticos de arte, todos
lutando por uma posição de destaque na sua minúscula arena.
Estava farto e necessitava passar algum tempo revigorante
com os seus quadros, os onze impressionistas que eram tudo
o que restava dos quatro anos em que trabalhara para a
Divisão de Pesquisa e Multa do CII. Aqueles
25
quadros eram a coisa mais importante da sua vida. Afinal de
contas, matara por causa deles. Sob a protecção e a bênção
do governo, ele executara seis "contra-assassinos"
("multas" na burocracia crepuscular da CII).
Cansado e deprimido, empurrara a porta do seu apartamento e
fora cair no meio duma festa que estava no auge. Todas as
luzes acesas, o uísque desaparecido, Haydin a tocar no
fonógrafo e a mobília arredada para facilitar a
contemplação dos onze impressionistas que pendiam das
paredes.
Mas era a festa duma única pessoa. Um homem velho sentava-
se sozinho num fundo sofá de orelhas, com um copo na mão, o
sobretudo esfarrapado ainda vestido, o colarinho subindo
até às orelhas, revelando apenas cabelo grisalho
esguedelhado e um nariz bolboso cor de batata nova.
- Entre! Entre! - convidou o velhote.
- Muito obrigado - replicou Jonathan, esperando que a
ironia não tivesse sido demasiado pesada.
- Quer um pouco de uísque?
- Sim. Acho que gostaria. - Jonathan deitou uma boa porção
de Laphroaig. - Posso refrescar um pouco o seu?
- Oh, isso é simpático, filho. Mas ainda tenho que chegue.
Jonathan arrancou a gabardina.
- Nesse caso, vá fazer o inferno para outro lado.
- Daqui a pouco. Descontraia-se, rapaz. Estou a regalar os
meus olhos cansados naquele pedaço de pigmento em crosta,
ali. Manet. Faz bem à alma.
Jonathan sorriu, intrigado com aquele velho duende que
parecia um cruzamento dum emérito professor provinciano com
um sujo homem do lixo.
- Sim, é uma reprodução muito boa.
- Merda.
- Senhor?
O visitante inclinou-se para a frente, a caspa tombando da
cabeleira emaranhada e pronunciou cuidadosamente:
- Merda. Se aquilo é uma reprodução eu sou a cuspinhadela
duma prostituta.
- Pense o que quiser. Agora saia.
26
Quando se aproximou do arrombador gnómico, Jonathan foi
detido por uma barreira de odor: suor antigo,
sujeira corporal, roupas bolorentas.
Ohomem idoso levantou a mão:
- Antes de bater, é melhor apresentar-me. Sou MacTaint.
Após um momento de estupefacção, Jonathan riu e sacudiu a
mão de MacTaint. Depois, durante várias horas,
beberam e falaram de pintura. Em nenhuma altura MacTaint
tirou o velho sobretudo esfarrapado que lhe dava pelo
tornozelo, e Jonathan havia de aprender que ele jamais o
fazia.
MacTaint despejou o resto do uísque, pousou a garrafa
no chão, junto do sofá, e virou para Jonathan um olhar
avaliador por baixo dos sobrolhos brancos muito juntos e
hirsutos, cuja característica eram pêlos que se espetavam
como antenas sobre os olhos brilhantes.
- Portanto, é você o Jonathan Hemlock! - Casquinou.
- Posso dizer-lhe, rapaz, que o seu aparecimento em cena
fez com que muitos de nós se mijassem. Poderia ter sido
uma grande chatice, sabe, com esses olhos fenomenais que
você tem. Os meus colegas do negócio de reprodução dos
mestres devem ter achado difícil prosseguir nas suas
vocações com você a rondar por aí. Falou-se até em aliviá-
lo do
fardo da sua maldita vida. Mas nessa altura!... Nessa altura
chegaram as boas notícias; que você, tal como todos os
homens notáveis, era no fundo o filho duma cadela, ladrão
e ganancioso.
- Já não sou muito ganancioso.
- É verdade, cheguei a pensar nisso. Não faz uma aquisição
há... há quanto tempo?
- Há quatro anos.
- E por que motivo?
- Separei-me da minha fonte de recursos monetários.
- Oh, sim. Correram boatos dum tipo qualquer de associação
com o governo. Tanto quanto me lembro é o género
de coisa de que ninguém quis saber. Até à data. Em parte
não se saiu mal. Ficou com estes belos quadros, dois dos
quais, se me é permitido recordar-lho, obteve por meio dos
meus bons ofícios.
27
- Nunca tive a certeza, Mac. O que é você? Um gatuno ou um
negociante?
- De preferência, um gatuno. Mas faço propaganda do
trabalho doutro homem quando os tempos vão maus. E você? O
que é você, além dum tremendo enigma?
- Um tremendo enigma? MacTaint coçou a nuca.
- Sabe perfeitamente ao que me refiro. Primeiro, os meus
camaradas também partilhavam a curiosidade que eu sentia
por si e juntámos fragmentos de informações. Pedacinhos e
peças que nunca pareciam formar um quadro completo. Você
tem esse dom, esses olhos que lhe tornam possível detectar
uma fraude à primeira vista. Mas o resto não faz muito
sentido. Professor universitário. Critico e escritor.
Coleccionador de quadros do mercado negro. Alpinista.
Empregado em qualquer sórdido departamento do governo. Um
tremendo enigma, eis o que você é.
O motorista de táxi praguejou entre dentes e puxou para
cima o travão de mão. Estavam engarrafados numa teia de
veículos perto de Trafalgar Square. Jonathan decidiu
percorrer a pé o resto do caminho. A sua ansiedade por se
livrar das pessoas da Tomlinson fizera com que se
adiantasse uma hora ao seu encontro com MacTaint, e podia
utilizá-la para fazer exercício.
Tentando afastar-se um pouco da gente e do barulho, desceu
a Craven Street, passou a Monk's Tavern, em direcção à
Craven Passage e aos Arches onde as mulheres velhas,
privadas de recursos, se instalavam para passar a noite nas
pedras da calçada, com bocados de papelão por baixo para
absorver a humidade, as costas contra as paredes de tijolo,
pedaços de tecido por cima por causa do frio. Passavam pelo
sono com o auxílio do gim, mas nunca tão profundamente que
deixassem de ouvir o passante casual a quem imploravam
moedas ou cigarros com vozes monótonas, litúrgicas.
Contraditória Londres!
Fugiu para as ruas mais retiradas. A sua mente voltava sem
cessar ao homem da Renascença que havia conhecido na
Tomlinson. Cinco milhões de libras por um cavalo de
28
Marini? Impossível! E contudo o homem parecia tão
confiante! O episódio incomodava Jonathan. Tinha as
características do absurdo implacável; do disparate
melodramático
e da ameaça muito genuína que ele associava àqueles que
brincavam aos jogos letais da espionagem internacional,
àquele grupo de mutantes sociais que outrora desprezara ao
trabalhar para a CII e que varrera da memória.
Voltoú para cima; entrou nas luzes e no barulho do centro
da cidade. A chuva passara a uma neblina suja e pendente
que barrava e matizava a confusão de néon e do ruído
através da qual multidões em busca de divertimento
colidiam nos seus caminhos.
Rapariguinhas modernas davam grandes passadas com
pernas ossudas a sair de saias pelo artelho, os ombros
franzinos curvados em má postura, algumas com cabelos
frisados, outras com cabeleiras lisas. Eram do tipo das que
renunciam aos artifícios da cosmética e insistem em ser
aceites pelo que são - contra. a guerra, socialmente
empenhadas, sexualmente libertas, insípidas, insípidas,
insípidas.
Jovens da classe operária matraqueavam ao longo dos
passeios com as espessas solas de plástico dos sapatos que a
mistificação de Picasso infligira à moda, os seus passos
mostrando já alusões ao porte tipico da mulher inglesa
adulta: pés chatos, joelhos metidos para dentro, rabos
rigidos - parecendo sofrer de qualquer doença crónica no
recto. Substanciais pedaços de perna reveladas até à
bifurcação pelas mini-saias, vastos seios fluidos fundindo-
se dentro de soutiens apertados, vozes palrantes estragadas
pelo
ofego glótico do Norte de Londres, peles vítimas da
propensão anglo-saxónica para as dietas sem vitaminas.
Corpos
frouxos, mentes frouxas. Anomalias gastronómicas. Potes
de migas.
Contrastante Londres!
Jonathan caminhava junto dos edifícios onde o trânsito
era menor.
- Um tostão para o Guy, senhor?
A voz vinha de trás. Virou-se e deparou com três rufiões
de ar mal-intencionado, no principio da casa dos vinte,
jeans e botas grossas com protectores. Um deles empurrava
uma cadeira de rodas na qual se podia ver uma efígie
reclinada de Guy Fawkes, feita de velhas roupas devidamente
recheadas e uma máscara cómica espreitando por debaixo dum
chapéu de coco.
- O que diz a isto, senhor? - O rufião mais alto agarrava-
lhe a manga. - Um tostão para o Guy?
- Desculpe. - Jonathan retirou-se. Caminhava com a sensação
da presença dos indivíduos perfurando-lhe a espinha, mas
eles não o seguiram.
Voltou para New Row com as suas luzes de gás, com os
postigos de lugares de hortaliça e padarias. Os seus passos
levaram-no lentamente para além dos Mazurka Clubs, dos Nosh
Bars, e Continuous Continental Revues de Picadilly, e mais
para o interior, para o Covent Garden, com a sua velha
mistura de mercado e actividades teatrais. Empresas
italianas que vendiam fruta por grosso, agências
maltrapilhas -de artistas, azeite importado e uma escola de
dança e ballet modernos - o sapateado era a especialidade.
Perto dum candeeiro uma prostituta observava carnivoramente
a sua aproximação. Era roliça e estava na casa dos
quarenta, as pernas gordas espreitando acima das espessas
meias pelo joelho. Ostentava um vestido curto e blaser
escolar com emblema, o cabelo platinado apartado em duas
longas tranças que lhe pendiam ao lado das bochechas
carnudas. Obedecendo aos recentes regulamentos policiais
não fez qualquer convite verbal, mas pôs o polegar na boca
e balouçou o grosso corpo dum lado para o outro,
arredondando os olhos com uma expressão um pouco agarotada.
Quando passou, Jonathan viu a massa escamosa da
maquilhagem, já estragada mas não retocada de cada vez que
suava no decurso do seu trabalho.
À medida que se embrenhava no mercado, o cheiro acre do
tráfego dava lugar ao odor muito adocicado da fruta
deteriorada e a camada de papéis ia sendo substituída por
outra feita de folhas de alface, escorregadia e perigosa
para o transeunte.
No fundo duma rua escura, um piano desafinado espancava
cordas dissonantes enquanto as silhuetas das bailarinas
fatigadas pulavam nas sombras das janelas embaciadas.
Raparigas jovens transpirando e arquejando nos seus húmidos
fatos de ginástica. Estrelas a serem feitas.
30
- Tostão para o Guy, senhor?
Ele girou, as costas contra a parede de tijolos, ambas as
mãos abertas em frente do peito.
Os dois garotos gritaram e fugiram pela rua abaixo,
abandonando o velho carrinho de bebé e a sua efígie
miserável e desengonçada com a máscara do Moncoso - um
dos anões da Branca de Neve.
Jonathan chamou-os, mas o seu brado apenas serviu para
os fazer acelerar ainda mais. Quando a rua se aquietou de
novo, ele riu de si próprio e meteu uma nota de uma libra
no bolso do Guy, esperando que as crianças voltassem para
o recuperar.
Caminhou através do grasnar das travessas e a seguir
entrou num cul-de-sac* onde havia iluminação. O fundo
dum pátio arruinado estava bloqueado por pesadas portas
duplas de madeira desbotada e lascada, que giravam
silenciosamente nos gonzos oleados. No interior, a
escuridão era
total, mas ele sabia que encontrara o seu caminho por causa
do cheiro rançoso, a cominhos, de suor antigo.
- Ah, está aí, meu rapaz. Tinha acabado de decidir que
saíria para o procurar. É fácil uma pessoa perder-se se
nunca cá esteve antes. Por aqui, siga-me.
Jonathan ficou parado até MacTaint abrir a porta interior,
inundando o pátio, preto como breu, com uma luz
amarelo-pálida. Transpuseram um largo espaço aberto, que
fora em tempos o depósito dum comerciante de fruta.
Havia palha excedente empilhada aos cantos, e dois
barrigudos fornos a carvão irradiavam um calor agradável,
com
as longas chaminés em forma de cachimbo espetando-se até
à sombra do tecto de lata ondulada, que ficava a uns sete
metros acima. Bem espaçados uns dos outros, viam-se três
pintores. Estavam de pé em charcos de luz provenientes de
lâmpadas eléctricas, com quebra-luzes de aço, suspensas de
longos arames. Dois deles continuaram a trabalhar nos seus
cavaletes, indiferentes à intrusão; o terceiro, um indivíduo
alto e cadavérico com uma barba relaxada e olhos selvagens,
virou-se e fitou com fúria os causadores da perturbação.
" Cul-de-sor - beco. Em francês no original. (N. da T. ).
31
Jonathan seguiu MacTaint através do pátio até uma porta que
se via ao fundo, e passaram os dois para um cosmo
totalmente diferente. A sala interior estava decorada num
luxuriante estilo vitoriano: lustres de cristal pendiam dum
tecto ornamentado; um papel de parede com pássaros azuis
revestia a sala; um bom fogo de lenha ardia numa lareira de
mármore; espelhos e nichos nas paredes distribuíam ainda
melhor uma luz com baixa intensidade e divãs comodamente
fundos, bem como cadeiras em macio damasco azul, especavam-
se em constelações à roda de mesas entalhadas e
marchetadas. Uma mulher completamente assoprada, a meio da
casa dos cinquenta, sentava-se num dos divãs, o braço
balofo oscilando por sobre as costas deste. O laranja
brilhante do seu cabelo debatia-se com o vermelho cor de
sangue do bâton pastoso, e festões de arrojadas jóias
cintilaram quando introduziu um cigarro numa boquilha a
imitar diamante.
- Ora, cá estamos - disse MacTaint enquanto se arrastava
para o bar, que parecia de cristal, sempre com o seu
sobretudo esfarrapado. - Afinal de contas, ele não se tinha
perdido. Este, meu amor querido, é Jonathan Hemlock, acerca
do qual nunca me ouviste dizer nada. E esta vaca enorme,
Jon, é Lilla, o meu purgatório pessoal. Laphroaig.
creio?: ...
Lilla fez voltear no ar a boquilha em ar de saudação.
- Que simpático da sua parte fazer-nos uma visita! O senhor
MacTaint nunca o mencionou. Enquanto ele está aqui, meu
querido, podias. dar-me uma gota de gim.
- Uma aldrabice de bebida - resmungou MacTaint em voz baixa.
- Venha. Sente-se aqui, doutor Hemlock - disse Lilla,
sacudindo a poeira do divã, ao lado do sítio onde se
sentava. - Julgo que está ligado ao teatro?
Jonathan sorriu polidamente para os olhos lânguidos e
demasiado maquilhados.
- Não, não. Não estou.
- Ah! Que pena. Durante muitos anos andei associada ao
mundo do espectáculo. E devo confessar que, às vezes, sinto
a falta dele. O riso! Os bons tempos!
MacTaint aproximou-se, bamboleante, com as bebidas.
32
- As suas únicas ligações com o teatro datam da altura
em que ela ficava cá fora e tentava apressar os gajos
demasiado bêbados para se ralarem com o que iam encontrar lá
dentro. Aí tens, amor. "Cus para cima"i, como se costuma
dizer na tua profissão.
- Não sejas rude, amor. - Entornou o copo de gim e
deu um estalo com os lábios, movimento esse que fez
sacolejar as suas bochechas caídas. Depois, passou uma mão
do
tamanho dum presunto pelo antebraço de Jonathan e disse:
- claro, suponho que agora está tudo mudado. Os antigos
artistas desapareceram; todos eles são jovens com cabelos
compridos e canções espalhafatosas. E deixou escapar a
sua mágoa sob a forma dum profundo suspiro.
- É pior do que julgas - respondeu MacTaint, deixando-se
cair numa cadeira de damasco e puxando outra com
os dedos dum dos pés, de forma a poder pousá-los em cima
dela. - A lei não permite que se ande com tabuleiros de
sanduiches fazendo propaganda das posições em que estavas
especializada. E quanto ao serviço oferecido aos
passageiros que permanecem dentro dos seus carros está
definitivamente fora de causa.
- Vai-te foder, MacTaint! - exclamou Lilla com um
sotaque novo que trazia consigo a maneira de falar das
ruas.
Instantaneamente, MacTaint respondeu a rigor:
- Dá o fora, minha cona de meio tostão! Dava-te um
pontapé no "arsenal" se não tivesse medo que ficasse lá a
minha bota!
Lilla levantou-se com uma dignidade trôpega e ofereceu a
mão a Jonathan.
- Sou obrigada a deixá-los, cavalheiros. Tenho que escrever
umas cartas antes de me deitar.
Jonathan ergueu-se e curvou-se ligeiramente.
- Boa-noite, Lilla.
Ela caminhou até à porta, na extremidade mais afastada
da sala, varrendo uma garrafa de gim quando passou pelo
bar. Teve que mudar duas vezes de rumo até alcançar o
centro da porta, que depois lhe trouxe algumas dificuldades
na abertura. Finalmente, aplicou-lhe um pontapé que fez
soltar uma dobradiça, deixando-a entreaberta. Virou-se e
33
acenou com a boquilha a Jonathan antes de desaparecer.
Jonathan olhou inquiridoramente para MacTaint, que
descobriu os dentes de baixo numa careta de prazer,
enquanto cavoucava com as unhas a barba curta encravada sob
o queixo.
- Ela bebe, sabe? - disse ele.
- Ah, sim?
- Oh, sim. Encontrei-a aí fora, no pátio, há quinze anos
- explicou ele, passando a coçar o sovaco. - Alguém a
espancara duma maneira linda.
- Então trouxe-a para cá?
- Para meu eterno remorso. Até agora! Uma desova ocasional
faz bem às glândulas. Ela é realmente um velho e bom
"buraco".
- Qual era o número que estava a representar para mim?
MacTaint encolheu os ombros.
- Bocados de antigos papéis que desempenhou, creio. Sabe,
ela é um pouco mais que desaparafusada.
- Não é a única. À sua saúde! - Jonathan bebeu meio uísque
e olhou em volta com um ar de apreciação genuína.
- Você está bem instalado.
MacTaint acenou, concordando.
- Agora já me não encarrego de muitos quadros. Apenas um ou
dois por ano. Mas sem o imposto de transacção ainda vai
dando.
- Quem são aqueles pintores que estão lá fora?
- Diabos me levem se sei! Vêm e vão. Mantendo aquilo quente
e iluminado, e há sempre chá, pão e queijo suficiente para
eles. Às vezes há só um ou dois, outras vezes uma meia
dúzia. Aquele alto, que lhe deitou um olhar furioso, tem
andado por aqui há anos e anos. Sempre a trabalhar na mesma
tela. Sente-se como se fosse o dono pelo direito de quem se
apodera de qualquer coisa, não me admiraria nada. Às vezes
queixa-se quando o queijo não é como gosta. Os outros vêm e
vão. Suponho que ouvem falar disto uns aos outros.
- Você é um bom homem, MacTaint.
- O raio da verdade não é essa! Alguma vez lhe disse que eu
próprio fui pintor em tempos?
- Não, nunca.
34
- Oh, sim! Há mais de quarenta anos. Estava cheio de
teorias acerca de arte e de socialismo. Se olhar para as
minhas pinturas poderá lê-las. Ensaios, é que o são.
Crianças esfomeadas, grevistas espancados pela polícia,
esse tipo de assuntos. Uma merda. Então achei que a minha
vocação era roubar e traficar com quadros.: É giro uma
pessoa descobrir aquilo para que tem jeito.
Permaneceram em silêncio durante uns momentos, fitando as
acrobacias do fogo amarelo e azul no centro. A certa altura
houve um silvo de centelhas e o som fez MacTaint sair da
sua meditação.
- Jon? Pedi-lhe para vir aqui esta noite por uma razão.
- Não foi só para lhe beber o uísque?
- Não. Tenho uma coisa que quero que você veja: Saiu da sua
cadeira e dirigiu-se a um quadro, numa velha moldura
ornamentada, com a face voltada para a parede. Pegou nele
com ternura e colocou-o em cima duma cadeira.
- O que pensa disto?
Jonathan esquadrinhou-o cuidadosamente e aquiesceu com a
cabeça. Depois inclinou-se para a frente para o ver em
pormenor. Passados cinco minutos sentou-se e acabou o seu
Laphroaig.
- Você não vai vender isto, pois não?
Os olhos de MacTaint cintilaram por baixo das sobrancelhas
muito juntas.
- E por que não?
- Pensava na sua reputação. Você nunca mascateou uma
falsificação, até agora.
- Malditos olhos os seus! - MacTaint cacarejou e coçou a
cabeça desgrenhada. - Passaria por uma inspecção e seria
aprovado em qualquer sítio do Mundo.
- Não estou a dizer que não seja uma boa cópia. De facto, é
extraordinária. Mas é uma reprodução e você nunca fez
negócio com fraudes.
- Não mace a sua cabeça com isso. Jamais vendi uma coisa de
segunda qualidade e nunca o farei. Mas satisfaça a minha
curiosidade, rapaz. Como pode dizer que é falsificado?
Jonathan encolheu os ombros. Era dificil explicar os
processos quase automáticos utilizados pelo seu cérebro e
olhos que constituíam aquele dom especial.
35
- Oh, montes de coisas - respondeu.
- Por exemplo?
Ele recostou-se e fechou os olhos, dragando o original de
J. -B. -S. Chardin, House o JCards, do espólio da memória e
focando-o enquanto estudava a sua imagem mental. Então,
abriu lentamente os olhos e examinou a pintura que estava
na sua frente.
- Certo. Isto foi feito na Holanda. Pelo menos usou-se a
técnica de Van M. Uma pintura relativamente sem valor da
mesma época e tamanho conveniente foi lixada por baixo, e a
superficie estalada recoberta com camadas sucessivas de
tinta.
MacTaint acenou afirmativamente.
- Mas o estalado aqui não ficou perfeito. - Tocou nas zonas
brancas em redor da face do jovem com um chapéu de três
bicos. - E como o estalado não saiu perfeito, o seu
falsificador rolou a tela para a forçar. Basicamente é
também um bom trabalho. Mas nestes pontos o estalado
deveria ser mais profundo e mais espaçado. O seu homem
parece ter esquecido que o branco seca mais devagar que os
outros pigmentos.
- E é esse o único defeito? O estalado?
- Não, não. Há dúzias de erros. A maioria deles consiste na
excessiva precisão. Os falsificadores têm tendência para
ser mais exactos na sua oficina do que o próprio artista.
Olhe aqui, por exemplo, para a perspectiva do olho esquerdo
do rapaz.
- A mim parece-me bem.
- Precisamente. No original, Chardin cometeu um ligeiro
erro, provavelmente causado por duas pausas no meio do
desenho. E agora olhe para a moeda. Há aqui um esboço
cuidadoso do pintor. No quadro original a moeda foi traçada
confusamente, como se fosse vista pelo pintor a uma
distância diferente.
MacTaint sacudiu a cabeça com admiração, e uma quantidade
de caspa caiu- lhe no colo.
- Malditos olhos os seus!
- Mesmo esquecendo os meus olhos, esta coisa abanaria tudo
no momento em que surgisse no mercado. O original está
pendurado na National Gallery.
36
- Oh, deixe-se disso!
E riram, sabendo que as maiores fraudes pendiam
castiçamente, e sem que ninguém duvidasse delas, nos
maiores museus do Mundo, enquanto os originais se exibiam
no esplendor clandestino das colecções privadas. De facto,
era o caso de todos, menos um, dos impressionistas de
Jonathan.
- Isto passaria num exame, Jon?
Ambos sabiam que os maiores conservadores dos museus
estavam limitados à documentação de amostras que possuíam,
apesar da sua queda para falarem em termos de conhecimento
genuíno.
- Com que proveniência? - perguntou Jonathan.
- Oh... digamos que estava pendurado na National Gallery no
lugar do original.
Jonathan ergueu as sobrancelhas, desta vez para expressar
espanto.
- Disso não tenho dúvidas. Mas como chegaria ao verdadeiro
Chardin, Mac? Desde aquela história de cinquenta e sete
eles apertaram a segurança e nunca mais houve um roubo que
tivesse êxito.
- O que o faz pensar dessa maneira? - Os olhos de MacTaint
arredondaram- se com surpresa fingida, o que o assemelhou
mais do que nunca a um duende maldoso.
- Mas... existe um tremendo sistema de alarme! Você não
poderia talvez nem sequer tirar um da parede sem ser
detectado.
- É claro que seria detectado. É sempre detectado.
- Sempre? Diga-me, MacTaint, quantos quadros gamou você da
National Gallery?
- Ao todo? - MacTaint enviesgou os olhos, concentrando-se.
- Desde o princípio? Ah... vejamos... sete. - Sete! -
Jonathan pasmou para o velhote. - Acho que vou tomar agora
essa tal bebida - comentou tranquilamente.
- Aqui tem.
- A sua!
Beberam sem falar. Jonathan agitou a cabeça. - Estou a
tentar visualizar o caso, Mac. Primeiro, você
entra no museu.
37
- Sim, entro. Entro no museu.
- Depois tira o quadro da parede. Os alarmes disparam.
- Um barulho horrível.
- Você pendura lá uma reprodução razoavelmente boa e safa-
se: É isso?
- Bem, não me safo, para falar com exactidão. É mais como
se corresse para a chaleira quando ela apita. Mas em termos
gerais, sim, é isso.
- Então o sistema de alarme diz-lhes qual o quadro que
sofreu uma tentativa de roubo, certo?
- Correcto.
- E contudo nunca lhes ocorre submeter o quadro a um
escrutínio profissional.
- Prestam-lhe grande atenção. Mas não o examinam. MacTaint
divertia-se com a abissal confusão de Jonathan.
- Está morto por saber como o faço, não é?
- Estou.
- Bem. Não lho direi. Dê à sua cabeça a oportunidade de se
preocupar com qualquer coisa. Vai descobri-lo facilmente
quando ler os jornais.
- Quando será isso?
- Exactamente daqui a uma semana.
- Você é um velhaco e dissimulado filho duma cadela.
- Faz parte do meu encanto.
- MacTaint Jonathan não prosseguiu. Ele não tinha dúvidas
de que a velha raposa apanharia o quadro.
- Sim - apiedou-se MacTaint -, vou dar-lhe uma pequena
sugestão. - Pescou um canivete das profundezas do bolso do
sobretudo e fez saltar uma das lâminas com a unha do
polegar, suja e partida. Depois, debruçou- se para a
pintura pelo espaço dum segundo antes de a romper duas
vezes, traçando um largo risco sobre o rosto do rapaz. Aqui
está. O que acha?
- Você é pílulas, MacTaint. Vou-me embora. MacTaint
casquinou uma risada para si mesmo, enquanto levava
Jonathan à porta.
- Nunca desejou fazer qualquer coisa assim, meu rapaz?
Estragar um quadro? Ou partir um ovo cru na mão? Ou beijar
uma dama desconhecida no elevador?
- Você é doido! Transmita a Lilla toda a minha afeição.
38
- Já tenho trabalho que chegue a tentar transmitir-lhe a
minha.
- Boa-noite.
O pátio-estúdio estava na escuridão, excepto no que
respeitava a uma só lâmpada, pendurada do tecto ondulado, e
ao brilho avermelhado do carvão ardente visível através dos
postigos de mica dos barrigudos fornos. Apenas uma pessoa
trabalhava, sozinha e numa concentração absorta dentro do
único círculo de luz. Jonathan atravessou silenciosamente o
chão de cimento e deteve-se no limite do círculo luminoso,
observando. A sua atenção estava tão presa às
atitudes alerta, felinas, de quem atacava a tela e depois
se afastava para criticar o efeito, que levou alguns
momentos antes de perceber que era uma mulher. Parecendo
ausente da sua presença, ela tirou o excesso de tinta do
pincel, seguro entre o polegar e o indicador, e limpou-o à
parte de trás das calças, colocando depois o pincel entre
os dentes e
pegando num mais fino para corrigir um pormenor qualquer. O
seu brioso método de limpar os pincéis era obviamente
rotineiro, porque a parte de trás das calças era um caos
das cores mais diversas e Jonathan achou-o mais
interessante do que o tema moderno da tela.
- O que pensa disto? - perguntou ela entre dentes, sem se
virar.
- É, sem dúvida, muito colorido. E tem uma tensão atraente.
Mas acho que a sua potencialidade de movimento é a
característica mais estimulante.
Ela deu um passo atrás e examinou criticamente o quadro.
- Tensão?
- Bem, não queria dizer rígido. Mais enérgico e compacto.
- E interessante?
- Muito interessante.
- É o beijo da morte. Quando as pessoas não gostam do que
fazemos e não querem magoar os nossos sentimentos caem
sempre no "interessante".
Jonathan riu.
- Sim, suponho que é verdade.
39
Estava deliciado com a voz dela. Possuia as vogais
enroladas da Irlanda e o tom era de contralto puro.
- Agora, diga-me a verdade. O que pensa disto, honestamente?
- Quer realmente saber?
- Provavelmente, não. - Com um movimento rápido afastou da
cara, com as costas da mão, uma madeixa de cabelo ambarino.
- Mas diga.
- Como grande parte da pintura moderna acho que lhe falta
disciplina; uma trampa auto-indulgente.
Ela tirou o pincel da boca e parou por um instante, com os
braços cruzados sobre o peito.
- Ora bem! Ninguém pode acusá-lo de tentar lisonjear uma
rapariga para lhe entrar dentro das cuecas.
- Porém, estou a lisonjeá-la - protestou Jon. - E
provavelmente por essa mesma razão.
Ela fitou-o pela primeira vez, os olhos prazenteiramente
estreitados.
- E isso resulta muitas vezes... dizê-lo duma maneira tão
atrevida?
- Não, não muitas vezes. Mas tem-me feito poupar toneladas
de energia do tamanho do inferno todo.
Ela desatou a rir.
- Sabe, realmente, alguma coisa de arte?
- Receio bem que sim.
- Bem vejo. - Pensativamente, tornou a colocar os pincéis
numa lata de sopa cheia de aguarrás. - Bom. É isso. Acho
que sim. - Voltou-se e sorriu. - Está disposto a celebrar?
- Celebrar o quê?
- O fim da minha carreira.
- Oh! Deixe-se disso!
- Não, não. Não se sinta lisonjeado por ter essa opinião,
já que está tão bem informado. Tal como estão as coisas
concordo consigo totalmente. Suponho que sou melhor crí
tica que pintora. Aliás, acabei de dar uma grande
contribuição à Arte. Afastei-me dela.
Ele sorriu.
- Como gostaria de celebrar?
- Acho que jantar seria boa ideia para começar. Não como
desde manhã.
40
- Está lisa?
- Como um seixo.
- O único sítio aberto a esta hora da noite deve ser um dos
restaurantes mais em moda. - E involuntariamente olhou para
a roupa dela.
- Não se rale. Não vou envergonhá-lo. Lavo-me e mudo de
fato antes de irmos.
- Tem a roupa aqui?
Ela fez um sinal em direcção a duas malas encostadas à
parede.
- A minha renda não foi paga esta manhã, sabe? E a dona da
casa, de qualquer forma, nunca gostou do cheiro a aguarrás.
- E começou a tirar a tinta das mãos com um trapo ensopado
em terebentina.
- Tenciona dormir aqui?
- Só esta noite. Aquele velhote esquisito não se vai ralar.
Já outros pintores o fizeram, de tempos a tempos. Gastei o
resto da massa a mandar um telegrama de SOS a umas parentes
na Irlanda. Amanhã de manhã mandarão qualquer coisa.
Suspeito eu. Pode voltar-se de costas se o nu feminino o
perturba. Não que eu seja um nu muito especial.
- Não, não. Avance. Tenho passado alguns dos meus momentos
mais felizes na presença de nus.
- Contorceu-se para sair dos jeans apertados, empurrando-os
com as mãos.
- É claro que, como nu, eu não seria certamente o ideal de
Rubens. Sou quase o oposto daquelas amplitudes. De facto,
estou danadamente perto das duas dimensões.
- São duas das minhas dimensões favoritas.
Ela estava justamente a puxar a camisola por cima da cabeça
e parou a meio do movimento olhando através do pescoço
aberto.
- Você tem uma maneira volúvel e superficial de falar.
Suponho que as raparigas acham isso giro.
- Mas você não.
- Não, não especialmente. Mas não o censuro, porque suponho
que é hábito seu. Pensa que isto servirá? - Puxou da mala
um vestido de cerimónia, longo e verde-salsa, que ligava
com os tons cúpricos do seu cabelo.
41
- Servirá perfeitamente.
Ela enfiou-o pela cabeça, depois ajeitou com a mão o cabelo
curto e fino.
- Estou pronta.
Ele deu-lhe a escolher uma lista de restaurantes e ela
seleccionou um francês e caro perto de Regent's Park,
argumentando que nunca tivera dinheiro para lá ir e era
divertido ser ao mesmo tempo quem pedia e quem mandava. Não
havia na refeição uma só coisa certa. A manteiga dos
lagostins au meunière sabia a trutas, a salada miçoise
estava mais ácida do que estaladiça e o único vinho à
temperatura correcta era um Pouilly- Foissé, esse branco
átono que entusiasma uma faixa tão ampla do paladar inglês.
Mas Jonathan adorou enormemente a noite. A rapariga era uma
feiticeira e a qualidade do alimento não interessava,
excepto como mais um motivo para risos. A cadência e o
colorido do seu sotaque eram contagiosos e ele teve que
impedir-se de começar a imitá-los.
Ela comia com um apetite saudável ambas as doses - dele e
dela - enquanto Jonathan a observava com prazer. O rosto
dela intrigava-o. A boca era demasiado grande. A linha do
maxilar quadrada demais. O nariz insignificante. O cabelo
ambarino tão fino que parecia constantemente agitado por
brisas que se não sentiam. Tinha uma cara arrapazada com a
flexibilidade travessa duma garota da rua. A feição mais
marcante eram os olhos, verde-garrafa e proporcionalmente
enormes, e as espessas pestanas como pincéis de areia. A
sua característica especial provinha dos rápidos remoinhos
de expressão de que eram capazes. O riso podia apertá-los;
noutro momento alisá-los num olhar de surpresa vulnerável;
depois, instantaneamente, estreitavam-se de incredulidade;
a seguir mostravam-se penetrantes e a brilhar de
inteligência; mas, de resto, nada tinham de especial. De
facto, não existia um único elemento notável na sua face,
mas ele achava o conjunto fascinante.
- Acha-me bonita? - inquiriu ela, levantando os olhos e
encontrando os dele.
- Bonita, não.
- Já sei o que quer dizer. Mas é uma cara patusca.
42
Gosto de fazer auto-retratos. Mas tenho que suprimir esse
louco desejo de correcção que sou obrigada a acrescentar ao
meu polegar avaliador. O seu rosto não é mau de todo, "
sabe?
- Sinto-me muito feliz com isso.
Ela voltou à salada.
- Sim, é uma cara interessante. Cheia de ângulos e
escarpáda, etc... etc... Mas os olhos são uma maçada.
- Oh!
- Tem a certeza de que não sente fome?
- Absoluta.
- Na realidade, são esmagadores. Mas não muito cómodos. -
Fitou-o e examinou-o profissionalmente. Torna-se difícil
dizer se são verdes ou cinzentos. E mesmo quando você sorri
e ri, etc... etc... nunca mudam. Percebe o que quero dizer?
- Não. - Claro que sabia mas queria que ela falasse mais
acerca dele.
- Bem, a maioria das pessoas possui olhos que estão em
concordância com os seus pensamentos. Janelas da alma
etc... Mas não os seus. Não se pode ler nada neles se os
observarmos.
- E isso é mau?
- Não. Só pouco cómodo. Se não vai comer essa salada vou
evitar que se estrague.
Mais um café, mais um conhaque, mais um café e eles
conversando sem objectivo.
- Sabe o que sempre desejei na vida?
- Não. O que foi?
- Sempre desejei ser uma mulher de cor, alta e
terrivelmente simpática. Com pernas compridas e um olhar de
soslaio gelado e desdenhoso.
Ele riu.
- Porque desejou sê-lo?
- Oh, não sei, na verdade. Mas pense nas roupas que eu
podia usar sem ninguém me censurar!
- Oh, foi uma infância tipicamente classe média, julgo
eu. Mimada e estragada como um bebé; ignorada como
43
uma criança. Ensinada a passar nos exames e a ter uma boa
postura. O meu pai era um irlandês fanaticamente
nacionalista, mas, tal como a maioria, tinha complexos de
inferioridade. Mandou-me para a Universidade em Londres
para ficar mesmo com uma boa educação. E sentiram-se
encantados, regressei com um sotaque inglês. Quando era
rapariga odiei a escola. Particularmente desportos e
ginástica. Lembro-me de que tínhamos uma professora de
educação física muito, muito moderna. Era uma mulher enor
me e ossuda com uma voz afectada e um leve bigode. Tentava
incutir nas alunas as alegrias da ginástica rítmica. Devia
ter-nos visto! Um bando de miúdas desajeitadas, umas com
pernas como cabos de facas e joelhos nodosos, outras
plácidas e gordas, todas a fazer o possível por seguir as
instruções contorcer-se com uma paixão íntima, tentar
alcançar o deus-Sol e deixá-lo penetrar o vosso corpo! ".
Nós dávamos risadinhas à custa das paixões íntimas e das
penetrações e a professora chamava-nos superficiais, parvas
e com uma mentalidade porca. Depois, contorcia-se para nos
mostrar como as coisas se deviam fazer. E nós ríamos ainda
mais. Um cigarro?
- Não fumo.
Ela não parecia ter-se apercebido de que parara a história
a meio caminho e que ficara a remoer nos seus pensamentos.
Ele permitiu que o silêncio seguisse o seu curso e quando
ela o focou novamente, com um ligeiro sobressalto, comentou:
- Então, não quer regressar à Irlanda?
Ela esmagou o cigarro com decisão.
- Não, nunca mais. - Acendeu outro e ficou a olhar a luz
dourada como se a estivesse a ver pela primeira vez.
-Nunca mais devia ter ido ao Norte. Mas fui e aconteceram
coisas demais. Demasiado ódio. E morte. - Meditou e sacudiu
bruscamente a cabeça. - Não. Nunca mais voltarei para a
Irlanda.
- Diga-me uma coisa: gosta de Sterne? - perguntou ela.
- Ah, é engraçado você mencionar esse tipo.
44
- Porquê?
- Porque não tenho a menor ideia de quem está a falar.
- De Sterne - retrucou ela. - O escritor!
- Oh! Esse Sterne!
- Sempre tive uma intuição profunda de que me entenderia
bem com um homem que tivesse uma paixão por Sterne,
Troloppe e Galsworthy.
- E foi assim?
- Não sei. Nunca encontrei ninguém que gostasse de Sterne.
- Mais um café?
- Por favor.
- E decidiu começar a pintar?
- Oh, pouco a pouco. Primeiro, sem muita coragem. Depois,
dei o mergulho e decidi que não faria mais nada senão
pintar até o dinheiro se sumir. Os meus pais ficaram fulos,
especialmente depois de terem gasto tanto dinheiro comigo
aqui na Universidade. Suponho que ficariam mais felizes se
me dedicasse à prostituição. Pelo menos teriam entendido o
motivo lucrativo. Bem, pintei e tornei a pintar e ninguém
deu por nada. Depois fiquei sem dinheiro e vendi tudo o que
tinha algum valor. Mas a primeira coisa que aprendi é que
estava lisa como um seixo e que não tinha nem sequer
dinheiro para a renda.
- E é tudo.
- E é tudo. - Olhou-o e sorriu. - E aqui estou eu.
- Tenho uma confissão a fazer - disse ele com seriedade.
- Teve uma febre tifóide?
- Não.
- Está decidido a matar-se em sete minutos?
- Não.
- É um criado?
- Não. Você nunca conseguirá adivinhar.
- Nesse caso, desisto.
- Nunca gostei dos filmes de Eisenstein. Aborrecem-me até à
histeria.
- Isso é grave. E o que faz quando quer conversar um pouco?
45
- Oh, não estou a desculpar-me. Reconheço que é uma grande
falha no meu carácter.
- Oh, adoro guiar! Depressa, de noite, nas ruas desertas e
com as luzes apagadas. Não gosta?
- Não.
- A maioria dos homens gosta. Homens ingleses, em especial.
Utilizam carros de desporto por motivos sexuais, se percebe
o que quero dizer.
- Como os Italianos.
- Julgo que sim.
- Talvez seja por isso que ambos os países produzem tantos
pilotos de " Fórmula um" competentes. Praticam nas estradas
nacionais.
- Mas você não gosta de guiar depressa?
- Não preciso de o fazer.
Ela sorriu.
- Óptimo. - A primeira vogal era bem pronunciada e tinha um
caracol irlandês.
- Uma filosofia de vida própria? - perguntou ele, sorrindo
para si com a ideia. - Não, nunca tive. Quando miúdo éramos
demasiado pobres para a termos, e mais tarde já passara de
moda.
- Não, agora não esteja a desviar a conversa. Bem sei que
as palavras parecem pomposas, mas todos têm um tipo de
filosofia - uma forma qualquer de distinguir as coisas boas
das más, ou das potencialmente perigosas.
- Talvez. O mais parecido com isso que eu tive foi a minha
adesão rígida ao princípio de "deixar um pouco".
- Deixar um pouco o quê?
- Deixar um pouco tudo. Deixar uma festa antes de se tornar
maçadora. Deixar uma refeição antes de estar cheio. Deixar
uma cidade antes de sentir que já a conheço.
- Suponho que isso inclui relacionamentos humanos?
- Muito especialmente os relacionamentos humanos. Largá-los
quando ainda estão em ascensão. Deixá-los antes
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de se tornarem previsíveis ou, o que é pior, sem
significado. Estar disposto a esquecer alguns
acontecimentos para proteger a memória.
- Acho que é uma filosofia terrível!
- Lamento. É a única que consegui ter.
- É a filosofia dum cobarde!
- É a filosofia dum sobrevivente. Podemos passar ao
tabuleiro dos queijos?
Ele ergueu-se um pouco, por cortesia, quando ela voltou à
mesa.
- Um último brande? - perguntou ele.
- Sim, por favor - manteve-se pensativa durante um momento.
- Sabe? Acabou de ocorrer-me que se podia fazer um
barómetro útil das características nacionais estudando o
papel higiénico.
- O papel higiénico?
- Sim. Nunca lhe ocorreu?
- Ah, não. Nunca.
- Bem, por exemplo: acabei de notar que alguns papéis
ingleses são curativos. Você nunca encontraria isso na
Irlanda.
- Os Ingleses são uma raça meticulosa.
- Suponho que sim. Mas ouvi dizer que os papéis americanos
são macios e perfumados e se anunciam acariciando-os e
amarrotando-os, ao mesmo tempo que se faz publicidade de
supositórios e de alimentos tão bons que são de lamber os
dedos. Isso diz algo sobre a decadência e os costumes
fáceis numa nação que gasta mais que os seus recursos
próprios, não é?
- O que diria você do papel encerado que os Franceses
apreciam tanto?
- Não sei. Mais interesse na velocidade e no brilho do que
na eficiência?
- E do papel encrespado dos Italianos, que tem o toque
tenso duma hóstia de comunhão?
Ela encolheu os ombros. Era óbvio que também naquele caso
podia dizer qualquer coisa, mas estava cansada do jogo.
47
Ela deu-lhe o braço enquanto caminhavam ao longo da rua
molhada até à esquina, onde provavelmente haveria táxis.
- Deixo-a em casa do Mac. Fica mais ou menos no meu caminho.
- Onde vive você?
- Já aqui. - Realmente passavam na entrada dum hotel no
qual ele tinha um apartamento no último andar.
- Mas você disse...
- Acho que vou deixá-la ir.
Ela caminhou em silêncio por uns instantes, depois apertou-
lhe o braço.
- É um gesto simpático. Verdadeiramente gentil.
- Eu sou assim - respondeu ele, e riu.
- Mas é um pouco estranho que você viva precisamente a duas
portas do restaurante.
- Alto lá, minha senhora! Você é que escolheu o restaurante.
Ela fez uma careta.
- É verdade, não é? Em todo o caso continua a ser uma
coincidência perturbante.
Ele parou e pôs-lhe as mãos nos ombros procurando-lhe o
rosto com uma sinceridade simulada.
- Poderia ter sido o destino?
- Eu chamar-lhe-ia antes uma coincidência.
Ele concordou e começaram novamente a andar, desta vez para
trás, em direcção ao hotel.
O telefone tocou a dobrar, várias vezes, até uma voz
zangada responder:
- Sim? Sim?: ...
- Boa-noite, senhor.
- Meu Deus, sabe que horas são?
- Sim, senhor. Desculpe. Só pensei que gostaria de saber
que eles acabaram justamente de entrar no hotel dele, na
Baker Street.
- Há algum problema? Não está tudo preparado?
- Não há nenhum problema, senhor.
- Então, porque telefonou?
48
- Bem, só pensei que gostaria de saber em que ponto da peça
vamos. Entraram no hotel exactamente às... oh, meu... Tenho
que mandar ver este relógio, também.
Fez-se silêncio do outro lado da linha. Depois:
- Boa-noite, Yank.
- Boa-noite, senhor.
BAKER STREET
- Deus nos valha! - disse ela. - Isto é horrível! Jonathan
riu enquanto passava à frente, abrindo as luzes à medida
que ia andando. Ela seguiu-o através de duas salas.
- Nunca mais acaba? - perguntou.
- Há onze salas. Incluindo seis quartos, mas apenas uma
casa de banho.
- Isso deve causar alguns problemas de tráfego terríveis!
- Não. Vivo aqui sozinho.
Ela atirou-se para cima do tecido esponjoso, de veludo cor-
de-rosa, de uma chaise-longue enorme onde se viam
esculpidas conchas, dragões serpeando e sereias nutridas
pintadas à antiga com esmalte branco e realçadas a dourado.
- Receio tocar nestas velharias. Tenho medo de apanhar
alguma coisa.
- Não é um medo infundado. Nada é mais contagioso que o mau
gosto, como avisou Ortega Gasset. Basta olhar para a arte
pop ou para os romances de Robbe-Grillet.
Ela contemplou-o inquiridoramente.
- Você é realmente um académico, não é? - Observou a
lareira de mármore cor-de-rosa, o papel de parede com
arlequins, a moderna mobilia dinamarquesa, o fofo tapete
amarelo, as arandelas de vidro cor de beringela, as placas
de ferro forjado na parede. A profusão nauseosamente
arrebicada fez com que as narinas se lhe dilatassem e a
garganta se contraísse. - Como consegue você viver aqui?
Ele encolheu os ombros.
- de borla. E tenho um pequeno apartamento em Mayfair.
Apenas fico aqui quando estou deste lado da cidade.
- Deus cumulou-me de bondades. Impressionante,
50
cavalheiro! Dois apartamentos no meio duma tremenda falta
de casas. E ele lê Ortega y... não sei quem. Que mais pode
pedir uma mendiga?
- Pode pedir uma bebida. - E deitou-a por meio duma
garrafa de alumínio martelado em forma de pássaro
rechonchudo. - A única vantagem de ter isto aqui é fazer
com que andar nas ruas seja um prazer. E em Londres há
necessidade disso. A sua saúde!
- A sua. Você não acha Londres atraente?
- Bem, faz com que eu revalorize a minha opinião estética
de Gary, Indiana.
Ela pegou na bebida e encaminhou-se para a sala seguinte
que tinha um cariz menos acentuado.
- Como arranjou você isto? Tem inimigos no sector da
construção civil?
- Não. Isto pertence a um produtor de filmes que fez um
contrato de arrendamento há anos para ensopar algum do
Ndinheiro miúdo que ganhara em Inglaterra, mas não
conseguiu sair do país. Usa isto como pied à-terre quando
está
em Londres, e dá chaves aos amigos que podem passar por
aqui. Quando lhe disse que ficaria um ano em Inglaterra, ele
ofereceu-se para mo emprestar.
- Foi ele que o decorou?
- Utilizou mobiliário e bibelôs dos seus filmes. Aquele
tipo de coisas Doris DayRock Hudson.
- Estou a ver. Como faz você para se livrar do barulho?
- Venha comigo.
Conduziu-a através de duas salas até uma que fora deixada
por mobilar. Escolhera uma das divisões mais tranquilas e
pendurara a sua colecção de impressionistas em redor
das paredes cor de ardósia. Fora nessa sala que encontrara
certa vez MacTaint bebendo o seu uísque e admirando os
quadros.
As telas atraíram-na. Ela pousou o copo e parou em
frente dumpointilliste de Pisarro, em silêncio.
- O meu passatempo predilecto é coleccionar as melhores
cópias que consigo encontrar - comentou ele.
- Belo.
- Oh, sim. Até as cópias são capazes de colocar a pintura
moderna no seu lugar.
51
- Perfeitamente, cavalheiro - respondeu ela num irlandês
carregado. - Já tenho que chegue. - Atravessou em direcção
às altas janelas e olhou o desenho dos candeeiros da rua,
no parque abaixo. - Seis quartos, não é? A escolha dos
quartos deve ser uma maneira interessante de avaliar as
mulheres que traz aqui.
- Não tire "nabos da púcara".
- Desculpe. Tem toda a razão.
- De facto, acontece que nunca trouxe aqui mulher alguma.
Ela olhou-o por cima da beira do copo, os olhos verdes
arredondados numa máscara de ingenuidade.
- E eu sou a primeira, mesmo a primeira?
- É a primeira que eu convidei.
E contou-lhe como um dia, ao acordar, encontrara uma mulher
a cambalear na sua casa de banho. Apesar das olheiras e do
ar esverdeado duma orgia recente, ele reconhecera uma
actriz de cinema a quem a cirurgia estética e as injecções
no peito continuavam a manter. Era evidente que obtivera
uma chave do produtor anos atrás, e fora lá ter,
embriagada, após uma noite na cidade com um grupo de
rapazes gregos. Eles tinham-na deixado ali depois de lhe
terem tirado todo o dinheiro que havia na bolsa. Não se
lembrava de nada do que se passara na noite anterior e
depois de Jonathan lhe ter dado um pequeno-almoço leve para
que se aguentasse, embrulhara-se no seu abrigo, deitara-lhe
um olhar pestanejante, com os olhos avermelhados, e
perguntara-lhe o que achara da noite.
- E o que lhe disse você?
Jonathan encolheu os ombros.
- O que podia dizer-lhe? Disse-lhe que fora fantástica e
que jamais a esqueceria. Depois chamei um táxi.
- E ela foi-se embora?
- Depois de me dar o autógrafo. Está ali.
Ela foi até ao rebordo da lareira e encontrou uma folha de
papel.
- Mas está em branco!
- Sim. A caneta não tinha tinta, mas ela não deu por isso.
Ela dobrou cuidadosamente o papel e pô-lo no mesmo sítio.
52
- Pobre velhota.
- Ela não sabe. Pensa que é uma jovem.
- Mesmo assim, dá-me vontade de chorar.
- Se alguma vez voltar a acontecer, dará autógrafos em
branco a toda à gente.
Ela voltou para a janela e olhou silenciosamente, com o
rosto contra o reposteiro. Após uns momentos disse:
- Isso é simpático da sua parte.
- É só a maneira mais simples de resolver o problema. -
Suponho que sim. - Voltou-se e fitou-o pormenorizadamente.
- Como se chama você?
- Jonathan Hemlock. E você?
- Maggie. Maggie Coyne.
- Vamos para a cama, Maggie?
Ela acenou que sim e hesitou.
- Sim, gostaria, mas... - Os olhos dela franziram-se com
malícia. - Mas receio bem ter algumas notícias bastante más
para si.
Ele ficou calado por momentos.
- Está a brincar. Essas coisas não acontecem aos rapazes
que se portam bem.
- Desejaria que fosse brincadeira. Realmente não queria
chateá-lo. Mas não tinha nenhum sítio para onde ir,
compreende?
- Estou amaldiçoado por Deus!
- É pena que não nos tivéssemos encontrado um dia ou dois
mais tarde.
- Só um dia ou dois?
- Sim.
Jonathan ergueu-se:
- Minha senhora! Sempre achei que os prazeres mais subtis
do amor estavam reservados para aqueles que os apreciavam
com ousadia e abandono. O que acha disto?
Ela sorriu abertamente.
- Sempre pensei da mesma forma, cavalheiro.
- Então temos a mesma opinião.
- Pois temos.
- En route.
53
Aos primeiros alvores da manhã ele acordou e voltou-se para
Maggie, ficando o traseiro dela encostado ao seu colo. Em
resposta, ela aconchegou-se ligeiramente contra ele, e
Jonathan envolveu-a nos braços.
- Bom-dia. - A voz dele estava áspera devido ao pouco sono
e ao muito exercício.
- Bom-dia - murmurou ela.
Ele descansou a cabeça na nuca dela e enterrou o rosto no
seu cabelo.
- Maggie.
- O que foi?
- Nada. Estava a dizer o teu nome.
- Oh! Que simpático. Não é lá um nome muito famoso, apesar
de tudo. Nada romântico. Não tem vogais cantantes. Como
Diane, ou Alexandra, ou Tomasyn. Maggie é um nome
substancial. Carnudo. Podes não sonhar muito com uma
Maggie, mas poderás sempre confiar numa velha Maggie.
Ele sorriu ao som enrolado das vogais dela. A proximidade e
o calor do seu corpo começavam a fazer efeito aparentemente
quase de imediato em Maggie por causa da posição em que
estavam.
- Acho que vou fazer uma viagenzinha até à tua casa de
banho primeiro, se conseguires aguentar a espera.
Ele soltou-a.
- Não voltes gelada.
Ela deslizou para fora da cama e ele para dentro do sono.
Despertou imediatamente. Maggie falara com suavidade, mas
havia uma tensão quebradiça na sua voz que lhe fez soar por
dentro campainhas de alarme. Sentou-se.
- O que aconteceu?
Ela parou a caminho da porta, um cigarro por acender entre
os dedos. Só com o minúsculo biquini parecia frágil e
vulnerável.
- O que é, Maggie.
- A casa de banho. - A voz dela era fina.
- Sim?
- Jonathan? - Um terror denso na sua voz. Quando saltou da
cama ele pegou num roupão e embrulhou-a nele, dirigindo-se
depois rapidamente, através do hall, para a porta aberta da
casa de banho.
Um homem sentado na sanita debruçava-se sobre os braços
apertados em volta do estômago. Estava de fato preto e
tinha o cabelo impecavelmente penteado. A cena negava o
humor negro por causa dum horrível fedor que enchia o
aposento e pela espessa amiba de sangue que se espalhara no
chão de mosaico, alimentada pelas gotas caídas das suas
calças saturadas.
A experiência de Jonathan na CII fez-lhe ver de rompante o
que acontecera. O homem fora baleado nas tripas, e, como
sempre nestes casos, a convulsão do esffncter fizera-o
defecar. A mistura dos cheiros do sangue e dos excrementos
era forte.
Jonathan aproximou-se, evitando cautelosamente o sangue que
se via no pavimento. Colocou os dedos contra a garganta
dele. O homem não estava morto mas as pulsações eram débeis
e irregulares. O indivíduo levantou a cabeça e olhou
turvamente para Jonathan. Não havia qualquer hipótese para
ele. Os olhos mostravam aquele ar opaco que precede a
morte. As pupilas estavam contraídas. Fora drogado.
A atenção de Jonathan foi atraída por um ligeiro movimento
pulsante no colo do homem. Ele segurava os intestinos com
as mãos. Tentou falar, mas apenas saiu um murmúrio gutural.
Jonathan colocou o ouvido junto da sua boca, resistindo ao
vómito causado pelo mau cheiro das fezes humanas.
- Eu... eu lamento muitíssimo. Que coisa incómoda... Eu...
- Quem é o senhor?
- Cheio de vergonha...
- Quem é o senhor?
Pelo canto do olho, Jonathan descortinou Maggie de pé na
casa de banho. O seu rosto era uma máscara de pena e
horror. Tentava acalmar- se acendendo o cigarro, mas no seu
nervosismo não conseguia accionar o isqueiro.
- Sai daqui.
- Como? - Estava confusa.
- Sai daqui. Ele tem vergonha.
55
Ela desapareceu.
- Oh, Deus. Oh, meu Deus... - O corpo do homem estava
tenso. Olhou para Jonathan com angústia e descrença, os
dentes batendo, a cabeça tremendo com o esforço vão de
agarrar a vida. - Oh! Deus!
Então, deixou-se ir. Mergulhou e deixou a vida abandoná-lo.
Emitiu um derradeiro som. Um nome.
Depois deslizoú da sanita quase graciosamente e a face foi
descansar no seu próprio sangue. As mãos desataram-se-lhe e
os intestinos verde- acinzentados irromperam. A parte de
trás das calças estava molhada e impregnada de excrementos.
Jonathan ergueu-se e recuou. Pela primeira vez reparou em
qualquer coisa caída por trás do lavatório. Era uma máscara
do Halloween"-Casper, o fantasma. Saiu da casa de banho e
puxou a porta devagarinho atrás de si.
Maggie estava de pé, encostada à parede do hall, fazendo
força contra ela, defensivamente, a cara pálida de terror.
Ele pôs o braço à sua volta para a segurar e conduziu-a
para o quarto.
- Vá! Deita-te. Põe os pés mais altos.
- Acho que vou vomitar - disse ela com ar desfalecido.
- É o choque. Vamos, vomita. Mete os dedos à garganta.
Ela fez uma tentativa e gaguejou:
- Não posso.
- Escuta, Maggie! Não quero ser cruel ou insensível, mas
tens que sair daqui. Temos que sair daqui. O homem que está
ali dentro... Isto é um estratagema. Para teu próprio bem
faz o que te digo. Se vais vomitar, vomita. Se não, veste-
te. Depois, deita-te e descansa enquanto eu faço algumas
coisas. Está bem?
" O Halloween celebra-se nos EUA no dia 31 de Outubro. É a
Noite das Bruxas. A tradição primitiva era irlandesa. Foi
levada para os EUA por emigrantes irlandeses e quando
aconteceu supôe-se que já se perdera a mensagem primitiva
da Hallowed Night - a noite sagrada, por ser véspera do dia
de Todos os Santos. Era o princípio do Inverno nórdico, com
os demónios à solta e as bruxas. (N. du T. ).
56
Ela olhou para ele, confundida e assustada por aquela fria
eficiência.
- O que é isto? O que aconteceu?
- Faz só o que te digo. Vá! Dá-me isso. Eu acendo-to.
- Muito obrigada.
- Aqui tens. Agora, mexe-te.
- O que vais fazer?
- Nada.
Jonathan deitou-se ao comprido, de costas, ao lado dela com
os olhos fechados. Uniu as mãos num gesto de prece e levou-
as à cara, os polegares por baixo do queixo e os dedos
indicadores tocando os lábios. Depois, regulou a
respiração, inspirando profundamente até ao estômago. Focou
a mente na imagem dum ponto distante, numa luz fria e
calma. A tensão abandonou-o; a adrenalina foi drenada; o
cérebro acalmou-se e aclarou-se-lhe.
Três minutos depois abriu lentamente os olhos e observou o
quarto. Já estava bem.
Levantou-se e pôs-se em movimento rapidamente através do
quarto, vestindo-se e despejando bolsos e gavetas em busca
de dinheiro.
Maggie acabara o seu cigarro, mas os seus olhos não o
abandonavam; algo no seu à-vontade, nas suas atitudes
profissionais a fascinavam. E a aterrorizavam.
Olhou em redor para ver se tinha feito tudo. Então,
ajoelhou-se na cama e afastou-lhe os cabelos da testa.
- Vamos. Veste-te, querida.
Meteu o nariz no decote do vestido dela e beijou-lhe os
seios com leveza. A seguir, deixou-a para procurar dinheiro
nos quartos.
Traço típico dos rapazes pobres que finalmente têm uma
confortável vida financeira, ele desprezava ostensivamente
o dinheiro e mantinha uma quantia razoável à sua volta. Na
altura em que voltou ao quarto, penteado e barbeado, havia
juntado quase três centenas de libras, grande parte em notas
amarrotadas, esquecidas pelos cantos.
Ela estava sentada à beira da cama, vestida, mas ainda
estupefacta.
57
Ele bebia, aos golinhos, o seu terceiro café-creme. Maggie
mandara vir levianamente o seu, mexera-o mas não o bebera;
uma espuma castanha formara-se à superfície. Olhava para o
copo sem o ver, com os pensamentos centrados no seu íntimo.
Da mesa colocada ao fundo do café, do outro lado da rua,
Jonathan observava a entrada da sua residência de Baker
Street com toda a atenção. Não tinham falado mais desde que
se haviam arranjado.
Ela quebrou o silêncio sem levantar os olhos do copo.
- Estamos em segurança aqui? Justamente do outro lad o da
rua?
Ele acenou afirmativamente, sem que os olhos deixassem de
fitar a porta giratória do hotel.
- Completamente seguros, sim. Eles esperam que tentemos
afastar-nos bastante.
- Eles? Quem são eles?
- Não sei.
- Mas tens alguma ideia?
- Pode ser a CII. Uma organização de espionagem americana
para a qual eu costumava trabalhar. Há anos.
- Fazendo o quê?
Ele lançou-lhe um olhar. Como poderia contar-lhe quejá fora
um assassino? Ou até, para aliviar o ambiente moral,
um "contra-assassino"i: Voltou a observar o lado oposto da
rua.
- Mas porque quereriam implicar-te a ti em... naquele
terrível assunto?
- Têm mentes tortuosas e pervertidas. É impossível saber o
que maquinam. Há probabilidades de que queiram que volte
novamente a trabalhar para eles.
- Não compreendo.
- Bebe o teu café.
- Não quero.
Voltaram ao silêncio e aos seus pensamentos individuais. E
após muito tempo, o impulso de falar ocorreu-lhes ao mesmo
tempo, de repente.
- Saber o que é o pior... Desculpa, estavas a dizer?
- Olha, Maggie, lamento imenso... Desculpa-me. O pior é o
quê?
- Desculpa. Não, continua.
58
- Desculpa. Eu só ia dizer o que é óbvio, meu amor. Sinto-
me terrivelmente penalizado por estares metida nisto.
- Estou realmente metida, Jonathan?
Ele sacudiu a cabeça.
- Não, não. Não, na realidade. Vou tirar-te disto. Não te
preocupes.
- E o que te acontecerá a ti?
- Eu posso tomar conta de mim próprio.
- Certo. - Ela procurou os olhos dele. - Demasiado bem, na
verdade.
- O que quer isso dizer?
- Bem, é o que eu ia dizer antes. Quando penso nisso, a
pior parte é a tua reacção. Tão eficiente! Profissional.
Como se estivesses habituado a este tipo de coisas. Ficaste
terrivelmente calmo.
- Não, não é verdade. Fiquei com medo e confuso. Foi por
isso que tive que meditar.
- Na cama?
- Sim.
- E podes reagir só assim? Em poucos minutos?
- Agora posso. Tenho anos de prática.
Ela pensou durante um momento.
- Deve ter havido coisas terríveis na tua vida para
conseguires chegar...
- Pronto! Ali estão eles!
Ela seguiu o olhar dele até à entrada do hotel. Através de
falhas no tráfego viu dois homens surgirem e pararem no
passeio, olhando para um lado e outro da rua. Um deles
estava estranhamente vestido com umas calças de xadrez
largas, botas de cowboy, e um casaco de desporto apertado.
O colarinho da sua camisa havaiana estava aberto sobre a
gola do casaco, no estilo de vinte anos atrás, e tinha uma
enorme máquina fotográfica pendurada ao pescoço. O outro
era alto e fortemente constituído. Tinha uma cabeça rapada
em forma de bala e entre esta e a parte de trás do pescoço
viam-se pregas de pele. Usava uma camisola grossa de gola
alta, debaixo dum casaco de tweed, e daria a impressão de
ser um pugilista profissional se não tivesse óculos grandes
de sol, com lentes espelhadas.
O que usava camisa havaiana disse qualquer coisa ao de
59
cabeça rapada. Pela sua expressão estava zangado. O de
cabeça rapada vociferou em resposta, nada disposto a
aceitar a censura. Olharam outra vez para ambos os lados da
rua, e depois o que vestia camisa havaiana fez um sinal com
a mão e na curva apareceu um Bentley escuro. Entraram os
dois, o de cabeça rapada à frente, o outro sozinho atrás. O
Bentley meteu-se por entre o tráfego, abrindo caminho no
fluxo com a força do seu prestígio.
Maggie olhou para Jonathan, que estudava as caras dos
outros transeuntes em frente do hotel.
- É tudo - disse ele consigo. - São só os dois.
- Como sabes?
Ele levantou a mão.
- Só um momento.
Examinou minuciosamente a rua até o Bentley passar outra
vez, abrandando quando ultrapassou a entrada do hotel, com
os homens inclinando-se para a frente a fim de observarem
com cuidado. Então, o carro alcançou o centro da rua e
partiu.
- Já não voltarão. Pelo menos durante algumas horas. Mas
deixaram com certeza alguém lá dentro. - Como sabes que
eram aqueles?
- Instinto. Têm o aspecto dos tipos esquisitos que se
encontram na espionagem. E a sua conduta subsequente
confirma isso.
- Espionagem? O que se passa neste mundo, Jonathan? Ele
abanou lentamente a cabeça.
- Honestamente, não sei.
- Fizeste alguma coisa?
- Não. - Sentia fúria e amargura dentro dele. - Acho que é
antes algo que eles querem que eu faça.
- Que espécie de coisa?
Ele mudou subitamente de assunto.
- Diz-me, como descreverias o mandão? Aquele com a máquina
fotográfica e a camisa berrante?
Ela encolheu os ombros.
- Não sei. Um americano, suponho. Será um turista?
- Não é turista. Mesmo excitado como estava, olhou para o
trânsito da direita para a esquerda. Como se estivesse
habituado a guiar à esquerda. Os americanos fazem-no
60
da esquerda para a direita.
- E as botas de cowboy?
- Sim. Mas as calças tinham um corte britânico.
- Ele parecia estranho, tenho estado a pensar nisso.
Como um americano. Mas como um americano dos filmes
antigos.
- É exactamente a minha impressão.
- O que é que isso te diz? - Inclinou-se para a frente
com ar conspirador.
Jonathan sorriu-lhe, subitamente divertido com o tom da
conversa.
- Nada. na verdade. Bebe o teu café.
Ela sacudiu a cabeça.
Durante alguns minutos ele mostrou-se reservado, os
sobrolhos franzidos, os olhos focando a parede em frente.
Uma por uma, arrumou as coisas que tinha que fazer
durante o resto do dia. Depois, inspirou profundamente e
tornou a dar atenção a Maggie.
- Escuta.
Puxou da carteira que estava no bolso do casaco. Dobrado
dentro desta estava o livro de cheques, várias folhas de
papel de carta, selos e envelopes, todas as coisas que tinha
juntado quando passara revista ao apartamento do hotel.
- Diabos me levem!
Tinha também incluído o envelope contendo dinheiro
que o homem da Renascença lhe dera pela sua avaliação ad
hoc do cavalo de Marini. Esquecera-se completamente
daquilo. Portanto, afinal de contas, não estava a funcionar
com lucidez suficiente. As suas reacções haviam
enfraquecido nos anos em que abandonara o oficio de outrora.
Abriu o envelope e contou o dinheiro: dez notas de
cinquenta libras. Bom. Não teria que usar cheques, afinal.
- Toma - disse ele, passando duzentas libras por sobre
a mesa -, pega nisto.
Ela afastou a mão das notas como se para evitar um
contacto contagioso.
- Não preciso.
- Claro que precisas. Não tens quarto. Não tens dinheiro
nenhum. E não podes voltar para a casa de MacTaint.
- Porque não?
61
- Eles porão alguém a vigiá-la. Esta coisa foi montada com
muito cuidado. Devem ter andado atrás de mim a maior parte
da noite. Eu não durmo muitas vezes ali. Geralmente fico no
meu apartamento de Mayfair.
- Se não me tivesses encontrado...
- Que disparate! Se realmente me quisessem caçar, tê-lo-iam
feito mais cedo ou mais tarde.
- Estou a pensar numa coisa, Jonathan. Como entraram eles
lá?
- Oh, de várias maneiras. Abriram a fechadura. Arranjaram
uma chave. E há montes de chaves por aí. Contei-te acerca
da actriz bêbeda.
- Mesmo assim, deve ter sido difícil. Carregar com aquele
pobre homem.
- Estava-vivo quando o levaram para lá. Mataram-no na casa
de banho. Não havia sangue no hall. Estava muito drogado.
- Mas, mesmo assim, como entraram eles no teu apartamento?
Jonathan abanou a cabeça. Énquanto tinham estado à espera
do elevador para os trazer para baixo, reparara numa
cadeira de rodas desdobrável, encostada à parede. Isso,
juntamente com a máscara de Casper entalada por trás do
lavatório, contara-lhe que haviam levado o pobre filho duma
cadela como se fosse uma efígie de Guy Fawkes. Jonathan não
viu qualquer razão para partilhar com Maggie aquele
pormenor sombrio.
- Toma, pega no dinheiro.
- Não, na verdade...
- Toma.
A sua mão tremia enquanto pegava nas notas dobradas.
- Eu sei, querida. E lamento muito. Foi realmente pouca
sorte ficares misturada nesta história. Mas não sofrerás
nada. Eles não andam atrás de ti.
Brilharam lágrimas nos olhos dela, mais como reacção à
tensão e ao medo do que por qualquer outra coisa. Não pediu
desculpa por isso nem tentou limpá-las.
- Mas andam atrás de ti. E tenho medo por tua causa. - E
arrancou-se à emoção por meio da velha técnica de usar o
sotaque irlandês. - Fiquei apaixonada por ti, não vês?
62
- Também eu fiquei por si, minha senhora. Talvez depois de
ter saído desta embrulhada...
- Sim. Vamos tentar.
- Queres mais um café, agora?
Ela disse que sim e fungou para engolir o resto das
lágrimas.
Ele pediu mais café e alguns croissants e não falaram mais
enquanto o criado não trouxe as coisas e se foi embora. Ela
bebeu o café e partiu um croissant mas não o comeu. Pôs o
prato de lado e perguntou:
- Serás capaz de me dizer como vais sair disto?
- Isso não seria prudente. Para ti, Maggie. De qualquer
maneira, não saberei para onde vais. E também não quero
sabê-lo.
- Oh, mas eu ficarei muito mal sem saber se estás bem!.
- Perfeitamente. Olha, amanhã à tarde darei uma conferência
no Royal Institute of Art. Podes assistir. Assim ver-me-ás
e saberás que estou bem. Se me parecer que podemos
encontrar-nos depois, acabarei o debate dizendo que
espero ter a oportunidade de prosseguir a discussão
daqueles assuntos com indivíduos em privado. E cerca de uma
hora depois encontrar-me-ei contigo exactamente aqui. Está
bem?
Ela fez uma careta, confusa.
- Tencionas ir para a frente com essa conferência?
- Oh, sim. Com todos os meus compromissos sociais. Neste
tipo de jogo eles ganhariam se conseguissem interromper
completamente a minha vida. Isso obrigar-me-ia a lutar com
eles ou a esconder-me para sempre. Estou razoavelmente
seguro em campo aberto, em lugares públicos. Já viste que
não trouxeram a polícia com eles, exactamente agora. O
grande truque será entrar e sair da conferência e manter-me
fora das vistas no ínterim. Mas estou treinado nesse tipo
de jogo. Portanto, não te rales.
- Que diabo de conselho é esse?
Ele sorriu.
- Bem, de qualquer forma não te rales demasiado.
- Queres realmente dizer que podes evitá-los para sempre?
63
- Não. Para sempre, não. Mas terei tempo para pensar. E
tentarei encontrar-me com eles no meu próprio campo.
- O que vais fazer agora? Depois de eu te deixar?
- Tenho que tratar de algumas coisas práticas. Não tenho
roupa. Não tenho um sítio para ficar. Depois de ter tratado
disso, suponho que irei ao cinema.
- Ao cinema?:
- É o sítio melhor para uma pessoa se distrair durante
algumas horas. Um desses cinemas "porno" onde se pode
alugar um impermeável.
- Alugar um impermeável?
- Não interessa.
- O que vais fazer acerca daquele homem que encontrámos?
Não podes deixá-lo ali.
- Não posso fazer mais nada. Mas mesmo que me engane nas
minhas suposições, dentro duma hora já ali não estará. Eles
não querem a polícia metida nisto se puderem evitá-lo. E eu
não teria grande utilidade na prisão. Não, eles tencionam
andar atrás de mim e arranjar uma prova sólida. Uma
fotografia, ou qualquer coisa assim. Então terão a alavanca
que me forçará a trabalhar para eles. Mas houve algo que
saiu mal. O quê, não sei. Talvez acordássemos demasiado
cedo e nos levantássemos demasiado depressa. Tiveram que
desistir e arranjar outra coisa. E espero que levem ainda
algum tempo a descobrir o que há-de ser.
Ela estremeceu.
- Desculpa. Tento não pensar nele... no homem no teu wc...
mas a todo o momento a imagem dele...
Jonathan olhou para ela, de repente.
- No meu wc?
- Sim. Na tua sanita. O que foi?
- O homem disse uma palavra exactamente antes de morrer. Um
nome. Julgo eu. Acho que foi Lew, como em
Em calão inglês "wc" é water-closet, ou seja, o sentido
mais aproximado de sanita. Além de ser um jogo
primitivaamente chamado lanterloo que se joga com três
cartas, de preferência, e com um baralho de cinquenta e
duas cartas. (N. da T. ).
64
Lewis. Ou Lou, como em Louise. Mas podia ter sido lu, isto
é, casa de banho.
- O que queria isso dizer? Jonathan sacudiu a cabeça.
- Não tenho a menor ideia.
Exactamente antes de partirem, depois de terem feito as
combinações acerca do encontro após a conferência do Royal
Institute, Maggie fez uma observação que já tinha ocorrido
a Jonathan.
- É uma sensação estranha. A mudança de ambiente entre esta
manhã e o bom humor de ontem à noite no restaurante. Não
posso deixar de sentir a sensação curiosa de que nos
conhecemos durante anos e anos. Em poucas horas passámos
pelo riso, pelo amor e por todo este problema. É uma
estranha sensação.
- Admira-me a forma como te aguentaste no meio disto tudo.
- Ah, sabes? Tenho prática. Os sarilhos de Belfast tocaram-
me de muito perto. As almas criam calos muito rapidamente.
É o verdadeiro terror da violência: o corpo habitua-se a
ela.
- É verdade.
E era. Ele ficara surpreendido consigo mesmo devido à
velocidade com que se integrara nos velhos padrões e
rotinas dum tipo de vida que julgara muito longínquo no
tempo.
- Em breve te verei; Maggie.
- Sim. Em breve.
Jonathan entrou na cabina do telefone público e memorizou o
número de dois hotéis junto a estações de caminhos-de-ferro.
- Great Eastern Hotel? - A voz do operador possuía a
entoação do traquejo.
Ele carregou na moeda.
- Reservas, por favor.
Na estação Great Eastern reservou um quarto sob o nome de
Greg Eastman. Depois, telefonou para o Charing Cross Hotel
e reservou um quarto no nome de Charles Crosley. Hotéis
para utentes dos caminhos-de-ferro eram do tipo que ele
precisava. Tranquilos, classe média, muito
65
grandes e habituados a gente que transitava. Na realidade,
podia ficar na Great Eastern onde um elevador o levaria
directamente da estação subterrânea para o vestíbulo do
hotel, tornando desnecessária a passagem pela rua. A
reserva no Charing Cross era apenas para trocar de roupa.
A seguir telefonou ao alfaiate na Conduit Street.
- Ah sim, doutor Hemlock. Poderemos ser-lhe úteis?
- Preciso de dois fatos, Matthew.
- Com certeza, senhor. Posso marcar uma entrevista
para provar?
- Não tenho tempo. Você tem aí as minhas medidas.
- Mais ou menos, senhor.
- Preciso dos fatos para esta noite.
- Esta noite? Impossível, doutor Hemlock.
- Não, não é. Você tem o Bruno Piattelis, não tem?
Ponha dois homens a funcionar e um dos seus alfaiates a
aperfeiçoar o trabalho. Quero fatos duma cor discreta, não
demasiado modernos no corte. Pode fazer isso em três ou
quatro horas, se meter dois homens nisso.
- Nós temos outras encomendas, senhor.
- Pago os fatos a dobrar. E vinte libras para si.
Oempregado respondeu histrionicamente.
- Muito bem, senhor. Verei o que posso fazer.
- Você é bom tipo, Matthew. Mande-os entregar no
Charing Cross Hotel ao senhor... - teve que pensar um
pouco nos truques mnemónicos que usara para os nomes senhor
Charles Crosley.
Otelefonema a seguir foi para o camiseiro, em Jeremyn
Street. Aí foi necessário mais trabalho porque ele detestava
camisas pronto-a-vestir e elas teriam que ser cortadas todas
de uma só vez. Mas, finalmente, fez a sua encomenda de seis
camisas a serem entregues cerca das cinco horas, juntamente
com meias e roupa interior.
O último telefonema foi para MacTaint.
- Ah, é você, meu rapaz? Só um minuto. - O sussurro
dum receptor a ser coberto pela mão. - Lilla? Estou ao
telefone. Cala essa maldita latrina! - Um tagarelar zangado
fora do telefone. - Põe lá uma meia! Agora, o que
posso eu fazer por si, Jonathan?
- Esta tarde vou mandar-lhe pelo correio trezentas libras.
66
- Óptimo. Porquê?
- Estou metido num sarilhozito. Quero ter uma fonte de
dinheiro não constituída por mim.
- Polícia?
- Não.
- Ah! Estou a ver. Sarilhos a sério. O que faço eu com o
dinheiro?
- Mantenha cem à mão para me mandar quando eu o contactar.
Estarei provavelmente no Great Eastern. O meu nome será
Greg Eastman.
- E o resto é pelo meu trabalho?
- Sim.
- Combinado. Tenha cuidado, rapaz!
Jonathan desligou. Apreciava o profissionalismo de
MacTaint. Estava certo quando recebia honorários sem falsos
protestos de amizade, e estava certo quando não fazia
perguntas.
A cabina era perto da entrada subterrânea e Jonathan desceu
a escada rolante para o comboio. Até aquele assunto estar
terminado teria de viajar pelos meios anónimos e primários
do metro.
Tornou a sair para a luz no Soho e foi ver dois filmes:
Warking Her Way Through the Turkisk Army e Au Pair Girls in
the Vatican. Durante quatro horas esteve invisível na
companhia dos perdidos, dos solitários, dos doentes e dos
pervertidos que passavam as tardes em cadeiras rasgadas,
cheirando a bolor, com papéis de rebuçados debaixo dos pés,
olhando com pupilas geladas as "estrelas" suecas que gemiam
num escárnio do êxtase, enquanto eles faziam um uso
recatado de todos os membros e objectos com orifícios.
LONDRES
Jonathan deixou-se ficar a coberto da multidão perto do
Charing Cross Monument, mantendo sob observação a fachada
do Charing Cross Hotel. Eram quase cinco horas e o tráfego
constituído pelos que regressavam a casa engrossara. Bichas
para os autocarros enrolavam-se e tornavam a enrolar- se
noutro sentido: dentro de poucos minutos o tráfego veicular
e humano ficaria próximo da coagulação. Ele confiava nisso,
no caso das pessoas que andavam atrás dele terem a
experiência ou a inteligência de pensar em vigiar o seu
alfaiate.
Olhou para cima, para o relógio do campanário de St.
Martin-in-the- Fields. Viu as horas, e vieram-lhe à memória
as reportagens dos jornais acerca do infortunado tipo que
fora empalado. Um carro de entregas com o nome do seu
camiseiro já chegara à entrada principal do hotel, mas
Jonathan nada vira que se parecesse com o pugilista de
cabeça rapada e óculos de sol ou com o turista americano
que cheirava aos anos vinte. Os fatos ainda não haviam
chegado do alfaiate - o que era desconcertante, visto que
tudo dependia dele conseguir reunir durante as horas de
ponta todos os artigos de vestuário encomendados.
Às cinco horas exactas um táxi apareceu entre o trânsito, à
porta do hotel, e um homem novo apeou-se. Rompeu caminho
por entre a massa de gente, com uma caixa branca e grande.
Deviam ser as camisas. Jonathan atravessou a rua e
encostou-se à frontaria do hotel. Nem óculos de sol, nem
camisa havaiana, nem Bentley. Esperou até um táxi se
aproximar para largar passageiros, depois foi ter com o
motorista.
- Espere por mim aqui, sim? Cinco minutos.
- Não posso fazer isso, camarada. Hora de ponta, já sabe.
Jonathan tirou do bolso uma nota de dez libras e partiu-a
ao meio.
- Tome. A outra metade quando eu voltar daqui a cinco
minutos.
O motorista hesitou durante um segundo.
- Certo. - Olhou pelo espelho retrovisor para a bicha de
táxis que se ia alongando por trás do seu. - Despache-se.
Jonathan entrou no átrio através do restaurante e olhou em
volta antes de pegar no telefone duma cabina.
- Daqui Charles Crosley, do quinhentos e trinta e seis.
Deve haver algumas encomendas para mim. Pode pedir ao
porteiro que mas envie cá acima?
Através do vidro da cabina observou a recepcionista,
esperando que não fosse verificar se a sua chave fora
levada. Àquela hora no tumulto de hóspedes e perguntas ela
não o fez. Um mandarete respondeu à chamada e entrou na
sala das encomendas onde pegou numa caixa grande e noutra
pequena. Enquanto as transportava para os elevadores,
Jonathan saiu do telefone e colocou-se por trás dele. Logo
que as portas do elevador se fecharam, Jonathan descobriu o
vulto de dois homens entrando apressadamente no átrio
principal. Camisa havaiana e cabeça rapada.
Portanto, haviam verificado o alfaiate. Mas era tarde
demais, se tudo continuasse a correr bem.
- Deves levar isso para mim.
- Senhor?
- Crosley. Quarto quinhentos e trinta e seis.
- Oh, sim, senhor.
Jonathan carregou no botão do quarto andar.
- Toma. Eu levo-as. - E passou-lhe uma nota de libra.
- Mas o senhor está no quinto!
- É certo. Mas a minha secretária está no quarto.
Arreganhou-se todo num sorriso e o mandarete retribuiu o
gesto.
Esperando pelo elevador que o levasse para o vestíbulo,
examinou os botões do mesmo. Parara no quinto andar. Tinha
um minuto ou dois. Tempo suficiente, desde que o motorista
de táxi tivesse sido capaz de resistir à fúria e
impaciência dos tipos que esperavam na fila por trás dele.
O Bentley estava estacionado à entrada, e o motorista, um
tipo gordo com cabelo comprido, reconheceu Jonathan
69
quando este passou. Deu um pulo para fora do carro e um
passo ou dois na direcção de Jonathan mas mudou de ideias e
voltou-se na direcção do hotel para alertar os camaradas,
depois pensou ainda melhor e decidiu não perder de vista
Jonathan. Correu de volta ao Bentley, e, sem saber o que
fazer, inclinou-se pela janela do condutor e tocou a
buzina. Os motoristas apressados dos outros táxis tocaram
também as buzinas em resposta. Confuso com o clangor das
buzinas, um carro parou na intersecção e um camião a seguir
a ele rangeu nos travões e manifestou a sua irritação com a
sua buzina em dois tons. Os carros que passavam buzinaram
furiosamente. Os condutores dos autocarros colocaram os
dedos nos botões das suas buzinas. O tráfego à volta do
Circus juntou-se-lhes.
Jonathan gritou para o seu motorista sobre aquele
estrondear:
- Metro da Charing Cross!
- Mas é só a um quarteirão de distância, camarada! Jonathan
entregou-lhe a outra metade da nota rota.
- Então é fácil, não é?
O motorista juntou-se à cacofonia das buzinas e contornou a
curva.
- Raios partam os Americanos - murmurou. - São uns
atrasados mentais.
Justamente quando o táxi ultrapassava a esquina, o homem de
camisa havaiana e o de cabeça rapada irrompiam pelas portas
giratórias, empurrando à sua frente uma pobre velhota que
deu duas voltas antes de ficar sentada nos degraus,
completamente tonta. O Bentley estava apenas meio
quarteirão atrás de Jonathan quando este saltou para a
entrada do metro. Segurando os enormes volumes sobre a
cabeça, correu para a comprida e dupla escada rolante,
ultrapassando aqueles que obedientemente se mantinham à
direita. As passagens estavam cheias de indivíduos que
tinham passe e as caixas eram simultaneamente um fardo e
uma arma. Num instante chegou à plataforma de espera e
correu para a saída, de forma a ter um escape se o comboio
não chegasse a tempo.
E esperou. Nenhum comboio. Raparigas tagarelavam umas com
as outras e homens idosos permaneciam de olhos
70
parados, no coma da rotina. O comboio não apareceu. Um
placar publicitário pedia aos seus leitores que assistissem
a um concerto de beneficência a favor do Bangladesh e uma
mensagem rabiscada incitava-os a lixar os Irlandeses e
outra dizia "Super Spurs". Mas não havia comboio.
Houve um sobressalto por entre a multidão na extremidade
mais afastada do túnel, e o de camisa havaiana e o de
cabeça rapada surgiram na plataforma. O anterior dirigente
brilhava de suor enquanto olhava dum lado para o outro,
perscrutando as faces das pessoas aglomeradas. Jonathan
tentou encostar-se à parede, mas não resultou. Eles
avistaram- no e ambos empurraram através da chusma de gente
na sua direcção.
Jonathan deslizou pela saída e subiu pela dupla escada
rolante. Um comboio chegava ao outro cais, e exactamente
atrás dele vinha uma caterva de indivíduos apressando-se
para trocar de plataforma. A frente da multidão ele trepou
correndo a longa escada de dois em dois degraus. No cimo,
olhou para baixo. O de camisa havaiana e o de cabeça rapada
estavam cercados por uma geleia humana que se escoava
lentamente pela escada acima. Jonathan fez uma curva em "U"
e saltou para a escada oposta, que estava vazia. Os seus
perseguidores tinham os olhos pregados nele com uma raiva
impotente quando Jonathan passou, em sentido contrário,
apenas a alguns metros de distância. Lutaram para passar à
frente, mas palavras rudes e ameaças de retribuição fisica
da parte dos homens de boné forçaram-nos a aceitar o
inevitável. Quando passavam lado a lado, Jonathan acenou
numa saudação insolente e espetou o dedo médio junto à
parte lateral das caixas que tinha nos braços. Eles não
reagiram ao gesto provocador e Jonathan percebeu que
utilizava a versão americana dum só dedo, em vez da
ortografia inglesa, de dois, para o símbolo universal.
Mais depressa ele tivesse recuado para a plataforma, mais
depressa sentiria a força da deslocação do ar que assobiava
à chegada dum comboio. Parou com uma estridência de portas
a abrirem-se, houve uma corrente e contracorrente de gente,
as portas bateram novamente com estrondo e partiu com um
guincho. O de cabeça rapada, desprezando o seu ofegante
companheiro, corria do lado de fora da janela,
71
berrando a sua raiva e frustração. Jonathan inclinou- se e
comunicou com ele em linguagem de sinais, desta vez em
inglês. Enquanto mergulhavam no túnel preto, Jonathan olhou
de relance e deparou com um ar de gelada indignação no
rosto duma empertigada senhora idosa instalada no assento
em frente! Inadvertidamente fizera o gesto a centímetros do
seu nariz.
Bom, virados neste sentido podiam querer dizer vitória,
sabe? Ou paz. Será melhor se a senhora não quiser falar no
assunto, certo?
Jonathan teve um pequeno- almoço duma abundância vitoriana
na grande sala de jantar do Great Eastern. O hotel do
caminho-de-ferro constituía uma cobertura perfeita. Com o
seu topete nativo, Jonathan daria nas vistas tanto num
quarto como numa sala de pequeno-almoço e eles - fossem
quem fossem - já deviam ter passado revista aos hotéis de
classe.
Na noite anterior tomara um banho demorado, muito quente,
numa casa de banho tão fria que em breve ficara cheia de
espessas volutas de vapor. Jazera de molho na banheira
profunda, a água quente mantendo a temperatura sempre
elevada, até a tensão e fadiga do dia se terem escoado do
seu corpo. Com a pele a brilhar após o banho, metera-se na
cama nu, entre lençóis a estalar com goma. Precisava de
repousar quando tudo aquilo começasse de novo, no dia
seguinte, portanto, esvaziou a mente e iniciou a sua
profunda respiração, enquanto entrelaçava as mãos e caía no
sono por meio de uma meditação superficial. Cada pensamento
que se introduzia no seu cérebro era repelido, suavemente,
de forma a não perturbar a superfície mansa da lagoa que
imaginava. A última imagem consciente - a face de Maggie
pouco nítida mas agradável - deixou-a flutuar em frente dos
olhos antes de a arredar facilmente.
Acontecesse o que acontecesse teria de a manter nos
sedimentos da preocupação.
O almoço de Embaixada foi, como sempre, tão vigorosamente
animado como abissalmente monótono. Jonathan considerava
que estar presente em funções daquele tipo era
72
o preço que tinha que pagar pelo generoso apoio da sua
estada em Inglaterra, mas arranjava maneira de ser uma
companhia aborrecida, falando ao menor número possível
de pessoas. Por isso foi transportando o seu copo de
champanhe americano em direcção à acalmia social dum canto
sossegado. Mas não ficou bastante isolado.
- Ah! Cá está você, Jonathan!
Era Fforbes-Ffitch, pessoa que parecia fadada para Jonathan
encontrar em todas aquelas funções.
- Ouça, Jonathan! Estive justamente num canto com o adido
cultural e ele apoiou a minha ideia de o enviar para
algumas conferências na Suécia. A imagem americana não é
aí muito brilhante, exactamente agora com todos aqueles
assuntos do Sudeste Asiático e tudo o mais. Podia ser uma
coisa excelente, patrocinada em conjunto pela USIS e pelo
Royal College. Parece-lhe atraente?
- Não.
- Oh! Oh, bem vejo.
- Eu disse-lhe, na outra noite, que não estava interessado.
- Bem, pareceu-me que devia ser dificil convencê-lo.
Jonathan fitou-o com um olhar fatigado.
- Não se aflija, Fforbes-Ffitch. Você vai lá chegar. Com a
sua pressa e ambição, não tenho dúvidas de que sairá "
ministro da Educação antes que o diabo esfregue um olho. "
Mas não transforme as minhas costas em escadas. Fforbes-
Ffitch sorriu palidamente.
- Sempre a cooperar, não é? Bem, não pode censurar um tipo
por tentar.
Jonathan olhou para ele no meio de um pesado silêncio.
- Chega - disse Fforbes-Ffitch recobrando-se. - Mas honrará
os nossos serviços com a sua conferência desta tarde no
Royal College, espero.
- Certamente, mas a sua gente desleixou-se nas comunicações.
- Oh! Como?
- Ninguém me disse qual o tópico da minha conferência. Mas
não se apresse, ainda tem uma hora.
Fforbes-Ffitch carranqueou energicamente.
- Lamento muito, Jonathan. O meu pessoal tem andado
73
a ser sacudido. Há cabeças a rolar à esquerda e à direita.
Mas ainda não pus o navio em ordem. Em cada apartamento que
dirijo, esse tipo de incompetência é simplesmente banido. -
Tocou no ombro de Jonathan com um dedo. Farei um telefonema
e tudo ficará em ordem. Imediatamente.
Jonathan acenou que sim e piscou-lhe o olho.
- Desejo-lhe um bom espectáculo!
Fforbes-Ffitch voltou-se e deixou a sala de recepções com
uma diligência eficiente, e Jonathan estava prestes a
ocultar-se noutro canto quando foi interceptado pelo
anfitrião, o homem presente mais importante. Era
característico da direcção duma Embaixada Americana - o
tipo distinto e mais importante que qualquer outro, com
cabelo grisalho e ondulado, um aperto de mão caloroso e uma
capacidade para dizer o que é óbvio num tom de tremenda
sinceridade. Como a maioria dos da sua casta, as suas
qualificações de homem de Estado baseavam-se na habilidade
para obter o voto de um ou outro Spokane, ou para
contribuir aduladoramente para os fundos da companhia.
- Bem, que se segue, doutor Hemlock? - perguntou o homem
mais importante. - Ainda não o vimos vezes suficientes
nestas funções.
- É estranho. Tenho quase a impressão contrária.
- Sim - proferiu o homem mais importante e riu, não
percebendo lá muito bem. - Sim, calculo que seja verdade.
Na realidade, é sempre assim. Mesmo quando não parece. É
uma das coisas que aprendemos nõ meu género de trabalho.
Jonathan concordou.
- Digamos - perguntou o homem mais importante,
representando o papel da improvisação - que você anda nas
bocas da opinião pública. Que tipo de comentários chegaram
até si a respeito das eleições americanas?
- Nenhuns. As pessoas não falam comigo acerca disso porque
sabem que eu não estaria interessado.
- Sim. - O homem mais importante acenou com ar de profunda
compreensão. - Não... ah... não há comentários acerca do
caso Watergate?
- Nenhum.
- Bom. Bom. Realmente não há nada. Somente uma
74
tentativa para implicar o presidente numa espécie qualquer
de negócio sujo. Aqui entre nós, acho que foi tudo
cozinhado pelo outro partido ou pelos comunistas. Julgo que
vai ser resolvido. Estas coisas são-no sempre. É um
pormenor que aprendemos no meu tipo de trabalho.
- Meu Deus, Jonathan, isto parece uma brincadeira! Fforbes-
Ffitch estava de regresso.
- Ah! - Dedicou ao homem mais importante um sorriso de
profunda gratidão. - Apanhei os dois a tagarelar acerca dos
meus planos para uma série de conferências na Suécia?
- Sim, apanhou-nos. - O homem mais importante mentiu com a
despreocupação que ganhara com a prática.
- E sou inteiramente a favor delas. Se houver alguma coisa
que o meu departamento possa fazer para as coisas andarem...
- É tremendamente amável da sua parte, senhor. Depois de
apertarem as mãos com uma cordialidade
calorosa, o homem mais importante voltou aos seus deveres
de anfitrião, indo arranjar uma bebida para uma visita
muçulmana.
- Você disse que isto parece uma brincadeira? - perguntou
Jonathan.
- Sim. Peço desculpa. A culpa é inteiramente nossa. Vou
cancelar a conferência, se o desejar.
Jonathan estivera à espera da conferência para ver Maggie
no auditório e talvez para se encontrar com ela no café,
a seguir.
- Qual é o problema? - perguntou.
- Eles avisaram-me que você ia falar sobre cinema. Tenho
aqui o título: "O Criticismo no cinema: uso e abuso".
Jonathan riu-se.
- Não há problema. Não se preocupe. Eu improviso.
- Mas... cinema? Você está na pintura, não é?
- Não. Eu estou em tudo. E apesar de Godard, o cinema ainda
é essencialmente uma arte visual. Tem aqui um carro?
- Porquê? Sim. - Fforbes-Ffitch estava surpreendido e
encantado. - Posso levá-lo ao College?
- Se quiser fazer esse favor. - A conversa sem tom nem som
de Fforbes-Ffitch seria um preço justo para a cobertura da
viagem com ele, caso o de camisa havaiana e o de cabeça
rapada andassem a rondar o enorme escritório da Embaixada.
"... cujos ritmos são estabelecidos pela diminuição da
velocidade e do som. Enquanto a intensidade do choque
visual é uma função à qual Whitaker, na sua clara descrição
da linguística do filme, chamou "volume cortado". Isto
responde à vossa pergunta?
Jonathan esquadrinhou de relance a audiência compacta,
procurando Maggie, enquanto respondia automaticamente às
perguntas. O átrio estava cheio e viam-se algumas pessoas
de pé ao fundo da sala. Devido à grande quantidade de gente
havia um polícia presente. No seu alto capacete e uniforme
esticado, fazia um contraste agudo com a aparência mundana-
artística, daqueles que assistiam.
Alguém com uma voz fina e nasalada, ao fundo do hall,
propunha uma questão quando Jonathan deu com Maggie
encostada à parede da outra extremidade. Estava de pé por
baixo duma das lâmpadas cónicas que pendiam do tecto do
balcão que corria na parte superior, e o estreito e suave
feixe de luz isolava-a da massa de gente e brincava no
âmbar do seu cabelo macio. Ficou contente por ela estar ali.
"... e por conseguinte indùbitavelmente inter- relacionado
com ele? "
Ele não captara a globalidade da pergunta mas reconheceu o
estilo do inquiridor: outra questão complicada posta por um
homem brilhante, não para aprender, mas para demonstrar o
nível das suas leituras recentes.
Jonathan trapaceou um pouco.
- É uma pergunta sinuosa e complicada com ramificações que
levariam mais tempo do que temos para a explorar
adequadamente. Proponho que retire dela o fragmento que
mais o embaraça e depois o exponha concisamente.
A voz fina balbuciou e hesitou, depois pôs de novo a
questão na globalidade, fazendo-lhe algumas perguntas
cheias de erudição que lhe ocorreram.
Mas a atenção de Jonathan era ainda menos firme que
anteriormente. Ao fundo do átrio, apoiado à parede, estava
o homem de cabeça rapada. Jonathan olhou em volta. O de
76
camisa havaiana abria caminho para lá, a partir da direita.
Jonathan procurou Maggie. Ainda permanecia no seu feixe de
luz, evidentemente sem consciência da presença deles.
Uma pausa e tosse. A pergunta fora feita e os presentes
esperavam uma resposta. Uma ou duas palavras-chave que
ainda recordava deram a Jonathan a pista certa para
responder.
- Isso afasta-nos da discussão do filme como filme para
olharmos para o estudo do filme e do criticismo no mundo.
Mas estou disposto a fazer esse desvio se você também está.
Na generalidade, é mais correcto dizer que o estudo
corrente do filme e do criticismo são ambos um caos e um
deserto. Primeiro, devemos saber que com excepção de Mitry
e talvez de Bazin, não há críticos de filmes com substância.
Onde raios se teria metido aquele polícia?
- Tudo o que realmente temos são revisores com vários
níveis de dicção. A Escola Francesa - se se pode chamar uma
escola a essa suspensão coloidal de personalidades fechadas
- trabalha a partir do princípio de que o cinema é uma
invenção gaulesa, jamais podendo as subtilezas desta serem
dominadas com eficiência por povos doutras nacionalidades
menos afortunadas.
O homem de cabeça rapada estava a abrir caminho em direcção
ao lado esquerdo. Maggie continuava sozinha no seu cone de
luz.
- A sua exportação mais insidiosa, desde a sífilis, tem
sido a caprichosa insistência de que o cinema americano é o
maior com o mesmo denominador comum. Eles levaram
facilmente os eruditos americanos e britânicos a dedicarem
estudos sérios a essa cerveja fraca como os filmes de
Capra, Hawks e Jerry Lewis.
O jovem motorista do Bentley movimentava-se através da
parte de lá da sala para junto de Maggie!
"Onde diabo está aquele polícia? "
- A situação nos Estados Unidos não é mais saudável, onde
os críticos agem como petulantes estrelas sociais. Uma
falsa luta a curta distância, frases feitas e edifícios que
parecem panteões são sintomas da sua aflição. Depois, é
claro, há os tipos de village Blat afirmando aos seus
jovens leitores
77
que a tonteria é obscurantismo e que a incompetência
técnica denota preocupação social. Mas o maior problema do
criticismo americano, em relação aos filmes, é que ele
reside nas universidades, e, por conseguinte, está
aniquilado pelas regras.
O homem de camisa havaiana parou em frente dos degraus que
davam para o estrado, dum dos lados, o de cabeça rapada do
outro. O jovem motorista deslizou para perto de Maggie.
- As Universidades da costa oriental dedicam a sua atenção
a filmes e sequências obscuras, e aos realizadores que
necessitam do apoio da análise crítica para os resgatar do
limbo da obscuridade. Este negócio simbiótico entre
realizador e crítico emaranhou ambos em estudos de Vertov e
Antonioni que deliciam conventículos de apóstolos
clarividentes mas em nada contribuem para a corrente
principal do cinema. As escolas da costa ocidental são um
pouco melhores. Todas artesanais e agressivas, produzem
estudantes nas quais a proficiência técnica de Greenwich
Village está misturada com a sensibilidade de "I love Lucy".
O motorista inclinou-se e disse qualquer coisa a Maggie.
Ela olhou para Jonathan com os seus olhos enormes. Abanou a
cabeça como resposta. O motorista pegou no braço dela e
guiou- a pela porta de trás.
"Onde estará o cabrão desse polícia? "
- E no centro do continente, isolado pela massa geográfica
e a disposição de pensamentos contraditórios está aquilo a
que se chama a Escola de Criticismo de Chicago. Aí vamos
encontrar jovens amargos, invejosos, carentes da
centelha da criatividade, tentando negar a existência desta
noutros, focando a sua atenção em genes fílmicos. Como se
os filmes os fizessem e os homens que os dirigem não fossem
mais artistas que eles, os críticos igualitários.
Do átrio veio uma pergunta. Jonathan olhou para os lados e
ficou aliviado ao ver a massa tranquilizadora de polícias
com as mãos atrás das costas, os olhos postos nas luzes da
grelha, estóicos e enfadados. Uma rocha na
tempestade.
- Como hóspede do vosso país não direi nada acerca do
estudo britânico do filme, a não ser que é bem financiado e
78
que o Governo parece particularmente paciente com as
várias instituições que se têm desembaraçado por si mesmas,
de há anos a esta parte. Tenho a certeza de que darão a sua
contribuição para o estudo do cinema cerca do fim do século.
Ignorando os aplausos, Jonathan apressou-se através das
alas laterais, onde se dirigiu ao oficial da polícia que
pareceu surpreendido ao ser abordado por ele.
- Há três homens lá fora, oficial.
- Isso é verdade, senhor?
- Levaram uma rapariga com eles.
- Levaram, senhor?
- Não tenho tempo para explicar. Venha comigo.
- Com certeza, senhor.
Com um rápido olhar por cima do ombro Jonathan apercebeu-se
de que o homem de camisa havaiana e o de cabeça rapada não
tinham subido ao estrado. O polícia seguiu-o e ele empurrou
as portas da saída das alas laterais e correu para um
corredor exterior e deserto. Ecos de passos avançavam na
direcção deles, do lado de lá da esquina. Jonathan parou
com o polícia junto de si. Os passos continuaram a
aproximar-se. Então, apareceram os quatro ao dobrar da
esquina, o de cabeça rapada e o de camisa havaiana na
frente e o motorista atrás com Maggie. Pararam naquela
extremidade do átrio.
Jonathan e o polícia caminharam devagar até junto deles.
- Larguem-na! - disse Jonathan, a voz inesperadamente alta
no corredor vazio.
O polícia falou:
- É este o homem, senhor?
- Sim.
- Sim.
Jonathan e o de camisa havaiana tinham respondido
simultaneamente.
- Então tinha razão!
O enorme polícia agarrou Jonathan por um braço com uma mão
que parecia uma garra de metal.
- Que diabo se passa? - protestou Jonathan.
- O nosso carro está mesmo aí à porta, oficial - replicou o
homem de camisa havaiana.
79
- Traga-o, se não se importa.
- Vamos, senhor. - O polícia falava com um paternalismo
condescendente.
- Não vá haver qualquer sarilho.
O homem de cabeça rapada encurtou a distância entre eles
com um gesto de ameaça.
- Talvez eu o devesse levar. Ele não me causaria qualquer
problema. - Encostou a sua face porcina à de Jonathan. -
Não é verdade, rapaz?
Jonathan olhou para lá do símio e fitou o de camisa
havaiana, que parecia dirigir a situação.
- A rapariga não está metida nisto.
- Não está?
- Larguem-na.
- Não posso, pá - respondeu o de camisa havaiana. O som era
horrível; palavras americanas com sotaque britânico.
- Se a deixarem ir embora, irei com vocês sem complicações.
O homem de cabeça rapada chupou os dentes e sacudiu a
cabeça.
- Vais connosco não interessa como, camarada. Jonathan
sorriu-lhe.
- Gostavam que eu desse uma corrida, não era?
- Levavas mesmo a sério, sócio. Estou farto de andar atrás
do teu rabo por Londres inteira.
- Mas não trazes nenhuma arma. Gordo como és, eu veria se
trouxesses uma arma contigo.
- Alto, nada disso - avisou o polícia.
- Eu arranjei estas, pá! - O de cabeça rapada levantou as
mãos feíssimas e enormes.
Jonathan virou-se para o polícia.
- Oficial?
A cortesia do polícia era automática.
- Senhor?
Foi naquele momento! Naquele momento Jonathan poderia tê-lo
feito. Durante uma fracção de segundo tudo esteve correcto
- a posição do corpo de Jonathan em relação ao homem de
cabeça rapada, a ligeira descontracção da garra do polícia
enquanto respondia - naquele instante
80
Jonathan poderia tê-lo feito. A quina da sua mão na frente
do nariz do homem de cabeça rapada tê-lo-ia posto fora de
combate, possivelmente morto se a extremidade do osso
penetrasse no cérebro. Poderia ter-se afastado do oficial
num salto e agarrado o de camisa havaiana pelo pescoço
antes do motorista ter reagido. Isso ter-lhe-ia colocado a
vida dum homem entre o polegar e o indicador, como refém.
Uma vez na rua, ele sabia que seria um trunfo favorito em
qualquer jogo das escondidas.
Mas deixou passar. Maggie estava a três longos passos de
distância. O motorista poderia apanhá-la antes de Jonathan
agarrar o de camisa havaiana.
- Senhor? - perguntou de novo o polícia.
Os ombros de Jonathan baixaram.
- Ah... gostou da minha conferência?
- Oh, sim, senhor. Não que a tenha seguido toda. É o seu
sotaque, sabe?
- Vamos! - rosnou o de cabeça rapada. - Andar!...
O Bentley estava parado no exterior e atrás dele via-se
outro Sedan escuro com motorista. Enquanto desciam a longa
escada de baixos degraus de granito, Jonathan sentiu a
anomalia kafkiana da situação. Estavam a ser raptados com a
ajuda de um polícia, no meio da tarde e com toda a gente a
ver.
Depositaram Maggie no assento de trás do Sedan, com um
homem novo que parecia ter passado a vida encostado a uma
caixa do correio, enquanto Jonathan era conduzido no fundo
do Bentley. O homem de camisa havaiana entrou para trás com
ele; o de cabeça rapada e o condutor na frente; e
arrancaram da curva, os dois carros muito perto um do outro
até entrarem numa auto-estrada. Então, tomaram velocidade e
rumaram na direcção de Wessex.
- Quer um mata-ratos? - perguntou o de camisa havaiana,
apresentando um maço de cigarros americanos.
- Não, obrigado.
O de camisa havaiana sorriu afavelmente.
- Não é preciso ficar nervoso, doutor Hemlock. Você fez
faíscas mas vai tudo entrar nos eixos.
- E acérca da rapariga?
- Ela é esperta e presumida. Nada amável. - O de
81
camisa havaiana sorriu outra vez. - Devo começar com as
apresentações. Aqui o motorista é o Henry.
Este estirou-se para ver o reflexo de Jonathan no espelho
retrovisor e sorriu à laia de saudação.
- Prazer em conhecê-lo, senhor.
- Olá, Henry.
- E o meu compincha forte é o sargento.
- Não é o cabeça rapada?
O sargento franziu a testa e voltou-se para olhar a
paisagem através da janela, com os maxilares cerrados.
- E a mim chamam-me Yank. - Fez uma careta. É uma espécie
de alcunha estranha, mas chamam-me assim porque eu gramo
coisas americanas. Fatos, calão, tudo. Pelo meu dinheiro,
vocês, rapazes, estão onde merecem estar!.
No espaço de alguns minutos Yank tinha usado expressões que
cobriam uma faixa de trinta anos de calão americano e
Jonathan calculou que as assimilara em filmes antigos das
sessões da meia-noite.
- Para onde vamos nós?
- Já vai ver quando lá chegarmos, não se rale. Está tudo
numa calmaria. Nós somos da Lu. - E disse-o com um certo
orgulho.
- De onde?
- Da Lu.
A POUSADA DO OLD WORLDE
Enquanto corriam pela auto-estrada, Yank esboçou a história
e as funções da organização Lu. Embora as suas instruções o
proibissem de prestar informações para além do que já
dissera, declarou que no sítio para onde iam se
encontrariam com um homem que esclareceria tudo.
Seguindo o "modelo tipico" de desenvolvimento das
organizações de espionagem nos países democráticos, a
Inglaterra do passado sentira necessidade duma agência
doméstica para obter informações cuidadosas e controlar a
espionagem e sabotagem inimiga dentro das suas fronteiras.
Enchendo os seus arquivos informativos com inimigos reais e
imaginários, e tropeçando ocasionalmente numa célula de
espionagem genuína, enquanto buscava uma de ficção, aquele
organismo burocrático cresceu fortemente em tamanho e
poder, justificando cada nova expansão na base da anterior.
Duma simples secretária aferrolhada no edifício dos
serviços secretos militares, ela alargou-se até ocupar um
gabinete inteiro: a sala 5. E através dos códigos
simplistas do serviço, tornara-se conhecida por MI- 5.
Por vezes acontecia aos especialistas dos serviços secretos
terem que assumir um papel tão activo como passivo no jogo
do "espias-tu-espio- eu", insistindo, portanto, numa
organização paralela para controlar os agentes ingleses que
operavam no estrangeiro. A inclinação britânica tradicional
pela independência fez com que estas duas agências se
tornassem absolutamente autónomas e que a rivalidade entre
elas alcançasse um ponto em que se negavam a admitir a
existência uma da outra. Mas isto resultou numa certa
erosão da mão-de-obra humana, tanto mais que os agentes de
cada organização perdiam muito tempo a espiar, impedindo,
e, eventualmente, matando agentes de outra. Num golpe de
mestre e de inteligência organizadora, foi decidido abrir
as comunicações entre as duas agências, e o ramo
83
internacional instalou-se no gabinete a seguir do mesmo
corredor, ficando a ser designado nos círculos oficiais por
MI-6.
Desempenhando a tarefa que lhes cabia confundiram os
seus objectivos na Segunda Guerra Mundial, confiando
" longamente no conceito de organização francesa, "Système
Dn. Os seus agentes ganharam fama por bravura e sentido
de iniciativa, qualidades essas fundamentais para a
sobrevivência, considerando os estúpidos que insistiam em
largar de pára-quedas agentes que falavam francês na
Jugoslávia.
Não se desperdiçava energia alguma ao rondar os
nacionalistas irlandeses usando como base o boato de que a
Irlanda
era signatária secreta do pacto do Eixo.
Domesticamente os seus operadores descobriram anéis
de espiões que andavam a passar informações por meio de
chaves crípticas segundo amostras de tricô de Balaclava'
que as instituições femininas forneciam às tropas em África.
E capturaram nada menos que setecentos espiões alemães
pára-quedistas, tendo sido quase todos treinados com
aquela cautela insidiosa de não falarem alemão e
pretenderem passar por inocentes operários pedalando nas
suas bicicletas a caminho de fábricas de munições. Era
óbvio serem
estes os agentes da mais elevada importância visto os seus
controlos se terem dado ao trabalho de lhes fornecer
coberturas que incluíam casas atacadas pelos blitz e
registos que lhes atribuíam gerações de antepassados
ingleses.
Na Europa, os agentes da MI-6fizeram explodir pontes
no caminho dos exércitos aliados, evitando assim ataques
precipitados e mal concebidos. Foram eles que descobriram
a intenção que tinha a Suíça de declarar guerra à Suécia
como último recurso. E em três ocasiões só a má sorte
impediu que capturassem o general Patton e o seu estado-
maior inteiro.
Quando a guerra acabou, pediu-se a cada agente que
" Balaclava - porto da Crimeia, no mar Negro. Neste caso, o
autor refere-se a um barrete com abertura para o nariz e os
olhos, que tirou o seu nome do facto de ter sido usado
pelos soldados na Guerra da Crimeia. (N. da T).
84
escrevesse um livro com as suas aventuras, e a partir daí
ser-lhes-ia permitido entrarem para o comércio. Mas o
romance que rodeava a MI-5 e a MI-6 estava um pouco
deslustrado por uma quantidade de deserções e faltas de
informação que embaraçavam os serviços secretos britânicos.
Tornou-se evidente que alguma coisa tinha que ser feita
para prevenir essas deserções e carências, bem como para
manter a honra e reputação da organização. Seguindo a moda
da época, o Governo voltou-se para os Estados Unidos em
busca dum modelo.
Na América, por volta da mesma altura, os cento e dois
grupos de espiões extremamente argutos que haviam brotado
no Exército, na Marinha, no Departamento do Estado do
Tesouro e no Gabinete Para os Assuntos Indianos foram
absorvidos por uma vasta malignidade burocrática, a CII.
Esta organização, tal como a sua oposta britânica, estava a
sofrer a sua quota-parte de deserções e de "caça às bruxas"
provocada pelo pânico de McCarthy. Como reacção, organizou
uma célula destinada a policiar e a controlar o seu próprio
pessoal, protegendo-o do assassínio no estrangeiro. Este
último processo conseguiu-se pela ameaça do castigo ("multa
em calão da organização) do contra-assassínio e a célula
que aplicava essas penalidades era conhecida como Divisão
de Pesquisa e Multas - popularmente como o esquadrão SS.
Fora para o SS que Jonathan trabalhara antes de manobrar
para se livrar das suas garras.
Copiando a estrutura americana, os Ingleses desenvolveram
uma célula interna constituída por membros de élite que foi
instalada na sala a seguir do corredor - divisão essa que,
por acaso, era uma casa de banho. Apesar do espaço ter sido
transformado para acomodar as novas funções, os
espirituosos imediatamente rotularam o grupo de assassínio
com uma alcunha: o Lu.
- E isso pode levá-lo a compreender a História - concluiu
Yank. - Pelo menos, sabe quem nós somos. Quer perguntar
alguma coisa?
Jonathan estivera só com um ouvido atento, enquanto
observava o escorrer da paisagem campestre pelo vidro da
janela, através dum lusco-fusco encardido que abrandava a
linha dos montes, ao longe. Tinham abandonado a auto-
estrada
85
e entravam em vias secundárias. Quando passaram por uma
aldeia, Jonathan reparou na pedra de armas que encimava uma
hospedaria: verde, três espigas na cor natural, com a
primeira curvada. Obviamente ainda estavam no Wessex e
tinham andado por estradas desviadas sem progredirem muito
linearmente. Deu uma espreitadela pela janela para se
assegurar de que o carro de Maggie ainda os seguia de perto.
- Não há problema - declarou Yank. - Eles sabem para onde
vamos. Jesus! Está tudo a correr bem!
- Formidável! E agora porque não me diz que história é esta?
- Não posso. O Guv diz-lhe quando lá chegarmos. Vai gramar
o Guv. É todo "velha escola" e tudo o mais, mas também não
é um honesto cidadão de Delaware. Ele está muito bem
informado.
O Bentley virou para uma estrada traseira de acesso à
estalagem, que se chamava Olde Worlde, e triturou um
caminho de cascalho estacionando contra uma barreira. O
carro que transportava Maggie seguiu-o e parou a vinte
metros. Dois homens novos conduziram-na pela porta de trás
da estalagem.
- Bem, o que pensa disto? - perguntou Yank, enquanto
Jonathan se apeava flanqueado pelo sargento e por Henry.
- Um quartel-general baril, não?
Jonathan esquadrinhou a "coelheira". Pelo aspecto um falso
Tudor, construído no fim do século passado, e,
indubitavelmente, não destinado a ser uma estalagem. Dúzias
de pormenores possuíam essa qualidade rebuscada e
inorgânica dum estilo imitado. Mas onde não houvera gosto e
faltara o equilíbrio, os fundos tinham abundado, para os
vidros, as madeiras, os azulejos, que eram da melhor
qualidade obtenível na década de 1880 - o derradeiro
momento antes do artesanato cair, vitima da máquina e do
sindicato.
- Por aqui, senhor. - O sotaque de Henry tinha os ditongos
mastigados da classe trabalhadora. Conduziram Jonathan em
redor do edifício, até à parte da frente, e no balcão da
recepção foram saudados por uma jovem saudável, demasiado
maquilhada, que trajava uma camisola apertada e uma mini
tão mini que se via a dupla costura do
86
collant. O sotaque, roupa e maquilhagem incluía-a no mesmo
clube de Henry, e pelos olhares que trocavam era evidente
que entre os dois havia alguma coisa.
- Isto é o "especial" que trouxeram convosco? - perguntou
ela mirando Jonathan da cabeça aos pés, duma maneira que
parecia ser desafiadora.
- Exactamente - respondeu Yank. - Vai já direitinho ter com
o Guv.
- O Guv foi à igreja. Serviço vespertino. Vai ficar muito
tempo por cá?
Jonathan enfureceu-se por falarem dele na terceira pessoa.
- Não, não vou ficar muito tempo, pata-choca.
- Alguns dias - retrucou Yank.
- Então vou pô-lo no catorze - respondeu a "ave". Tu e o
sargento podem ficar nos quartos do outro lado. O que achas?
O Yank pegou na chave e indicou o caminho enquanto subiam
uma escada estreita, ornada de embutidos, que levava ao
segundo andar onde, após deixarem para trás um labirinto de
corredores escuros e arruinados com pisos irregulares que
estalavam sob a alcatifa, pararam em frente de uma porta. O
sargento abriu-a e fez sinal a Jonathan para que entrasse,
com um sacudir do polegar.
A sala era grande, desconfortável e fria, de acordo com a
sua época. A primeira coisa que atraiu o olhar de Jonathan
foi um guarda-fatos aberto no qual estavam pendurados os
trajes que ele levara para o hotel.
- Estávamos à sua espera - disse Yank, claramente orgulhoso
da eficiência da sua organização.
Jonathan atravessou o quarto e foi observar a vista. Por
baixo dajanela havia um esmerado jardim, agora um pouco
desleixado devido às cores acastanhadas do Outono, no
centro do qual havia um tanque quadrifólio, a água
esverdeada de algas e arrepiada pelo vento macio. Para lá
do jardim desenrolavam-se as belas colinas de Wessex, cuja
cor fora sugada pela obscuração metálica. O panorama era
prejudicado pelas espessas barras de ferro da janela.
- As barras ajudam a realçar o desenho - comentou o
sargento com um cacarejo pesado.
87
Jonathan olhou para ele, com ar fatigado, e a seguir
inquiriu de Yank.
- Eles fazem parte da sua gente, suponho. Pessoal do hotel
e tudo o mais?
- Certo. A Lu tem a matilha toda. Já agora - acrescentou
com um olhar lânguido - o que acha você da rapariga lá de
baixo? Bestialmente chique, eh? É um sujeito feliz!
Jonathan não estava lá muito certo, mas admitiu que a "ave"
devia utilizar as suas habilidades com os convidados
especiais.
- Quando verei o crápula principal?
- Quem?
- O senhor Lu. O Guv.
- Daqui a pouco - respondeu Yank, manifestamente aborrecido
pela irreverência de Jonathan. - Acho que se sentirá bem
aqui. Contudo, haverá um inconveniente. Ficará fechado à
chave até o Guv dar ordens em contrário e o WC é lá em
baixo no hall, portanto - Yank encolheu os ombros
envergonhado pela falta de conveniência das estalagens
britânicas em comparação com as americanas.
O sargento interrompeu:
- Portanto, se tiver que ir ao penico, pá, bata na parede
que eu levo-o lá abaixo pela mão. Topou?
Jonathan contemplou devagar o sargento enquanto perguntava
ao Yank:
- Ele tem que ficar por aqui perto? Vocês não têm um canil?
O sargento irritou-se:
- Espero que não venha a ter problemas por sua causa, pá!
- A esperança é de borla. Conserve o sentido de humor! - E
voltou- se para Yank. - O que se passa com Miss Coyne, a
senhora jovem que trouxeram comigo? Não há razão para a
manterem aqui. Ela nada tem a ver com isto.
- Não se preocupe com ela. Ficará bem. Agora porque não se
lava e damos os retoques finais antes de conversar com o
Guv?
Depois de ficar sozinho no quarto Jonathan manteve-se perto
da janela, sentindo-se confuso e cansado. A sua sensação
88
de dejà vu era completa. Aquela gente com as suas
maquinações cénicas rebuscadas, aquela impressão de um anel
que se apertava à sua volta, o ordinário sargento para quem
o assassínio e a mutilação deviam ser um exercício, o
americanismo embutido de Yank - tudo era britanica mente
análogo à CII. E o tal Guv estava conforme ao ritual; seria
urbano, robusto, simpático e implacável.
Deitou-se de costas, os dedos ligeiramente pressionados uns
contra os outros, os olhos postos no infinito em frente da
parede do quarto, e começou deliberadamente a esvaziar a
mente, imagem por imagem, até ter adquirido um estado de
neutralidade e equilíbrio. Os músculos do seu corpo
abrandaram e descontraíram-se até atingir por fim o
estômago e a testa.
Quando lhe bateram à porta, vinte minutos mais tarde,
estava pronto. O maquinismo do seu cérebro e corpo já
trabalhava calma e suavemente. Passara em revista os
acontecimentos dos últimos dois dias e chegara a uma
concepção detestável: era possível, era provável até, que
Maggie o tivesse cativado para o pessoal da Lu.
Com a presença ameaçadora do sargento colada a eles, Yank e
Jonathan percorreram cerca de duzentos metros, pela rua que
descia da pousada de Olde Worlde, antes de virarem para uma
vereda de teixos, que levava através de um portão, em forma
de arco, a uma igreja curiosa.
Enquanto penetravam no vestíbulo, a entoação oscilante dos
cantores amadores produzia um ruído alegre destinado aos
ouvidos do Senhor e que anunciava que a missa da tarde
estava em progressos. O sargento ficou no exterior, mas
Yank e Jonathan entraram na igreja. Este último divertiu-
se ao ver Yank, nos bicos dos pés, atravessar em direcção a
um banco preto e ajoelhar rapidamente numa breve e
murmurada prece antes de se sentar, ficando a olhar o
sacerdote com uma expressão de devoção amena e rígida.
Jonathan olhou em roda para a decoração do templo e ficou
surpreendido por descobrir de que se tratava de Arte Nova:
um estilo inédito na sua experiência de arquitectura
religiosa. Examinou-a com franca curiosidade enquanto o
89
vigário começava o seu sermão para a mão-cheia de fiéis
escassamente espalhada pelos bancos.
- Vós, sem dúvida, recordareis - a sua voz era a de um
baixo com as vogais nasaladas e lânguidas de um inglês bem-
educado - que tínhamos começado a examinar a significação
dos sacramentos. E hoje eu gostaria de focar o baptismo, o
único sacramento que, para a maioria de nós, é um acto
involuntário.
A decoração da igreja fascinava Jonathan sem, porém, lhe
agradar. Madrepérola e peltre imiscuíam-se nos ornatos
florais embutidos; anjos em forma de tubérculos, com longos
corpos estirados em feitio de esses, mãos de dedos frágeis
ligeiramente unidos em prece, observavam do alto a
congregação com grandes olhos pesadamente pestanudos;
flores exóticas, de curta vida, pendiam de caules finos do
topo das janelas com vidros coloridos; e, por cima do
altar, um Cristo efeminado e resplandecente em peltre
polido esmagava a cabeça de uma serpente com olhos de rubi.
A um sinal de Yank, Jonathan deixou-se ficar sentado
enquanto o resto dos fiéis faziam fila após um último e
vigoroso ataque a uma canção. Depois Yank indicou a
Jonathan o caminho para a sacristia enquanto o vigário
acabava de distribuir o pão da comunhão.
- Senhor. - A voz de Yank era modesta. - Posso apresentar-
lhe o doutor Hemlock?
O vigário deu meia volta, um sorriso rasgado e gracioso de
acolhimento, e tomou a mão de Jonathan entre as suas
enormes patas hirsutas.
- É um prazer! - declarou piscando o olho. - Foi muito
amável em vir. - O seu tom melaço tinha o calor do civismo
muito usado. - Deixe-me só acabar e teremos uma agradável
conversa. - Bebeu o resto do vinho da comunhão e
escorripichou cuidadosamente o cálice, enquanto Jonathan
estudava a sua face inflada com o traçado de capilares
vermelhos nos malares e com abundância rubicunda sobre o
nariz amorfo e substancial. O cabelo havia-lhe recuado para
além do horizonte da linha da testa, mas era comprido aos
lados e misturava-se com as suíças em forma de costeletas.
- Estranho ritual este - proferiu o vigário, arrumando
90
os utensílios. - Os últimos pedaços do pão e vinho
consagrados devem ser consumidos pelo padre. Suponho que
isto terá surgido de algum receio de contaminação e
sacrilégio, no caso do corpo e sangue de Cristo entrarem no
canal alimentar de algum descrente. - E piscou o olho.
- O que é o trabalho missionário senão o esforço de
introduzir Cristo nos não iniciados? - comentou Jonathan.
O vigário riu animadamente.
- Precisamente! Precisamente! Você, atrevo-me a acreditar,
não comunga com frequência, pois não?
- Nenhuma forma de canibalismo me atrai.
- Oh! Compreendo. - O vigário dobrou minuciosamente o
último dos seus trajes e colocou-o junto dos outros. Visto
de trás, a sua massa formidável parecia encher a sotaina
preta e solta. - Vamos dar uma volta pelo adro da igreja,
doutor Hemlock. É bastante agradável ao cair da noite. Não
vamos precisar de si, Yank. Estou certo de que será capaz
de se distrair sozinho durante alguns minutos.
Yank fez um gesto que se assemelhava a uma saudação e
abandonou a sacristia. O vigário contemplou-o com um calor
paternalista.
- Ali está um jovem muito brilhante para si, doutor
Hemlock. Enérgico. Zeloso. Tirámo-lo doutro projecto e
fizemos dele a sua ligação com a nossa organização porque
pensámos que se sentiria melhor trabalhando com alguém que
está au courrant das coisas americanas. - Colocou o seu
pesado braço à roda dos ombros de Jonathan e conduziu este
num passeio indolente, descendo a nave da igreja Arte Nova.
- É bonita não é? Bastante invulgar!
- É sua?
- Na realidade, pertence a Deus. Mas se me perguntar se sou
o vigário regular dir-lhe-ei que não. Estou aqui durante
uma quinzena enquanto ele passa a lua-de-mel em Espanha.
- Fez um gesto largo com o braço. - Quando pensa que foi
esta igreja construída?
Jonathan afastou-se do braço que o envolvia e olhou em
volta.
- Cerca de mil novecentos e cinco.
O vigário parou de repente, com as suas farfalhudas
sobrancelhas sal-e- pimenta bem arqueadas.
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- Espantoso! Com um ano de diferença! - Depois riu.
- Ah! Mas é claro! A arte é o seu terreno. - Olhou
rapidamente para Jonathan. - Isto é uma das suas ocupações.
- É a minha única ocupação - disse Jonathan com uma tensão
selvagem.
O vigário enclavinhou as mãos atrás das costas e estudou o
chão de parqué.
- Sim, sim. O seu Mr. Dragon informou-me de que você
abandonou a CII com um certo desgosto, após aquele negócio
complicado nos Alpes. - E piscou o olho.
Jonathan inclinou-se contra um dos lados dum banco e cruzou
os braços. Via-se que o vigário sabia muito acerca dele.
Até sabia o nome de Yurasis Dragon, o chefe da Divisão de
Pesquisa e Multas da CII; um nome conhecido por menos de
uma dúzia de pessoas nos EUA. Obviamente, o vigário
preferia aproximar-se do negócio sujo que tinha em mente -
fosse ele qual fosse - através das veredas desviadas duma
conversa trivial e cortês, mas Jonathan resolveu não
cooperar.
- Sim - continuou o vigário após uma pausa incómoda -, deve
ter sido um assunto desagradável para si. Os pormenores,
tais como os recordo, dizem-me que você teve que matar
todos os homens, eram três, que treparam consigo, porque a
vossa divisão SS não foi capaz de especificar qual deles
era o seu alvo.
Jonathan enfrentou-o friamente, mas não lhe respondeu.
- Acho que é preciso um tipo bastante especial de homem
para fazer esse género de coisas - comentou o vigário,
piscando o olho. - Apesar de tudo, deve nascer uma certa
camaradagem entre indivíduos que executam uma escalada tão
perigosa como a do Eiger. Ou não será?
Não obteve resposta.
O vigário quebrou o silêncio que se seguiu com uma
afabilidade artificial.
- Bem, bem! No meio de todos esses acontecimentos, o
projectozito que acalentamos não deve ser assim tão difícil
para si. Pelo menos, não precisa de ser. Tem que se sentir
grato por isso, não?
Silêncio.
- Sim. Bem, Mr. Dragon avisou-me de que você poderia
92
recalcitrar. - O tom de grande afabilidade desapareceu-lhe
da voz e continuou a falar com a crispação mecânica dum
homem habituado a dar ordens. - Então, óptimo. Vamos a
isto. O que lhe disse o Yank acerca de nós?
- Apenas aquilo que você lhe ensinou. Percebi que a vossa
organização Lu é mais ou menos análoga à nossa Divisão de
Pesquisa e Multas, e que se ocupa com assuntos de contra-
assassínio.
- Isso está correcto. Contudo aquilo que reservámos para si
sai um pouco dessa linha. Que mais sabe?
Jonathan começou a caminhar pela nave em direcção ao
vestíbulo.
- Nada, na verdade. Mas fiz algumas suposições. O vigário
seguiu-o.
- Posso ouvir quais?
- Bem, você, claro, é Mr. Lu. Mas ainda não descobri até
que ponto a sua igreja constitui simplesmente uma fachada.
- Não, não. De forma alguma. Eu sou antes de mais nada e
sempre um homem da Igreja. Servi como capelão durante a
guerra com Hitler e depois disso achei-me envolvido ainda
nos assuntos do Governo. Nós somos fundamen talmente uma
igreja do Estado. - E piscou o olho.
- Compreendo.
Jonathan passou para o vestíbulo e transpôs o limiar que o
levava ao adro, frio e iridescente ao crepúsculo. Yank e o
sargento estavam a uma certa distância, observando-o,
enquanto o vigário se lhe colocava ao lado.
- Não é invulgar, doutor Hemlock, para os homens da Igreja
católica ou da inglesa terem qualquer passatempo que lhes
ocupe os cérebros. Particularmente se as suas vidas são
modestas. O estudo da Natureza exige um grande número de
pessoas; e alguns dos homens mais jovens brin cam com a
reforma social e esse tipo de coisas. As circunstâncias e a
inclinação pessoal dirigiram-me para outra via.
- Matar, para ser específico.
A resposta do vigário foi medida e fria.
- Tenho alguns talentos organizáveis que pus ao serviço do
meu país, se é a isso que se refere.
- Sim, é a isso.
93
- E, diga-me, o que deduziu mais?
- Que essa jovem senhora Maggie Coyne, se é esse o seu nome
verdadeiro...
- Acontece que é.
que essa Miss Coyne é uma das suas operadoras. Que me meteu
nesse negociozinho do homem na minha casa de banho.
- Meu! Você é muito perceptivo. O que o levou a essa
conclusão?
Jonathan sentou-se numa pedra tumular.
- Em retrospectiva, a coisa era demasiado límpida,
demasiado circunstancial. Só raramente utilizo o
apartamento da Baker Street. Mas os seus homens sabiam que
eu estaria ali nessa noite em especial. E foi Miss Coyne
que propôs o restaurante meio quarteirão mais adiante.
- Ah, sim.
- E juntamente com uma caterva de provas circunstanciais
forjadas ligando-me a esse pobre bastardo, deve haver
algumas outras provas mais fortes, provavelmente
fotográficas. Certo?
- Envergonho-me de ser tão transparente para si.
- Como arranjou as fotografias?
- A jovem encarregou-se disso.
- Quando? Com quê?
- O cigarro...
o isqueiro! - Jonathan abanou a cabeça pensando quão
estúpido fora. Um isqueiro de ouro na posse de uma rapariga
que não sabia donde viria a sua próxima refeição. Uma
máquina fotográfica, claro! E tinha-a manuseado
desajeitadamente, incapaz de acender o cigarro, enquanto
estivera à porta da casa de banho.
Arrancou um ramo dum arbusto, ripou as folhas num gesto de
fúria e esmagou-as na mão.
- E a arma, é claro, seria encontrada no meu apartamento.
- Muito bem escondida. Seria achada apenas depois de uma
busca exaustiva. Mas seria achada. - O vigário piscou o
olho.
Jonathan continuou a caminhar devagar, rolando a polpa das
folhas entre as palmas das mãos.
94
- Sinto-me curioso, padre...
- O sinal de um intelecto saudável.
- Após terem baleado o indivíduo no meu apartamento
os seus homens partiram. Não tentaram deitar-me a mão,
presumivelmente por não terem ainda as fotos.
- Só por isso.
- Porque voltaram depois?
- Para irem buscar o isqueiro e revelarem o filme.
Supunha-se que Miss Coyne o deixaria lá.
- Mas não o fez.
- Não, não o fez. E isso lançou os meus rapazes numa
certa confusão.
- Por que supõe que ela estragou o plano?
- Ah - O vigário abandonou as mãos e deixou-as cair
num gesto de impotência. - Quem pode pôr à prova o
coração humano com os toscos utensílios da lógica doutor
Hemlock? Talvez ela ficasse chocada com a visão daquele
tipo na sua casa de banho? É até possível que uma certa
afeição por si tenha desviado a sua lealdade.
- Nesse caso, porque não destruiu ela os filmes?
- Ah, cá estamos! Buscando uma sequência lógica nas
atitudes emotivas. O homem é apenas labiríntico. E quando
digo "homem" incluo, como é evidente, a mulher. Porque
neste contexto, tal como no romântico, o homem envolve a
mulher. Nunca compreenderei porque os Americanos duvidam
do sentido de humor dos Bretões.
Jonathan podia entender.
- Portanto, os seus homens andaram a percorrer Londres
atrás de Miss Coyne e da minha pessoa.
- Você fez-nos passar algumas horas difíceis. Mas agora
isso já lá vai. Mas vamos lá! Não vamos olhar para o lado
desagradável! Desde que você empreste os seus talentos ao
nosso pequeno projecto, a polícia terá licença para se
manter naquele estado de abençoada ignorância tão
característico dela. - O vigário parou à beira dum túmulo
recente
que ainda não recebera a lápide. - É aquele pobre Parnell-
Greene -- disse ele respirando fundo. - Aquele infeliz
" tipo! "
- Quem é Parnell-Greene?
- A nossa casualidade mais recente. Você saberá mais
95
acerca dele, depois. - Fez um gesto amplo com o braço.
Todos eles aqui - proferiu com voz oscilante - todos eles
são dos nossos. Todos gente da Lu.
Jonathan atentou nas inscrições das lápidas próximas,
apenas legíveis na luz desvanecível. Passado para o Além.
Foi descansar. Regressou a casa. Finalmente na glória
eterna.
- Alguns deles não morreram, pois não? - perguntou ele.
- Perdão?
- Nada, nada.
- Os nomes e as datas das pedras tumulares são falsas, é
claro. Mas eram todos uns bravos. - Suspirou
ostensivamente. - Jovens decentes, todos eles.
- Nenhum sacana?
O vigário olhou para ele reprovadoramente, depois desatou a
rir.
- Ah, sim! Mr. Dragon avisou-me da sua tendência para
regressar ao atavismo social da sua infância. Isso
costumava penalizá-lo, ou então era o que dizia.
- Parece estar em boas relações com Dragon.
- Correspondemo-nos com regularidade, partilhamos
informações e pessoal, esse tipo de coisas. Isso
surpreende-o? Também temos acordos com os nossos opositores
russos e franceses. Afinal de contas, todos os jogos têm
que ser jogados com certas regras. Mas devo confessar que
Mr. Dragon não foi de grande ajuda no assunto que agora nos
juntou aqui, ocupado como está com os acontecimentos da sua
própria "descida". Sem dúvida ouviu falar do processo
Watergate?
- Estranhamente ouvi falar bastante. Foi mencionado ainda
hoje na Embaixada. Parece-me ser muito falatório acerca dum
fragmento trivial e irrelevante no jogo do "espias-tu-
espio-eu".
- Poderia pensar-se assim, mas não pode ser tudo tão
trivial se a CII se meteu nisso. O assunto exige,
evidentemente, uma forma de o encobrir com tremenda
eficácia e Mr. Dragon está envolvido nessa faceta da
questão. Não ficarei admirado se as estatisticas de morte
por acidente mostrassem uma subida avassaladora no próximo
mês,
96
mais ou menos. Mas deduzo pela sua expressão distante que
não está nada preocupado com estas eleições.
- É difícil ficar excitado quando a escolha tem que ser
feita entre um louco e um patife.
- Pessoalmente, prefiro os patifes. São mais previsíveis.
- O vigário piscou vigorosamente o olho.
- Portanto, foi o Dragon que o pôs na minha pista?
- Sim. É evidente que sabíamos que estava no país, mas
tínhamos sido informados de que se retirara deste tipo de
tarefas. Não interferimos com a sua visita. Nessa altura,
não tencionávamos utilizá-lo. Não há nada mais perigoso que
um agente indisposto e pouco cooperante. Mas... Este
negócio andou para a frente e... - o vigário inflou as
gordas bochechas e encolheu fatalisticamente os ombros -
não tivemos, de facto, outra opção.
- Mas porquê eu? Porque não um dos seus rapazes?
- Sabê-lo-á na altura própria. Bonita noite, não é? Aquele
momento preciso em que o dia e a noite estão num equilibrio
delicado.
Jonathan sabia que estava fisgado. Se recusasse cooperar Lu
certamente o enforcaria pelo assassínio daquele pobre
bastardo na casa de banho, mesmo que isso tornasse
impossível utilizarem os seus serviços. Como a CII, Lu
percebia que ameaças e chantagem só eram eficazes quando a
vítima sabia que seriam postas em prática custasse o que
custasse.
- Muito bem - declarou Jonathan, sentando-se num túmulo. -
Vamos falar do caso.
- Agora não. Estou à espera de algumas informações de
última hora de Londres. Logo que as tenha, estarei
capacitado para o meter totalmente no assunto. Poderei vê-
lo amanhã no presbitério? Digamos, a meio da manhã?
O vigário fez um simples gesto com as pontas dos dedos e
Yank, que os tinha mantido sobre vigilância, esforçando os
olhos no crepúsculo, veio a trote. Literalmente a trote.
Enquanto subia as estreitas escadas que levavam ao segundo
piso da estalagem, Jonathan voltou-se de lado para permitir
que Maggie passasse por ele enquanto descia. Ela parou e
olhou-o com olhos perturbados.
97
- Suponho que parecerá um pouco louco dizer que lamento
muito?
- Louco, certamente. E inconveniente.
Ela sacudiu para trás uma madeixa de cabelo ambarino e
obrigou-se a continuar a olhá-lo de frente.
- Então correrei o risco de parecer louca.
- Vamos - rugiu o sargento por trás deles. - Não tenho a
noite toda para perder aqui!
Jonathan voltou-se e mostrou-lhe o seu gentil sorriso de
combate. Acenou com a cabeça e falou suavemente para o
rosto de lua cheia do outro, com a cabeça rapada e o bigode
militarmente eriçado.
- Sabe uma coisa? Começo a ficar muito chateado com tudo o
que se passa aqui. E estou convencido de que a minha
chatice vai até ao ponto de finalmente correr consigo. E
quando isso suceder... - Jonathan fez um gesto e acenou de
novo -... e quando isso suceder... - Deu uma palmadinha na
bochecha do sargento. Depois voltou-se e foi para o quarto.
O sargento, não estando certo do que realmente se passava,
esfregou a cara zangado e murmurou nas costas da figura que
se afastava:
- Qualquer dia, ianque! Qualquer dia!...
Yank viera para o levar a jantar na grande sala de tecto
baixo, pseudotúdor, uma recente adição de estuque com
caprichosos relevos finos e espiralados e traves de madeira
- feitas de plástico - colocadas em posições impossíveis
para escorar o peso. Havia nada menos de doze pratos
servidos por um criado português, com um smoking preto mal
ajustado, executando a sua tarefa em grande estilo e com
floreados que interferiam com a eficiência.
Jonathan e Yank ocupavam uma mesa de canto, enquanto o
sargento se sentava sozinho a três mesas de distância e se
entretinha, quando não estava a meter na boca grandes
garfadas de comida, a fitar Jonathan com uma intensidade
ameaçadora que era quase cómica. Henry, o motorista, estava
instalado mais adiante, conversando intimamente com a "ave"
da recepção que se gingava com frequência e lhe encostava
ojoelho. Os indivíduos restantes eram jovens
98
obtidos pelo mesmo molde de Henry; cabelos longos, faces
carnudas, fatos escuros, casacos a abrir para baixo e
calças em forma de sino.
- Vejo que Miss Coyne não veio jantar - comentou Jonathan.
- Não - respondeu Yank. - Está a comer no quarto dela. Não
se sente muito bem.
- Uma rapariga de sensibilidade delicada.
- Penso que sim.
Era uma refeição tipicamente inglesa; carne cozida até
ficar fibrosa, batatas quase a naufragar e as omnipresentes
ervilhas e cenouras, insípidas e despedaçadas. Logo que
matou os primeiros impulsos da fome, Jonathan empurrou o
prato.
Embora tivesse estado a comer com apetite enorme Yank
imitou o gesto de Jonathan.
- Este "pasto" inglês é um crime, não é? - observou. Por
mim podiam ser hamburgers e batatas fritas a toda a hora.
- Quem são estes jovens? - perguntou Jonathan.
- Na sua maioria, guardas - respondeu ele. - Posso mandar
vir os cafés?
- Por favor. Todos estes guardas são para mim? Estou
lisonjeado!
- Não, eles não trabalham aqui. Trabalham... - estava
visivelmente incomodado... - lá em cima, na estrada.
- Na igreja?
Yank sacudiu a cabeça.
- Não. Temos outro edifício. Lá atrás, no campo.
- Que tipo de edifício?
- Ah! Acho que consegui que o criado me visse. Yank
levantou a chávena de café e apontou para ela. O criado
português mostrou-se primeiro confuso, depois com um olhar
de compreensão levantou uma chávena duma mesa vazia e
apontou para esta, soerguendo-a numa pergunta. Yank acenou
que sim e pronunciou a palavra: café, exagerando o
movimento labial.
Quando o café chegou, a curiosidade de Jonathan obrigou-o a
perguntar:
- Esse outro edifício que mencionou. O que se passa lá?
99
O incómodo de Yank tornou-se novamente evidente.
- Oh! Não é nada! Sabe? - Mudou de assunto sem subtilezas.
- De facto tenho inveja de si.
- Sim? Sempre desejou secretamente que o raptassem?
- Não, não é isso. Acho que invejo todos os Americanos. Não
entendo como veio viver entre nós, os limões*. Se eu alguma
vez for ao velho "quarenta e oito" pode apostar o seu cu e
um tostão que ficarei lá. E um dia destes vou fazê-lo. Vou
para os Estados Unidos e arranjo um rancho no Nebrasca, ou
noutro sítio qualquer, e instalo-me.
- Isso é uma maravilha, Yank.
- Não é sonho! Vou fazê-lo, garanto-lhe! Logo que possa
deitar sozinho a mão ao dinheiro.
De volta ao quarto Jonathan deitou-se no escuro com os
olhos virados para o tecto. Com a continuação, a sua
profunda fúria represada manifestou-se através duma pressão
por trás dos olhos que o incomodava e começava a provocar-
lhe espasmos. Estava a esfregar as têmporas para aliviar a
tensão quando ouviu o som duma chave a girar na fechadura.
Abriu os olhos e, sem mexer a cabeça, observou a "ave" da
recepção que entrava e se aproximava da cama.
- Está a dormir?
- Não.
Ela sentou-se na beira da cama e pousou a mão em cima de
Jonathan.
- Está disposto a tentar?
Ele sorriu e examinou o rosto dela na obscuridade. Era
bastante bonita àquela maneira plástica das raparigas
inglesas da sua classe e idade.
- Tenho a impressão de que você tem algo a ver com o jovem
que me conduziu aqui.
- Quem, Henry? Bem, claro que tenho! Estamos a pensar em
casar um destes dias. Mas isso é a minha vida privada e
agora trata-se do meu trabalho. Os fulanos que vêm
" No texto limões que quer dizer ingleses em calão. Formou-
se a partir do hábito destes beberem sumo de limão para
evitar o escorbuto. (N. da T).
100
aqui estão muitas vezes nervosos e eu ajudo-os a
descontrair. Faz tudo parte do meu serviço, já devia saber.
- Uma prostituta do serviço civil.
- É um emprego. Bom ordenado. Henry e eu decidimos que
continuaria a trabalhar depois de nos casarmos. Até termos
miúdos, claro. Estamos ajuntar dinheiro ejá arranjámos
quinze livros com selos verdes. Um destes dias vamos
comprar uma licença a sério. Henry tem muitos miolos, sabe?
Bem, nesse caso, se não precisa de mim volto para o
telefone. Você não perderia nada se me deixasse ajudá-lo.
- Não, não precisarei de si. Você é uma rapariguinha
gentil, mas isso é um bocado clínico para mim.
Ela encolheu os ombros e saiu. Nunca compreenderia certos
homens.
Jonathan mergulhara num sono profundo quando a vibração
visceral da discoteca o trouxe até à consciênciacom a mente
viscosa e os ossos esticados. Nem conseguia acreditar! O
volume era tão alto que o baque medular do contrabaixo era
uma coisa física que fazia vibrar o chão e tilintar o copo
no lavatório. A cadência monótona, hipertiroideana do disc
jockey introduziu a selecção seguinte numa rápida imitação
falseada, à moda de East End, do alucinante sapateado
americano, e o quarto começou a estremecer de novo. Ele
saltou da cama e esmurrou a parede para que o deixassem em
paz. Não houve resposta, e então chocalhou a porta e esta
abriu-se. Portanto, já não estava fechado à chave. O
vigário devia ter-lhes dito que ele se sentia completamente
fisgado e não tentaria fugir.
Depois de chapinhar a cara e mudar de camisa, saiu para o
hall e foi encontrar o pub adjacente atafulhado de jovens,
gritando uns para os outros, empurrando-se, as canecas de
cerveja erguidas ao alto e brandindo cigarros. Ele forçou o
caminho através daquela chusma de gente até ao bar-salão,
tentando fugir à enorme bulha, e em vez disso encontrou-se
numa discoteca, rodeado porjovens que pulavam e suavam ao
som ensurdecedor dos amplificadores numas trevas tristes
ocasionalmente interrompidas por um raio proveniente das
luzes psicadélicas. O barulho era mortal, particularmente
101
o do contrabaixo amplificado, que vibrava na sua cavidade
craniana.
Uma forma aproximou-se na escuridão cheia de fumo.
- O barulho acordou-o? - perguntou Yank.
- O quê?: ...
- O barulho acordou-o?
Jonathan gritou ao ouvido do homem:
- Deixemo-nos de representações. Mostre-me como se sai
daqui.
- Siga-me.
Romperam por entre corpos circulando num miasma de fumo e
de cerveja cediça, saindo por uma porta de trás para o
parque de automóveis, agora cheio de carros e pequenos
grupos de jovens falando uns com os outros e explodindo em
sacudidelas de riso forçado quando algum deles dizia
qualquer obscenidade.
Bem para lá do parque de automóveis - Jonathan podia ver
dali a sua janela - o ruído era suficientemente baixo para
poderem falar. Pararam e Yank acendeu um cigarro.
- O que se passa aqui? - inquiriu Jonathan.
- Temos uma discoteca a funcionar cinco noites por semana.
Os músicos vêm a toda a hora de Londres. É uma ideia do
Guv. Dá-nos cobertura para as nossas operações aqui e
alguma massa extra.
Jonathan agitou a cabeça com ar incrédulo.
- Quando acaba isto?
- Está quase. Cerca das dez e meia.
- E o que achavam vocês que eu faria, entretanto?
- Não grama música?
Jonathan fitou-o.
- A minha porta já não está trancada. Calculo que estou
livre para andar por aí?
- Dentro de certos limites. Talvez seja melhor se eu andar
consigo.
Deambularam pelo jardim e percorreram uma álea que partia
da estalagem. Yank falava confusamente acerca das virtudes
da América, das coisas americanas, dos lugares onde havia
de ir quando tivesse poupado dinheiro suficiente para
emigrar.
- Acho que dizendo isto parece até que não gramo cá a
102
velha "terrinha". Mas não é verdade, de facto. Há uma data
de coisas inglesas - maneiras de viver, tradições - que eu
admiro e que me vão fazer falta. Mas estou realmente a cair
da tripeça. A cair ou a caminhar para lá. A Inglaterra
tornou-se uma espécie de Estados Unidos sem dinheiro. E se
você tiver que viver nos Estados Unidos, prefere viver no
que é a sério, não?
Jonathan, que não ouvira, indicou uma bifurcação no caminho.
- Para que serve isto?
- Oh! para nada de facto. - E Yank começou a meter pelo
braço mais curto da bifurcação.
- Não. Vamos continuar por aqui.
- Bem... de qualquer forma não pode ir muito longe por este
caminho. Barrado, sabe?
- O que se passa?
- É outro ramo das nossas operações. Os guardas que viu vêm
daqui. Eu nada tenho a ver com isto.
- O que é isto?
- É... ah... chama-se "Estação de Alimentação".
- É uma quinta?
- Uma espécie. Vamos para casa.
- Você vai para casa. Eu não posso com o barulho.
- Ok. Mas não pode ir muito longe por aqui. Os cães estão
soltos esta noite.
- Cães? Para manter as pessoas afastadas da "Estação de
Alimentação"?
- Não. - Yank deu uma longa puxada no seu cigarro.
- Para manter as pessoas lá dentro.
Jonathan sentou-se num banco de pedra, na escuridão, perto
do tanque quadrifólio. Uma cerração leve pairava no ar sem
vento e a sua pele formigava de frio. Havia um carmesim
untuoso no céu nórdico, o derradeiro clarão do restolhal; e
a atmosfera carregava o cheiro outonal das folhas ardidas.
A discoteca fechara e a chusma de jovens inundara os
carros, rindo e vaiando-se no parque automóvel. As buzinas
soaram, o cascalho saltara e o último bêbado, sozinho e
tropeçando na escuridão, chamara "Alf! "
103
várias vezes, com crescente desespero, antes de ficar na
estrada a vomitar.
Aquele era o período em que o silêncio profundo esperava
que as criaturas da noite se sentissem a salvo; a seguir
começava o chilro dos insectos, o sussurro dos ratos
campestres, o chape-chape dos sapos.
Jonathan ficou ali sentado, só e deprimido. Andara tão
convencido de que a sua ruptura com a CII fora definitiva!
Represara todas as recordações torpes. E pronto, ali estava
ele. Outra vez em poder deles. Mas o que mais o aborrecia
não era a ironia ou a perda da liberdade de escolha. Era a
descoberta de que aquela vida não ficara tão desprezada no
caminho como ele pensara. O esquema altamente afiado,
mentalmente agressivo, necessário para sobreviver naquele
tipo de acção, havia voltado tão naturalmente como se
apenas tivesse estado enterrado debaixo duma fina camada de
repugnância.
Ouviu a aproximação dela a trinta metros de distância. Não
precisou virar a cabeça. Não havia no pisar dos pés
qualquer ameaça, energia perigosa, sinais de risco.
- Tens lume? - perguntou ela, depois de se ter sentado ao
lado dele por algum tempo sem ter despertado o mínimo
reconhecimento da sua existência.
- O que aconteceu? O teu isqueiro foi atrás do filme?
Ela deixou passar a ironia.
- Não interessa, de facto. De qualquer forma não tenho
cigarros.
- Só esse profundo desejo de comunicar. Eu conheço a
sensação.
- Jonathan espero que não penses muito mal de mim, porque...
- Sim, porque esse desejo de comunicação é o maior problema
do mundo, como sabemos e apreciamos na vida de todos os
dias. Todas as pessoas são essencialmente boas e carinhosas
e amantes da paz, mas têm problemas de comunicação umas em
relação às outras. Não é assim? Talvez seja por terem
erguido barreiras de desconfiança. Deviam aprender a
confiar mais. A única pessoa em que tu realmente confias é
numa mulher chamada Maggie, que embora não seja um nome
melodioso é pelo menos substancial. Podes confiar sempre na
boa da Maggie.
104
- Muito bem. Desisto.
- Óptimo. - Ele levantou-se e dirigiu-se de novo para a
estalagem.
Ela seguiu-o.
- Mesmo assim, há mais uma coisa.
- Deixa-me adivinhar. Darias tudo no mundo para não teres
de me tramar. Quase choras quando pensas em mim, a dormir
profundamente depois de sexualmente exercitado e satisfeito
- talvez com um sorriso infantil na cara enquanto
escorregavas da cama e abrias a porta para deixares os
homens da Lu entrar na minha casa de banho e disparar sobre
aquele pobre bastardo.
- A verdade é que eu não sabia...
- Claro! Primeiro eu era só um número para ti, a seguir foi
diferente. Certo? Depois de termos feito confidências
banais e fornicado um pouco, descobriste sentimentos
profundos a meu respeito. Mas então era tarde demais para
recuar. Maggie!... - Ele largou as rédeas da sua fúria e
baixou a voz. - Maggie, as tuas atitudes carecem até do
encanto duma nova experiência para mim. Já fui outrora
ferido por uma senhora. A única diferença é que ela estava
nas organizações mais importantes.
Os olhos dela não o largavam e nem vacilara perante a
tirada.
- Eu sei, Jonathan.
Ele percebeu que fora longe demais e estava a apertar os
seus braços com força. Largou-a, abrindo as mãos.
- Como sabes?
- Pelos teus registos. A CII enviou-nos o teu dossier
completo e pediram-me que o estudasse cuidadosamente
antes...
- Antes de me encurralares.
- Está bem! Antes de te encurralar!
Ele descortinou a vergonha no seu súbito ataque de cólera.
De repente, sentiu-se muito cansado. E lamentou a sua falta
de controlo. Olhou para longe dela e obrigou a respiração a
assumir um ritmo mais lento.
Ela falou sem zanga nem submissão:
- Quero dizer-te uma coisa.
- Não preciso.
105
- Preciso eu. Não sei o que estão a maquinar. Pensava que
iam empregar uma droga ou qualquer coisa do género. Quando
apareceram na porta com aquele pobre homem, eu... eu...
- Nessa altura estava vivo.
Ela engoliu em seco e olhou para outro lado, para a estrada
brilhando fracamente à luz fantasmagórica que rompia por
baixo do nevoeiro. Falar daquilo exigia que esquadrinhasse
os mais penosos escaninhos da memória:
- Sim, estava horrivelmente drogado. Nem sequer conseguia
estar de pé sem apoio. E tinha aquela terrível máscara
sorridente. Tiveram que lhe pegar e pô-lo na... Mas ele
sabia o que lhe estava a suceder. Pude vê-lo nos seus olhos
- que se viam por trás dos cortes da máscara. Ele olhou
para mim duma forma tão... - pestanejou para não deixar
cair as lágrimas. - Havia tanta tristeza nos seus olhos!
Estava a pedir-me para o ajudar. Senti-o. Mas eu... Deus
que está lá em cima sabe em que terrível sarilho estávamos
metidos, Jonathan.
Deixou cair a cabeça contra o peito dele. Parecia a única
coisa razoável a fazer.
- Porque não o mataram logo?
Ela não conseguiu falar durante um certo tempo e Jonathan
ouviu o som das lágrimas a serem engolidas.
- Era o que tinha ficado combinado. O vigário ficou muito
zangado com eles por terem feito mal o trabalho. Entraram
na casa de banho, enquanto eu esperei cá fora.
Então, tu viraste-te a dormir e disseste qualquer coisa.
Fiquei com medo que acordasses, portanto bati à porta e
nesse momento ouvi um estalo.
- Um silenciador.
- Sim, acho que foi. Fugiram imediatamente, mas um deles
estava sem respiração. Quando bati à porta assustei-o e ele
falhou o alvo.
Jonathan embalou-a ternamente.
- Fugi para a cama tentando não te acordar. Não sabia que
fazer. Fiquei ali, simplesmente, a olhar para o escuro,
concentrando-me o mais possível, fazendo o que podia para a
alvorada não chegar.
- Mas não tiveste sorte.
106
- Nenhuma. A manhã chegou. Tu acordaste. Então... não
consegui fazer amor quando quiseste.
Ele acenou com a cabeça. Esse era o grande ponto a favor de
Maggie.
- Anda. Vamos dar uma volta em redor da estalagem antes de
entrar.
Ela fungou e levantou-se também.
- Sim, seria agradável.
Vaguearam lentamente, de braço dado, cada um deles
acomodando-se à sua diferente maneira de reagir.
- Diz-me uma coisa - inquiriu ele -, por que não atiraste
fora o isqueiro?
- Sabes isso? Bem, acho que o verdadeiro problema era como
não o deixar no teu quarto quando era suposto eu fazê-lo.
Não sei. Naquele momento, pensei que podia proteger-te não
lhes entregando as películas. Mas logo a seguir tive tempo
de pensar e percebi que eles estavam decididos a apanhar-
te. Não havia vantagem em escamotear-lhes os filmes.
Bastava que tivessem qualquer outra coisa montada e tu
passarias pelo mesmo.
- Estou a ver. - Olhou para baixo, observando os sapatos
que avançavam ritmicamente. - Quem foram os homens que
entraram no meu apartamento?
- Os dois que te trouxeram aqui no Bentley. Não o Yank - os
outros dois.
- E quem deu o tiro?
- O sargento.
- Era evidente. - E juntou mais uma parcela à conta que
tinha de pagar. O sargento estava a fornecer-lhas. O ajuste
de contas tornava-se inevitável.
Andaram uns passos sem falar, respirando a mistura do ar
nocturno.
- Pode parecer tolo - disse ela por fim -, mas estou
contente por não teres ligado à Sylvia.
- Quem é a Sylvia?
- A rapariga que trabalha aqui. Tu sabes quem é, a namorada
do Henry.
- Oh, essa! Bem, não é o meu tipo!
Estavam agora outra vez junto à porta. Ela voltou-se para
ele e perguntou:
107
- E eu, sou o teu tipo? Ele fitou-a por momentos:
- Receio bem que sim. E entraram.
- Desculpa - pediu ela após um longo silêncio. Estava
sentada, encostada à cabeceira da cama em carvalho
esculpido, e acabara de acender mais um cigarro.
Ele rodou sobre as ancas e pousou a face na curva do seu
peito. Tinham feito amor, e dormido, e feito novamente
amor, e agora a voz dele estava rouca por ter dormido pouco.
- Desculpar-te porquê?
- Acerca da última fase - aquelas contracções internas
quando atinjo o orgasmo. Não posso evitá-las. Estão para
além do meu controlo.
Ele resmungou e disse:
- De qualquer forma não vamos falar disso. Maggie riu-se
dele.
- Não gostas de falar disso? Supõe-se que seja muito
saudável e moderno, etc. etc...
- Julgo que sim. Mas eu sou suficientemente antiquado para
me considerar sentimental acerca da situação. Pelo menos
nos primeiros minutos.
- Hum... mm. - Puxou uma fumaça do cigarro, o rosto
efemeramente iluminado pelo rubor. - As pessoas do teu tipo
são assim.
Ele voltou-se.
- As pessoas do meu tipo?
- As violentas. Mostram tendência para ser sentimen tais.
Acho que o sentimento é o seu súbstituto para a com paixão.
Uma espécie de ênfase dos sentimentos genuínos. Li em
qualquer lado que os nazis mais importantes costumavam
chorar quando ouviam Wagner.
- Wagner também me faz chorar. Mas não por ser sen
timental. Dorme.
- Está bem. - Mas após um silêncio: - Mais uma vez lamento
muito se os meus espasmozinhos te arruinaram quaisquer
planos de controlo épico.
- Lamentas por mim? Ou lamentas por ti?
108
- Oh, estás a ficar um bocado embirrante, não estás? Sofres
sempre de agressão pós-coito?
Jonathan ergueu-se sobre um cotovelo.
- Oiça, minha senhora. Não acho que seja nada disso. A
única coisa que sinto neste momento é a fadiga pós-coito.
Agora, boa-noite. - E deitou a cabeça na almofada.
- Boa-noite. - Mas ele sabia, pela tensão que havia no seu
corpo, que Maggie não estava preparada para dormir.
- Sabes do que eu gostava que sofresses? - perguntou ela
após um curto silêncio.
Jonathan não respondeu.
- De camaradagem intercoito, era disso - explicou ela e
desatou a rir.
- Ok. Ganhaste! - Sentou-se e encostou-se à cabeceira da
cama. - Vamos conversar.
Ela meteu-se debaixo dos cobertores.
- Oh, não sei. Acho que estou cansada.
- Estás aqui estás a levar um murro num olho.
- Desculpa, mas és engraçado. Mudas de ideias tão depressa!
De que queres agora falar depois de me fazeres um sono
terrível?
- Vamos falar de ti, à falta de algo mais interessante.
Diz-me lá, como uma rapariga decente como tu, etc...
- Como estou a trabalhar para a Lu?
- Sim. Ambos sabemos como eu estou.
Maggie sabia que aquele escárnio todo não era só para a
meter a ridículo, mas achou que ele tinha direito a sentir-
se um pouco amargurado. Talvez a melhor coisa a fazer fosse
partilhar a metade com ele. Afinal de contas a sua metade
mitigaria a cumplicidade.
- Bom, muitas coisas das que te contei naquela noite sobre
mim eram autênticas. Nasci na Irlanda. Vim para
aqui frequentar a Universidade, depois regressei. Era jovem
e parva e politicamente comprometida - à procura de uma
causa, suponho. Ou talvez aborrecida. Costumava encontrar-
me com o meu irmão e alguns amigos seus no café e falávamos
de uma Irlanda unida. Discursos inflamados. Planos e
conspirações. Sabes o tipo de coisa. Então, um dia, o meu
irmão partiu. Descobri que fora para o Ulster. Sempre
dissera que queria tomar parte activa na questão, mas
109
eu considerava que era um jogo romântico. Ele era um poeta,
sabes? Olhos faiscantes, cabelos despenteados, e todas
essas coisas. Não acho que pudesses gostar dele.
- Morreu?
Ele sentiu a sua afirmativa.
- Sim. Foi encontrado no carro. - A voz dela tornou-se
muito suave. - Mataram-no com um tiro no ouvido. E
eu... eu...
Ele puxou a cabeça dela para junto da sua.
- Não fales disso.
- Não, eu quero falar. Faz-me bem. Durante meses a imagem
dele ao ser baleado naquele carro assombrou-me. Costumava
ter pesadelos. E sabes o que me fazia acordar em choque, a
transpirar e a arquejar?
Ele deu-lhe palmadinhas.
- O barulho! Podes imaginar o terrível barulho daquilo?
Jonathan achou-se impotente e estúpido. Sentia pena dela
mas percebia a inutilidade de lho dizer.
- Quem fez isso? - O UDA? O IRA?
Maggie encolheu os ombros.
- Isso é o que menos interessa, não é? São todos os
mesmos.
- É espantoso que percebas isso. Ainda bem para ti.
- Oh, naquele momento não percebi, é claro. Queria vingar-
me. Mais por mim do que pelo meu irmão, tenho a impressão.
Fui para Belfast e juntei-me a uma célula de activistas.
E...
- E vingaste-te?
- Não sei. Pusemos bombas. Houve gente ferida - pro
vavelmente os que não tinham culpa. Depois recuperei a
consciência, compreendi como todo aquele assunto era
estúpido e decidi voltar a Dublin. E foi aí que fui
apanhada e presa. As coisas acontecem sempre assim.
- Foste condenada?
- Não. Estavam a levar-me duma prisão para outra num
veículo com armas, quando foram expulsos da estrada por
bandidos armados. Todos os soldados foram mortos. Os
bandidos arrastaram-me com eles. Só a mim. Deixaram os
outros prisioneiros.
- Presumo que os bandidos eram gente da Lu.
110
- Sim.
- Há quanto tempo foi isso?
- Há um mês. Trouxeram-me para aqui durante uma semana para
estudar o teu antigo dossier da CII. Depois puseram-me em
casa de MacTaint onde nos encontrámos. E é tudo.
Jonathan deitou-se ao seu lado e ficaram um certo tempo de
olhos abertos na obscuridade.
- Porquê tu, pergunto-me - disse por fim. - Não que esteja
a queixar-me.
Ela inspirou profundamente.
- Não sei. Eu pintava bem, de certa maneira. E quanto a
cooperar a questão não se punha. O que o vigário tinha que
fazer era pegar no telefone e eu voltava para Belfast para
me julgarem. E então teria igualmente de responder pela
morte daqueles soldados.
Os punhos de Jonathan cerraram-se e descerraram-se.
- Esse vigário é uma peça! Nada de confusões de lealdades
em conflito, para ele. Quando quer alguém, aperta-o
devidamente.
- Verdade! Ele apanhou-nos a ambos. E fê-lo com um aperto
de mão caloroso e uma conversa de salão.
- E uma piscadela.
- Oh, sim. E uma piscadela. Acho que é capaz de ter um
tique nervoso, mas é aborrecido. Pega-se, quando se está a
falar com ele. Tem-se essa necessidade de piscar o olho e
não se deve fazê-lo.
Jonathan ficou aliviado ao ver a conversa tomar um tom mais
ligeiro. A última coisa no mundo que desejava era o fardo
dos problemas da rapariga ou, pior ainda, a sua afeição.
Duas pessoas encontram-se no campo neutral da luxúria,
fazem explodir as suas zonas erógenas e depois cada uma se
recolhe em si mesma. Nada partilhado; nada perdido. Mas
aquele tipo de coisas - aquela partilha de ideias e
problemas, aquela conversa tranquila na escuridão comum -
isso podia ser perigoso.
Maggie inclinou-se por cima dele e esmagou o cigarro no
cinzeiro. Depois tornou a premir-se contra Jonathan e
deixou os seus dedos percorrerem ociosamente o estômago
dele.
111
- Para ti é uma espécie de chapéu velho, não é? Eu li
acerca disso no teu dossier, sobre o caso Eiger - a
propósito da rapariga que te empurrou para ele. - Sentiu o
estômago dele endurecer mas continuou com aquele instinto
bem intencionado para o estrangulamento emocional que
caracteriza as mulheres com bom fundo, sombriamente
determinadas a compreender e ajudar. - O nome dela era
Jemima Brown, não era?
Não houve qualquer quebra na voz de Jonathan quando
respondeu.
- Sim.
- Era muito parecida comigo?
- Não. Não muito.
- Oh! - Retirou a mão. - Amava-la?
Jonathan levantou-se e sentou-se na borda da cama. Para lá
da janela o horizonte nocturno mostrava-se ainda manchado
pelo brilho avermelhado do restolho queimado nos campos,
mas esse falso alvorecer não estava assim tão distante do
real porque os pássaros começavam a cantar o seu estranho
trilo, enquanto esperavam.
Maggie sentou-se e bateu na cama ao lado dela.
- Farei um negócio contigo - prometeu com o seu cómico
sotaque. - Deita aqui o teu corpo esplêndido e não te
chatearei com os meus inquéritos acerca da tua vida
emocional. O que não quer dizer que não faça algumas
exigências, algumas, não sei se entendes.
Ele voltou a deitar-se de costas, sentindo que Maggie fora
infantilmente tocante. Ela estendeu-se a seu lado e
encostou a testa à dele. Jonathan fitou os seus olhos
maliciosos - só um e enorme àquela distância.
- Tens uma maneira especial de levar as pessoas à certa,
não tens? - indagou ele.
- Instinto de sobrevivência emocional. Entendes que não
passámos de porcos sexuais no pouco tempo que estivemos
juntos?
- É uma vergonha.
- Isso não é justo. Um prodígio físico, diria eu.
- Acho que é apenas decente confessar-te que sou um homem
idoso. Posso não estar apto para ser levado à certa.
112
- Cavalheiro, detesto o double entende*
O pequeno-almoço, a única refeição que os Ingleses sabem
cozinhar em condições, foi interrompido pelo sargento
entrando de rompante na sala de jantar, a face luzente e
porejada de suor.
- Onde diabo estiveram vocês? - gritou para Jonathan, que
terminava a última chávena de chá com Yank e Maggie a um
canto da mesa, um pouco fora dos planos. - Tenho andado a
tremer o cu à roda destes malvados montes!
Jonathan pousou o guardanapo e observou o campo pela
janela, onde o milho curto adquiria um tom pastel sob o céu
baixo e cinzento.
O sargento encaminhou-se para a mesa deles, em três largas
passadas, e a sua enorme massa inclinou-se para Jonathan.
- Mais chá? - inquiriu Jonathan a Maggie.
- Não, obrigada.
- Estou a falar-lhe, homem! - O sargento deixou cair a sua
pesada mão no ombro de Jonathan. Este olhou para baixo,
para os espessos dedos, como se tivessem caído do rabo de
um pássaro, e depois fitou Yank com os sobrolhos erguidos.
Yank interveio com nervosismo.
- Vamos! Não é preciso chateares-te. Ele tem estado aqui
sentado a tomar o pequeno-almoço connosco. Calma, homem!
- Quando entrei no quarto dele esta manhã a maldita cama
estava feita. Parecia que se tinha pirado. Os rapazes e eu
temos andado a correr tudo atrás dele.
- Devia ter ficado cheio de apetite - comentou suavemente
Jonathan. - E é óbvio que precisava de exercício.
- Estou com mais estaleca do que você teve alguma vez, pá!
- Nesse caso não necessita do meu apoio para se manter de
pé. - E Jonathan olhou suavemente para a mão, que foi
retirada do seu ombro com um remesso.
" Em francês no texto. Uma frase com dois sentidos. (N. da
T).
113
- Vamos esquecer isto - recomendou Yank ao sargento. -
Afinal de contas, o Guv deixou o doutor Hénlock andar à
solta.
- Sabes que ele não o quer... aqui. - O sargento fez menção
com a cabeça em direcção ao caminho da "Estação de
Alimentação". - E, de qualquer forma, ninguém me disse nada
dessa história dele andar à solta.
- Estou a dizer-te agora - pronunciou Yank distintamente,
tornando claro para Jonathan qual a cadeia de comando a
partir do vigário. - Agora, sê bom rapaz e senta-te para
tomares o pequeno-almoço.
O sargento carranqueou na direcção de Jonathan, depois
partiu a praguejar.
Yank dobrou-se e confidenciou a Jonathan:
- Se fosse a si, não me ralaria. Não é mau tipo, mas tem um
feitio péssimo e é um mestre na luta corpo-a-corpo.
- Estou mais do que avisado.
- Mesmo assim. Só por curiosidade, onde passou a noite?
Maggie sorriu para o prato.
Jonathan respondeu descuidadamente, arrastando a frase para
apanhar Yank com o garfo cheio de ovos a meio caminho da
boca.
- Na "Estação de Alimentação".
O garfo deteve-se e retornou ao prato ainda a abarrotar. A
cor fugira da cara de Yank.
- É um bom negócio, menos divertido do que julga, doutor
Hemlock.
Jonathan divertiu-se ao notar que todos os vestigios de
sotaque americano haviam desaparecido da voz do outro ao
enervar-se, tal como as pessoas multilingues voltam sempre
à sua língua materna quando juram, cantam ou rezam.
Incapaz de comer, Yank pediu desculpa e saiu.
- Isso foi cruel - comentou Maggie.
- Uh-uhh!... O que sabes acerca da "Estação de Alimentação"?
- Nada. É ali no topo da vereda. Guardas, cães e tudo. Às
vezes os guardas vêm aqui ao bar almoçar, mas nunca falam
acerca do caso.
- Podes descobri-lo?
114
- Posso tentar!
- Fá-lo.
O tempo tornara-se húmido e ventoso quando permitiram a
Jonathan ir ao vicariato só com Yank como guarda. Este
manteve uma conversa banal, relativamente recúperado da sua
crise de desconfiança depois de Jonathan aludir à " Estação
de Alimentação". Quando alcançaram o portão, Yank reuniu-se
a mais dois indivíduos jovens vestidos com fatos
campaniformes escuros e grandes gravatas berrantes, o que
era quase o uniforme da Lu. Jonathan não podia deixar de
notar como pareciam mesmo arrancados ao East End.
Foi encontrar o vigário no seu jardim, vestido com um
resistente casaco de caça e calções de sarja, metidos
dentro de grossas peúgas. Os sapatos eram pesados e
rústicos, com a ponta em forma de barco. O fato contrastava
agudamente com as roupas citadinas de Jonathan, feitas por
medida, e com o seu calçado dispendioso e ligeiro. O
vigário parecia não estar cônscio da presença de Jonathan,
visto que murmurava iradamente para si mesmo enquanto
escarvava comida para a carpa que vivia no tanque. Então
olhou para cima.
- Ah, doutor Hemlock! Prazer em vê-lo.
- Parece nervoso.
- O quê? Oh, bem, estou só um pouco. Não há nada a fazer
neste assunto. É esse danado Boggs. Toma alguma coisa?
Café, talvez, ou chá?
- Obrigado, mas não.
- Óptimo. Esperava que pudéssémos passear um pouco através
do campo, enquanto conversamos. Não há lugar tão privado
como o campo aberto. Há insectos nos buracos mas não
"besouros", se é que me entende.
Jonathan olhou para o céu ameaçador e tempestuoso.
- O tempo não vai causar problemas - assegurou-lhe o
vigário. - O boletim só prevê aguaceiros ocasionais. E
piscou o olho.
Jonathan, encolhendo os ombros, seguiu-o até ao extremo do
jardim, onde a vereda se transformava num mero caminho para
percorrer a pé através dum matagal emaranhado.
115
- Como ficou esse Boggs "danado"? - perguntou às costas da
figura que caminhava à sua frente.
- Perdão? Oh, está bem. Boggs é o dono da terra que confina
com a igreja. Um fazendeiro, sabe? Passa a vida a deitar
abaixo as sebes. Sabe que em Inglaterra se destróiem mais
de vinte e sete mil e quinhentos quilómetros de sebes por
ano?
- É pena que ele não apanhe esta - disse Jonathan depois de
ter tropeçado numa raiz.
- O quê?
- Vinte e sete mil quilómetros de casas para criaturas
minúsculas e de ninhos para pássaros caem anualmente! E
algumas dessas sebes foram plantadas nos tempos dos Saxões!
Mas os fazendeiros dizem que elas atrapalham a maquinaria
moderna. Estão a sacrificar uma herança de séculos por
poucas libras de lucro. Não há sentido de responsabilidade
em relação à natureza. Nenhum respeito pela História! Oh!
Desculpe! Esse ramo bateu-lhe quando o larguei? E o que
pensa que Boggs anda agora a fazer?
Jonathan não estava nada preocupado.
- Vendeu o terreno a seguir à igreja aos especuladores da
construção civil. Pense só nisso! Dentro de um ano poderão
existir lares para reformados pegados ao adro. Caixotes da
grossura de conchas com nomes como "Fim da Linha" e
"Estalagem do Passeio da Colina"!
- Isso realmente incomoda-o? Ou é um espectaculozinho para
eu apreciar?
O vigário parou e deu meia volta.
- Doutor Hemlock, a igreja é a minha vida. E dedico um
interesse especial em preservar os monumentos vivos da sua
arquitectura. Cada tostão que vem da minha ocupação com o
Governo tem esse objectivo. - E piscou o olho.
- E é isso que justifica as coisas feias que executa a sua
organização?
- Podia ser. Se o patriotismo exige justificação.
- Bem vejo. Você descreve-se a si mesmo como uma espécie de
prostituta a favor de Cristo. Presumivelmente a sua
Universidade foi a Madalena.
A expressão do vigário crispou-se, o rosto pareceu achatar-
se e falou em tom enervado.
116
- Parece-me que será melhor que a nossa comunicação se
resuma ao problema que temos pela frente.
Voltou-se e continuou o passeio, empurrando-o por entre a
folhagem até um campo de restolho.
- Vamos a isso.
- Torna-se desnecessário dizer que tudo o que apreender no
decurso do seu trabalho connosco será absolutamente
confidencial. O meu jovem assistente - o homem que você
conhece como Yank - disse-lhe por alto quais as funções da
organização Lu. Bastante similar à Divisão de Pesquisa e
Multas da vossa CII, a Lu é destinada à tarefa sem preço de
fornecer protecção aos agentes MI-5 e MI-6 por meio de
técnicas de contra-assassínio. Para o bem e para o mal, a
nossa posição - mais secreta que um segredo e mais
eficiente que a eficiência - traz até mim situações
extraordinárias. O caso que tenho entre mãos é um deles.
Não é essencialmente aquilo que a sua gente chama uma
"multa". Não existe nenhum objectivo específico de matar
determinada pessoa. Para me explicar melhor: o assunto não
requer infalivelmente o assassínio. Mas as probabilidades
são de que você seja levado a esse extremo num esforço para
se manter vivo. Oh, meu Deus! Eu devia tê-lo avisado acerca
deste caso demoníaco. Tome, dê-me a sua mão. Assim! Ah,
você parece que perdeu o sapatinho! Não interessa, eu
explico-lhe as coisas! Ah! Está como novo, vê!
O vigário apressou-se, inspirando fundamente a brisa
refrescante que trazia consigo agulhas de chuva.
- Acho que será mais claro se lhe apresentar a situação em
termos de moral, já que as modernas correntes de depravação
jazem no âmago do problema. Abuso da liberdade sexual, para
ser específico. A nova moralidade - que não é a verdadeira
moralidade nem particularmente nova, como uma consulta
casual às vidas sociais dos imperadores Cláudios poderá
esclarecer - infectou todos os estratos da sociedade -
desde as universidades às minas de carvãotornando-se uma
espécie de voragem, e então com a democratização das
escolas!... Talvez seja muito natural que uma geração que
passou a maior parte da sua vida sob a ameaça da
aniquilação atómica, que viu baqueár os tradicionais
baluartes da família e da classe sob as pressões do
igualitarismo
117
e liberalismo forçados até às raízes, que experimentou o
declínio da literatura e artes formais e a omnipresença da
televisão, da arte pop, dos conjuntosfolk, das novelas
choramingas, dos happenings, e de tudo o resto - tudo
apelando para fins nervosos mais do que mentais, e para a
reacção imediata mais do que para a contemplação tranquila
- talvez seja muito natural que tal geração busque o
narcótico sexual! Embora como homem da Igreja não possa
condenar tais actividades, como individuo humanitário posso
garantir a existência de estímulos destinados a desviar as
mentes das pessoas dos alvos da carne e do orgasmo. Quem me
dera ter um frasco de chá connosco! Isso ia aquecê-lo.
Vamos, apressemo-nos e façamos circular o sangue.
Isto é suficiente para dizer que uma fuga geral para o
excesso sexual se tornou um facto da vida em todos os
círculos, excepto na classe trabalhadora, que foi protegida
do contágio devido à sua falta de imaginação. E parece que
a sexualidade antinatural é um vício deformante. Uma vez
habituado a ele o indivíduo que o procura desenvolve uma
tolerância para as actividades mais vulgares e descobre que
estas já não servem para descontrair e libertar a mente. Os
nervos parecem criar calos. E então o sibarita está mais
inclinado a actividades pouco convencionais...
- Já percebi.
- Pensei que perceberia. De há uns anos a esta parte esse
fogo dos sentidos, se me é permitida a metáfora, espalhou-
se entre membros do Governo e do serviço civil. Primeiro,
limitou-se à prática relativamente segura e incolor de
trocar esposas nos fins-de-semana. Mas, a seu tempo, o fogo
exigiu combustíveis mais ocultos. E, como era de esperar,
certas organizações alargaram-se para suprir essas
exigências. A maioria delas eram pequenas operações que
ofereciam simples variedades do número, raças e posturas
com a vantagem duvidosa de a pessoa se tornar célebre
graças aos esforços dos fotógrafos dos jornais que tudo
espiam. Outras organizações colocadas mais alto na escala
eram lugares que ofereciam variantes mais populares no
continente - especialmente em França, é claro. Raparigas
vestidas de freiras, outras com capacetes, esse tipo de
coisas. Olhe ali!
118
Vê-as? Duas lebres a pularem através daquele pedaço de
prado. A lebre outonal! Memórias da juventude, não?
Jonathan levantou a gola do casaco e olhou em frente,
miseravelmente.
- No cume dessa pirâmide de vício - oh, meu Deus, eu devia
ter nascido nos tempos vitorianos! - no cimo, existe uma
operação pequena e terrivelmente cara que oferece à
clientela da elite o que devia ser descrito como a máxima
sexual. Não o aborrecerei com os pormenores desses
acontecimentos. Basta dizer que a organização está
igualmente envolvida na importação de paquistaneses-
imigrantes ilegais que não conseguem arranjar meios de
sobrevivência a não ser quando impelidos a extremos. Essa
organização utiliza em especial crianças paquistanesas de
ambos os sexos, entre os nove e os quinze anos. E devo
confessar que não só os homens do Governo frequentam o tal
estabelecimento, mas igualmente as esposas e filhas. E toda
esta torpeza é acompanhada com excelentes vinhos e lagosta
durante a sessão.
- Presumo que a clientela não está limitada a empregados e
a homens de negócios.
- Infelizmente, não. Devo admitir que entre a clientela há
certas Pessoas Altamente Colocadas. - E piscou o olho.
- As roupas da cama têm a marca "fornecedor"...: O vigário
fez-se rubro de fúria.
- Certamente que não, senhor!
Jonathan levantou a mão num gesto apaziguador.
- Só queria saber com que associação vou estar metido.
- Certo. - O vigário não abrandara. Voltou-se e continuou a
marchar, entrando numa espessa floresta, a fúria alargando-
lhe as passadas e impelindo-o através do emaranhado. Quando
a raiva se esgotou, prosseguiu. - Durante um ano ou dois
essa actividade continuou. Um negócio deplorável, mas não
que pusesse em perigo a segurança da nação, tanto quanto
sabíamos. Mas então aconteceu uma certa coisa que exigiu
que se avaliasse a situação d'"Os Claustros", porque esse é
o nome irónico do sítio onde esses excessos têm lugar.
- É algures na província?
- Não. Em Londres. Na realidade, em Hampstead. Olhe
119
só! Um rododendro! Como você, é um visitante da nossa zona.
- O que aconteceu n'"Os Claustros"? Chantagem?
- Não. De facto, não foi. E essa é a parte incómoda da
questão. Mas já lá chegarei dentro de momentos.
Uma tarde, justamente após o chá, lembro-me perfeitamente,
recebi um telefonema confuso do parceiro que se me opõe na
MI-5. Tinha consigo um relato, cujo conteúdo havia levado à
actividade daquele ramo letárgico dos serviços. Como era de
calcular, eles não sabiam o que fazer das informações, mas
tiveram o bom senso de as trazer até mim. Tinham caçado um
homem, um funcionário público cuja posição no Ministério da
Defesa era média, e este revelara ousadamente um grande
número de coisas espantosas. Subindo um pouco do escalão
participara nas actividades oferecidas n'"Os Claustros".
Não sei se foi por o dinheiro se ter ido, ou se a
consciência prevaleceu mas depois de um certo tempo as suas
visitas rarearam. Então uma tarde foi visitado por um
organizador que, com todas as armadilhas do civismo, lhe
pediria que fosse mais tarde a "Os Claustros". O pobre
coitado não se atreveu a recusar. Quando chegou foi levado
para um salão privado e contemplado com uma sessão
particular de filmagens secretas.
- E ficou surpreendido quando viu que era a estrela do
filme!
- A sua antecipação está certa. Meu Deus! Eu bem sabia!
Disse uma dúzia de vezes ao Boggs que esta escada estava
carcomida e precisava de ser reparada. Já sabia que ele não
ligaria justamente quando alguém estava escarranchado na
sebe. Você não vai, por acaso?
- Não, estou óptimo.
- Posso dar-lhe a mão para descer?
- Eu faço-o!
- Tem a certeza de que está bem? Está a andar duma maneira
um pouco estranha.
Jonathan esmagou raivosamente o espesso cascalho da vereda.
- O mais estranho - continuou o vigário - é que não houve
ameaça de chantagem. Na realidade, nem sequer se pressionou
o funcionário para continuar a frequentar "Os
120
Claustros". Mas para ele tornara-se evidente que qualquer
menção às actividades deles resultariam na publicação
imediata do filme. Comu deve supor, ele estava aflito antes
de
contar mas disseram-lhe que não se encontrava sozinho
naquela detestável posição. Eles possuíam, como é óbvio,
um grande número de filmes implicando um amplo conjunto
de personalidades governamentais.
- Porque presume que estão a juntar essas provas se não
há chantagem?
- Não sabemos. Mas na verdade não interessa duma
forma muito substancial. Só a existência dessa informação
constitui uma bomba de relógio plantada no assento do
Governo. É uma espécie de metáfora maladroite que costumava
fazer-nos rir na escola, e não temos qualquer ideia
de quando acontecerá ou de quem será ferido na explosão.
Uma coisa é certa: uma revelação deste calibre pode
prejudicar sem reparação o Governo de Sua Majestade.
Durante uns momentos o vigário pareceu perdido na
contemplação melancólica dum facto tão horrífico.
Caminhavam para uma álea que fora pulverizada por cascos de
cavalos numa tira de lama pegajosa.
Para continuar com o assunto Jonathan perguntou:
- Porque foi esse homem à MI-5com informações que
certamente poriam fim à sua carreira?
- Não sei, claro. Vergonha pode conjecturar-se. Ou um
sentimento patriótico. Como disse, era um funcionário de
nível médio no serviço público. Meros empregados são por
vezes afectados pelo patriotismo e os chefes imunes à
vergonha. Contudo, toda a questão é académica, e o nosso
primeiro movimento foi assegurarmo-nos do silêncio do
indivíduo. Pressões íntimas levaram-no a divulgar-nos o
segredo. Quem poderia dizer-nos qual a sua atitude
seguinte? Os jornais populares? A todo o custo tínhamos que
segregar o escândalo das vistas do público. E isso, você
deve
saber melhor até, continua a ser a nossa preocupação
primária.
- Portanto, "multaram-no".
O vigário não respondeu de imediato.
- Não exactamente - pronunciou numa voz distante.
A verdade alcançou Jonathan.
121
- Oh, já percebi. É encantador. O pobre bastardo na minha
casa de banho, que não conseguiu puxar as calças para baixo.
- Só isso. E devo dizer-lhe o quanto lamentamos o malogro
do caso. Não havia qualquer intenção no sentido de o
sobrecarregar com as últimas palavras do pobre tipo, já
para não falar no problema olfactivo da bala mal inserida.
Posso assegurar-lhe que o homem responsável foi
repreendido. - E piscou o olho.
- Tenho a impressão de que será ainda mais penalizado.
- Oh! Então sabe quem ele é? - A voz do vigário estava
plena de admiração genuína. - Você tem indubitavelmente um
faro especial para obter informações depressa. Sinto-me
perfeitamente justificado por o ter escolhido para uma
missão tão delicada.
- Que é?
O vigário recusou-se a abandonar a sua progressão
sequencial através dos acontecimentos.
- Logo que recebemos a tal informação iniciámos as nossas
investigações. Um dos meus melhores agentes foi destacado
para a missão - um homem que devido à sua inclinação para
os Gregos em matéria sexual podia conseguir uma introdução
subtil em "Os Claustros". O nome desse homem era Parnell-
Greene.
- O túmulo fresco que vi ontem à tarde?
- Receio que sim. Mas antes de se envolver com eles,
conseguiu passar-nos alguns fragmentos valiosos de
informação: Sabemos, por exemplo, qual a identidade do
homem que manda dentro de "Os Claustros". Para nós o nome
mais corrente é Maximilian Strange. Alemão por nascimento.
Nascido, como Max Wérde, em Outubro de mil novecentos e
vinte e dois, na cidade de Munique. A família Werde
manteve-se no negócio da venda de carnes ao longo de três
gerações. Espeluncas giras de vício divertido para as
classes mais altas, pelo menos para os ricos. O jovem Max
parece ter pegado nas tradições familiares com rara
energia, porque em mil novecentos e quarenta e três, com a
tenra idade de vinte e dois anos, resolvia os problemas do
apetite sexual germânico, bastante vigoroso, dos oficiais
mais graduados. Em Berlim, e, pelo menos, em duas
122
cidades provinciais, dirigiu estabelecimentos de prazer
sumptuosos recheados de raparigas e rapazes que tirava dos
campos de concentração. A actividade era irregular. Na
verdade, havia só uma casinha nos arrabaldes de Berlim que
se designava por "Vivissecção" porque...
- Já percebi.
- Ainda bem. É doloroso explicar.
- Você é um homem com uma sensibilidade delicada " comentou
Jonathan.
- A ironia, para ser eficaz, deve cauterizar ligeiramente
a frase. Não marcar cada palavra. Mas não estamos aqui
para estudar retórica. Quando a seguir os nossos
pesquisadores encontraram a pista de Werde, ou Strange, como
agora o próprio se designa, a guerra acabara e ele estava a
fornecer divertimentos "romanos" em sítios como Marrocos,
Antibes, Samos - todos os antros que atraem aquilo a
que se chama o "jet set". Esses divertimentos envolvem
jovens pintados com ouro, participantes da audiência
untados com banha e actividades entre animais e pessoas - o
bicho favorito, por qualquer razão obscura, é o camelo. E
piscou o olho.
- Foi nessa altura que conseguimos a nossa primeira
narração do homem. Não há fotografias. Foi descrito como
um indivíduo simpático, na casa dos trinta. Isto é
aborrecido
porque, como pode compreender, agora ele estará com mais
dequarenta anos. Descobrimos também que tem um interesse
pouco vulgar pela saúde, dieta, exercício e a manutenção
geral
da sua aparência juvenil pouco comum. Os seus predicados
linguísticos incluem o domínio do inglês e do francês,
juntamente com o árabe, como é evidente em qualquer homem
que
faça negócios dentro deste teor. Não há muito mais a
concluir
por meio desta descrição, receio bem.
- Não muito.
- Mais uma vez, Mr. Strange desapareceu da vista. E há
dois anos "Os Claustros" abriram em Londres, com Maximilian
ao leme deste brulote. Aí o tem, doutor Hemlock. O
seu adversário. Certamente um opositor que vale a pena.
- A sua validade não me interessa. Acho que ele se
assemelha mais a um louco. E eu não sou nem um desportista
nem um caçador.
123
- Sim, calculo que deve haver uma diferença subtil entre um
caçador e um assassino.
Jonathan deixou passar.
- Sabendo o que sabe de Strange com certeza poderia pôr um
ponto final na operação. Presumo que esteja ilegalmente no
país.
- Tentei fazer-lhe entender o desastre que resultaria da
mais ligeira revelação desses filmes ou das actividades por
eles registadas. Nem a polícia nem qualquer outro
departamento legal pode ser lançado neste caso. A nossa
políciatal como a vossa - não se distingue nem pela
competência nem pela discrição. E pode calcular porque não
comprámos esses filmes, os resgatámos, já que falamos
disso. Bem, a Lu, com franqueza, não tem esse género de
dinheiro nos seus cofres, e nós temos que obter os filmes
sem alertar pessoas que estão no Governo e não devem ser
envolvidas neste assunto tão delicado - que é um dos
motivos porque a MI-5 nos contratou para actuar em vez
deles. Claro que poderíamos mandar alguns dos nossos
operadores da Lu fazer uma visita a "Os Claustros" sem
deixarem nenhum ser vivente atrás deles. Mas o que
aconteceria se não localizassem os filmes? O que sucederia
se Maximilian Strange se tivesse protegido deixando os
filmes nas mãos de alguém que os publicasse no momento a
seguir, se alguma coisa lhe acontecesse? Não. Não. Isto tem
que ser feito com subtileza. E duma vez por todas. E foi
por isso que você veio para cá.
- Porquê eu?
- O finado Parnell-Greene conseguiu passár-nos uma ponta de
informação antes da cobertura dele falhar e fazer aquela
infeliz visita a St. Martin-in-the-Fields. Ouviu o seu nome
mencionado por Mr. Strange.
- O meu nome? - Jonathan meteu os pés num fosso e tropeçou
numa rampa enlameada. - Com certeza não está a pensar que
eu estou metido n'"Os Claustros"?
- Com certeza que não. - O vigário forçou-se a andar contra
o vento e apressou-se, gritando sobre o ombro: - Se
pensássemos nisso por um só instante tê-lo-íamos distraído
com outro dos nossos recursos.
- A "Estação de Alimentação"? - O vento arremessava as
palavras da boca de Jonathan até ao vigário, que parou
124
estupefacto com o que o outro sabia da operação. Mas, uma
vez mais, ficou satisfeito com essa capacidade para obter
informações com rapidez.
Acenou com a cabeça e olhou-o.
- Verificámos atentamente a sua pessoa incluindo contactos
com os nossos colegas de Moscovo, Paris e Washington.
Depois de termos a certeza de que "Os Claustros" não eram
uma frente para o seu Mr. Dragon e a CII se meter nos
nossos assuntos, como organização agressiva que é, achámos
que era um raro golpe de sorte estar um profissional
treinado como você, de certa forma, envolvido nisto. Oh!
Meu Deus! Lamento tanto! Mas realmente tem de ser mais
cuidadoso quando pisar uma pastagem de gado bovino. Nesse
aspecto é como as ruas de Paris. Posso ajudá-lo? - E
piscava incontrolavelmente o olho.
- Não.
- Oh, meu Deus! Que pena!
- Esqueça isso. De qualquer forma já não gostava lá muito
deste casaco.
- Na verdade parece estranho, se me é permitido dizê-lo,
que um homem que foi outrora um alpinista de primeira possa
achar um passeio pelo campo tão cheio de dificuldades.
- As águias não costumam ser sócias da Sociedade Audubon*.
- Perdão?
Jonathan ficara zangado consigo mesmo por permitir que o
civismo monótono do vigário desgastasse a sua frieza.
- Ouça! Em pormenor, como fiquei eu implicado em tudo isto?
- Não sei a parte mais obscura. Só sabemos o que Parnell-
Greene foi capaz de nos passar antes de morrer. Há duas
vias que o ligam a "Os Claustros". Sabemos que
Audubon Soeiety faz parte dum grupo americano organizado
com vista à conservação da vida selvagem e dos recursos
naturais. John James Audubon (1780-1851), nascido no Haiti,
foi ornitogolista, naturalista e pintor - célebre pelas
suas pinturas de pássaros americanos. Autor de Aves da
América e Quadrúpedes da América. (N. do T. ).
125
Maximilian Strange está muito interessado em si, na
realidade.
- Mas...
- Não sabemos porquê. De facto até esperávamos que fosse
capaz de nos dizer. Por acaso não negociou com ele uma vez
ou outra?
- Não tenho a menor ideia!
- É pena. Podia ser um ponto de partida. A outra via que o
liga a "Os Claustros" é mais directa. Aquilo a que pode
chamar-se uma amizade íntima. Por duas vezes Parnell-Greene
incluiu Miss Vanessa Dyke nas in formações.
Aquilo fez parar Jonathan.
- Pode ter sido uma coincidência total - continuou o
vigário - mas constitui um elo entre si e Mr. Strange. Para
todos os efeitos parece que o seu melhor caminho para "Os
Claustros" é através de Miss Dyke. Permita-me que lhe
segure este arame farpado. Bem sei que não gosta
particularmente desse casaco. Vamos tomar o caminho màis
curto pelo meio do campo. Sim, doutor Hemlock, não posso
expressar-lhe adequadamente o meu desgosto por o ter metido
neste assunto. Primeiro não havia a menor informação, sabe?
Mesmo até depois de Parnell-Greene ter mencionado uma vez
que a gente d'"Os Claustros" estava interessada em si. Ele
estava a fazer um trabalho admirável ao penetrar na
organização deles e você para nós não tinha uma utilidade
imediata, embora tomássemos a precaução de plantar a nossa
Miss Coyne junto do seu amigo do coração, MacTaint. Só no
caso de ser preciso.
- E quando eles deram cabo de Parnell-Greene você decidiu
pôr-me no lugar dele.
- Precisamente. A maneira como trataram o pobre Parnell-
Greene dar-lhe-á uma ideia do tipo de indivíduos que estão
contra si. Ele foi empalado numa estaca de madeira no
campanário de St. Martin-in-the-Fields.
- Barroco.
- Sim, barroco. Mas, simultaneamente muito moderno. Uma
ligeira advertência que qualquer homem de relações públicas
aprovaria. Quando se considera o perigo extra envolvido em
levar a cabo um assassínio tão espectacular
126
começa-se a perceber que eles fizeram mais do que remover
um risco potencial. Noticiaram publicamente, para quem
quisesse tentar meter-se nos seus assuntos, que eram tão
eficientes como tremendamente criativos.
- Criativos?
- Exactamente. E com um diabólico sentido de ironia. Eu já
aludi ao desvio sexual de Parnell-Greene. Era um pederasta;
especificamente o seu gosto inclinava-se para o papel
passivo. Portanto, há um certo faro mórbido envolvido na
escolha de empalamento anal como método executório, não
acha, doutor Hemlock?
Jonathan marchou num silêncio pesado ao longo de alguns
minutos, findos os quais, atravessando uma sebe de
espinheiros, se encontraram mais uma vez no jardim do
vigário.
- Você precisa de um pouco de chá quente e forte para
expulsar o frio. Vamos para o meu gabinete de trabalho que
eu mando-o para lá.
A chuva varria o vicariato com iniludível vigor. Depois da
bandeja do chá ter sido trazida por um dos jovens de fato
campaniforme e gravata berrante, Jonathan disse:
- Porque não me diz exactamente o que quer que eu faça?
- Deve ser óbvio, não? Queremos os filmes. E queremo-los
depressa, antes de eles conseguirem fazer o que pretendem.
- E piscou duas vezes o olho.
- E quanto a esse Maximilian Strange e ao pessoal dele?
- Parto do princípio que o seu número diminuirá, visto que
terão o infortúnio de se colocar entre você e os filmes.
- E isso será o fim d'"Os Claustros"?
O vigário franziu os lábios.
- De facto, não. Depois de pensar muito decidi que fechar
"Os Claustros" não teria o menor efeito nos apetites que os
mantêm em funcionamento. Procurariam simplesmente outro
lugar. Portanto, quando tudo acabar, "Os Claustros"
continuarão os seus serviços. Mas com uma nova gerência.
- Tornar-se-ão numa operação Lu?
- Acho que seria a melhor solução, não? A posse dos filmes,
juntamente com os acontecimentos que se passarão no
estabelecimento, trar-nos-ão um controlo eficiente numa
127
organização onde residem os maiores interesses da nação, ao
mesmo tempo que teremos as bases e a educação para saber
quais são esses interesses mais elevados. Mais chá?
- Isso tornaria a Lu totalmente autónoma, ou não?
- Acho que sim. - Os olhos do vigário esbugalharam-se com
uma franqueza ingénua. - Acredito que será assim. Tal como
as informações que a vossa CII reuniu com respeito às
irregularidades fiscais e sexuais dos vossos líderes
políticos há muito a tornaram independente. Mas posso
garantir- lhe que nós nunca usaremos a nossa autonomia para
invadir erradamente ilhas vizinhas ou para cobrir
tentativas malignas de espionagem nos quartéis-generais
políticos. Apesar de que... - os olhos suavizaram-se- lhe
como se entrevisse o futuro -... esse poder dar-nos-á a
hipótese de pôr um ponto final no Problema Irlandês.
- Você compreenderá se eu achar que existe uma diferença
realmente insignificante entre a Lu e "Os Claustros".
- Ah, mas tanto quanto sei, isso não fará grande diferença.
Nós podemos metê-lo na prisão por assassínio durante trinta
anos.
- Eles podem matar-me.
O vigário encolheu os ombros.
- Bem, se isso acontecer... mas, realmente!... A nossa
conversazinha tomou um tom desnecessariamente sombrio.
- E piscou o olho.
- Ok. Para as coisas terem pés e cabeça, que espécie de
apoio posso esperar para conseguir caçar os filmes?
- Da polícia, nenhum. Não podemos correr o menor risco
deste assunto vir a público. A Lu continuará as suas
pesquisas e você será avisado do que soubermos para além
disto através de Yank, que será o seu contacto connosco.
Estamos a prosseguir com outra linha de penetração n'"Os
Claustros", em parte para o apoiar, em parte como uma
segunda linha defensiva, se alguma coisa lhe acontecer. Não
fique surpreendido se encontrar Miss Coyne dentro das
paredes desse maldito estabelecimento. Quanto ao resto,
deixe-o connosco. Terá, é claro, as minhas preces mais
válidas para o auxiliarem. E você jamais deveria subestimar
o poder da prece, doutor Hemlock.
A chuva matraqueava as janelas do gabinete de trabalho,
128
pequeno e aconchegado, com o seu fogo de lenha soltando
flamas azuladas que lambiam o guarda-fogo de ferro. A água
da chuva deixara de pingar do cabelo de Jonathan para
dentro do colarinho, e a sala estava a ficar atabafada e
fumarenta com a secagem das suas roupas. Jonathan aclarou a
garganta.
- Ouça! Quero que deixe Miss Coyne fora disto. Já fez o que
tinha a fazer metendo-me nesta coisa.
- Oh?: Estarei a ouvir o som da afeição? Talvez um romance?
Que tocante!...
- Não se preocupe com essa trampa. Deixe-a só de fora.
- Mas, meu caro, como poderia ela ficar de fora? Não tenho
dúvidas de que lhe contou a sua comovente história. Se não
fôssemos nós estaria neste momento sentada numa prisão de
Belfast. Se lhe faltasse a nossa protecção constante
poderia ser apanhada nas ruas a qualquer momento. Para onde
iria ela? Tenciona tomar essa responsabilidade?
- E piscou o olho.
- Não. Não tenciono.
- Bem, então aí tem. De facto, ela veio ter connosco esta
manhã e pediu que lhe fosse permitido ajudá-lo a si. Talvez
se sinta um pouco culpada, não? Posso oferecer-lhe um
destes biscoitos? São digestivos, recomendo- lhos
especialmente.
Jonathan arrepiou-se e espremeu o casaco à sua volta.
- Teria sido melhor eu voltar para a estalagem.
- Espero que se não tenha constipado. São coisas
aborrecidas nesta altura do ano. - Ergueu-se e acompanhou
Jonathan à porta. - Pode tratar dos pormenores com Yank,
que foi instruído para o assistir em todos os aspectos.
Esta tarde receberá um pequeno treino do sargento.
- Treino? Do sargento?
- Sim. Você agora está com a Lu. Ganhando o dinheiro da
rainha. E existem certos regulamentos com os quais terá de
se conformar. A avaliar pelos seus registos na CII parece
que tem um pouco de treino convencional em combates corpo-
a-corpo. E o sargento - um perito nestas matérias
- ofereceu-se para o desenferrujar. Na realidade, agarrou a
oportunidade pelos cabelos.
- Apostá-lo-ia.
129
- Não terei hipótese alguma de o ver novamente antes de
partir, portanto, deixe-me dar-lhe um conselho: seja
cuidadoso ao tratar com Maximilian Strange. É um homem
inteligente. E use duma cautela especial com o indivíduo a
quem chamam o "Mudo".
- Quem é esse tipo?
- Trabalha para Strange e leva a cabo algumas punições
físicas quando o patrão acha necessário. Estamos
convencidos de que foi ele que tratou de Parnell-Greene. É
claro que faz essas coisas por prazer. Portanto, tenha
cautela; é um tipo competente.
- Que diabo te aconteceu? - A surpresa de Maggie
transformou-se em riso, que deteve logo que os olhos de
Jonathan lhe deram a entender que não tencionava fazer
espírito acerca da situação. - Deixa os sapatos lá fora.
Pedirei a um dos rapazes que os limpe. - Os cantos da boca
encurvaram-se-lhe. - Isto é, se ele os conseguir encontrar.
Jonathan parou a meio do acto de tentar tirar dos sapatos
massas enormes de lama e erva. Respirou profundamente para
se controlar, depois continuou. Os dedos escorregaram-lhe e
acabou por ficar com as mãos cheias de lama. Maggie não
riu. Decidiu:
- Anda comigo. Vou arranjar-te um óptimo banho quente.
Ele rosnou.
Com os olhos fechados, deixando cair os braços, mergulhou
na enorme banheira antiga, só com o nariz e a boca acima da
água vaporífera. Mas levou algum tempo até o calor penetrar
na sua carne gelada. Maggie debruçava-se na borda da
banheira, assistindo-o com uma mistura de ma ternalismo e
de riso no seu rosto gaiato.
- O que deverei fazer a estas calças? - perguntou,
segurando-as a todo o comprimento do braço, entre o polegar
e o indicador, antes de as deixar cair no chão.
Ele ouvia o som reverberante da sua fala difundido pela
água mas não podia entender as palavras.
- O quê? - perguntou, já com as orelhas acima da superfície.
130
- Só estava a perguntar... oh, não interessa!
- Pareces levar a minha situação muito ligeiramente.
- Não, não é nada disso.
- As pessoas morrem quando expostas; sabes bem.
- Vou dar-te uma toalha.
- Exposição às intempéries. Ainda achas que é divertido?
Ela abanou a cabeça.
- Por que te voltaste de costas? Não podes falar para mim
na cara e dizer que não achas graça a isto? Ela abanou
outra vez a cabeça.
- Muito bem, minha senhora. Vou contar até cinco e no fim
vens aqui para dentro comigo.
- Estou completamente vestida!
- Dois.
- O que aconteceu ao um?
- Quatro.
- Não te atreverias!...
A mulher das limpezas, emurchecida e de meia-idade, andava
a varrer, arquejante. Ao seu encontro vinham Jonathan e
Maggie embrulhados em toalhas, ela com as roupas a pingar
no braço e ele com o seu traje torcido e enlameado. Para
desfrutarem o ar espantado da espectadora, ele apertou a
mão de Maggie e agradeceu-lhe aqueles momentos
encantadores. Ela perguntou-lhe se ele se importaria de ir
até ao seu quarto por instantes, antes do almoço, ele disse
que sim, que seria divertido. Depois, ele virou-se para a
criada.
- Gostava de nos fazer companhia?
Horrorizada, sem fala, a pobre encostou-se à janela e
apoiou o cabo da vassoura ao peito, com ar defensivo. Foi a
cobertura perfeitamente adequada. Ele encolheu os ombros,
disse qualquer coisa acerca de barcos que passam na noite
uns pelos outros, e seguiu Maggie até ao quarto dela.
- Como vais vestir-te? - perguntou esta logo que a porta se
fechou.
Trata-se duma poesia inglesa muito conhecida. (N. da T. ).
131
- Irei ao meu quarto no momento exacto em que a criada
tiver desandado. Não queria estragar-lhe a sua orgia de
ultraje. - Estendeu-se na cama e esticou-se para
descontrair. - Conseguiste saber alguma coisa acerca da
"Estação de Alimentação"?
- Hum... sim. Mais do que gostaria, na realidade. É um
assunto pavoroso.
- Conta-me.
- Bem... aquele homem... o que estava na tua casa de banho,
na outra noite... Era um produto da "Estação de
Alimentação". Yank contou-me. Primeiro não queria, mas
depois de começar veio tudo de repente, como se fosse algo
de que precisasse de se aliviar.
Jonathan apoiou-se no cotovelo. O tom da voz dela indicava-
lhe que achava difícil falar daquilo.
Ela enfiou um roupão e sentou-se na cama junto dele.
- Evidentemente que a concepção da "Estação de Alimentação"
é o resultado de dois problemas que a MI-5 e a Lu têm que
enfrentar. O primeiro é o problema da deserção e da traição
nos seus quadros. Não são muito vulgares, mas eles estão a
tratar disso energicamente. De facto, os desertores são
assassinados. Vocês fazem o mesmo nos Estados Unidos, creio.
- Sim. Chamamos "multas" aos assassínios se o atingido é
alguém de fora da CII e "despromoção máxima" se se trata
dum dos nossos homens.
- Bem, parece que esses assassínios são muitas vezes
difíceis e perigosos. Há corpos de que se têm que livrar; a
polícia torce o nariz; e os homens da Lu que executam o
assassínio têm que evitar sofrer o castigo, às vezes
ocultando-se atrás doutra tarefa mais importante. Portanto,
esse é o primeiro problema: a dificuldade de executar os
assassínios.
- E o segundo problema?
- Os cadáveres. São utilizados pelos vários ramos dos
serviços secretos em "montágens", como aquela de que foste
vítima. E parece que também os usam como derradeira
cobertura para um agente que trabalha na clandestinidade.
Em vez de desaparecer simplesmente o agente morre, ou
parece morrer. E não há melhor cobertura que ser morto e
132
enterrado. Também se servem dos corpos para receber as
informações da outra parte, seja ela qual for no momento.
- Como fazem isso?
- Como é evidente, encontra-se um homem no seu hotel,
falecido de ataque cardíaco ou talvez morto num acidente de
trânsito. E nele existem certas informações que o
identificam como mensageiro, juntamente com alguns
pormenores que a Lu quer implantar. Em Lisboa ou Atenas
- onde a polícia se vender - o outro lado acaba obtendo as
informações falsas. Jamais imaginariam que um homem desse a
vida só para lhes impingir uma tolice e daí tomarem-na
sempre pelo seu valor facial.
- Bem vejo. Então o vigário somou um a um e decidiu
utilizar os corpos dos homens riscados por assassínio para
preencher as necessidades que a Lu tem de cadáveres
fresquinhos. Presumo que raptam e trazem esses homens para
a "Estação de Alimentação" até precisarem deles. - Não sei.
Suponho que sim. Não sei se esses corpos da
Estação de Alimentação estão sempre em relação com as
necessidades dos serviços. O facto do vigário usar um para
te trazer aqui deve dar- te ideia da tua importância.
- Sinto-me lisonjeado. Mas porque chamam àquilo "Estação de
Alimentação"?
- Bem... - Ela ergueu-se e acendeu um cigarro. - Essa é a
parte realmente desagradável do caso, a parte que aborrece
Yank, portanto. Parece que os mantêm dopados numa pequena
quinta perto daqui, no campo. E são alimentados... oh, Deus!
- Continua.
e são alimentados com dietas especiais. Sabes, a Lu
descobriu que a primeira coisa que fazem os Russos quando
têm um corpo e querem identificá-lo é esvaziar-lhe o
estômago e verificar o conteúdo. E um suposto grego nunca
teria resíduos duma tarte de carne de vaca e rim. Portanto,
além dos problemas do vestuário adequado, da poeira con
veniente nas bainhas das calças, e toda essa tralha, têm
que se assegurar da comida, se é correcta ou não... - Ela
encolheu os ombros.
- Daí: "Estação de Alimentação". São cá uma malta, esta
gente da Lu!
133
- Apesar de tudo tenho pena do Yank. A sua reacção a isto
tudo é tão violenta que até esquece por momentos que faz
parte deles.
- Pois, é um tipo peculiar neste negócio. É claro, todos
eles são peculiares neste negócio, já cheguei a essa
conclusão.
- Mas nós estamos envolvidos nisto. E não somos peculiares.
- Não! Por Cristo! Vem cá...
Jonathan estava a descansar no quarto depois do almoço
quando Yank bateu e entrou.
- Saudações, Boss. Vim agora mesmo do Guv. Ele faz-me a
papinha toda. O que é que acha de trabalharmos juntos nesta
geringonça? - Sentou- se na cadeira muito estofada e pôs os
pés em cima da cómoda.
Jonathan estivera a proteger os olhos da luz, o braço
atirado sobre o rosto, e o calão de Yank tirado duma
frigideira com trinta anos fazia-o evocar a imagem de um
homem de barbicha e polainas, vestindo um fato de ombros
largos, casaco comprido, calças amplas, mas estreitas na
parte inferior, e um chapéu de copa baixa e chata. Jonathan
levantou o braço e piscou o olho a Yank.
- Posso topá-lo - comentou entrando no espírito de diálogo.
- A primeira coisa, é claro, você vai precisar de uma arma.
- O tom de Yank era tremendamente sério. Estava metido nas
coisas. Sabia como elas se faziam.
Jonathan deixou cair novamente o braço sobre os olhos e
pensou. Era exactamente como estar a trabalhar outra vez
para a CII. Uma espécie de CII ineficaz, rural. Cada
acontecimento trazia consigo uma sensação de repetição.
- Certo. É evidente. A arma. Não quero andar com ela. Mas
deveria estar no meu apartamento quando eu voltasse.
- Caramba! O apartamento de Mayfair ou da Baker Street?
- Baker Street. E vou precisar de duas armas. Uma no fundo
da minha gaveta das camisas, coberta por três ou quatro
destas e rodeada por peúgas enroladas. A segunda por cima,
coberta só por uma camisa.
- O que quiser, camarada. Você guia os cavalos, e nós
134
fazemos a viagem. Mas para quê duas armas escondidas no
mesmo lugar? - Então sentiu-se elucidado. - Oh, já topei!
Se eles fizerem uma busca no quarto encontram a arma de
cima e não procuram a outra. Isso é que é saber da música!.
Jonathan levantou o braço e olhou para Yank certificando-se
assim de que este era real.
- Que tipo de arma quer você? Os nossos colegas da MI-6
gostam de automáticas italianas.
- Bem sei que gostam. São tão implacáveis com elas como
você. Eu quero revólveres americanos, calibre quarenta e
cinco de cinco cartuchos, com o cão sobre um vazio.
- Não uma automática?
- Não. Se houver azar quero uma coisa que funcione.
- São horrivelmente grandes, sabe? - Yank ficou
involuntariamente corado. - Mas disso percebe você, claro.
Jonathan olhou para ele e sentou-se.
- Ouça, quando uso armas não vou para nenhuma festa. E não
me ralarei se deformarem a minha faixa. Não sou da MI-6.
- Sim, claro. Desculpe. - O sotaque americano desaparecera
mais uma vez.
Jonathan deitou-se para trás e esfregou as têmporas.
- Outra coisa. Arranje alguém para preparar as balas que
saiba do assunto.
O sentido desportivo de Yank ficou ofendido.
- Diga a quem o fizer que quero estar apto a estoirar com
um tipo se o atingir apenas na mão. Tire as balas dos
invólucros. Pontas furadas e cortadas em cruz.
- Sim - retrucou friamente Yank -, compreendo perfeitamente.
Jonathan sorriu para consigo. Yank não tinha mesmo estômago
para assuntos daqueles. O romance e o jogo de escondidas de
ser um agente do Governo entusiasmavam-no, sem dúvida, mas
como mostrava a sua reacção à Estação de Alimentação, o
sombrio trabalho molhado do negócio aborrecia-o.
Mas depressa recuperou.
- Quando voltar para o seu quartel-general, vai encontrar
tudo em ordem. Suponho que quererá uma caixa de
135
cartuchos? Adesivada debaixo da tampa da sanita, talvez -
acrescentou cheio de boa vontade.
Jonathan riu alto. Se não conseguisse fazer aquilo com dez
tiros, seria por estar muito destreinado.
- Ok. Chega acerca da arma. Depois do chá vai ter uma
escovadela do sargento. Ele é um gajo bom em judo e karaté.
Campeão dos fuzileiros, no seu tempo. Pode aprender muito
com ele.
Jonathan acenou com ar ausente.
Yank tirou os pés de cima da cómoda.
- Certo. Até logo, jacaré!
Quando saiu, Jonathan voltou a esfregar as têmporas.
- Daqui a pouco... - murmurou ele.
Jonathan e Maggie tomaram chá juntos num canto da pretensa
sala de jantar Túdor, perto duma janela. Estava calma e
distante e ele presumiu que pensava no seu papel uma vez
dentro d'Os Claustros. Ele estava disposto a deixar que o
silêncio reinasse. Já não precisavam de se tocar ou falar.
De repente um sol quente penetrou as nuvens baixas e bateu
no seu cabelo cúprico. A luz era erradia e indirecta,
parecendo surgir por entre o cabelo, enquanto o crepúsculo
aparentava erguer-se do chão. Ela olhava para baixo e os
olhos estavam meio escondidos pelas pestanas macias.
- És uma bonita mulher, Maggie Coyne - comentou ele como
quem verifica um facto consumado.
Ela fitou-o, os olhos verde-garrafa apanhados numtriângulo
de luz solar.
A claridade desvaneceu-se enquanto o Sol desaparecia numa
miscelânea de nuvens obscuras.
Então apareceu Yank.
- Temos de ir - comentou ele brilhantemente. O sargento
está à sua espera na sala de exercícios.
Jonathan sorriu, a dizer adeus a Maggie, e seguiu Yank para
fora da sala de jantar. Quando passaram pela sala de estar
pegou num exemplar do Punch e começou a manuseá-lo
estranhamente enquanto subiam os degraus. Da sala de
exercícios vinha o som de grunhidos guturais, uma vogal
aberta gritada e depois, enquanto entravam, o
136
baque esparrinhado de um homem derrubado nas esteiras. A
sala era uma biblioteca adaptada, com as suas paredes
apaineladas incongruentemente cobertas de esteiras
penduradas, tal como o chão de parquete. Ficava
directamente acima dopub e havia um odor ténue de cerveja
cediça subindo do chão e misturando-se ao cheiro salino do
suor. Henry estavajustamente a levantar-se devagar e
doloridamente das esteiras, enquanto outro homem da Lu dava
pontapés num balanceiro forrado com um colchão, os dedos
dos pés curvados para receber o impacte nas esferas
formadas pelos dedos. Gritava a cada golpe, enquanto
aperfeiçoava a sua prática passando dum ataque frontal a um
lateral.
No centro da sala, enorme e vultoso no seu casaco de judo
folgado, via-se o sargento, a estrutura pesada
estranhamente graciosa enquanto arrastava os pés na
direcção de Henry que se encolhia numa posição de defesa.
Jonathan sabia que o sargento os vira entrar e faria
qualquer coisa para o impressionar a ele e lamentou
terrivelmente Henry.
Yank encostou-se à parede almofadada e observou com uma
admiração muda enquanto o sargento se aproximava
silenciosamente da sua presa, não se incomodando a
dissimular ou a fingir. As mãos dele estavam ligeiramente
altas demais. Isca para a armadilha, pensou Jonathan. Henry
esquivou- se e depois avançou para tirar vantagem da guarda
alta. Uma garra no casaco, um pontapé radical, e Henry
ficou no ar. Não foi capaz de se furtar completamente e dar
uma queda mole, bem distribuída, que teria absorvido a
maior parte do impacte, e caiu sobre um ombro com um
grunhido nasal e líquido.
Passando por cima de Henry, e pretendendo só o ter visto
então, o sargento proferiu:
- Bem, diabos me levem se não é o doutor americano!...
Estava confiante e à vontade porque aquele era o seu
terreno.
O rosto de Jonathan mostrava-se ameno.
- Isso foi espantoso - disse ele, e o sargento pensou ter
detectado uma ponta de nervosismo na maneira como mexia na
revista.
- É só treino, amigo. Bem, vamos a isto. O que prefere?
Judo, Karaté?
137
Jonathan olhou em volta, indefesamente, para os outros
homens da sala que o miravam com muito interesse e um certo
ar divertido. O sargento andara a falar naquele momento
durante todo o dia.
- Bem, na realidade, nenhum deles. Julgo que tem os meus
registos da CII - riu surdamente. - Toda a gente parece tê-
los.
O sargento transpôs a distância entre eles e ficou a olhar
de alto para Jonathan com uma vantagem de oito centímetros,
os polegares metidos no seu frouxo cinturão preto.
- Olhei para a parte que o Guv me deu. Mas não consegui
perceber muito bem. Onde devia ler-se nível de competência
havia qualquer coisa estranha.
- Sim. - Jonathan ultrapassou o sargento e sentou-se numa
pequena mesa de biblioteca, num compartimento protegido,
colocado atrás do sítio onde estavam os lutadores. A
cadeira que escolhera deixava uma única vaga ao canto da
mesa. - Penso que os registos diziam não qualificado, mas
passável.
- Certo. Era isso mesmo. Agora, que raio quer isso dizer?
Jonathan encolheu os ombros e olhou para ele com olhos
inocentes, abertos.
- Bem, é uma coisa esquisita. Quer dizer que nunca me
classifiquei em qualquer desporto a dois, boxe, judo,
karaté,
nenhum deles. Mas os instrutores - homens como vocêacharam
que era melhor passarem-me de qualquer forma.
O sargento aproximou-se e inclinou-se para ele.
- Bem, nunca encontrará nada de tão desleixado aqui, na Lu.
Se eu o passar ficará diabolicamente bem qualifi cado.
- Acho que você sabe o que é melhor. Mas gostaria de lhe
explicar uma coisa. - Jonathan procurava as palavras
correctas com dificuldade, e enquanto o fazia olhava dis
traidamente para o sítio onde as pernas do sargento se des
tacavam do tronco. Cada vez mais incomodado, o sargento
arrastou os pés e sentou-se na cadeira do canto oposto ao
de Jonathan.
A atitude deste era insegura.
- Bem, se eu lhe explicar essa coisa extraordinária talvez
138
você possa dar-me algumas explicações que me ajudem a
melhorar a minha táctica.
- É para isso que estou aqui, homem.
- Sabe, embora eu nunca tenha tido muitos conhecimentos
acerca de métodos formais de luta, ganho quase
sempre. Não é estranho?
O sargento olhou o corpo esguio que estava na sua frente.
- Eu diria que tem uma sorte danada!
- Talvez - admitiu francamente Jonathan. - Mas há
mais do que isso. Sabe, quando eu era miúdo, andava nas
ruas. E era muito mais peso-leve, ainda. Mas tive que
descobrir uma maneira de ficar inteiro quando chegava à
altura da Cidade do Punho. - Sorriu languidamente. Como
acontecia de tempos a tempos.
Yank tomou nota mentalmente do termo Cidade do
Punho. Poderia usá-lo um dia.
- E como se arranjou? - perguntou o sargento, obviamente
aborrecido com a conversa e ansioso para acabar
com aquilo.
- Felizmente parecia que eu era capaz de embalar o
outro indivíduo com uma sensação de segurança. Depois
aprendi também que nenhuma luta teria que demorar mais
de cinco segundos, e o homem que aplicasse os dois
primeiros golpes ganharia inevitavelmente, se não estivesse
preso a
convenções de desportivismo ou aos efeitos idiotas de
qualquer técnica determinada.
O sargento não se sentia à vontade, mas percebia que
naquele caminho devia haver qualquer obstáculo. Os seus
ombros endireitaram-se perceptivelmente.
Jonathan brindava-o com um sorriso gentil e pouco
nítido que outros homens tinham recordado
retrospectivamente.
- Bem vê que há um período de aquecimento em qual quer
luta. As curvaturas e o arrastar dos pés do judo; as
palavras furiosas numa luta de bar. E percebi que podia
desenrascar-me melhor se atacasse com qualquer arma que
estivesse à mão, enquanto o outro adversário ainda estava a
preparar-se para a luta.
O sargento emitiu um ronco.
- Está tudo muito bem quanto a isso de uma arma à mão.
139
Jonathan encolheu os ombros.
- Oh, há sempre. Um tijolo, um cinto, um lápis...
- Um lápis! - O sargento torceu-se a rir, depois dirigiu-se
à reduzida audiência. - Ouvem isto? O américas aqui põe os
tipos de patas para o ar batendo- lhes com um lápis na
cabeça! Deve levar um certo tempo!
Jonathan recordou um incidente em Iocoama no qual o seu
assaltante havia acabado com uma Ticonderoga 3 enfiada dez
centímetros entre as costelas. Mas sorriu inocentemente
perante a troça do sargento.
Pela sua parte este já não se sentia furioso com Jonathan.
Agora escarnecia dele. Já conhecera aquele género de tipos.
Todos sorrisos e insolência até ir parar às esteiras.
- Não, agora a sério, sargento. Deve haver uma dúzia de
armas úteis aqui nesta sala - protestou Jonathan por entre
o riso aberto dos espectadores.
- Qual, por exemplo?
Jonathan olhou em roda, quase a pedir auxílio.
- Bem, como... não sei... como esta revista, por exemplo.
O sargento olhou com desdém para o Punch que estava em cima
da mesa, entre os dois.
- E o que faria você com aquilo? Lia as anedotas até o
outro se rir até à morte? - Ficou contente consigo mesmo
por ter dito uma boa piada.
- Bem, você podia... Bem, olhe. Se a enrolar apertadamente,
assim. Vê? Agora espere. Tem de ficar bem apertada. E
quando já estiver compacta pesa mais que um bas tão de
madeira do mesmo tamanho. E você sabe como as bordas do
papel são finas. A extremidade podia realmente cortar um
sujeito.
- Podia? Bem...
Oito segundos depois estava de costas, estendido num leito
de cadeira e mesas, e Jonathan, por cima dele, de pé,
esmagava-lhe a laringe com as costas de uma cadeira
invertida. O sangue gotejava da cavidade do olho do
sargento, por onde a extremidade da revista tinha furado
com um movimento constante de torção. O golpe no estômago
fizera o sargento baixar as mãos, deixando-lhe o nariz
indefeso para a pancada dada de baixo para cima com a
revista
140
que o quebrara com uma dor que lhe irradiara para as
entranhas e a parte de trás do pescoço. Os pratos que
soaram aos seus ouvidos tinham-lhe furado os tímpanos com a
explosão do ar e assim mal podia ouvir Jonathan que falava
por entre os dentes cerrados.
- E agora o que vai fazer, sargento?
O sargento não podia responder. Estava amordaçado pela
pressão da cadeira na garganta e as têmporas quase lhe
rebentavam com o pulsar do sangue bloqueado.
- O que vai fazer agora, sargento? - perguntou a voz de
Jonathan gutural. Estava avassalado por aquela fúria branca
suficiente para fazer fugir homens maiores do que ele tão
completamente que nunca mais pensavam em persegui-lo.
O sargento conseguiu emitir um som estrangulado. Não podia
ver através do sangue mas teve um relance aterrorizante dos
olhos cinzentos- esverdeados, glaciais, de Jonathan.
Este fechou-os por um segundo e respirou profundamente,
acalmando-se de dentro para fora. A subida da adrenalina
ainda estava amontoada no seu estômago.
Falou calmamente.
- Eu podia ter feito isto com metade do castigo. Mas achei
que o pobre homenzinho da minha casa de banho lhe ficara a
dever qualquer coisa.
Aliviou a pressão e pousou a cadeira ao lado. Enquanto
sacudia os punhos de forma a que saíssem do casaco só o
centímetro regulamentar, declarou:
- É melhor eu dizer as palavras de que anda à procura,
sargento: não qualificado, mas passável. Certo?
Jonathan estava sentado sozinho no bar do hotel,
beberricando um Laphrouig duplo, quando Yank se juntou a
ele.
- Olá, irmão! Você realmente bateu o pudim que era dele.
Deixe estar que eu pago.
Jonathan acabou a bebida.
- Você paga isto, não paga?
Yank deslizou para o banco do bar a seguir ao dele.
- Acho que você vai para Londres de manhã. Quando chegar ao
seu apartamento encontrará uma lista de números
141
de telefone - um para cada dia. Pode usá-los para me manter
informado dos seus progressos e eu passarei as boas novas
ao Guv. Alguma pergunta?
Nenhuma suficientemente insignificante para Yank poder
responder.
- Oh, sim - disse Yank -, acerca dessa Vanessa Dyke.
Suponho que vai entrar em contacto com ela para arranjar
uma entrée n'Os Claustros. Quer que eu a tenha vigiada até
você chegar a esse ponto?
- Cristo! Claro que não!
- Mas o Guv disse que ela...
- Provavelmente encontrou o vosso Parnell-Greene por
coincidência.
- Talvez. Mas é a última pessoa que ele disse que tinha
visto antes de morrer. É claro, você pode ter razão. Talvez
seja apenas o caso de dois tipos esquisitos que se
encontram para comparar apontamentos. Certo?
Jonathan virou a cabeça e olhou-o friamente.
- Miss Dyke é apenas uma velha amiga.
- Claro, mas...
- Saia daqui.
- Já, espere um minuto. Eu tenho...
- Fora, fora!
Yank patinhou nervosamente, depois desimpediu a garganta e
tentou sair sem perder a compostura.
- Ok, então. Eu vou-me embora para a cidade. - Fez um gesto
de aceno devagar, com as pontas dos dedos. Até depois,
batata-doce.
Yank tinha voltado para Londres e Henry levara o sargento a
um médico na aldeia para tratar do nariz e do olho assim
como para ver se algo se podia fazer acerca da sua audição.
Portanto, Jonathan e Maggie estavam senhores da casa de
jantar. Uma chuva pesada surgira com a noite, envolvendo a
pousada num barulho suave de bacon a fritar. Uma corrente
de ar fez tremular a vela pousada entre os dois e ela
esfregou os antebraços como se sentisse frio. Vestia o
traje verde de cerimónia que usara no primeiro serão
passado em comum - apenas há três noites, seria?
Apesar de momentos de riso e animação o seu contacto
142
era inseguro e frágil e várias vezes ele se apercebera que
haviam permanecido em silêncio muito tempo, cada um com os
seus pensamentos. Com um pequeno esforço Jonathan conseguia
voltar a retomar a conversa. Mas, invariavelmente, a
tagarelice ia-se adelgaçando até um novo silêncio.
têm tendência a ser azuis nesta época do ano, não é?
Jonathan estivera a contemplar os riscos da chuva na janela.
- O quê? Desculpa.
- As tangerinas.
- Oh, sim. - Olhou novamente através do vidro, depois fez
uma careta e fitou-a. - Azuis?
Ela riu-se.
- Estavas a milhas de distância!
- É verdade, desculpa.
- Vais partir de manhã?
- Hum...
- Apanhar essa linha de contacto através da tua amiga... ah?
-Vanessa Dyke. Sim. Creio que sim. Parece o único ângulo
que temos para eu me introduzir n'Os Claustros. Embora não
possa acreditar que na realidade ela tenha algo a ver com
isto tudo.
- Espero que não. Isto é, se é tua amiga, espero que não.
- Também eu. - Olhou para trás e depois contemplou-a uns
momentos. - O vigário disse-me que ias ser colocada dentro
d'Os Claustros.
Ela acenou afirmativamente e depois examinou a travessa dos
queijos com um súbito e vivo interesse. Jonathan percebeu
que tentava deixar morrer o assunto, torná-lo menos
importante do que era na realidade.
- Sim - disse ela. - Descobriram uma maneira de me colocar
lá dentro, amanhã à noite. Queres um pouco deste Brie? É
Brie de Meaux, penso eu.
- De facto é Brie de Melun. Lá haverá perigo, sabes?
- Sabes? Sou tão má acerca de queijos como acerca de vinhos.
- O vigário disse que te ofereceste voluntariamente para lá
trabalhar.
143
- Disse? - Arqueou as sobrancelhas e o ar divertido dos
olhos verdes dissolveu-se lentamente numa opacidade mais
calma e protectora, depois baixou as pestanas e fitou a
faca do queijo, que empurrava distraidamente com o dedo
para a frente e para trás. - Acho que me falta força moral.
Não posso suportar por muito tempo fardos tão pesados como
a culpa e a vergonha. Ajudando- te agora espero que seja
capaz de me convencer a mim mesma que fiz o possível para
te tirar desta coisa. Porque... - Olhou para cima e sorriu.
- Porque... fiquei um pouco apaixonada por si, cavalheiro.
- A pieguice das últimas palavras diluía-se no meio do seu
sotaque irlandês.
A mão dela estava ao alcance de Jonathan mas apertá-la era
o tipo de coisa que este último dificilmente faria.
Beberam o café e o conhaque sem qualquer necessidade de
conversa. A chuva parara e o seu som envolvente, que
passara despercebido, era agora palpável pela sua ausência.
Um silêncio novo e mais denso contribuía para o vazio da
sala de jantar solitária e a diminuição da luz da vela, que
se desfazia em cera derretida, originava um ambiente de
abandono, outonal.
- Puseram um carro à minha disposição - disse Jona than,
verbalizando o último elo da sua cadeia de pensamentos. -
Julgo que poderia ir logo para Londres. Descansar o
cérebro até amanhã.
- Sim. Poderias.
- Então, telefonar à Vanessa seria a primeira coisa a fazer
de manhã.
- Posso ajudar-te a fazer as malas?
- Achas que seria sensato?
- Não.
- Então vem comigo fazer as malas.
A madrugada ia alta quando Jonathan meteu a mala no Lotus
amarelo, baixando a tampa devagar para não perturbar o
silêncio nebuloso. As mãos dele ficaram húmidas devido à
camada de orvalho que cobria o carro. Um pássaro soltou uma
nota experimental, como se esperasse o apoio das outras
aves para confirmar a sua suspeita de que
144
as sombras podiam ser já manhã. Não houve confirmação. O
céu não se via.
- Sim - murmurou para si mesmo - mas o que se passa com a
lagarta que saiu de manhã da toca?
O interior do carro estava frio e húmido e cheirava a novo.
Pôs a trabalhar o limpa pára-brisas para anular a
condensação e olhou na direcção da janela do quarto de
Maggie, antes de pôr a caixa de velocidades em marcha
atrás. Depois deslizou ruidosamente sobre o cascalho.
Tinha-se desligado de Maggie com muito cuidado e andado no
quarto em bicos de pés para não a despertar. A posição dela
não mudara quando voltara da casa de banho, já vestido e
barbeado. Olhara-a de relance quando as chaves da mala
caíram com demasiado ruído mas nem mesmo assim se mexera.
Depois de ter conseguido abrir a porta, Maggie disse numa
voz tão clara que se apercebeu de que já estava acordada há
algum tempo:
- Tem cuidado.
- Tu também, Maggie.
PUTNEY
O Lotus era seguro e as estradas estavam desertas na
madrugada, portanto, Jonathan depressa chegou à área
própria para parcar no hotel da Baker Street - bastante
cedo para telefonar a Vanessa, que era um animal
constitucionalmente nocturno. Comprou alguns jornais no
átrio e pediu que lhe mandassem o pequeno-almoço ao seu
apartamento do último andar. Uma hora mais tarde estava
sentado em frente duma bandeja em desordem, com os jornais
espalhados à sua volta. O tempo passava apaticamente e
Jonathan deu consigo a olhar através da página impressa com
a mente dirigida para a pessoa desconhecida de Maximilian
Strange. Com uma decisão súbita, ergueu-se e localizou o
número de Sir Wilfred Pyles no seu dossier. Depois da
sequência de secretárias, que o guardavam na Comissão
Cultural U. K. a voz calorosa e rude de Sir Wilfred disse:
- Jon! Que bom você ter telefonado tão cedo! - Sim!
Desculpe o abuso.
- Não se preocupe. Por coincidência acabei agora de abrir
uma carta daquele académico. Qual é o nome dele, o homem de
Gales?
- Fforbes-Ffitch?
- É esse. Parece que há uma conspiração para o mandar a si
para a Suécia, numa espécie de série de conferências. Pede-
me para usar os meus poderes persuasivos no sentido de o
convencer.
- Ele não desiste com facilidade.
- Hm... Uma característica nacional dos Galeses. Eles
chamam-lhe determinação, outros consideram que é casmurrice
obtusa. De qualquer forma, uma pessoa habitua-se a isso.
Professores e barítonos constituem os produtos mais
exportados por Gales, e não os podemos censurar por
tentarem livrar- se de ambos. Mas ouça! Se está disposto
146
a procurar jóias no solo salino dos Viquingues, pode
contar com o apoio da Comissão.
- Não foi por isso que lhe falei.
- Ah!.
- Necessito dumas informaçõezitas.
- Se estiverem ao meu alcance...
- Como vão os seus contactos com a MI-5?
- Oh! - Houve uma pausa prolongada na outra extremidade da
linha. - Esse tipo de informações, é isso? Como
lhe disse há vários anos que estou na prateleira.
- Mas com certeza os seus contactos não secaram detodo.
- Oh, suponho que ainda possuo um pouco daquela
influência que acompanha a perda do poder. Mas antes de
irmos mais longe, Jon... não está metido em alguma
embrulhada pois não?
- Fred.
- Hm... Aviso-o, Jon...
- É só verificar um nome antigo, talvez junto de alguém
da Interpol.
- Bem vejo. - Sir Wilfred era capaz de usar de tons de
voz subárcticos.
- Quero que me descubra um nome. Fá-lo-á?
- Se você estiver absolutamente seguro de que não está
metido nalguma coisa incómoda para o Governo.
- Eu poderia mencionar várias vezes em que trabalhávamos
juntos e você esteve pendurado!
- Por favor, poupe-me! Muito bem. O nome?
- Maximilian Strange. Fez soar alguma campainha?
- Só um ligeiro tinido. Mas já passaram anos desde que
estive envolvido nisso tudo. Muito bem. Telefono-lhe logo à
tarde.
- É melhor ligar eu. Não posso ter a certeza da hora.
- Precisarei dum pouco de tempo. Por volta das cinco?
- Sim, por volta das cinco.
- Mas tenho a sua palavra, não tenho? De que você não
está a fazer algo de prejudicial, pelo seu lado? Porque se
está, Jon, agirei a fundo contra você.
- Não se preocupe. Estou a trabalhar para os Chapéus
Brancos. E se explodir alguma coisa pode contar com a
máxima negatividade.
147
Sir Wilfred riu. Sempre tinham ambos troçado do calão da
agência de informações que tratava das comunicações da CII.
- Se surgirem algumas perguntas, Fred, passe-me o
testemunho.
- Era precisamente o que eu tencionava fazer, velhote.
- Você é bom tipo.
- Sempre achei o mesmo. Ciao, Jon.
- Tchiiss.
Depois de ter esperado outra longa meia hora, Jonathan
marcou o número de Vanessa Dyke. Arranjou forma de ela o
convidar para tomar uma chávena de chá e conversarem.
Pareceu-lhe um pouco relutante em recebê-lo, mas a sua
amizade de tantos anos levou a melhor. Depois de pousar o
auscultador, perdeu alguns minutos a olhar através da
janela para o Regent's Park, tentando orientar as ideias.
Duas coisas o haviam incomodado quando falara a Van. A sua
dicção estava pouco nítida, como se tivesse andado a beber.
E a primeira coisa que lhe perguntara fora:
- Estás bem, Jon?
Nunca visitara Vanessa em Londres, e, durante o minuto que
levou a subir a escada do metro, sentiu que essa parte do
Putney era um sítio estranho para a sua personalidade
altiva e penetrante. A rua principal era típica das
concentrações urbanas a sul do rio, com o seu modesto
encanto vitoriano oculto por trás de frontarias falsas de
alumínio
enfeitado e vidros cor de tijolo; breves filas de casas
desamparadas olhavam cegamente através de janelas sem
cortinas e quebradas, esperando a sua destruição e
substituição por centros comerciais. A riqueza visual da
decadência diluía-se aqui e ali pelo cubo silencioso dum
Banco moderno; e existiam bastantes cafés baratos exibindo
bocejantes empregados e decorações permanentes nas mesas,
feitas de migalhas e líquidos derramados.
As nuvens e o fumo misturavam-se num composto umbroso pouco
acima dos cumes das casas e um borriço sujo tornava oleoso
o pavimento. Todas as mulheres puxavam carrinhos contendo
um saco de compras, um saco de roupa
148
suja e, presumivelmente, um bebé, e todos os homens se
arrastavam com a cabeça pendida.
A Monserrat Street consistia numa fila dupla de miserá veis
habitações de tijolo, construídas com uma certa nostalgia
arquitectónica do conforto e permanência vitorianos
mas igualmente com os materiais mais baratos e a mão-de-
obra mais ordinária dos anos vinte. Os jardins, apenas
superficiais, mostravam-se embaçados e desleixados - uma
ocasional flor de Outono coberta de fuligem - e tudo
parecia ser mantido por gente idosa e indiferente. Um número
invulgar de casas estava vazio, exibindo letreiros para
venda, o que indicava que as Índias Ocidentais se estavam a
aproximar da vizinhança.
O jardim do número quarenta e seis fazia um contraste
agradável com o resto. Mesmo naquele fim de estação, e
mesmo com um tempo que engolia as cores, havia um
equilíbrio e um controlo que dominavam confortavelmente o
espaço limitado. As hortênsias ligavam particularmente
bem com o distrito e o tipo de clima; húmidas e discretas em
tons de malva, azul e branco-amarelado.
A tragédia abateu-se sobre a vida dum notável crítico de
arte e erudito quando a sua imagem sofisticada e moderna
foi abruptamente maculada ontem à tarde.
Van estava à porta, encostada contra o limiar verde-claro
um copo de uísque e um cigarro na mesma mão.
- Olá, Van.
passantes relataram ter observado este indivíduo
encantador, internacionalmente conhecido, ocupado na
actividade terrena e classe-média de admirar hortênsias.
- Ok. Ok!
os relatos diferem acerca da fealdade exacta das flores em
questão. O doutor Hemlock recusa-se a fazer comentários,
mas as suas reticências são tomadas por muitos como uma
confissão tácita de que está a ficar mais velho,
mais abrandecido, e, tanto quanto este repórter pôde ver,
cada vez mais molhado ao longo de cada minuto que
permaneça ao ar livre. Por que não entras?
Ele seguiu-a até uma sala de visitas atravancada de
mobília, sendo os seus assentos vitorianos, quebra-luzes
pouco
funcionais, cobertas de protecção e reposteiros de veludo,
a
149
antítese do apartamento ultramoderno de esmalte branco e
preto que fora o seu, quando se haviam conhecido quinze
anos atrás em Nova Iorque. Só a máquina de escrever suíça,
numa mesa de dobrar perto da janela, e o complicado monte
de notas junto da máquina revelavam a sua profissão. Era
difícil imaginar que o fluxo regular de crítica artística
nos jornais, com a sua perspicácia e acidez, saíssem
daquela sala antiquada e confortável.
- Queres uma bebida, Jon?
- Não, obrigado.
- Porque não? Algures, no alto mar, neste momento o Sol
está abaixo do horizonte.
- Não, obrigado.
Ela desabou numa poltrona de orelhas.
- Então? A que devo a honra?
Jonathan brincava com umajarra de hortênsias cortadas,
colocada no guarda- loiças.
- Porque tentas fazer-me sentir pouco à vontade, Van? Ela
ignorou a pergunta.
- Detesto hortênsias. Sabes disso? Cheiram às toucas para
nadar que as mulheres usam. Da mesma maneira que detesto
chás orientais com flores. Cheiram às malas de mão das
actrizes. Repararás que eu não disse bolsas. Porque odeio a
imaginária sexual. E também porque evito a ineficácia
olfactiva. - Encostou-se contra a orelha da poltrona
e olhou-o durante um segundo. - Tens razão. Sinto-me
baralhada e lamento fazer-te sentir mal. Porque somos
velhos amigos, amigos do peito. Sabes porquê? És o único
tipo no mundo que tem alma.
Jonathan sentou-se em frente dela, numa cadeira de braços
às flores, não porque lhe apetecesse fazê-lo, mas porque
parecia injusto estarem pé quando ela parecia tão
obviamente perturbada e desequilibrada. Nunca ouvira uma
desistência escondida por trás dum vapor tão leve de
palavras. As costas dela estavam viradas para a janela e a
luz húmida e difusa batia- lhe no rosto com uma agudeza
cirúrgica pouco lisonjeira. O curto cabelo preto, semeado
de cinzento, parecia sem vida, e as linhas espalhadas no
seu rosto magro constituíam uma biografia hieroglífica de
humor e amargura, riso e inteligência - o dever cumprido
sem realização pessoal.
150
- Como a estão a tratar os cristãos, senhora? - perguntou
ele, lembrando a ternura aberta do padrão habitual de
gracejo dos velhos tempos.
Ela não retribuiu o carinho.
- Oh, Jon. Já crescemos, irmão Jonathan, diabos levem o som
do alaúde. Bem, raios os partam a todos, querido. A
pestilência das suas choupanas - caniçados, barro e tudo. E
que a sífilis se apodere das suas filhas virgens. Acendeu
um cigarro no resto do anterior. - Vamos tratar de assuntos
sérios. Julgo que vieste por causa daquele tipo que te
apresentei na Tomlinson? O tipo do Cavalo de Marini?
- Não. De facto, não. Já me esquecera dele.
- Não te contactou de novo depois daquela noite?
- Não.
Podia ver-se a tensão a esvair-se do rosto dela.
- Ainda bem, Jon. É uma óptima pessoa para ser evitada. Um
péssimo actor, na realidade.
- Mas paga bem, mesmo assim.
- Fausto podia ter dito o mesmo. Bem, então! Se não foi o
Cavalo de Marini o que te impeliu até à minha solidão de
matrona?
Ele fez uma pausa e pensou, antes de pedir o que sabia ia
ser uma imposição sobre uma amizade antiga.
- Estou metido num sarilho, Van.
Ela riu.
- Não te preocupes. Hoje em dia, não há nada pior que uma
constipação.
- Tenho de entrar n'Os Claustros.
Por momentos ela suspendeu o gesto, a meio caminho de pegar
no copo. Depois, fitou-o com os olhos opacos, relanceando-o
com uma pupila e depois com a outra, estreitando-as na
tentativa de analisar a intenção de Jonathan. Afundou-se
contra as costas da poltrona e beberricou o líquido num
silêncio gelado.
Passado algum tempo falou.
- Porquê Os Claustros? Não é o teu tipo de acção. Demasiado
barroco.
- Nós envelhecemos, mamã Vanessa. Precisamos de auxílio.
151
- Oh, merda!
- Ok. Disse-te que estava num sarilho. Explicar-to ainda o
torna maior. E podia provocar- te algum a ti. Estou
envolvido com gente sem escrúpulos e eles darão cabo do
velho Jonathan a menos que ele possa entrar n'Os Claustros
e fazer uma coisa que eles querem.
- E vieste aqui cobrar as dívidas antigas da amizade!
- Sim.
- Porco bastardo.
- Sim.
Vanessa levantou-se e esfregou o mormaço da vidraça da
janela, olhando por momentos com ar parado, para além do
jardim e da chuva, as sujas fachadas de tijolo do lado
oposto da rua. Percorreu com os dedos o cabelo abundante e
torceu nervosamente um punhado. Depois voltou-se para ele.
- Agora insisto em que tomes uma bebida comigo.
- Combinado.
Ela deitou-lhe um bom trago de Laphroaig e passou-lhe o
copo. A seguir empoleirou-se no largo peitoril da janela e
falou enquanto contemplava a chuva, entortando um olho para
o fumo do cigarro que se evolava do canto da sua boca.
- É melhor dizer-te primeiro que estás num sarilho maior do
que julgavas. Quero dizer... Jon, não sei que pressão está
essa gente a exercer para te levar a tentar penetrar n'Os
Claustros, mas espero que seja uma organização com mais
força. Porque os indivíduos d'Os Claustros são
os loucos piores que há. Podem matar-te, Jon. Assim Deus me
ajude.
- Eu sei.
- Sabes? Espero que sim. Lembras-te de ler essa história do
Parnell-Greene? O da torre de St. Martin? Foi a malta d'Os
Claustros. E pensa em como o fizeram, Jon. Não foi apenas
um assassínio. Foi um aviso! Um aviso à boa maneira dos
gangs de Chicago.
- Forneceram-me alguns pormenores adicionais acerca da
resposta de Maximilian Strange aos intrusos.
Ela inspirou profundamente pela boca.
- Maximilian Strange! Jon, tu estás numa embrulhada
152
muito pior do que eu julgava. Gostava de te ter avisado.
Mas se o tivesse feito teria corrido o risco tremendo de
ser
morta. Bem sei que já descrevi muitas vezes a minha vida
como um monte de merda - sorriu palidamente -, mas é o
único monte de merda que consegui obter.
Jonathan inclinou-se para a frente e pegou-lhe na mão.
- Van, tenho muita pena que estejas tão metida nisto.
Não te peço para me introduzires n'Os Claustros, porque
sei que poderia assinalar-te. Põe-me só na pista de alguém
que o possa fazer. Sabes que é importante, ou não to
pediria.
Ela ergueu-se e pousou o copo ao lado.
- Deixa-me pensar enquanto faço um bule de chá.
Beberemos chá e contemplaremos a chuva.
- Parece óptimo. Eu gostaria muito.
Enquanto ele lia os títulos de alguns dos livros dela
Vanessa fazia chá na cozinha, alteando a voz para
conversar com ele.
- Sabes, mesmo ordinária e classe-média como é esta
casa gosto realmente dela, Jonathan. Comprei-a, arranjei
-a, pintei-a e tratei dos canos - tudo sozinha. E adoro-a.
Especialmente à noite quando estou a trabalhar ao pé da
janela e posso observar as pessoas debaixo da chuva. Ou em
dias como este, a beber chá.
- É um sítio estupendo, Van.
- Sim. Tu és a única pessoa do velho grupo de Nova
Iorque que poderia perceber isto. A casinha enfileirada, as
cobertas protectoras, as hortênsias cor de malva - tudo
bem distante da imagem que eu costumava aparentar.
- Certo. Até na outra noite, na Tomlinson, ainda estavas a
desempenhar o papel de macho dirigente.
- Bem sei que é estúpido. É a primeira vez que me sinto
impelida a dizê-lo. Sabes o que quero significar com isto?
- Sei.
- O quê?
- Sei.
- Bom. Este é o meu eu real. Uma senhora burguesa
com cortinas de renda. Uma chávena de chá na mão. Um
relatório brilhante a tomar forma na minha máquina de
escrever. Um fogo de excitação na alma. Cristo, ficarei
feliz
153
quando for tão velha que nem crie calos. Andar na luta faz
com que as pessoas actuem como loucas. - Apareceu com um
pequeno bule debaixo dum abafador e duas chávenas Spode.
Depois puxou a cadeira para perto dele e deitou o chá. - Eu
costumava ter medo da altura em que me tornasse uma velhota
feia. Mas agora que lá cheguei posso dizer-te isto: magoa
menos do que ser uma rapariga feia.
Jonathan levantou a chávena.
- À tua saúde!
- À tua, Jon.
Beberam calados, enquanto a chuva batia na janela.
- Grace - disse ela, por fim.
- Como?
- A pessoa que pode meter-te n'Os Claustros. Uma mulher
negra, belíssima, que tem um clube em Chelsea. É muito
íntima de Strange.
- O nome dela é Grace?
- Sim. A Espantosa Grace. Uma espécie de nome de palco,
suponho. Um nome de guerra. O clube dela é ultramoderno,
com bebidas caríssimas e prostitutazinhas negras e espertas
com cinturas finas e nádegas amplas e macias. Mas a
verdadeira atracção é ela.
- Bonita?
- Oh, Cristo! Sim.
- A espantosa Grace! Grande nome.
- Chiquérrima. A casa dela chama-se Celeiro de Ouro. Só
abre à meia-noite.
Jonathan acabou o seu chá e pousou a chávena.
- É melhor eu dormir bastante antes de lá ir. Pode ser uma
noite longa.
Vanessa foi atrás dele até à porta.
- Ouve, velho amigo e antigo garanhão, vais ter mesmo
cuidado contigo, não vais?
- Terei. Agora deixa-me pensar em ti. Há algum sítio para
onde possas ir por uns dias? Algum sítio bastante afastado
daqui?
- Já vejo onde queres chegar. Há uma mulher em Devon, que
eu conheço. Escreve histórias de mistério.
e vive numa casinha, tem um gato siamês e bebe vinho tinto.
154
As sobrancelhas dela ergueram-se.
- Não, não a conheço, Van. Digo isto porque as pessoas
gostam de desempenhar o papel dos seus estereótipos.
- Mèsmo tu?
- Provavelmente. Mas é difícil de confessar. Sou um exemplo
típico daquelas espécies das quais há só um exemplar vivo.
- Bastardo indecente!
- A família é boa, mas qual será a espécie?
- Asinina?
- Não sei se estás a par da taxinomia animal. Mas, a sério,
Van, vais sair mesmo da cidade, não é?
- Sim. Vou.
- Esta tarde?
- Tenho umas coisas a fazer. Sairei logo que acabe.
- Podes ficar certa de que o farás!
Ela sorriu.
- Para um bastardo de sangue frio, não és mau tipo. Anda,
dá-me um abraço.
Abraçaram-se com força.
A meio caminho ele parou para cheirar outra vez as
hortênsias molhadas.
- Tenho um problema - disse a Vanessa, que se encostava ao
limiar da porta verde-claro, o Gauloise pendurado nos
lábios. - Não consigo lembrar-me ao que cheiram as toucas
de banho.
- A hortênsias - respondeu Van.
De regresso ao pomposo apartamento da Baker Street
Jonathan estendeu-se ao comprido na cama que ele e Maggie
tinham usado uns dias antes. Para lá das janelas já
descera uma tarde fria e molhada, e ele jazia na
obscuridade
crescente, sozinho e imóvel, preparando-se para o que
haveria no Celeiro de Ouro.
A Espantosa Grace. Um nome grotesco, mas de certo
modo de acordo com todo aquele bizarro assunto. Não era
nada como as suas experiências de multas com a CII.
Essas tinham sido, negócios puramente mecânicos. Tinha
assinado um contrato, só quando realmente precisara de
dinheiro, e fora a Berna, Montreal ou Roma ao encontro
155
dum agente que já fizera todo o trabalho de pesquisa. Aí
recebera todos os pormenores de que necessitava sobre o
indivíduo rotulado: hábitos, sítio onde morava ou
trabalhava, rotina diária. Fora ao encontro dele, executara
a pena e partira. Eles não eram a sério. Apenas seres sem
rosto, a maioria deles exemplares dos fungos humanóides que
povoam o mundo da espionagem - os furadores de greves e
passadores de droga dos quais o mundo só ganhava em se
libertar.
E para si tinha havido muito pouco perigo. Viajava à
vontade no seu papel profissional de historiador de arte.
Não tinha nenhuma relação pessoál com o sujeito em questão.
Nem sequer deixara impressões digitais. A CII tomara conta
do assunto. Quando se tornara num agente activo as suas
impressões haviam desaparecido de todos os dossiers do
Governo, da polícia e do exército.
Mas aquele assunto da Lu era diferente. Odiava aquilo e
estava com medo. Desistira de trabalhar para a Pesquisa e
Multas porque os seus nervos se ressentiram e porque a sua
tolerância ao trabalhar com monstros cheios de patriotismo
bem intencionado tinha desaparecido. E agora estava mais
velho e a tarefa era mais complicada. E havia Maggie para
cuidar. Os ingredientes do malogro.
Merda!
Mas tinham-no apanhado. A Lu e o seu maldito vigário
haviam-no levado à parede. E não seria preso por
assassínio, mesmo que isso significasse a morte de uma
dúzia de Maximilians Stranges.
Meditou profundamente e descansou um pouco, ligeira mente
abaixo da superfície do lago calmo que projectava por trás
das pupilas.
Depois parou. Eram horas de telefonar a Sir Wilfred Pyles.
- Não fale - disse logo Sir Wilfred quando entraram em
contacto. - Quinze minutos. Este número. - Deu a Jonathan
um número, depois desligou.
Durante os quinze minutos que esperou para o marcar
Jonathan ficou sentado junto do instrumento, percebendo que
algo havia acontecido. Sir Wilfred obviamente não podia
usar o seu próprio telefone com medo duma escuta e
156
fora, sem dúvida, para um telefone público esperar a
chamada. Este foi levantado ao primeiro toque.
- Jon?
- Sim.
- Presumo que já percebeu.
- Sim.
- É como nos velhos tempos, eh?
- Receio bem que sim. Tropecei nalguma coisa.
- Foi isso mesmo. Você está metido num assunto escaldante.
Falei para um velho compinxa da MI-5 e pedi-lhe para
verificar umas coisinhas. Muitas vezes fazem isso pelos
antigos tipos que querem livrar-se dum velho conhecimento
ou duma rapariga. Ele disse que estava encantado: Parecia
um doce! Mas quando mencionei o nome de Maximilian Strange
o tipo gelou e perguntou-me quem estava a dirigir o
assunto. A próxima coisa que tenho para lhe dizer é que um
desses servos que desempenham os papéis de jovens espiões
enérgicos, se pôs a falar comigo, pedindo para saber
pormenores. Bem, eu fintei-o o melhor que pude, mas tenho a
certeza de que ele me via à transparência.
- Portanto, não foi capaz de descobrir nada.
- Bem, directamente nada. Mas as suas reacções falaram bem
alto. Se esse monte de gente constitucionalmente letárgica
da MI-5 foi impelido a actuar mencionando apenas o nome do
seu tipo, ele deve ser uma coisa de arromba! Por acaso, não
terá encontrado o Bormann?
- Não, nada desse género.
- Estou com medo de lhe ter arranjado um bico-de-obra, Jon.
A MI-5 anda atrás de si.
- Disse-lhes o meu nome?
- Claro, com certeza se não esqueceu do lema da nossa linha
de trabalho: cada homem por si.
e a foder os que sobrarem.
- Deve ter estado a pensar nos serviços secretos gregos.
Bem, tchiiss, Jon.
- Ciao, compinxa.
Jonathan enfiou os dedos nos cabelos e respirou várias
vezes pela boca, profundamente, antes de se deitar
novamente na cama.
157
Merda. Merda. Merda!
Ficou horas na cama, obrigando-se a cochilar
ocasionalmente. Por fim, rolou para fora da cama e correu o
apartamento em busca de algo para comer. Não estava de
facto com fome; tinha tratado disso antes de subir ao
apartamento, ingerindo uma forte refeição de proteínas que
levavam muito tempo a queimar. Tratara do corpo, como cos
tumava fazer nos seus dias de alpinismo, como uma máquina
que exige o combustível apropriado, a quantidade exacta de
repouso, o exercício certo. Tinha comido correctamente. Se
houvesse qualquer acção naquela noite seria entre a meia-
noite e as três da manhã. Por essa altura as proteínas
estariam semiqueimadas, e ele teria consumido duas ou três
bebidas - precisamente a porção de álcool que entraria
depressa em combustão.
Uma máquina danada!
Era só para preencher o tempo e distrair a mente que
procurava comida. Como habitualmente, vivesse onde vivesse,
os únicos alimentos que existiam eram uma caótica mistura
de petiscos exóticos. Sempre sentira uma atracção por
comidas raras e adorava deambular nas secções para gourmets
dos grandes armazéns, recolhendo tudo o que vinha ao
encontro da sua fantasia. A sua pesquisa na cozinha deu
origem ao aparecimento dum pequeno frasco de nozes de
macadâmia, uma lata de trufas em salmoura, à ginjas de
conserva e meia garrafa de vinho grego. Comeu tudo.
Enquanto errava pelo apartamento, fechando as luzes
atrás dele, ocorreu-lhe ir verificar as armas que pedira a
Yank para lhe arranjar. As suas directivas haviam sido
seguidas com precisão. Tirou uma para fora e examinou-a. O
volumoso revólver de aço azul, de calibre 45, parecia
pesado e frio na sua mão enquanto rodava o tambor e
verificava o carregamento. As balas estavam furadas e uma
cruz fora fortemente marcada na ponta de cada uma. Não
haveria trajectória certa. Nem se podia falar de precisão.
A macadámia é uma árvore australiana que produz um fruto
de casca dura e comestível. (N. da T).
158
A bala talvez começasse a cair a cinco metros do tambor.
Mas quando batesse rasgaria tão ampla e finamente como
se atingisse um pedaço de folha de estanho, e um corte no
antebraço derrubaria a vitima como se tivesse sido
atropelado por um comboio. Um bom trabalho no campo da
transformação das balas perfurantes em dunduns.
Pensou em levar consigo para Chelsea uma das armas.
Depois desistiu. Era impossível esconder um obus daqueles
e uma patada poderia derrubá-lo antes de Jonathan estar a
uma distância conveniente d'Os Claustros e de Maximi lian
Strange. Tinha que ser muito cauteloso.
Deu um piparote no tambor e arrumou a arma.
O telefone soou.
- Como vai isso, Doc?
- Porque está a telefonar, Yank?
- Oh, descobri algumas coisas na mão. O meu braço é
uma delas. Não acha graça? Oh, bem. Então diga-me isto:
como vão as coisas com Miss Dyke?
- uma visita agradável.
- E.
- E arranjei talvez uma entrada n'Os Claustros.
- Sim? Como foi isso?
- Eu digo-lhe quando funcionar.
- Não, será melhor dizer-me agora. O vigário quer saber
o que anda a fazer de momento a momento. Não quer
começar outra vez do principio se lhe acontecer alguma
coisa a você. Ou se você fizer alguma coisa maluca...
- Como, por exemplo?
- Como tentar fugir. Ou vender o que sabe. Ou qualquer
coisa desse género. Nada que eu, de facto, pense que
você faça. Como já conhece o vigário ácho que tem uma
ideia clara do que ele faria a alguém que tentasse pregar-
lhe
a partida.
- Enfiar-me na Estação de Alimentação? - Jonathan
largou a ideia de propósito.
Após uma pausa.
Uma bala dundum é aquela que faz pouco barulho e explode
ao atingir o alvo. (N. da T. ).
159
- Algo desse género. Portanto, diga-me: qual é a sua chave
para Os Claustros?
- Uma mulher chamada Grace. A Espantosa Grace. Dirige uma
coisa chamada Celeiro de Ouro. Faz algum sentido para si?
- Tem a certeza de que é uma mulher?
- O que quer dizer?
- A Espantosa Grace é um travesti. Topa?
- Oh, por amor de Deus!
- Desculpe. Não, nunca ouvi falar da mulher. Mas vou
verificar nos dossiers da Lu. Mais alguma coisa?
- Sim. Arranjou-me uma sombra?
- Desculpe?
- Tem andado um homem a seguir-me todo o dia. Quando saí
para casa da Vanessa e na volta. É um dos vossos?
- Não percebo do que está a falar.
- Estatura média, gabardina azul, oitenta quilos, óculos,
canhoto, polainas. Provavelmente agora estará lá em baixo
na rua, pensando como há-de fimgir que lê um jornal na
escuridão. Se não é vosso é da MI-5. É um amador demasiado
ordinário para ser qualquer outra coisa.
- Como poderia ser da MI-5? Eles não estão metidos nisto!
- Agora estão. Cometi um erro.
- O vigário não vai gostar nada de saber isso.
- Merda. Pode entrar em contacto com a MI-5 e tirar daqui
esse tipo? Talvez haja três, os outros dois nos flancos. É
o procedimento habitual da vossa gente.
- Podia ser que apenas andassem a tentar ajudar.
- Ajudas da MI-5 são como os avisos militares do exército
egípcio. Se você não conseguir livrar-me deles fá-lo-ei eu
e isso vai magoá-los. Não quero que dêem nas vistas e me
estraguem tudo. Lembre-se que eu sou o único que está no
jogo.
- Não só. Conseguimos colocar Miss Coyne.
- Oh?
Yank percebeu instantaneamente que havia quebrado a
segurança.
- Saberá mais coisas depois, quando nos juntarmos com
160
o vigário para as instruções finais. Entretanto, boa caçada
para esta noite. Saberei de si pela necrologia.
Jonathan desligou e dirigiu-se à janela para observar o
homem que o havia seguido desde a casa de Vanessa. Cristo!
Estava a ficar agoniado com a espionagem britânica.
Agoniado com tudo aquilo. Deixou-se dominar pela
fúria, depois controlou-a respirando profundamente. Calma.
Calma. Cometem-se erros quando nos enfurecemos. Calma.
CHELSEA
Quando Jonathan saiu do metro em Sloane Square, ainda tinha
atrás de si o louco de gabardina azul que não o largara
desde a casa de Vanessa. Presumivelmente, Yank não
conseguira penetrar na MI-5 e ordenar-lhes que retirassem a
vigilância. Jonathan resolveu deixá-lo pairar a seu lado.
Pelo menos poderia manter- se de olho nele até ao momento
de o sacudir, logo que a sombra parecesse pôr em perigo o
seu disfarce.
No cimo da escada passou por uma rapariga americana sentada
em cima duma parka. Ela maltratava uma guitarra barata e
choramingava uma canção elegíaca de Guthrie, tendo
escolhido um sítio onde o eco enriqueceria a voz fina com
ressonâncias de casa de banho e lhe permitia deslizar para
fora de notas mal dadas a coberto da reverberação. Estava
descalça e via-se um grande rasgão na sua camisola cor de
caqui, sebenta e informe. A superfície da parka estava
salpicada de moedas pouco valiosas, convidando os
transeuntes a contribuir para a sua manutenção.
Jonathan não lhe atirou nenhuma moeda e o mesmo aconteceu
com o gabardina azul.
Após ter saído da praça, meteu-se consigo mesmo enquanto
avançava em busca do endereço que Vanessa lhe havia dado.
Não tinha o menor desejo de entrar em contacto com as
multidões da rua. Já haviam passado quinze anos desde que
estivera em Chelsea. Nessa altura, alguns dos jovens que
tagarelavam nos pubs e faziam com que uma só chávena de
cappucino durasse duas horas, iam finalmente para casa
pintar ou escrever. Mas não estes garotos. Nada produziam
nem sustentavam. Chelsea sempre tinha sido deliberadamente
* Casaco forrado de pele que se usa nos climas frios. Faz
até parte doequipamento dos exércitos, por vezes. (N. da T).
162
artesanal, mas agora tornara-se mais nova,
menos atraente, mais americana. As head shops* pululavam ao
longo da Safeway e podiam comprar-se jeans em
milhares de variedades. Discotecas. Boutiques com velas
perfumadas e mercadorias de má qualidade. Lojas que
rivalizavam na exibição de nomes obscuros. Raparigas altas
com ombros corcovados trotavam pelos passeios, e rapazes
pavoneavam-se dentro de fatos alargando para baixo,
de veludo cor de ameixa, as bainhas das calças pendidas
como sinos parafuncionais. Uma música odiosa saía das
portas. Pessoas com mochilas e jeans fitavam-no
sombriamente, visto que era um representante do
establishment,
essa classe desprezível que as oprimia e pagava os seus
subsídios de desemprego.
Ele esperara que os jovens poupassem Chelsea à humi lhação
que tinham infligido a São Francisco, Greenwich
Village, Left Bank. E sentia-se zangado por eles o não terem
feito.
Mas, ao fim e ao cabo, condescendeu, uma pessoa devia
ter ideias largas. Aqueles jovens teriam as suas virtudes.
Eram indubitavelmente mais felizes do que a sua própria
geração, subjugada pela compulsão de adquirir. E estes
sentiam-se mais em paz com a vida; mais alerta para os
perigos ecológicos; mais repugnados pela guerra;
socialmente mais conscienciosos.
Estúpidos sem utilidade!
Virou para um dos lados da rua, passou uma ou duas
lojas antigas, e continuou ao longo duma fila de casas
particulares, por trás de gradeamentos de ferro forjado.
Cada
uma delas possuía uma escada de pedra que conduzia à
parte inferior. E uma dessas caves estava iluminada por
uma luz vermelha. Era o Celeiro de Ouro.
Sentou-se a observar o que se passava do seu recesso na
parte de trás duma das grutas de gesso que constituíam a
decoração do Celeiro do Ouro. A luz era fraca e a alcatifa
"Head shops, são lojas em que se vendem posters. incenso,
mari juana, cachimbos, etc... (N. da T.).
163
preta retinta, de forma que os não-iniciados eram obrigados
a ter cuidado com o sítio onde punham os pés. Nas falsas
grutas de pedra estavam embutidos pedaços de ouro dos
loucos*, e todas as outras superfícies, as mesas, o bar,
eram de plástico transparente onde se viam inseridos
pedaços de cequins e metal dourado. A luz difusa provinha
dessas superfícies, iluminando os rostos de baixo para
cima. E a atmosfera entre os objectos era negra.
Jonathan bebeu mais um gole do seu segundo Laphroaig, com
muita água, servido, como todas as bebidas no clube, num
cálice de metal dourado. A característica mais chamativa do
bizarro interior do clube era um enorme slide que
revolucionava no centro da sala. Era iluminado a partir do
interior e cada par de olhos era frequentemente captado
pela mulher que sorria na foto em tamanho natural. Estava
de pé, ao lado do que parecia ser uma enorme lareira de
mármore, a sua mirada firme, tremendamente ma liciosa,
dirigida para a máquina, e, por conseguinte, para cada
homem da sala, sem distinção de lugares. Estava nua e tinha
um corpo extraordinário. Uma pele mulata, cor de café com
leite, seios cónicos e impertinentes, uma cintura breve,
amplas ancas e as pernas perfeitamente modeladas conduziam
o olhar até aos pés pequenos, lindamente formados, com
dedos ligeiramente separados como os dum gato a
espreguiçar-se. O triângulo preto parecia algodão macio,
mas havia algo nos músculos e naqueles dedos abertos que
prendeu a atenção de Jonathan. Estômago, braço, perna e
anca eram um feixe de esguios e fortes músculos debaixo da
empoada pele castanha - cabos de aço jazendo por sob a seda.
Aquela devia ser a Espantosa Grace.
O Celeiro de Ouro era essencialmente uma casa de
prostituição. E uma das melhores. Todo o pessoal - as
meretrizes, os barmen, os criados - eram índios. E a
música, cujo volume era tão baixo que parecia sumir-se
Fool gold em inglês. Pirite de ferro ou de cobre que
parece ouro. (N. da T.).
164
quando se deixava de lhe prestar atenção, era também
índia. Apesar do aspecto de desafogo e sossego o lugar
tinha muito movimento. Chegavam homens, e, durante a
primeira bebida, juntavam-se a uma das raparigas sentadas
aos pares e aos trios nas mesas mais afastadas. Mais uma
bebida ou duas, um pouco de conversa e o par desaparecia.
A rapariga voltava, geralmente só, daí a meia hora. E toda
esta acção era presidida por um mordomo afável e
gigantesco que estava de pé junto à porta, ao fundo do bar,
e
vigiava os clientes e as prostitutas com um grande sorriso
benevolente, a sua cabeça negra muito rapada e brilhante
com reflexos dourados. Nada nas suas atitudes, salvo o
controlo felino do andar, lhe dava o ar de ser um pugilista
profissional, mas Jonathan podia bem imaginar o efeito
resfriador que teria num perturbador da paz, descendo
sobre este como uma máquina sorridente do destino e tra
tando dele com um só gesto rápido - que o espectador
despreocupado tomaria falsamente por uma pancada amigável
no ombro. O gigante usava uma camisola de gola álta
justa e exibia a sua panóplia de músculos tão acentuados
que, mesmo em repouso, parecia ter vestida uma couraça
romana junto à pele. A sua idade oscilaria entre os trinta e
os cinquenta.
Uma das raparigas destacou-se da parceira e aproximou-se
da mesa de Jonathan. Era a segunda a fazê-lo e parecia
realmente muito aproveitável enquanto atravessava a
distância intercalar: busto generoso, pernas compridas e um
traseiro que se movia hidraulicamente.
- Importa-se de me pagar uma bebida? - perguntou
ela sotaque e fraseado revelando ser imigrante recente.
Jonathan sorriu com um ar naturalíssimo.
- Ficaria encantado por lha oferecer. Mas ficaria ainda
mais se você a bebesse na sua mesa.
- Não gosta de mim?
- É claro que gosto. Gosto de si desde que a vi a pri meira
vez. É só aquele... - pegou na mão dela e assumiu a
sua expressão mais trágica. - É que... sabe, eu sofri um
acidente estúpido quando estava a bater em bolas de golfe
no meu chuveiro e... - virou a cabeça para o lado e olhou
para baixo.
165
- Está a brincar comigo - disse ela, sem ter a certeza
absoluta.
- De facto, estava. Mas tenho um conselho muito sério a
dar-lhe. Reparou naquele sujeito que entrou aqui depois de
mim? O que tem a gabardina azul?
Ela olhou em direcção ao canto mais distante, depois
franziu o nariz.
- Oh, bem sei - comentou Jonathan -, ele não é tão boneco
como eu. Mas está a abarrotar de dinheiro e veio aqui
porque é muito tímido junto das mulheres. Quando se
aproximar dele, primeiro vai fingir que não quer nada
consigo. Mas é só fachada. Um jogo que ele faz. Você
agarra-o bem e de manhã terá dinheiro bastante para comprar
um fato ao seu querido.
Ela deitou-lhe um olhar duvidoso, de relance.
- Porque lhe mentiria eu? - perguntou Jonathan, com as
palmas das mãos viradas para cima.
- Tem a certeza?
Ele fechou os olhos e acenou afirmativamente, esforçando-se
por controlar os cantos da boca.
A rapariga deixou-o e depois duma pausa obrigatória no bar,
para não parecer que passara dum peixe para outro, sacudiu
o cabelo para trás e encaminhou-se para o canto designado.
Jonathan sorriu para si mesmo, congratulando-se, bebeu o
seu Laphroaig e permitiu que os olhos vagueassem pela foto
da Espantosa Grace. Encantadora rapariga. Mas o tempo
passava e teria que fazer qualquer coisa depressa se queria
encontrar-se com ela.
- Oh, oh! Talvez não. Aí estava ele.
Como tudo o resto que lhe pertencia, o seu sorriso era
enorme.
- Posso oferecer-lhe uma bebida, senhor? - Tranquila como
era a voz dele tinha uma ressonância de baixo que podia
sentir-se através da mesa.
- É muito simpático da sua parte.
O gigante fez um gesto para o criado, depois sentou-se, não
do lado oposto a Jonathan, como se quisesse conversar com
ele, mas ao seu lado, de forma a olharem juntos a cena,
como velhos amigos.
- É a primeira vez que nos visita, não é?
166
- Sim. Vocês têm aqui um sítio estupendo.
- É agradável. Chamam-me Petit Noel*. - O gigante estendeu-
lhe uma mão tão descomunal que Jonathan se sentiu como uma
criança ao sacudi-la.
- Jonathan Hemlock. Mas você não é índio. Petit Noel riu,
com um som de chocolate quente.
- O que sou, então?
- Haitiano, pelo sotaque. Embora a sua educação o tenha
destruído um pouco.
- Muito bem, senhor! É observador. Na realidade, a minha
mãe é haitiana; o meu pai jamaicano. Ela era prostituta e
ele um ladrão. Mais tarde ele meteu-se na política e ela no
negócio de hotelaria.
- Devia dizer que eles honraram as suas profissões. Ele
riu, de novo.
- Deve ter razão, senhor. Embora eu fosse educado neste
país. Suponho que alguma coisa da língua ficará sempre
comigo. Agora sabe tudo acerca da minha pessoa. Diga-me
qualquer coisa sobre si.
Jonathan foi obrigado a sorrir perante aquela falta de
subtileza.
- Ah, aí estão as bebidas.
O criado não precisara que lhe dissessem nada. Sabia o que
Jonathan estivera a beber e era evidente que Petit Noel
ingeria sempre a mesma coisa: um cálice de rum puro.
Jonathan levantou o copo ao grande slide da Espantosa Grace.
- A senhora!
- Oh, sim! Gosto sempre de brindár a ela.
Bebeu o rum em duas goladas e pousou o gobelet na mesa
dourada.
- Bela mulher - disse Jonathan.
Petit Noel fez sinal afirmativo.
- Estou contente por saber que se interessa por mulheres,
senhor. Começava a duvidar. Mas se está à espera daquela
perde o seu tempo. Ela não vai com clientes. Olhou de novo
para a foto. - Mas, sem dúvida. É uma bela
Noel Pequeno. Em francês no texto. (N. da T. ).
167
mulher! Na realidade é a mulher mais bela do mundo.
Pronunciou as últimas palavras com um encolher de ombros,
como se fosse óbvio para toda a gente.
- Gostaria de a conhecer - replicou Jonathan, tão
casualmente quanto possível.
- Oh, senhor? - Houve uma tensão quase imperceptível dos
seus músculos peitorais.
- Sim, gostaria. Ela nunca cá vem?
- Duas ou três vezes por noite. Mora cá em cima.
- E quando desce vem assim vestida? - apontou o slide.
- Exactamente assim, senhor. Tem orgulho na sua beleza.
- Como é seu dever.
Petit Noel sorriu em resposta.
- É muito bom para o negócio, como pode calcular. Ela vem.
Toma uma bebida no bar. Passeia entre as mesas e
cumprimenta os clientes. Ficaria surpreendido por ver como
as raparigas têm saída a partir da altura em que ela se
retira.
- Isso não me admiraria nada, Petit Noel.
- Ah! Pronuncia o meu nome correctamente. É óbvio que não é
inglês.
- Sou americano. Fico espantado por o ter descoberto a
partir do meu sotaque.
Petit Noel encolheu os ombros.
- Todos os radicais são iguais.
Riram ambos. Mas Jonathan só suavemente.
- Quero conhecê-la - disse, enquanto Petit Noel ainda ria
da piada.
Parou instantaneamente.
- Tem os olhos dum sábio, senhor. Porquê procurar a dor?
Sorriu, e com uma sensação de companheirismo, Jonathan
apercebeu-se de que o sorriso não vinha de dentro. Era um
arreganho subtil, defensivo, dos cantos da boca.
Precisamente o gentil sorriso do lutador que ele próprio
assumia quando queria pôr a vítima fora de combate.
- Porque está tão tenso? - perguntou Jonathan. Com certeza
muitos homens já aqui vieram e expressaram interesse por
aquela dama.
168
- É verdade, senhor. Mas esses homens só tinham em mente o
amor.
- Como sabe que eu não sou um obcecado sexual? Petit Noel
abanou a cabeça.
- Sinto-o. Nós, os Haitianos, sabemos essas coisas. Somos
um povo supersticioso, senhor. Desde o momento em que
entrou aqui que eu soube que trazia sarilhos para a
Mam'selle Grace.
- E você tenciona protegê-la.
- Oh, sim, senhor. Com a minha vida, se tal for preciso. Ou
com a sua, se tristemente chegarmos a isso.
- Não tem dúvidas acerca do que se passará, pois não?
- inquiriu Jonathan fazendo pausas desnecessárias na frase.
- Na realidade não tenho, senhor.
- Há uma expressão para isto na zona montanhosa dos Estados
Unidos.
- Qual é, senhor?
- Enquanto você está a arranjar o jantar eu como uma
sanduíche.
- Ah! O idioma é claro. E acredito em si, senhor. Mas
permanecem os factos de que numa batalha entre nós o senhor
perderia.
- Provavelmente. Mas você não escaparia à dor.
- Provavelmente.
- Farei um acordo consigo.
- Ah! Agora reconheço em si um americano.
- Diga só à senhora que lhe desejo falar.
- Então ela conhece-o?
- Não. Diga-lhe que quero falar-lhe d'Os Claustros e de
Maximilian Strange.
Jonathan esperou pelo efeito das suas palavras em Petit
Noel. Não houve nenhum.
- E se ela não desejar vê-lo?
- Então ir-me-ei embora.
- Oh, isso eu sei senhor. Estava só a perguntar se sairá
sem distúrbios.
Jonathan teve que sorrir.
- Sem distúrbios.
Petit Noel acenou afirmativamente e abandonou a mesa.
169
Cinco minutos depois regressou.
- Mam'selle Grace recebê-lo-á. Mas não agora. Dentro duma
hora. Pode sentar-se e beber, se o desejar. Direi às
raparigas que não é um pato.
O seu tom formal e crispado revelava que não achava
agradável que a Espantosa Grace se dignasse receber o
visitante.
Jonathan decidiu que não esperaria no clube. Disse a Petit
Noel que ia dar uma volta e regressaria daí a uma hora.
- Como quiser, senhor. Mas tenha cuidado nas ruas. É tarde
e há por aí apaches.
E, nesta frase, havia mais ameaça do que conselho.
Jonathan atravessou devagar o emaranhado de ruas estreitas,
as mãos profundamente mergulhadas nos bolsos. Ofogo
agitava-se ociosamente em redor dos candeeiros das
travessas desertas. Tinha feito um gambito* de peão e
passara. Nada perdera mas a sua posição era passiva. Agora
eles faziam os movimentos e ele reagia. Uma hora era muito
tempo. Tempo suficiente para a Espantosa Grace contactar Os
Claustros. Tempo suficiente para Strange decidir. Tempo
suficiente para mandar homens. Talvez tivesse cometido um
erro em não trazer uma arma.
Por outro lado, o vigário dissera que Os Claustros andavam
à sua procura por qualquer razão e tinham-no feito muito
antes da Lu o ter envolvido naquilo tudo. Se Strange
precisava dele porque buscaria pô-lo em perigo? A menos que
soubessem que andava a trabalhar para a Lu. E como o
saberiam?
Era um maldito carrossel!...
Perto duma esquina, encontrou uma cabina telefónica. A sua
razão principal para abandonar o Celeiro de Ouro fora
telefonar a Vanessa e assegurar-se que esta partira para
Devon, saindo da linha de fogo. Enquanto o telefone tocava
sem responder, os seus olhos vaguearam sobre mensagens
rapidamente rabiscadas com um lápis: garatujas, números de
telefone, um anúncio de que uma Betty Kerney adoptara
" Gambito é uma abertura no jogo do xadrez. (N. da T. ).
170
uma exótica dieta de proteínas. Havia uma triste
comunicação desenhada com uma mão exacta, enclavinhada:
Pessoa em idade madura procura companhia de homemjovem.
Passeios pelo campo e pesca. Amizade acima de tudo.
Nenhuma data de encontro, nenhum número de telefone.
Só uma necessidade partilhada com uma parede. Depois do
telefone ter tocado bastantes vezes, Jonathan desligou.
Sentia-se aliviado por saber que Vanessa estava a salvo.
Era quase o momento de voltar ao Celeiro de Ouro
e nunca mais vira o homem da gabardina azul desde que
o deixara a tentar desenvencilhar-se da persistente
prostituta jamaicana, pagando a bebida e recolhendo o
abrigo.
Tudo isto sem despertar atenções dispensáveis. Eram uma
divisão de incompetentes. Tal como a CII.
Durante o seu passeio tranquilo através dofog resolvera o
jogo que faria com a Espantosa Grace. Existiam duas
hipóteses. Numa Strange devia apenas ter-lhe pedido a ela
para o
sondar - descobrir a razão de Jonathan para o procurar.
Nesse caso, Jonathan deixaria que Grace soubesse que ele
estava a par das actividades d'Os Claustros e do facto de
Maximilian Strange desejar contactá-lo por qualquer motivo.
Dir-lhe-ia que estava interessado em algo que desse lucro,
se fosse bastante seguro. No outro caso, Strange devia ter
decidido enviar homens para apanhar Jonathane, levá-lo para
Os Claustros, e então seria importante não parecer curioso
por penetrar lá. Teria de oferecer alguma resistência, a
suficiente para ser genuína. Teria de magoar alguns homens
enquanto tentava não se magoar a si. Uma vez dentro d'Os
Claustros tocaria de ouvido. Seria o cabo dos sarilhos.
Raios! Apenas sabia que Strange andava a tentar encontrá-
lo.
Parou um segundo por baixo de um candeeiro para
reunir toda a sua paciência. A álea fechada que levava à
entrada lateral ficava só a um ou dois quarteirões dali.
Houve um som chapinhado na rua, atrás dele, e voltou-se a
tempo de ver uma figura saltar para fora da poça de luz a
dois candeeiros de distância.
A gabardina azul! A última coisa de que necessitava era
daquele asno da MI-5atrás dele. Isso fê-lo aparecer apenas
para ser descoberto.
171
Houve um momento de tenso silêncio, depois Jonathan ouviu
outro ruído, nascido dofog do outro lado da rua. Viu mais
dois.
Correu.
Estavam apenas a vinte e cinco metros de distância quando
ele irrompeu nas escuras cavalariças do clube e bateu
furiosamente à porta das traseiras. O barulho ecoou através
da caverna de tijolos, mas não houve resposta. Dos caixotes
de lixo e latas vazias que cobriam a álea, retirou uma
garrafa de champanhe que agarrou pelo gargalo, grato pelo
peso do recipiente vazio, enquanto se escondia num nicho
escuro, por trás duma esquina saliente da parede de
tijolos. As três figuras surgiram, penetrando na álea.
Projectadas pela luz dum candeeiro da rua, as longas
sombras caindo à sua frente nas pedras molhadas pareciam
figurantes dum filme de Carol Reed. Jonathan pôde ver as
suas silhuetas delineadas que pareciam negras, dentro do
nimbo defog fosforescente e prateado. Ficou imóvel, o
coração a bater nas têmporas devido ao esforço da corrida e
da zanga pelo facto de aqueles desastrados funcionários do
Governo o fazerem correr perigo.
Pararam a meio do caminho da álea e trocaram murmúrios.
Parecia que um queria continuar e outro achava que deviam
entrar no Celeiro de Ouro e investigar. Após uma certa
vacilação deliberaram entrar no clube. Jonathan colou-se à
parede enquanto se aproximavam. Apanhar os três ia ser
difícil. Quando passavam junto dele a garrafa caiu na
cabeça dum, com um barulho sólido e satisfatório. Os outros
dois saltaram para longe, depois precipitaram-se para ele
com reacções bem treinadas. Mãos embateram em Jonathan; um
punho apanhou-o no ombro; um sapato estalou-lhe na canela.
Ele pulou, varrendo amplamente o ar à sua volta com a
garrafa, o que os fez recuar por um instante. Um agarrou
noutra garrafa que estava num caixote de lixo e arremessou-
lha. Jonathan desviou-se enquanto a garrafa explodia em
fragmentos atrás dele.
Um banho de luz caiu sobre a cena enquanto a porta se abria
nas costas de Jonathan e o volume dominador de Petit Noel
preenchia o umbral.
- Graças a Deus! - exclamou Jonathan.
172
Juntos lançaram-se sobre os desordeiros e tudo acabou em
poucos segundos. Jonathan utilizou a garrafa num deles;
Petit Noel espancou o outro, as palmas das mãos abertas,
golpes fundos de concussão que estalavam contra a cabeça do
homem e a esparramavam contra a parede.
Um deles estava ainda consciente, sentado contra a parede
de tijolos, um fluxo de sangue a correr do nariz e da boca,
onde as mãos de Petit Noel o tinham atingido. Outro estava
amodorrado num semitorpor. Outro ainda era mais um montão
entre as latas vazias.
Petit Noel pegou em cada um por sua vez, pelas lapelas, e
encostou-os à parede com uma mão enquanto lhes abria as
pálpebras com os dedos, verificando profissionalmente o
aspecto e a dilatação das pupilas.
- Vivérão - disse ele à laia de informação.
- É pena.
Petit Noel limpou as palmas das mãos à camisa dum dos
homens.
- Porque não entra e se escova, senhor? - perguntou por
cima do ombro. - Mam'selle Grace vai recebê-lo agora.
- E quanto a estes labregos?
- Oh! Acho que pela manhã já se terão ido embora.
Petit Noel conduziu Jonathan ao seu pequeno quartel-
general, na parte de trás do clube e ofereceu-lhe a sua
casa de banho para que se limpasse. Não estava realmente
ferido. Sentia uma certa dureza no ombro, as calças estavam
rasgadas na canela, onde o pontapé fizera sangue, e experi
mentava a enorme náusea da recessão da adrenalina, mas
ficaria bem. Quando saiu da casa de banho, Petit Noel
saudou-o com um copo de rum que, ao descer, parecia quente
e suavizante.
- Levou um certo tempo a responder à porta.
- Na realidade, não o ouvi bater, senhor.
- Então como é que apareceu? Já agora, os meus
agradecimentos.
- Intuição. Premonição. Como lhe disse sou haitiano.
- Vodu e essas coisas?
- Conhece o vodu, senhor?
- De facto, não.
173
Petit Noel sorriu.
- Ele existe. Passei algum tempo a estudar as implicações
legais do crime cometido sobre a sua influência. Devido aos
limites da minha educação britânica estava apto a
escarnecer primeiro.
- Que limitações são essas?
- As limitações da lógica e da evidência. Do pensamento
sequencial europeu.
- Foi estudante na Jamaica?
- Não, era advogado, senhor.
Jonathan admirou a maneira fria como ele lhe atirava aquilo
à cara.
- Sabe, Petit Noel? Você arranjou uma forma magnifica de
dizer senhor. Quando utiliza a palavra, ela parece um
insulto arrogante.
- Sim, bem sei, senhor.
Petit Noel guiou-o por uma estreita escada acima até ao
primeiro andar onde o ambiente era o indicado para uma
habitação citadina - totalmente diferente das bizarras
decorações do clube. Passaram num corredor e pararam
perante uma porta dupla, de carvalho escuro. Petit Noel
bateu ligeiramente.
- Tenho que o deixar agora, senhor. Pode entrar. Jonathan
tornou a agradecer-lhe pela sua intervenção, abriu a porta
e entrou numa sala luxuosamente mobilada de damasco,
carmesim e mármore italiano.
Grace era, na verdade, espantosa.
Estava de pé no meio da sala, envergando um peignoir
transparente dum diáfano tecido branco. Parado, o seu corpo
estupendo parecia ainda mais sedutor quando coberto com
aquela mistificação de tecido, através do qual os círculos
dos seus mamilos castanhos e o seu triângulo formavam uma
geometria arrojada. Mas foi a sua estatura que fez Jonathan
parar. Não admirava que o fogão de mármore parecesse
invulgarmente alto. A Espantosa Grace media apenas um metro
e trinta e sete.
- Boa noite, Grace - disse ele, reparando no ar sorridente
dos seus compridos olhos orientais.
O nariz dela franziu-se e riu a bandeiras despregadas.
174
- Bom, você tratou muito bem do assunto, doutor Hemlock.
- Sou imbatível. Especialmente quando me apanham de
surpresa.
- Então é isso. - Virou-se e caminhou sobre a espessa
carpeta vermelha em direcção a um agrupamento de móveis
junto da lareira. Os dedos espalhados dos seus pés nus
pareciam rasgar o tecido. - Não fique aí de pé, rapaz.
Venha para aqui e beba qualquer coisa comigo. - Ergueu uma
garrafa de cristal de líquido transparente e encheu dois
copos de xerez, depois instalou-se numa pequena chaise
longue, ocupando todo o espaço duma maneira deliberada que
anulava qualquer possibilidade dele se lhe juntar.
Jonathan pegou no copo e sentou-se defronte dela e junto do
crepitante fogo de lenha.
- Tempos felizes! - exclamou Grace, levantando o copo e
esvaziando-o.
- Cheers! - Engoliu e depois engoliu várias vezes para se
recuperar. Os olhos estavam vidrados e a voz esganiçava-lhe
quando perguntou: - Bebe sempre Everclear puro?
- Queridinho, eu não bebo por causa do cheiro!
- Bem vej o.
Jonathan ficara surpreendido com o sotaque dela desde o
princípio. Presumira que viera - como o resto do pessoal
- das Índias Ocidentais. Mas afinal era americana.
- Omaha - explicou ela.
- Está a brincar.
- Amor, as pessoas não brincam com essas coisas. Dizer que
se veio de Omaha é o mesmo que dizer que se teve sífilis.
Sirva-se outra vez.
- Não. Não, obrigado. É óptimo. Mas não, obrigado.
-Ela riu uma vez mais e era um som esfusiante e contagioso.
- Ei! Diga-me uma coisa. Nada de merdas, agora. Como pode
um tipo como você ser doutor? Não me parece que tenha
perdido tempo com enfermeiras, por trás de biombos.
- Não sou esse tipo de doutor. E você? Como veio parar ao
negócio da carne?
- Oh, só respondendo a um anúncio! Deseja-se saber
175
posição social e financeira. - Deu uma risada. - Mas a
sério, eu estive uns anos em Las Vegas juntamente com
pessoas que trabalhavam em comida exótica. O facto de ser
minúscula fazia com que homens pequenos se sentissem
grandes. Então achei que dirigir era mais divertido que
trabalhar, portanto, juntei dinheiro e... - féz um gesto de
quem varre alguma coisa com a mão.
- Parece que se saiu muito bem.
- Provavelmente isto será meu durante o Inverno. De
repente, o brilho dos seus olhos diminuiu. - Chega?
- Chega.
- Conversa de merda, queridinho.
Jonathan sorriu.
- Mais on menos. Apenas uma pergunta extra. Petit Noel. É
seu amante? Não estou a falar só por uma questão de
autoconservação.
- Está a gozar comigo, homem? Isto é, o tipo é louco por
mim, isso vê-se logo. Calculo que fosse capaz de comer
quase um quilómetro de merda minha só para ver donde ela
sai. Mas não fodemos. Sou muito pequenina e ele é um homem
grande. Furava-me os pulmões.
O fluxo de imagens audaciosas fez rir Jonathan.
- Além disso - continuou ela tornando a encher o copo -, já
não me sirvo de homens. Quando preciso tenho aqui uma
rapariga. As mulheres sabem onde elas mordem e o que
querem. São mais eficazes.
- Como o Everclear.
- Certo.
Ele abanou a cabeça.
- Você é espantosa, Grace. Ela bebeu metade do copo.
- Então? Porque me queria ver?
- Quero ver Maximilian Strange.
- Porquê?
- Hei-de perguntar-lhe quando o vir.
- O que o trouxe aqui?
Jonathan suspirou.
- Por favor, minha senhora. Isso vai demorar-nos imenso.
- Muito bem. Nada de jogar às escondidas. Diga-me
176
porque quer ver Max. Somos sócios. Ou você não sabia? Os
sobrolhos de Jonathan ergueram-se.
- Sim? Sócios equivalentes?
Ela acabou a sua bebida e serviu-se doutra.
- Não. Max não tem equivalentes possíveis! É único no
género. O homem mais belo; o homem mais cruel. Em matéria
de excitação é detentor de todas as patentes.
- Parece que você sente por Strange mais ou menos o que
Petit Noel sente por você.
- Não está muito longe.
Jonathan levantou-se e olhou em volta.
- Grace! Há uma coisa que quero fazer. E você pode ajudar-
me.
- Sim?
- Tenho um problema. Como posso dizer-lho sem a ofender?
Querida, preciso de mijar.
- Bolas! - Ela riu-se. - É ali atrás. Atravessando o quarto.
Quando ele voltou ela tirara opeignoir e estava de pé, de
costas para a lareira, esfregando as nádegas nuas e
esticando-se nos bicos dos pés, junto do fogo.
- Sabe que está nua, minha senhora?
- Gosto de andar por aí em pêlo. Sinto-me liberta. E isso
põe os homens de cabeça virada, e eu deliro porque sei que
não obterão nada. - Disse esta última frase com o mesmo ar
dum soba abissínio.
- Bem, se continua a pavonear por aí esse lindo corpo, um
destes dias ainda será violada.
- Por você? - perguntou com um sarcasmo insultuoso.
- Não, já desisti de violações. A conversa de travesseiro é
demasiado limitada.
Ela fez uma carranca severa.
- Sabe? Se algum garanhão tentar violar-me, não acho que o
vá impedir. Deixarei que continue. Depois apertarei o velho
esfíncter e castrá-lo- ei.
- Que lição seria para ele!...
Mas o seu ar escarninho e os músculos de aço por baixo da
pele de cetim transmitiam a imagem da credibilidade, e
Jonathan não pôde impedir-se de sentir um estremecimento
localizado.
177
A sua viagem à casa de banho fora proveitosa. Havia uma
janela que dava sobre o telhado de metal dum apartamento.
Deixara-a aberta. Se eles viessem à sua procura poderia
fugir por ali, o que impediria que alguém pensasse que
estava extremamente interessado em penetrar n'Os Claustros.
- Diga-me uma coisa, Grace. Quando falou com Strange ao
telefone ficou com alguma ideia acerca do motivo porque ele
queria ver-me?
- O que o faz pensar que eu lhe telefonei?
- Você chamou-me doutor Hemlock. Petit Noel não sabia o meu
título.
A sua compostura felina empalideceu. perceptivelment e.
- Suponho que saí da calhas, não?
- Um pouco. Mas não direi nada ao seu sócio. Ela mostrou-se
aliviada e ele percebeu que Maximilian Strange não tolerava
erro - mesmo dos sócios.
- Quando vem ele ver-me?
- Virão buscá-lo a qualquer momento.
- Oh... huh! Bem, não acho que possa vê-lo esta noite.
Vamos combinar qualquer coisa para amanhã.
Ela sorriu à ideia de alguém pretender alterar os planos de
Max.
- Não. Ele disse esta noite. Ficará lixado se você não
estiver aqui.
- Ele pode aguentar isso e continuar a viver. Naquele
momento preciso soaram passadas do outro lado da porta.
Eram vários homens.
Ela sorriu-lhe e encolheu exageradamente os ombros.
- Demasiado tarde, meu querido.
- Talvez não. Você fica exactamente aí, assenta o seu
rabinho e não tenta deter-me. Tenho um medo horroroso de
raparigas do seu tamanho.
Fugiu para a casa de banho e trepou até à janela, saindo
para o telhado de metal. Enquanto o fazia podia ouvi-la
abrir a porta e falar rapidamente aos homens. Houve ordens
gritadas e um dos individuos precipitou-se para a casa de
banho, enquanto os outros corriam escada abaixo.
Jonathan encolheu-se contra a parede de tijolos junto da
janela da casa de banho. Uma cabeça grande começou a
178
aparecer e ele bateu-lhe com o punho exactamente por trás
da orelha. O rosto foi estampar-se contra o peitoril de
pedra, com um barulho de dentes partidos, e a cabeça
escorregou para dentro com um ruído e um suspiro.
Os olhos de Jonathan ainda não se tinham acostumado à
escuridão, portanto, rastejou com pés e mãos ao longo do
topo do telhado. Bateu numa parede de tijolos e encontrou o
caminho até à esquina. Mas nessa alturajá as pupilas se lhe
tinham dilatado e podia ver vagamente. Por baixo dele havia
um estreito abismo, uma zona negra entre duas paredes de
tijolos sem janelas. Aquilo não parecia levar a lado
nenhum,
portanto, decidiu trepar até mais acima, por entre ofog
sujo,
todo lambusado de gordura citadina. O abismo parecia ter
apenas uma largura de um metro e vinte. Tirou os sapatos e
aproveitando a sua experiência de montanhismo, apertou-se
entre as duas paredes de tijolo, as costas contra uma, os
pés
completamente espalmados contra a outra. Executou uma
esforçada escalada da chaminé, segurando-se na fissura pela
pressão combinada dos pés contra a parede oposta e subindo
centímetro a centímetro, à custa do casaco e duma porção de
pele das palmas das mãos. O edifício na frente alteava-se
para além da sua vista, mas o que ficava atrás tinha apenas
três andares. Quando chegou à beira do telhado de metal
atirou-se para cima dele, com um impulso derradeiro das
pernas, e ficou a ofegar sobre o metal húmido e aos sulcos.
Rastejou através do telhado e olhou para baixo. Havia uma
álea de pedras arredondadas semeada com latas vazias que
parecia ir dar a uma rua. Via-se a luz dum candeeiro
público
distante e ouviu-se o ruído dum tubo de descarga em ferro
fundido que conduzia do telhado ao pavimento da álea.
Longinquamente escutou uma pergunta e uma resposta
gritadas mas sem se aperceber da direcção. A descida foi
extremamente fácil, mas quando pousou um dos pés um pedaço
de vidro partido furou-Lhe a peúga e penetrou-lhe na sola.
- Jesus Cristo! A mesma maldita álea!
Extraiu o triângulo de vidro e cuidadosamente percorreu
o caminho por entre as garrafas despedaçadas.
Ocorreu-lhe como seria irónico, ao tentar não se mostrar
ansioso por entrar n'Os Claustros, se os tivesse enganado
a todos.
179
Mas nesse aspecto não tinha que se preocupar. Houve um
grito. Passos. E ali estavam eles, dois à saída, tentando
cortar-lha a retirada, as suas formas destacando-se no
nimbo luminoso dofog. Moveram-se lentamente na sua direcção.
- Está bem, cavalheiros. Desisto. Vocês ganharam. Mas
ninguém respondeu, e pelo seu inexorável avanço, percebeu
que desejavam exercer alguma vingança por causa do
companheiro que ele atacara, lá em cima.
Justamente nessa altura abriu-se uma porta por trás dele e
foi apanhado por um foco de luz. Era Petit Noel.
- Graças a Deus! - disse Jonathan. Ouviu o som explosivo da
pancada de mão aberta de Petit Noel na parte de trás da
cabeça, mas não a sentiu. Pareceu-lhe que flutuava
horizontalmente e a última coisa de que se lembrou foi de
fazer votos para não aterrar nos vidros partidos.
HAMPSTEAD
Antes de abrir os olhos ou de se mexer Jonathan esperou
até a consciência total ter substituído gradualmente a
vertigem do pesadelo que revoluteava. Sentia o movimento
oscilante do automóvel e à pesada resistência do chão
contra o
seu rosto cada vez que voltavam uma esquina. Estava preso,
mas não havia dor, como deveria haver. O sonho doentio
que tudo isto formava era intensificado pela escuridão,
por tanto, abriu os olhos e encontrou-se a olhar
estrabicamente
para um par brilhante de bicos de sapatos,
indubitavelmente de pele, a oito centímetros do seu nariz.
A luz ia e
vinha em lampejos velozes quando passavam junto de
candeeiros.
Foi quando tentou sentar-se que a dor surgiu - uma
massa informe e desfalecente, como se alguém lhe estivesse
a empurrar um fragmento cortante de gelo através das
artérias do cérebro. Os olhos lacrimejaram-lhe
involuntariamente com a dor mas quando esta passou, passou
completamente não deixando sequer sombra do que fora.
Jonathan lutou para ficar em posição de sentado. Estavam num
táxi. Os três homens observavam os seus esforços com ar
aborrecido, sem falar ou ajudar. Jonathan conseguiu pôr-se
de joelhos, deu um pulo à retaguarda em direcção ao
assento desdobrável e sentou-se nele pesadamente. Havia
dois homens à sua frente, instalados no banco traseiro, e
um
terceiro ao seu lado, no outro desdobrável. Os fios das
gotas
de chuva nas janelas brilhavam à passagem de cada
candeeiro.
Olhou para trás. Não havia número de registo no táxi na
estrutura usual, entre os assentos desdobráveis. Tinham
evidentemente copiado o sistema dos gangs de Chicago,
usando um táxi particular para os transportes básicos - o
seu anonimato veicular permitia-lhes perambular pelas ruas
a qualquer hora da noite sem despertar atenções indevidas.
181
O condutor, imóvel na sua cabina de vidro, pertencia sem
dúvida à quadrilha. Não havia manípulos de portas ou
janelas no compartimento de passageiros. Muito
profissional. Sem ajuda o condutor poderia entregar um
homem dispensando um guarda adicional.
Jonathan avaliou os homens que tinha na sua frente. Podia
esquecer o condutor. Os condutores nunca são líde res. O
homem do assento desdobrável levava a mão à boca
tumefacta e descolorida, tocando cuidadosamente o lábio
superior fendido. Devia ser o tal que tivera o azar de
bater com a cabeça no peitoril da janela da casa de banho.
Inadvertidamente inspirou pela boca e estremeceu de dor
quando o ar frio lhe atingiu os nervos expostos dos dentes
da frente partidos. Jonathan sentiu-se contente por não
estar sozinho com aquele indivíduo. O possuidor dos
sapatos, indiscutivelmente de pele, sentado em frente de
Jonathan, era um homenzinho furtivo com olhos nervosos e
uma ten tativa de bigode. Uma cicatriz em diagonal, mais
seme lhante a um arranhão do que a um corte, corria como um
vinco pegajoso desde a face direita até a um ponto situado
à esquerda, no queixo, interceptando-lhe os lábios e o
bigode
e dando-lhe o aspecto de quem tinha duas bocas. Sentava-se
bem junto ao braço do assento para dar lugar ao outro
homem, cujo tamanho enorme estava preguiçosamente esticado.
Devia ser o chefe do pequeno esquadrão. Jonathan dirigiu-se
a ele.
- Presumo que vamos para Os Claustros? Viscosamente, o
homem grande desviou os olhos de pesadas pestanas, até
pousarem no rosto de Jonathan, sem dar mostras de o
reconhecer - sem sequer o olhar directa mente nos olhos. A
vasta cara era dominada por uma fronte proeminente e as
faces carnudas flanqueavam uma boca oval de lábios
espessos, cor de rim, cujos lábios se mostravam sempre
molhados. Tão grande era o tamanho das pestanas que ele
inclinou a cabeça para trás, expondo a metade inferior das
pupilas.
Jonathan reconheceu o tipo psicológico. Tinha-os encon
trado ocasionalmente quando trabalhara para a CII. Eram
utilizados em multas prioritárias porque eram eficazes,
baratos e disponíveis. Muitas vezes executavam o trabalho
182
molhado sem pagamento. A violência era uma distracção
agradável para eles.
Tentativas de conversa não deveriam dar fruto, portanto,
Jonathan começou a examinar-se. Explorou a base do crânio
com os dedos e sentiu-a apenas um pouco inchada. O nariz
estava bem e podia fechar os olhos rapidamente, o que
demonstrava que não houvera concussão. A pancada de mão
aberta na nuca, com a qual Petit Noel o pusera a dormir, é
um dos primeiros golpes do reportório da violência. Pode
matar sem uma ferida e não se pode detectar sem autópsia,
revelando esta coágulos sanguíneos e capilares rotos no
cérebro. Mas utilizar o golpe sem dano de maior exige um
toque sensível. Jonathan achou-se a admirar a perícia de
Petit Noel. Nada mau... para um advogado.
Apesar do profissionalismo do haitiano, Jonathan estava
numa bodega. As calças apresentavam-se rasgadas e sujas, o
casaco desgastado, devido àescalada da chaminé, enão tinha
sapatos. Para o seu encontro com Maximilian Strange
faltava-lhe o porte social e o ar de quem sai da
alfaiataria de que geralmente desfrutava. Mesmo entre
aqueles brutos sentia-se deselegante.
- Desculpa esses dentes, pá - disse sem a menor
amabilidade. - Vais realmente marcar uns pontos quando
aparecer por aí um maricas que goste do tipo.
O homem do assento desdobrável produziu um som composto de
resmungo e riso de escárnio, que lamentou imediatamente
quando a inalação do ar o fez torcer a cabeça de dor.
O táxi deslizava com facilidade por uma rua pavimentada e
estreita, após a qual surgiram grandes vivendas dos fins do
século xviii. Mas então passaram uma praça moderna
anacrónica - com lojas, que parecia concebida por um
estudante do primeiro ano duma politécnica: Aparentava ser
esculpida em sabão, e a dissonância que introduzia no
distrito expressava eloquentemente o altruísmo que os
ingleses modernos dedicavam à sua herança arquitectónica,
tanto como os Italianos modernos merecem a herança de
eficiência e proezas militares dos antigos Romanos. Depois
voltaram e reentraram numa área de requintadas casas
antigas. Jonathan rrconheceu o distrito de Hampstead; lares
tories por entre inconveniências trabalhistas.
183
O táxi virou, atravessando uns portões de ferro, e entrou
num caminho privado que se encurvava por trás da entrada da
frontaria. Continuaram a contornar, na direcção das
traseiras da casa de pedra, e pararam. O motorista saiu e
abriu-lhes a porta.
Dirigido por cutucadas desnecessárias, aplicadas pelo lado
de trás, Jonathan foi conduzido para uma sala de espera
difusamente iluminada, onde dois dos indivíduos ficaram de
guarda, enquanto o do lábio rachado subiu a escada,
ostensivamente para anunciar a sua chegada. Jonathan
aproveitou aquele tempo para se preparar mentalmente.
Sozinho, desarmado, amarrotado e sem poder mexer-se tinha
de aprontar-se para todas as mudanças e idiossincrasias que
aquela noite podia trazer. Ficou de pé, as
costas contra a parede e os joelhos unidos para suportar o
seu peso. Fechando os olhos, ignorou os guardas enquanto
juntava as palmas das mãos, os polegares por baixo do
queixo, os indicadores fazendo pressão contra os lábios.
Expirou completamente e inspirou muito devagar, utilizando
apenas as extremidades dos pulmões, reduzindo abruptamente
a ingestão de oxigénio. Evocando na sua mente a imagem do
tanque tranquilo, deixou que o seu rosto se aproximasse da
superfície, embora mergulhado.
- Muito bem. Você! Vamos! - O homenzinho com duas bocas
tocou no ombro de Jonathan. - Vamos. embora.
Jonathan abriu os olhos lentamente. Haviam passado dez ou
quinze minutos, mas sentia-se fresco e o seu cérebro estava
calmo e controlado.
Levaram-no por uma escada estreita e fizeram-no atravessar
uma porta.
Estremeceu e levantou a mão para se defender da penosa luz
brilhante.
- Tome - disse o homem com duas bocas. - Ponha
isto.
E passou a Jonathan um par de lentes redondas, verde-es
curo, que se enfiavam como taças nos globos oculares e
tinham um elástico que se passava à roda da cabeça.
Seis lâmpadas solares eram a fonte da incómoda luz
ultravioleta, e numa das baixas mesas de exercício, entre as
184
lâmpadas, estava um homem nu, excepto no que respeitava a
uma escassa bolsa para pousar, levantando-se e deitando-se
enquanto um lânguido massagista lhe segurava os tornozelos
para lhe facilitar o exercício.
Toda a gente na sala usava as taças de vidro verde nos
olhos. Girando em volta Jonathan recordou-se de todas as
vitimas
que vira no Biafra e cujos olhos haviam sido baleados.
- Bem-vindo!... -O indivíduo continuava os seus exercícios,
inclinando-se para a frente até a testa lhe tocar nos
joelhos, e depois deitando-se novamente.
- Bem-vindo a Emerald City, doutor Hemlock. Quantos já fiz,
Claudio?
- Setenta e dois, senhor.
Jonathan reconheceu a voz exactamente um instante antes de
se lembrar do rosto que estava por trás dos óculos verdes.
Era o homem da Renascença, classicamente belo, com quem se
avistara acompanhado por Vanessa Dyke na
Galeria Tomlison. O homem do Cavalo de Marini.
- Suponho que é Maximilian Strange? - perguntou Jonathan.
- Está bem, Claudio. Devem chegar. - Strange sentou-se na
beira da mesa de exercícios e tirou os óculos, enquanto as
luzes se extinguiam. Ao arrancar os seus, Jonathan achou a
luz normal da sala estranhamente fria e
fraca em contraste com o resplendor do lado mais quente do
espectro. - Lamento que tivesse que esperar lá em baixo
enquanto terminei o meu exercício, doutor Hemlock. Mas
rotina é rotina. - Strange estendeu-se na mesa e
Claudio começou a cobri-lo com uma gordura de cor creme,
começando no rosto e pescoço e trabalhando para baixo. - É
um mito popular, doutor Hemlock, que a exposição ao sol
envelhece a pele e causa rugas. Na realidade, é a perda dos
óleos da pele que prejudica a tez. Um tratamento imediato
com lanolina pura compensa-a adequadamente. Você disse que
supunha que eu era Maximilian Strange. Não o sabe,
verdadeiramente?
- Não. Como podia sabê-lo?
- Como, na verdade? Toma cuidado com o seu corpo? - Nem por
isso. Tento impedir que lhe dêem golpes, o espanquem e
coisas desse género. Mas só isso.
185
- Você pratica um erro vulgar. Os homens mostram tendência
por considerar a indiferença em relação à sua aparência uma
marca de rude virilidade. Pessoalmente celebro a beleza, e,
por conseguinte, é claro que celebro o artifício.
Envelhecer não é atraente nem inevitável. A mente é
semprejovem. O desafio consiste em manter o còrpo também
jovem. - Lá estava aquilo outra vez: aquela forma ligeira
de estruturar as frases que apontava para as origens
germânicas de Strange. A outra chave que existia era a sua
pronúncia, nem exactamente britânica, nem exactamente
americana. Uma espécie de mistura de elementos britânicos e
americanos. - Exercício, sol, dieta e evitar os excessos -
continuou ele. - É tudo o necessário para manter o rosto e
o corpo. Que idade julga que tenho?
- Apenas posso adivinhar. Eu diria... cinquenta e um?
Strange fez parar a mão do massagista e voltou-se para
olhar de perto para Jonathan, pela primeira vez.
- Bem! É notável. Para quem adivinha!
- Adivinhei que você nasceu em Munique, em mil novecentos e
vinte e dois.
Era cenário, mas a única coisa a fazer. Jonathan estava
contente com a forma como as coisas já iam tão longe.
Aparentava não esconder nada, nem sequer o que havia de
misterioso na vida de Strange.
Este fitou-o frente a frente, por um momento.
- Muito bem. Vejo que resolveu ser franco. - Depois
explodiu num riso profundo. - Santo Deus, homem! O que
aconteceu à sua roupa?
- Caí por uma parede de tijolo abaixo.
- Que exibicionista! Teve problemas com o Leonard?
- Leonard é esse asno de olhos esbugalhados?
- Ele mesmo. Mas as suas provocações ficarão sem resposta.
O pobre Leonard é incapaz de brincar. É mudo.
Leonard observava friamente Jonathan por baixo das suas
espessas pestanas. O rosto carnudo parecia destituido de
expressões subtis, os músculos pesados respondendo apenas a
emoções toscas, básicas.
Strange saltou da mesa de exercicios e pegou numa toalha.
- Acompanha-me num banho de vapor, doutor Hemlock?
186
- Tenho hipótese de escolher?
- Não, claro que não. E de qualquer forma pode sempre
usar água corrente. - Conduziu Jonathan. - Poucas pessoas
conhecem a maneira adequada de usar lanolina, dou tor
Hemlock. Deve ser aplicada em quantidade logo após o
banho de sol. Depois deixa-se que o vapor derreta o
excesso. Os poros da pele retêm a que necessitam para os
hidratar. - Parou e voltou-se para sublinhar a ideia a
seguir. - O sabão nunca deve ser usado na cara.
- Você perdoar-me-á, Mr. Strange, se eu achar essa
preocupação com a beleza e ajuventude um pouco grotesca
num homem da sua idade?
- Certamente que não. Porque deveria perdoar-lhe?
Leonard acompanhou os dois ao vestiário que separava o
banho de vapor da zona de exercícios. Quando Jonathan se
despiu e enrolou uma toalha à roda da cintura, Strange
informou-o de que a sua estada n'Os Claustros devia ser
prolongada, portanto, tinham tomado a precaução de ir aos
seus quartos e trazer alguns dos seus fatos.
- E enquanto os procuravam, você teve oportunidade
de dar mais uma olhadela em pormenor.
- Exactamente.
- E encontrou?
- Só roupas. Você tem um alfaiate muito bom, doutor
Hemlock. Como o consegue, com aquilo que ganha um
professor?
- Levo uma mala com os almoços.
- Compreendo. Ah, mas é claro! Você ganha bom
dinheiro com os seus livros de arte popular dedicados às
massas. Como deve ser enfadonho para si!
Os três homens entraram na sala dos banhos de vapor,
Leonard parecendo grotescamente cómico apenas com uma
toalha a ocultar o seu corpo de primata forte mas
deselegante. Nem uma só vez, nem enquanto se despia, os seus
olhos haviam largado Jonathan, e, quando se sentara nos
bancos toscos de pinhei ro colocara-se num canto entre
Jonathan e Strange, protectoramente.
Os jactos haviam sido abertos durante um certo tempo e
agora a sala estava saturada de vapor que fazia remoinhar e
ecoar os seus movimentos; a temperatura estava nos
cinquenta e cinco graus. Mas Jonathan não se sentia
relaxado pelo calor e pelo vapor. Durante a tagarelice
anterior conseguira recordar-se da surpresa que tivera ao
descobrir que Strange e o homem da Renascença eram uma e a
mesma pessoa, e agora começava a construir uma história que
lhe servisse de cobertura. Ela ocultava finamente o fundo,
mas não tivera tempo para lhe testar as fissuras.
Strange fechara os olhos e deitara-se de costas, ensopando-
se em vapor e confiando absolutamente na protecção de
Leonard.
- Você já percebeu, é claro, que esta sala dantesca pode
ser a última coisa que verá em vida?
Jonathan, de facto, já tinha percebido.
Strange continuou, com voz ociosa.
- Você procurou impressionar-me deixando apenas escapar
algumas informações sobre o meu passado. Que mais sabe?
- Não muito. Tentei seguir-lhe a pista e entretanto
descobri que estivera no negócio da prostituição, se me é
permitid o simplificar.
Strange abanou uma mão indiferente.
- Também descobri que está ilegalmente no país e, tão longe
quanto consegui ir, que tem trabalhado num ou noutro ramo
do comércio da carne.
- Quais são as suas fontes?
- Isso é comigo.
- Acho que posso adivinhar. Você foi da CII. Era um
assassino, ou para ser cortês, um contra-assassino. A minha
opinião é que descobriu o que queria a partir de antigos
contactos nesse serviço.
- Estou impressionado por saber tanto a meu respeito.
- Eu sou um homem impressionante, doutor Hemlock. Portanto,
diga-me. Porque andava à minha procura?
- O Cavalo de Marini.
- O que lhe aconteceu? Sei alguma coisa da sua situação
financeira. Com certeza não espera ter dinheiro para
comprar o Cavalo!...
- Eu nem sequer gosto particularmente de Marini, nem dos
modernos, já agora.
- Então qual é o seu interesse?
188
- Preciso de dinheiro. E pensei que poderia arranjar
algum.
- Como?
- Tem que admitir que houve alguns aspectos bizarros
no nosso encontro na Tomlinson. Você tencionava vender o
Cavalo, e, evidentemente, por mais dinheiro do que qual
quer um julgaria possível. Como é natural comecei a pensar
nisso e julguei que talvez conseguisse arranjar as coisas
de
forma a obter as minhas vantagens.
- Continue - Strange nem sequer abriu os olhos.
- Bem, a minha avaliação pública da estátua podia
aumentar bastante o seu valor. Justamente nesta altura
improdutiva da critica de arte as coisas mostram tendência
para valer o que quer que seja que digamos que elas valem.
- Sim, conheço a sua estranha situação. Um homem
com olho numa terra de cegos, se quer saber.
- Pensei que poderia estar disposto a partilhar uma
parte do excesso de lucro comigo.
- Não é mal pensado. - Strange levantou-se e atravessou o
vapor espesso até um grande jarro em barro cheio de
água fria. Deitou uma porção pela cabeça e esfregou
vigorosamente o peito. - É bom para tonificar a pele. Quer?
- Não, obrigado. Não quero sentir-me fresco. Quero relaxar-
me e dormir um pouco.
- Talvez mais tarde. Se tudo correr bem vamos cear
juntos, depois do que você poderá dispor das nossas
comodidades, a mais modesta das quais é um confortável
quarto
de cama. Que diria você se lhe contasse que enquanto
andou a ver se me contactava eu fazia todos os esforços
para o encontrar?
- Francamente, duvidaria muito. As coincidências incomodam-
me.
- Hm... Também a mim, doutor Hemlock. Parece que
temos isso em comum. E contudo existem aqui coincidên
cias. É incómodo. A menos que não se trate de coincidên
cias especiais para dois homens que buscam o lucro em
primeiro lugar?: ...
- Pode ser.
Aquele era o ponto perigoso. A única história em que
Jonathan conseguira pensar depressa era na do próprio
189
Strange. Sabia que ele tinha andado a subir a mesma rua por
onde Jonathan descera e sabia da coincidência dele ter
parecido demasiado ampla, mas pelo menos fora capaz de o
mencionar em primeiro lugar. Levantou-se para ir, afinal de
contas, buscar um pouco de água e ao seu primeiro
movimento, Leonard ficou sobre os dois pés, com uma rapidez
surpreendente para um homem do seu tamanho, interpondo o
seu corpo entre Jonathan e Strange.
- Oh! Relaxa-te, mudo!
- Senta-te Leonard. Julgo que o doutor Hemlock tem
consciência da impossibilidade de sair daqui sem permissão.
E acho que percebe como uma tentativa contra mim seria
rápida e vigorosamente punida. Tem que perdoar a Leonard a
sua paixão pelo dever, doutor Hemlock. Está ao meu lado há
talvez quinze anos, deve ser. Gosto realmente muito dele. A
sua devoção canina e a sua força extraordinária tornam-o
muito útil. E tem outras qualidades. Por exemplo, é capaz
de tolerar a dor. Não a dele, é claro. Quando se torna
necessário disciplinar um dos novos que trabalham aqui
comigo entrego-o simplesmente a Leonard para este ter uma
noite de prazer. Durante alguns dias a seguir o desgraçado
pouca utilidade tem no meu negócio, e, às vezes, necessita
cuidados médicos devido a hemorróidas ou coisa assim, mas é
espantoso verificar como lamenta os seus disparates e como
subsequentemente se integra com a maior rigidez nas nossas
regras de comportamento. - Strange fitou Jonathan com os
olhos pálidos, sem expressão. Conto-lhe isto, é claro, por
causa do perigo. Mas é perfeitamente verídico, asseguro-lhe.
- Não duvido nem por um momento. Também mata em seu lugar?
Strange voltou ao banco de pinho, sentou-se e fechoú os
olhos.
- Quando se torna necessário. Mas só quando o outro é muito
bom e merece recompensa. Quando deixou você a CII? E porquê?
- Há quatro anos - disse Jonathan o mais depressa possível.
Então era aquele o estilo de interrogatório de Strange? A
pergunta rápida seguindo-se, sem sequência, a uma conversa
amena. Jonathan teria que apanhar as bolas
190
depressa e fora do campo. Era uma maneira de jogar numa só
direcção.
- E porquê?
- Já tinha que chegasse. Cresci. Ou, pelo menos, envelheci.
Devia ser a melhor maneira de se aguentar. Dizer verdades
banais.
- Há quatro anos, diz você. Bom. Bom. Isso coincide com a
informação que tenho referente a si. Quando primeiro me
ocorreu que poderia ajudar-me no meu projectozinho de
vender o Cavalo de Marini dei-me ao trabalho de meter o
nariz nos seus negócios. Tenho amigos... na realidade,
devedores... na Interpol de Viena, e eles fizeram um pouco
de pesquisa acerca de si. Nem posso dizer-lhe como a minha
confiança aumentou quando descobri que fora um ladrão, ou,
pelo menos, um receptador de quadros roubados. Mas os meus
amigos em Viena disseram que há quatro anos que não
comprava um quadro. Isso deve concordar com a altura em que
deixou essa lucrativa companhia, a CII. Por que trabalhou
você para eles?
- Dinheiro.
- Nem uma ponta de patriotismo?
- O meu pecado é a cobiça, não a estupidez.
- Bom, bom. Aprovo-o inteiramente.
Jonathan reparou que Strange jamais levantava um sobrolho,
ou sorria ou ficava carrancudo. Treinara o rosto para ser
uma máscara inexpressiva. Sem dúvida, para evitar o
desenvolvimento das rugas.
- Acho que já chega de vapor, não acha? - disse Strange,
erguendo-se e mostrando o caminho de volta à sala de
exercícios, onde o homem com duas bocas estava à espera com
um copo de leite de cabra. Strange bebeu-o antes de se
deitar, assim como Jonathan; nas mesas de exercícios. O
massagista esfregou Jonathan com uma toalha áspera antes de
começar a tratar-lhe dos ombros e costas, enquanto Leonard
fazia o mesmo a Strange.
Strange virou a cabeça para Jonathan, com o queixo sobre as
costas das mãos, e olhou para ele casualmente enquanto
perguntava:
- Quem o visitou em Covent Garden?
Jonathan riu, enquanto pensava rapidamente.
- Há quanto tempo estou sob vigilância?
- Desde a véspera do dia em que nos encontrámos na
Tomlinson. O meu homem perdeu-o de vista aí, durante um
certo tempo. Havia muita gente. Esperou por si no seu
apartamento.
- Qual apartamento?
- Ah! Precisamente. Nessa altura não sabíamos nada da
residência da Baker Street. Você usava-a muito pouco. Os
meus rapazes esperaram por si algum tempo no apartamento de
Mayfair antes de um inquérito posterior revelar a
existência da habitação da Bàker Street. Na altura em que
lá chegaram você saíra, mas o apartamento não estava vazio.
Havia um homem na sua casa de banho. Um homem morto. Mas
você tinha desaparecido.
- Ei! Cuidado! - gritou Jonathan.
- O que se passa?
- Este filho duma puta com unhas de aço está a arrancar-me
os tendões!
- Sê gentil com o doutor, Cláudio. É um hóspede. Sim, quase
o perdemos de vista até eu receber a chamada de Grace, umas
horas depois. A querida Grace é minha colega. Uma amiga
íntima e sincera.
- Portanto?
- Portanto, eu gostaria de uma explicação qualquer que
juntasse estes fragmentos. E espero que seja convincente.
Agradar-me-ia uma noite de conversa civilizada.
- Bem, já lhe disse que estava a ver se entrava aqui, na
sua casa. Não tinha nenhuma ideia de que você também andava
à minha procura, portanto, tentei a Espantosa Grace.
- Sim, mas como soube que ela estava ligada a mim?
- Foi você que o disse. Ainda tenho alguns contactos na
CII. Ei! Cuidadinho, seu bastardo com mãos de presunto!
- Jonathan sentou-se e empurrou o massagista.
- Oh, muito bem, então - proferiu Strange um pouco
irritado. - Prefiro encurtar a minha massagem do que ouvi-
lo a queixar-se da sua. Mas deveria realmente estabelecer
uma rotina para se manter em forma. Olhe para mim! Tenho
mais dez anos que você e pareço dez anos mais novo.
192
- Temos prioridades diferentes na vida.
Strange conduziu-o a uma esplêndida sala de vestir, com as
paredes cobertas de espelhos emoldurados em bronze. Os
reflexos dos três homens ecoavam infindavelmente e Jonathan
achou que era a figura principal num requintado bailado
sincronizado por alfaiates, executado por grupos de
Hemlocks e grupos de Stranges, enquanto grupos de Leonards,
de pesadas pestanas, olhavam, de faces impassíveis, as
cabeças inclinadas para trás sobre pescoços espessos.
Quando viu a sua roupa, Jonathan sentiu um sopro de alívio.
Tinha estado a magicar por que Strange não mencionara ter
encontrado pelo menos um dos revólveres, quando os seus
homens tinham ido buscar as roupas. Mas estas eram
provenientes do seu apartamento de Mayfar, e não do da
Baker Street. A sorte estava a favor dele. Mas ainda
passeava sobre a lâmina de uma navalha, sensível e
desequilibrada desde o início, sem saber nunca que porção
de verdade devia expor para neutralizar os factos já na
posse de Strange. Até ali procedera bem, mas tivera que
tornear o fluxo inquisitório, de tempos a tempos, com uma
conversa inconsequente ou queixas acerca do massagista para
ter tempo de readquirir a calma e tomar nova direcção. Até
ali fora plausível, se não completamente convincente. Mas
havia grandes buracos - como o homem morto na casa de banho
- que certamente Strange iria testar. E um elo estava ainda
aberto. Fechá-lo poderia expor Vanessa Dyke.
mas é um erro terrível não dar ao corpo o trabalho e a
dieta necessários para o conservar jovem e atraente - dizia
Strange. - Bem sei que as rotinas são estrénuas e as
restrições irritantes, mas nada que valha a pena é jamais
barato.
- É engraçado. Lembro-me perfeitamente de ficar convencido,
por causa duma canção da época da Depressão, que as
melhores coisas da vida são grátis.
- Restos de opiatos. Autoconvencimentos dos acomodados para
desculparem os seus malogros da vida e tornar menores as
aquisições dos outros. Tanto quanto me lembro, essa canção
insípida sugeria que o amor, em particular, era gratuito.
Meu caro senhor, o trabalho da minha vida tem- se
193
baseado no conhecimento de que o amor - tecnicamente
competente e interessante - é bastante caro.
- Talvez a canção usasse a palavra num sentido diferente.
- Oh, bem sei o tipo de amor que significava. Fantasias dos
trovadores do século catorze. Amizade enraizada.
Criancinhas sem graça; partilhas de sonhos pegajosos e de
aspirações espalhafatosas; promessas de dependência
emocional que passaram por constância; manipulações desajei
tadas nos assentos traseiros dos automóveis; a doçura do
leito conjugal. Esse tipo de amor pode ser considerado
grátis e avaliado como precioso pelo preço. Mas de facto
não é, de forma alguma, grátis. Paga-se infimdavelmente
pelo amadorismo ordinário do amor romântico. Assumem-se
eternas obrigações contratuais nos termos das quais os
sócios podem desgastar-se um ao outro infinitamente e num
aborrecimento sem fim. Contudo, suponho que lhes falta o
mérito para merecer mais, e, provavelmente, a imaginação
para desejar mais. Abrisse eu uma noite as portas d'Os
Claustros para um indivíduo dessa laia e ele cambalearia
até encontrar lá em baixo nas cozinhas alguma cozinheira
gentil ou lavadora de pratos que pudesse ser a alma gémea e
o conseguisse entender e tratar dele para sempre. Cá
estamos! Vestidos e civilizados. Vamos tomar um ligeiro
refresco?
- Se o desejar.
- Bom. Ainda há um ou dois pontos que pretendo clarificar.
- Pessoalmente gostaria que voltássemos ao tópico do Cavalo
de Marini. Focando a minha atenção sobre o lucro que daí
poderia advir.
Strange riu.
- Em devido tempo. Afinal de contas, não estamos
absolutamente certos que você consiga sobreviver a este
interrogatório, pois não? Vamos.
O espelho central abriu-se como uma porta, misturando os
grupos de imagens reflectidas nas outras paredes do quarto
numa confusão tremenda. Passaram para uma pequena sala de
estar, difusamente iluminada, do tamanho e forma duma de
projecção e com paredes de vidro. Três
194
delas davam para o salão principal d'Os Claustros; uma
sala grande, brilhantemente iluminada em estilo Art Deco.
Contas de vidro, folhagem feita à máquina, motivos
angulares repetidos, desenhos de arco-íris e de alvoradas
impressos em alumínio saliente nos painéis das paredes.
Os clientes trajavam fatos extravagantes fornecidos pela
gerência; e pastores, demónios, inquisidores, cavaleiros e
ratos Mickey passeavam sem destino certo, tagarelando,
bebendo, rindo. Mas tudo aquilo parecia uma pantomima;
o vidro era à prova de som.
Movendo-se por entre os clientes via-se meia dúzia de
anfitriãs em estilo agarotado; compridos colares de contas,
cabelos aos caracóis, seios apertados sob vestidos soltos
de
seda, peúgas enroladas expondo joelhos avermelhados e
com covinhas. Com as suas pestanas artificiais em estilo
surpresa afectado, os seus sinaizinhos e lábios de abelhas
sugadoras, pareciam manequins nas páginas das revistas de
modas enquanto iam servindo bebidas e canapés exóticos,
ou se curvavam sobre os clientes em conversas excitantes e
namoradeiras.
Uma das clientes, uma Catarina de Médicis, de idade
incerta, com a pele do rosto esticada por meio da operação
de estética que não incluíra a estrutura, aproximou-se da
parede de vidro e olhou-se sem vergonha. Molhou a
extremidade do dedo na ponta da língua e ajustou por um
momento o eyeliner; depois, ajeitou a parte de trás do
cabelo e deitou um longo olhar apreciativo de relance para
dentro da sala, antes de girar para acolher um ladrão de
estrada que se aproximava com o seu rosto ossudo, um
sorriso lamuriento, e o cabelo liso da sua classe social.
- São espelhos só com um sentido - explicou
desnecessariamente Strange, enquanto se sentava na profunda
cadeira de couro depois de ter endireitado cuidadosamente o
vinco das calças. - A decoração foi ideia de Grace. Há algo
de fundamentalmente mau naquela gente dos anos vinte
que parece libertar os nossos clientes.
Jonathan sentou-se junto da parede duma só via e olhou
para fora, com os braços cruzados no peito.
- A Art Deco foi um momento monstruoso por que
passou a arte. Quando a decadência da espalhafatosa Arte
195
Nova impregnou as massas através do intermediário da
reprodução mecânica, era inevitável que os artistas
semitreinados, sem dotes, auto- indulgentes, proclamassem a
mixórdia resultante como uma nova forma de arte. Afinal de
contas, estava ali qualquer coisa que até eles conseguiam
fazer. Do meu ponto de vista o recente revivalismo da Art
Deco acusa o artista moderno e a crítica moderna, gente que
comunica e torna a comunicar continuando, apesar de tudo,
indistinta.
- Oh, lamento terrivelmente que o nosso gosto não lhe
agrade. Mas de gustibus...
- Que disparate! É a única coisa que ainda vale uma disputa.
Strange riu superficialmente. O riso era a sua substituição
do sorriso, preferido por não necessitar de mexer as
bochechas. E havia muitos tons no seu riso como havia
nuanças nos sorrisos das outras pessoas.
- Prefiro a tudo esta pequena sala. Chamamos-lhe o Aquário.
Mas é um aquário do avesso. O peixe está lá fora no salão e
os observadores divertidos estão na taça. E é interessante
apercebermo-nos de que aquela sala contém uns bons
cinquenta por cento do verdadeiro poder governativo da Grã-
Bretanha.
- Juntam-se todos aqui para se aliviarem do pesado fardo da
chefia, perdendo-se no êxtase das suas orgias planeadas?
- Não devia zombar das minhas ofertas. É bastante natural
que os meus clientes esperem algo fora do vulgar: raparigas
pré-núbeis, catamitos, Jellatio - esse tipo de coisas.
Ninguém os pode censurar. Vir aqui para provar sexo vulgar
seria como encomendar salsichas com batatas fritas e dois
vegetais no Maxim's. Mas o que é realmente divertido é que
metade dos idiotas que estão ali não sabem o que se passa
na nossa esplêndida cloaca. Pensam que Os Claustros são
apenas um clube caro, moderno, bizarro, com comida, vinho e
encantadoras anfitriãs.
- Oh! As raparigas agarotadas não são prostitutas?
- Oh, não! Jovens modelos, aspirantes a actriz, estudantes
universitárias - só vestidas para a montra. As mais
empreendedoras e prometedoras são promovidas a actividades
mais lucrativas lá em cima, mas a maior parte delas ficam
connosco apenas um mês, mais ou menos, depois emigram para
tarefas mais aborrecidas: carreiras, casamen tos, coisas
desse género. Substituímo- las constantemente.
Mas estou a esquecer os meus deveres de anfitrião. Tinha-
lhe prometido um refresco. Posso sugerir-lhe levedura de
cerveja em sumo natural de tangerina?
- É tentador, mas acho que prefiro uísque. Tem Laphroaig?
Strange fez a pergunta ao activo homem com duas bocas que
estava de pé por trás deles e os havia acompanhado ao
Aquário enquanto Leonard se vestia.
- Vou ver, senhor. - Mas não partiu enquanto Leonard o não
substituiu.
- Tenho receio de não saber o suficiente das marcas mais
requintadas de uísque - disse Strange. - Nunca bebo álcool.
Já agora, conte-me tudo acerca do homem que
estava na sua casa de banho. Quem era?
- Não sei - respondeu Jonathan o mais suavemente
que conseguiu.
Já antecipara a táctica para as perguntas repentinas.
- Quem o matou?
- Eu.
Strange olhou para Jonathan com franca admiração pela
rapidez da resposta.
- Continue - disse ele após um aceno aprovador.
- Foi por causa desse homem que comecei a procurá-lo. Você
tinha descoberto que eu costumava trabalhar para a CII em
contra-assassínios. O trabalho não era tão perigoso como se
pode pensar. Como os meus alvos eram homens que tinham
assassinado agentes da CII, eles provinham tipicamente
desse nível social que ninguém lamenta ou vinga - de
qualquer forma não pelos meios naturais da lei. E como eu
os encontrava fortuitamente, nunca me puderam ligar à sua
morte por um motivo. Caracteristicamente eu nunca via o meu
alvo antes do momento do golpe. Mas... como a sociedade
ainda não está preparada para deter o problema da
superpopulação, esterilizando e terminando o enraizamento
do stock genético improdutivo, às vezes os meus alvos
tinham parentes.
197
A partir das primeiras palavras que ele balbuciou, antes de
eu o alvejar, pareceu-me que era o irmão dum alvo já
esquecido. Tinha vindo para limpar a honra da família,
fosse ela qual fosse.
- Mas você baleou-o primeiro!
- Precisamente.
- E deixou-o na sua casa de banho?
- Não limpei o chão. As casas de banho têm mosaicos que se
podem lavar com facilidade.
Strange acenou afirmativamente.
- Estou a ver.
Leonard entrou e substituiu o homem com duas bocas que foi
em busca das bebidas.
- Certamente se viu rapidamente livre do corpo. Os nossos
homens voltaram aos seus aposentos algumas horas depois de
descobrirem o cadáver e ele já tinha desaparecido. Como
arranjou isso?
- Vou-lhe propor uma coisa. Eu não lhe pergunto como se
dirige uma casa de prostitutas e você não me pergunta nada
sobre assassinios.
- Parece bastante justo. Mencionou que esse assunto da casa
de banho estava de certo modo ligado ao desejo de penetrar
n'Os Claustros. Pode explicar-me um pouco melhor?
- Enquanto o pobre idiota gaguejava a forma como tinha
andado há anos na minha pista deixou escapar o nome da
pessoa que me assinalara. Estava a apontar-me uma arma à
cara e suponho que julgou que eu não viveria o suficiente
para beneficiar da informação.
- Já agora, como matou você o homem?
- Com a sua própria arma.
- Como conseguiu fazer isso?
- Como consegue você impedir que as suas miúdas apanhem
gonorreia?
Strange riu-se.
- Está bem. Está bem! Continue.
- O informador era um homem altamente colocado na CII. Um
homem que nunca me gramara porque eu jamais deixava passar
as oportunidades de apontar as tolices mais espantosas
daquela organização asinina e inábil. Tendo
198
todas as razões para crer que vai continuar a assinalar-me.
E um belo dia alguém pode ter sorte.
- Porque não mata esse homem?
- Ele conhece-me. Nunca cheguei suficientemente perto dele.
Portanto, teria de encontrar alguém. E para isso necessito
de muita massa. Eis porque o negócio do Cavalo de Marini me
atraiu.
- E então começou a procurar-me?
- E então comecei a procurá-lo.
Já estava. A sua história era improvisada e fraca; cobria
alguns acontecimentos importantes com aquele pouco de
tecido fino com o qual se fabrica uma boa mentira. Agora já
nada havia a fazer senão ficar sentado e ver se pegava ou
não.
Strange manteve-se silencioso por um tempo, os olhos
pálidos fleumaticamente fitando a cena muda do salão que se
desenrolava na sua frente. Depois abanou a cabeça devagar.
- É possível. Tanto as suas reacções de agora como as
minhas pesquisas no seu passado parecem confirmar essa
história. A única coisa que me perturba é a coincidência de
tudo isto. Mas... suponho que as coincidências existem.
Virou-se para Jonathan e deixou pousados neste os seus
olhos sem cor. - Porque não ceia comigo e com Grace esta
noite? Podemos falar dos pormenores da venda do Cavalo de
Marini. Presumindo que tudo corre bem, você poderia mais
tarde aproveitar os nossos entretenimentos exóticos. Em vez
duma bebida para dormir.
- Tive um dia exaustivo.
Strange riu.
- Se não fosse tão tarde e as ruas não estivessem vazias,
eu tentaria o seu apetite fatigado enviando dois dos meus
homens numa carrinha para apanharem algo para si, mesmo
fresquinho. Uma estudante a caminho de casa ou talvez uma
freira acabada de sair do confessionário.
- Você não tem problema algum com essas tipas de quem abusa?
- Oh... não, se estiverem adequadamente preparadas. Usamos
uma decocção de alucinogéneos e cantáridas que parece ser
muito eficaz. Oh, meu caro doutor Hemlock!
199
Gostava que pudesse ter visto a nuvem de desgosto que
cobriu a sua cara. Eu julgaria que possuía uma consciência
mais coriácea do que isso.
- Não é consciência. Apenas gosto!
- Neste negócio só o excêntrico traz lucro. Os componentes
básicos do sexo são tão vulgares: um pouco de calor, um
pouco de fricção e um pouco de lubrificação. Devemos
descascar bastante essas matérias toscas e baratas se temos
esperança de as vender com altos lucros. A maneira de as
apresentar é tudo. Mas, ah... cá vêm por fim as nossas
bebidas.
O homem com duas bocas entrou através da porta de espelho
trazendo uma bandeja com dois copos. Jonathan não pôde
reprimir um gesto de repugnância quando olhou para o de
Strange e viu o pó acastanhado já misturado no sumo de
tangerina e acumulando-se no fundo. Strange bebeu um pouco
de líquido e depois fez rodar o copo para que a levedura de
cerveja ficasse em suspensão temporária enquanto ingeria o
resto.
- Parece horrível - comentou Jonathan.
- Uma pessoa habitua-se. De facto, quase passa a gostar.
Jonathan virou-se numa atitude de autodefesa gastronómica.
Lá fora, no salão, uma das agarotadas anfitriãs chamava a
sua atenção. Enquanto parolava com um cliente habitual
sacudiu para trás uma grande madeixa de cabelo cor de
âmbar. Estava apenas a alguns centímetros da parede de
espelho e Jonathan viu o verde-garrafa dos seus olhos.
- O que lhe interessa tanto lá fora? - perguntou Strange,
juntando-se- lhe perto da janela.
- Os seus clientes - replicou o outro, indicando um grupo
de homens falando com uma gravidade tremenda, absolutamente
ignorantes do efeito risível dos seus fatos exóticos.
- Hm... Idiotas chapados. Olhe para eles! A desempenharem o
papél enfadonho da autoridade e do poder. Discutindo
pomposamente as manigâncias do Governo. Estão acabados como
povo, os Ingleses, mas não têm o bom senso de o
verificarem. Há um momento em que as leis de Darwin se
aplicam tão bem às nações como aos indivíduos
200
quando os fracos e incapazes desaparecem. Se não fossem os
sentimentos das outras nações - da sua em particular,
doutor Hemlock - mil novecentos e cinquenta teria
assinalado o fim deste organismo social contaminado. Gosto
de os fazer vestir assim e eles adoram. É uma
característica nacional - a mera aparência, o faz-de-conta.
Uma nação, cujo povo aspira a ser o que não é. O que,
provavelmente, conta na produção de actores tão dotados.
- Você despreza os Britânicos, então?
- Eu diria que zombo deles.
- Mas eu julgava que os Alemães, em vez disso, os admiravam
e imitavam.
- Oh, temos muito em comum. A nossa fraqueza, para
especificar. A organização do nosso exército foi copiada da
deles. Foram os Ingleses, sabe, que primeiro experimentaram
os campos de concentração como veículo para a solução final
dos problemas genéticos.
- Não, não sabia.
- Oh, sim. Na Guerra dos Bóeres. Morreram vinte e seis mil
mulheres e crianças de doença, de desnutrição e falta de
cuidado. Vitríolo no açúcar; pedaços de metal implantados
na carne - esse tipo de coisas. Oh, sim, os Ingleses têm
sido os líderes mundiais em muitas coisas. Mas não durante
muito tempo. Ao entrarem para o Mercado Comum tornaram-se o
país economicamente doente da Europa. Dentro de quinze anos
só a Espanha e Portugal terão um nível de vida mais baixo.
E a culpa é só deles. Com uma governação míope e os
trabalhadores mais mandriões e menos eficazes da Europa
sofrem de incompetência congénita. Não é a ineficácia
plácida e feliz dos Latinos com a sua mentalidade do
deixar-para-amanhã e a sua lassidão hedonista. Não, a
incompetência britânica é intrincada e elaborada. É uma
incompetência azafamada e nervosa que não compensa em
encanto e qualidade de vida o que sacrifica em
produtividade. Os Bretões têm-se tornado um compromisso
entre os Continentais, que costumavam desprezar por desdém,
e os Americanos, a quem agora desprezam por inveja. É um
país com a tecnologia do Velho Mundo e a beleza do Novo. E
é tudo o que há a dizer sobre os Ingleses.
Jonathan ia protestar acerca do ataque gratuito contra
aqueles que o haviam recebido quando Strange continuou.
- Sabe, durante a guerra havia uma piada habitual que se
utilizava para troçar do exército belga. Costumava
perguntar-se: O que faria você se um soldado belga lhe
atirasse uma granada de mão? E a resposta era: Puxava a
cavilha e atirava-a outra vez para ele. Se se fizesse a
mesma pergunta acerca de um soldado britânico ela seria
totalmente académica, porque as granadas de mão chegariam
seis meses após a data prometida, a mão-de-obra seria
defeituosa e o exército não estaria nos seus postos.
- Se eles o aborrecem tanto, porque está aqui?
- A policia, meu velho! É um mito popular que os criminosos
ingleses são os mais espertos da Europa, mito esse
dificilmente controlado pelos cérebros infantis de Conan
Doyle e Fleming. Esta gente orgulha-se dos seus ladrões de
comboios e vigaristas, dos seus Robins dos Bosques de
Stepney Green. É típico dos seus wetanschauung com antolhos
nunca lhes ocorrer que não é a astúcia e a esperteza dos
seus pobres valentões que contam, mas sim a monumental
incompetência da sua polícia. Para um homem com a minha
profissão a polícia inglesa é a mais cómoda da Europa, tal
como a holandesa é a menos cómoda. É claro que se se tratar
de liberdades civis será quase o contrário. Com certeza a
esta hora a mesa já deve estar posta para a ceia. Deve
estar ansioso por encontrar outra vez a Espantosa Grace.
A conversa na pequena sala apainelada foi brilhante e
oblíqua, nunca se tocando no assunto do Cavalo de Marini
nem sequer nos acontecimentos que tinham dado origem àquela
ceia prematura e peculiar. A Espantosa Grace conduziu a
conversa com a perícia duma gueixa, dando a ambos os homens
oportunidades para exibirem a sua finura e fazendo
fervilhar tudo com o toque pessoal do mundo da ribalta.
Como era preferência sua nos momentos sociais encontrava-se
nua, e, portanto, a sala mantinha-se aquecida e acolhedora
graças aos bons ofícios dum aquecedor a gás colocado no
chão de uma curiosa lareira de ferro forjado. Enquanto ela
e Jonathan comiam carneiro assado, Strange ingeria uma
série de pratos que exibiam substâncias pálidas
202
com aromas farinhentos. Em vez do vinho, que os outros
apreciavam, bebia leite de cabra. Apenas na fruta e no
queijo convergiram as dietas dos três. O tabuleiro dos
queijos continha vários, embora todos do mesmo tipo. Havia
dinamarquês azul, Roquefort, Gorgonzola e Stilton. Strange
explicou que, a seguir ao iogurte, era o queijo de veios
azulados o melhor para a digestão. Os frutos tinham
crescido todos organicamente, sem insecticidas, e não se
viam
bananas, as quais, ao que parecia, apenas se deviam comer
nos trópicos onde amadureciam naturalmente.
Jonathan admirou a forma como a Espantosa Grace
desempenhava o papel de anfitriã, entronizada na sua cadeira
especial - mais elevada - e comentou de passagem que ela
tinha todos os predicados sociais da filha de um pároco,
juntamente com alguns dos tradicionais apetites suspeitos.
- Mas eu sou filha dum pároco - respondeu ela, rindo
abertamente. - Embora nem toda a gente tenha ouvido
falar na Primeira Sinagoga Evangélica do Senhor e Todas
As Suas Obras Abençoadas.
O homem com duas bocas trouxe brande e café num
tabuleiro, juntando-se depois a Leonard, encostados à
parede numa vigilância silenciosa.
- Há uma certa vantagem social em comer da maneira
destrutiva como vocês dois parecem gostar - declarou
Strange. - A chegada do brande é o sinal convencional
para se falar de negócios. Como eu próprio não bebo, posso
utilizar os vossos com esse objectivo.
- Bem, se as coisas vão tornar-se sérias - disse Grace
-vou enfiar qualquer coisa. Não quero que as minhas
maminhas bonitas distraíssem ninguém.
Jonathan replicou que era uma atitude prudente.
- Muito bem - começou Strange, tirando da manga
um imaginário grão de poeira. - Como sabe tenciono
transformar o Cavalo de Marini em dinheiro líquido. Na
outra noite, quando lhe falei nessa possibilidade, você
disse
que os cinco milhões de libras que eu esperava obter
causariam alguns comentários nos círculos artisticos.
- Eu disse: mais do que comentários.
- Mesmo que a figura fosse vendida em hasta pública no
Sotheby's?
203
- Especialmente aí. Marini ainda está vivo; o seu trabalho
carece dos créditos da morte. E, afinal de contas, o homem
é um moderno.
- Sim, estou a par das suas preferências reaccionárias em
matéria de arte. Li um ou dois livros seus para ver se
entendia a sua personalidade. Mas aqui não está em jogo o
valor artístico abstracto. No que eu estou interessado é em
alcançar o preço que desejo sem que isso se torne público.
Mais especificamente, doutor Hemlock, quero quarenta e oito
horas desde o momento da venda até haver qualquer reacção
oficial. Pode conseguir isso?
- Por um certo preço.
- É o meu tipo de homem! - exclamou Grace.
- Qual?
- Bem, como é natural gostaria de obter tudo que o mercado
pudesse dar- me. Mas receio bem que a minha cobiça nativa
tenha que ceder lugar a um genuino interesse pela
sobrevivência. Contei-lhe que tenho que pagar a um homem
que ponha fora de circulação aquele funcionário da CII,
antes que ele me assinale outra vez. Calculo que isso me
custe cinquenta mil dólares.
- Tanto?
- É um homem difícil de alcançar, muito bem oculto.
- Muito bem, cinquenta mil dólares, então.
- Um pouco mais, receio. Para levar isso a cabo,
necessitarei de gorjetas para distribuir entre os críticos
locais e a gente dos jornais - o mais indirectamente
possível, é claro.
- Dê-me um total - cortou Strange.
- Trinta mil libras.
Strange e Grace trocaram olhares.
- Os seus serviços são caros - comentou Strange.
- Oh, por favor!... Se você está a apontar para os cinco
milhões, então...
- Sim. Está bem. Trinta mil, então. Mas deixe-me esclarecê-
lo, como preito de amizade, que seria uma loucura da sua
parte fazer jogo duplo neste assunto.
- Você açular-me-ia o mudo, não?
- Sim, de facto. E tenho a impressão de que Leonard não
está muito louco por si, depois do prejuízo que infligiu
aos dentes do colega dele.
204
- Se está a preparar-se para isto, há algumas coisas que eu
tenho que saber acerca do assunto.
- Tais como?
- O Cavalo de Marini é legalmente seu?
- Oh, sim! Recibo de venda e tudo.
- Julgo que vai entregá-lo ao Sotheby's, para o leilão?
- Na manhã desse dia, sim.
- Onde está ele agora?
Strange voltou-se para ele devagar, como ùma arma à procura
de alvo.
- Não é nada da sua conta. Está perfeitamente a salvo e
pode aparecer de repente, quando eu quiser. Mais alguma
coisa?
- Uma. Quanto tempo terei para preparar tudo isto?
- O leilão é na quarta, de manhã.
- Quatro dias? Tenho apenas quatro dias?
- Terão que chegar. Grace e eu não podemos permitir que se
protele. E de qualquer forma, a minha afeição pelos
Ingleses não é ilimitada. Ficarei contente ao ver o fim
desta pequena ilha estreita.
Grace levantou-se e espreguiçou-se, as unhas compridas
brilhando no ar, o pequeno peignoir subindo acima das
nádegas tensas, os dedos abertos arranhando a alcatifa.
- Acho que vou ao Aquário tomar uma última bebida. Talvez
um olhar aos clientes me entusiasme.
Sorriu e abandonou a sala. O ondular do seu corpo tenso,
por baixo do tecido leve, fez parar a conversa até ter
desaparecido.
- É um bombonzinho simpático! - comentou Jonathan.
- Oh, sim. Gosto imenso de lhe dar prazer. Arranjo-lhe
acontecimentozinhos complicados. É tão ousada e inventiva
que é muito divertido planear qualquer coisa para ela.
- Você é um homem abnegado.
Strange riu-se.
- Meu caro! Eu nunca me meto em actividades sexuais.
- Nunca?
- Não, desde rapaz. Passei a vida em estabelecimentos desse
tipo. Como deve saber uma das práticas dos fabricantes de
doces é deixar os empregados comerem à sua vontade
205
quando começam a trabalhar. Dentro de poucos meses ficam de
tal forma enjoados que nunca mais põem as mãos na
mercadoria.
- E você nunca...
- Nunca. Demasiado esgotante. Demasiado nocivo para o
corpo. Mas tenho o meu próprio vício. Infelizmente, é o
mais caro do mundo.
Jonathan pensou no corpo da Espantosa Grace.
- Lamentável - não pôde deixar de comentar.
- Tenho outras coisas em que posso utilizar Grace. É uma
aliada dedicada e não tem igual como decoradora. Delicio-me
com o efeito que fazemos em conjunto. Ela, pequena,
orgulhosa, bela, sensual. E eu... - fez uma pausa e
encolheu os ombros. - E eu sou belo duma forma graciosa e
clássica. Não há maxilares que não se cerrem de inveja
quando fazemos uma entrada.
Admitira que era belo com uma tal naturalidade que aquilo
se tornara quase aceitável. E, na verdade, era
classicamente belo, o homem mais belo que Jonathan vira
alguma vez sem ser na escultura grega.
Mas não atraente. As suas feições eram tão regulares, tão
suaves, ligavam-se tão bem umas às outras, que o olhar
escorregava por elas sem nada que o detivesse. O rosto
carecia da impressão biográfica que arrasta e prende; não
havia vincos de desassossego, sulcos de concentração, rugas
de riso. Até os olhos pálidos e enormes se mantinham
límpidos e brilhantes, graças ao colirio de cor, mas sem
nada para contar.
- Vamos juntar-nos a Grace para uma última bebida?
-perguntou Jonathan, ansioso por pôr um fim àquela noite
enquanto ele estava ainda pensativo.
- Com certeza. Oh! Há ainda mais uma coisa; pense bem. Como
conseguiu você dar com Grace e com o Celeiro de Ouro?
Pela primeira vez, Jonathan se desequilibrou devido à
técnica de Strange - a pergunta repentina sem sequência.
Strange riu-se.
206
- Miss Dyke deve, na realidade, gostar muito de si para lhe
dar uma informação tão delicada.
- Pressionei-a um pouco - disse Jonathan com simplicidade.
Visto que já sabiam, o melhor era confessar de forma a
parecer honesto. Sentia-se contente por ela estar longe com
a amiga escritora, amante de gatos e de vinho tinto.
- É reconfortante saber a quem você é leal.
- A mim, como sempre.
- A marca registada do homem de sucesso. - Strange
levantou-se. - Vamos ter com Grace.
Quando chegaram ao Aquário, Grace estava enroscada na
profunda poltrona de couro, beberricando um cálice de
Everclear.
- Posso oferecer-lhe um pouco?
- Não - respondeu John rapidamente. Atravessou a sala e
olhou para fora, enquanto Strange se instalava no braço da
poltrona de Grace, e, com um gesto distraído de
proprietário, começava a fazer rolar o mamilo dum dos seios
dela entre o polegar e o indicador.
- Combinaram alguma coisa?
- Acho que sim. O doutor Hemlock e eu partilhamos
qualidades de egoísmo e cobiça que auguram uma cooperação
frutuosa.
Lá fora, no salão, um punhado de clientes bastante cansados
sentaram-se. Dois homens idosos e barrigudos, com barretes
de bobo, desciam a ampla escada Art Deco parecendo exaustos
e frágeis. Juntaram-se às suas respectivas companheiras e
saíram. Apenas duas raparigas estavam ainda a receber, uma
delas inclinada contra a parede de alumínio, o rosto balofo
e inchado.
- Você disse que as anfitriãs não eram prostitutas?
perguntou Jonathan.
- Terei detectado uma nuança de interesse carnal? disse
Strange.
- Sim, detectou. Embora cansado, gostava de celebrar o
nosso acordo.
- Qual delas o excitou? - perguntou Grace.
- Parece só haver duas, não? Na realidade, tanto me faz.
Você é a inspectora licenciada da carne, aqui. Qual delas
me sugeriria? A loura?
207
Grace sentou-se e olhou para as duas hipóteses.
- Não diria isso. A outra tem uma estrutura muscular
correcta para o que você quer. É uma rapariga irlandesa. A
nossa agência de modelos mandou- a para cá esta manhã e eu
entrevistei-a. Não é realmente bonita, com aquela cara de
vagabunda, mas há qualquer coisa nos enormes olhos verdes e
no cabelo que achei perfeito para o estilo agarotado. - O
olho profissional de Grace escrutinou as pernas e as
nádegas da rapariga. - Sim - disse, inclinando-se para trás
-, será a melhor parceira para si na cama.
- Se ela estiver disposta - replicou John.
- Não se rale com isso - respondeu Strange. - Vou tratar
dela. Uma oferta para selar o nosso pacto, à maneira árabe.
Um pouco de sumo de sonhos e ela será sua, molhada e
ofegante. Mas tem a certeza de que não prefere nada um
pouco mais... requintado?
- Não. Ela servirá. Mas nada de cantáridas.
- Porque não?
- Estou cansado. Se não puder actuar, não a quero a grunhir
e a trepar por mim acima toda a noite.
Strange riu.
- Como quiser. Temos uma coisinha que a tornará mais
controlada. Saberá o que se vai passar, mas fá-lo-á sem
desejo. Contudo receio que possa ficar um pouco balbuciante.
- É melhor balbuciar do que trepar.
- É pena que as opções sejam tão limitadas. - Strange
ergueu-se. - Dar-lhe-ia as boas-noites, se pudesse. Já
passam setenta minutos da minha hora de deitar, e, como
deve ter notado, sou um homem de rotinas. No caminho
tratarei da irlandesa. Tomaremos juntos o pequeno-almoço
para discutir pormenores. O meio-dia será muito cedo para
si?
E deixou a sala sem esperar resposta para a sua pergunta de
retórica.
A Espantosa Grace deitou outra bebida para si e sentou-se
novamente na profunda poltrona, os joelhos levantados e os
pés no assento, o écu peludo à vista, entre os calcanhares.
- Bem, o que pensa você de Max? Não é uma pessoa linda?
208
- Suponho que sim - disse ele pressionando os olhos com o
indicador e o polegar num esforço para aliviar a tensão que
sentia nas têmporas. - Mas há algo de lúdico e de infantil
na maneira como ele faz de Mefistófeles. Uma espécie de
sou-mais-maldoso-que-tu.
Lá fora, no salão, Jonathan viu o homem com duas bocas
aproximar-se de Maggie e falar com ela. Esta sorriu e
seguiu-o em direcção a uma das portas ao fundo. Jonathan
fez votos para que não lutasse demasiado quando lhe
enfiassem a agulha.
- Você não está a tentar dizer-me que o Max o não
impressionou, pois não, queridinho?
- Oh, não! Impressionou-me e de que maneira! De facto fez-
me borrar todo.
Ela riu.
- Gosto realmente de si, Hemlock! Você deve ter sido actor
nos seus tempos. Na verdade, só homens resistentes admitem
que os façam borrar- se. A sua saúde! - Esvaziou o copo e
ele não pôde impedir-se de engolir duas vezes,
solidariamente, num esforço vicarial para ajudar. - Mas
continuou ela - é um animal raro e belo. É realmente
diabólico, sabe? Missa negra, esse tipo de coisas. Não só
indecente, ou torpe, ou sexualmente perverso como a maioria
dos homens julgam que são. Mas realmente diabólico. E não
há nada mais sexy que isso. Tem que se ultrapassar o pecado
e o sacrilégio antes de as coisas se tornarem na verdade
deliciosas.
- O que pensa o Petit Noel acerca disto tudo?
- Nem sequer sabe que existem Os Claustros. E se soubesse
não se ralaria. Faria tudo no mundo por mim. Como um
cãozinho de estimação, isto é, como um cãozinho realmente
grande e feroz.
- Ei! Importa-se de não me apontar essa coisa? Põe-me
nervoso.
Ela riu-se e puxou o peignoir para baixo.
- E não tem pena do Petit Noel?
- Raios! Claro que não. Conheço o tipo. Ele gosta de ser
ferido. Grandes gestos; desgostos românticos. Como os
bêbados que bebem por ser tão tremendamente trágico e
atraente ser-se bêbado. Percebe o que eu quero dizer?
209
- Sim, minha senhora, percebo. - Passou os dedos através do
cabelo, carregando na parte de trás para suprimir a fadiga.
- Posso perguntar uma coisa, Grace?
- Dispare.
- Não consigo perceber como Van Dyke se misturou com esta
gente. Conheço-a há anos e não consigo imaginar o que
Strange poderia ter-lhe pago para a meter nisto.
- Ele não lhe pagou - disse ela, tocando os lábios com a
beira do copo vazio e sorrindo-lhe. - Fui eu que paguei.
Jonathan olhou para o chão.
- Compreendo.
O homem com duas bocas conduziu-o pela sala de exercicios
até ao salão, então vazio, cujos candelabros Art Deco ainda
estavam acesos. Jonathan olhou para trás, através da parede
de espelhos, para o sítio onde pensava que a Espantosa
Grace estava sentada acabando o seu último Everclear.
Acenou-lhe com a mão, em sinal de boas-noites, sentindo-se
um pouco louco quando viu apenas o seu reflexo devolvido.
Enquanto subiam a escada, com as suas paredes de alumínio
projectadas com desenhos em espiral, e ao longo do comprido
corredor o homem com duas bocas manteve um tipo de conversa
que Jonathan só vagamente escutou.
- O senhor podia derrubar-me com uma pena quando Mr.
Strange me disse para alojar aquela rapariga durante a
noite para si. Pensei que estava liquidado quando deu
aquela sova no Lolly - é o que tem os dentes partidos, o
Lolly. Ela quase dominou aquele pobre Mick. Foram precisos
dois de nós para lhe espetar a agulha. Foi bom o Leonard
não estar lá. Ele teria acabado imediatamente com aquilo e
sem barulho. Durante uma semana não se poderia sentar, se
Leonard o fizesse. Ele quase as faz em tiras quando tem
oportunidade. Bem, cá estamos, senhor. Sonhos felizes!
Jonathan entrou no quarto escurecido e a porta fechou-se
com um clique, por trás dele. A luz da cidade, para lá das
janelas, iluminava um pouco e pôde ver na cama uma figura
feita num feixe. No seu delírio esta voltou-se e soltou um
suave murmúrio, rindo-se depois para consigo.
Fora em quartos como aquele que se tinham obtido filmes de
funcionários do Governo - possivelmente alguns
210
na escuridão. Jonathan tirou o casaco e observou a manga
da camisa. A goma não brilhava com aquela fosforescência
que indicava a presença de raios infravermelhos, portanto,
o quarto não estava equipado, pelo menos com câmaras e
lentes telescópicas, mas possuia indubitavelmente
microfones, e, debaixo da droga, Maggie podia dizer algo
que o
prejudicasse. Tinha que ser cauteloso.
Despiu-se depressa e aproximou-se da cama. Maggie fora
para ali atirada ainda com o vestido. Um sapato tinha
caído, o outro estava pendurado num dos dedos e uma fiada
de contas
atravessara-se-lhe no rosto. Na luz difusa ela abriu os
olhos e ficou a olhar para ele, sorrindo. Sentia-se
confusa, tentando desesperadamente compreender o que lhe
havia acontecido.
Quando a agulha penetrara tinha lembrado a si mesma que
nada devia fazer que pusesse em perigo a cobertura de
Jonathan e aquele pensamento espiralara-se no seu espírito,
no
meio da agitação e do caos da realidade distorcida.
Apegara-se a ele durante um certo tempo, depois esquecera
aquilo a
que devia apegar-se. Mas era importante, lembrava-se
perfeitamente que era importante.
- O quê? O quê? - Olhou para ele, os olhos supli cando
ajuda. Depois riu outra vez.
- Chamo-me Jonathan Hemlock - disse ele imediatamente, na
realidade falando para os microfones. Isso para
ela não devia ter significado naquele momento.
- Jonathan? Jonathan?
- Sim. Mas tu chamas-me querido. Vá, vamos tirar
essa roupa.
- Ainda tenho roupa? - Falava com a dicção entarame lada de
alguém cujos lábios tivessem sido esfregados com a
novocaína do dentista. - Não é giro?
- Levanta os joelhos. Vamos, vira-te.
Despiu-a o mais rapidamente possível, mas, com o seu
corpo pesado e sem movimento, não foi fácil. Contudo,
alguns momentos poderiam ter sido cómicos em
circunstâncias menos perigosas. Ela, pelo menos, achou-os
engra çados.
- Diz lá - proferiu Maggie com a súbita seriedade dum
bêbado. - Pensas realmente que devemos fazer uma coisa
destas?
211
- Porque não? Vivemos numa sociedade permissiva.
- Mas... aqui? Não é... não é perigoso?
- Terei cuidado.
- O quê? O quê? Não compreendo, Jonathan.
- Vês? Lembras-te do meu nome.
- Claro que sim. É claro que me lembro do teu nome. Tu és...
Ele beijou-a. Maggie murmurou e arrastou-o para debaixo
dela.
Estava dolorosamente cansado mas o sono mostrava-se
esquivo. O microfone aberto era como um outro ser na
escuridão, esforçando-se por captar as suas palavras, e a
presença dele era palpável e incómoda. Maggie dormia. As
drogas, em determinado aspecto, tinham-na auxiliado.
Tinham-na libertado ainda para além do seu habitual amor
abandonado e inventivo, e o clímax fora para ela um
arrebatamento total, embora a sensação começasse por altura
dos rins e se espalhasse para cima. Ela esforçara- se bem,
e agora dormia, enrolada de lado, sentada nos joelhos dele,
os braços de Jonathan, completa e seguramente apertados à
sua volta.
Não sabia que ela acordara quando falou suavemente:
- Jonathan?
Pensou instantaneamente no micro, provavelmente na
cabeceira da cama para apanhar as palavras mais furtivas
dos hóspedes.
- Dorme, querida - disse ele com aspereza.
- Amo-te, Jonathan.
Era uma declaração. Um facto incontestável. Podia ter dito
que era terça-feira ou que estava a chover.
- Bom, isso é óptimo, querida. És uma pessoa meiga,
maravilhosa, encantadora. Agora deixa-me dormir um pouco,
deixas?
Mas o microfone não podia transmitir a forma como ele a
apertou e mergulhou o queixo no seu cabelo.
Pôs-se a pensar se conseguiria dormir, obter o descanso que
o seu corpo exigia. Ainda tinha isto em mente quando
acordou, em pleno dia, e com um brilhante raio de sol a
atravessar a cama. Abriu os olhos e procurou. Maggie
212
estava ali, sentada na beira da cama. Acordara há algum
tempo e contemplara a sua face adormecida, tocando-lhe
por vezes no cabelo carinhosamente, com receio de o
perturbar, mas desejando o contacto que a posse fisica
confere.
- Bom-dia - disse ele fracamente, e tocou-lhe na mão,
descobrindo que a sua estava tão débil que não agarrara a
dela. Os esforços dos últimos dois dias tinham-no atingido
e dormira como se fosse em profundo coma.
- Bom-dia - respondeu ela, o sotaque arredondando
ternamente as vogais. Pôs o dedo sobre a boca dele e apon
tou para a cabeceira da cama, onde um núcleo de metal se
destacava do centro da decoração esculpida.
Ele acenou afirmativamente e puxou por ela, quando
rolou sobre si próprio, ficando ambos com as cabeças
encostadas aos pés da cama. Beijaram-se e ele pôs os lábios
contra o ouvido dela e murmurou baixinho:
- Representa. És uma boa rapariga que acordou na
cama com um homem desconhecido.
- Não faça isso - exclamou ela, alto. - Por favor, não
faça isso!
Jonathan fez uma cara feia à representação. Maggie
encolheu os ombros; nunca pretendera ser actriz.
- Lembra-se da noite passada? - perguntou ele, alto.
Então, num murmúrio, acrescentou: - Vocêfoi fantástica. O
perigo desta conversa dupla era tremendamente excitante e
eles representavam a cena em obediência aos cânones.
- Sim, lembro-me - disse ela alto, embora envergonhada. -
Lembro-me do seu nome e... do que fizemos. Mas
como vim eu parar aqui?
- Não se recorda?
- Um pouco... duma agulha. Não consigo lembrar-me
de tudo. - E murmurou: o vigário quer ver-te esta noite em
casa dele. Aconteceu qualquer coisa importante.
- Bem, não se preocupe com isso, querida - disse ele
para o microfone. - Estou certo de que lhe pagarão pelo
incómodo. E, na realidade, não foi tudo mau, pois não?
- Eu fui... fui boa? - A voz dela tinha aquele tom de
modéstia que Jonathan associou a manhãs atrás, depois de
ter desaparecido a fase de auto-recriminação. Teve pena
que ela tivesse passado por isso.
213
- Não se preocupe com isso - replicou ele alto. Você,
provavelmente, é uma óptima cozinheira.
A laia de castigo, ela introduziu a ponta da língua na
orelha dele.
- Ei!
- O que foi? - perguntou ela alto, com toda a inocência.
- Lembrei-me das horas. É tarde e tenho mundos a
conquistar. - Levantou- se da cama e foi para a casa de
banho lavar-se e fazer a barba.
- Tornarei a vê-lo? - perguntou ela, divertindo-se com o
jogo de representar para o microfone.
- O quê? - gritou ele do aposento ao lado, por sobre o cair
da água.
- Tornarei a vê-lo, outra vez?
- Com certeza. Com certeza. Eu tratarei disso!
- Você! nem sequer sabe o meu nome!
- Está tudo bem. Não sou sensível a maus cheiros!
- Bastardo! - murmurou ela baixinho, tendo o cuidado de pôr
no insulto exactamente o tom da rapariga cuja inocência
fora burlada.
Jonathan chegou à sala de jantar apainelada, para tomar o
pequeno- almoço, encontrando Strange e Grace que já haviam
terminado e bebiam a última chávena de chá. Earl Grey para
ela, de roseira brava para ele.
- Bom-dia - exclamou Jonathan jovialmente. - Desculpem por
estar atrasado. Dormi como um toiro cansado.
- Sem dúvida o efeito duma consciência tranquila - observou
Strange enquanto partia um pedaço de torrada seca e o metia
na boca, esfregando ligeiramente os dedos para se livrar
das migalhas, que doutra forma caíriam na sua flanela
branca imaculada.
Jonathan levantou as tampas dos pratos de serviço no
sideboard e encontrou ovos com cebolinhas.
- E como está você esta manhã... ou princípio da tarde?
Dirigia-se à Espantosa Grace, sentada num largo feixe de
luz solar, o corpo esticado para receber o calor, os olhos
quase fechados numa postura felina. O pires da chávena de
chá estava equilibrado no seu écu e daquele ângulo parecia
a Jonathan que aquela parte do corpo dela estava a cozer à
214
luz do sol. Aproximou-se dele e assentou um dos seus seios
cónicos na palma da mão de Jonathan.
- Um destes dias vou catrafilá-la - avisou ele.
Ela abriu os olhos.
- Meu Deus! Você é um garanhão! Aquela irlandesa
não o sossegou um bocadinho?
- É do tipo hors óeuvre; por outro lado você é do tipo
carne com batatas.
- Você com certeza consegue tudo o que quer à força de
palavras, queridinho!
Jonathan sentou-se em frente de Strange e começou a
comer os ovos com apetite.
- Você hoje está com a moral alta, doutor Hemlock.
- Saiu-me de cima um grande peso.
- Refere-se ao funcionário de Washington que resolveu
reduzir ao silêncio?
- Ao que havia de ser? - Deitou algum café na chávena. -
Sabe, aquela rapariga é estranha. Sabe o que me
disse logo a seguir à guerra?
- Que o amava? - perguntou Strange, incapaz de perder a
oportunidade de dar espectáculo.
Jonathan pousou a chávena e olhou para ele, surpreen dido.
- Sim. Como soube você? - Depois riu. - Havia
microfones no quarto. É evidente.
- Todos eles têm. Ouvi as suas gravações esta manhã
enquanto olhava para as minhas contas. Uma espécie de
Muzak* para iluminar as minhas tarefas.
- Diabos me levem! Isso deveria ter-me ocorrido. Como
acha você que a rapariga encarará a ideia de ter sido
encharcada em droga e depois manobrada por um desconhecido?
- O processo difere do amor romântico apenas quanto
ao grau e eficiência. É uma jovem senhora moderna. Julgo
que ficará satisfeita com um bónus razoável. Já agora, ela
" Muzak - uma marca registada para música gravada,
especialmente destinada a ser ouvida por linha telefónica
ou rádio em restaurantes, armazéns, fábricas, etc. (N. da
T. ).
215
chamou-lhe bastardo, enquanto você estava no chuveiro.
- É verdade, isso? E contudo juraria que a tinha
conquistado pelo coração. Isso mostra bem como o romântico
congénito é vulnerável. Importa-se de me passar as
torradas, por favor?
O pequeno-almoço prosseguiu com uma conversa banal
destinada a desviarem-se do objectivo. Só quando Grace os
deixou para regressar ao Celeiro de Ouro é que Strange
voltou aos negócios.
- Presumo que pensou na tarefa que lhe compete, doutor
Hemlock.
- Tive umas ideias. Se as coisas correrem realmente bem,
seremos capazes de obter o preço que deseja pelo Cavalo de
Marini sem inquérito do Governo. Mas terei de tocar quase
de ouvido, e vou precisar da sua autorização para ter mão
livre ao combinar as coisas.
Strange deitou-lhe um olhar de relance.
- Que tipo de combinações?
- Ainda não sei. Mas terei que fazer algo de audaz,
qualquer gesto que dê nas vistas e os afaste daquilo que é
óbvio. Já agora preciso de algum dinheiro para luvas e
suborno.
- Quanto?
- Todo.
Strange riu.
- Realmente, doutor Hemlock!...
- Pense só no que estou a tentar fazer. Suponho que dez mil
libras chegarão.
Os olhos pálidos de Strange avaliaram Jonathan durante
muito tempo.
- Muito bem. O dinheiro estará aqui quando você partir.
- óptimo.
- Ah... doutor Hemlock... não pense em pôr em prática
alguma loucura. Por favor, lembre-se desse infeliz
indivíduo que apareceu empalado no campanário de St.
Martin-in-the-Fields.
- Já percebi tudo. Há mais café?
- Certamente. Leonard fez isso a meu pedido, se bem que
esse diabo impulsivo tivesse tido o seu prazer pessoal.
216
O informador foi drogado e levado para a igreja, onde a
estaca já tinha sido devidamente colocada. Penduraram o
tipo exactamente por cima dela, com a ponta a tocar-lhe o
ânus. Depois Leonard saltou e fez-lhe rodar o corpo a partir
dos tornozelos, colocando-o melhor. A gravidade fez o
resto. Mas com aquele ritmo tranquilo das forças naturais.
- Strange pousou a mão no braço de Jonathan e apertou-o
paternalmente. - Espero que compreenda porque estou a
sobrecarregá-lo com pormenores tão mórbidos.
- Sim, compreendo perfeitamente.
- Óptimo. Óptimo! - Deu-lhe umas pancadinhas no
braço e retirou a mão.
Os olhos de Jonathan estavam enevoados com o seu gentil
sorriso de combate quando disse:
- Ouça! Importa-se de me passar a compota?
COVENT GARDEN BROOK STREETO VICARIATO
O pintor solitário, que trabalhava com uma profunda
concentração perante uma tela enorme no armazém de fruta
transformado do MacTaint, era o homem irascível e furioso
de longos braços finos que durante anos considerara o
espaço, o fogão e o chá como seus, por direito de antigui
dade. Virou a cabeça encolerizado quando Jonathan empurrou
a corroída porta de metal, permitindo que uma corrente de
ar entrasse com ele. O pintor continuou a fixar Jonathan
com um olhar selvático até a porta deslizar, guilhotinando
o raio de luz diurna que se introduzira no tanque amarelo
de luz de tungsténio, proveniente do globo nu que pendia
duma comprida corda.
A alegre saudação de Jonathan foi respondida com resmungo
áspero enquanto o pintor aproveitava a interrupção para
deitar outra pazada de carvão no grande fogão bojudo. Com
ar impaciente deu um pontapé violento na porta do fogão,
lamentando quase instantaneamente o facto de não ter
sapatos.
Não recebendo resposta à sua leve pancada na porta
interior, mas ouvindo uma voz lá dentro, Jonathan impeliu
aquela na sua frente e olhou. Lilla estava esparramada numa
profunda poltrona de orelhas, perante a televisão, um copo
meio cheio de gim balouçando-lhe na mão sapuda e as
migalhas de qualquer festim anterior decorando a frontaria
do seu vestido de noite enfeitado a penas. Num zumbido
satisfeito um comentador da BBC inglesa resumia a situação
industrial, que, ao que parecia, não era tão má como devia
ser. Sem dúvida que os trabalhadores do gás estavam em
greve, bem como os maquinistas dos caminhos-de-ferro, os
professores, os empregados dos hospitais, os motoristas dos
automóveis e dos camiões; mas os trabalhadores das docas
deviam em breve voltar ao trabalho e havia uma hipótese de
que a ameaça de greve dos funcionários 218
públicos, dos electricistas, dos tipógrafos, dos empregados
da
construção civil e dos mineiros pudesse ser adiada, se o
Governo cedesse às suas exigências.
- Olá!
Ela virou a cabeça e observou atentamente, mais ou
menos na direcção de Jonathan, com os olhos aquosos e
vagos.
- Não me diga nada, jovem. Eu nunca esqueço uma cara.
- MacTaint está por aí?
- Saiu daqui. Para aliviar a bexiga, como se diz no teatro.
Entre. Estava justamente a tomar o meu aperitivo do
meio da tarde. Importa-se de se juntar a mim?
E fez um gesto em direcção ao bar com o copo meio cheio
de gim, entornando o conteúdo numa curva direta.
- Não, obrigado, Lilla. Só queria falar...
- Você sabe o meu nome! Portanto, já nos encontrámos
antes. Eu disse-lhe que nunca esqueço uma cara. Foi no
teatro, claro. Deixe-me ver...
Exactamente nessa altura entrou MacTaint, arrastando
os pés, envergando o seu comprido sobretudo e dizendo:
- Ah, Jonathan! Que bom vê-lo!
- O cavalheiro e eu estávamos justamente a conversar
acerca dos velhos tempos no negócio, se não te importas.
- Que negócio?
- O teatro, como sabes perfeitamente.
- Oh, sim, já me lembro. Costumavas vender chocolates
na plateia e o cu cá fora na rua. Os chocolates vendiam-se
melhor, segundo recordo.
- Basta! Já chega, meu velho peido fedorento. - Voltou a
cabeça oscilante para Jonathan. - Faça o favor de
desculpar a dicção!
- Certo. Agora põe-te a mexer. Temos que falar de
negócios.
- Não uses esse tom de voz na minha presença, filho
duma cadela com um pau insignificante!
- Põe uma rolha nessa pia, puta de meio-tostão, e vai-te
encharcar lá para cima!
- Francamente! - Lilla ergueu-se. Fixou vagamente o
sítio onde estava MacTaint, com um ar profundamente
desdenhoso, e dirigiu-se para a saída.
219
MacTaint coçou a grenha, com os dentes de baixo a verem-se
de puro prazer.
- Desculpe lá isto, pá. Mas ela é uma boa cadela velha,
mesmo apanhando uma piela de vez em quando.
- Poderia tomar uma bebida, se ainda houver alguma.
- Combinado.
Turbilhões de suor antigo quase o submergiram quando
MacTaint roçou por ele a caminho do bar, movendo-se com o
seu meio trote característico. Voltou com dois copos de
uísque e entregou um a Jonathan, deitando-se pesadamente
num desbotado sofá de pau-rosa, uma das botas velhas sobre
a tapeçaria de damasco, o queixo enterrado na gola do seu
sobretudo amorfo.
Bem, aqui está o que é pecar. - Engoliu com um grande ruído
de lábios. - Agora, suponho que você está a precisar das
suas duzentas notas.
- Não. São suas. Pelo incómodo.
- É muito simpático da sua parte. Mas guardá-las não tem
sido incómodo nenhum.
- Estou a falar de incómodos futuros.
- Era disso mesmo que eu tinha medo. - Os olhos do velhote
brilharam por baixo das sobrancelhas em forma de antenas. -
Que futuros incómodos?
- Ainda não sei bem, Mac.
- Lamento ouvi-lo dizer isso.
- Preciso de auxílio.
MacTaint coçou-se da bochecha ao ombro, depois as costas
por dentro do sobretudo, mas parecia chegar-lhe apenas com
as pontas dos dedos.
- Que tipo de auxílio? - perguntou, depois de coçar as
costas contra a cadeira.
Jonathan beberricou o uísque.
- O roubo do Chardin. Ainda vai ser posto em prática?
Instantaneamente a voz de Mac mostrou-se inexpressiva e
insegura e a sua fachada de duende caiu.
- Sim. Vai ser.
- E ainda está programado para a noite de terça- feira?
- Sim. Porque pergunta?
- Quero ir consigo. - E Jonathan colocou cuidadosamente o
copo na mesa de madeira ao seu lado.
220
MacTaint examinou com grande interesse um novo rasgão nas
calças.
- Porquê?
- Não posso dizer-lhe, Mac. Mas está ligado com o problema.
Estou metido nisso.
- Compreendo. E porque não mente e arranja qualquer
história convincente?
- Nunca o faria, Mac.
- Porque somos muito amigos?
- Não. Porque você ficaria a saber.
MacTaint soltou uma longa risada, depois engasgou-se e
tossiu estrondosamente, acabando por uma cuspidura na
carpeta.
- Você é um autêntico malandro Jonathan Hemlock.
É por isso que gosto de si. Você consegue lixar um homem
por confessar que o está a fazer. É muito requintado.
Limpou os olhos com o punho e mudou de tom. - Diga-me uma
coisa. Levá-lo comigo vai atrasar o meu trabalho?
- Não vejo porquê. Você precisa apenas duns dois
minutos, segundo a sua técnica.
- Ah, então você sabe qual é a minha técnica?
- Tive alguns dias para a conceber. Só há uma
possibilidade. Você arranja uma boa falsificação. Mutila-a,
mete-a
no museu e troca-a pelo original. Toda a gente acredita que
foi um acto de vandalismo, não um roubo. A falsificação é
cuidadosamente restaurada, e, se alguém um dia notar
qualquer coisa, atribui-se isso ao trabalho de restauração.
- Exactamente, meu filho! E, embora eu o esteja a dizer
a quem não deveria, há nisso um toque de génio. Eu gamei a
minha parte dos quadros, nos últimos dez anos, dessa
maneira.
- O que é lançado na conta dos actos de vandalismo dos
museus britânicos.
- Nem todos. Num dos casos um vândalo a sério entrou
num museu e danificou um quadro, o filho duma cadela,
sem coração!
Jonathan esperou um momento antes de perguntar:
- E então? Posso ir consigo?
MacTaint esgatanhou meditativamente a grenha do seu
escalpe.
221
- Acho que sim. Mas lembre-se de que se houver sarilho vai
ser o diabo! Gosto de si como de um filho, Jon, Mas eu não
faria esse frete nem sequer por um filho.
- Óptimo. A que horas nos encontramos na terça-feira à
noite?
- Cerca das dez, suponho. Isso dar-nos-á tempo para
combinar uns pormenores antes de irmos.
- Você é um bom tipo, MacTaint.
- Lá isso é verdade!...
Como estava mais à mão, Jonathan foi para o seu apartamento
de Mayfair fazer uma lista das chamadas, de forma a
seleccionar as revistas de arte e os críticos que criavam o
gosto inglês. A sua abordagem diferia ligeiramente, mas só
ligeiramente, conforme ia contactando a série desde The
Guardian até à Time and Tide. Em todos os casos ele
apresentava-se e aí havia a inevitável pausa na conversa,
enquanto a pessoa do oútro extremo da linha recordava com
quem estava a falar. Jonathan começava por presumir que o
crítico tinha ouvido falar que um Cavalo de Marini se
encontrava no país e iria a leilão dentro duma semana. Ele
sorria quando o crítico inevitavelmente respondia que na
realidade já ouvira qualquer coisa acerca do assunto. O que
ele procurava, dizia Jonathan, era uma prova autorizada do
boato do Cavalo de Marini ir atingir entre três e cinco
milhões na licitação. Após uma pausa o crítico dizia que
não ficaria surpreendido - nem um bocadinho. O seu fluxo
inicial de prazer, ao ser consultado por Jonathan Hemlock,
dava inevitavelmente lugar à tirada do conhecimento
superior obtido na escola. Jonathan conhecia o tipo e
esperava que a auto-estima deste se expandisse até
preencher todo o espaço que ele deixara em aberto.
Fazia questão de mencionar, todas as vezes, que os botas-
de-elástico da National Gallery tinham conseguido obter o
Cavalo de Marini para ser exibido durante um dia antes de
ir para a sala de leilões, mas presumia, claro, que o
crítico já sabia isso perfeitamente. O crítico sabia-o
perfeitamente e alguns deles davam a entender que tinham
tomado uma parte modesta nas combinações. Cada conversa
terminava com agradecimentos e desculpas por não terem
almoçado
222
juntos - um hiato social que Jonathan tencionava colmatar
na primeira oportunidade.
Enquanto marcava um novo número Jonathan visualizava o
último indivíduo procurando activamente em livros
de referência, tomando rapidamente notas e fazendo uma
carranca importante.
Mentalmente Jonathan conseguia imaginar o artigo-protótipo,
e todas as versões do mesmo, que apareceria nos
jornais menores e maiores daí a dois dias.
Há muito que a opinião deste escritor é que o trabalho
inovador de Marini tem sofrido por falta de estudo e
consideração em Inglaterra. Mas espera-se que esta falha
seja
preenchida por um acontecimento próximo que tenho
seguido de perto: a venda em hasta pública de um dos
Cavalos de bronze característicos de Marini. A menos que me
engane o Cavalo atingirá algo nas proximidades dos cinco
milhões, e, se bem que este número possa espantar o leitor
(e alguns dos meus colegas, lamento dizê-lo), não seria de
forma alguma surpresa para os poucos que têm acompanhado o
trabalho deste escultor moderno cujo génio só
agora está a ser decididamente reconhecido.
É particularmente significativo que a National Gallery,
não se distinguindo em especial pela sua imaginação
inovadora, tenha feito um acordo pelo qual o Cavalo de
Marini
será exibido durante um dia antes da sua venda e - quem
sabe? - talvez da sua partida definitiva de Inglaterra. Etc.
etc. .
Odedo de Jonathan estava dorido quando acabou de
marcar os números da sua lista de críticos. Mas fez ainda
mais uma chamada, ésta para Fforbes-Ffitch do Royal College
of Art.
- Jonathan! Que amável em ter telefonado! Só um momento.
Deixe-me limpar aqui o convés, de forma a poder
falar consigo. - Fforbes-Ffitch afastou o telefone da boca
para dizer à secretária que mais tarde continuaria a ditar.
- Agora nós, Jonathan! Meu Deus! Estou até às orelhas! Não
há descanso para o iníquo, eh?
- Nem para o mal organizado.
- O quê? Oh, sim. - Riu barulhentamente para provar
que tinha atingido. - Uma coisa é certa: os homens mais
223
importantes daqui com certeza acreditam no ditado que
afirma que a única maneira de se obter a execução duma
tarefa é dá-la a um homem atarefado. A minha secretária vai
abaixo com coisas que deviam ter sido feitas ontem. Oh! Já
agora! Lamento imenso não o ter encontrado à saída da sua
conferência aqui, no outro dia. Um sucesso esmagador.
Desculpe a confusão dos tópicos. Mas acho que você caiu de
pé. E tenho que confessar que foi uma lança em África
apanhá-lo aqui. Nunca é demais saber quem sabe, não é?
- É mesmo acerca de lanças em África que queria falar- lhe.
- Oh?
- Você tem andado atrás de mim para eu dar essa série de
conferências em Estocolmo.
- Isso é verdade! Não me diga que está a fraquejar?
- Sim. Esse é o quid. Mas há um quo. Você é um dos
administradores da National Gallery, não é?
- Sim. Embora seja o mais novo. Isso tem alguma coisa a ver
com a intenção do Governo de projectar uma imagem atraente.
É o que você quer, ter alguma coisa a ver com a Gallery?
- Vamos encontrar-nos e falar acerca disso esta tarde.
- Por Deus, Jonathan! Não sei se poderei. A minha agenda
está a estoirar, bem sabe. Espere, vamos ver o que se pode
arranjar. - Segurando o telefone a uma pequena distância da
boca, Fforbes-Ffitch carregou no intercomunicador. - Miss
Plimsol? Como estão as coisas esta tarde? Terminado.
Uma voz disse-lhe que teria uma conferência daí a dez
minutos e que depois ele combinara tomar uma bebida para
discutir negócios com Sir Wilfred Pyles, no clube.
- Uma bebida com Sir Wilfred? - repetiu Fforbes- Ffitch, no
caso de Jonathan não ter ouvido. A que horas? Terminado.
- Quatro horas, senhor.
- Dezasseis horas, eh? Certo. Terminado e desligado.
Jonathan? O que diria a uma bebida no meu clube, às
dezasseis e quarenta e cinco?
- óptimo.
- Você conhece o clube, não conhece?
224
- Sim, conheço.
- Então está certo. Vê-lo-ei lá. Vai haver grande con versa
consigo. Esperemos que traga benefícios a ambos...
Logo que Jonathan colocou o telefone no descanso, ele
tocou ainda na sua mão, e o efeito da coincidência
assemelhou-se ao de um guizo.
- Jonathan Hemlock.
- Ei! Há que tempos que não sabia de si, homem. Até
Miss Coyne me contactar, há um par de horas, não fazíamos
ideia do que lhe acontecera.
- Estou fino, Yank. Porque está a telefonar-me?
- Há duas horas que ando a tentar caçá-lo. Mas a sua
linha esteve sempre ocupada. O que há, doc*?
- Pode dizer ao vigário que as coisas estão a andar.
- Óptimo. Mas você pode dizer-lho pessoalmente. Esta
noite. As coisas estão a atingir um pico. Ele quer ter uma
conversinha consigo. Pode ser?
- Miss Coyne mencionou-me o assunto. Onde?
- No vicariato.
- Ok. Eu vou lá. Provavelmente às seis ou sete da noite.
- Roger-dodger**. Oh! Já agora! Desculpe eu não ter
conseguido apanhar a tempo esses gajos da MI-5.
- Tudo bem. Eu tratei-lhes da saúde.
- Sim, sei. O homem da MI-5estendeu-me no tapete.
Dois dos rapazes ainda estão no hospital.
- Provavelmente precisam de descanso.
- Acho que seria melhor não mencionar isso ao vigário.
Não vale a pena pôr-lhe as tripas às voltas. Topa?
- O que quiser.
- Ok doc. Desligue.
Jonathan desligou. Falar com Yank enchia-o sempre
duma fadiga medular - como a perspectiva de ir às compras
com uma mulher.
Então ocorreu-lhe uma consolação sucedânea para tudo
Doc é, em inglês, um termo familiar para a palavra doutor.
(N. do T. ).
Intraduzível para português. E um jogo de palavras. Róger
quer dizer internacionalmente comunicação recebida e dodger
é enguia em calão -- pessoa que foge por entre as nossas
mãos. (N. do T. ).
225
aquilo. Acontecesse o que acontecesse, tinha com ele dez
mil libras de Strange - cerca de vinte e cinco mil dólares
obtidos à custa de poucas horas de telefonemas. O truque
consistia em manter-se vivo para os gastar.
O clube de Fforbes-Ffitch ficava apenas a uma curta
distância a pé do Claridge's, não muito afastado do
apartamento de Jonathan, em Mayfair. Era um clube extrema
mente típico: um bom sítio para se almoçar; uma sala de
jantar grande e confortável com roupa de linho branco e
conversas formais, onde se era servido por cabras com peles
da cor e da textura dos pudins Yorkshire que impingiam aos
comensais; a garrafa de vinho era decente; e havia
confortáveis poltronas de couro na sala de estar para se
tomar café e brande, bem como para se ser visto com pessoas
que desejavam ser vistas a falar connosco. Como
instituição, ele partilhava o problema britânico católico
de não ser o que costumava ser. Ali não era simplesmente a
flutuação monetária que sustentava tais monumentos ao lazer
agradável, visto que o socialismo britânico, ao falhar nos
seus esforços para partilhar a riqueza, se tinha dedicado à
partilha da pobreza.
O critério ostensivo para se ser admitido como sócio do
clube eram as relações de cada um com o mundo das artes e
das letras, mas havia mais críticos que pintores, mais
editores que escritores, mais professores que alunos.
Tipicamente correcto em quantidade, mas pretensioso em
pormenor, era o género de lugar que se orgulhava dum
excelente Stilton encharcado em Porto, mas servido com
pimenta branca. Os membros vestiam fatos cujo tecido
excelente e negligente indicavam os melhores alfaiates
londrinos, mas usavam peúgas exibindo uma grande parte das
canelas brilhantes e pálidas, enquanto se sentavam na sala
de estar, todos esticados.
Fforbes-Ffitch estava justamente a despedir-se de Sir
Wilfred quando a anfitriã - em parte francesa - conduziu
Jonathan à sua companhia.
- Ah! Cá está você, Jonathan. Sir Wilfred, posso
apresentar-lhe Jonathan Hemlock? o homem que acabei
precisamente de mencionar...
226
- Olá, Jon.
- Fred.
- Raios me partam se toda a gente em Londres não se dedicou
à tarefa de nos apresentar! Faz-me pensar se não terá
havido algo de erróneo no nosso primeiro encontro.
- Oh! - Ffórbes-Ffitch estava abatido. - Então, já se
conhecem.
- O suficiente, na verdade - replicou Sir Wilfred. Temos
estado a falar, Fforbes-Ffitch e eu, acerca dessa tal série
de conferências que você vai fazer em Estocolmo. Tem o
apoio da minha comissão fiscal. Ainda bem que decidiu ir,
Jon.
- Ainda não está nada estabelecido definitivamente.
- Oh! - Sir Wilfred levantou os sobrolhos na direcção de
Fforbes-Ffitch. - Tive a impressão de que estava.
- Estou certo que seremos capazes de resolver isso -
retrucou Fforbes- Ffitch muito depressa, com um gesto
improvisado.
- Isto é; posso dar-lhe uma palavrinha, Jonathan?
Certamente não se importaria, não é?
- Nem por sombras - respondeu Fforbes-Ffitch. Ficou de pé
olhando palidamente para os homens silenciosos, depois
captou a ideia e disse: - Oh! Oh, compreendo. Bem, então
vou encomendar um par de bebidas. - E partiu para o bar.
Sir Wilfred conduziu Jonathan para um dos vãos profundos
das janelas, que se debruçavam sobre a cidade.
- Diga-me uma coisa, Jon. Você está perfeitamente bem? Falo
desse negócio do Maximilian Strange, é claro.
- Não se preocupe, Fred. Não se passa nada. Foi um falso
alarme.
Sir Wilfred examinou de perto os olhos de Jonathan.
- Bem, esperemos que sim. - Depois a sua atitude mostrou-se
mais descontraída e aberta. - Bom, tenho que ir.
- Exigências de negócios?
- O quê? Oh, não! Exigências femininas, na realidade. Tome
cuidado.
Jonathan encontrou Fforbes-Ffitch rigidamente sentado na
beira dum sofá profundo, num canto tranquilo. Fazia o
227
possível por parecer um homem atarefado que se mantinha à
espera, com um ar carrancudo e observando o relógio.
- Devia ter-me dito que conhecia Sir Wilfred - queixou-se
ele, quando Jonathan se sentou na sua frente. Ter-me-ia
salvo duma situação um pouco embaraçosa.
- Disparate. O embaraço fica- lhe bem.
- Oh! Verdade? Você está a brincar!
- Ouça, não tenciono tomar-lhe muito do seu precioso tempo.
Fforbes-Ffitch gostou.
- Certo. Tenho outro encontro às dezassete e trinta.
- Roger. Então vamos a isto. - Jonathan expôs o assunto
rapidamente. Fforbes-Ffitch estava obviamente decidido a
ganhar fama persuadindo Jonathan a dar conferências na
Suécia. De facto, quase convencera Sir Wilfred da boa-
vontade de Jonathan. Jonathan daria as conferências se, em
troca, Fforbes-Ffitch usasse a sua influência como
administrador da National Gallery para os persuadir a
exibir publicamente o Cavalo de Marini antes daquele ser
leiloado.
- Oh, não sei, Jonathan. Um objecto que é propriedade
privada na Nat? Nunca se fez isso antes. Tem todas as
características dum truque publicitário. Não sei, pura e
simplesmente, se eles concordarão.
- Oh, espero bem que a sua influência seja suficiente para
resolver o problema.
- Cláro que sou capaz, Jonathan. Vou esmagá-los, com
certeza.
- Você poderá mencionar como argumento que metade dos
críticos de arte em Inglaterra dirão nos seusjornais que a
peça será exibida na Gallery. Os seus colegas
administradores não iriam desapontar os contribuintes, já
para não falar na fama de loucos com que ficariam os
críticos, visto que nenhum deles é suficientemente amigo
daquilo que descrevem como as práticas reaccionárias desse
grupo de élite.
- Como diabo poderiam os jornais dizer tal coisa? Jonathan
levantou as palmas das mãos e encolheu exageradamente os
ombros.
- Quem sabe onde vão eles buscar as suas ideias idiotas?
Fforbes-Ffitch olhou longa e astutamente para Jonathan.
228
- Foi você, não foi? - acusou ele, sacudindo o dedo.
- Você vê-me à transparência, não é? Não vale a pena fazer
trapaça com um trapaceiro.
Fforbes-Ffitch acenou conspirativamente:
- Ok, Jonathan. Acho que posso assegurar-lhe que os outros
administradores ouvirão as suas razões. Mas não sem luta. E
em troca você fica a dever-me as conferências. Sei que vai
adorar Estocolmo.
Segundo a habitual rotina do clube, as bebidas chegaram
exactamente quando já se tinham levantado para sair.
Maggie sentava-se na beira dum banco de carvalho perto da
lareira, absolutamente inconsciente do cálice de Porto que
tinha ao pé de si. O alvo da sua inabalável atenção era as
labaredas do fogo de lenha que tremeluziam, mas a posição
do seu corpo e os olhos meio fechados indicavam que olhava
através do fogo para qualquer outra coisa. Sonhos
acordados, talvez.
Encostado a uma estante, no estúdio do vigário, Jonathan
observava o jogo da luz no seu cabelo outonal. A parte não
iluminada do seu rosto estava virada para ele e o perfil
era modelado pela faixa ondulante da luz do fogão ao longo
da testa e nariz. Tons subtis eram ampliados pelas chamas,
acentuando agora o âmbar, depois o cobre.
Uma rajada de vento desceu pela chaminé, afloreando os
tições com um gemido de fagote, e quebrando a sua frágil
concentração. Ela pestanejou e inspirou como alguém que
acorda, virando-se e dirigindo-lhe um ligeiro sorriso.
- Pá, oh, pá, não há dúvidas que chove a potes - disse Yank
do outro lado da sala, onde estivera a acalentar o pânico e
a arranjar algum apoio por meio de grandes goles do
fornecimento de Porto do vigário. Tinha vomitado tudo nessa
noite, quando jantavam na Pousada do Olde Worlde. Estavam a
comer cuscuz de carneiro e alguém, a brincar, mencionara
que deviam festejar a indecisão governamental. A Estação de
Alimentação tinha estado a preparar uma vitima para ser
encontrada na Argélia, mas aí houvera mudança de planos.
Yank empalidecera e abandonara a sala. Até esta banal
observação meteorológica mantivera-se obviamente silencioso
e a energia forçada da sua voz indicava que não
ultrapassara ainda completamente a crise de perturbação.
- Desculpem por fazê-los esperar. - O vigário entrava com
um ar pouco à vontade e preocupado. O seu rosto cinzento e
as bochechas pendentes e sustentadas pelo colarinho de
celulóide atestavam os dias de tensão e esforço, bem como a
intensificação do seu piscar nervoso. - Pelo menos vejo que
encontraram o Porto. Óptimo. - E deixou-se cair pesadamente
na sua cadeira de leitura, junto do fogo. Como uma
passageira rajada de vento alongasse as línguas das chamas
e as sugasse pela chaminé acima Jonathan descobriu as
características ironicamente à maneira de Dickens do
pequeno grupo.
- Para começar deixe-me dizer-lhe que não estou muito
contente consigo, doutor Hemlock - proferiu o vigário,
piscando.
- Oh?: .
- Não. Nada contente. Não se manteve em contacto regular
connosco, tal como lhe foi dito. Na realidade, se não fosse
o relatório de Miss Coyne, esta tarde, nem sequer
saberíamos que você conseguira penetrar n'Os Claustros.
- Tenho estado ocupado.
- Não há dúvida. Você sempre foi desobediente. Mas eu não
serei complacente com a sua insubordinação.
- Isso da sua parte é fantástico.
O vigário fitou Jonathan com uma enorme reprovação. Depois
piscou o olho.
- A situação é grave. Muito mais do que você pode imaginar.
Como deve recordar-se, estávamos confusos pelo facto de
Maximilian Strange não parecer ir fazer uso dos filmes
inconvenientes para fazer chantagem. Dúvidas a respeito do
seu motivo para reter a imunda prova preocupavam- nos tanto
como os próprios filmes. E a organização Lu no Ultramar
concentrou todas as suas energias para resolver o enigma.
Recolheram-se fragmentos e pedaços de informação e eles
ajustam-se para formar um quadro assustador. Resumindo: a
Inglaterra está à venda. - Fez uma pausa dramática para
permitir que o significado disto atingisse os ouvintes. -
De facto o controlo efectivo do Governo britânico vai ser
leiloado. O poder que detém esses
230
filmes incriminadores será capaz de nos sangrar até à morte
- concessões comerciais, segredos da NATO, petróleo do mar
do Norte - tudo isso será vendido pelo preço mais alto.
Jonathan deu consigo a pensar se seria a venda em si ou a
natureza democrática da licitação que lhe provocava uma dor
maior.
- Neste preciso momento - continuou o vigário -
representantes de todas as potências maiores estão
congregados em Londres; as transferências em ouro combinam-
se agora na Suíça e conversas secretas são levadas a cabo
nas embaixadas. Não excluindo a nossa própria, doutor
Hemlock -, acrescentou com um ênfase duro.
- Quem sabe? Você pode gostar de trabalhar para o Yurasis
Dragon quando a CII o caçar.
- Não seja insolente, Hemlock! - E piscou furiosamente. -
Prometo-lhe que muito antes disso se concretizar, você
estará no banco dos réus defrontando acusações irrefutáveis
de assassínio. Fui claro?
- Não me foda, padre.
- Como? - Ele piscou três vezes, numa sucessão rápida.
- As suas ameaças não têm conteúdo. Você diz que toda a Lu
tem trabalhado nisto?
- Tem.
- Sabem quando terá lugar a venda?
- Não, não exactamente.
- Sabem onde?
- Não, não sabemos.
- Sabem onde estão agora os filmes?
- Não.
- Eu sei as respostas para as três perguntas: Portanto, não
me foda e deixe de fazer ameaças em vão.
Maggie sorriu para dentro do copo, enquanto o vigário punha
a sua cólera sob controlo profissional. Levantou-se a custo
e foi direito à secretária, onde mexeu nalguns papéis
indiscriminadamente, ganhando tempo para pensar.
- Doutor Hemlock, você representa algo que eu detesto na
personalidade agressiva dos Americanos.
Jonathan verificou o relógio.
231
As mãos do vigário fecharam-se como punhos. Depois abriram-
se lentamente e ele virou-se.
- Mas... aprendi no meu trabalho a admirar a eficiência,
seja qual for a sua origem. Portanto... - cerrou fortemente
os olhos e inspirou em profundidade. - Calculo que você
agiu no sentido de arranjar uma forma de interceptar os
filmes e de os entregar a nós.
- Exactamente.
- Compreende, é claro, que deve fazê-lo à sua própria
custa. Não quero a policia metida nisto, nem os serviços
secretos. Ninguém deve ter a menor pista sobre a situação
desairosa em que se envolveram os nossos líderes.
- Você já tornou isso demasiadamente claro.
- Óptimo. Óptimo. Agora diga- me; onde estão os filmes?
- Dentro dum bronze fundido por Marini.
- Como sabe?
- Uma dedução perfeitamente óbvia. Maximilian Strange
contratou-me para o ajudar a vender um Cavalo de Marini, em
hasta pública, por cinco milhões de libras - mais que o
cêntuplo do seu valor no mercado. É evidente que o Marini
não é o único motivo para venda. O Cavalo é apenas o
contentor.
- Compreendo. Onde terá lugar o leilão?
- No Sotheby's, daqui a três dias. O Cavalo será exibido na
National Gallery, no dia anterior ao leilão, e é aí que
irei buscar os filmes.
- Você vai roubá-los da National Gallery?
- Precisamente. Tenho um amigo que visita regularmente o
museu de noite.
- E está certo de poder pôr isso em prática?
- Tenho muita fé na pericia do meu amigo dentro e fora da
National Gallery. Irei com ele nessa ocasião.
- Ele sabe a história dos filmes?
- Não.
- Óptimo. Óptimo. - O vigário remoeu a informação durante
um certo tempo, piscando para consigo. - Diga-me. Como
foram os filmes parar dentro da estátua, primeiramente?
- Este Marini é conhecido como o Cavalo de Dallas.
232
Foi quebrado por um texano descuidado, depois soldado.
A história é largamente conhecida nos círculos artísticos.
Foi fácil abri-lo ao longo da soldadura, depositar os
filmes e
depois soldá-lo de novo.
- Compreendo. E você está absolutamente convencido
de que os filmes estão aí?
- Estou convencido que sim. Maximilian Strange detesta a
Inglaterra. É a sua única paixão. Se apenas houvesse
uma estátua de bronze para vender não haveria razão para
o fazer em Londres. De facto, a estátua foi trazida dos
Estados Unidos para aqui. É evidente que o produto nativo
são os filmes.
O vigário voltou à sua cadeira de leitura e pensou alguns
minutos, com pequenos acenos de cabeça que acompanhavam a
colocação de cada peça no seu lugar.
- Sim, estou certo que tem razão - disse por fim. É mesmo
do Strange.
- Uma hasta pública no Sotheby's! - Cacarejou. Um homem
espantoso e impudente. Um adversário que
vale a pena.
- Disse-me primeiro que considerava Strange um dos
homens mais espertos da Grã-Bretanha... o que deveria
condenar-se como fraco louvor!
0vigário levantou os olhos.
- Disse? Bem, agora estou certo de que tinha razão. Virou-
se para Yank, que estivera a olhar sem participar,
ainda pesado devido ao vinho que bebera em excesso. Enche o
copo do doutor. Parece que temos razões para
celebrar.
- Tomarei o vinho, mas deve desiludir-se se pensa que
estamos secos e no ninho. Ainda tenho que voltar para Os
Claustros e negociar com Strange. Sabe, ele ignora que o
seu Cavalo vai ser exibido na National Gallery. Não saberá
até o ler nos jornais. E não estou certo da forma como irá
reagir. Tem mantido o Cavalo bem escondido e não vai
gostar de o ver fora da toca, com a barriga cheia de filmes,
durante vinte e quatro horas antes do leilão.
- O que poderia ele fazer?
- Poderia cheirar-lhe a ratoeira. Se assim for,
provavelmente, desaparecerá na clandestinidade com os
filmes.
233
- E então?
- Perdemos a partida.
- Eu não o diria tão irreverentemente, se estivesse no seu
lugar, doutor Hemlock. Lembre-se das péssimas consequências
para a sua liberdade, se falhar.
Jonathan fechou os olhos fatigadamente e sacudiu a cabeça.
- Não creio que esteja a entender. Se Strange não engolir a
minha história e não puser o Cavalo em exibição, para
distrair a curiosidade do Governo acerca do preço de venda,
então a sua resposta em relação à minha pessoa vai ser
vigorosa, provavelmente definitiva. E a acusação de
julgamento por assassinio já não interessará nada.
- Você parece aceitar isso com bastante calma!
- Diga-me quais as alternativas!
- Sim, compreendo. Meu Deus! Você está numa rede apertada,
não está?
O desejo que Jonathan tinha de esmagar aquela cara gorda
era grande, mas apertou as maxilas e aguentou.
- Vou pedir-lhe uma coisa - declarou ele.
- O que poderia ser? - perguntou o vigário com todo o
civismo.
- Miss Coyne sai disto, daqui em diante. De facto, ela está
completamente fora da sua organização.
O vigário olhou para ele e depois para Maggie.
- Compreendo. Apercebi-me de que vocês dois estiveram
romanticamente envolvidos - bem, pelo menos, fisicamente
envolvidos. Portanto era de esperar o pedido. Acha que é
isso que pretende a jovem senhora? Talvez prefira poder vê-
lo. Dar-lhe algum apoio, se precisar. Então? - A escolha
não lhe pertence. Quero-a fora disto. O vigário respirou
pela boca, as bochechas gordas estre mecendo.
- Porque não? Ela serviu os nossos objectivos. Certamente,
minha querida. Está livre. E não tenha medo por causa do
seu golpe em Belfast. Isso será posto de parte. Divertia-se
a desempenhar o papel do senhor Bondade; era o homem de
Igreja que existia nele. - Contudo - conti nuou, voltando-
se para Jonathan -, acho que você faria melhor em tirar
vantagem da organização Lu e levar um par
234
dos nossos homens consigo até à National Gallery.
Jonathan riu-se.
- A última coisa que eu quereria era o frete de aturar o
seu par dejarretas! Aqueles tipos da MI-5, que me seguiram
até ao Celeiro de Ouro, quase me estragaram a cobertura.
- Sim, Yank contou-me isso. Fiquei muito preocupado.
Asseguro-lhe que não volta a acontecer.
- Não consegui contactar os rapazes a tempo de os
mandar retirar - explicou Yank do seu canto.
- Não me interessa. Conserve apenas qualquer tipo da
Lu afastado de mim.
- Receio que a nossa organização não o impressione
muito, doutor Hemlock. Na realidade, tenho a impressão
de que você partilha com Strange dum certo desprezo pelas
coisas britânicas.
- Não leve isso a peito. Cheguei durante um mau
período para o seu país. O século vinte.
O vigário tamborilou com os dedos na secretária.
- Será melhor que tenha êxito, Hemlook - replicou,
piscando furiosamente.
O som de cana rachada do vento à roda das esquinas da
Pousada do Olde Worlde deslizava, com a força da tempes
tade, dum tom de baixo profundo para o de um contralto.
Jonathan escutava na escuridão, os olhos vagueando pelos
sombrios ornatos do tecto.
Não falaram durante muito tempo, mas ele sabia, pelo
teor da corrente que se estabelecera entre os dois, que
Maggie estava acordada.
- Tenho que dar tempo para que os jornais falem da
história do Cavalo de Marini. Não tenho nada que fazer
amanhã, a não ser manter-me fora da circulação.
Ela voltou-se e, como resposta, colocou a mão sobre o
estômago de Jonathan.
- Queres passar o dia comigo? - perguntou ele.
- Aqui?
- Cristo! Não. Podíamos ir a Brighton.
- A Brighton?
- Não é tão louco como parece. Brighton é interessante
a meio do Inverno. Pontes desoladas. A tempestade a varrer
235
tudo. As ruelas estão vazias e o vento flauteia através
delas. As zonas de diversão estão cobertas de àgua. Há um
encanto melancólico que emana das coisas fora-de-estação.
As prostitutas enfeitadas sem terem onde ir. Os palhaços
dos circos passeando na neve.
- És um homem perverso.
- Claro. Queres ir comigo?
- Não sei.
O som metálico do granizo chocalhava contra a janela.
Depois o vento voltou de novo e o quarto ficou em silêncio.
- A noite passada, n'Os Claustros... - ela fez uma pausa,
decidindo continuar a seguir. - Lembras-te do que
eu disse?
É claro que se lembrava, mas esperara que ela estivesse
apenas a balbuciar e se esquecesse, mais tarde, de tudo.
- Oh, estavas bastante fora de ti com a droga. Fantasiavas,
apenas.
- É nisso que queres acreditar?
Ele não respondeu. Em vez disso deu-lhe pancadinhas no
braço.
- Não faças isso! Não sou um bichinho de estimação ou uma
criança que tivesse magoado o dedo do pé - disse
Maggie.
- Desculpa.
- Desculpa tu, também. Lamento que a ideia de seres amado
seja um fardo tão grande para ti. Acho que do ponto de
vista emocional és um aleijado, Jonathan Hemlock.
- Achas?
- Sim, é o que acho.
O som enrolado da última vogal fê-lo sorrir para consigo.
- Tenho um plano - explicou ele após um silêncio. Quando
esta coisa terminar, juntamo-nos e experimentamos.
Cuidadosamente. Semana após semana. Veremos o que acontece.
Ela foi obrigada a rir.
- Deus nos acuda. Se não consegues achar o tertium quid
entre uma proposta de casamento e um negócio!...
Tertium quid em latim quer dizer ao terceiro termo, aqui
pode considerar-se igualmente o meio-termo. (N. du T. ).
236
- Seja qual for, aceitas?
- Claro que aceito.
- Óptimo.
- Mas não acho que vá amanhã contigo a Brighton.
Ele ergueu-se sobre um cotovelo e olhou para baixo, para
o rosto de Maggie, apenas visível na escuridão.
- Porque não?
- Não há discussão possível. Não sou masoquista. Se
formos a Brightonjuntos com as suas pontes e a chuva e...
tudo isso... ainda ficaremos mais unidos. Riremos e faremos
confidências. Fabricaremos recordações. E então... se te
acontecer alguma coisa...
- Não me acontecerá nada: Sou um atirador, não um alvo.
- Também há alvos, querido. E pior. Tenho medo. Não
apenas por ti. Estou egoisticamente assustada por minha
causa. Não quero ficar tão ligada a ti... a minha vida tão
ligada à tua que não possa dizer qual é qual. Porque se isso
acontecer vou ficar muito ferida. Não serei capaz de me
mostrar corajosa. Enrolar-me-ei como uma bola e assegurar-
me-ei de que mais ninguém se magoará. Passarei o resto da
minha vida a olhar por entre cortinas de renda e a fazer
palavras cruzadas. Ou poderei acabar num convento.
- Darias uma péssima freira.
- Não. Deita-te e ouve. Pára com isso. Agora vou dizer-te o
que farei. Amanhã de manhã regresso ao meu apartamento e
vou direita para a cama, com um saco de água
quente e um livro. E, de vez em quando, andarei em bicos
de pés e farei um pouco de chá. E quando a noite cair farei
o
mesmo. Espero que chova todo esse tempo, porque Sterne
sabe melhor quando se ouve a chuva a cair. Depois, na
terça-feira à noite, encontrar-me-ei contigo no vicariato.
Tu
entregarás os filmes e dir-lhes-emos adeus e partiremos. E
se
tu não voltares ao vicariato... Se tu... bem, então talvez
eu
vá a Brighton sozinha. Só para ver se te ouço no vento que
flauteia através das Lanes.
- Estarei lá, Maggie. E iremos os dois a Estocolmo.
- Estocolmo?
- Sim. Não te cheguei a dizer. Concordámos em que eu
faria umas conferências na Suécia. Conheço um hotelzinho na
Gamla Stan que é...
237
- Por favor...
- Desculpa.
- E não me telefones antes de ter acabado tudo. Acho que
não suportaria estar ao pé do telefone tempos infinitos,
aguardando que tocasse.
Jonathan sentiu-se muito orgulhoso de Maggie. Ela encarava
magnificamente as coisas. Deu-lhe um abraço forte.
- Oh, Maggie Coyne! Se ao menos soubesses cozinhar! Ela
voltou-se e fitou-lhe os olhos, com uma seriedade jocosa.
- Realmente, não sei, bem sabes. Não sei cozinhar
absolutamente nada.
Jonathan sentiu-se aliviado. Assim era muito mais fácil
para ele. Levar aquilo a brincar.
- Tu... não sabes... cozinhar!...
- Só cornflakes. E também detesto Eisenstein, não sei
dactilografar e não estou virgem. Ainda me queres?
Jonathan engasgou-se.
- Não és... virgem?
- Acho que devia ter-te contado mais cedo. Antes de me
entregares o teu coração.
- Não, não. Tiveste razão em ocultar-me isso até eu poder
descobrir em ti qualidades que te redimem. É só... só algum
tempo para me habituar à ideia. Ao principio magoa um
pouco. E, pelo amor de Deus, não me digas o nome dele!
- O nome dele? - respondeu ela com uma confusão inocente. -
Oh! Oh! queres dizer os nomes deles!
- Oh! Deus! Como consegues tu revolver o punhal na ferida?
- É canja! Não custa nada. É só pegar nele pelo cabo e...
- Oh! Ainda zombas da minha dor!...
Finalmente, beijaram-se e depois anicharam-se no que era a
sua posição habitual para dormir. A chuva fustigava a
janela e o vento executava a sua escola tónica chinesa. Por
fim, Jonathan deslizou para um sono profundo.
238
- Jonathan?
Ele acordou estremunhado, sentou-se e levantou as mãos
defensivamente em frente do rosto.
- O que foi?
- Achas que eu daria uma péssima freira?
- Boa-noite, Maggie.
- Boa-noite.
PUTNEY
A manhã ia em meio quando Jonathan regressou ao seu
apartamento de Baker Street, depois de ter guiado
rapidamente para fora de Brighton com as janelas do Lotus
baixadas e o vento húmido enrolando-se-lhe nos cabelos.
O dia que passara sozinho fora-lhe benéfico; sentia-se em
forma e capaz de actuar com rapidez. Chovera sem parar -
uma chuva pesada, contínua, que enchia as sarjetas e se
escoava para os canos. Envergara um impermeável, pusera um
cachecol e passeara lentamente pelas ruelas desertas,
através das pontes açoitadas pelo vento - o colarinho largo
do impermeável protegendo-lhe o rosto.
Fora melhor Maggie não ter vindo. Era uma rapariga
inteligente.
Comera num café barato, o único cliente. O proprietário
mantivera-se de pé, perto da janela maltratada pela chuva,
as mãos debaixo do avental cheio de manchas e lamentara o
alto custo de vida e o mau tempo, os quais, ele tinha
razões para saber, se haviam alterado para pior devido aos
Sputniks e testes atómicos.
Para passar despercebido, escolhera uma cama e um pequeno-
almoço baratos, mas a dona da casa, enérgica e faladora,
reconhecendo o seu sotaque perguntara-lhe se alguma vez
encontrara Shirley Temple cara a cara. Deus a abençoasse
com aquele lindo barco Lollypop e o preto que costumava
dançar nas escadas, abaixo e acima (todos eles sabiam
dançar, tinha de se lhe reconhecer isso). Era uma pena que
todas as cenas de interiores fossem feitas em salas de
jogo, mas agora já não faziam filmes como aqueles,
portanto, talvez não fosse assim uma perda tão... E depois
a dona da casa ainda trauteou, de lábios cerrados, um
pedaço da Rainbow on the River para si mesma. Não, ele
nunca conhecera Bobby Breen. Lamentava muito.
Naquela noite acordara em sobressalto - tão repentinamente
240
que horríveis fragmentos dum pesadelo foram apanhados à luz
da memória antes de mergulharem na obscuridade do
inconsciente. Os Claustros. Strange não engolira
a sua história e ia matá-lo. O homem com duas bocas
rodava montado num cavalo de bronze, ambos com um
sorriso arreganhado. Leonard erguia as pestanas, revelando
apenas a parte branca dos olhos cheia de sangue. Ele
sufocava, tentando desesperadamente rir. Estava lá a
Espantosa
Grace - insolente, nua. Ataram-no a uma mesa de exercícios.
Um altar. Violência académica.
A seguir as imagens esbateram-se, todas sugadas no vór
tice do buraco da memória. Ele sorrira para consigo,
limpando do rosto o suor gelado e voltara a adormecer.
Logo que chegou ao apartamento da Baker Street, antes
mesmo de desfazer as malas ou de tirar o impermeável,
telefonou para Vanessa Dyke. Toda a manhã se sentira
preocupado em relação a ela, temendo que tivesse regressado
a Londres mais cedo por qualquer razão. O telefone
tocou vezes sem conta e Jonathan sentiu um enorme alívio.
Então, justamente quando ia desligar, houve um estalido e
uma voz masculina disse:
-Sim?
Jonathan pensou que reconhecera a voz.
- Posso falar com Miss Dyke? - perguntou, apreensivamente.
- Não, não pode. De certeza que não o pode fazer.
A voz estava entaramelada pelo álcool mas agora não
havia dúvidas.
- O que está a fazer aí, Yank?
- Oh, claro. Suponho que é o doutor Hemlock. O
homem que larga piadas acerca da Estação de Alimentação.
- Porte-se como deve ser, miolos de merda! O que faz
aí? Aconteceu alguma coisa a Van?
Foi um Yank diferente, vazio e fraco, que respondeu.
- Seria melhor vir aqui.
- O que foi?
- Seria melhor vir aqui.
Diabos levassem aquilo!
Em fúria, abriu o coldre que tinha no peito.
Automaticamente verificou a carga dos dois revólveres:
cinco dunduns a dobrar em cada cilindro e o cão sobre um
vazio. Colocou as armas no fundo duma pasta para documentos
e cobriu-as com meia dúzia de jornais, que comprara lá fora
no hotel, cada um com um artigo sobre o futuro leilão do
Cavalo de Marini e a novidade de que este seria exibido
naquele dia na National Gallery. Os jornais serviriam para
explicar a pasta para documentos quando a levasse para Os
Claustros.
Mas, primeiro, Vanessa.
Saiu do táxi e pagou ao motorista, atravessando depois o
portão aberto e o jardim pequeno com as suas hortênsias
embaçadas.
Yank abriu a porta antes dele bater, com uma expressão vaga
e uma rigidez no porte que indicavam que estivera a beber.
- Os rapazes maus levaram a melhor, boneco. Entre e ponha-
se à vontade.
Jonathan empurrou-o e entrou na sala de estar, onde ele e
Vanessa haviam tomado chá alguns dias antes. Estava outra
vez frio e húmido. Ninguém pensara em acender o lume. A
máquina de escrever portátil estava ainda na mesa perto da
janela e os livros de consulta abertos ao seu lado. A louça
Spode, por onde haviam bebido, não tinha sido lavada, o
abafador perto do bule, as borras de chá cor de estanho no
fundo das chávenas.
Ela jamais partira para Devon.
Jonathan olhou em volta para a mobília antiquada, para as
cortinas de renda, para as cobertas que protegiam os
móveis. Tudo o acusava.
- Morta? - perguntou penetrantemente.
Yank estava de pé, no limiar, apoiando o seu peso na
moldura da porta.
- Eliminada. Morta como um peixe.
- Onde está ela?
- Além. - Acenou na direcção da cozinha e duma porta
fechada. Jonathan pegou numa garrafa de uísque de Vanessa e
despejou algum num copo.
- Os Claustros? - perguntou, pegando no copo e sentando-se
junto dele.
242
- Quem mais, amigo? O seu modus operandi é um cartão de
visita. Foi no estilo do assassínio do Parnell-Greene. Acho
que é melhor sentar-me. - Deixou-se cair numa poltrona fofa
e pousou a cabeça na coberta enquanto respirava pela boca
nas vascas da náusea. - Devem ter sido três ou quatro.
Eles... - Molhou os lábios e engoliu. - Eles violentaram-
na. Várias vezes. E não só com... com eles. Usáram...
coisas. Utensílios de cozinha. Morreu de hemorragia. Está
ali. Se quiser pode vê-la. Eu fi-lo, portanto, é
exactamente o que você deveria fazer. - Pôs-se de pé
demasiado depressa, sem equilíbrio suficiente. - Sabe você
o que estive a pensar? Foi provavelmente a única vez que
ela fez amor com um homem.
Jonathan deu meia volta e bateu com a quina da mão no
maxilar de Yank. Este caiu em monte, como se não tivesse
ossos. Era injusto, mas Jonathan teve que agredir alguém.
Havia uma mala de viagem meia aberta em cima duma cadeira.
Ela devia estar a preparar-se para partir quando eles
apareceram. Na carpeta havia uma longa queimadura de
cigarro. Provavelmente caíra do canto da sua boca.
Ele fez-se forte e entrou na cozinha. Vanessa estava na
mesa, coberta da cabeça aos joelhos com um impermeável. O
de Yank. Só o torso se apoiava na mesa. As pernas nuas, sem
depilação, pendiam da extremidade. Os pés eram longos e
ossudos, como os de um Cristo num crucifixo mexicano, e os
dedos virados para dentro, flácidos, bamboleantes, falavam
mais alto de morte do que o odor adocicado e espesso.
Precisando de aceitar a sua parte do castigo, Jonathan
puxou para baixo o abrigo e olhou-lhe o rosto. Estava
contorcido num esgar que deixava ver os dentes. Olhou para
longe.
Não havia marcas de ferimentos na cara. Aparentemente ela
mantivera a consciência durante o maior espaço de tempo
possível. Dois ou três deviam tê-la segurado em cima da
mesa enquanto Leonard a violava, antes de investigar os
armários da cozinha até encontrar coisas para...
Leonard: Jonathan pronunciou o nome alto para si mesmo.
Yank conseguira levantar-se na altura em que Jonathan
voltara à sala de estar, mas mostrava-se perturbado e
chorava.
343
- Vou sair disto! - disse na direcção da parede.
- Sente-se. Controle-se. Não está assim tão bêbado.
- Como podem as pessoas fazer estas coisas? E não só os
d'Os Claustros. Como pode existir uma coisa como a Estação
de Alimentação? Não quero nada disto! Quero apenas um
rancho em Nebrasca!
- Sente-se! Não estou impressionado pela sua súbita
sensibilidade perante a violência. Lembre-se de que eu não
estaria envolvido nisto tudo - e Vanessa também não - se a
sua gente não me tivesse atado à montagem daquele crime.
Portanto, cale a boca! A polícia já descobriu o que se
passou?
- Você é mesmo um filho da puta com coração de gelo, não é?
Um verdadeiro profissional.
- Até que ponto quer que eu o magoe?
- Vá! Bata-me lá!
Jonathan bem o desejava. Na realidade estava morto por isso.
Mas respirou fundo e perguntou:
- A polícia já foi informada?
Yank deixou pender a cabeça e meteu-a entre as mãos.
- Não - replicou calmamente. - Receberão uma chamada
anónima mais tarde. Depois de sairmos daqui.
Jonathan examinou a sala. Ele não dissera a Strange o nome
dela, apenas o confirmara como prova da sua sinceridade.
Portanto, não fora realmente culpa sua. E logo a seguir
sentiu-se contente por conseguir achar refúgio nessa ideia.
Antes de partirem, voltou-se para Yank.
- Não se esqueça do seu impermeável.
Yank fitou-o com a desilusão e o desgosto a flutuar-lhe nos
olhos.
- Ela era sua amiga.
Jonathan saiu. Durante uma hora passeou pelas ruas cor de
zinco de Putney, através do fog espesso, passando por
melancólicas filas de casas de tijolo, algumas delas com
embaçadas hortênsias nos seus miseráveis jardinzinhos da
frente.
Depois apanhou um táxi para Os Claustros.
OS CLAUSTROS
a beleza física é uma finalidade que vale a pena por
si mesma, é claro. Mas há muitos benefícios secundários. Os
rituais que ela acarreta são quase tão válidos como os seus
objectivos. - Max Strange descansou por uns momentos
no pico duma flexão. - Quantas já fiz? - perguntou ele ao
massagista.
- Sessenta e seis, senhor.
Strange deixou escapar um resto de ar e recomeçou.
- Sessenta e nove, setenta. Por exemplo, o doutor Hemlock.
Eu faço o melhor que posso quando estou a tomar
banhos de sol ou a exercitar-me ou a apanhar vapor.
Deixou-se cair para trás na mesa de exercícios com um
grunhido. - Já chega.
Enquanto o massagista espalhava lanolina cremosa no
corpo de Strange, Jonathan olhou em redor da sala de
exercícios, verde e escura através das lentes redondas que
protegiam os seus olhos dos raios ultravioletas das
lâmpadas que rodeavam Strange. Leonard e o homem com duas
bocas
estavam de pé perto daquele, e mais três guarda-costas de
Strange apoiavam-se às paredes com uma languidez falsa,
estudada - entre eles o tipo com capas amarelas temporárias
nos dentes da frente. As grossas lentes verdes faziam
com que o grupo se parecesse com esses mutantes homem-
insecto tão populares entre os apreciadores dos maus filmes
de ficção.
Jonathan controlou o seu ódio, afastando a ideia de
Vanessa e olhando para longe de Leonard. Tinha que parecer
casual e descontraído.
O rosto e pescoço de Strange estavam a ser massajados
com lanolina aquecida e a voz saiu-lhe um pouco
constrangida quando disse:
- Enquanto tomava um pouco de sol e fazia exercício
pensei num grande negócio que podíamos fazer.
245
- Isso é simpático - respondeu Jonathan. - Trago-lhe alguns
exemplares dos jornais. Provam que tenho estado ocupado.
Após isto ninguém porá em questão o preço do Cavalo de
Marini.
- Sim. Já li os jornais.
- Suponho que está satisfeito.
- Até certo ponto. Mas essa história de exibir o Cavalo na
National Gallery!... Não me lembro de termos combinado isso.
- Foi uma inspiração de momento. Disse-lhe que precisava de
uma certa liberdade de movimento. Depois dos meus primeiros
contactos percebi que os críticos não iam receber a minha
conversa de peito feito, sem qualquer espécie de apoios. E
ocorreu-me a ideia de pedir emprestada a autoridade da
National Gallery. Custou-me mais de dez mil consegui-la.
- Compreendo. - Strange deteve a mão do massagista.
- Já chega. Pode fechar as luzes. - Sentou-se na beira da
mesa e tirou os óculos de protecção. - Você tem uma mente
subtil, doutor Hemlock.
- Muito obrigado.
Strange olhou para ele inexpressivamente.
- Sim... uma mente subtil. Venha daí. Vamos tomar um pouco
de vapor, juntos. Far-lhe-á muito bem.
- Agora não, obrigado.
Strange olhou para o chão.
- Épena, não acha? que a maioria das tentativas para
frasear com cortesia corram o risco da ambiguidade retórica.
Constituíam um sortido estranho de formas e carne, sentados
os quatro ao vapor tumultuoso, com as toalhas à roda da
cintura. Bom material para Daumier. Havia o corpo de
Strange, tostado como numa grelha, classicamente musculado
- o mais jovem e o mais velho de todos eles; o de Jonathan,
esguio, fibroso - o físico dum alpinista; a estrutura magra
e frágil de doninha do homem com duas bocas - da cor da
barriga dum peixe e sem pêlos, uma carcaça de galinha
ressequida, um xilofone de costelas, uma das bocas
arreganhada devido ao desconforto social, a outra mal-
humorada pela mesma razão; e o volume de primata de
246
Leonard com o seu forte e curto pescoço, e pernas de
balaústre - com tufos de cabelo irrompendo dos ombros
monstruosos, a sua cabeça inclinada para trás, os seus olhos
de pesadas pestanas sempre em cima de Jonathan.
Até Strange falar, o silêncio foi acentuado pelo silvo
monótono do vapor que entrava.
- Estou descontente consigo, doutor Hemlock. Nunca
deveria ter combinado a exibição pública do Cavalo sem o
meu consentimento.
- Bem, parece que não podemos fazer grande coisa
acerca disso.
- É verdade. Qualquer alteração no seu plano amplamente
publicitado atraíria a atenção. Não tenho alternativa.
E é por isso que estou descontente.
- Não se preocupe. O sistema de segurança da National
é um dos melhores do Mundo.
- Não é essa a questão.
- Raios! Então qual é?
Strange voltou-se para o indivíduo de peito magro, com
duas bocas.
- Querido, vai buscar a pasta de couro.
O servo-doninha ergueú-se e deixou a sala, fazendo rolar
o vapor à sua passagem.
- Querido?: - não pôde Jonathan deixar de perguntar.
- É o nome dele. Keneth Darling. Eu sei, eu sei. O destino
compraz-se nas suas pequenas ironias. Mas neste
momento estou menos preocupado com as gracinhas do
Destino do que com as suas.
- Alguma gracinha em particular? - Seria melhor continuar a
representar.
Strange encostou a cabeça à parede de azulejos, gotejante,
e fechou os olhos.
- Onde tem estado nos últimos dois dias?
- Combinando as coisas para o leilão. Contactando críticos
de jornais e revistas. Arranjando as coisas para a
exibição na National Gallery. Na realidade, ganhando o
meu dinheiro.
- Um homem consciencioso.
- Ambicioso. O que o preocupa, Max?
- Você foi seguido desde que saiu daqui.
247
- Não me diga!...
- E mais uma vez, tal como antes, os meus homens o perderam
naquela barafunda de ruas do Covent Garden.
Jonathan encolheu os ombros.
- Lamento que a sua gente seja incompetente. Se conhecesse
o idiota que me seguiu, ter-lhe-ia deixado um carreiro de
migalhas.
- Durante dois dias você não voltou nem ao apartamento da
Baker Street nem ao de Mayfair. Onde esteve?
Jonathan pensou profundamente e começou a falar lenta e
claramente, como se fosse para uma criança traquina ou um
agente de viagens.
- Depois de fazer as combinações por causa do Cavalo, fui
esconder-me para Brighton. Porquê, perguntará você agora,
fui eu esconder-me? Dir- lhe-ei porquê. Parecia-me mais
prudente passar o mais despercebido possível até estar tudo
pronto. O que fiz em Brighton? Bem, li um bocado. E dei
dois longos passeios através das ruelas. E uma noite,
eu...
- Muito bem.
- Está satisfeito?
- Não fale como se fosse um dos meus empregados.
- Já agora, onde estão os seus empregados? Quando aqui
cheguei, isto parecia deserto.
- E está, excepto no que diz respeito a um pequeno grupo de
pessoal. Os Claustros já não estão abertos.
- Isso deixará em falso uma grande brecha na vida social
das nossas personagens mais importantes.
Strange afastou com a mão esta linha oblíqua de conversação.
- Quando voltou a Londres, esta manhã, foi ao seu
apartamento da Baker Street. Daí apanhou um táxi para casa
de Miss Vanessa Dyke, em Putney.
- Certo! Certo! O preço foi uma libra e seis, uma e
cinquenta com a gorjeta. O motorista achava que o Governo
devia banir carros particulares da cidade. Principalmente
quando há fog, o qual, já agora, ele julga que são
pedaços maciços de gelo arrancados à capa polar em
resultado das recentes idas à lua da Apolo...
- Por favor!
248
- Não sei se você julga que lhe estou a esconder alguns
pormenores.
- Quando em Putney, você descobriu indubitavelmente
o acidente que vitimou Miss Dyke.
Jonathan olhou de relance para Leonard.
- Acidente. Sim.
- Deve parecer-lhe - explicou Strange, esticando as
pernas sobre o banco de pinho até os músculos se
salientarem - que o nosso tratamento para com Miss Dyke foi
exagerado. Afinal de contas, ela era apenas culpada de o ter
colocado na nossa pista num momento em que nós já o
procurávamos activamente. Mas os anos têm-me ensinado
que a violência e o terror, se têm que ser armas eficazes,
devem ser exercidos sistemática e inexoravelmente. Propomos
certas regras de conduta e temos de reforçá-las sem as
referenciar a motivos individuais. Neste aspecto actuamos
como os governos. A nossa sorte é termos Leonard para
levar a cabo os castigos. Eu solto-o como uma fúria
inelutável e as punições são automáticas e profundas. O
efeito da
atitude de Miss Dyke não teve peso nesta questão. Ela foi
punida pela sua intenção.
O ar frio penetrou na sala do vapor e este ondulou
quando Darling voltou com uma pequena pasta de couro.
- Ah! - exclamou Strange. - Cá a temos. Leonard,
podes dar uma ajuda a Darling?
Leonard levantou-se e lançou os seus grossos braços em
volta do peito de Jonathan, entrelaçando os dedos na frente
e imobilizando dos dois lados os membros superiores da sua
vítima. Após a primeira reacção automática, a resistência
àquele envolvimento de Píton estava fora de questão. Com
uma pressa desajeitada, Darling abriu a pasta, tirou uma
seringa e injectou o seu conteúdo no ombro de Jonathan.
- Podes soltá-lo, Leonard. Mas se ele fizer o mais pequeno
gesto agressivo em relação a mim, quero que lhe
batam, magoando-o um bocado. - Strange olhou obliquamente
para Jonathan. - Não é por eu ser fisicamente
cobarde, doutor Hemlock. Mas seria muito lamentável se
você prejudicasse o meu rosto. Com certeza que, como
amante da beleza, consegue compreender.
Jonathan respirou o mais superficialmente possível, lutando
249
para manter a velocidade do seu pulso baixa e a mente
lúcida.
- O que vai acontecer, Strange?
Strange riu-se.
- Oh, não ligue! Soaram as badaladas da meia-noite. É tempo
de parar de dançar e tirarmos as nossas máscaras: Não se
preocupe com a hipodérmica. Não o matará. De facto, não
terá o menor efeito durante cinco ou dez minutos. E mesmo,
então você achá-la-á muito agradável. A rapariguinha com
quem você brincou na outra noite estava debaixo duma droga
similar. Vai descontraí-lo, acalmar os seus impulsos
agressivos, torná-lo dócil e obediente.
Jonathan não o sentia.
- Por que fez isto?
- Oh! Acho que você já serviu os nossos propósitos, não? E
devia ficar contente por saber que os seus planos seguirão
tal como desejou. Dentro duma hora chegará a carrinha à
prova de roubo para levar o Cavalo para a National Gallery,
onde será o alvo da atenção das multidões ansiosas. E
amanhã estará no Sotheby's. Claro que soubemos sempre o que
você fazia. Acerca dos seus amigos da Lu. E acerca do velho
vigário pomposo.
Saberia ele algo de Maggie? Foi a primeira preocupação de
Jonathan.
- Diga-me uma coisa, Jonathan, sinto que agora posso usar o
seu primeiro nome, o seu cérebro está ainda suficientemente
claro para perguntar porque o deixámos ir tão longe?
- É bastante óbvio. Você tem um problema real em negociar
abertamente a venda dos filmes sem alertar as autoridades
britânicas.
- Precisamente. E o bom Deus enviou-o para nos fazer isso,
e com a bênção da organização Lu, também! Evidentemente
você tencionava interceptar o Cavalo de Marini enquanto ele
estivesse na National Gallery, mas agora já não terá que se
preocupar com isso. Amanhã, um pouco depois do meio-dia, o
martelo do leiloeiro cairá. O Governo britânico, com todas
as suas concessões comerciais, segredos defensivos, riqueza
e problemas, tornar-se-á propriedade daquele que licitar
mais alto. E eu e a Espantosa Grace desapareceremos.
250
- Mas se eu não surgir com os filmes...
Jonathan parou e fez uma cara séria. Era estranho,
pensou ele. Esquecera-se do que ia a dizer.
Strange riu-se.
- Como é natural considerei essa hipótese. O seu vigário
sabe que os filmes estão no Cavalo e se você os não levar,
ele ver-se-á obrigado a fazer outras combinações, por muito
relutante que esteja em meter nisto a polícia. Levei em
conta
essa possibilidade e neutralizei-a. E, como é evidente,
neutralizei-o a si. Você não irá a qualquer sítio que se
aproxime da National Gallery.
Fosse como fosse, Jonathan não se importava. O vapor
estava a saber-lhe muito bem. Era acariciante. Penetrava
nos seus músculos e bulia agradavelmente com eles. Não
havia nada de que ter medo. Maximilian Strange era um
homem simpático, um homem culto... o que teria aquilo a
ver com o resto?
- Posso... oh... - o que iria ele dizer? - Oh, sim! Vou
morrer?
- Oh, acho que sim. - Strange disse isto com uma calorosa
preocupação. - Mas não já.
- Compreendo - replicou Jonathan reconhecendo o
significado profundo daquelas palavras. - E se não vou
morrer agora - deduziu ele - então vou morrer mais
tarde. Isto é: toda a gente morre mais cedo ou mais tarde,
sabe? - Sentia que agora eles o percebiam. Ninguém podia
negar tal coisa.
- Vamos mantê-lo vivo por um tempo, só no caso de
algo correr mal. Você poderia ter qualquer valor de troca.
Estava certo, pensou Jonathan. Ele próprio devia ter
pensado nisso. Era uma óptima ideia.
- Ajudem-no a ir para o quarto - disse o Strange.
- Não, está tudo bem - respondeu a voz de Jonathan.
- Muito obrigado, mas está tudo muito bem. Eu posso...
- Mas ele não podia. Não conseguia pôr-se de pé. E aquilo
era espantosamente divertido.
Não, não era divertido. Era, na realidade, muito grave.
E perigoso.
Mas divertido.
Um homem muito prestativo chamado Darling - também
251
divertido - ajudou Jonathan a erguer-se. Leonard olhava
benevolentemente.
- Não o vistam - disse Strange, rrflexivamente. A nudez é
um grande estorvo psicológico. Ninguém é valente quando
está nu.
Aquilo era prudente, na verdade. Como se podia ser um herói
com o sexo pendurado? Pobre Leonard! Não podia falar. Mas
tinha morto Vanessa! Não esqueças isso! E esses outros
tipos tinham-na segurado sobre a mesa. Jonathan deveria
dar-lhes uma lição.
- Leonard - disse ele, aduladoramente, batendo com os nós
dos dedos no torso, forte como uma árvore, do outro -, tu
és mudo. Sabes isso? És tão mudo como uma bala. De facto és
uma dundum.
- Vamos embora, rapaz. - E Darling conduziu-o para fora da
sala do vapor.
- Cá fora está frio, Darling. Preciso da minha mala de
documentos para me manter quente. - Teriam investigado o
que ela continha?
- Vem daí comigo, pá? Estás bêbado com a droga. A voz de
Darling fazia um eco estranho. Então Jonathan percebeu
porquê. Ele tinha duas bocas! Como era natural, fazia eco!
Os degraus provaram ser muito difíceis de trepar. Era por
causa da ondulação, claro! O quarto para onde o levaram era
o mesmo onde ele estivera na outra noite. Com Maggie.
Não devia mencionar o nome dela!
Jonathan foi guiado até à cama, onde se deitou devagar,
muito devagar, profundamente.
- Espera um minuto!
Darling respondeu de todos os cantos do aposento:
- O que foi?
- Acho que não tenho a minha pasta de documentos. Preciso
dela... para fazer de almofada.
- Olha, rapaz. Desiste; está bem? Já vi lá dentro e tirei
as armas. Mr. Strange deu-mas de presente.
Jonathan sentia-se extremamente desapontado.
- Isso é péssimo. Eu quero matá-los a todos. Sabes o que
quero dizer?
Darling riu a bandeiras despregadas.
252
- Isso é mais difícil, pá. Acho que não tens sorte. Acho
que foste derrubado. Voltarei dentro dumas horas para te
dar uns tiros.
- Oh?
- Uns tiros de droga. Ela dura apenas quatro ou cinco
horas.
- Oh! Lamento imenso. Mas mesmo assim, todas as
coisas são mutáveis. Excepto a mudança, claro. Isto é...
a mudança não pode ser mutável porque... bem, é como
todas as generalizações serem falsas... e os anjos no cume
dum pinheiro. Percebes o que eu quero dizer?
Mas Darling desaparecera, trancando a porta atrás dele.
Jonathan ficou nu, com os braços e as pernas abertas,
olhando com espanto e admiração as alterações que se
davam no rectângulo do tecto, em paralelogramos e
trapézios. Era esquisito nunca ter dado por aquilo antes!
Tinha frio. Suava e tinha frio. Não havia cobertores na
cama. Só um lençol. E aqueles bastardos ordinários tinham-
lhe tirado a roupa!
Puxou o canto do lençol por sobre o peito e arranhou
este com força, à medida que sentia o corpo despertar com
as imagens e as ideias que lhe ocorriam. Tentou focar essas
imagens e ideias mas elas desvaneciam-se quando se
concentrava, como as estrelas obscuras que só podem ver-se
perifericamente.
Parecia que devia sair dali. Ir a um museu com MacTaint.
Por uma razão qualquer... por uma razão qualquer...
Era verdade o que Darling dissera. Tinha sido completa e
verdadeiramente derrubado. Derrubado. Derrubado.
Mais tarde... quatro minutos? Quatro horas? - ele tentava
controlar o tempo. Uma náusea. Ondulava, quando se punha de
pé, de forma que ajoelhou e encostou a testa à
alcatifa e realmente foi melhor assim.
Sim! Tinha que ir com MacTaint buscar os filmes que estavam
dentro do Cavalo de Marini. É claro! Mas fazia frio. A sua
pele mostrava-se viscosa quando lhe tocava.
A janela.
Então, o desenho da alcatifa prendeu-lhe a atenção. Bonito,
colorido e numa mutação subtil e constante. Lindo.
253
Esquece-te da alcatifa! A janela!
Rastejou até lá, repetindo a palavra janela, uma e outra
vez, de forma a não se esquecer do que fazia. Levantou-se e
olhou para fora. Fog. Quase noite. Estivera inconsciente
quatro horas. Em breve eles voltariam para o injectarem
novamente.
Com as duas mãos rodou o trinco e abriu a janela. Foi
obrigado a agarrar-se à parte central da bandeira da janela
antes de se atrever a espetar a cabeça e a olhar para baixo.
Não havia hipótese. Nunca. O quarto ficava no último andar.
Telhas vermelhas projectavam-se sobre a janela e por baixo
havia três pisos assustadores que terminavam num terraço de
laje. O edifício estava revestido com granitado. Nada de
fendas, de encaixes, nem saliências que levassem aos
caixilhos das janelas.
Não havia hipótese. Mesmo como campeão de alpinismo. Jamais
poderia descer a parede sem uma corda apropriada.
Corda apropriada. Voltou para dentro do quarto, quase
desmaiando com a velocidade do movimento.
Nada. Apenas o lençol. Demasiado curto. Era por isso que
eles haviam retirado a roupa da cama.
Foi capaz de voltar a esta. Teve que se esforçar até ficar
deitado, mas não queria rastejar. A mente aclarava-se-lhe.
Mais meia hora, talvez. Depois seria capaz de se mexer. E
de pensar. Mas não haveria meia hora. Eles voltariam antes
disso.
Manteve-se deitado de costas, tremendo de frio, o qual
parecia emanar dos seus ossos. A euforia passara e uma
náusea seca substituíra-a. Agora, tenta pensar! Como anular
depressa o efeito quando eles voltarem e te injectarem
outra vez? Tinha que pensar nisso antes de regressarem, e,
novamente, mergulhou na agradável e perigosa euforia.
Sim. Queimar a droga! Com exercício. Logo que eles saíssem,
da próxima vez, ele começaria a fazer exercícios. Fazer com
que o sangue corresse depressa. Precipitar os efeitos e
eliminá-los. Devia dar-lhe cerca de meia hora para se mexer
e pensar, antes deles voltarem para a terceira dose.
Oh, mas esquecera-se! Uma vez aplicada a droga jazeria ali
e olharia para o tecto, esquecendo-se de fazer os
exercícios. Teria de pôr o plano de parte.
254
Olhou desesperadamente em redor. Havia uma estreita cornija
sobre uma lareira ornamentada, que fora bloqueada. Devia
servir. Decorreriam quatro ou cinco minutos pela certa após
lhe terem injectado a droga e esta entrár na circulação
sanguínea. Durante esse tempo exercitar-se-ia furiosamente
para obrigar os efeitos a surgirem. Depois, antes que eles
o aniquilassem, subiria para a cornija onde faria
exercícios isométricos para o coração se manter a bater com
força, de forma a repelir a droga. E se a cabeça se
desnorteasse, se a droga começasse a puxá-lo para longe,
caíria da cornija. Isso deveria acordá-lo. E se acordasse,
subiria de novo e continuaria os exercicios. De alguma
forma havia de obrigar os efeitos a passar mais depressa.
Ganharia tempo antes da terceira picada.
Agora descontrai-te. Esvazia a mente.
Ouviu um som lá em baixo no átrio. Iam voltar. Descontrai-
te. Fá-los pensar que ainda estás fora de combate. Imaginou
o tanque calmo por trás das pálpebras. Daquela vez o
controlo era importante. Tinha que actuar depressa.
Darling precedeu Leonard, à entrada no quarto. Abriu as
luzes e avançaram para a cama, com a sua forma tranquila
esticada sobre o lençol enrugado.
- Ainda drogado - comentou Darling, enquanto abria a mala
de couro. - Deus, o que é isto? Olha para ele! A quantidade
de suor! Está frio! Aqui. Põe a tua mão no coração do tipo.
Sente os golpes do coração. O que achas, Leonard? Talvez
seja desses gajos com uma tolerância baixa. Outra dose
podia matá-lo!
Mas Leonard tirou a seringa da mão de Darling, e, agarrando
Jonathan por um braço, espetou-lhe a agulha no músculo do
ombro e despejou o conteúdo, sem sequer verificar se havia
ar na ampola.
- Nem sequer recuou - disse Darling. - Estás a divertir-te,
não? Eu bem te disse que ele estava drogado. Se morrer
antes de Mr. Strange querer lembra-te que não vou aguentar
com as culpas.
E sairam fechando as luzes e a porta atrás deles.
Lentamente, Jonathan abriu os olhos. Deixou que a
necessidade de oxigénio do organismo lhe controlasse a
255
respiração. Sentia-se bem; fraco mas controlado. Mas sabia
que a deliciosa assassina estava ali, misturada no seu
sangue. Levantou-se tão depressa quanto lhe permitia o seu
precário equilibrio, levando consigo o pequeno lençol, até
à janela aberta. Após algumas tentativas, atou uma das
extremidades à faixa central do caixilho, deixando os dois
metros e meio de lençol pendurados para fora. Depois
deitou-se no chão e começou a fazer exercícios. Sentar até
os músculos do estômago se queixarem, depois deitar.
Durante mais de um minuto não sentiu qualquer efeito da
droga. Para cima. Para baixo. Para cima. Para baixo. Para
cima - e para cima e para cima. Parecia erguer-se tão
devagar, com tanto esforço!... É isso mesmo, disse para si.
O exercicio resultava. Estava a absorver depressa. Decidiu
que era tempo de alcançar a cornija. Pôs-se de pé. Mas uma
das zonas do quarto deslizava e penetrava pela outratodas
as linhas convergiam para os cantos em escala extremamente
reduzida.
- Deus - murmurou ele. - Esperei demais! Está a acontecer
demasiado depressa.
A cornija estava lá, do outro lado do quarto. Levantou os
braços e estendeu-se para ela, esperando poder oscilar e
cair na sua direcção. Mas o golpe veio por detrás.
Inclinara-se e batera na parede. O quarto pareceu encher-se
com o ruido estridente da sua respiração. Teve medo que o
ouvissem.
Não podia ir até lá. Rolar no chão e rastejar. Era mais
seguro. Bela. Bela alcatifa. Oh, não! Estava sozinho num
mar infinito de chão. Não sabia em que direcção seguir.
Conseguia ver a cornija quando olhava para cima, mas aquela
mudava de sitio e nenhum deles ia ficando mais perto.
Sentou-se no chão, um pé debaixo do corpo, a outra perna
estendida para a frente, a cabeça caída e o queixo
encostado ao peito, a respiração oral e rápida. Sentia-se
sem peso. E contente. Confortável e demasiado
divertidaaquela tentativa para chegar à cornija.
Não! Cerrou os dentes e obrigou-se a pensar. Continua a
rastejar. Até uma parede. Depois arrasta-te ao longo dessa
parede. Finalmente, deves chegar à lareira.
Continuou a rastejar. Uma vez aí descansou com o rosto
256
no canto do quarto e as paredes parecendo macias e
confortáveis contra as faces. Desejava tanto dormir! Mas
arrancou-se à ideia e continuou a rastejar. Então, a sua mão
tocou o mármore - com um grão lindo, um mármore
quase luminescente. Aquilo era a lareira.
Agora trepa!
Demasiado alto. Demasiado difícil.
Trepa!
Por duas vezes escorregou e caiu no chão, precisando de
toda a sua força mental para resistir ao desejo de ficar
ali a admirar o tecto.
Finalmente, ficou de pé na borda da lareira, as costas
contra a parede, os braços em cruz, os dedos tentando
agarrar-se às flores do papel da parede. Estava assustado e
o coração galopava-lhe. O chão, encrespado e manchado,
estava lá em baixo, tão longe!
Óptimo. O medo era óptimo. Fazia com que o pulso lhe
batesse mais depressa. Isso queimaria a droga. Agora
exercício. Tensão isométrica... afrouxar. Tensão...
afrouxar.
Tinha a impressão de que podia ver, graças à escuridão,
aquilo que os outros viam, graças à luz. E quanto mais a
obscuridade entrava pela janela aberta, mais claramente
distinguia os pormenores do quarto. Havia sacos de luz
explodindo por trás dos seus olhos. A alcatifa. Que cor
linda!
Flutuava enquanto subia na direcção dele, lenta,
sedutoramente.
A dor e o choque da queda fizeram-lhe recuperar rapidamente
os sentidos. Estava deitado, com o rosto contra a
alcatifa. Não podia respirar pelo nariz. Sangue. Mas não
doía. Apenas lhe fazia desejar o sono.
O retrocesso era cerebral. O seu sentido de equilíbrio
fora-se, juntamente com o de direcção. Tinha que dizer a si
mesmo que os topos costumavam ficar por cima dos fundos.
Tinha que pensar que o facto de se levantar podia
originar uma queda. Por fim, ficou de joelhos na borda da
lareira. Não podia estar de pé. Dejoelhos, o peito contra a
parede, recomeçou com os exercícios isométricos. Tensão...
afrouxar. Tensão... afrouxar.
Uma infinidade de tempo, sem controlo, passou. Precisava
257
de dormir. Já. Deixou-se repousar contra o ar que o
sustentava.
Desta vez adormeceu ao cair e bateu.
O frio acordou-o. Suava e tinha frio. A boca estava seca,
devido à respiração oral, e o lábio de cima enrijecera.
Tocou-lhe. Estava escamoso, viscoso. O sangue do nariz
havia congelado. Estivera algum tempo sem sentidos. Mas
sabia, devido à náusea e ao frio, que os efeitos
alucinatórios tinham passado. Estava debilitado e tonto mas
conseguia raciocinar e mover-se. Devagar apoiou-se sobre as
mãos e os joelhos e olhou em redor. Sombras negras e um
rectângulo de cidade cinzenta através da janela. A janela.
Lembrou-se.
Conseguiu levantar-se e ir até à janela. O ar da noite era
gelado ao deslizar pelo seu corpo suado, nu. Ficou ali,
apoiando-se à parte central do caixilho e engolindo a
grandes golfadas o ar refrescante. O lençol ainda
permanecia atado à janela.
Olhando para baixo apenas podia ver o terraço de laje três
pisos abaixo. A luz ténue duma sala dum andar inferior
batia nas lajes. Trepou para o peitoril e ficou de pé sobre
ele. Depois, agarrou-se à borda das telhas e inclinou-se
para fora. E instantaneamente foi acometido pela vertigem,
submergido pela tontura. Desesperado, saltou para trás.
Demasiado cedo. Teria de esperar até ao último minuto.
Exactamente antes deles entrarem. Dar ao cérebro a hipótese
de ficar tão claro quanto pudesse.
Leonard e Darling abandonaram o jogo do dardo, que
executavam com outros empregados e atravessaram o salão
deserto Art Deco, com os seus reflexos seguindo-os ao longo
das paredes de espelho que escondiam o Aquário. Subiram a
longa escada espiralada a dois e dois porque já estavam um
pouco atrasados para a próxima injecção do horário. Leonard
destrancou a porta e Darling acendeu as luzes.
- Cristo! - explodiu Darling.
Desarvorados, passaram revista à retrete, à casa de banho e
espreitaram para debaixo da cama. Foi então que Leonard
reparou na janela aberta e no lençol atado à roda da parte
central do caixilho. Esmagou o punho contra aquele, furioso.
258
- O Guv vai perder metade do bronzeado por causa disto! -
disse Darling. - Vai-nos castrar! - Olhou para o terraço lá
em baixo. - Não deve ter ido muito longe. Este lençol não
ajudou muito. Deve ter partido ambas as pernas. Anda!
Saíram do quarto a correr, Leonard encarregado das escadas
para examinar os pisos inferiores, enquanto Darling corria
através do corredor para o seu quarto, onde pegou nos
revólveres que tinha tirado da pasta de Jonathan.
Com a cabeça para baixo no íngreme telhado lodoso,
Jonathan jazia tenso e quieto. Quando os ouvira aproximar-
se da porta, deitara as mãos em garra à borda das
telhas, e, balouçando-se, encolhera-se rolando para fora e
para cima. Durante um terrivel momento só a parte de
baixo do seu corpo ficou no escorregadio telhado, com o
tronco e a cabeça pendentes. A inclinação era maior do que
havia esperado, mas as ásperas beiras das telhas evitaram
que caísse. Apenas os dedos o seguravam à beirada, não
deixando que tombasse no terraço de baixo, mas a pressão
contra os seus pulsos tensos era aflitiva e enervante.
Cerrou
os dentes, para não gritar de dor, enquanto fazia toda a
força nos pulsos, os músculos das maxilas encordoando-se e
a cabeça estalando com o esforço enquanto serpeava contra
as ásperas telhas, em dentes de serra, quase lhe arrancavam
o escroto. A sua força perdeu-se antes que conseguise
pousar o queixo nas telhas e o ângulo que fazia com o
telhado
era tal que podia manter a posição apertando apenas os
pulsos latejantes e abrindo as pernas, o que aumentava ao
máximo a área de tracção. O sangue corria-lhe na cabeça e
o pulso batia-lhe com vibrações secas nos ouvidos.
As luzes da sala a baixo iluminavam fracamente o fog
que o rodeava. Ouviu Darling dizer Cristo! , depois o som
duma busca através do quarto.
Teriam sido enganados pelo lençol? Os seus pulmões
precisavam de ar, e abriu a boca toda para respirar, de
forma a
fazer menos barulho. Uma parte da droga ainda estava
dentro dele, fazendo-o pensar lentamente e tornando-lhe a
visão incerta. A força escoava-se dele, abandonando-lhe os
pulsos e ombros.
259
Escorregou... apenas uns centímetros, mas não conseguiu
recuperá-los. Mais peso ainda sobre a beira do telhado. A
vertigem. O terraço de laje tão longe, lá em baixo. Sem
forças. Os pulsos retraindo-se de dor.
A cabeça de Leonard apareceu precisamente por baixo dele. O
mudo agarrou no lençol pendente, depois estendeu-se para
baixo. Jonathan apertou as pálpebras fechadas e concentrou-
se com todas as suas forças:
- Não olhes para cima! Não olhes para cima! O frio das
telhas húmidas contra o seu corpo nu era paralisante. Mais
uma vez escorregou alguns centímetros! Mas, no mesmo
momento, Leonard esmagava o punho contra o caixilho,
furioso, cobrindo o som. Darling disse qualquer coisa do
lado de dentro.
Saíram a correr do quarto.
Um gemido estrangulado, lamuriento, escapou-se da garganta
de Jonathan. Ir para baixo seria tão perigoso como subir. A
inclinação do telhado era íngreme e havia uma fina
cobertura de sujidade gordurosa nas telhas, lubrificada
pela mistura do fog. Uma vez que começasse a mover as
pernas, e iniciasse o deslize, não haveria maneira de
parar. Com aqueles pulsos vacilantes teria de se agarrar à
beirada das telhas enquanto passava por elas deslizando e
se balançava de forma a penetrar no quarto. Quando se
balançasse vinte centímetros para cada lado poderia bater
contra o edifício e cair para as lajes de baixo.
Não valia a pena pensar nisso. Não havia tempo. Nem força.
Tinha que deixar correr.
Estava a quatro ou cinco centímetros de distância, e,
quando se balançou para cair dentro do quarto por baixo,
bateu com a cabeça na parte central do caixilho da janela.
A vertigem e a dor fizeram-no cambalear enquanto se punha
de pé, mas correu em frente, de cabeça baixa, em direcção à
porta aberta.
Quando Darling começava a dirigir-se para o átrio com os
grandes revólveres, ouviu o barulho no quarto de Jonathan e
correu para lá. Colidiram no patamar e embrulharam-se numa
confusão. Jonathan lutava cega e desesperadamente, tentando
atingir a garganta de Darling e depois
260
conseguindo-o, com ambos os polegares contra a laringe
deste. Sentia quão pouca força havia no aperto, portanto,
fechou os olhos e cerrou os dentes, pressionando
desesperadamente, enquanto Darling se debatia para levar
cada um dos revólveres até ao corpo nu de Jonathan.
Contorcia-se como um peixe na areia enquanto Jonathan
apertava, chamando a si todas as suas recônditas energias.
Esperava ouvir, a cada momento, o rosnar da arma e sentir
os intestinos destroçados por uma dundum. De algures,
surgiu-lhe a imagem de Vanessa lutando na sua mesa de
cozinha. Provavelmente Darling segurara-a enquanto Leonard
a violentava. Com um arranque final de fúria extremada,
Jonathan carregou mais nos polegares e ouviu a
laringe estalar como uma caixa de papier-maché. Darling
estertorou e morreu.
Por um segundo, Jonathan ficou ali a ofegar, a testa
sobre o peito silencioso de Darling. Ajoelhou-se e apanhou
os revólveres. Continua a mexer-te, ordenou a si mesmo.
Afastou as grandes manchas de cegueira no centro dos
olhos, e, cambaleante, desceu a grande escada encurvada e
atravessou o abandonado salão Art Deco. Irrompeu pela
sala de exercícios, com passos vacilantes e ambas as armas
na sua frente. Estava vazio. Mas conseguia ouvi-los agora,
a
disparar em redor da casa. Puxou os dois cães dos
revólveres e lutou com a falta de precisão dos pés.
Tonteira.
Náusea.
Cambaleou em direcção à porta da pequena sala de jantar
apainelada e abriu-a com um pontapé.
A droga girava na sua cabeça e a cena desenrolou-se
como um sonho - um ballet muito lento. Strange e Grace
estavam a jantar. Ela voltou-se para a porta aberta, os
seios
nus balançando viscosamente com o movimento. Strange
saltou sobre os pés e levantou uma das mãos, a palma para
a frente, como se fosse o gesto apaziguador dum índio.
Jonathan ergueu uma das armas e fez fogo. O ruído
reverberou na sua cabeça e até o coice do disparo pareceu
acon tecer devagar na sua mão. Como por artes mágicas a face
esquerda do rosto de Strange desapareceu, ficando apenas
uma massa gelatinosa e vermelha. Grace agarrou o ar, com
a cara contorcida num grito de horror, mas nem um som se
261
ouviu. Strange mergulhou debaixo da mesa e perdeu os
sentidos.
Agora as coisas, que tinham sido demasiado lentas,
tornavam-se muito rápidas. Jonathan foi aos trambolhões até
à sala de exercícios, tonto e desequilibrado. Precisava
vomitar. O som de homens correndo estava próximo. Abriu
todas as luzes solares e dirigiu-as para a porta exterior.
Estou doente, gemia ele alto enquanto agarrava
desajeitadamente um par de óculos redondos, um olho quase
espremido pela banda elástica.
Os tipos surgiram na sala. Eram três. O dos dentes partidos
tentou proteger os olhos da luz, segurando a automática em
frente da cara. O primeiro tiro de Jonathan apanhou-o no
ombro e o outro homem girou e caiu, salpicando de sangue os
dois restantes. A segunda bala dundum apanhou o outro já
mais próximo da porta, na parte mais fina das costas,
enquanto tentava fugir. O corpo dele foi atirado pelo ar
contra a parede das barras de exercício. Não caiu porque um
dos braços ficou preso nas barras, mas todo ele se
convulsionava.
O terceiro homem disparou contra luzes e bocados duma das
lâmpadas bateram na cabeça de Jonathan, salpicando-o com
vidro quente. Este devolveu-lhe o tiro, atingindo-o no
joelho. Durante um segundo manteve-se de pé, surpreendido.
Depois, caiu para o lado em que a sustentação falhara.
O silêncio vibrava com a ausência do rosnar das armas. O
homem preso nas barras de exercício deslizou para o chão, a
testa batendo com um som rachado em cada uma delas. Depois
tudo ficou calmo.
- Estou doente! - disse novamente Jonathan, as palavras
espessas e amortecidas.
A onda de vertigem subia por ele acima. A parte de trás da
garganta estava amarga, devido ao vómito. Tinha que passar.
Leonard estava ainda à solta em qualquer parte! Aguenta-te!
Arrancou os óculos verdes e arrastou-se para a porta da
sala de vestir. Espelhos. Uma infinidade de homens nus com
armas. Sangue amassado nos seus rostos; os joelhos e os
peitos feridos e sanguinolentos. Abriu o espelho central e
penetrou no Aquário.
262
Ali estava Leonard. Segurava uma pistola Mauser e
ajustava-a ao coldre, lenta e deliberadamente, os olhos
pesados
e sem expressão. Encontrava-se do outro lado do vidro de
sentido único de pé, sozinho no salão Art Deco, encostado à
parede de espelho, esperando que Jonathan surgisse
da porta da sala de exercícios.
Jonathan sentia o coração pulsar-lhe nas têmporas. Estava
tão cansado! Tão doente! Apenas queria dormir. A mistura de
droga no seu cérebro aclarou-se por um momento.
Vanessa. Leonard e Vanessa - e os utensílios de cozinha.
Apertou os dentes e curvou-se lentamente para o painel de
espelho, à sua frente. Levantou as duas armas, os canos
quase a tocar o vidro, e esperou enquanto Leonard se
deslocava para a frente, aguardando até que o enorme corpo
do
outro se colocasse directamente em frente dos canos. Uma
das armas ficou apontada ao pescoço de Leonard, outra ao
seu ouvido.
O espelho explodiu e o corpo sem cabeça de Leonard
rolou pelo chão de parqué, embrulhado numa onda sibilante
de vidro estilhaçado. Contorceu-se violentamente,
fazendo tilintar os cacos. Depois parou.
E Jonathan vomitou.
COVENTGARDEN
O motorista do táxi 68204 vagueava através do emaranhado de
ruas estreitas, acima de Hampstead High Street, em busca de
um freguês. Aceitava filosoficamente a improbabilidade de o
conseguir naquela zona deserta e àquela hora da noite,
decidindo, por fim, voltar ao centro da cidade. Quando
parou num cruzamento deserto começou a cantar On the Road
to Mandalay com pouco fôlego, assassinando as notas com uma
despreocupação liberal. A porta de trás do táxi abriu-se e
um passageiro entrou.
- Para onde, amigo? - perguntou o motorista por sobre o
ombro, sem se voltar.
- Covent Garden.
- Certo. - O motorista arrancou, resmungando as suas
inadvertidas variações do tema Roses o Picardy. Pensou
vagamente o que quereria um tipo com sotaque americano de
Covent Garden, a horas tão tardias. - Para o mercado?
- perguntou por cima do ombro.
- O quê? Oh, sim. O mercado serve perfeitamente. A voz do
passageiro era fraca e confusa e o motorista temeu que
tivesse apanhado uma bebedeira que sujaria o chão da parte
de trás do táxi. Descreveu a curva e voltou-se.
- Ouça, camarada. Se você está grosso... vai lixar-me!
-O passageiro estava nu. - Eh! Que é isto?
- Vá para o mercado. Eu digo-lhe a direcção a partir daí.
O motorista preparava-se para pôr um ponto final naquele
despropósito quando reparou em dois enormes revólveres no
assento, ao lado do passageiro.
- O mercado, não? - Soltou o travão de mão e partiu. Sem
cantar.
Pararam à entrada duma álea estreita, sem luz, no coração
do Garden.
- É aqui, camarada?
264
- Sim. - A voz do passageiro soava como se tivesse
desmaiado durante o percurso. - Ouça, motorista, acho que
não tenho dinheiro comigo...
- Está tudo bem, amigo.
- Se ao menos você me acompanhasse até...
- Não! Não, está bem. Esqueça.
O passageiro esfregou a nuca e os olhos, como se tentasse
aclarar os pensamentos.
- Eu... ah... eu percebo que isto deve parecer-lhe
irregular.
- Não, senhor. De forma alguma.
- Tem a certeza de que não quer ir comigo para receber o
dinheiro?
- Oh, sim, senhor. Tenho a certeza absoluta. Agora, se é
este o sítio, quererá...
- Certo. - Jonathan içou-se penosamente do táxi, levando
os revólveres, e o carro arrancou.
A parte exterior do armazém de MacTaint estava deserta
excepto no que dizia respeito ao pintor descarnado, de
olhos bravios, que olhou de revés quando a entrada de
Jonathan trouxe consigo uma corrente de ar frio. Resmungou
iradamente e regressou à sua maior obra. Trabalhava
nela há onze anos: era uma panorâmica enorme e
pointilliste das docas de Londres executada com um pincel
de três
pêlos.
Jonathan vacilou nas pernas flácidas, por trás dele, ainda
inseguro, e entrou na parte de trás do apartamento.
O pintor voltou ao trabalho. Um minuto mais tarde
levantou a sua face emaciada, como a dum Cristo, e olhou
para longe. Havia qualquer coisa estranha naquele intruso.
Qualquer coisa que se relacionava com a maneira como se
vestia.
Mergulhou sonolentamente na banheira profunda, cheia de
água quente, um copo meio cheio de uísque dançando-lhe na
mão, por sobre a borda. Embora a água ainda lhe provocasse
ardor e sublinhasse todas as suas zonas abrasadas -
joelhos, peito, o ombro, a nuca onde batera quando
balouçara para dentro do quarto - a mente estava bastante
265
clara. O pior já passara. Agora apenas tinha que tirar os
filmes do Cavalo de Marini.
MacTaint entrou na casa de banho, trazendo toalhas e
arrastando-se dentro do seu velho sobretudo, apesar da
atmosfera cheia de vapor.
- Quase fizeste Lilla ter um ataque, entrando aqui com todo
esse sangue e o teu penduricalho a balançar. Acho que vai
ficar a fazer caretas sozinha. Já a mandei para baixo com
outra garrafa de gim.
- Transmita-lhe as minhas desculpas como uma personagem
teatral o faria a outro.
- Fá-lo-ei. Deus! Olha para ti! Deram-te uns beijinhos, não
foi?
- Também apanharam.
- Espero bem que sim. - Olhou a água de banho com
desconfiança. - Isso não te fará bem, Jon. Tomar banho
destrói a energia. Dilui os fluidos interiores.
- Posso beber mais leite?
- Jesus, rapaz! Não haverá fim para as torturas que
infliges a ti mesmo?
Mas foi buscar o leite e quando regressou trocou a garrafa
pelo copo vazio que Jonathan tinha na mão.
Jonathan tirou a tampa de metal e bebeu metade da garrafa
sem a afastar da boca.
- Deus! Estou a sentir-me muito melhor!
- Talvez. Mas não estás suficientemente bom, meu rapaz. Não
há maneira de poderes ir comigo esta noite. Não com esse
lindo ombro. Diz lá! Deram-te pontapés, não?
- Não. Fui eu. Caí duma lareira.
- Duma lareira?
- Sim. Subi para lá para me manter acordado.
- Ah, sim.
- Mas caí de novo.
- Compreendo. Vou dizer-te uma coisa, Jon. Estou contente
por não ser um académico. Pedem demais para se ganhar
metade.
- Olhe, Mac, tem a certeza de que pode entrar na Gallery
esta noite?
MacTaint olhou para ele, atentamente.
- Tu não estarás em condições de ir. Já to disse. E não
266
quero. E não vou pôr areia na minha engrenagem.
- Percebo. Reconheço que é verdade. - Jonathan esticou-se e
deitou leite no copo, depois um dedo de uísque. Diga-me
como fará para chegar ao Chardin.
MacTaint procurou um copo em volta e, não o achando, tirou
a escova do copo de dentes e utilizou aquele. Depois
sentou-se confortavelmente na tampa da sanita.
- Vou até à parte exterior do edificio. Eles puseram
andaimes para limpar a fachada a vapor. Tudo parte de
Mantenha Londres Limpa. Não há hipótese de me verem com as
fraldas que eles penduram nos andaimes para impedir que a
porcaria e a água atinjam os tipos cá em baixo. A tranca da
janela está posta mas não servirá de nada. Tenho tido um
gajo a trabalhar nela com uma lima, pedacinho a pedacinho,
durante os últimos dois meses. Basta remover um bocado do
andaime, entrar pela janela e emporcalhar os tesouros
artísticos nacionais.
- E os guardas?
- São uns tipos velhos, lazarentos, que apenas esperam as
reformas para desaparecerem. Levarei apenas dois segundos a
trocar o meu Chardin pelo deles.
Jonathan abriu a água quente com os pés e sentiu o calor
subir-lhe pelas pernas, fazendo-lhe arder os arranhões e
cortes.
- Diga-me uma coisa, MacTaint. Quanto espera você obter
pelo Chardin?
- Cinco, talvez sete mil libras. Porquê?
- Há lá uma coisa que eu quero. Só a uma sala de distância.
Dou-lhe cinco mil por ela.
- Arranjou esse dinheiro todo?
- Um homem deu-me dez mil por eu fazer uma coisa. Vou
dividi-los consigo.
- Um quadro?
- Não. Alguns rolos de filme. Estão dentro dum cavalo oco
de bronze feito por Marini e em exibição na sala a seguir.
MacTaint coçou o cocuruto da cabeça, depois estudou
cuidadosamente uma placa de caspa na unha.
- E ias fazer isso quando fosses comigo?
- Certo.
267
- Mesmo que isso tivesse fodido o meu negócio?
- É verdade.
- És um autêntico sacana, Jonathan.
- Certo.
- Um cavalo de bronze, disseste? E como saio com ele? Quero
dizer, posso chamar um pouco a atenção correndo pelas ruas
com um cavalo de bronze atrás de mim.
- Terá que partir o cavalo com um martelo. Uma grande
pancada parti-lo-á.
- Não sei como farei para os guardas não me ouvirem.
- Vão ouvir, com certeza. Tem que correr como se tivesse o
diabo atrás de si. É por isso que lhe estou a oferecer
tanto dinheiro.
MacTaint coçou meditativamente as rugas do pescoço.
- Cinco mil, eh?
- Cinco mil.
- De que trata o filme?
Jonathan sacudiu a cabeça.
- Bem, suponho que é uma pergunta sem importância.
- Limpou o suor da cara com a ponta do sobretudo. Está
calor, aqui.
- Sim, e também abafado. - Jonathan estivera a tentar
respirar superficialmente desde que MacTaint entrara. Bem?:
.
MacTaint coçou a orelha pensativamente, depois esfregou o
nariz bulboso e cheio de veias vermelhas com a palma da mão.
- Vou buscar essa merda desse filme.
- Isso é estupendo, Mac.
- Sim, claro - resmungou ele.
- Quando voltará aqui com ele?
- Dentro duma hora e meia. Ou, se me apanharem, dentro de
cerca de onze anos.
- Pode largar o filme no meu apartamento de Mayfair?
- Porque não?
- Vou dar-lhe o endereço. Você é um homem espantoso,
MacTaint.
- Um perfeito louco, é o que sou. - Arrastou-se para ir
buscar algumas roupas para Jonathan. Estava momentaneamente
apanhado por aquela dor no ombro, mas foi
268
capaz de se secar com uma mão graças a algumas acrobacias.
- Aqui estão - disse MacTaint voltando com uma pilha de
farrapos. - São minhas. É claro que não são as melhores e
não te vão servir muito bem, mas a cavalo dado... já sabes.
E leva esses horríveis canhões contigo. Não quero que andem
por aqui.
Entrar nas roupas foi um martírio olfactivo e Jonathan
prometeu a si mesmo tomar outro banho logo que chegasse ao
apartamento.
Chegou ao apartamento mais tarde do que tinha calculado,
visto que fora obrigado a percorrer todo o caminho a pé,
apesar das cinco libras que MacTaint lhe dera. Alguns táxis
em busca de passageiros haviam surgido na sua área de visão
mas sem pararem ao fazer sinal; na realidade, tinham
acelerado. As roupas, claro!
Quando metia a chave na fechadura ouviu o telefone tocar lá
dentro. Atrapalhou-se por causa da pressa, visto que
durante todo o percurso pensara em falar a Maggie para lhe
dizer que tudo acabara e estava a salvo.
- Sim?
O sotaque americano de Yank foi um grande desapontamento.
- Tenho estado a telefonar-lhe para todo o lado. Onde tem
estado?
- Ocupado.
- Sim, já sei. - Havia um tom de docilidade na voz de Yank;
nunca recuperara completamente da sua piela com o uísque de
Vanessa durante a sua crise de desgosto auto-indulgente. -
Estou a falar d'Os Claustros.
- Que raio está aí a fazer?
- Apenas a verificar o local, julgando que estaria em
sarilhos. Deixou uma destas porcarias atrás de si! O sítio
está deserto, isto é, não há aqui ninguém vivo.
- Presumo que a Lu me está a fazer uma cobertura completa?
- É claro. Ouça, vou a caminho do vicariato. Deseja que
passe aí e leve os filmes?
- Ainda os não tenho.
Houve uma pausa.
269
- Não os tem?
- Não fique em pânico. Tê-los-ei dentro duma hora, depois
pegarei em Miss Coyne e encontrar-me-ei com vocês no
vicariato.
- Miss Coyne já está a caminho. Telefonei-lhe para saber
onde você estava. Ela não sabia, como é evidente, então
disse que nos encontraríamos lá.
- Compreendo. Bem, não se incomode a vir-me buscar. Se
formos juntos terei de o ouvir. E não me apetece.
- Você sabe perfeitamente como há-de ofender um tipo. Okay,
doc. Encontro-me consigo no vicariato. Não leve qualquer...
Jonathan desligou.
Tinha tomado banho e mudado de roupa e estava a descansar
no quarto às escuras quando MacTaint bateu à porta.
- Não tem por aí uma gota de uísque? - foram as suas
primeiras palavras. - Oh, já agora... aqui tem. - E
entregou a Jonathan um pacote cilíndrico, embrulhado num
tecido preto e plastificado. - Sabe o que tem a fazer com a
porcaria dos filmes?
- Problemas? - E passou-lhe a garrafa.
- Eu diria que foi isso mesmo. Sim. Não interessa o copo. -
Deu uma longa golada. - Diga-me uma coisa, rapaz. Tem
alguma ideia do barulho que fez abrir uma estátua de bronze
numa sala de museu vazia?
- Julgo que não passou despercebido.
- Devia ter ouvido os apitos dos carros que apareceram! Tem
a certeza de que não queria que acontecesse nada disso? -
Bebeu outro gole, depois tapou subitamente a garrafa, rindo
e espalhando um pouco do conteúdo nas lapelas. -Devia ter-
me visto a descer o meu velho corpo pelos andaimes, com a
tela debaixo do braço e o seu maldito pacote a balouçar na
minha mão. Foi tudo à custa de cotovelos e joelhos. Não
teve graça nenhuma. Campainhas a tocar e toda a gente a
gritar. Oh, foi qualquer coisa, Jon!
- Deixe ver isso.
MacTaint foi buscar o Chardin ao sítio onde o pusera,
virado para a parede, e colocou-o em cima duma cadeira com
a luz a bater-lhe. Depois caiu no sofá, ao lado de
270
Jonathan, o movimento expulsando ondas de suor das suas
roupas.
- Não é um encanto?
Jonathan olhou para ele alguns minutos.
- Já tem comprador?
- Não, mas...
- Eu tenho cinco mil.
MacTaint virou-se e examinou Jonathan, os olhos a bri lhar
por baixo das sobrancelhas em forma de antenas.
- Bem-vindo, rapaz!
- Você é um bastardo levado da breca, MacTaint!
Jonathan levantou-se e deu-lhe as cinco mil libras dos
filmes, depois procurou as outras cinco mil que Strange lhe
dera para as despesas e entregou-lhas também.
- Ok! - disse MacTaint, enfiando o monte de notas
no bolso do seu estafado sobretudo. - Não foi uma má
noite. Fiz tudo duma vez. Mas é melhor ir-me embora. Lilla
fica nervosa quando me atraso muito.
O VICARIATO
Nas partes mais baixas da estrada que ia para Wessex,
farrapos de neblina eram prateados pela Lua cheia. Ela
espreitava por trás das copas das árvores mantendo-se a par
com o Lotus enquanto este rodava através dos caminhos menos
percorridos, desertos àquela hora da manhã. O ombro de
Jonathan ainda doía e conduzir só com uma mão era
fatigante, portanto, mantinha uma velocidade moderada.
Tinha sido uma semana difícil. O seu sentido do tempo fora
perturbado e para se sentir desperto revia os
acontecimentos que o tinham levado àquilo guiando ao
encontro de Maggie, com o cilindro dos filmes dos amadores
de sexo a saltar no assento de trás.
Como estava muito cansado, pessoas e factos, palavras e
coincidências dos últimos cinco dias perpassavam pela sua
mente, as ligações obedecendo a leis mais subtis que as da
simples cronologia. Um acontecimento passou-lhe pela
cabeça; então, quando ele dava a volta noutra ocasião... aí
estava! Obviamente! Os estranhos pedaços do mosaico, que
não haviam cabido em lado algum, ficavam agora subitamente
no seu lugar.
Maggie...
Carregou mais no acelerador e acendeu as luzes de forma a
que a neblina não o cegasse.
Carregou no travão e enveredou pelo caminho tosco que
levava da estrada ao vicariato. Logo que o carro parou, a
porta do vicariato abriu-se de repente e Yank correu para o
carro. A forma corpulenta do vigário enchia o limiar
amarelo da porta, por trás de Yank, com algo de volumoso na
mão.
Assim que Jonathan cambaleou para fora, o vidro da frente
foi pulverizado em partículas leitosas de cristal. Uma
segunda bala destruiu-lhe a janela lateral e caiu no
assento de trás. Ele tirou o revólver do compartimento dos
mapas,
272
deixou a porta aberta e rolou para a erva húmida. Do outro
lado da porta, debaixo do carro que deitava fumo, os pés de
Yank pararam. Jonathan atirou-lhes e começou a ver um
joelho. Atirou de novo e começou a ver uma cabeça e um
ombro, a cara contra o cascalho.
O ruído da reverberação da arma, do outro lado do carro,
cobriu a corrida desajeitada do vigário, que estava
entãojunto do corpo inerte de Yank, com um cepo de lenha na
mão, pronto a actuar.
- Está bem, doutor Hemlock? - gritou ele, ofegante.
Jonathan ajoelhou-se e encostou a cabeça ao carro.
- Sim, estou bem. - O frio do metal dissipou a vertigem: -
Ele está morto?
- Não, mas está a sangrar bastante. Parece-me que vai
perder a perna.
Jonathan ouviu um som encrespado, como se alguém acabasse
de urinar no cascalho.
- Talvez fosse melhor pôr-lhe um torniquete. Tenho que lhe
fazer algumas perguntas.
- Espero que tenha os filmes consigo.
- Jesus Cristo, padre!
Transportaram Yank para o acolhedor gabinete de trabalho,
com o seu odor de madeira polida e fumo de lenha, e o
vigário começou a tratar de Yank com um ar eficiente de
quem sabia primeiros socorros. Aplicou um torniquete logo
acima do joelho desfeito e em breve o fluxo de sangue
estava reduzido a um fio insignificante.
- Oh, meu Deus, meu Deus! - murmurava o vigário cada vez
que reparava nos danos que o sangue inflingira à sua
carpeta Axminster.
Jonathan recobrou algum alento graças ao brande do vigário,
enquanto permanecia junto da lareira, observando o velho
homem com as suas mãos bem treinadas.
- Não está a vir a si, pois não?
- Receio que não. Não há muitas hipóteses de se ficar
consciente após um choque destes.
O vigário fitou-o e piscou o olho, e, então, pela primeira
vez, Jonathan reparou numa contusão purpúrea que lhe
atravessava a testa.
- O Yank bateu-lhe?
273
O vigário ergueu-se com esforço e tocou cuidadosamente na
ferida.
- Sim, acho que sim. Tinha-me esquecido. Tivemos uma
espécie de briga. Quando chegou aqui estava encharcado em
álcool. Disse qualquer coisa ofensiva - não me lembro
exactamente o quê - e quando me virei apontou-me uma arma.
Começou a balbuciar coisas acerca de Max Strange e de
necessitar de dinheiro para comprar um rancho no Nebrasca,
e... oh, uma quantidade de coisas. Não estava muito bom da
cabeça, sabe? A violência e o perigo deste jogo duplo foram
demais para ele. Nunca teve o tipo de personalidade ideal
para este negócio. - Piscou o olho. Então o seu carro
apareceu de repente e chamou-lhe a atenção. Lutei com ele.
Bateu-me com à arma e correu para fora. Peguei num pedaço
de lenha, mas nessa altura era para lhe acudir a si, se
fosse necessário. Eu aguento com uma gota do meu brande.
- Ele disse alguma coisa acerca de Miss Coyne? Deu-lhe
alguma ideia de onde ela possa estar?
- Receio que não. Você acha que está em perigo?
- Está em perigo... se ainda for viva. Yank deve ter falado
dela a Strange. E Strange tem apenas uma fórmula simples
para lidar com espiões e informadores.
- Você fala como se soubesse que Yank estava a ser pago por
Strange.
- Apenas nos últimos quinze minutos. A enormidade de
coincidências rompeu finalmente a minha estupidez. Strange
sabia tudo acerca do seu Parnell-Greene. Sabia-o acerca da
minha pessoa. Sabia que eu falara a Vanessa Dyke. Sempre
esteve dois passos à frente. Ele tinha demasiadas
informações; havia demasiadas coincidências. Tinham que vir
de dentro. E fui encontrá-lo em casa de Van depois dela ter
morrido - não a polícia, apenas Yank. Pretendeu estar mais
bêbado do que estava. Mais tarde, tentou apanhar-me a mim e
aos filmes no meu apartamento. Tudo isto se ajusta. Mas o
agente que recebia as informações proferiu uma frase - algo
que um dos homens de Strange disse após me terem enchido de
droga. Afirmou que eu fora derrubado.
- O que queria dizer?
274
- A questão reside aí. A expressão é proveniente do basebol
americano. Apenas Yank a poderia ter usado.
- Compreendo. - O vigário piscou meditativamente.
-O que vamos fazer acerca de Miss Coyne?
Jonathan carregou numa das fontes com um dedo e massajou-a.
- Pode estar em qualquer lado. Talvez no apartamento dela.
- Oh, duvido muito. Telefonei várias vezes nos últimos dois
dias. Não houve uma só resposta. Andava à procura de
notícias de si porque Yank parara de as obter - e agora já
sabemos porquê. Por fim, telefonou-me esta tarde a dizer
que os acontecimentos tinham alterado os seus planos.
Disse-me que você obtivera os filmes, mas a situação era
tal que não os podia trazer consigo. Disse-me que você os
tinha
posto no correio. Tudo isto, vejo-o agora, era uma
conspiração de Strange para neutralizar qualquer acção da
minha
parte. Pensavam que eu ficaria aqui à espera do correio,
enquanto efectuavam a venda e fugiam. E, é claro, que era
exactamente o que eu faria.
Jonathan concentrava-se totalmente em Maggie.
- Tenho que fazer qualquer coisa. Acho que posso começar
pelo apartamento dela, depois - espere um mi nuto! Para que
queria Yank os filmes?
- É óbvio, não? Strange pagá-los-ia bem.
- Mas Strange está morto. Yank sabia isso.
- Receio que você esteja enganado quanto a esse ponto. Yank
descreveu-me a trapalhada que você provocou n'Os
Claustros. Estava muito orgulhoso, sabe? A fúria viril dum
americano, enfim, todas essas coisas. E mencionou que você
tinha aplicado a Strange uma horrível ferida facial. Uma
certa Miss Espantosa... Ou era Miss Grace? Bem, fosse quem
fosse, levou Strange consigo para um santuário.
- Mencionou o nome? Um sítio?
Do chão, Yank suspirou brevemente, depois murmurou algo...
como uma criança a acordar dum pesadelo. Jonathan ajoelhou
ao seu lado.
- Yank? - disse ele suavemente. Yank estava outra vez
inconsciente. - Ei! - Jonathan abanou-lhe a bochecha mole.
275
- Esse não o levará a lado nenhum - comentou o vigário.
Mas as pálpebras de Yank mexeram e os sobrolhos arquearam-
se num esforço para manter os olhos abertos. Mas ficaram
fechados.
- Onde está Maggie Coyne? - perguntou Jonathan. Um resmungo.
- Onde está Strange?
A voz de Yank vinha de longe, cheia de muco.
- Eu... quero... eu só quero... rancho... Nebrasca.
- Onde está Strange?
- Por favor? Não... Estação de Alimentação. O corpo de Yank
esticou-se e descontraiu-se. Estava de novo sem sentidos.
O vigário levantou-se com um gemido.
- Que ironia! Ele tem medo da Estação de Alimentação. Que
ironia!
- Porquê?
- Não percebeu que você acaba de o salvar desse destino
sombrio.
- Acabo?
- Oh, sim. Nunca há pedidos para corpos só com uma perna. -
O vigário piscou o olho.
O CELEIRO DE OURO
Após ter entregue os filmes, Jonathan retirou o outro
revólver do Lotus blindado. Enquanto o carro de Yank
aquecia ele verificou a carga: havia apenas duas balas.
Chegavam.
Uma chuva macia e nuvens baixas toldavam o limiar entre a
noite e a alvorada enquanto ele guiava através das ruas de
Londres, desoladas e grávidas de desespero. Saltou em
frente do Celeiro de Ouro. Enquanto descia os estreitos
degraus de pedra que levavam à entrada do piso inferior
ouviu o silvo dum aspirador de vácuo. A porta estava
trancada.
Uma negra velha, com um lenço grande e colorido, puxava
descuidadamente o aspirador para a frente e para trás por
sobre a alcatifa preta e nem olhou enquanto ele entrou no
bar. Com as luzes de trabalho acesas, a decoração
ouro e negra parecia desbotada e barata, e a atmosfera
estava saturada de fumo de cigarro e de suor. Jonathan
esperou um momento para deixar que os olhos se adaptassem à
luz.
- Feche a porta, senhor. Faz frio, esta manhã. Jonathan
reconheceu a voz de baixo de Petit Noel.
Depois avistou-o, sentado ao fundo da sala.
- Desculpe, senhor, mas já fechámos. Como os fantasmas, os
nossos clientes desaparecem com o cororocó do
arauto da manhã.
Jonathan ergueu o revólver que tinha na mão e recuou
devagarinho até junto de Petit Noel.
- É estranho, senhor, muito estranho. Os arautos em todo o
mundo não falam a mesma linguagem. No Haiti eles dizem
cocorocó, enquanto na Grã-Bretanha...
- Onde está Strange?
- Senhor?
- Não dês voltinhas, Petit Noel. Estou cansado.
277
O haitiano levantou-se languidamente e bloqueou a entrada
da escada interior, os seus músculos peitorais, tal como
uma couraça, tensos por baixo do pulôver de lã. Sem tirar
os olhos de Jonathan, falou em patois para a mulher da
limpeza.
- Vas-toi en, tanta. *
O aspirador foi desligado e a negra partiu sem ruído.
- A arma é para mim? - perguntou Petit Noel.
- Não, realmente. Mas não tenciono lutar consigo.
- De facto, sou um homem forte, senhor. Provavelmente
poderia receber a primeira bala e deitar-lhe ainda uma mão
à garganta.
- Não uma bala desta arma.
Petit Noel olhou o buraco do cano.
- Estão lá em cima? - inquiriu Jonathan.
- Estão à espera duma pessoa. Não de si. De alguém com um
embrulho.
- Ele não virá. Ouça, não quero nada de Grace. Se ela se
puser entre mim e Strange cortá-la-ei ao meio. Se ficar
quieta, deixá-la-ei partir.
Petit Noel pensou naquilo. Abanou a cabeça afirmativamente.
- Miss Grace tem uma arma. Dê-me uma oportunidade de a
tirar daquele quarto. Se não lhe fizer mal eu deixo-o fazer
o que quiser. O homem não significa nada para mim.
Voltou-se e indicou o caminho ao longo das escadas e do
corredor. Depois, erguendo a mão para fazer Jonathan parar,
bateu devagar à porta.
A voz da Espantosa Grace era tensa.
- Sim?
- Sou eu, Miss Grace. Ele está aqui, a pessoa por quem
esperavam.
Jonathan encostou-se bem à parede quando a fechadura fez
ruído e a porta se abriu:
- Onde diabo tens tu... Ei!
As mãos de Petit Noel estenderam-se com enorme rapidez e
puxaram Grace para o patamar, por um braço. Ela gritou
Vai-te embora, tiazinha. (N. da T. ).
278
quando a sua pequena automática descreveu um arco através
do corredor e caiu no chão.
- Max! - Então viu Jonathan e a fúria brilhou-lhe nos
olhos. - É o Hemlock, Max! - Atirou o seu diminuto corpo nu
contra Jonathan, as unhas abertas como garras, os lábios
arreganhados, revelando os afiados dentes. Hei-de matar-te,
filho da puta!
Petit Noel levantou-a como se ela não tivesse peso.
Precisou de toda a sua força para a agarrar enquanto ela se
contorcia nos braços dele, o corpo nu subitamente
escorregadio com a onda repentina de raiva.
- Larga-me, bastardo preto!
Ele começou a falar-lhe baixinho através da escada, o seu
fardo rebelde e selvagem gritando, dando-lhe pontapés e
unhadas. Mas ele não a deixou magoar-se, nem se protegeu a
si mesmo do castigo da sua zanga impotente e desesperada.
Ela espetou-lhe as unhas no peito e rasgou-lhe quatro
feridas profundas mas Petit Noel apenas a olhou com olhos
resignados, infelizes.
- Por favor, por favor! - Ela soluçava e fazia promessas. -
Deixarei que durmas comigo se me largares! Max! Max!
Ele emitia sons consoladores enquanto continuava a descer
as escadas. Ela agarrava-se, com nós dos dedos brancos, aos
balaústres, mas a força firme de Petit Noel levou-os
lentamente para longe.
Mesmo após terem desaparecido da sua vista, Jonathan ainda
ouvia os gritos e as invectivas. Houve ainda um
último pranto lamentoso, depois o som de soluços. Uma voz
velada falava dentro do aposento. Jonathan deu
um pontapé na porta, abrindo-a, e afastou-se à espera dos
disparos. Mas não houve disparos. Novamente o som velado.
Palavras incompreensíveis, como se alguém estivesse a falar
através duma mordaça. Ele encostou-se contra a parede, o
revólver em frente do rosto.
As palavras tornaram-se inteligíveis. A voz era um murmúrio
gutural contra dentes partidos.
- Entre... doutor Hemlock.
Jonathan abriu completamente a porta com o dedo do pé e
olhou através do aposento. Strange jazia flácido no sofá
279
de veludo vermelho, sem camisa e com uma toalha molhada a
cobrir metade da cara. Mostrava ambas as mãos levantadas
para provar que não tinha armas.
Jonathan entrou e fechou a porta atrás dele. Atravessou o
quarto, inspeccionou-o e regressou.
O olho de Strange, que estava a descoberto, seguiu todos os
seus movimentos com o ódio e a dor misturados na mesma
expressão. Falou com grande esforço, a dicção entaramelada
devido à falta de dentes.
- Acabe a sua tarefa, doutor Hemlock.
- Já acabei.
- Não, não acabou. Ainda estou vivo.
- Se quer morrer, porque não se mata?
- Não posso. Não tenho arma. Grace não é capaz de me
ajudar. Estou demasiado fraco para chegar à janela.
O olho brilhou de raiva súbita.
- Não sabe o que me fez?
Com uma convulsão, provocada pelo esforço e a pungência da
dor, puxou a toalha. O maxilar desaparecera e os molares
viam- se justamente abaixo do ponto onde deveria estar a
orelha. Os dentes ainda permaneciam seguros pelos finos
canos das raízes vermelhas e expostas. E o olho, sem apoio,
pendia como um molusco frouxo. A hemorragia fora estancada,
mas a crosta - fresca com um líquido claro brotando -
começara a formar-se.
Jonathan olhou de relance e Strange colocou de novo a
toalha. Quando olhou para trás, o olho chorava.
- Por favor, mate-me, Hemlock. Por favor? A minha vida
toda... dedicada... beleza.
A voz ia desfalecendo e as pontas dos dedos tremiam. A face
visível apresentava o tom subaquático do choque somático e
Jonathan lamentou não poder retirar-se.
- O que fez a Maggie Coyne?
O olho estava nublado e confuso.
- Quem?
Ele nem sequer sabia o nome.
- A rapariga! Aquela de quem Yank lhe deu informações. Onde
está?
- Ela está... está... - O olho fechou-se enquanto tentava
aclarar as ideias. - Não. Tenho algo a negociar, não tenho?
280
Jonathan pensou durante um momento.
- Está bem. Diga-me onde ela está e eu matá-lo-ei.
- Você dá-me... palavra... - A cabeça abanou como se a onda
de choque a avassalasse.
- Vamos!
O olho abriu-se de novo, a pupila contraindo-se com o
esforço.
- Palavra de cavalheiro?
- Onde está ela?
- Morta. Está morta.
As entranhas de Jonathan gelaram. Fechou os olhos e
aspirou ar através dos dentes de baixo. Já o sabia.
Sentira-o
quando voltara ao vicariato. E novamente enquanto guiara
através da cidade triste, deserta. Fora como se uma energia
lá fora - qualquer força quente de contacto metafísico,
tivesse sido cortada. Mas enganara-se a si mesmo com
fábulas idiotas. Talvez a tivessem como refém. Talvez
tivesse fugido!...
O olho de Strange alargou-se de terror quando viu Jona than
voltar-se e caminhar sem sentido para a porta.
- Você prometeu!
- Quem a matou? - perguntou Jonathan sem, na realidade, lhe
interessar.
- Eu!
- Você? Você mesmo?
- Sim!
Houve um sibilar fraco quando o ar se escapou através da
face sem dentes.
Jonathan olhou para ele, estupidamente.
- Está a mentir. Está a tentar fazer com que o mate de
raiva. Mas não o farei. Vou chamar uma ambulância. E vou
dizer-lhes que você é um suicida. Assim protegê-lo-ão de si
mesmo. Atá-lo-ão de qualquer forma. E passarão meses antes
de você conseguir achar maneira de se matar. E todo esse
tempo olharão para si. Enfermeiras. Médicos. Guardas
da prisão. Advogados. Todos olharão para si. E lembrar-se-
ão da sua cara.
A voz esforçada de Strange vibrou de raiva impotente.
- Seu filho da puta!
Jonathan caminhou para a porta, o revólver pendurado na mão.
281
- Hei-de saber de si pelos jornais, Strange. Strange deitou
as unhas às costas do sofá e ergueu-se.
O arranco fez com que a toalha lhe escorregasse do rosto.
- Leonard matou-a! Jonathan voltou-se.
- Eu disse-lhe uma vez, Hemlock, que tinha um vício caro -
mais subtil que o sexo. O meu vício é caro porque custa
vidas. Gosto de ver o género de coisas que Leonard
faz às mulheres. Leonard foi particularmente criativo no
caso dessa rapariga. E eu observei! Aliás, ela não me
desapontou. Tinha uma grande força moral. Levou muito
tempo, muito. Tivemos que a fazer retornar a si várias
vezes, mas...
Strange ganhara.
Afinal de contas, seguira o seu caminho.
ESTOCOLMO: VINTE E OITO DIAS DEPOIS
de facto a palavra estilo tem sido esvaziada de sentido.
Demasiado usada. Mal usada. É uma palavra da crítica.
Nenhum pintor tem estilo. Fiquem a pensar nisso; poucos
críticos o fazem.
A audiência acenou polidamente, e Jonathan inclinou a
cabeça, perdendo ligeiramente o equilíbrio e voltando a
adquiri-lo num dos lados do pódio. Quando continuou a falar
estava demasiado perto do microfone e provocou um som
guinchante.
- Desculpem. Onde ia eu? Oh, claro! É uma coisa sem sentido
falar do estilo da Escola Flamenga, como tagarelar acerca
do estilo deste ou daquele pintor.
- Esqueceu-se do meu assunto, senhor! - objectou o jovem
instrutor, terrivelmente inteligente, que introduzira a
questão.
- Não me esqueci do seu assunto de forma alguma, jovem -
disse Jonathan, bebendo um gole do copo de gim que
cuidadosamente fazia passar por água. - Antecipei-me ao seu
assunto obscuro e preferi ignorá-lo.
Nas últimas filas do auditório, o jovem americano que era
responsável pelas conferências culturais da USIS, na
Suécia, lançou um olhar ansioso a Fforbes-Ffitch, que
voara de Londres para ver como decorriam as célebres
conferências pelas quais era co-responsável.
- Ele é sempre assim? - perguntou Fforbes-Ffitch num
murmúrio fino.
- Acho que ainda não esteve sóbrio desde que chegou - disse
o americano.
Fforbes-Ffitch arqueou os sobrolhos e sacudiu a cabeça
reprovadoramente.
-... mas não pode negar que a Escola Flamenga e a da Arte
Nova são estilisticamente antitéticas - insistiu o ins
trutor sueco.
283
- Merda! - Jonathan fez um gesto de fúria com o braço e
derrubou o microfone, causando um som amplificado que
sublinhou a sua declaração. Fez calar o alvoroço pondo um
dedo em frente dos lábios. - É claro que se podem citar
grandes diferenças entre os dois movimentos. Os Flamengos
escolheram corpos para lidar com assuntos naturais duma
maneira vigorosa, saudável, às vezes um pouco bovina, até.
Enquanto os tipos da Arte Nova lidavam com coisas
orgânicas, hipersofisticadas, quase malignamente tropicais.
Mas nenhum pintor pertence a uma escola. Os críticos forjam
escolas depois dos factos consumados. Por exemplo, se você
quiser observar o tratamento de assuntos florais
tipicamente Arte Nova recomendo-lhe o pintor flamengo Jan
van Huysum, ou, em menor grau, Jacob van Walscappelle.
- Receio não conhecer os pintores aos quais se refere,
senhor - disse esganiçadamente o jovem sueco, desistindo
completamente de ver a sua tese sustentada por aquele ácido
crítico americano cujos livros e artigos estavam
exactamente a fazer da arte uma serva incómoda.
A maior parte da audiência era composta por americanos
jovens desgrenhados, aquele centro USIS operando, como
quase todos os outros, mais como clube social para
americanos desgarrados do que como um sistema eficaz para a
informação e propaganda americanas. As conferências de
Jonathan haviam quebrado os padrões habituais de boicote e
assistência esparsa resultantes dos sentimentos gravosos
contra o malogro americano na grande amnistia aos homens
que tinham voado da Suécia para evitar o desastre do
Vietname.
- É espantoso estar aqui uma só alma - murmurou Fforbes-
Ffitch - se ele tem estado bêbado e confuso todas as noites
como está hoje.
O diplomata-em-treino americano encolheu os ombros.
- Mas têm sido as melhores casas que já obtivemos. Não
compreendo. Eles devoram o que ele diz.
- Que gente estranha, os Suecos. Masoquistas. Culpa
nacional por causa do Nobel e dos seus malditos explosivos;
nunca imaginaria.
A voz de Jonathan elevava-se acima da dos faladores.
284
- Terminarei a última das minhas conferências, meus filhos,
permitindo que o nosso anfitrião vos diga alguma coisa.
Está obviamente a estoirar na ânsia de comunicar, no fundo
do hall. Acho, pela autoridade de que fui investido, que
ele deve falar-vos acerca do assunto. Porque falhou a nação
em garantir a amnistia aos jovens que tiveram a coragem de
lutár na guerra, em vez de lutar com as pessoas?
Jonathan desceu do estrado, cambaleando um pouco, e a
audiência voltou-se expectante para o fundo da sala.
O jovem da USIS corou e tentou disfarçar, erguendo a voz
até um tom de falsete.
- O que nós realmente queríamos saber era... ah... é se há
mais perguntas?
- Sim, eu tenho uma! - gritou um negro do meio do grupo. -
Como conseguiu essa merda do Watergate sair só depois de
Nixon ter sido reeleito?
Outro americano levantou-se.
- Digam-lhe que se ele nos garantir a amnistia, e nos
deixar ir para casa, nós não diremos a ninguém a porcaria
que ele fez da imagem americana no estrangeiro.
Fforbes-Ffitch aproveitou a oportunidade para dizer que
nada daquilo tinha algo a ver com ele.
- Sou inglês - explicou às pessoas mais próximas, que não
se preocuparam nada.
Por essa altura já Jonathan tinha percorrido a coxia e se
juntara ao aturdido homem da USIS. Pôs um braço por cima do
ombro do tipo e confidenciou-lhe em voz baixa:
- Aguente, rapaz. Você pode manejá-los. Afinal de contas, é
um comunicador governamental treinado. - Deu um
soluço e afastou-se.
- Bem - disse o homem da USIS à audiência -, se não há mais
perguntas para o doutor Hemlock, então eu pedirei...
As vaias e gritos afogaram-no e os assistentes começaram a
debandar, tagarelando entre si e rindo.
Jonathan abriu caminho até uma sala de exibição no foyer.
Estavam expostas enormes quantidades de horríveis cerâmicas
feitas pelos melhores alunos duma conhecidíssima escola de
desenho da Califórnia e trazidas ali para mostrar aos
Suecos o que podiam fazer os jovens artistas
285
americanos. Uma das peças tinha um título concebido para
sugerir angústia criativa e desespero pessoal. Chamava-se A
Panela que eu Quebrei e era o que dizia ser. Próxima dele
estava uma pungente alusão à sociedade, sob a forma duma
enorme caneca de cerveja do feitio do Tio Sam com feições
de negro, e uma legenda em cursivo Não Bebam por Mim. Mas a
grande peça da colecção era um longo cilindro de cerâmica
vermelha que se partira durante a cozedura e,
subsequentemente, fora intitulada Erecção Relutante.
Jonathan inspirou profundamente e encostou a cabeça à
parede coberta de serapilheira. Era demasiado. Demasiados
copos. Andava a beber há semanas. Semanas e semanas e
semanas.
- É assim tão mau como isso? - perguntou uma das raparigas
suecas, que tinha andado à procura dele e estava de pé, à
porta.
Jonathan forçou-se a sair da parede e para estabilizar as
coisas engoliu uma grande golfada de ar.
- Não, é um óptimo material. É a nossa maneira subtil de
vos ganhar. Baralhá-los com a nossa jovem arte. Uma nação
capaz de produzir este material não pode ser má de todo.
A rapariga riu.
- Pelo menos mostra que a vossa gente jovem tem sentido de
humor.
- Quem me dera! Cada vez que vejo uma peça destas tento
esquecer o artista, presumindo que é um farsante, mas não
consigo. Receio que isto seja a sério. Banal, é claro... e
maçador... mas sério. Calculo que deve haver uma festa por
aí, em qualquer lado.
Ela riu-se.
- Estão à sua espera.
- Estupendo.
Foi até ao foyer onde se juntou a um grupo de jovens
suecos, exultando energia e alegria de viver. Convidaram-no
para ir jantar com eles, depois de uma série de bares e
festas, como faziam todas as noites. Eram jovens atraentes;
fisicamente fortes, lúcidos, saudáveis. Muitas vezes já
reflectira no número médio de gente bonita que havia entre
os
286
Suecos. Esquecia-se do velho adágio do viajante, afirmando
que as pessoas mais belas do Mundo eram aquelas que
primeiro se viam logo que se abandonava a Inglaterra.
No exterior o frio era cortante e o vento trespassava.
Enquanto os jovens aguardavam, esfregando as mãos, Jonathan
deu umas boas-noites formais ao guarda de verde da
Beraknings Aktiebolag que patrulhava o Centro de Cultura
Americano como resposta às ameaças bombistas. Sentiu pena
do pobre diabo, de cara arrepiada e tremendo naquele frio
húmido. Até se ofereceu para fazer o serviço por ele.
Um bar. Depois outro. Depois a casa de qualquer pessoa. Aí
houve uma discussão animada e uma luta. Outro bar -que
fechou quando saíram. Alguém teve uma ideia maravilhosa e
telefonou a uma pessoa que não estava em casa. Jonathan e
os quatro estudantes que restavam atafulharam um carro
pequeno e partiram para a Gamla Stan, para o deixar no
hotel, dirigindo-se para a Lilla Nygatan visto ele ter
bebido demais e se ter tornado num embaraço social.
Despejaram-no no litoral da ilha medieva, onde se não
permitia a entrada a veículos privados. Alguém lhe
perguntou se tinha a certeza de encontrar o caminho, e ele
respondeu que se fossem embora - na realidade, para o
inferno. Quando as luzes vermelhas da parte de trás do
carro já haviam desaparecido na neve que revoluteava
voltou-se e descobriú que uma rapariga sueca saíra
juntamente com ele. Aí estava! A festa ainda não acabara!
Pôs um braço à volta dos seus ombros - as raparigas eram
agradáveis ao toque, nos seus espessos casacos de pele,
como ursinhos de peluche - e começaram a vaguear em busca
dum bar aberto ou duma cave*. Encontraram uma, uma inne
stiilletJor visor, jazz och Jolk-musik e sentaram-se a
beber uísque conversando, aos gritos, contra o fundo de
música barulhenta, até que o estabelecimento fechou.
Deambularam então sem destino através das ruas estreitas
" Um pequeno café com variedades tipicamente adaptado a
partir da madrugada. (N. da T. ).
287
e desertas, apoiando-se um no outro, a neve fazendo uma
profunda camada nas pedras e caindo em grandes e indolentes
flocos que cintilavam e rodopiavam em redor dos candeeiros
de gás. Jonathan declarou que não se preocupava muito com
cartões de Natal. Ela não percebeu. Portanto, ele repetiu,
e como ela não entendesse, disse esquece.
Um pouco mais adiante caiu.
Passavam por uma rua estreita e abobadada de Yxsmedsgrand
quando ele escorregou no gelo e caiu num banco também
coberto de gelo. Lutou para se levantar e escorregou de
novo.
Ela riu alegremente e ofereceu-se para o ajudar.
- Não! Estou óptimo. De facto até me estou a sentir muito
bem. Acho que vou passar aqui a noite. Diz-me uma coisa: o
que aconteceu ao meu sobretudo?
- Deves tê-lo deixado na festa.
- Não, na festa deixei foi a minha juventude! Como achas
isto para uma resposta romântica do género mais-amargo-que-
vós? Não fiques influenciada, querida. É tudo melodrama
destinado a levar-te para a cama. Estás certa de que não
tens o meu sobretudo?
- Anda daí. Vamos para o teu hotel. - Riu com ar natural e
ajudou-o. - Isto faz-te sentir embaraçado? Escorregar e
cair quando estás acompanhado por uma rapariga?
- Sim, faz. Mas é só por ser um macho chauvinista e suíno.
- Porco.
- Porco, então. O que fazes tu?
- Sou estudante de Arte. Li todos os teus livros.
- Palavra? E agora vais rolar na cama comigo. O que prova o
adágio de que o sucesso tem tomates. Vamos embora. A
alvorada está a nascer com os seus farrapos vermelhos entre
as omoplatas.
- Perdão?
- Shakespeare. Uma paráfrase modesta.
Havia um grande peso rectangular na sua fronte. Tentou
eliminá-lo com as costas da mão.
- Que idade tens tu, querida?
- Dezanove. E tu?
288
Ele fitou-a devagar enquanto a bebida se lhe escoava da
cabeça. Não estava bem; mas estava sóbrio.
- O que é isto?
Ela riu-se e repetiu.
- Eu disse: Que idade tens tu?
A última vogal tinha uma ligeira curva - uma curva
escandinava, mas não diferente duma curva irlandesa.
Jonathan olhou para ela de muito perto, de olhos nos olhos.
Era uma rapariguinha bastante bonita mas não eram aqueles
os olhos. Não eram verde-garrafa.
- O que aconteceu? - perguntou ela. - Estás doente?
- Pior do que isso. Estou sóbrio. Olha... escuta. Tens aqui
a chave do meu hotel. A morada vem aí escrita. Ficas lá
esta noite. É óptimo. Muito confortável.
- Não gostas de mim?
Ele riu friamente.
- Acho que és um encanto, querida. A esperança do futuro.
Bye-bye.
- Onde vais tu?
- Passear.
O Sol nascia frio e brilhante sobre as águas plácidas de
Riddergarden, mas era um Sol amarelo e crispado que dava
luz sem calor. Um rebocador solitário arrastava uma esteira
de prata cintilante, que fazia doer os olhos, através da
água verde-escura e espessa, sendo o seu marulhar o único
som no ar gelado e sem vento. Os olhos de Jonathan,
lacrimejando de frio e piscando contra a luz, seguiram o
progresso determinado do barco, enquanto se inclinava
contra o gradeamento perto da paragem do metro de Gamla
Stan. Os punhos apertavam-se-lhe dentro dos bolsos do
casaco, o colarinho estava virado para cima e os ombros
enrijeciam-se num esforço para não tremer. A crosta
brilhante e branca da neve que clareava o cais estava
intacta, excepto no que dizia respeito a uma única faixa de
pegadas azuis que ligavam a sua figura tranquila à ruazinha
entre os edifícios antigos, que se agrupavam na colina
atrás de si.
A fadiga obrigava-o a respirar fundo e sobre os seus ombros
flutuavam jactos de vapor.
Da caverna húmida, que era a estação de metro da Gamla
289
Stan, saiu para a luz uma rapariga que passara lá a noite
abrigada da neve e do vento. Olhou em redor,
desconsoladamente, e aconchegou mais ao corpo a grossa
parka do exército. Vinha carregada com uma mochila e uma
guitarra barata e a bandeira americana cozida no rabo dos
jeans começara a afrouxar e a desprender-se num dos cantos.
A cara desmesuradamente chata era descarnada e os olhos
raiados de vermelho mostravam fome e miséria. Olhou
Jonathan com desconfiança. Este examinou-a com uma distante
indiferença. Um autocolante em forma de sol, amarelo e
sorridente, desejava-lhe que tivesse um dia agradável.
Londres e Essex, 1973
Fim

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