Você está na página 1de 3

Necropolítica: da periferia para o centro

Minha história tem início há pouco menos de um mês atrás, na tarde do dia vinte e um de
outubro, após receber uma mensagem da ótica em que encomendei meus óculos avisando que
eles já estavam prontos e eu poderia retirá-los naquele mesmo dia. Por volta das quinze horas,
parti para a estação de trem, onde esperaria alguns minutos até a chegada do transporte que
me levaria até o centro de Canoas.

Embarco no trem que vem de Novo Hamburgo com destino a Porto Alegre. Todos de
máscara, muitos de pé – incluindo eu, que assim como toda a vez que necessito tomar o
transporte público nesse período, procuro não me segurar e me escorar em nada, confiando no
meu equilíbrio. A viagem não é nada longa e em menos de dez minutos chego ao centro da
cidade. A ótica é bem próxima a estação, logo, não precisei caminhar muito para chegar lá.
Apesar disso, não foi preciso transitar muito por essa área para notar o montante de pessoas
caminhando para lá e para cá, quase como se estivéssemos de volta a normalidade, tamanha a
intensidade do movimento. De fato, muitas pessoas foram praticamente (ou literalmente?)
obrigadas a retomar suas vidas “normais”, outras sequer tiveram a oportunidade de permanecer
em isolamento social, pois necessitam garantir a refeição, luz e água de cada dia. A sociedade
contemporânea se mostra movida pelo consumo e pela rápida substituição no mercado de
trabalho, que força trabalhadores a se exporem aos perigos da situação atual caso não queiram
perder seus empregos (BENSUSA, 2020). O proletariado, que tem tanta potência e poder em
suas mãos, acaba por perder parte de sua força para esse sistema que o sujeita à situações
precárias em nome do capital.

Enquanto se fechava quase tudo, nós não paramos, trabalhando e


buscando meios para que empregos não fossem destruídos. E
propostas apresentadas por nós foram excepcionais. No meu
entender, não vi no mundo quem enfrentou melhor essa questão que
o nosso governo. (BOLSONARO, 2020)
Rapidamente, retornei à Estação Canoas para aguardar o trem que seria o espaço do
encontro que, por mais breve que tenha ocorrido, afetou-me de certa maneira. Após algum
tempo de espera o veículo se aproximou já contendo várias pessoas em seu interior
(comparando a outros horários, talvez nem fosse tantos indivíduos assim, mas considerando
que o momento exige distanciamento, estávamos bem distante disso), e os dez minutos que eu
ficaria dentro daquele transporte pareceriam uma eternidade.

Entro no trem já pensando em locais estratégicos para me manter distanciada da multidão que
me cercava, mas obviamente era impossível, e não houve máscara e álcool gel que me
passasse uma sensação de maior segurança e diminuísse o meu choque ao ver toda aquela
aglomeração comum nos tempos pré pandêmicos. Aglomeração essa composta em sua
maioria, por pessoas que assim como eu, dependem do transporte público para se locomover, e
que estão sendo forçados a se expor a toda essa vulnerabilidade à nível global pela qual
estamos passando. No meio do percurso entram dois meninos, um deles vendendo balas de
goma que estavam dentro de uma caixa. Esses meninos deveriam ter aproximadamente a
minha idade e me fizeram refletir novamente sobre o quão privilegiada sou, pois enquanto
precisei sair no máximo dez vezes as ruas desde março, esses garotos muito provavelmente
precisam transitar pela cidade todos os dias mesmo em meio a essa epidemia mundial e se
envolver em aglomerações para garantir o seu sustento.

A pandemia traz fortemente o conceito de necropolítica aos nossos olhos, em que a morte é
antecipada para uma determinada população e para outros, a condição de sobrevida é oferecida
(BENSUSA, 2020). Quem não tem o privilégio (que em uma sociedade ideal, deveria ser um
direito) de permanecer recluso em seu lar a fim de preservar sua saúde pois corre o perigo de
ser substituído no mercado de trabalho, necessita garantir o pão de cada dia saindo as ruas e
utilizando (ou não) o transporte público, consequentemente tornando-se mais vulnerável a ser
mais uma vítima do vírus que está aterrorizando tantos cidadãos. O governo escancara - mais
do que antes - o tratamento desprovido de qualquer empatia e humanidade para com a
população, ao deixar bem claro que a maior preocupação diante de tantas mortes e ao colapso
do sistema de saúde público é a estabilidade econômica, produzindo condições de vida
precárias e agindo com indiferença em relação aos cidadãos, esses que são responsáveis por
mover a economia nacional, o que de certa forma é uma ação hipócrita.

Talvez haja um escolha entre duas mortes – a lenta e a violenta.


Talvez uma preferência pela sobrevida dos mais aptos de trabalhar.
De todo modo, Bolsonaro ecoa a opção dos dirigentes nessa
pandemia: manter as pessoas vivas ou a economia girando
(BENSUSA, 2020, p. 3)

O ar se fez escasso, não sei se por causa da máscara, da aglomeração ou do medo, talvez
uma mistura dos três. Assim como a estatística de vítimas do Covid-19, ali dentro daquele
vagão, todas aquelas pessoas são reduzidas a números, de uma maneira bem superficial.
Esquece-se que todos ali, incluindo eu, são amigos, pais, mães, filhos de alguém, que têm uma
singularidade, que são mais do que estatística, mais do que uma massa representada em
algarismos. Aliás, o que mais vemos nas notícias são números: números de contaminados,
números de mortes, porcentagem de contagio por região... O biopoder resume a multiplicidade
da humanidade a um grande aglomerado afetado por problemas em comum (FOUCAULT,
1999). Um número expressivo de óbitos é noticiado todos os dias, mas aos poucos foi se
naturalizando e se tornando somente mais um dado estatístico. O que aconteceu para que
quatrocentas mortes diárias por conta do Corona Vírus fossem tão banalizadas, enquanto logo
no início da pandemia seis óbitos por dia foram sentidos tão intensamente?

A pandemia do Corona Vírus apenas estende a todo o território nacional o tratamento já


oferecido à determinadas populações que são marginalizadas, invisibilizadas e que recebem a
mais precária atenção e banalização de suas mortes (MOURA, 2020). Não é nenhuma
novidade, não é de hoje que pessoas são (des)tratadas dessa forma. Essas formas de
negligência simplesmente estão sendo replicadas nas grandes metrópoles e por isso parecemos
nos importar mais, porque agora nos afeta diretamente. As estratégias de necropolítica agora
entram com toda a força nas nossas casas assim como já entravam há muito tempo em
diversas outras sem antes bater na porta. “O que estará no centro do debate durante e após
esta crise é quais serão as vidas que estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas
(MOURA, 2020)”. Após poucos minutos, desembarco da curta viagem que me trouxe tantas
reflexões necessárias para esse período em que vivemos e para os anos seguintes também.
Saio do trem, mas aqueles dez minutos ecoam em minha mente por dias.

REFERÊNCIAS:

BENSUSAN, Hilan. “E daí? Todo mundo morre” A morte depois da pandemia e a banalidade da
necropolítica. N-1 edições, 2020. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/6. Acesso
em: 4 de nov. de 2020.

Bolsonaro: não vi país lidando melhor com a economia na pandemia do que nós. BOL –

BRASIL ONLINE – Uol, São Paulo, 19 de ago. de 2020. Notícias. Disponível em:

https://www.bol.uol.com.br/noticias/2020/08/19/bolsonaro-economia-mundo-brasil.htm. Acesso
em: 4 de nov. de 2020.

FOUCAULT, Michel. “Aula de 17 de março de 1976 (P. 285 – 315)”. In: Em defesa da

sociedade, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

MOURA, Ricardo. Aprendendo com o vírus. Medium, 2020. Disponível em:

https://medium.com/textura/aprendendo-com-o-v%C3%ADrus-1f8542d3ed78. Acesso em: 4 de

nov. de 2020.

Você também pode gostar