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P-052 - O Pseudo - Clark Darlton
P-052 - O Pseudo - Clark Darlton
O PSEUDO
Autor
CLARK DARLTON
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Quem se mete com
Gucky perde a barba
— ou as calças...
Ainda havia gente que não conhecia Gucky, o rato-castor. Para muitos deles, isso
não representava nenhuma tragédia; apenas ficavam privados do prazer de apreciar um
pequeno milagre. Mas outros, que nunca haviam ouvido falar a seu respeito e, de repente,
se encontravam com ele, poderiam experimentar uma surpresa nada agradável.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com os colonos revoltados do planalto ao sul de
Vênus City. Sabiam por experiência própria que o governo mundial de seu planeta de
origem não costumava enviar expedições punitivas para sufocar rebeliões no nascedouro.
Por isso, resolveram romper os laços que os ligavam à Terra, dos quais resultavam
tributos insignificantes, para adquirir a independência.
Como Perry Rhodan se encontrasse em algum lugar nas profundezas do Universo, e
não houvesse meio de entrar em contato com ele, o governo mundial terrano agiu por
conta própria e incumbiu Gucky de verificar o que estava acontecendo em Vênus.
Com o maior prazer, Gucky passou a desincumbir-se da missão.
Os colonos revoltados riram gostosamente quando um belo dia surgiu diante deles
aquela criatura que se parecia com o ratinho Jerry. Riram ainda mais quando a figura
engraçada afirmou que vinha por ordem do Império Solar, para restabelecer a ordem.
Só pararam de rir quando aquele animal esquisito, que falava um inglês impecável,
lançou mão de suas forças ocultas. Nenhum pensamento dos cabeças lhe ficou oculto,
pois Gucky era telepata. Encontrava-se nos mais variados lugares ao mesmo tempo, pois
também possuía o dom da teleportação. E, para coroar a obra, todo o arsenal de armas
dos colonos foi erguido, ficou reunido bem acima do planalto e caiu num lago profundo.
É que Gucky também era telecineta.
Depois disso, os colonos voltaram a agir razoavelmente. Desculparam-se com
muitas palavras bonitas e juraram obediência para o futuro, prometendo pagar
pontualmente os tributos a que se haviam obrigado.
Na noite daquele dia agitado, Gucky foi homenageado por sua generosidade. O
chefe da revolta sufocada convidara-o e lhe oferecera verduras frescas e vinhos da
estação. A festa foi muito alegre e o rato-castor, muito animado, começou a esquecer as
boas maneiras. Com sua voz aguda, cantou algumas canções grosseiras que ouvira de
Bell. Os homens acompanharam-no com as vozes roucas.
Os animais que residiam nas matas vizinhas à colônia espantaram-se com o barulho
descomunal e ficaram em silêncio. Nunca tinham ouvido um rato-castor cantar. Um
porco-espinho assustou-se e enfiou-se mais profundamente em sua caverna, resolvendo
que ao raiar do dia procuraria um novo lar. Até mesmo um verme-parafuso quase surdo
enfiou-se apressadamente no chão, para livrar-se da orgia de ruídos pouco agradáveis.
Em poucas palavras, Gucky sentia-se feliz como um porco em meio às abóboras.
É bem verdade que vez por outra teve a impressão de que seu subconsciente estava
sendo atingido por débeis impulsos mentais que não provinham dos colonos, cujos
cérebros estavam envoltos nas névoas alcoólicas. Mas não deu atenção ao fenômeno.
Afinal, fizera um trabalho bem feito e merecia uma noite alegre. O que tinha ele a ver
com a guarnição terrana de Port Vênus, a capital do planeta? Aquela gente poderia
perfeitamente esperar até o dia seguinte.
Gucky continuou a cantar e a receber as homenagens.
Bem mais tarde, quando estava descansando em uma macia cama na casa do
prefeito, procurando espantar os anéis coloridos e as paredes que balançavam, os
impulsos voltaram.
— Gucky! Aqui é o comando do exército de mutantes. Responda! O que aconteceu?
A mensagem era tão clara que não poderia passar despercebida. Pelo tipo das
vibrações só poderia ser Betty Toufry, cuja capacidade telepática muitas vezes provocara
a admiração de Gucky. Era Betty quem dirigia o comando do exército de mutantes
destacado para Vênus. A ela fora confiada a incumbência de sufocar a revolta dos
colonos.
Gucky suspirou e fez um esforço para vencer a embriaguez.
— Minha doçura! — pensou, despertando aos poucos. — Meu estado é excelente.
Apenas estou um tanto carregado.
— Carregado?
O rato-castor sorriu. Como é que aquela criatura ingênua poderia saber o que
carregara? Não conhecia o vocabulário de Bell tão bem quanto ele.
— Estou carregado de vinho — explicou laconicamente. — Um vinho delicioso. A
revolução acabou-se. Amanhã estarei aí e lhe darei um beijo.
Betty não parecia sentir-se muito feliz com a promessa.
— Você vai voltar, mas é já! Tenho outra tarefa para você.
O rato-castor continuou deitado, sacudindo o sono que ameaçava envolvê-lo. Quem
sabe se realmente não havia bebido demais?
— O que é? — perguntou.
Começou a sentir-se mal.
— Trata-se de uma missão especial, meu chapa! — foi a resposta telepática que
veio imediatamente. — Você terá que partir amanhã de manhã.
Gucky soltou um gemido e ergueu-se na cama. Encostou-se à parede. A luz vinda
da rua provocou um reflexo branco na pele da barriga.
— Partir amanhã? Será que esta vida de cigano nunca terá fim?
Betty começou a impacientar-se.
— Ou você vem imediatamente, Gucky, ou eu aviso Rhodan que você recusou
obediência a uma ordem. Ele exigiu expressamente a sua presença e...
Gucky despertou imediatamente. O cansaço e o mal-estar desapareceram como que
por encanto. Com um salto, pôs-se de pé ao lado da cama.
— Então foi Rhodan? Ele quer minha presença? Que chefe adorável! Não se
esqueceu de mim — a emoção quase chegou a dominá-lo, mas acabou por controlar-se.
— Dentro de cinco minutos estarei aí. É no espaçoporto?
— Está certo. Ande depressa!
— Já estou a caminho — respondeu Gucky e começou a vestir-se. Numa letra
delicada escreveu um bilhete de agradecimentos aos colonos e recomendou-lhes que
nunca mais pensassem em revoltas.
Depois, concentrou-se em seu destino e saltou.
De início, o ar começou a tremeluzir em torno dele. Subitamente desapareceu. No
mesmo instante, voltou a materializar-se no lugar combinado, em Port Vênus.
Betty Toufry nem chegou a assustar-se.
Estava sentada na cama. Trazia um robe sobre a roupa de dormir, que devia ser
muito fina. Em Vênus o dia e a noite eram medidos pelos padrões terranos, pois face à
rotação do segundo planeta, só a verdadeira noite durava cento e vinte horas.
A parede do quarto era formada de telas e controles. Era aqui que se reuniam todos
os fios das teias urdidas em Vênus. E a partir dali, era controlada a ação dos mutantes.
Enquanto John Marshall, chefe do exército de mutantes, estava ausente, as funções eram
exercidas por Betty.
— Será que isso não poderia esperar até amanhã? — perguntou Gucky, mas logo se
lembrou de quem o tinha chamado. — Foi Rhodan em pessoa que exigiu minha
presença? Por que não me chamou logo?
A moça, que continuava jovem graças à ducha celular do planeta Peregrino,
aplicada aos membros mais importantes do exército de mutantes, sacudiu a cabeça diante
de tamanha falta de lógica.
— Faz poucas horas que recebi a mensagem de Rhodan pelo hipercomunicador.
Confiou-nos uma tarefa muito estranha, que tinha de ser cumprida antes de qualquer
outra coisa. Só depois disso, tive tempo para pensar em você, que é parte do equipamento
solicitado.
— Você acha que eu sou uma peça de equipamento? — disse Gucky em tom
indignado, acomodando-se na poltrona. — Foi o chefe que disse isso?
— É claro que não usou essa expressão. Mas fez questão de que mandássemos
você.
— É porque sabe apreciar minhas qualidades — disse o rato-castor em tom de
regozijo.
— Talvez — disse a moça, que pelo aspecto podia ter tanto dezoito como trinta
anos. Na verdade Betty Toufry tinha mais de sessenta anos. — De qualquer maneira,
você voará para Hellgate amanhã, logo depois do período de sono.
Gucky empertigou-se e levantou as grandes orelhas. Por entre os lábios, surgiu o
dente roedor, que podia ser considerado o barômetro de seu humor. Quando aparecia,
podia-se falar tranqüilamente com Gucky.
— Hellgate! — sacudiu a cabeça de espanto. — Logo esse planeta do calor. Será
que o chefe não poderia ter inventado nada melhor?
— Hellgate é uma base muito importante que dispõe de uma estação de rádio. É o
único planeta de um sol pequeno e insignificante, que consta dos catálogos dos arcônidas
sob a designação ZW-2536-K-957. Hellgate dista exatamente 12.348 anos-luz da Terra.
O planeta pertence ao Império de Árcon. Ninguém se interessa por ele, especialmente os
arcônidas.
— Obrigado pela explicação — chiou Gucky em tom de desprezo. — Eu poderia ter
encontrado essas informações num livro. O que vou fazer em Hellgate?
— Faça essa pergunta a Rhodan; ele deve saber. Não tenho a menor idéia do que
aconteceu por lá — Betty ajeitou o robe e cobriu os joelhos, embora não houvesse o
menor perigo de que Gucky ligasse o joelho humano feminino a qualquer tipo de
erotismo. — Também não faço a menor idéia do que Rhodan pretende fazer com o iate
espacial de luxo.
— Com o quê? — perguntou Gucky perplexo.
— É um veículo feito sob encomenda — disse Betty, participando do espanto de
Gucky. — Um iate especial para milionários. Os arcônidas costumavam utilizá-lo. Você
vai levar a pequena nave para Hellgate, onde está Rhodan.
— E depois disso vou voltar a pé? — perguntou Gucky.
— Dificilmente. Se fosse assim, não teria dito expressamente que quer você como
piloto. Tomara que você saiba dirigir aquilo.
O rato-castor empertigou-se, o que quase chegou a provocar o riso de Betty.
— Isso não é nada. Afinal, fui treinado com todos os tipos de nave, inclusive com
esse ridículo iate de luxo. Quando devo partir?
— O equipamento ainda está sendo colocado a bordo. Infelizmente a longa noite de
Vênus começou há pouco, mas você não se importa de decolar no escuro. Será dentro de
dez horas. Se quiser, pode dormir mais um pouco. O pessoal de Port Vênus está a par de
tudo e fará o possível para apressar os preparativos. Rhodan o aguarda para daqui a vinte
horas.
Gucky exibiu o dente roedor e lançou os olhos em torno.
— Será que posso dormir aqui? — perguntou com a cara mais inocente do Universo
e lançou um olhar ansioso para a cama de Betty.
Mas esta não tinha a menor vontade de acariciar o rato-castor para pô-lo a dormir.
Tirou o robe, enfiou-se sob a coberta de penas e sacudiu a cabeça.
— Na sala ao lado há um sofá. Boa noite.
Desapontado, Gucky ficou mais alguns minutos na poltrona. Depois teleportou-se
para a peça contígua.
Ainda se encontrava sob os efeitos do vinho. Por isso, logo esqueceu seus
problemas e adormeceu.
***
O veículo espacial de luxo pertencia a uma classe toda especial.
Envolvido pela luz ofuscante dos holofotes, estava pousado no pavimento de
concreto, junto ao cruzador leve que o trouxera da Terra.
Sobre o corpo prateado da nave lia-se em caracteres negros a designação arcônida
Koos-Nor.
Assemelhava-se a um gigantesco ovo, com trinta e cinco metros de comprimento e
quase vinte de diâmetro na parte central.
Uma escotilha oval conduzia para a comporta de ar e dali para o interior do iate. Seu
raio de ação era praticamente ilimitado, desde que não se desse importância às revisões
regulamentares.
Gucky e Betty Toufry encontravam-se diante da maravilha reluzente.
— Isso deve custar um bom dinheiro — constatou Gucky. — Nunca imaginei que
um dia viria a comandar uma maravilha dessas.
A moça olhou para o relógio.
— Você conhece as coordenadas, Gucky. O engenheiro-chefe voltou a explicar
todos os detalhes. O que está esperando?
— É verdade, Betty. Vou zarpar.
Betty riu.
— Você está exagerando para menos, coisa que não costuma fazer. Dê lembranças
minhas a Rhodan e aos outros. E boa sorte.
— Você acha que precisaremos?
— Sem dúvida. Rhodan falou numa missão muito arriscada.
Gucky sorriu. Parecia satisfeito.
— Ainda bem que esta espera enjoada chegou ao fim. Todos os mutantes estão
participando de comandos especiais. Eu sou o único que se encontra aqui em Vênus para
acalmar colonos inofensivos cujo único defeito consiste em não querer pagar impostos.
— Bem, ainda não existe nenhum imposto para os ratos-castores — disse Betty com
um sorriso e recuou um passo. — Faça um trabalho bem feito, Gucky.
Gucky sorriu e, com um ligeiro salto, subiu os poucos metros que o separavam da
escotilha de entrada. A escada que se revelara desnecessária encolheu-se
automaticamente. Gucky acenou e desapareceu no interior da comporta. A pesada
escotilha, iluminada pelas lâmpadas, fechou-se.
Poucos minutos depois, um tremor sacudiu o vulto em forma de ovo. Levantou-se e
subiu lentamente ao céu escuro, seguido pela luz dos holofotes.
Betty caminhou até a beira do campo de pouso. Quando parou e lançou mais um
olhar para o céu enegrecido, não viu mais nada da nave. Parecia que a mesma se
desmaterializara.
***
E foi isso mesmo. Gucky estava decidido a aproveitar todas as possibilidades da
nave de luxo arcônida.
Os veículos espaciais do tipo da Koos-Nor eram dotados de um campo amortizador
especial, que reduzia a um mínimo os efeitos das hiperentradas e saídas sobre a estrutura
espacial contígua. Por isso, essas naves tinham o direito de ingressar no hiperespaço
dentro do setor espacial ocupado por um sistema solar, ou reingressar no espaço normal
nesse mesmo setor. O custo de um equipamento desse tipo era o único fator que impedia
sua instalação em todas as naves. O gerador de campo amortizador não era rentável — a
não ser para iates de luxo, com os quais os inspetores irradiavam o poder e esplendor de
Árcon...
O rato-castor ligou o gerador de campo de amortização assim que a Koos-Nor
rompeu a camada de nuvens branca-amarelenta de Vênus.
Naquele instante, o Universo deixou de existir para Gucky. Ou melhor, o rato-castor
e todo o iate de luxo deixaram de existir para o Universo normal. Transformaram-se e
passaram a existir sob a forma de um impulso energético de categoria superior.
Essa situação perdurou até o momento da rematerialização.
Quando a dor tão conhecida, provocada por esse processo, se desvaneceu, Gucky
contemplou os quadros estelares, subitamente modificados.
Escorregou para fora do assento do piloto e resolveu dar uma olhada mais detida
pela nave. Sentia-se martirizado pelo desejo de saber o que Rhodan pretendia fazer com
esse veículo de luxo. Por que não solicitara um cruzador, em vez desse lindo
brinquedinho? Com este iate, poderia não se sair bem numa aventura perigosa.
No porão de carga, viam-se as caixas fechadas vindas da Terra. Acontece que uma
fechadura não representava nenhum problema para Gucky, o telecineta, e assim não era
de admirar que o rato-castor inspecionasse o equipamento especial de Rhodan sem que
isso lhe doesse na consciência.
Dez minutos depois, voltou à sala de comando da Koos-Nor e deixou-se cair no
assento.
Os olhos arregalados fitaram a profusão de estrelas desconhecidas.
— Gostaria de saber o que Rhodan vai fazer num baile de máscaras — sussurrou.
***
Hellgate realmente parecia ser o portão do inferno, conforme dizia o nome.
Ninguém seria capaz de imaginar um planeta mais solitário e desolado que aquele. Ali,
Rhodan travara a primeira luta terrível contra Atlan, o solitário do tempo.
Hellgate...
Era um deserto de areia e rocha, inundado pelo sol e privado de qualquer vida ou
esperança. Nenhuma criatura sensata conceberia a idéia de fixar-se ali, pois não havia
nada com que pudesse alimentar-se. O sol solitário ficava longe de todas as rotas
espaciais e tinha menos importância que uma partícula de pó suspensa na atmosfera de
qualquer planeta habitado da Via Láctea.
Hellgate...
Justamente esse mundo infernal fora escolhido por Rhodan para servir de base e
posição avançada contra o Império dos Arcônidas. Ninguém suspeitaria de que estivesse
ali, se é que alguém soubesse da sua existência. E isso era pouco provável. Há quase seis
décadas considerava-se a Terra como um planeta destruído, e todo mundo acreditava que
Rhodan e sua gigantesca nave, a Titan, tivessem desaparecido.
Em Hellgate, Rhodan construiu a cúpula de aço, em cujo interior existiam
condições de vida terranas. A partir dali poderia, a qualquer momento, estabelecer
contato pelo hipercomunicador com os postos espalhados pelos quatro cantos do
Universo. No hangar subterrâneo havia uma nave rápida, preparada para tirá-lo dali caso
houvesse necessidade.
Já fazia muito tempo que se encontrava em Hellgate, mas ainda não havia atingido
seu objetivo.
Exatamente a oitenta e um anos-luz ficava um sol de luminosidade débil do tipo G,
que estava registrado nos catálogos dos arcônidas com o nome de estrela de Revnur.
Lembrava o sol terrano e facilmente poderia ser confundido com o mesmo. Seis planetas
gravitavam em torno da estrela de Revnur, mas só o segundo deles era habitado. Os aras,
descendentes dos saltadores e dos arcônidas, o descobriram e colonizaram em tempos
idos. Os saltadores viviam principalmente do comércio, motivo por que também eram
conhecidos como os mercadores galácticos. Já os aras exerciam outras especialidades:
eram os médicos galácticos, e seu meio de vida consistia na venda de soros por eles
produzidos e na vigilância médica de outras raças e dos mundos por elas habitados.
Para esse fim mantinham no segundo planeta de Revnur o único zôo galáctico.
Haviam descoberto um elixir da vida, e era mais que compreensível que o mesmo
despertasse o interesse de Rhodan. Havia dois mutantes, John Marshall e Laury Marten,
que trabalhavam como agentes em Tolimon, nome pelo qual era conhecido o planeta do
zoológico. Há menos de uma semana Marshall avisara pelo rádio a existência de uma
situação de grave emergência e solicitara auxílio. A partir dali tudo indicava que estava
desaparecido. Todavia, Rhodan sabia que Laury conseguira retirar uma ampola do elixir
da vida de um dos laboratórios dos aras.
Teria que dirigir-se pessoalmente a Tolimon, para livrar seus agentes de um perigo
grave. Foi este o motivo da partida inesperada de Gucky.
A cúpula de aço estava sendo castigada pelo calor tremeluzente de Hellgate. Mas
em seu interior havia um clima igual ao das zonas temperadas da Terra.
Rhodan estava no banho.
Nos dias anteriores, voltara a ouvir todas as mensagens de hipercomunicação
armazenadas automaticamente por sua estação receptora. Com isso adquiriu uma visão de
conjunto dos acontecimentos que se desenrolaram no interior e no exterior do Império
Arcônida. O cérebro robotizado, que governava o Império, conseguira restabelecer a paz
e a ordem. E a paz reinante no Império era respeitada tanto pelos aras quanto pelos
saltadores. Ninguém mais falava da Terra destruída. E também um certo Perry Rhodan,
que em certa época representara um perigo imenso para o Império, estava totalmente
esquecido.
Rhodan sorriu e esticou o corpo. Os campos gravitacionais embutidos na banheira
faziam com que levitasse sobre a superfície da água verde-azulada. O líquido brincava
em torno do corpo, deixando livre apenas a cabeça. Rhodan boiava sem executar o menor
movimento, gozando em cheio as delícias do banho gravitacional.
A perspectiva do vôo para Tolimon não o deixava nada satisfeito.
Já não tinha motivo para temer sua redescoberta pelo Império Arcônida, mas estava
interessado em adiá-la até o momento em que conhecesse o segredo do prolongamento da
vida. Por isso teria de usar um disfarce durante a visita a Tolimon.
Na sala de controle soou uma campainha e logo se ouviu um zumbido penetrante.
Rhodan fez alguns movimentos de natação e saiu da banheira. O jato de ar quente
enxugou seu corpo dentro de poucos segundos. Vestiu um robe e desceu até a sala de
controle. Pelos instrumentos constatou que uma pequena nave circulava em torno de
Hellgate e procurava entrar em contato com sua estação.
Seria Gucky?
Dali a um minuto, a tela iluminou-se, mostrando o rosto sorridente de Gucky em
tamanho natural, a começar pelas orelhas superdimensionadas, a testa enrugada, os olhos
fiéis e o dente roedor reluzente. Enfim, a gola verde do uniforme espacial.
— Olá, chefe! Posso pousar?
Rhodan sacudiu a cabeça, num gesto de recriminação.
— Você está com sorte, pois por uma questão de precaução desliguei o dispositivo
de defesa automático. Se não fosse assim, não encontraríamos mais nada de você.
— Você não me esperava?
Rhodan suspirou.
— Sua leviandade chega a ser lendária, Gucky. Pois bem, pode pousar. A barreira
visual foi desativada; você não terá a menor dificuldade em encontrar a cúpula. Ligue os
campos gravitacionais, para que a nave possa ser introduzida. Vou abrir a comporta.
Voltou a cumprimentar o rato-castor e desligou a instalação. Vestiu-se rapidamente,
colocou o traje pressurizado e foi até a comporta do hangar, onde estava guardada sua
nave. Dali a dois minutos pisava a areia escaldante do planeta infernal. O aparelho de
refrigeração de seu traje espacial reduziu a temperatura a um nível suportável.
Gucky estava pousando.
— Fique na sala de comando! — pensou Rhodan com a maior intensidade. Sabia
que o rato-castor, que era telepata, não teria a menor dificuldade em captar e decifrar seus
impulsos mentais. — Ligue os campos. Levarei a nave para dentro da comporta.
Gucky compreendeu imediatamente. A Koos-Nor perdeu seu peso, tornando-se
mais leve que uma folha de papel. O raio de tração de matéria permitiu a Rhodan que
levasse a nave de trinta e cinco metros de comprimento para o interior da comporta,
fechasse a escotilha, fizesse entrar o ar e a colocasse no hangar. Enquanto saía do
levíssimo traje espacial, a pequena escotilha oval da nave abriu-se e Gucky, com um
único salto, colocou-se nos braços de Perry.
— Estou tão feliz em revê-lo, chefe — chilreou num tom que quase chegava a ser
carinhoso e enlaçou o pescoço de Rhodan com os braços fininhos. — Trago lembranças
de todos, especialmente de Betty.
— Está bem, pequeno — disse Rhodan comovido e acariciou o amigo. Havia uma
estranha amizade entre o homem mais poderoso do sistema solar e o “animal” peludo,
que, além de possuir a inteligência de um homem superdotado, era o mais versátil dos
mutantes. — Também estou feliz por tê-lo comigo.
— Você bem que poderia ter-me chamado mais cedo.
— Acontece que só agora surgiu a necessidade, e nem sempre podemos dar atenção
aos nossos sentimentos. Trouxe tudo que eu pedi?
— Não faço a menor idéia. Quem cuidou disso foi Betty.
— Nesse caso deve estar tudo certo. Mais tarde daremos uma olhada. Vamos até a
sala de comando. Ali, lhe explicarei os meus planos. Mas desde logo posso adiantar uma
coisa: será um trabalho muito perigoso.
— Que bom! — disse Gucky com um sorriso e saltou para o chão. — Já me chateei
bastante na Terra e em Vênus.
— Você ficará admirado — disse Rhodan com um sorriso e envolveu seus
pensamentos com uma barreira, para que Gucky não pudesse ler os mesmos. Embora ele
mesmo possuísse uma capacidade telepática muito reduzida, já percebera a curiosidade
do amigo. Chegaram à sala de controle semicircular da cúpula e sentaram.
— Preste atenção, meu caro — principiou Rhodan. — Você já sabe que John e
Laury foram enviados para Tolimon a fim de tirar dos aras o segredo do elixir da vida.
Conseguiram uma garrafa do líquido, mas estão em dificuldades. Não sei o que
aconteceu, mas sei que precisam do meu auxílio. Aliás, você levou muito tempo para
chegar aqui.
O rato-castor fez a cara mais inocente do mundo.
— Betty disse que você só precisava de mim após decorridas dez horas. Por isso
voei mais devagar que a luz e realizei apenas três transições. Não quis chegar antes da
hora.
— Quer dizer que Betty levou muito ao pé da letra a minha indicação de que não
precisava de mais de seis dias. Não disse que preferiria que fossem quatro ou cinco. Bem,
o que passou, passou. De qualquer maneira, você está aqui. Podemos começar.
— Começar com quê?
— Com os nossos preparativos. Vamos mascarar-nos. Você não. É claro, pois isso
não adiantaria nada. Por aqui ninguém o conhece. Dificilmente alguém o ligará à minha
pessoa. Quanto a mim, farei o papel de arcônida, mais precisamente, o de inspetor.
— Inspetor? — perguntou Gucky, arregalando os olhos de espanto.
— Isso mesmo: de inspetor. Pelas mensagens do cérebro robotizado de Árcon
captadas por nossa estação soube que o mesmo envia a espaços regulares inspetores aos
diversos mundos do Império, para verificar se está tudo em ordem. Todo o poderio de
Árcon está atrás desses funcionários. Quer dizer que, se eu aparecer em Tolimon na
qualidade de inspetor, todas as portas se abrirão diante de mim, e as pessoas me
tributarão o devido respeito. Nos últimos seis decênios, o prestígio dos arcônidas voltou a
crescer. Ao que parece, a raça degenerada voltou a recuperar-se. Seja como for: você
trouxe o equipamento de que preciso para mascarar-me.
— E eu?
Rhodan exibiu um sorriso matreiro.
— Tolimon é um mundo todo especial, meu caro. Costuma ser designado como o
zôo da Galáxia. Ali colecionam-se principalmente seres semi-inteligentes, que já
ultrapassaram a fase animalesca, mas não podem ser considerados como inteligências
plenamente desenvolvidas. Donde se conclui que em Tolimon você despertará mais
interesse que eu.
— Eles se interessarão por mim? — chiou Gucky, que teve um terrível
pressentimento. — Quer dizer que... Essa não! Você não poderá exigir que eu me preste a
um papel destes.
— Por que não? Para todos os efeitos, eu serei o poderoso inspetor de Árcon,
enquanto você será um ser peludo inofensivo e de pouca inteligência, que me serve de
criado. Verá como os aras se interessarão por sua pessoa. Você representa a peça que
falta em seu zoológico. Por isso mesmo darão menos atenção à minha pessoa.
— Está bem. Mas será que eu terei que assumir o papel de idiota? Para falar com
franqueza, não estou gostando da idéia.
— Pouco importa que você goste ou não, Gucky. A coisa é muito séria, pois não
sabemos o que aconteceu com Marshall e Laury. Talvez se encontrem em grande perigo.
Se aparecermos por lá, a atenção dos aras será desviada deles. E você desviará sua
atenção da minha pessoa. Se tem qualquer dúvida em fazer o papel de idiota, é bom que
se lembre de uma coisa: só a criatura verdadeiramente inteligente não se importa de
parecer mais tola do que realmente é. Já o tolo sempre quer aparentar uma inteligência
maior que a real. Isso decorre da própria natureza das coisas.
Gucky inclinou a cabeça.
— Isso é um trecho de filosofia terrana que já conheço. Mesmo assim, a perspectiva
de fazer o papel de animal doméstico não é nada agradável.
— Meu animal doméstico e meu criado pessoal — completou Rhodan. — Afinal,
sou um arcônida extravagante, riquíssimo. Não seja um desmancha-prazeres, Gucky. Se
você não quiser entrar no jogo, terei de arrepender-me de querer justamente você.
— Por que não leva Bell? Este não precisa fingir para fazer o papel do idiota —
Gucky sorriu com a lembrança, mas seu rosto logo voltou a ficar sério. — Está bem,
vamos ao trabalho. Quando decolaremos com destino a esse estranho planeta zoológico?
— Exatamente dentro de dez horas. É o tempo necessário aos nossos preparativos.
Ainda lhe fornecerei instruções mais detalhadas.
— O que aconteceu com Marshall e Laury?
— Pelas últimas notícias que recebemos deles, conseguiram uma amostra do soro e
se encontram numa situação extremamente perigosa. É só o que sabemos. É possível que
a falha seja do emissor, mas o súbito silêncio pode ter outros motivos. Não demoraremos
a saber.
Gucky endireitou o corpo. Em seus olhos castanhos ainda havia um restinho de
recriminação, porém já revelavam certa alegria pelo que estava por vir.
Quem sabe se a aventura afinal não seria muito divertida...
***
***
***
***
Para Rhodan não foi muito fácil acompanhar o seqüestro de Gucky enquanto
conversava com os políticos mais influentes de Tolimon. Não demorou muito. Logo se
despediu. Desculpou-se com o cansaço da viagem, dizendo que precisava repousar. Uma
vez que, naquela altura, o comando de captura já se apoderara do rato-castor, não lhe
opuseram maiores dificuldades. O carro levou-o de volta ao hotel.
Conforme o programa, sentiu falta de seu criado e perguntou ao pessoal do hotel se
não o haviam visto. Mas todos, inclusive o gerente, afirmavam de pés juntos que não
haviam notado nada de suspeito.
Rhodan aguardou mais trinta minutos; depois avisou a polícia. Esclareceu que seu
criado não costumava sair de hotel sem permissão. Exigiu energicamente uma operação
de busca para localizar a criatura desaparecida.
A polícia prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance. Era claro que estava
mentindo; agia de comum acordo com os seqüestradores.
A seguir Rhodan deitou na cama, depois de ter trancado a porta e colocado o
radiador de impulsos portátil embaixo do travesseiro.
Voltou a dedicar-se à tarefa, bastante difícil face à potência reduzida de suas
faculdades telepáticas, de localizar os impulsos mentais de Marshall, sem esquecer o
contato com Gucky.
Naquele instante Gucky encontrava-se diante dos seus examinadores.
***
***
***
***
Os dois froghs deslocavam-se velozmente pelas ruas sinuosas. Gucky teve que
esforçar-se ao máximo para segui-los no seu andar arrastado. Praguejou violentamente
porque não lhe era permitido teleportar-se. Se o fizesse, não poderia deixar de chamar a
atenção. Em todos os lugares os transeuntes, atemorizados pela visão dos guardas do
zoológico, comprimiam-se contra as paredes dos prédios e suspiravam aliviados depois
que os froghs passavam. Ao que tudo indicava ninguém tinha a consciência tranqüila,
mas Gucky não conseguiu descobrir por que todo mundo temia as centopéias. Talvez o
simples aspecto dos froghs incomodasse as pessoas.
Subitamente os froghs pararam.
Gucky não entendia sua língua, mas podia ler seus pensamentos, que não
dependiam da linguagem. Por isso conseguiu acompanhar a conversa que se desenrolava
do outro lado da rua.
— Se nossas informações são corretas, deve ser por aqui.
— Vamos dar uma olhada e perguntar aos moradores dos prédios. Talvez um deles
tenha visto os três.
— Está bem. Começarei por esta coisa. Você pode pegar o outro lado.
Separaram-se.
Gucky parou. Seus pêlos arrepiaram-se quando um dos froghs atravessou a rua
estreita, lançou-lhe um ligeiro olhar desconfiado e desapareceu num dos prédios, para
iniciar a busca.
Deviam ter encontrado uma pista de Marshall, embora Gucky tivesse certeza de que
o Chefe dos mutantes não se encontrava nas proximidades, pois do contrário teria
captado seus impulsos mentais. Provavelmente a pista que os froghs estavam seguindo
era falsa.
Mas, por que não realizar as investigações por sua própria conta?
Não hesitou. Desmaterializou-se, pois esperava que os poucos transeuntes
estivessem ocupados em observar os froghs e por isso não lhe dariam a menor atenção.
Concentrou-se num trajeto reduzido e viu-se num quarto escassamente mobiliado, bem às
costas de uma mulher pobremente vestida, que mexia numa panela.
Deu outro salto, subindo mais um andar.
Nada.
Depois de ter dado vinte saltos, acabou num depósito desabitado. Aproveitou a
oportunidade para descansar um pouco. Evidentemente aquela busca ao acaso não
passava de absurdo rematado. Mas Marshall e a moça ainda há pouco deviam ter morado
numa casa situada naquela rua, a não ser que os froghs fossem uns idiotas.
Gucky suspirou e deu outro salto.
Uma hora depois, materializou-se numa mansarda situada no décimo quinto andar.
Estava vazia e, ao que tudo indicava, ninguém morava ali, pois o armário estava aberto e
nele não havia qualquer peça de roupa. A cama desarrumada não tinha lençóis. Do outro
lado ainda havia dois sofás. Parecia que tinham sido colocados no quarto depois dos
outros móveis. Gucky sentiu um cheiro familiar.
Gucky lançou os olhos em torno e já ia retirar-se, quando subitamente estacou.
Sobre uma penteadeira rústica havia um copo quebrado. Ao lado deste, havia um
vidrinho.
Os olhos de Gucky estreitaram-se quando caminhou em direção à penteadeira,
segurou o vidrinho entre as patas e o cheirou. Faltava-lhe a tampa, mas ainda se via um
pouquinho de líquido amarelo no fundo.
Gucky farejou, silvou satisfeito, hesitou um instante, e derramou os pingos que
ainda havia no vidro sobre o peito peludo. Voltou a colocar o vidro sobre a penteadeira,
refletiu mais um pouco e foi à janela. Sorriu e atirou-o para fora.
O vidro não caiu verticalmente para a rua. Foi atingido pelos fluxos de energia
telecinética que o arrastaram em direção ao céu azul. Subiu tão alto que Gucky não o via
mais. Só depois disso recuou da janela.
Sabia que o vidrinho não resistiria à queda. Ninguém conseguiria identificar os
fragmentos, ainda mais que o vidro não continha nenhuma indicação de procedência.
— Essas mulheres levianas! — chilreou em tom contrariado. Refestelou-se com o
perfume do pêlo de seu peito e revirou os olhos de prazer. — Não há a menor dúvida: é o
perfume predileto de Laury. Foi muita gentileza sua deixar essa lembrança para mim.
Quer dizer que moraram aqui.
Começou a revistar o quarto.
Só se sobressaltou quando os impulsos mentais se tornaram mais nítidos. Alguém
subia pela escada. E agora rastejava pelo corredor e parava diante da porta.
Seria Marshall?
Não, não era Marshall. Era um frogh. Gucky ainda reconheceu a identidade do ser,
que se encontrava lá fora, em tempo de dar um salto e colocar-se em segurança. A porta
aberta do armário escondia-o dos olhares do monstro, que foi entrando bem devagar
enquanto lançava os olhos traiçoeiros em torno.
Gucky olhou cautelosamente por trás da porta e estremeceu. Não era possível.
Como é que a natureza tão bondosa podia criar um monstro daqueles? Em comparação
com ele, os horríveis porcos rastejantes de Vênus eram criaturas verdadeiramente
adoráveis. O Universo estava cheio de seres dos mais estranhos. Todavia, o frogh, além
do mais, para usarmos uma expressão suave, possuía uma expressão pouco amistosa. E
isso o tornava muito antipático.
Acontece que Gucky não gostava nem um pouco das criaturas antipáticas de sua
época. E, para dar uma demonstração evidente dessa aversão, muitas vezes esquecia a
cautela que devia guardar.
Esperou que o frogh fechasse a porta. Depois, saiu de trás do armário e perguntou
em tom gentil:
— Está procurando alguma coisa?
O frogh virou-se abruptamente. Por pouco o movimento não o faz perder o
equilíbrio. Arregalou os olhos e abriu as garras, fitando a aparição inesperada como se
fosse um fantasma. Ao que tudo indicava, não sabia o que fazer com o rato-castor,
embora no zoológico já tivesse tido oportunidade de sobra para conhecer semi-
inteligências dos tipos mais variados.
— O que... quem...? — balbuciou numa língua que Gucky só compreendeu em
virtude de sua capacidade telepática.
— Quero saber o que está fazendo aqui. — repetiu Gucky, utilizando-se da língua
arcônida, que todos compreendiam. — Isto aqui é minha residência.
Ao que parecia, o frogh estava recuperando o autocontrole.
— Venho por ordem do governo — anunciou. — Recentemente um saltador ocupou
este quarto?
— Quem foi que lhe meteu isso na cabeça? E quem é o senhor?
O verme-inseto fez uma cara tão espantada que Gucky soltou uma gostosa
gargalhada. Isso parecia provocar ainda mais a fúria daquela criatura sem senso de
humor. Soltou um chiado e avançou para o rato-castor, estendendo os braços preênseis
como se quisesse estrangulá-lo.
— Eu sou um frogh, seu bicho nojento. Se não estou muito enganado, seu lugar é no
zoológico. Não permitirei que fique em liberdade. Vou levá-lo.
— Mantenha distância! — advertiu Gucky e recuou um passo, para não entrar em
contato com aquela massa horrível. — Quanto ao zoológico, você vai sofrer uma
decepção. É verdade que não temos muita intimidade, mas podemos continuar a tratar-
nos por você. Mais uma coisa. Faça o favor de responder às minhas perguntas, sua
chaminé ambulante.
Ao que parecia, o frogh estava acostumado a ser tratado com mais respeito e temor.
Dificilmente compreenderia que alguém pudesse adotar um comportamento desses em
sua presença. Respirava com dificuldade.
— Você vai se arrepender, seu bicho nojento! — ao que parecia era este seu insulto
predileto. — Ainda hoje será apresentado à administração do zoológico. Sabe o que
acontecerá depois disso?
— Isso não me interessa nem um pouco — respondeu Gucky sem abalar-se. — Se
você não responder imediatamente às minhas perguntas, eu o atiro contra a parede e
depois o farei voar pela janela.
O frogh começou a tremer por todo o corpo, e havia muita massa para tremer. O
verme enchia quase todo o quarto. Com um grande interesse, Gucky percebeu que o
corpo em forma de cobra começou a adquirir uma tonalidade rosada. Aquela devia ser a
cor da pele de um jovem tenente no momento em que o recruta lhe recomenda que ele
mesmo engraxe suas botas.
— Seu miserável! — chiou o furioso guardador do zoológico. — Você se atreve...
— Você está atrás de um saltador — prosseguiu Gucky sem demonstrar o menor
respeito. — Por que justamente aqui? Responda, senão você vai ver o que é bom.
O rato-castor estava percebendo a impaciência do verme gigante. Além disso, sentiu
que a essa altura não poderia recuar. O frogh teria que ser eliminado de qualquer maneira.
Antes devia fazê-lo contar o que sabia.
— O saltador? — perguntou o frogh. — O que sabe a respeito do saltador que estou
procurando?
— Quem faz perguntas sou eu! Entendido? Quem lhe deu esta pista?
O frogh não estava disposto a revelar seu segredo, mas felizmente pensou no caso.
Para Gucky, isso foi suficiente.
— Ah, então é isso! — disse em tom tranqüilo. — Foi outro saltador que lhes
contou. Vocês o torturaram? Morreu? Vocês são assassinos! Acontece que ele lhes
contou uma mentira, pois neste quarto não há ninguém a não ser eu.
O frogh lançou um olhar de pavor sobre o rato-castor, que estava extraindo os
pensamentos de sua mente. Seus impulsos mentais tornaram-se cada vez mais confusos,
até convergirem na intenção de apoderar-se do inimigo medonho que tinha diante de si.
O frogh deu um passo rápido para a frente e estendeu o braço em direção a Gucky.
Não soube exatamente o que lhe aconteceu, mas sentiu-se atingido por uma força
invisível que o atirou contra a penteadeira. Caiu ao chão, mas logo voltou a levantar-se.
Mais uma vez precipitou-se sobre Gucky, mas ao que tudo indicava o rato-castor já
estava cansado da discussão. Engajou toda a energia telecinética de que dispunha,
levantou o frogh deixando-o suspenso no centro do quarto.
A centopéia apavorada começou a emitir silvos agudos, enquanto seu corpo
adquiriu uma cor violeta. As inúmeras pernas balançavam desesperadamente no ar, à
procura de apoio.
Mas o susto ainda aumentou quando se viu planar em direção à janela, que se abriu
como que pela mão de um fantasma. Lá embaixo ficavam as pedras duras do calçamento.
Gucky não perdeu mais tempo. Sabia tudo que o frogh sabia, e o guardador
implacável do zoológico fazia por merecer a morte. Marshall estava com os agentes dos
saltadores, que haviam instalado uma central secreta em Tolimon. Ali encontrava-se
relativamente seguro.
O frogh passou pela janela, por mais que se esforçasse para segurar-se no peitoril.
E foi assim que os habitantes do bairro pobre de Trulan tiveram oportunidade de
presenciar um espetáculo inacreditável. Viram um frogh voador. Aquela criatura
detestada saiu planando elegantemente da janela da mansarda, descreveu uma ou duas
piruetas perfeitas, subiu verticalmente até chegar aos trezentos metros de altura. Por fim,
caiu na vertical.
A queda provocou a sensação que era de esperar, embora o mistério da centopéia
voadora nunca tivesse sido solucionado.
Enquanto ocorria o acidente, Gucky saltava para o quarto do hotel, onde esperou
por Rhodan, que já fora informado telepaticamente sobre os acontecimentos.
O círculo em torno de Marshall e seus companheiros fechava-se cada vez mais.
Era só uma questão de tempo, e seriam encontrados.
Gucky esticou-se sobre a cama e fechou os olhos.
Subitamente foi atingido por um impulso mental, claro e intenso, que lhe martelava
a consciência, despertando-o num instante.
Era um impulso que estava chegando com uma força extraordinária:
— Pelas nebulosas da Galáxia! Se Rhodan não aparecer logo, essa gente ainda
acaba tirando minha última camisa...!
Gucky assobiou uma melodia desafinada e entrou em contato com Marshall.
3
***
***
O conde Rodrigo acordou quando Marshall o sacudiu. Laury estava sentada
esfregando os olhos.
— Estão exatamente em cima de nós. São Gucky e Rhodan — Marshall apontou
para o teto. — Encontramo-nos numa casa solitária situada na periferia da cidade. Está
cercada por um grande parque. Deve ser um dos quartéis-generais dos saltadores.
— Gucky também veio? — Laury acordou imediatamente. — Que sorte! Gucky é o
maior herói que já vi.
A estima de que o rato-castor gozava junto às criaturas do sexo feminino era bem
conhecida, mas Rodrigo ainda não sabia quem era Gucky. Levantou-se devagar, lançando
um olhar de espanto para Laury.
— Que herói é este? — perguntou, esticando as palavras. Sua mão aproximou-se
instintivamente da espada. — Se alguém tem o direito de protegê-la, sou eu. Será que
tenho um rival no seu coração?
Marshall exibiu um ligeiro sorriso e lançou um olhar de advertência para Laury.
— Tenha cuidado com Gucky — disse apressadamente. — Laury tem razão:
realmente é um herói. Não conheço nenhuma mulher que não goste dele. Não sei por que
Laury devia ser uma exceção. Você terá de conformar-se com este fato, Rod.
— Jamais — disse Rodrigo, levantando-se e caminhando furiosamente de um lado
para outro. — Jamais tolerarei a existência de um rival. Terá que bater-se comigo em
duelo.
— Você levará a pior — preveniu Marshall com a cara mais séria do mundo. Sabia
que Gucky estava acompanhando a palestra e esperava que o encontro do rato-castor com
Rod lhe proporcionasse uma pequena distração. — Gucky é um dos melhores mutantes
que temos.
— Mais um desses sujeitos dotados de capacidades supersensoriais? — perguntou o
conde em tom de decepção. — Ao que parece, muita coisa mudou na Terra. O mundo
está sendo governado por feiticeiros.
— Aguardemos — disse Marshall e voltou a concentrar-se.
Também Laury parecia ter esquecido o conde. Entrara em contato com Rhodan.
— Pousaremos com o planador bem perto da casa — anunciou Rhodan. — Não
precisamos do piloto. O que devo fazer com ele?
— Traga-o com você — respondeu Marshall. — Fugiremos com o táxi aéreo e
trancaremos o ara nesta casa. É muito simples.
— E os saltadores que estão vigiando vocês? Bem, aparecerei na minha qualidade
oficial de inspetor. Isso os intimidará.
— Talvez já tenham ido embora.
— Talvez.
Mais quinze minutos passaram-se. Mantiveram a ligação telepática, mas não
estabeleceram mais nenhum contato direto. O conde Rodrigo mantinha um silêncio
obstinado e, vez por outra, lançava um olhar sombrio para Marshall.
Assustaram-se quando de repente a porta abriu-se violentamente e Berzan penetrou
no recinto em que estavam presos.
— É o inspetor de Árcon! — fungou. — Pousou no parque e está caminhando em
direção a casa. Vocês têm uma idéia do que deseja de nós?
Marshall manteve a calma; acenou lentamente com a cabeça.
— Talvez, Berzan, talvez. Nesta hora não seria conveniente se chegássemos a um
acordo?
— Pois foi o que fizemos o tempo todo — retrucou o saltador, que fez uma cara um
tanto assustada. — É claro que não dissemos ao arcônida que vocês estavam aqui. Como
é que ele ficou sabendo da presença de vocês?
— Isso mesmo — disse Marshall com a maior tranqüilidade. — Como poderia
saber?
Rodrigo parecia convencido de que, naquele instante, somente uma demonstração
de bravura poderia convencer a querida Laury de que ele era o único cavaleiro digno de
seu coração. Num movimento fulminante tirou a espada da bainha, adiantou-se alguns
passos e colocou a ponta afiada sobre o peito de Berzan, que ficou perplexo.
— Patife miserável! — exclamou em tom dramático e decidido. — Você muda de
opinião tão depressa, como o vento que infla as velas muda de direção. Pois é bom que
saiba que podemos fazer a mesma coisa. Daqui por diante, dispensamos a proteção de seu
clã; logo, não receberão qualquer paga. E, quanto ao inspetor, traga-o à nossa presença.
Rápido, senão lhe farei cócegas com minha espada.
— Espere aí! — interveio Marshall. — É preferível que Berzan nos leve para cima.
Iremos juntos para cumprimentar o ilustre visitante.
O saltador preferira não sacar a arma. Não tinha a intenção de fechar aquela fonte
de dinheiro, que parecia tão promissora. Naquele momento a visita do arcônida
representava um perigo para todos. Depois que esse perigo tivesse passado, veriam
adiante...
Sem preocupar-se com Rodrigo, virou-se, abriu a porta e caminhou à frente dos
outros. Marshall e os outros seguiram-no. Sabiam qual era a surpresa que aguardava os
saltadores, e também sabiam que a situação desagradável em que se encontravam logo
chegaria ao fim.
Infelizmente se esqueciam da circunstância desfavorável, que já estragara muitos
cálculos bem elaborados.
Era a circunstância que geralmente costuma ser designada como o acaso.
4
***
***
***
***
Gucky ainda estava sorrindo quando, dez minutos depois da ordem de Rhodan,
voltou a materializar-se no esconderijo situado na floresta. Mal seu vulto adquiriu os
contornos definitivos, caiu no chão de folhas macias, completamente exausto e quase
estourando de tanto rir. Rhodan, que acompanhara os acontecimentos por via telepática,
um tanto contrafeito, só não interveio nestes porque repentinamente se dera conta de que
poderiam ter conseqüências de grande alcance. Uma vez abalado o prestígio do inspetor,
a fuga de Tolimon se tornaria muito mais fácil.
Marshall e Laury também estavam informados sobre os acontecimentos. Apenas o
conde Rodrigo levou um susto quase mortal quando Gucky surgiu repentinamente em
meio ao grupo. O que menos compreendia eram os sorrisos dos dois homens, de Gucky e
da moça.
— O que aconteceu? — indagou.
Rhodan explicou. O rosto do nobre também se cobriu com um sorriso alegre. Ao
que tudo indicava, sabia imaginar perfeitamente como devia ser um conde de cuecas e,
face à sua reação, parecia que nem mesmo um homem terreno do século XVII infundiria
muito respeito se usasse esse tipo de vestimenta.
— Bem feito, meu pajem — disse, inclinando-se para Gucky e acariciando-o.
— Os homens de Trulan ficarão tão alegres que se esquecerão de procurar-nos.
— Mas não se esquecerão de nossa nave — disse Rhodan com espírito mais realista
e pegou o aparelho de tele-direção.
— Está na hora de pensarmos em nossa segurança. Se dermos oportunidade para
Glogol, ele impedirá nossa fuga, apesar da vergonha pela qual passou. Aliás, neste
instante está usando as calças de um dos seus criados, segundo deduzo através dos
pensamentos de alguns dos circunstantes. Coitado!
— Quem? O criado? — procurou certificar-se o conde Rodrigo.
— Tolice! Só pode ser Glogol. As calças que está usando não são listradas —
Marshall sorriu enquanto proferia estas palavras.
Rhodan girou algumas rodinhas e ponteiros, apontou a antena fininha na direção do
espaçoporto e puxou uma pequena chave, que se movia facilmente para todos os lados.
A pequena tela de orientação não se acendeu, pois não se prestava ao controle numa
distância tão reduzida.
— Será que a nave não será perseguida se decolar de repente? — perguntou
Marshall em tom preocupado. — Nunca conseguiremos embarcar com a mesma rapidez
com que cairão em cima de nós.
Rhodan dirigiu-se para Laury.
— Entregue-me a ampola com o soro, Laury. Teremos que apressar-nos, e eu não
quero que a senhora a perca.
Pegou o frasquinho, contemplou-o atentamente por um instante e enfiou-o no bolso.
Só depois disso respondeu à pergunta de Marshall.
— É verdade, John. Assim que nossa nave pousar, temos que embarcar e decolar
quanto antes. A polícia a seguirá até aqui. Talvez seria conveniente se realizássemos uma
manobra de despistamento. Aguardemos para ver o que vai acontecer.
A Koos-Nor surgiu na periferia da cidade e passou a pouca velocidade pouco acima
das últimas mansões. Dirigia-se diretamente para a floresta.
Rhodan viu perfeitamente os três ou quatro pontos reluzentes que se aproximavam
dos lados e procuraram atacar a nave.
— Era o que eu imaginava — disse. — Gucky, salte para dentro da Koos-Nor e
informe o que puder ver. Dirigirei a nave de acordo com as indicações que você me
fornecer. Entendido?
— Perfeitamente! — disse o rato-castor e desmaterializou-se.
Perplexo, o conde Rodrigo fitou o lugar vazio deixado por Gucky e achegou-se a
Laury. Para ele, a telepatia e a teleportação continuavam a ser uma bruxaria inconcebível,
por mais que tentassem explicar-lhe os segredos desses dons.
— Estou na sala de comando. Ativei os campos defensivos. Os aras estão atacando
— Gucky fez uma ligeira pausa. Depois prosseguiu no seu relato: — Também liguei o
receptor. O inspetor mandou que seus cruzadores entrassem em ação. Querem destruir a
Koos-Nor. O que devo fazer?
Rhodan moveu a chave do aparelho de tele-direção. Marshall e Laury viram a nave
descrever uma curva fechada e afastar-se em direção ao sol que já se encontrava no
ocaso.
— Avise assim que avistar o mar, Gucky. Continue na nave, aconteça o que
acontecer. Para você, não haverá o menor perigo.
Sem que o quisesse, Rhodan falara alto, o que o conde, como não-telepata que era,
apreciou muito. A resposta de Gucky, porém, veio em silêncio, tornando-se
compreensível apenas para Rhodan, Marshall e Laury:
— Perigo? O que vem a ser isso?
Rhodan sorriu, mas logo voltou a assumir um ar sério. Seguiu com os olhos as
naves dos aras, que também corriam em direção ao sol. Uma surpresa estava reservada
para estas.
Dali a menos de dois minutos, Gucky anunciou:
— O mar está embaixo de mim.
— Muito bem — respondeu Rhodan. — Você descreverá uma curva elegante e
cairá para desaparecer sob a água. Amarre-se, para que nada lhe aconteça. Será
exatamente dentro de dez segundos.
Gucky não deu resposta direta, mas Rhodan acompanhou seus pensamentos e ficou
sabendo que o rato-castor havia compreendido e seguia suas instruções. Mais uma vez, a
chave do aparelho de tele-direção foi acionada. A Koos-Nor, que se encontrava a mais de
duzentos quilômetros de Perry, reagia a qualquer impulso, por mais ligeiro que fosse.
Subiu quase na vertical, ficou parada por um instante e caiu que nem uma pedra.
Qualquer observador teria a impressão de que o mecanismo de propulsão e de
direção havia falhado. E vários pares de olhos seguiram os acontecimentos com um
máximo de atenção. Trinta segundos depois, Glogol ficou sabendo que o iate caíra ao
mar juntamente com o piloto. Com isso, a fuga do falso inspetor fora cortada.
Encontrava-se em algum lugar dentro da cidade.
Trulan foi fechada estrategicamente. Ninguém podia sair da cidade.
Outra busca foi iniciada, mais rigorosa que a anterior.
Os agentes e os contrabandistas que trabalhavam para os mercadores galácticos
passariam daqui para frente por maus momentos.
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