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INTRODUÇÃO

Para o desenvolvimento técnico-científico dos transplantes e o consequente sucesso


dessa modalidade terapêutica, é necessária a obtenção de órgãos.
O incremento da realização de transplantes acarretou, além da cura de pacientes
anteriormente desenganados, a valorização do ser humano como reserva de órgãos e
tecidos, suscitando objeções bioéticas e jurídicas em razão da inviolabilidade e
inalienabilidade do corpo, as quais moldaram a normatização de condutas capazes de
equilibrar um caráter aceitável de rompimento da integridade do corpo humano com a
possibilidade de remoção se estruturas para fins terapêuticos (ROCHA,2010; SANTOS,
1998).
Embora o número de transplantes tenha aumentado, a escassez de órgãos continua
sendo um dos maiores obstáculos às equipes transplantadoras em todos os países, pois a
demanda por transplantes vem aumentando em escala maior que as doações, fazendo
com que as listas de espera se ampliem (CAMPOS, 2001).
Quanto à forma de obtenção dos órgãos e tecidos, especificamente falando em órgãos
oriundos de seres humanos, a questão mais importante é a do resguardo da
voluntariedade e da espontaneidade no ato de doar, ou se aceita que o bem comum está
acima da vontade do indivíduo e se permite a apropriação dos órgãos de cadáveres ou se
delibera que o indivíduo é proprietário do seu corpo e, desta forma, pode dispor dele
com o melhor lhe aprouver (SANTOS, 1998; CAMPOS, 2001).
Muitos aspectos ético-conceituais relacionados a transplantes de órgãos são polêmicos e
mutáveis, pois dependem de opiniões pessoais, bem como de fatores religiosos e
geográficos 1, além de envolver questões socioculturais, econômicas,
afectivas e técnicas, as quais merecem discussão e pesquisa 2. Assim, tanto a ética 3
quanto a bioética constituem importantes referenciais na busca da compreensão da
complexidade das questões que permeiam a temática do transplante de órgãos 2.
A ética, como base do relacionamento interpessoal, leva em conta valores, tradições,
conceitos e práticas do indivíduo ou da comunidade, sendo, portanto, qualquer ação
contrária a esses factores considerada antiética 3.
O primeiro aspecto ético a ser considerado é a validade de se retirar parte do corpo de
alguém para colocá-la em outra pessoa. Em relação à doação post-mortem, caso o
indivíduo falecido tenha manifestado em vida sua vontade de se tornar doador
ou não, respeita-se a decisão; porém, como raramente isso ocorre, a decisão compete, na
prática, à família.
Conforme resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), a remoção dos órgãos
desse tipo de doador só pode ser realizada após diagnóstico de morte encefálica (ME) 7,
que é caracterizada pelo estado clínico irreversível de cessação total das funções
encefálicas, evidenciado pelo coma grave de causa conhecida, ausência de reflexos do
tronco encefálico e apneia sustentada 8, e a doação dependerá da autorização do cônjuge
ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo
grau, inclusive 9. Entretanto, é necessário que haja consenso entre os familiares, visto
que, sem o consentimento de todos, a doação não ocorre.
Quando o doador é vivo, somente pode doar parte do seu corpo que seja regenerável ou
órgão duplo 10, cuja função possa ser perfeitamente compensada
pelo remanescente. Consensualmente, admite-se a doação entre consanguíneos
próximos
ou com parentesco afetivo (cônjuge). No Brasil, a legislação estabelece que a doação
em vida para transplante seja permitida à pessoa juridicamente capaz, para o cônjuge ou
parentes consanguíneos até o quarto grau, ou para qualquer outra pessoa mediante
autorização judicial, exceto no caso de medula óssea.
Para a comunidade católica, a doação de órgãos é prática aceitável, revelando-se,
inclusive, como prova de solidariedade e nobreza humana; essa religião condena,
apenas, a comercialização de órgãos 14,15.
Ao avaliar os aspectos do protestantismo batista na cidade de Salvador, por meio de
entrevistas com dezessete teólogos batistas, Lins 16 destacou que a doutrina desta
religião não apresenta restrições ao transplante e às doações de órgãos, e que cabe a
cada fiel a decisão autônoma e voluntária acerca do processo. Porém constatou-se a
necessidade
de maior aprofundamento da reflexão sobre o tema no meio batista, inclusive mediante
capacitação direccionada a teólogos sobre aspectos técnicos e éticos dos transplantes.
Com relação às religiões africanas, especificamente o candomblé, que é mais frequente
na Bahia, Goldim e colaboradores 17
descrevem entrevista com um de seus líderes, que emite posicionamento de que não há
impedimento para transplantes e doação de órgãos pelos seguidores, considerando o
processo de doação como uma devolução à natureza do que foi utilizado pelos seres
humanos na vida terrena.
Ferrazzo e colaboradores 15, em revisão integrativa de literatura, concluíram que
nenhuma religião é absolutamente contrária à doação de órgãos, mas alguns fatores
podem interferir nessa decisão, como, por exemplo, a crença de que a morte só se
estabelece diante da parada do coração, como acreditam os israelitas, ou rituais ligados
ao corpo falecido, como em determinadas doutrinas budistas. Corroboram esse
levantamento dois estudos populacionais realizados em Curitiba 18 e no Pará 19, que
não demonstraram influência da religião na intenção de doar órgãos.
Ao contrário do que pensavam alguns participantes do estudo, verificou-se que
testemunhas de Jeová não se posicionam contrariamente à doação de órgãos, apenas
condenam qualquer tipo de intervenção em que seja necessária a hemoterapia, dado que
não aceitam transfusão sanguínea ou de seus componentes primários (células,
concentrado de plaquetas, plasma fresco congelado), inclusive autóloga
20. de órgãos, apenas condenam qualquer tipo de intervenção em que seja necessária a hemoterapia,
dado que não aceitam transfusão sanguínea ou de seus componentes primários (células, concentrado
de plaquetas, plasma fresco congelado), inclusive autóloga 20.

História
O primeiro transplante bem-sucedido de órgãos aconteceu em 1954, em Boston (EUA),
quando o Dr. Joseph E. Murray realizou um transplante de rins entre dois gêmeos
idênticos no Hospital Brigham and Women. Murray se baseou na descoberta dos
médicos até então de que em transplante entre gêmeos idênticos não havia o perigo de
rejeição uma vez que o genoma de ambos, receptor e doador, é o mesmo.

Porém, foi somente na década de 60 que os médicos descobriram um meio de realizar


um transplante de órgão entre não parentes sem que houvesse a rejeição. Mesmo assim,
os riscos eram altos e as chances de sobrevivência após a cirurgia eram baixíssimos. Foi
só a partir da década de 80 que os medicamentos imunossupressores tiveram uma
evolução tremenda e possibilitaram que a prática de transplantes de órgãos e tecidos se
tornasse rotineira. Mas ainda faltava uma barreira a transpor: a falta de informação e o
preconceito.
Ética e religião
A maioria absoluta das religiões defende a prática do transplante de órgãos como um ato
de doação e amor ao próximo, porém, em algumas delas só é aceito o transplante entre
órgãos e tecidos “limpos” ou seja, onde não haja troca de sangue. Em todas elas a
doação é uma opção individual e nos casos de doador falecido a família deve autorizar a
doação (o que aliás é também uma exigência legal no Brasil).
No judaísmo, por exemplo, a doação de órgãos só é permitida se o receptor for
conhecido para evitar que o órgão retirado, se não utilizado, seja inadvertidamente
descartado, uma vez que para os judeus o corpo é sagrado e deve ser enterrado de
acordo com suas tradições.

Quanto à questão ética é também defendido que a doação de órgãos deve ser realmente
uma doação e que devem ser seguidos parâmetros claros baseados na necessidade do
receptor e gravidade de sua situação para determinar quem deve receber o órgão doado.
Essas medidas são para evitar que haja o comércio indiscriminado de órgãos e o
favorecimento de algumas pessoas simplesmente por questões financeiras, por exemplo.
Quanto à questão ética é também defendido que a doação de órgãos deve ser realmente
uma doação e que devem ser seguidos parâmetros claros baseados na necessidade do
receptor e gravidade de sua situação para determinar quem deve receber o órgão doado.
Essas medidas são para evitar que haja o comércio indiscriminado de órgãos e o
favorecimento de algumas pessoas simplesmente por questões financeiras, por exemplo.

Há ainda a questão da determinação da hora da morte. A morte cerebral tida como


parâmetro médico para definir quando uma pessoa está mesmo morta sem chances de
recuperação não é muito bem aceita por algumas religiões que definem, em
determinados casos, critérios próprios que nem sempre levam em conta o tempo
necessariamente curto para retirada dos órgãos e tecidos para que não haja danos aos
mesmos.

A questão é que o corpo do paciente pode continuar funcionando com a ajuda de


aparelhos que auxiliam as funções vitais como respirar e se alimentar mesmo que o
cérebro do paciente não vá mais se recuperar (veja mais no artigo sobre “morte
cerebral”). O CFM determina que os aparelhos sejam desligados nos pacientes não
doadores de órgãos, independentemente de autorização dos familiares (Resolução
2173/2017)
Os transplantes reflectem questões éticas relativas à experimentação no corpo humano,
às decisões políticas relacionadas com a saúde, e, em sentido mais amplo questionam os
limites do conceito da dignidade humana.
Deste modo, existe pois um conjunto de três princípios gerais, nos quais, se incorporam
intrinsecamente as questões dos transplantes.

O princípio da intangibilidade corporal, que reflecte a pertença do corpo à identidade


pessoal, e como tal, merecedor da dignidade e da indisponibilidade inerente à pessoa
humana. Desta forma, qualquer intervenção na integridade corporal é simultaneamente
uma intervenção na integridade pessoal.

O princípio da solidariedade, que defende que sendo o homem um ser eminentemente


social e portador da possibilidade de fazer um conjunto de sacrifícios em função do bem
da comunidade, que dentro de estes sacrifícios devem incluir-se as dádivas de órgãos.
Desde que estas não impliquem comprometimento da integridade vital.

O princípio da totalidade, acredita que sendo o corpo um todo, cada parte do mesmo
deve ser avaliada de acordo com o todo. E por isso, cada parte (membro, órgão ou
função), pode ser sacrificado em função do corpo, desde que isso seja útil para o bem-
estar de todo o organismo.

Dentro de estes três princípios gerais, insere-se um conjunto de princípios específicos,


que se prendem com a medicina das transplantações.

Assim, de acordo com o princípio da autonomia, a colheita de tecidos ou órgãos tem de


passar pelo consentimento do doador e do receptor. Em ambos os casos, este apresenta-
se como um consentimento informado.

O indivíduo tem a capacidade de decidir qual a informação sua, que quer manter em
anonimato, regendo-se por o princípio da confidencialidade.

Através do princípio da gratuidade, o órgão ou tecido apenas poderá ser dado e nunca
vendido. Uma vez que este não é um objecto manipulável, mas é antes algo dotado de
individualidade própria.

Inerente ao conceito de dignidade da pessoa humana, não existe transplantação do


encéfalo (embora exista de tecidos cerebrais), bem como dos órgãos sexuais. Isto
porque, estas duas situações parecem pisar a fronteira da identidade. Sobretudo, no que
diz respeito ao cérebro, em que se preserva a memória da vida, e por isso mesmo se
assegura em última instância a individualidade.

Por fim, tem de se atender ao princípio da não discriminação, em que a seleção dos
receptores só pode ser feita mediante critérios médicos.

Relativamente à avaliação moral das transplantações, no que diz respeito às


transplantações autoplásticas, estas não oferecem qualquer problema moral desde que
seja respeitado o princípio da totalidade. Da mesma forma as transplantações
heterólogas são lícitas desde que não impliquem alterações da personalidade.

Nas transplantações homoplásticas, não se levantam problemas éticos, quando apenas se


trata de uma parte do corpo que não afeta substancialmente o organismo nas suas
funções. Porém, quando se trata de doações de órgãos inteiros, o problema assume
maior complexidade. Assim, deve assegurar-se que o doador o faça em plena liberdade
e devidamente informado dos possíveis riscos, e que as funções essenciais não sofram
graves danos.

Finalmente, nas transplantações heteroplásticas, deve-se ter em conta, os riscos de


alteração da personalidade que pode ocorrer no receptor. Pelo que a identidade da
pessoa prevalece sobre qualquer utilidade que possa ter a transplantação.
Doadores vivos
Um dos argumentos mais sólidos contra a doação por parte de estranhos assenta no fato
de que a primeira responsabilidade de um médico é não fazer mal, e remover um órgão
de uma pessoa saudável coloca-a sempre em risco (Ross, 2002). O argumento falha
porque o princípio de não maleficência não é absoluto, ou seja, existem práticas
médicas que podem causar um determinado mal ao doente apesar de serem para o seu
benefício.

Se os benefícios para o doador (psicológicos e morais) ultrapassarem os riscos para o


mesmo (físicos e morais) então a doação é moralmente aceitável. O argumento de não
maleficência também falha porque tem uma noção de mal muito limitada, ou seja,
apenas considera o mal físico. As pessoas também podem sofrer psicologicamente se
forem impedidas de doar um órgão.

O principal argumento moral que apoia a doação de órgãos por parte de estranhos é
baseado no princípio de respeito pela autonomia “Se um adulto competente procura agir
de forma altruísta e se oferece para doar um órgão sólido incondicionalmente, e
compreende os riscos e benefícios do procedimento, então o seu desejo deve ser
respeitado” (Ross, 2002)

Apesar de não existirem benefícios físicos para o doador, alguns estudos demonstraram
um aumento da auto-estima e sentimentos de bem-estar entre os doadores.

Os doadores não aparentados devem ser sujeitos a critérios mais rigorosos. Os dadores
familiares devem poder correr mais riscos já que têm mais a ganhar com a doação do
que dadores estranhos.

A doação por parte de dadores vivos, inicialmente, era limitada aos dadores familiares
para reduzir o risco de imuno-rejeição, porém, a terapia imunossupressora permitiu que
não só os familiares fossem dadores mas também outras pessoas significativas.

Um dos argumentos que apoiam a doação por parte de estranhos é o facto de a procura
de órgãos ser muito maior do que a oferta.

No entanto, alguns problemas se levantam. Será que o doador compreende os riscos


para a sua saúde, conforto e qualidade de vida que podem decorrer da doação? O
problema do consentimento informado é que apesar da informação ser dada ao dador,
nada nos garante que ele realmente a compreenda na sua totalidade. Ou seja, pode ser
difícil para a pessoa transformar dados estatísticos no seu caso particular, e quem nunca
se submeteu a uma cirurgia abdominal, por exemplo, pode ter dificuldades em imaginar
o pós-operatório ou possíveis consequências na cirurgia na sua qualidade de vida.

Deve fornecer-se ao doador toda a informação necessária, ajustada ao seu contexto


social, económico, afectivo, etc. Não se deve cingir apenas a informação técnica mas
personalizar o conteúdo para aquela situação específica. É então importante que haja a
certificação de que a informação foi compreendida pelo dador, que ele está ciente dos
riscos que corre. Contudo, deve enfatizar-se o lado positivo da questão, ou seja, o gesto
altruísta que ela significa.

Se existirem circunstâncias extenuantes, ou seja, possibilidades de predisposição


genética para futuras doenças que aumentem o risco da doação, então o doador deve
declinar devido ao risco excessivo para a sua saúde. Levinsky (2003) pergunta ”haverá
um nível em que o risco do procedimento é tão grande que não devemos submeter
voluntários ao mesmo, ainda que estes se movam pelos motivos mais altruístas?”. Kahn
(2002) diz que o consentimento não é suficiente, e que existem limites para o risco que
qualquer dador deve correr, aparentado ou não. Ou seja, para o autor o aumento do risco
faz a balança fugir da aceitabilidade ética e que com determinados níveis de risco
nenhum dador devia ser autorizado a doar apesar do seu consentimento.

Nos últimos anos tem surgido vários casos de tráfico de órgãos retirados a indivíduos
pobres. Estas vendas são obviamente ilegais. Os argumentos contra a venda de órgãos
têm a ver com a diluição do altruísmo e a “comercialização” do corpo humano que
representa, sendo que estas razões ultrapassam largamente as objecções lógicas e
económicas. Não são comuns, porém são inesquecíveis as histórias que nos lembram
que a doação de órgãos não é apenas altruísta. (Johnstone, 1994).

A declaração da Associação Médica Mundial sobre doação e transplantação de órgãos e


tecidos, feita na 52ª Assembleia-geral em Edimburgo em Outubro de 2000 diz: “O
pagamento de órgãos e tecidos para doação e transplantação deve ser proibido. Um
incentivo financeiro compromete o voluntariado da escolha e a base altruísta para a
doação de órgãos e tecidos. Além disso, o acesso a tratamentos médicos com base na
possibilidade de pagamento é inconsistente com os princípios de justiça. Órgãos que se
suspeitem ter sido obtidos através de transacções comerciais não devem ser aceites para
transplante. A publicidade a órgãos deve ser proibida. Todavia, o reembolso dos custos
de procura, transporte, preservação e implantação são permitidos”.

Pedro Arroja (1994) assume uma posição diferente, defendendo o princípio de


propriedade privada “(...)qualquer pessoa em vida pode oferecer post-mortem os seus
órgãos para venda.(...)no princípio da propriedade privada, segundo a qual os órgãos de
uma pessoa (como quaisquer outros bens) pertencem post-mortem aos seus herdeiros –
e não ao estado, como prevê a lei dos transplantes”. A decisão de doar um órgão deve
ser livre de coerção ou manipulação, seja social ou financeira. Segundo a posição do
Comité de Ética da Rede Unida para a Partilha de Órgãos(UNOS), os dadores devem
doar os órgãos incondicionalmente, sem especificar idade, raça ou género.

Doadores mortos
Os doadores mais adequados são aqueles cuja causa de morte é a cerebral, em unidades
de cuidados intensivos, com menos de 35 anos, ou 40 no caso das mulheres e sem
história de doença cardíaca. Os avanços na terapia imunossupressora e nas técnicas de
preservação e transporte de órgãos enfatizam o contributo que os mortos podem dar aos
vivos. Porém, a procura é maior do que a oferta.

As directivas da maior parte dos centros de transplantes sublinham que devem manter-
se todos os esforços para salvar a vida do potencial dador, incluindo tratamento de
emergência, manutenção da T.A., transfusões de sangue, tentativas de ressuscitação, etc.
A declaração de morte cerebral marca uma mudança nas prioridades. Agora, ao invés de
tentar salvar aquela vida, tenta preservar-se o melhor possível o corpo para retirar os
órgãos. No entanto, apesar da pessoa estar morta ainda há questão do respeito pelo
cadáver. Por exemplo, “É justo usar um cadáver como fonte de “partes suplentes?”
(Johnstone, 1994). É justo subordinar crenças culturais e tradições enraizadas para
benefício científico?

Os potenciais doadores que se encontram em morte cerebral não são meras “coisas”
para serem descartados, mas são seres humanos que ainda são reconhecidos como parte
integrante do grupo humano. Apenas porque estão em morte cerebral não deixam de ser
a mãe ou o filho de alguém. Como mostra a cultura, as relações não terminam com a
morte. Além disso, será que podemos subordinar os interesses do dador aos do receptor?
(Evans, 1995). Pode argumentar-se que não temos uma noção clara do que são os
interesses de um morto, contudo, existe sempre a noção de respeito.

Receptores
Os receptores devem receber acompanhamento psicológico no sentido de lhes dar
segurança, esclarecer dúvidas acerca da cirurgia, complicações, etc., Só se deve
considerar o transplante se houver hipóteses de sucesso clínico. Mas o que se deve
considerar “esperança razoável de sucesso clínico”? .Quais os critérios que definem o
sucesso clínico razoável e para quem é que estes são aceitáveis?

Ter que viver com um órgão que não nos pertence pode suscitar uma grande variedade
de sentimentos. É importante que se faça um ajustamento psíquico para assimilar esta
realidade. Segundo Bernardo(1995) “O viver serenamente com, um órgão alheio exige
preparação e adaptação psíquica de modo a que não haja conflito a nível do “eu” do
sujeito”.

Além disso, embora o transplante seja uma terapia salva-vidas, ele também aumenta o
risco de desenvolver câncer, em parte por causa dos medicamentos administrados para
suprimir o sistema imunológico e evitar a rejeição do órgão.[4]

Família
É frequente surgirem fenómenos de transferência nas famílias, essencialmente, de
doadores mortos. Assim é importante salvaguardar a identidade do receptor, uma vez
que estes fenómenos da transferência de afectividade e emoções podem ter
consequências imprevisíveis e nefastas.

Da mesma forma, também o receptor não deve ter acesso à identidade do dador. Pode
discutir-se que o facto da família do dador conhecer o receptor e ver os efeitos do
transplante podia ser benéfico para esta, porém os riscos de transferência afetiva
sobrepõem-se às vantagens que isto poderia oferecer. O facto de o receptor conhecer
dados biológicos do dador poderá também ter efeitos negativos. A família do dador
atravessa uma situação afectiva bastante intensa que poderá variar consoante o quadro
do dador.

Em caso de morte iminente há uma mistura de sentimentos que podem inclusive chegar
a ser contraditórios.

A lei portuguesa não atribui poder de decisão à família em relação à doação de órgãos,
apenas em casos de menores e incapazes. Nestes casos, para a família tomar uma
decisão, é absolutamente necessário que esteja na posse de informação acessível no
sentido desta poder ponderar com maior clareza.

A transplantação de órgãos, nomeadamente a sua aceitação, o consentimento de doação,


a organização do programa de transplantação, o tipo de transplantes realizados e o
resultado dependem em parte de considerações culturais. O sentido simbólico de certos
órgãos, especificamente o coração, pode ser obstáculo ao transplante (A.S. Daare, P.
Marshall, 19--).

O mesmo se acontece com o comércio de órgãos, existe uma “zona cinzenta” na


fronteira que separa a doação da venda, é importante perceber as circunstâncias em que
se realizam as transacções. Na república islâmica do Irão existe um vasto programa que
define as formas de compensação financeiras julgadas culturalmente aceites quando
uma pessoa viva faz a doação de um dos seus rins a uma pessoa que não seja um
familiar, os argumentos que defendem esta via são, entre eles o facto de não haver
intermediários, os dadores terão de se submeter a um teste psicológico, as remunerações
são fixas, os dadores são aconselhados sobre a forma de investirem o dinheiro recebido
e são cobertos por um seguro de doença durante os três anos seguidos da doação (A.S.
Daare, P. Marshall, 19--).

Nos Estados Unidos foi proposto a criação de um mercado a termo fixo de órgãos
colhidos em cadáveres, o que foi aceite pelas associações médicas. Na Filadélfia é
oferecido um prémio pela doação de órgãos às famílias de pessoas recentemente mortas.

Na Índia, apenas recentemente foi adoptada uma lei sobre o transplante de órgãos
humanos que visa abolir o comércio de órgãos e facilitar a colheita em cadáveres,
instituindo o princípio da morte cerebral (A.S. Daare, P. Marshall, 19--).

Em relação à posição de diversos líderes religiosos, islamismo autoriza a remuneração


em circunstâncias bem definidas e eruditos da religião judaica afirmam não encontrarem
obstáculos à concessão de uma compensação (A.S. Daare, P. Marshall, 19--).
Esta é uma questão complexa que deve ser analisada tendo em conta os parâmetros
culturais, políticos e económicos.

Em Portugal
O primeiro transplante em Portugal foi feito dia 20 de Julho de 1969 em Coimbra, pelo
médico Linhares Furtado. Tratou-se do transplante renal entre doadores vivos[5].

No Brasil
No Brasil, o primeiro transplante de córneas foi realizado em 1954[6]. Os primeiros de
fígado, coração e de rins foram todos realizados em 1968[7]. Em setembro de 2020,
Daniela Salomão declarou que mesmo com a ordem de não buscar hospitais, durante a
epidemia COVID-19 foram realizados quase 10 mil transplantes, segundo a
coordenadora do Sistema Nacional de Transplantes.[8][9]

Ligações externas
Portaria n.º 357/2008, do Ministério da Saúde Português, que regulamenta a rede
nacional de coordenação de colheita e transplantação.
Lei 12/93 da República Portuguesa, Colheita e Transplante de Órgãos e Tecidos de
Origem Humana.
Perguntas e Respostas sobre Transplante de Medula Óssea
TRANSPLANTE DE MEDULA É FEITO SEM TRANSFUSÃO DE SANGUE
Trabalho de investigação sobre transplantação renal realizado por enfermeiros
Portugueses
Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos - ABTO
Bibliografia
Johnstone, Megan-Jane – A nursing perspective, Sydney, W. B. Saunders, Bailliére
Tindall, 1994 ISBN 0-7295-1421-8
Evans Martyn – Dying to help: moral questions in organ procurement - in Death, dying
& bereavemente, de Dickenson, Donna; Johnson, Malcon, London, Sage, 1995 ISBN 0-
8039-8797-8 (pp 135 – 141)
Coimbra, Albertina; Quintela, Elsa; Piçarra, Graça; Santos, Laurinda – Percepção do
Enfermeiro perante a morte cerebral e a doação de órgãos, Sinais Vitais, nº 5, Nov.
1995 (pp 35 – 38)
A.S. Daare, P. Marshall – Aspectos culturais e psicológicos do transplante de órgãos,
Servir, nº47, nº3, 19-- (pp 153 – 159)
Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald – Bioética, Lisboa, Verbo, 1996 ISBN 972-
22-1719-4

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