Você está na página 1de 49

sumário

TESTE ESPECÍFICO PARA ANÁLISE SÓCIO-COGNITIVA DE CRIANÇAS AUTISTAS:


UM ESTUDO PRELIMINAR
DANIELA REGINA MOLINI E FERNANDA DREUX MIRANDA ORIGINAL 5-13

AVALIAÇÃO PSICOMÉTRICA DA INTELIGÊNCIA DE CRIANÇAS PORTADORAS DE


TRANSTORNOS INVASIVOS DO DESENVOLVIMENTO (TID)
MARIA ISABEL DOS SANTOS PINHEIRO E COLABORADORES ORIGINAL 14-8

COMPARAÇÃO DA COMPREENSÃO LINGÜÍSTICA DE CRIANÇAS COM ATRASO DE


LINGUAGEM E NORMAIS COM TESTE DE VOCABULÁRIO POR IMAGENS (TVIP):
ANÁLISE PRELIMINAR
KARINA TAMAROZZI DE OLIVEIRA E COLABORADORES ORIGINAL 19-23

DEFICIÊNCIA VISUAL DE ESCOLARES: PERCEPÇÕES DE MÃES


MARIA INÊS RUBO DE SOUZA NOBRE E COLABORADORES ORIGINAL 24-27

POR UMA ESCOLA ABERTA ÀS NECESSIDADES DOS ALUNOS


LÚCIA DE ARAÚJO RAMOS MARTINS ORIGINAL 28-34

SEXUALIDADE DA DEFICIÊNCIA MENTAL:


ALGUNS ASPECTOS PARA ORIENTAÇÃO DE PAIS
SOLANGE LEME FERREIRA COMUNICAÇÃO 35-39

O TRABALHO COM CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA:


PROMOVENDO A RESILIÊNCIA
ANTONIO AUGUSTO PINTO JÚNIOR ORIGINAL 40-46

DEPOIMENTO
PROJETO PARA (RE)HABILITAÇÃO FÍSICA E COGNITIVA DE PORTADORES DE
PARALISIA CEREBRAL
GERMANA VALÉRIA CONCÍLIO SAVOY 47-52

RESENHA 53

SERVIÇOS 54

AGENDA 55-56

3
teste específico para análise sócio-cognitiva
de crianças autistas: um estudo preliminar

daniela regina molini(1) e fernanda dreux miranda(2)

(1) Mestranda em Ciências na Área de Fisiopatologia Experimental da Faculdade de Medicina da USP


(2) Professora Doutora do Curso de Fonoaudiplogia da Faculdade de Medicina da USP

RESUMO:

TESTE ESPECÍFICO PARA ANÁLISE SÓCIO-GOGNITIVO DE CRIANÇAS AUTISTAS: UM ESTUDO PRELIMINAR: A proposta deste estudo
é verificar a eficácia da aplicação de um teste específico, elaborado pela pesquisadora, para análise dos aspectos sócio-cognitivos em
terapia fonoaudiológica de crianças com síndrome autística. Foram sujeitos desta pesquisa oito pacientes com diagnóstico de autismo,
com idades entre cinco e 14 anos, atendidos no Laboratório de Investigação Fonoaudiológica em Psiquiatria Infantil do Curso de
Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Os testes foram aplicados aos sujeitos e as sessões foram
filmadas. Os dados registrados em vídeo foram sintetizados em protocolos individuais, que identificaram os níveis de desempenho sócio-
cognitivo observados. A partir dados obtidos pôde-se perceber que as provas foram eficazes em detectar o verdadeiro nível de
desempenho sócio-cognitivo nos quais as crianças se encontravam, sem que ocorresse efeito-teto ou o contrário (a criança não
apresentar um desempenho em um nível do qual fosse capaz). Podemos concluir que é viável determinar níveis de desempenho sócio-
cognitivo de crianças com distúrbios psiquiátricos através de provas específicas.

UNITERMOS:
Autismo - Socialização - Cognição - Sócio-cognição - Fonoaudiologia

ABSTRACT:

SPECIFIC SOCIAL AND COGNITIVE ASSESSMENT IN AUTISTIC CHILDREN: PRELIMINAR STUDY - The proposal of this study is to verify
the effectiveness of the application of a specific test, elaborated by the researcher, for the analysis of social and cognitive aspects in
speech therapy of children with autistic syndrome. Eight patients with diagnosis of autism, with ages between 5 and 14 years, were
assisted at the Laboratory of Speech Pathology Investigation in Infantile Psychiatry of the Course of Speech Therapy of University of
Medicine of the University of São Paulo. Tests were applied to the subjects and the sessions were filmed. The data registered in video
were synthesized in individual protocols, that identified the observed social-cognitive levels. From the obtained data it could be noted that
the proofs were effective to detect the true level of social and cognitive performance met by the children, without happening effect-roof or
the opposite (not to present one performance in a level that children were ready to). It could be concluded that is viable to determine
social and cognitive level of children with psychiatric disturbances through specific proofs.

UNITERMS:
Autism - Socialization - Cognition - Social cognition - Speech therapy

Artigo Original

MOLINI, D.R e FERNANDES, F.D.M. - Teste específico para análise sócio cognitiva de crianças autistas – um estudo
preliminar. Temas sobre Desenvolvimento, v.9, n.54, p.5-13, 2001.

5
De forma modesta mas importante, a breve revisão nas variáveis citadas acima. Os achados sugerem que
da literatura aqui apresentada pretende mostrar o que a Síndrome de Asperger pode estar associada com um
tem sido publicado em relação às habilidades sociais e desempenho mais alto em testes de inteligência verbal
cognitivas em crianças com distúrbios psiquiátricos nos do que o Autismo de alto funcionamento; pode não
últimos cinco anos. estar associada com as melhores habilidades pragmá-
De Villiers e De Villiers (1994) chamaram a atenção ticas; e a compreensão de linguagem não pode
para o fato de os autistas apresentarem deficiências separar os dois quadros claramente. Entretanto,
em relação às habilidades de conversação, por não déficits de atenção, controle motor e percepção e
possuírem iniciativa comunicativa e sustentação do desordens da fala e linguagem podem ser
tópico do discurso na presença de desenvolvimento distintamente separados nos quadros de síndrome de
semântico e sintático normal, revelando problemas na Asperger e autismo.
organização e uso destes conhecimentos (pragmática). Estudando cinco meninos portadores de Síndrome
A questão da estimulação social também é discutida, de Asperger e de Síndrome de La Tourette, Nass e
justificando a necessidade de intervenção através do Gutman (1997) notaram a presença de inteligência
estabelecimento de rotinas de interesse da criança, verbal excepcional com déficits de linguagem típicos
nas quais o adulto moldará as participações da do hemisfério cerebral direito: prosódia e pragmática
criança. (modulações insatisfatórias, tangencialidade, contato
Dois grupos de crianças com tipos contrastantes de olho inconsistente, problemas na compreensão de
de desordem de desenvolvimento de linguagem, humor e inferências). Tudo isto traduzia-se em queixa
fonológico-sintático e semântico-pragmático, foram dos pais e professores de seus sujeitos: dificuldades
comparados com um grupo de crianças com autismo de adaptação social e dificuldades acadêmicas -
de alto funcionamento e com um grupo controle de resolução de problemas e tarefas espaciais, tics -, atos
crianças normais, em testes sócio-cognitivos: teoria da comunicativos não focalizados, que eram mais
mente, compreensão social e detecção de direção marcantes quando solicitadas habilidades do
ocular. A pobre performance apresentada pelo grupo hemisfério direito, como responder a questões abertas.
semântico-pragmático foi similar à apresentada pelo O padrão da aquisição de habilidades sociais,
grupo de crianças autistas, o que sugere que a comunicativas e de vida diária foi examinado em
desordem de desenvolvimento de linguagem crianças autistas, comparando-o com o de crianças
semântico-pragmática é um continuum do espectro retardadas e normais. A medida utilizada foi a Escala
autístico (Shields e colaboradores, 1996). de Comportamento Adaptativo de Vineland. Os
A contribuição potencial do hemisfério direito para autistas tiveram uma dificuldade significativamente
os prejuízos comunicativos do autismo foi examinada maior em comunicação e socialização do que os
através de bateria experimental que incluía tarefas de grupos controles. Os itens analisados mostraram que
humor, inferência e compreensão de pedidos indiretos os autistas têm maior prejuízo no uso pragmático da
em adultos autistas sem retardo mental e um grupo linguagem, assim como na atenção, no jogo e
controle de mesma idade e habilidade intelectual. O interação social recíproca, mas possuem força
grupo de autistas obteve performance significativamen- particular no uso da linguagem escrita e habilidades de
te pior que o grupo controle em todas as tarefas. A linguagem de rotina e regras reguladoras do
performance dos autistas nas três tarefas foi similar à comportamento social. Este estudo demonstra
de adultos com hemisfério direito danificado (derrame), diferenças consistentes entre os grupos, embora
o que condiz com a literatura existente (Ozonoff e pequenas, sugerindo que, embora o desenvolvimento
Miller, 1996). do autista pareça seqüencialmente desviante e não
Gillberg e colaboradores (1996) examinaram simplesmente atrasado, os autistas, individualmente,
sujeitos com diagnósticos de Síndrome de Asperger, apresentam dificuldades em diferentes tarefas e,
autismo de alto funcionamento, déficits de atenção, portanto, formam um grupo heterogêneo (VanMeter e
controle motor e percepção e desordem da fala e colaboradores, 1997).
linguagem. A proposta foi explorar os possíveis traços Altamente estruturada, a intervenção precoce
para diferenciar os grupos nos campos de vocabulário, intensiva pode levar a ganhos significativos no
compreensão e pragmática e, em adição, determinar desenvolvimento de muitas crianças com autismo.
se a Síndrome de Asperger pode ser seguramente Contudo, os efeitos da intervenção precoce ainda não
separada do quadro de autismo de alto funcionamento estão muito claros, devido à falta de precisão nas

6
medidas dos resultados obtidos. Para aumentar a desordens pervasivas do desenvolvimento não-
sensibilidade e a precisão dos resultados, poderia ser especificadas, a natureza das diferenças entre eles
útil a integração da pesquisa da natureza do distúrbio aparecem fortemente relacionadas a habilidades
social do autismo com a pesquisa da intervenção variadas. A partir da análise dos tipos de
precoce. A medida de habilidade comunicativa social comportamentos que diferenciaram os grupos, os
não-verbal é especialmente importante no estudo de autores sugerem um espectro de desordens autísticas,
programas de intervenção pré-escolar, já que aparece no qual as crianças diferem primariamente em termos
como um componente do distúrbio social precoce do de grau de prejuízo social e cognitivo.
autismo e tem estado diretamente relacionada a Em estudo anterior, a autora do presente estudo
processos neurológicos, cognitivos e afetivos que (Molini,1997) determinou o desempenho sócio-
desempenham papel importante no autismo (Mundy e cognitivo de sessenta crianças com distúrbios
Crowson, 1997). psiquiátricos, sendo trinta crianças autistas e trinta não
Piven e Palmer (1997) realizaram um estudo em autistas, através de gravações de terapia de linguagem
que pais de crianças autistas (N=2) foram comparados em situação espontânea, e pôde observar que, devido
com pais de crianças com síndrome de Down (N=2), ao fato de as terapias não envolverem a aplicação de
em testes de inteligência, leitura e fala e função testes específicos, às vezes as crianças não
executiva. Constatou-se que os pais das crianças apresentavam determinado aspecto sócio-cognitivo
autistas obtiveram pior performance nos testes de não porque não fossem capazes, mas sim porque a
inteligência, função executiva e alguns testes de leitura atividade que seria útil para avaliar tal aspecto não
e fala (compreensão de episódios e rápida nomeação havia sido proposta pela terapeuta.
de automatização). Estes resultados sugerem que os Como exemplo, podemos citar os baixos resultados
déficts cognitivos podem ser de responsabilidade obtidos quanto à imitação gestual e vocal que levaram
genética, e estas características poderiam contribuir à consideração de que, possivelmente, este aspecto
para um fenótipo do autismo mais largamente definido. assim como provavelmente demais aspectos observa-
Fernandes (1997) propôs uma reflexão sobre dos, exigiriam procedimentos específicos para sua
algumas das relações entre a comunicação e o investigação. Os resultados deste estudo evidencia-
desenvolvimento afetivo. A diferenciação entre o “eu" e ram, portanto, a necessidade de investigações mais
o "mundo”, a confiança e automotivação são aprofundadas sobre os aspectos sócio-cognitivos
extremamente necessárias para que a comunicação observáveis na terapia de linguagem de crianças com
ocorra de maneira efetiva. Além disso, o estabeleci- distúrbios psiquiátricos, para que auxiliem na formação
mento de uma relação afetiva com um locutor do papel do fonoaudiólogo e de sua atuação clínica,
preferencial poderá gerar padrões de comunicação contribuindo também, eventualmente, para o
simétricos. Freqüentemente pode-se considerar a mãe diagnóstico psiquiátrico.
como o primeiro interlocutor da criança e a grande A proposta deste estudo é verificar a eficácia da
responsável pela sua inclusão no mundo lingüístico. aplicação de um teste específico, criado pela
Essa comunicação proporcionada por uma “retroali- pesquisadora, para observação dos aspectos sócio-
mentação” de ambos os lados será contínua ao longo cognitivos em terapia fonoaudiológica de crianças com
da vida, a não ser que este processo de desenvolvi- diagnóstico de autismo, segundo modelo sugerido por
mento seja interrompido. No caso de um processo Wetherby e Prutting (1984). Este modelo possibilita
patológico, este também passa por adaptações e procedimentos econômicos de coleta e registro de
reorganizações, não somente lingüísticas, mas dados ao mesmo tempo em que permite a investigação
também emocionais e cognitivas. detalhada do desempenho cognitivo dos sujeitos.
Através de entrevistas com pais de crianças com Especificamente, nosso objetivo foi testar a
diagnósticos de autismo, Asperger ou outro tipo de viabilidade da aplicação de um modelo específico de
desordem e testes de teoria da mente aplicados nos coleta de dados para a investigação dos critérios
sujeitos, Prior e colaboradores (1998) iniciaram uma propostos por Wetherby e Prutting: intenção
busca por subgrupos. Foram estabelecidos três comunicativa gestual e vocal, uso de objeto mediador,
subgrupos, que diferiram na performance em testes de imitação vocal e gestual, jogo combinatório e jogo
teoria da mente e em habilidades verbais. Apesar de simbólico.
os três subgrupos apresentarem forte relação com as
diferenças clínicas dos quadros de autismo, Asperger e

7
METÓDO Entregar o brinquedo para a criança e observar o que
ela faz com ele:
Sujeitos: Foram sujeitos desta pesquisa, oito 2. A criança examina ou manipula o objeto?
pacientes com diagnóstico de autismo, com idades 3. Após, aproximadamente, três minutos pegar o
entre cinco e 14 anos atendidos no Laboratório de brinquedo da mão da criança e observar a sua reação.
Investigação Fonoaudiológica do Curso de A criança novamente pede o objeto apenas através de
Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da gestos?
Universidade de São Paulo. 4. Ela utiliza o mesmo gesto que usou para conseguir o
Foi solicitada aos responsáveis pelos sujeitos da objeto anteriormente?
pesquisa a assinatura de termo de autorização para
utilização e eventual publicação dos dados obtidos.
Procedimento: A pesquisadora elaborou provas B. Imitação Gestual:
sócio-cognitivas de maneira que fossem observados
exatamente os aspectos sugeridos por Wetherby e A terapeuta mostra para a criança como se faz para
Prutting (1984). Estas provas foram aplicadas aos que o carrinho ande e acenda as luzes e pede para a
sujeitos e as sessões foram filmadas. Os dados criança fazer a mesma coisa. A criança imita a
registrados em vídeo foram analisados e sintetizados terapeuta?
em protocolos individuais, que identificaram os níveis SE A RESPOSTA FOR SIM
de desempenho sócio-cognitivo observados. Após aproximadamente três minutos, a terapeuta pede
para a criança fazer o carrinho andar. A criança faz?
Cada atividade foi solicitada três vezes para a
( ) Sim ( ) Não
criança. Caso ela não realizasse na terceira tentativa, a
atividade não era mais repetida e passava-se para a SE A RESPOSTA FOR NÃO
prova seguinte. A terapeuta lava a mão e pede para a criança lavar
As provas sócio-cognitivas elaboradas e aplicadas também, igual a ela. A criança lava?
nos sujeitos foram as seguintes: ( ) Sim ( ) Não
- Se a resposta for NÃO, a terapeuta bate palma e pede
para a criança bater também. A criança bate?
Testes Sócio-Cognitivos ( ) Sim ( ) Não

A. Intenção Comunicativa Gestual:

Colocar o brinquedo que a criança mais gosta fora C. Imitação Vocal:


de seu alcance. A terapeuta propõe uma brincadeira
de mímica, na qual a criança só pode usar gestos para Com telefones de brinquedos, a terapeuta coloca o
demonstrar que brinquedo ela quer. Observar a reação fone na orelha, fala “Telefônica informa” e pede para a
da criança: criança repetir. Ela repete?
1. A criança não toma nenhuma atitude? SE A RESPOSTA FOR SIM
SE A RESPOSTA FOR SIM Após aproximadamente três minutos, a terapeuta pede
Colocar o brinquedo ao alcance da criança: para a criança repetir o que ela disse. A criança repete?
( ) Sim ( ) Não
A criança pega o objeto, leva a terapeuta até ele ou emite
outro sinal gestual, como sorrir, fazer careta, bater SE A RESPOSTA FOR NÃO
palmas? A terapeuta fala “Alô!” e pede para a criança repetir. A
( ) Sim ( ) Não criança repete?
Qual?_________________________________________ ( ) Sim ( ) Não
- Se a resposta for NÃO, a terapeuta aperta um dos
SE A RESPOSTA FOR NÃO botões e pede para a criança imitar o barulho. Ela imita?
a) A criança repete o mesmo sinal gestual? ( ) Sim ( ) Não
Se sim, a terapeuta diz que não está entendendo e pede
que explique melhor.

b) A criança modifica a forma de sinal gestual?


( ) Sim ( ) Não

8
D. Intenção Comunicativa Vocal: 4. A criança puxa o pano e pega o objeto?
Esta prova termina assim que uma das respostas for
É colocado à vista da criança, mas não ao seu SIM. Quando isto acontecer, passar para a prova
alcance, um brinquedo do qual ela goste muito. A seguinte.
criança fala ou vocaliza o que quer?
SE A RESPOSTA FOR SIM
a) A criança repete o mesmo sinal vocal? F. Jogo Combinatório:
( ) Sim ( ) Não
Se sim, a terapeuta diz que não está entendendo e pede
que explique melhor.
Entregar um lápis sem ponta, um apontador, uma
cesta de lixo, durex e papel. Pedir para a criança fazer
b) A criança modifica a forma de sinal vocal? um desenho e pendurá-lo na parede.
( ) Sim ( ) Não 1. A criança combina os seis objetos em ordem
seqüencial?
SE A RESPOSTA FOR NÃO
2. A criança relaciona pelo menos três dos objetos
Colocar o brinquedo ao alcance da criança.
oferecidos em ordem seqüencial?
a) A criança expressa reação emocional ao objeto, 3. A criança relaciona pelo menos três objetos sem
incluindo risos, choro? ordem seqüencial?
( ) Sim ( ) Não 4. A criança relaciona dois objetos?
Qual?________________________________________ 5. A criança manipula propriedades físicas dos
objetos?
b) Se não, fazer cócegas e observar se a criança dá
risada? 6. A criança usa esquemas motores simples nos
( ) Sim ( ) Não objetos oferecidos?
Esta prova termina assim que uma das respostas for
SIM. Quando isto acontecer, passar para a prova
Entregar o brinquedo para a criança e observar o que seguinte.
ela faz com ele:
2. A criança vocaliza enquanto manipula ou examina
um objeto? G. Jogo Simbólico:
3. Após aproximadamente três minutos, pegar o
brinquedo da mão da criança e observar a reação da Com uma miniatura de casinha, pedir para a
criança. Ela pede o objeto novamente? criança arrumar a casa e propor um jogo
4. Ela utiliza o mesmo sinal vocal que usou para compartilhado. Observar a reação da criança.
conseguir o objeto anteriormente? 1. Pedir para a criança servir um pedaço de bolo, que
Esta prova termina assim que uma das respostas for não está entre os materiais. A criança pega algum
SIM. Quando isto acontecer, passar para a prova objeto e finge que é o bolo?
seguinte. 2. A terapeuta pega algum objeto e finge que é o bolo,
oferecendo à criança. A mesma aceita a substituição e
a utiliza durante a brincadeira?
E. Uso de Objeto Mediador: 3. A criança usa substância invisível fingindo que tem
um pedaço de bolo nas mãos?
Colocar um objeto fora do alcance da criança e em 4. A terapeuta deve fingir que tem o bolo nas mãos e o
cima de um pano. Oferecer uma mão biônica à criança oferece para a criança. Ela aceita o objeto invisível e
e pedir para ela pegar o objeto, mas sem encostar utiliza-o na brincadeira?
nele. 5. A criança utiliza miniaturas de maneira
1. A criança estica a mão biônica até que consiga convencional?
alcançar o pano e puxá-lo para perto de si? 6. Oferecer à criança um telefone de verdade. Ela o
2. A criança utiliza a mão biônica para alcançar o utiliza de maneira convencional?
objeto e empurrá-lo? 7. Oferecer um brinquedo para a criança e pedir para
3. A criança sobe na cadeira e pega o objeto? ela brincar. A criança manipula o objeto?
Colocar o objeto de maneira que ela alcance uma das
extremidades do pano e pedir para ela pegar o objeto.

9
ANÁLISE DOS DADOS D. Intenção Comunicativa Vocal:
1. A criança vocaliza enquanto manipula ou
Os dados foram analisados seguindo modelo examina um objeto ou enquanto ignora um objeto e
sugerido por Wetherby e Prutting (1984), conforme já não se dirige ao adulto
citado anteriormente. 2. A criança expressa reação emocional a um
Foram registrados os números referentes ao melhor objeto/evento, incluindo gritos, risos, choro
desempenho de cada criança em cada uma das áreas 3. A criança emite sinais vocais enquanto se dirige
a seguir: a um objeto ou ao adulto; o mesmo sinal deve ser
usado em pelo menos dois contextos comunicativos
A. Intenção Comunicativa Gestual: diferentes
1. A criança examina ou manipula objetos e não se 4. A criança repete o mesmo sinal vocal até que o
dirige ao adulto objeto seja atingido; a criança dirige-se ao adulto
2. A criança expressa reações emocionais a 5. A criança modifica a forma do sinal vocal até que
objetos/eventos, incluindo bater palmas, sorrir, fazer o objetivo tenha sido atingido; a criança dirige-se ao
caretas ou bater adulto
3. A criança emite sinais gestuais que são 6. A criança emite sons ritualizados, isto é, o
contíguos ao objetivo, ao próprio corpo da criança ou mesmo sinal deve ser usado em pelo menos duas
ao corpo do adulto; a criança dirige-se ao adulto situações com o mesmo contexto comunicativo para
4. A criança repete o mesmo sinal gestual até que ser qualificado como ritual; a criança dirige-se ao
o objetivo tenha sido atingido; a criança dirige-se ao adulto
adulto
5. A criança modifica a forma do sinal gestual até E. Uso de Objeto Mediador:
que o objetivo tenha sido atingido, ou seja, a criança Uso de uma ferramenta ou instrumento como
repete o sinal com algum elemento a mais; a criança forma de obter o objeto desejado
dirige-se ao adulto 1. A criança usa um instrumento familiar contíguo
6. A criança emite sinais gestuais ritualizados que ao objetivo como forma de obtê-lo
não são contíguos ao objetivo, ao corpo da criança ou 2. A criança usa um instrumento familiar não
ao corpo do adulto; ou seja, o mesmo sinal deve ser contíguo ao objetivo como forma de obtê-lo
usado em pelo menos duas ocasiões no mesmo 3. A criança usa um instrumento não familiar
contexto comunicativo para ser qualificado como ritual; contíguo ao objeto como forma de obtê-lo
a criança dirige-se ao adulto. 4. A criança usa um instrumento não familiar e não
contíguo ao objeto como forma de obtê-lo
B. Imitação Gestual:
1. A criança imita esquemas de ação familiares F. Jogo Combinatório:
2. A criança imita gestos complexos compostos de 1. A criança usa esquemas motores simples em
esquemas de ação familiares objetos
3. A criança imita gestos não familiares visíveis 2. A criança manipula propriedades físicas dos
4. A criança imita gestos invisíveis não familiares e objetos
reproduz o modelo do adulto na primeira tentativa, 3. A criança relaciona dois objetos
quando o modelo não está mais presente 4. A criança relaciona três ou mais objetos sem
ordem seqüencial
C. Imitação Vocal: 5. A criança combina pelo menos três objetos em
1. A criança imita sons vocálicos familiares ordem seqüencial
2. A criança imita palavras familiares 6. A criança combina pelo menos seis objetos em
3. A criança imita padrões sonoros não familiares ordem seqüencial
4. A criança imita palavras não familiares e
reproduz o modelo do adulto na primeira tentativa G. Jogo Simbólico:
quando o modelo não está mais presente 1. A criança usa esquemas motores simples nos
objetos
2. A criança manipula propriedades físicas dos
objetos

10
3. A criança usa de forma convencional os objetos 5. A criança usa objetos de forma convencional
realísticos; pode ou não usar substâncias invisíveis; com substâncias invisíveis; aplica o esquema a si
aplica os esquemas apenas em si mesma mesma e a outros
4. A criança usa miniaturas de forma convencional; 6. A criança usa um objeto pelo outro; aplica o
pode ou não usar substâncias invisíveis; aplica os esquema a si mesma e a outros
esquemas apenas a si mesma O modelo do protocolo e da ficha resumo está
apresentado a seguir:

Ficha resumo dos aspectos sócio–cognitivos


Nome: Idade: Contador:
Número da Fita: Diagnóstico: Data

Aspectos sócio-cognitivos Nível de desempenho


intenção comunicativa gestual 1-2-3-4-5-6
intenção comunicativa vocal 1-2-3-4-5-6
uso de objeto mediador 1-2-3-4
imitação gestual 1-2-3-4
imitação vocal 1-2-3-4
jogo combinatório 1-2-3-4-5-6
jogo simbólico 1-2-3-4-5-6

RESULTADOS E vocal até que o objetivo tivesse sido atingido, emitiu


DISCUSSÃO DOS DADOS sons ritualizados em situações diferentes dirigindo-se
ao adulto, e três (37,5%) apresentaram o melhor
Em relação à intenção comunicativa gestual, um desempenho neste aspecto, emitindo sons ritualizados
sujeito (12,5%) apenas manipulou objetos, sem se dirigidos ao adulto (Gráfico 1).
dirigir ao adulto; um sujeito (12,5%) expressou reações Em relação à imitação gestual, três sujeitos (37,5%)
emocionais; dois (25%) emitiram sinais gestuais que imitaram esquemas de ação familiares; um sujeito
eram contíguos ao objetivo, ao próprio corpo da (12,5%) imitou gestos complexos compostos de
criança ou ao corpo do adulto, dirigindo-se ao adulto; esquemas de ação familiares; nenhum sujeito imitou
um sujeito repetiu o mesmo sinal gestual até que o gestos não familiares visíveis e quatro (50%) imitaram
objetivo fosse atingido, dirigindo-se ao adulto; um gestos não familiares e reproduziram o modelo do
sujeito modificou a forma de sinal gestual até que o adulto na primeira tentativa quando o modelo não
objetivo fosse atingido, repetiu o sinal com algum estava mais presente. Quanto à imitação vocal,
elemento a mais, dirigindo-se ao adulto; e dois sujeitos nenhum sujeito imitou apenas sons vocálicos
apresentaram o melhor desempenho possível neste familiares; três (37,5%) imitaram palavras familiares;
aspecto, que foi o uso de gestos ritualizados dirigidos nenhum sujeito imitou padrões sonoros não familiares;
ao adulto. um sujeito (12,5%) imitou palavras não familiares e
Quanto à intenção comunicativa vocal, um sujeito reproduziu o modelo do adulto na primeira tentativa e
(12,5%) apresentou o pior desempenho possível nesta quatro (50%) não apresentaram imitação vocal durante
área, ou seja, a emissão de vocalizações não focaliza- o período investigado (Gráfico 2).
das; dois (25%) expressaram reações emocionais a Os resultados dos itens referentes à imitação
um objeto ou evento; nenhum sujeito emitiu sinais correspondem ao que existe na literatura e comprovam
vocais enquanto se dirigia ao adulto em pelo menos a necessidade de que a investigação das possibilida-
dois contextos diferentes; um sujeito repetiu o mesmo des de imitação de crianças com distúrbios psiquiátri-
sinal vocal até que o objetivo tivesse sido atingido, cos e de linguagem, seja realizada através de
dirigindo-se ao adulto; um modificou a forma de sinal

11
procedimentos específicos, não devendo limitar-se à Em relação ao uso do objeto mediador, nenhum sujeito
identificação de sua ocorrência espontânea. usou instrumento familiar contíguo ao objetivo como
Em relação ao jogo combinatório, nenhum sujeito forma de obtê-lo, nem um instrumento familiar não
usou apenas esquemas motores simples em objetos contíguo ao objetivo como forma de obtê-lo; cinco
ou manipularam propriedades físicas dos objetos; um sujeitos (62,5%) utilizaram instrumentos não familiares
sujeito (12,5%) relacionou dois objetos; nenhum sujeito contíguos ao objetivo; dois (25%) utilizaram instrumen-
relacionou três objetos sem ordem seqüencial; dois tos não familiares e não contíguos ao objetivo como
(25%) combinaram pelo menos três objetos em ordem forma de obtê-lo e um sujeito (12,5%) não utilizou
seqüencial e cinco (62,5%) combinaram pelo menos instrumentos mediadores durante a investigação
seis objetos em ordem seqüencial. (Gráfico 4).
Quanto ao jogo simbólico, um sujeito (12,5%) usou
esquemas motores simples nos objetos; outro sujeito
manipulou propriedades físicas dos objetos; nenhum
sujeito usou objetos realísticos de forma convencional S8
S7
aplicando os esquemas motores apenas a si mesmo;
S6
dois (25%) usaram miniaturas de forma convencional

Sujeitos
S5
aplicando os esquemas apenas a si mesmos; quatro S4

(50%) usaram miniaturas de forma convencional, S3


S2
utilizando objetos invisíveis e aplicando os esquemas a
S1 Gestual
si mesmos e ao outro; nenhum sujeito substituiu um Vocal
0 1 2 3 4
objeto pelo outro aplicando os esquemas a si mesmo e Escores

ao outro (Gráfico 3).


Gráfico 2 - Desempenho sócio-cognitivo nas provas
Assim como os aspectos de imitação, o jogo de imitação

simbólico também pode ser melhor avaliado em


situações específicas, já que em situações
espontâneas o jogo simbólico não aparece com
freqüência e, assim, não pode ser avaliado, dando a
falsa impressão de que crianças autistas não S8

apresentam jogo simbólico. S7

S6
Sujeitos

S5

S4

S3

S2

S8 S1 Simbólico

S7 0 1 2 3 4 5 6 Combinatório

S6 Escores
Sujeitos

S5
Gráfico 3 - Desempenho sócio-cognitivo
S4
nas provas de jogo
S3
S2
S1 Gestual
S8
0 1 2 3 4 5 6 Vocal
S7
Escores
S6
Sujeitos

Gráfico 1 - Desempenho sócio-cognitivo nas provas S5

de intenção comunicativa S4

S3

S2

S1

0 1 2 3 4
Escores

Gráfico 4 - Desempenho sócio-cognitivo na prova


de uso de objeto mediador

12
CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A partir dos dados obtidos no estudo-piloto pode-se 1. De Villiers, P.A. e De Villiers, J.G. - Commentary on language and
autism. In: Cohen, D.J. e Donnellan, A.M. - Handbook of autism
perceber que as provas elaboradas pela pesquisadora and pervasive developmental disorders. New York, John Wiley &
para coleta de dados sócio-cognitivos é eficaz. Sons, 1994. p.697-702.
As provas foram capazes de detectar o verdadeiro 2. Fernandes, F.D.M. - Autismo infantil: repensando o enfoque
nível de desempenho sócio-cognitivo nos quais as fonoaudiológico. São Paulo, Lovise, 1997.
criança se encontravam, sem que ocorresse efeito-teto 3. Molini, D.R. - Aspectos sociais e cognitivos em crianças com
distúrbios psiquiátricos. São Paulo, 1997. (Relatório Final de
ou o contrário (a criança não apresentou um
Iniciação Científica Subvencionada pela FAPESP).
desempenho em um nível do qual fosse capaz).
4. Mundy, P. e Crowson, M. - Joint attention and early social
Os melhores desempenhos espontâneos de cada communication: implications for researche on intervention with
uma das crianças foram identificados em cada um dos autism. J. Autism Develop. Dis., v.27, n.6, p.653-76, 1997.
aspectos sócio-cognitivos já citados. As curvas 5. Nass, R. e Gutman, R. - Boys with Asperger’s disorder,
determinadas pelos resultados indicam que eles foram exceptional verbal intelligence, tics, and clumsiness. Develop. Med.
Child Neurol., v.39, n.10, p. 691-95, 1997.
úteis na identificação de variáveis individuais; ou seja,
6. Ozonoff, S. e Miller, J.N. - An exploration of right-hemisphere
as crianças portadoras de um mesmo distúrbio contributions to the pragmatic impairments of autism. Brain, v.52,
psiquiátrico não apresentam as mesmas caracterís- n.3, p.411-34, 1996.
ticas; os níveis de desempenho sócio-cognitivo variam 7. Pastorello, L.M. - Contribuições da abordagem funcionalista do
dentro da patologia. desenvolvimento da linguagem: Análise clínica de dois casos. In
Fernandes, F.D.; Pastorello, L.; Scheuer, C. (org.) - A
Os dados demonstram que as crianças com Fonoaudiologia em distúrbios psiquiátricos da infância. São
distúrbios autísticos e distúrbios de linguagem têm Paulo, Lovise, 1996. p.109-20.
intenção comunicativa, e isto nos leva a pensar a 8. Piven, J. e Palmer, P. - Cognitive deficits in parents from multiple-
respeito do estereótipo que as crianças autistas incidence autism families. J. Child Psychol. Psychiatry, v.38, n.8,
p.1011-21, 1997.
possuem de não se comunicarem. Podemos notar que,
9. Prior, M.; Eisenmajer, R.; Leekam, S.; Wing, L..; Gould, J., Ong,
se for preciso, as crianças autistas podem se comuni-
B.; Dowe, D. - Are there subgroups within the autistic spectrum? A
car mesmo que seja de uma maneira alternativa e cluster analysis of a group of children with autistic spectrum
complementar. No entanto, este tipo de comunicação disorders. J. Child Psychol. Psychiatry, v.9, n.6, p.893-902, 1998.
não é considerado adequado pela sociedade. Sendo 10. Ramberg, C.; Ehlers, S.; Nyden, A.; Johansson, M.; Gillberg, C. -
assim, parece essencial a inclusão desses dados nas Language and pragmatic functions in school-age children on the
autism spectrum. Eur. J. Dis. Commun., v.31, n.4, p.387-413, 1996.
discussões a respeito da atitude comunicativa do
11. Shields, J.; Varley, R..; Broks, P.; Simpson, A. - Social cognition
fonoaudiólogo em terapia de linguagem de uma forma in developmental language disorders and high-level autism. Develop.
geral. Med. Child Neurol, v.38, n.6, p.487-95, 1996.
Finalmente, podemos concluir que é viável 12. Vanmeter, L.; Fein, D.; Morris, R.; Waterhouse, L.; Allen, D. -
determinar níveis de performance sócio-cognitiva de Delay versus deviance in autistic social behavior. J. Autism
Develop. Dis., v.27, n.5, p 557-69, 1997.
crianças autistas com provas específicas.
13. Wetherby, A. e Prutting, C. - Profiles of communicative and
cognitive-social abilities in autistic children. J. Speech Hearing Res.,
v.27, p.364-77, 1984.

13
avaliação psicométrica da inteligência de
crianças portadoras de transtornos invasivos
do desenvolvimento (tid)

maria isabel dos santos pinheiro(1), ana maria sarmento seller poelman (2),
walter camargos junior (3)

(1) Psicóloga, Psicopedagoga, Professora Substituta no Departamento de Psicologia da UFMG


(2) Professora Titular do Instituto de Psicologia da PUC–MG, Especialista em Psicologia, Professora de Técnicas de Exame e
Aconselhamento Psicológico
(3) Psiquiatra Infantil, Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas de Minas
Gerais, Membro Fundador do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Autismo e Outras Psicoses Infantis–GEPAPI

RESUMO:

AVALIAÇÃO PSICOMÉTRICA DA INTELIGÊNCIA DE CRIANÇAS PORTADORAS DE TRANSTORNOS INVASIVOS DO


DESENVOLVIMENTO (TID): O presente artigo apresenta trabalho desenvolvido para avaliação psicométrica da inteligência em crianças
e adolescentes diagnosticados como portadores de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, conforme a CID–10. O trabalho foi
desenvolvido no Centro Psicopedagógico – CPP da Fundação Hospitalar de Minas Gerais – FHEMIG, na cidade de Belo Horizonte. Os
recursos técnicos utilizados foram anamnese, os testes “Columbia Mental Maturity Scale” CMMS e “Medidas de la Inteligência de
Terman-Merrill”. Os resultados quantitativos e qualitativos obtidos nos fornecem base para um trabalho pragmático orientado.

UNITERMOS:
Transtornos Invasivos do Desenvolvimento - Columbia Mental Maturity Scale - Avaliação Psicométrica da Inteligência

ABSTRACT:

PSYCHOMETRICAL INTELLIGENCE EVALUATION OF CHILDREN WITH PERVASIVE DEVELOPMENTAL DISORDERS: The article
describes work developed at a public institution in Belo Horizonte – Brazil, toward psychometric assessment of intelligence in children
and teenagers diagnosed with pervasive developmental disorder according to ICD –10 diagnostic criteria. Standardized assessment
resources utilized were the Columbia and the Terman-Merrill scales. Results showed the feasibility of psychometric assessment of
intelligence in PDD subjects of low social and economic status. Both qualitative and quantitative results served to orient the management
of theses subjects.

UNITERMS:
Pervasive Developmental Disorders - Columbia Mental Maturity Scale - Psychometric Assessment of Intelligence

Artigo Original

PINHEIRO, M.I.S.; POELMAN, A.M.S.S.; CAMARGOS JUNIOR, W. – Avaliação psicométrica da inteligência das crianças
portadoras de transtornos invasivos do desenvolvimento (TID). Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.55, p.14-8, 2001.

14
O Centro Psicopedagógico - CPP é uma unidade da que nos fornece QI e tem como concepção de
Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais – inteligência uma estrutura de aptidões diferenciadas ou
FHEMIG, que possui 52 anos de funcionamento; sua independentes entre si.
clientela é composta, basicamente, de pessoas de O objetivo deste trabalho foi verificar a possibilidade
baixa renda, provenientes de Belo Horizonte, de sua de proceder à avaliação psicométrica da inteligência
região metropolitana, do interior do Estado e de outros em crianças pertencentes ao Grupo TID.
estados. Teve, em outras épocas, o nome de Hospital
de Neuropsiquiatria Infantil. Hoje, o Centro Psicopeda- MÉTODO
gógico encontra-se em sintonia com os novos modelos
de Assistência à Saúde Mental Infanto-Juvenil. Em O processo de avaliação aconteceu em quatro
1997, foi criado o primeiro ambulatório de especialida- etapas:
des no modelo de equipe, com o nome de Equipe TID A. Inicialmente foi definida e levantada a população
(referindo-se à nomenclatura da CID-10, Transtornos que seria estudada. A metodologia utilizada nessa
Invasivos do Desenvolvimento). população seguiu os seguintes passos: exame clínico
O Transtorno Invasivo do Desenvolvimento é um psiquiátrico, análise dos sintomas sob os critérios do
distúrbio caracterizado por anormalidades qualitativas DSM IV e do "CARS - Childhood Autism Rating Scale".
em interações sociais recíprocas, em padrões de Nos casos em que houve dúvidas quanto ao
comunicação e por um repertório de interesses e diagnóstico diferencial de autismo infantil, usaram-se
atividades restrito, estereotipado e repetitivo (OMS, os critérios do DSM IV para os outros quadros que
1993). No início de seu funcionamento, a equipe compõem o grupo dos TID (Síndrome de Asperger,
deparou-se com algumas questões, entre elas: Síndrome de Rett, Síndrome de X frágil e Desordem
- clientela portadora de quadros graves; Desintegrativa da Infância) e a ADI-R.
- profissionais com pouca experiência clínica junto a B. Em seguida, selecionamos pacientes que haviam
essa clientela; sido submetidos ao Inventário Portage e que obtiveram
Buscando um novo modelo de atendimento, a resultados mais elevados nas áreas de Linguagem Re-
equipe tem procurado se orientar à luz e orientação ceptiva, Socialização e Linguagem Expressiva. O
das mais recentes pesquisas científicas. Desta forma, Inventário Portage é um roteiro de observação pedagó-
avaliar e conhecer a capacidade intelectiva é tão gica que, adaptado à realidade brasileira, utiliza 531
importante quanto conhecer a presença de déficits itens divididos em cinco áreas principais do desenvol-
sensoriais, distúrbios genéticos e/ou metabólicos. Os vimento: Socialização, Linguagem Expressiva e Recep-
dados relacionados à capacidade intelectiva nos tiva, Cuidados Próprios, Cognição e Habilidades
fornecem maiores informações sobre o potencial Motoras.
individual que é, notadamente, fator importante para C. Posteriormente, recorremos à análise dos pron-
delinear um projeto terapêutico e um prognóstico. tuários para complementar as informações clínicas,
Indivíduos portadores de Transtorno Invasivo do disponibilidade familiar e priorizar crianças cronolo-
Desenvolvimento, com freqüência, estão associados a gicamente mais jovens. Foram selecionadas para
algum retardo mental (Gauderer, 1993). No entanto, o avaliação cinco crianças, sendo duas do sexo feminino
prejuízo nas habilidades de interação social recíproca, e três do sexo masculino. Essas crianças apresenta-
que acomete em graus variados esses indivíduos, vam linguagem expressiva composta de algumas
dificulta a avaliação do potencial intelectual, que nem palavras e linguagem receptiva de maior alcance.
sempre é tão baixo quanto aparenta. D. Finalmente, a aplicação dos testes, que iniciou
A Bateria Kaufman de Avaliação para Crianças (K- com uma anamnese direcionada para as questões
ABC, 1985) e a Escala Bayley (1969) são citadas com específicas da síndrome e, em seguida, a testagem
freqüência na literatura internacional como recursos de propriamente dita. Na anamnese buscávamos
boa qualidade para a avaliação dessa clientela. Consi- conhecer algumas características pessoais da criança
derando o momento inicial de funcionamento da como comportamentos, preferências, rituais e
equipe, o recurso material disponível e o nosso objetivo estereotipias. Essas informações nos orientaram para
principal, os recursos psicométricos utilizados foram: uma postura mais definida e adequada à necessidade
Escala de Maturidade Mental Colúmbia, que nos de cada probando. Em seguida as crianças foram
fornece estimativa da capacidade de raciocínio geral de submetidas aos dois testes selecionados: "Columbia
crianças, e a Medida de Inteligência de Terma-Merrill, Mental Maturity Scale - CMMS" e Escala de Inteligência

15
de Terman-Merrill. A utilização de dois testes, um psicométrica, seguiram as orientações metodológicas
verbal e outro não verbal, foi a estratégia encontrada específicas para cada teste; foram também
para avaliarmos essas crianças que apresentam consideradas as condições clínicas individuais dos
características tão singulares, ou seja, pertencentes a testandos.
um contínuo autístico que se estende da ausência de A CMMS foi sempre executada em uma só sessão,
comunicação verbal até uma comunicação verbal tendo em vista que o aumento neste número implicaria
claramente mais elaborada. Essas crianças apresen- em mais de uma orientação e, conseqüentemente, em
tam também, além das características peculiares mais de um treinamento. Isso certamente interferiria no
próprias do seu grupo nosológico, uma variação de resultado final do teste.
nível mental que vai desde o retardo mental grave até O Terman-Merrill foi executado em números varia-
níveis intelectivos não comprometidos Rapin (1998). dos de sessões. Esta variação se definiu de acordo
com a idade do probando, nível de desenvolvimento e
1. "Columbia Mental Maturity Scale - CMMS" também do nível de comprometimento na interação
Este teste tem como objetivo fornecer uma social. Durante a aplicação dos testes, algumas crian-
estimativa da capacidade de raciocínio geral de ças, dependendo do grau de comprometimento na inte-
crianças com idade entre três anos e seis meses e ração social, apresentavam dificuldade para “atendi-
nove anos e 11 meses. É um teste não-verbal que mento a ordens”, logo após serem enunciadas. Desde
requer um alto nível de abstração (Manual para que a repetição dessa “ordem” não contrariasse as
Aplicação e Interpretação, 1996). A escala fornece normas do teste, era naturalmente executada. Essa
dados de: situação pode ser exemplificada em dois momentos
a. Resultado Padrão de Idade - RPI - escore padrão distintos:
variando de um mínimo de 50 a um máximo de 150 Momento 1: Uma questão para avaliar capacidade
pontos, com média de 100 pontos; motora poderia ser repetida, se o não atendimento da
b. Percentil - indica a classificação do probando tarefa se devesse a uma dificuldade momentânea na
quando seu escore é comparado com o escore obtido interação com o avaliador. É importante destacar que
pelas crianças do grupo controle; as ordens eram sempre dadas naqueles momentos em
c. Estanino - são escores padrão de um dígito, que se percebia uma possibilidade maior de
variando de um mínimo de um até o máximo de nove; entendimento.
d. Índice de Maturidade - são indicadores que mos- Momento 2: Em uma questão para avaliar memória,
tram a que nível o desempenho da criança mais se para a qual a repetição constituiria um facilitador, o
assemelha dentro dos 13 grupos de pontuação, cada comando não era repetido.
qual correspondendo a uma amplitude de seis meses.
As crianças que foram avaliadas neste trabalho, RESULTADOS
embora possuam idade cronológica acima da sugerida
pelo teste, apresentaram Idade de Desenvolvimento Histórico das crianças avaliadas e breve descrição
dentro dos parâmetros do CMMS, quando submetidas quantitativa/qualitativa dos resultados dos testes
ao Inventário Portage.
D.B. - Adolescente, 17 anos, sexo feminino,
2. Escala de Inteligência de Terman-Merrill freqüenta escola especializada. Nascida de parto duplo
Esta escala tem como objetivo a avaliação da inteli- e prematuro. Rubéola congênita e sintomas de desnu-
gência e ser elemento de investigação, em uma grande trição fazem parte da sua história clinica. Apresentou
variedade de sujeitos, entre eles os débeis mentais convulsão na primeira infância, falou com aproximada-
(Terman-Merrill, 1966). Fornece dados numéricos do mente um ano e três meses, andou com três anos. Foi
Quociente Intelectual - QI, Idade Mental e quadro para hospitalizada para cirurgia de catarata bilateral congê-
elaboração de análise qualitativa (Terman-Merrill, nita secundária à rubéola congênita e tratamento de
1966). várias pneumonias. A partir da apresentação de várias
convulsões, a mãe observou “perda de contato”. É
Procedimento para a Testagem independente nos hábitos de higiene.
Análise Quantitativa/Qualitativa: De acordo com o
As crianças foram atendidas no ambulatório do CPP resultado quantitativo apresentado, QI–31, poderá se
e os procedimentos utilizados, durante a avaliação beneficiar de instrução com extensão limitada, escrever

16
algumas palavras, desempenhar tarefas simples, com ligada à coordenação viso-motora, seu desempenho
supervisão. Durante o exame, executou as tarefas com ficou comprometido; porém, apresenta bem
colaboração e tranqüilidade. Ecolalia e comportamen- desenvolvida a Memória Auditiva, quando esta não
tos estereotipados interferiram no processo de está aliada à representação motora. A área do Domínio
avaliação. Apresentou bom nível de desempenho nas do Idioma apresenta inconstância. Fortes indicadores
tarefas que avaliam: Conhecimentos Elementares e sugerem que este baixo desempenho pode estar
Memória Auditiva. Na área de Retenção e Memória, relacionado com a dificuldade visual.

TABELA 1 - APRESENTAÇÃO DAS CRIANÇAS AVALIADAS, IDADE CRONOLÓGICA,


RESULTADOS OBTIDOS NO TERMAN -MERRILL E CMMS
Nome Idade cronológica Terman Merril CMMS
(anos)
IM QI RPI Percentil Estanino IM

DB 17.1 4.6 31 82 13 3 7i
JP 14.3 3.2 21 - - - -
NM 12.6 7.6 60 94 35 4 8i
SR 12.5 5.6 43 99 48 5 9i
RC 5.9 5.2 90 116 84 7 6s
Legenda: Coluna 1 - nome das crianças; Coluna 2 - Idade cronológica; Coluna 3 - Resultado do Terman-Merrill (IM - Idade Mental,
QI - Quociente Intelectual); Coluna 4 - Resultado do CMMS (RP - Resultado padrão da idade, Percentil, Estanino, Índice de Maturidade)

J.P. - Adolescente, 14 anos, sexo masculino, alfabe- equivalentes, aproximadamente, à sexta série escolar
tizado. Filho de pais epilépticos, a mãe sofreu convul- e, na idade adulta, pode atingir habilidades sociais e
são no período de gestação. Andou com um ano e dois vocacionais adequadas a uma mínima auto-segurança.
meses, falou por volta de dois anos. Apresenta mudez Durante a avaliação, trabalhou com colaboração,
seletiva. Não acata ordens; agride quando é irritado. períodos de maior atenção acompanhados de uma
Existe história de suicídio na família do pai. A irmã, com postura de ansiedade, timidez e medo. As áreas de
15 anos, tem apresentado quadro de depressão. J.P. Domínio do Idioma e Conhecimentos Elementares
possui independência nos hábitos de higiene. apresentaram-se bem desenvolvidas; nas áreas de
Análise Quantitativa/Qualitativa: Durante a Compreensão, Imaginação e Juízo, o resultado obtido
avaliação, apresentou pouco interesse pelo trabalho, sugere grau significativo de comprometimento. Nas
timidez e insegurança. A perseveração na emissão de tarefas que exigem execução mecânica, apresentou
respostas que se localizam em uma só posição na bom grau de habilidade, o que não aconteceu nas
prancha invalidou as provas da CMMS. No teste de atividades que exigem maior nível de elaboração e
Terman-Merrill, o desempenho foi fraco nas áreas de conceituação abstrata.
Compreensão e Imaginação, Performance, Retenção e
Memória e Domínio do Idioma, apresentando respostas S.R. - Adolescente, 12 anos, sexo masculino, não
com rendimento muito abaixo daquele demonstrado em alfabetizado. A mãe relata gravidez “totalmente
situações lúdicas. A dificuldade de interação, a falta de indesejada”. Mãe deprimida e pai psicótico. Andou com
disciplina e organização impossibilitaram a avaliação. dez meses, falou aos sete anos. Apresenta distúrbio de
conduta, alucinações auditivas de cunho persecutório.
N.M. - Adolescente, 12 anos, sexo feminino, Possui independência nos hábitos de higiene.
alfabetizada, atualmente não freqüenta escola. Foi Análise Quantitativa/Qualitativa: De acordo com o
encaminhada ao CPP por apresentar agitação, resultado quantitativo apresentado, QI-43, apresenta
distúrbio de comunicação, confusão de raciocínio e retardo mental moderado, o que indica pessoas que,
pensamento. Mantém contato pobre, apresenta na idade adulta, podem se beneficiar de treinamento
períodos de isolamento. Possui independência nos vocacional, contribuindo para a própria manutenção. A
hábitos de higiene. Escala de Inteligência de Terman-Merrill não apresen-
Análise Quantitativa/Qualitativa: De acordo com o tou situações que o estimulassem para o seu melhor
resultado quantitativo apresentado, QI-60, ao final da desempenho. Essa estimulação ocorreu em nível mais
adolescência poderá atingir habilidades acadêmicas elevado na CMMS e na avaliação clínica que sugerem,

17
então, um potencial merecedor de investimentos. Na conjugação dos dados, sobretudo com a análise
CMMS, obteve RPI-99, situando-se entre 54% de nível qualitativa.
médio. A literatura internacional tem utilizado estes dados
como recurso freqüente para complementar as
R.C. - Criança com cinco anos, sexo masculino, não informações sobre estes sujeitos (Ozonoff e
alfabetizado. Apresenta dificuldade de interação social. Pennington,1993; Wing,1993; Piven e Palmer, 1997).
Andou e falou com aproximadamente um ano e três No Brasil, no entanto, este recurso não tem sido
meses; a fala apresentou regressão e, aos três anos, já utilizado, talvez por não possuirmos, ainda, testes
não falava. Iniciou tratamento fonoaudiológico. Hoje modernos mais adequados adaptados para esta
apresenta bom vocabulário, porém com algumas população, como K-ABC e Bayley. Podemos pensar,
supressões de sons. Apresenta dificuldades para também, em desinteresse dos profissionais da área em
manter conversação. Possui independência nos investir na avaliação de indivíduos tão singulares com
hábitos de higiene. uma característica dificultadora tão marcante - dificul-
Análise Quantitativa/Qualitativa: De acordo com o dade de interação social recíproca. Esta característica
resultado quantitativo, QI-90, apresenta-se dentro da transforma o processo de avaliação em trabalho moro-
faixa de normalidade. Durante a avaliação, sua postura so que exige, acima de tudo, conhecimento, cautela e
foi de momentos de colaboração e timidez; obteve bom investigação constante. Esta falta de investimento, tem
índice de desempenho (acima da média) em quase mantido o trabalho com estes sujeitos em um nível de
todas as áreas avaliadas. É importante considerar, no subjetividade que compromete o processo terapêutico
entanto, que os conceitos avaliados até quatro anos e limita o investimento em suas potencialidades.
são básicos e de execução, e que a criança demons-
trou considerável dificuldade para responder as
questões apresentadas para idade acima de quatro REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
anos, que demandam abstração, elaboração e
processamento de informações. 1. Anastasi, A. - Testagem psicológica. Porto Alegre, Artemed,
2000.

DISCUSSÃO 2. Baron-Cohen, S. e Hammer J. - Parents of children with Asperger


syndrome: what is the cognitive phenotype? J. Cognitive Neurosc.,
v. 9, n.4, p.548-54, 1997.
Ao iniciarmos este trabalho nosso objetivo era 3. Bayley, N. - Bayley Scales of Infant Development. New York,
verificar a possibilidade de proceder uma avaliação The Psychological Corporation, 1969.
psicométrica da inteligência de crianças pertencentes 4.Francesca, H. e Frith, U. - The neuropsychology of autism. Brain,
ao grupo TID. Nosso estudo mostrou que a avaliação é v.119, p.1377-400, 1996.
a
possível e pode nos fornecer dados valiosos em 5. Fejerman, N. e Alvares, E. F. - Neurologia pediátrica. 2 . ed.
Buenos Aires, Editorial Médica Panamericana, 1998.
relação a estes sujeitos. Temos que considerar, no
6. Gauderer, C.E. - Autismo e outros atrasos do
entanto, que os indivíduos selecionados para este desenvolvimento: uma atualização para os que atuam na área:
estudo não fazem parte do extremo de severidade dos do especialista aos pais. Brasília, CORDE, 1993.
portadores de TID. A experiência nos mostrou que é 7. Kaufman, A.S.; Kamphaus, R.W.; Kaufman, N. L. - New directions
indispensável ao avaliador o domínio da técnica in intelligence testing: The Kaufman Assessment Battery for Children
(K-ABC). In: Wolman, B.B. - Handbook of intelligence. New York,
psicométrica selecionada, conhecimento teórico que a
Wiley, 1985.
fundamenta e, além disso, conhecimento teórico-clínico
8. Organização Mundial de Saúde - Classificação dos Transtornos
do funcionamento dessas crianças. Com essas Mentais e de Comportamento da CID-10. Descrições Clínicas e
informações, o avaliador terá recursos para estimular o Diretrizes Diagnósticas. Artes Médicas, Porto Alegre, 1993.
probando, respeitando os critérios técnicos permitidos 9. Pasquali, L. - Teorias e métodos de medida em ciências do
em cada escala, de forma que propicie a este indivíduo comportamento. INEP, Brasília, 1996.

seu melhor desempenho. 10. Schwartzman, J.S. e Assunção Jr., F.B. - Autismo Infantil. São
Paulo, Memnon, 1995.
A utilização de dois testes também foi recurso
11. Pennington, B.F. - Diagnóstico dos distúrbios de
importante, e nos permitiu detectar com maior aprendizagem. São Paulo, Pioneira, 1997.
segurança os picos de habilidade individual através da

18
comparação da compreensão lingüística de
crianças com atraso de linguagem e normais
com teste de vocabulário por imagens (tvip):
análise preliminar

karina tamarozzi de oliveira(1), simone rocha de vasconcellos hage(2),


sylvia maria ciasca(3)

(1) Fonoaudióloga Clínica, Mestranda em Ciências Biomédicas - Àrea de concentração em Neurologia FMC - UNICAMP
(2) Docente da USP - Bauru, Doutora em Ciências Biomédicas - Área de concentração em Neurologia FMC - UNICAMP
(3) Professora Doutora da Disciplina de Neurologia Infantil do Departamento de Neurologia FMC - UNICAMP

RESUMO:

COMPARAÇÃO DA COMPREENSÃO LINGÜÍSTICA DE CRIANÇAS COM ATRASO DE LINGUAGEM E NORMAIS COM O TESTE DE
VOCABULÁRIO POR IMAGENS (TVIP): ANÁLISE PRELIMINAR: A avaliação da compreensão lingüística tem sido de difícil acesso aos
fonoaudiólogos, na medida em que a mesma é uma habilidade extremamente qualitativa. Alguns instrumentos têm sido desenvolvidos
para contribuir na avaliação desta função, entre eles o Teste de Vocabulário por Imagens - TVIP (Dunn e Dunn, 1996). O TVIP avalia o
desenvolvimento lexical no domínio receptivo, fornecendo avaliação objetiva, rápida e precisa do vocabulário receptivo-auditivo em
ampla variedade de áreas, sendo um requisito para a recepção e o processamento da informação auditiva. Este estudo se propõe a
fazer uma análise preliminar da compreensão de crianças com atraso de linguagem.

UNITERMOS:
Vocabulário - Linguagem - Distúrbios de linguagem

ABSTRACT:

COMPARISON OF RECEPTIVE VOCABULARY WITH LANGUAGE DISORDERS AND NORMALS BY PEABODY VOCABULARY TEST
(BRAZILIAN TRANSLATION): PRELIMINAR ANALYSIS: The evaluation of linguistic comprehension has been difficult to speech
therapists because it is a qualitative ability. Some tests have been helping this evaluation, like “Peabody Picture Vocabulary Test” (Dunn
and Dunn, 1996). This test shows the lexical development in an objective, fast and precise way. This study was carried out to investigate
the language comprehension of children with language disorders.

UNITERMS:
Vocabulary - Language - Language disorders

Artigo Original

OLIVEIRA, K.T.; HAGE, S.R.V.; CIASCA, S.M. – Comparação da compreensão lingüística de crianças com atraso de
linguagem com o teste de vocabulário por imagem (TVIP): análise preliminar. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.55,
p.19-23, 2001.

19
Um distúrbio de linguagem na criança pequena, em normatização do Teste de Vocabulário por Imagens
geral, é determinado comparando-se o seu funciona- Peabody feito por Capovilla e Capovilla (1997) vem
mento de linguagem com o da criança da mesma idade mostrando progressos na complementação da
com desenvolvimento “normal”. Os sinais de um distúr- avaliação de linguagem.
bio de linguagem mudam ao longo do tempo, uma vez
que levamos em consideração o crescimento e desen- MÉTODO
volvimento das crianças. Quando as habilidades pré-
verbais e verbais iniciais não se desenvolvem, há A. Sujeitos: Participaram deste estudo 18 crianças
motivos justificados para preocupação. O atraso no entre dois anos e meio e seis anos de idade, divididas
desenvolvimento da linguagem pode muitas vezes ser em:
o primeiro sinal de uma desordem do desenvolvimento. - grupo 1: nove crianças com atraso específico de
Algumas crianças apresentam perturbação no linguagem, sem quaisquer outras intercorrências que
desenvolvimento da linguagem que não pode ser justifiquem o quadro lingüístico alterado. Foram
explicada por déficits de percepção sensorial, capaci- descartadas síndromes genéticas, afecções neuroló-
dades intelectuais nem funcionamento motor ou sócio- gicas, deficiência auditiva ou sensorial associada,
econômico. Essas crianças são referidas como psicoses, autismo e quadros adquiridos de afasia
sofrendo um distúrbio específico de linguagem. Suas infantil;
dificuldades surgem à medida em que elas se desen- - grupo 2: formado também por nove crianças com
volvem, e os pais começam a perceber problemas no desenvolvimento normal de linguagem, utilizado como
desenvolvimento lingüístico por volta dos dois anos de grupo controle.
idade. Neste momento, a maioria das crianças de Os sujeitos do grupo 1 participam de atendimento
desenvolvimento normal está acrescentando fonoaudiológico em grupos de Terapia de Linguagem
vocabulário novo ao seu repertório de palavras e é Infantil. Duas destas crianças encontram-se na faixa
comunicadora entusiástica. As crianças com distúrbio dos dois anos; uma criança com três anos; três
de linguagem utilizam muito menos palavras e já estão crianças com quatro anos; uma criança com cinco
tendo problemas em comunicar desejos e anos e duas crianças na faixa dos seis anos. O grupo 2
necessidades (Boone, 1994). foi avaliado em escola de ensino infantil e apresentou
Conhecendo as dificuldades que as crianças com desempenho escolar sem intercorrências, sendo uma
desordens de linguagem experimentam, torna-se com dois anos; duas com três anos; três na faixa dos
necessária uma avaliação que defina as categorias cinco anos e três na faixa dos seis anos.
lingüísticas nas quais apresentam maior déficit. Para
isto, a avaliação fonoaudiológica torna-se fundamental, B - Método: Para a avaliação do vocabulário
do mesmo modo que os testes complementares que receptivo destas crianças foi utilizado o Teste de
auxiliam no processo diagnóstico. Vocabulário por Imagens Peabody (Dunn e Dunn,
A avaliação da compreensão lingüística tem sido de 1996) em tradução brasileira realizada por de
difícil acesso aos fonoaudiólogos, na medida em que é Capovilla. e Capovilla (1997). As crianças do grupo
uma habilidade extremamente qualitativa. Alguns 1(atraso de linguagem) participaram da avaliação
instrumentos têm sido desenvolvidos para contribuir antes do início da terapia fonoaudiológica. Para
para a avaliação desta função. Dentre eles, o Teste de garantir melhor atenção durante a aplicação do teste, a
Vocabulário por Imagens Peabody -TVIP (Dunn e terapeuta permaneceu na sala para melhor interação
Dunn, 1996) tem sido largamente utilizado na literatura entre examinadora e criança. As crianças do grupo 2
de linguagem. foram avaliadas durante o período escolar, sem que
O TVIP avalia o desenvolvimento lexical no domínio isto perturbasse o desempenho das atividades.
receptivo, fornece avaliação objetiva, rápida e precisa O Teste de Vocabulário por Imagens Peabody
do vocabulário receptivo-auditivo em ampla variedade (TVIP) avalia o desenvolvimento lexical no domínio
de áreas, sendo um requisito para a recepção e o receptivo, as habilidades de compreensão de
processamento da informação auditiva. vocabulário de crianças entre dois e seis anos até 18
Na área fonoaudiológica é pobre a normatização de anos de idade. Fornece avaliação objetiva, rápida e
testes já elaborados ou mesmo a criação de novos precisa do vocabulário receptivo-auditivo em ampla
padrões que possam ser utilizados na população variedade de áreas, incluindo pessoas, ações,
brasileira com precisão e confiabilidade. Desta forma, a qualidades, partes do corpo, tempo, natureza, lugares,

20
objetos animais, termos matemáticos, ferramentas e moderadamente alta; nenhuma criança classificou-se
instrumentos. É indicado para avaliar o nível de na categoria extremamente baixa ou extremamente
desenvolvimento da linguagem receptiva em pré- alta. Assim, cinco crianças apresentaram valores
escolares, bem como em adultos e crianças que não abaixo da média da população, ou seja, aproximada-
lêem, que não escrevem e mesmo que não falam. É mente 55% da população deste estudo (Tabela 2)
especialmente apropriado para avaliar o vocabulário de
pessoas incapazes de vocalizar palavras de modo
inteligível, já que, para avaliar a compreensão TABELA 1 - PONTUAÇÃO PADRÃO OBTIDA E NÍVEL DE
lingüística de palavras isoladas, requer apenas que o COMPREENSÃO CORRESPONDENTE

examinado escolha a figura correspondente à palavra Pontuação padrão obtida Categoria descritiva
55 – 69 Pontuação extremamente baixa
falada pelo examinador (Capovilla e Capovilla, 1997).
70 – 84 Pontuação moderadamente baixa
A aplicação do teste consta de 125 lâminas, 85 – 99 Média baixa
precedidas de cinco lâminas de prática; em cada uma 100 Média
há quatro figuras organizadas para que a criança faça 101 – 114 Média alta
a seleção da ilustração que considera de maior signifi- 115 – 130 Pontuação moderadamente alta
cado para a palavra dita pelo examinador. As lâminas 131 – 145 Pontuação extremamente alta

são separadas de acordo com a idade cronológica da


criança; assim, os estímulos iniciam-se na faixa etária
de cada sujeito e procede-se à avaliação até que o No grupo 1, as idades variaram de dois anos e 10
sujeito apresente seis erros entre oito lâminas, o que é meses a seis anos e seis meses, e as pontuações
chamado “teto” (oito respostas consecutivas mais padrão, de 55 a 116,9 (Tabela 3).
baixas que contenham seis erros). A base seria as oito O grupo 2 apresentou idades que variaram de dois
respostas corretas consecutivas mais altas. Algumas anos a seis anos e dois meses, e as pontuações, de 70
exceções podem acontecer, motivo pelo qual se a 131,9, ou seja, valores superiores aos do grupo 1,
orienta leitura atenta do manual do examinador - como esperado, considerando que estas crianças não
adaptação hispano-americana. apresentam problemas de linguagem (Tabela 4).

RESULTADOS
TABELA 2 - TOTAL DE SUJEITOS POR CATEGORIA
DESCRITIVA DENTRO DOS GRUPO 1 E 2.
Após a aplicação do teste conforme explanado
Categoria descritiva Grupo 1 Grupo 2
acima, foi possível fazer a contagem dos acertos e
Extremamente baixa 2 (22,2%) 0
erros através das pontuações de teto e das de base, Moderadamente baixa 4 (44,4%) 2 (22,2%)
chegando assim a pontuação direta que deve ser Média baixa 1 (11,1%) 3 (33.3%)
convertida em pontuação padrão por meio das tabelas Média 0 0
padronizadas por Capovilla (1997), que considera a Média alta 1 (11,1%) 1 (11,1%)
Moderadamente alta 1 (11,1%) 3 (33,3 %)
escolaridade das crianças.
Extremamente alta 0 0
Os resultados obtidos nas pontuações padrões foram Total 9 9
pareados com as categorias descritivas, de modo a se
conhecer o nível de compreensão dos sujeitos no teste
proposto, que classifica de acordo com a seguinte ordem TABELA 3 - PONTUAÇÃO E IDADE CRONOLÓGICA
dependendo da pontuação alcançada: DOS SUJEITOS DO GRUPO 1
No grupo 1, das nove crianças avaliadas, duas Sujeito Idade Pontuação Categoria descritiva
classificaram-se em categoria extremamente baixa; cronológica padrão
quatro em moderadamente baixa; uma em média 1 2 a 10 m 75,6 Moderadamente baixa
baixa, uma em média alta e uma em moderadamente 2 2 a 11 m 103,7 Média alta
3 3a 116,9 Moderadamente alta
alta. Oito crianças apresentaram valores abaixo da
4 4a 73,7 Moderadamente baixa
média da população. 5 4a 96,4 Média baixa
O grupo 2 apresentou pontuações que variaram de 6 4a 55 Extremamente baixa
moderadamente baixa a moderadamente alta, sendo 7 5a 68,7 Moderadamente baixa
duas crianças classificadas como moderadamente 8 6a4m 74,3 Moderadamente baixa
baixa; três média baixa; uma média alta e três 9 6a6m 55 Extremamente baixa

21
TABELA 4 - PONTUAÇÃO E IDADE CRONOLÓGICA de aprendizagem, sem grandes erros na construção
DOS SUJEITOS DO GRUPO 2 gramatical (Jakubovicz, 1997).
Sujeito Idade Pontuação Categoria descritiva Todas estas etapas são de fundamental importân-
cronológica padrão
cia para o desenvolvimento de uma criança. Conside-
1 2a 116,9 Moderadamente alta
2 3a 96,2 Média baixa
rando que neste trabalho o enfoque aconteceu na área
3 3a 131,9 Moderadamente alta lexical, tal aspecto deve ser particularmente relevado,
4 5a4m 70 Moderadamente baixa uma vez que o indivíduo pode ter um atraso de
5 5a5m 70 Moderadamente baixa linguagem com comprometimento maior nesta área.
6 5a7m 121,4 Moderadamente alta Para isto, a padronização do Teste de Vocabulário por
7 6a 87,1 Média baixa
Imagens Peabody mostrou-se bastante útil, uma vez
8 6a1m 93,6 Média baixa
9 6a2m 108,6 Média alta que foi possível observar, no grupo de crianças com
atraso de linguagem, que aproximadamente 78% da
amostra apresentaram valores abaixo da média,
enquanto o restante apresentou valores superiores,
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
constatando assim que, apesar da amostra não ser
grande, há crianças no grupo com atrasos de lingua-
“Atraso de linguagem é o problema de
gem no nível de emissão e recepção, sendo este teste
desenvolvimento mais comum em pré-escolares e
útil para diferenciar tais aspectos. Observamos, tam-
correlaciona-se com distúrbios posteriores de aprendi-
bém, que mesmo no grupo controle há uma variação
zagem. É identificado via avaliação do número de
nos resultados, no qual algumas crianças apresenta-
palavras faladas e compreendidas, já que aos dois
ram desempenho lexical abaixo da média, e ainda que
anos o vocabulário expressivo mínimo é de 50 pala-
pode haver variações no desenvolvimento lexical
vras com combinações de 2-3 palavras. Metade das
dentre as crianças sem atrasos de linguagem,
crianças com atraso de fala aos 24-30 meses
considerando, assim, a importância do ambiente
apresentará atraso severo entre 3-4 anos. No Brasil
lingüístico em que a criança está inserida.
faltam instrumentos estandardizados para identificar
Quanto a esta variação no grupo controle,
precocemente atraso de linguagem” (Capovilla e
Fletccher e Macwhinney (1997) relatam que “É impor-
Capovilla, 1997).
tante não deixar de considerar o fato de que há consi-
Considerando assim os atrasos de linguagem como
derável variação individual nos padrões do crescimento
um diagnóstico fonoaudiológico que pode acarretar
do vocabulário inicial. Goldfield e Reznick (1990 apud
dificuldades em toda a vida do sujeito, sabemos que a
Fletccher e Macwhinney, 1997) mostraram que nem
aquisição de linguagem acontece como uma continui-
todas as crianças apresentam explosão de vocabu-
dade durante todo o desenvolvimento. “Existe o
lário. Eles examinaram o crescimento do vocabulário
desenvolvimento lexical que é um contínuo na vida do
de 18 crianças, utilizando diários de mães e listas de
sujeito. Adquirimos o vocabulário durante toda a nossa
verificação de palavras para medir a produção, e
vida, pelo menos enquanto estivermos ativos; ouvindo,
descobriram que cinco destas 18 crianças não
falando e interagindo com o meio.
apresentaram velocidade de aquisição com aceleração
Existe o desenvolvimento fonológico adquirido na
súbita. Ao invés disto, estas cinco crianças adquiriram
infância e que acontece por etapas; os primeiros sons
as palavras em velocidade bem mais constante duran-
são guturais, depois os bilabiais, velares etc. Podemos
te todo o segundo ano de vida, e esta velocidade de
dizer que a aquisição completa da fonologia se dá na
aquisição foi marcada somente de forma ocasional por
maioria das crianças por volta de 7-8 anos no mais
altos e baixos no número de palavras novas
tardar.
adquiridas”.
Existe também o desenvolvimento morfo-sintático,
Ainda quanto à aquisição do léxico devemos
que começa por volta dos 18 meses com gramática
considerar que: “As crianças continuam a aprender
rudimentar e que vai aprimorando ao longo dos anos,
uma quantidade enorme de novas palavras durante
até que seu uso se torna automático, por volta dos
muitos anos. Elas também analisam a estrutura interna
cinco anos de idade. A partir daí o indivíduo usa as
das palavras para identificar os radicais e os afixos. E,
regras da sintaxe e morfologia sem necessidade de
desde muito cedo, utilizam o que sabem sobre a
recursos de memória e, dependendo do nível cultural
formação de palavras quando elas próprias cunham
palavras. As palavras também indicam que perspectiva

22
o falante escolheu para apresentar um evento ou um de linguagem, podemos encontrar quadros com
objeto ao destinatário. Aqui, também, as crianças maiores dificuldades para emissão e/ou compreensão,
parecem tornar-se cientes de que as escolhas lexicais e isto se torna fundamental durante a reabilitação
refletem diferentes perspectivas e começam a fazer destes sujeitos. Trata-se de dado que a partir de agora
uso deste conhecimento por volta dos dois anos de pode tornar-se mais acessível aos profissionais da
idade em diante. Mas, aprender que opções se encon- área da comunicação com a padronização do teste
tram disponíveis em uma língua também leva bastante proposto, além de propiciar futuras pesquisas sobre o
tempo. O léxico não é simplesmente uma lista de assunto e ampliar a casuística.
palavras. Ele também engloba um vasto número de
expressões idiomáticas - sintagmas e construções REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
cujos significados não são necessariamente depreen-
didos a partir de suas partes. E ele também inclui 1. Boone, D.R. e Plante, E. - Comunicação Humana e seus
distúrbios. Porto Alegre, Artes Médica, 1994.
grande quantidade de usos figurados. Estes também
2. Capovilla, F.C. e colaboradores - Desenvolvimento lingüístico na
constituem componente importante da aquisição
criança dos dois anos aos seis anos: tradução e estandardização do
lexical. Estudos da aquisição lexical inicial revelaram Peabody Picture Vocabulary Test de Dunn & Dunn, e da Language
bastante sobre como as crianças começam a adquirir Development Survey, de Rescorla. Ciência Cognitiva: Teoria,
um léxico. Mas, até agora, sabemos relativamente Pesquisa e Aplicação, v.1, n.1, p.353-80, 1997.

pouco sobre como as crianças constróem seus 3. Capovilla, F.C. e colaboradores - Desenvolvimento do vocabulário-
receptivo da pré-escola à oitava série: normatização fluminense
primeiros “insights” à medida em que vão acrescen- baseada em aplicação coletiva do Peabody Picture Vocabulary Test.
tando milhares de novas palavras e expressões Ciência Cognitiva: Teoria, Pesquisa e Aplicação, v. 1, n.1, p. 381-
idiomáticas com o passar dos anos” (Fletcher e 440, 1997.
MacWhinney, 1997). 4. Dunn, L.M. e colaboradores. Teste de Vocabulário en Imágenes
Peabody: adaptación hispanoamericana. Circle Pines, American
Desta forma, torna-se claro, pelo estudo prévio Guindance Service, 1986.
realizado, a importância de estudos na área lexical, e o 5. Fletcher, P. e Macwhinney, B. - Compêndio da linguagem da
Teste de Vocabulário por Imagens Peabody vem a ser criança. Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. 340p.
um instrumento útil na complementação da avaliação 6. Jakubovicz, R. - Afasia infantil. Rio de Janeiro, Revinter, 1997.
fonoaudiológica. Uma vez que, dentro dos distúrbios

23
deficiência visual de escolares:
percepções de mães

maria inês rubo de souza nobre(1), edméa rita temporini(2), newton kara josé(3),
rita de cássia ietto montilha(4)

(1) Terapeuta Ocupacional, Mestre em Neurociências pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMO, Docente em Educação
Especial e Reabilitação do Centro de Estudos e Pesquisa em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel Porto” da Faculdade de Ciências Médicas da
UNICAMP
(2) Professora Associada, Livre Docente em Metodologia de Pesquisa em Saúde, Faculdade de Saúde Pública da USP, Assessora de
Pesquisa na Disciplina de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP e da USP
(3) Professor Titular do Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMO e Professor Titular do
Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da USP
(4) Terapeuta Ocupacional, Mestre em Neurociências pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Docente em Educação Especial
e Reabilitação do Centro de Estudos e Pesquisa em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel Porto” da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP

RESUMO:

DEFICIÊNCIA VISUAL DE ESCOLARES: PERCEPÇÕES DE MÃES: Foram investigadas percepções de mães de crianças portadoras de visão
subnormal, inseridas na rede pública de ensino fundamental na cidade de Campinas. Compôs-se uma amostra não probabilística, obtida segundo
triagem oftalmológica na Campanha Olho no Olho/99, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas. O instrumento utilizado para coleta de dados foi um questionário aplicado por entrevista. A amostra foi constituída por desz mães. O
problema visual da criança foi percebido por mães (30,0%), familiares (30,0%) e professores (20,0%). As mães declararam conformação em
relação ao problema visual do filho (50,0%). Entre as mães que mencionaram dificuldades para ingresso de seu filho na escola (40,0%), queixas
do professor em relação à criança foram as mais mencionadas (90,0%). A maior parte das mães reconheceu a importância da sua participação
no processo de escolarização de seu filho (90,0%). O problema visual é primeiramente percebido pelas mães, as quais referem conformação a
esse respeito. Faz-se necessária a interação entre mães e professores para o melhor desenvolvimento entre ensino e aprendizagem.

UNITERMOS:
Deficiência visual - Família - Mães - Educação

ABSTRACT:

THE VISUAL HANDICAP OF SCHOLARS: OBSERVATION OF THEIR MOTHERS: The objective of this work was to investigate the observation of
mothers of children with low vision who attend public schools in the city of Campinas. A non-probabilistic sample was taken from an
ophthalmologic selection during the "Olho no olho/99" campaign in the Hospital das Clínicas of the Faculdade de Ciências Médicas of
Universidade Estadual de Campinas. A form was submitted during an interview. The sample was formed by 10 mothers. The children's visual
handicap was observed by their mothers (30%), by a member of their family (30%) and by their teachers ( 20%). The mothers said that they accept
their child's visual problem (50%). Among those mothers who mentioned that their child had difficulties in being accepted in the schools (40%),
most of them mentioned complaints by the teachers (90%). Most of the mothers recognized the significance of their participation in their child's
scholar process (90%) The visual problem is first observed by the mothers, who accept this fact. It is necessary a greater interaction among
mothers and teachers to improve the development between teaching and learning.

UNITERMS:
Visual handicap - Family - Mothers - Education

Artigo Original

NOBRE, M.I.R.S.; TEMPORINI, E.R.; JOSÉ, N.K.; MONTILHA, R.C.I. - Deficiência visual de escolares: percepções de mães.
Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.55, p.24-7, 2001.

24
Estimativas da OMS referem que a Carga Mundial MÉTODO
de Incapacidade Visual (CMIV) em 1990 atingia 148
milhões de indivíduos, sendo que 3,8% correspondiam O tipo de pesquisa realizado caracteriza-se por
a menores de 15 anos (Thylefors, 1995). Considerando estudo descritivo.
tais proporções, pode-se estimar a prevalência de cem A população alvo foi constituída por mães de
mil deficientes visuais na cidade de Campinas. Os crianças portadoras de visão subnormal, inseridas na
recursos e organizações sociais deste município aten- rede pública do ensino fundamental da cidade de
dem apenas cerca de 6% desse total. Portanto, é Campinas. Compôs-se uma amostra não probabilística,
imperativo detectar o número de crianças deficientes obtida segundo triagem oftalmológica na Campanha
visuais que necessitam de cuidados especializados Olho no Olho/99, no Hospital das Clínicas da Faculda-
para receber atenção adequada. de de Ciências Médicas da UNICAMP. Fizeram parte
Define-se como visão subnormal a condição de da campanha todas as escolas da rede pública de
acuidade visual igual ou menor que 0,3 no melhor olho ensino, segundo informações da Secretaria Estadual
com a melhor correção possível (OMS, 1995). de Educação de Campinas. Os professores dessas
O diagnóstico precoce de qualquer alteração no escolas receberam treinamento para efetuar a triagem
desenvolvimento da criança e a sua rápida habilitação visual envolvendo todas as crianças matriculadas na 1a
possibilitam um melhor prognóstico para a maioria dos série. As crianças que apresentaram baixa visão foram
casos (Gagliardo e Gonçalves, 1996), diminuindo o encaminhadas para avaliação oftalmológica em dia e
impacto de sua gravidade e de suas conseqüências. hora predeterminados pela organização da campanha,
Inúmeras crianças que poderiam ser beneficiadas por acompanhadas da mãe.
um programa de habilitação atingem a idade escolar Foi realizado estudo exploratório, com o objetivo de
com incapacidades já instaladas. Neste caso, a recupe- se elaborar questionário adequado à realidade a ser
ração será difícil e raramente alcançada. investigada. Assim, foram entrevistadas cinco mães de
Os problemas oftalmológicos constituem uma das crianças atendidas no Centro de Estudos e Pesquisa
prioridades que devem ser consideradas num progra- em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel da Silva Porto”
ma de saúde escolar, evidenciando a necessidade da (CEPRE). Estas entrevistas foram gravadas e
realização de programas de triagem visual nas escolas, transcritas. Deste modo, obtiveram-se informações em
a fim de detectar crianças necessitadas de cuidados relação à linguagem e ao repertório das mães, que
especializados que, por meio do programa, recebam possibilitaram elaborar questões adequadas à
tratamento adequado (Temporini, 1982). realidade objeto deste estudo (Piovesan e Temporini,
A identificação de criança deficiente visual, por 1995 ). O questionário foi submetido a teste prévio.
vezes, ocorre apenas quando ela inicia a vida escolar,
quando se observa o aparecimento de dificuldades no RESULTADOS E
processo ensino-aprendizagem. O deficiente visual DISCUSSÃO
necessita atenção específica no decorrer da escolariza-
ção, que requer do professor conhecimento de A amostra foi formada por dez mães, que corres-
aspectos básicos de oftalmologia e da problemática da pondem ao total das crianças identificadas no atendi-
deficiência visual, visando o preparo direcionado à mento oftalmológico da Campanha Olho no Olho/99,
realização dessa tarefa. em Campinas (SP).
Constituíram, assim, objetivos desta pesquisa: A criança portadora de VSN pode permanecer por
1) verificar percepções de mães de crianças muito tempo no lar e na escola sem que sua deficiência
portadoras de visão subnormal inseridas na rede seja detectada. A identificação inicial deve se basear
pública de ensino na cidade de Campinas e na observação do comportamento apresentado pela
2) contribuir para o planejamento de programas de criança, podendo ser feito pelos pais e /ou pelo
prevenção. professor. Neste estudo observa-se que 80,0% dos
casos foram identificados por mães, familiares e
professores. (Tabela 1).

25
TABELA 1 - PESSOA QUE PERCEBEU O PROBLEMA podem e devem desempenhar neste momento difícil.
VISUAL DA CRIANÇA (N =10)
Este profissional deveria ser capaz de orientar e apoiar
Pessoa ƒ %
Familiares 3 30,0
a mãe neste período.
Professor 3 30,0 Segundo Shepherd (1996), na maioria dos casos,
Mãe 2 20,0 os pais da criança deficiente aceitam o seu problema,
Médico oftalmologista 1 10,0
desenvolvem atitude positiva que se transmite à
Médico de outra especialidade 1 10,0
criança, tornando-se fonte importante de estímulo e
motivação.
O universo familiar e suas relações no processo
Especialistas em saúde escolar são unânimes
educacional da criança com deficiência constituem um
quanto à propriedade de o professor observar o estado
campo pouco estudado, mas muito importante para o
de saúde das crianças, salientando a posição
desenvolvimento e aprendizagem da criança.
estratégica deste para desempenhar essa tarefa devido
Embora a situação ideal para uma criança com
ao seu contato diário e prolongado com as crianças
deficiência visual seja a integração imediata à escola,
(Temporini, 1988; Alves e colaboradores, 2000).
nem sempre isso é possível, tanto pela ausência de
Por vezes, tais desvios passam despercebidos por
recursos como por problemas relativos ao desenvolvi-
não existir um trabalho sistematizado de detecção e
mento da própria criança. Há casos em que as crianças
seguimento dos casos, o que requer ação coordenada
não apresentam os comportamentos sociais desejáveis
entre profissionais de saúde, professores e pais.
para uma situação de grupo e/ou habilidades
Convém frisar que, quanto mais cedo for feito o
psicomotoras normalmente exigidas na escola regular.
diagnóstico, mais facilmente serão minimizadas ou
Quando se perguntou às mães sobre dificuldades
evitadas as conseqüências da deficiência visual no
para a aceitação da criança na escola, 40,0% referiram
desenvolvimento emocional, intelectual e social da
existência de dificuldade, preponderando a reclamação
criança.
do professor em relação à criança (Tabela 3).
Quando os familiares recebem a notícia da
deficiência, muitos sentimentos ocorrem: tristeza,
culpa, medo e ansiedade, ressentimento, negação e TABELA 3 – PERCEPÇÃO QUANTO ÀS DIFICULDADES
raiva. Em parte eles são superados, em parte são PARA A ACEITAÇÃO DA CRIANÇA PELA ESCOLA (N=10)
recorrentes ao longo da vida (Herring,1996). Dificuldade f %
No presente estudo, a conformação (50,0%), Ausência 6 60,0
Presença 4 40,0
seguida da tristeza (30,0%) são os sentimentos mais Razões: (n=4)
freqüentes (Tabela 2). Pode-se supor que estas mães - a professora reclamava 3 90,0
já estejam numa fase avançada de aceitação do - a criança chorava muito 1 10,0
problema visual do filho, talvez por já terem participado
de programas de habilitação infantil em serviços
especializados ou, ainda, pode-se pensar em certo O professor de classe comum deve receber
conformismo devido a fatores culturais (“Deus quis orientação básica para atendimento do portador de
assim!”). Este fato merece maiores investigações deficiência visual. Entre estas orientações, por
futuras. exemplo, destaca-se a importância para o aluno de ler
em voz alta, falar o que escreve no quadro-de-giz e
permitir que a criança se aproxime do quadro quando
TABELA 2 - SENTIMENTO DAS MÃES EM RELAÇÃO necessário. Além disso, deve conhecer aspectos
AO PROBLEMA VISUAL DE SEU FILHO (N =10)
básicos do desenvolvimento visual, suas caracterís-
Sentimento ƒ %
Conformação 5 50,0
ticas, o quanto e como funciona o resíduo visual de seu
Tristeza 3 30,0 aluno, se ele precisa ou não de recursos ópticos ou
Revolta 1 10,0 não ópticos e sua funcionalidades. Portanto, a
Raiva 1 10,0
flexibilidade do professor é requisito muito importante
para que este processo tenha êxito.
O atendimento será tanto mais eficiente quanto
Kara-José e colaboradores (1988) recomendam melhor for o nível de integração e cooperação entre
alertar os pediatras quanto ao papel fundamental que

26
aluno, pais, professor de classe comum e professor de pais de crianças portadoras de deficiência visual. Além
sala de recursos, quando necessário ( Brasil, 1995). do mútuo apoio, trocam-se experiências que são muito
No momento presente, a política governamental se significativas e que servem como aprendizado da
volta para um maior fortalecimento dos sistemas maneira de lidar com os filhos (Nobre, 1996).
estaduais e municipais de ensino, favorecendo uma
melhor qualificação deste professor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Em relação ao grau de importância que as mães
atribuem à sua participação no processo de 1. Alves, M.R.; Alves V.L.R.; Temporini, E.R.; Kara-José, N. -
Características e percepções de pais de escolares portadores de
escolarização do filho, observa-se que a maioria
problemas oculares atendidos em projeto comunitário. Rev. Bras.
(90,0%) reconhece esta importância (Tabela 4). Oftalmol., v.59, n.2, p.99-104, 2000.
2. Brasil. Secretaria de Educação Especial - Linhas programáticas
para o atendimento especializado na sala de apoio pedagógico
TABELA 4 – PERCEPÇÃO DO GRAU DE IMPORTÂNCIA específico. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de
REFERENTE À PARTICIPAÇÃO DA MÃE NO PROCESSO Educação Especial. Brasília, MEC/SEESP, 1994. Série Diretrizes, 2.
DE ESCOLARIZAÇÃO DO FILHO (N=10) 3. Brasil. Secretaria de Educação Especial. Subsídios para
Grau de importância ƒ % organização e funcionamento de serviços de educação especial:
Muito importante 9 90,0 Àrea de Deficiência Visual. Ministério da Educação e do Desporto.
Mais ou menos importante 1 10,0 Secretaria de Educação Especial. Brasília, MEC/SEESP, 1995. Série
Pouco importante - - Diretrizes, 8.
Nada importante - - 4. Di Nucci, E.P. - Interesses e dificuldades dos pais na alfabetização
dos filhos. Psicologia Escolar e Educacional, v.1, n.2- 3, p.23-8,
1997.
5. Gagliardo, H.G.R.G. e Gonçalves, V.M.G. - Conduta visual:
Teoricamente não se contesta que o início do pro- primórdios da comunicação. Arq. Neuropsiquiatr., v.54, supl. II,
cesso de alfabetização é, para a criança, “um marco 1996.
em seu processo de escolarização”, a partir das 6. Herring, J. - Adjusting to your child’s visual impairment. In:
atividades cotidianas, do uso de materiais escritos, Holbrook, M.C. (Org.) - Children with visual impairments: a
parents’ guide. New York, Woodbine House, 1996. (The special
figurativos, televisão e outros impressos do dia a dia da
needs collection).
criança disponíveis na casa; isto só acontecerá se os
7. Kara-José, N.; Carvalho, K.M.M.; Pereira, V.L.; Venturini, N.H.B.;
pais (eventualmente, os demais membros da família) Gasparetto, M.E.F.R.; Gushiken, M.T. - Estudo retrospectivo dos 140
tiverem a convicção de que tais interações efetivamen- casos atendidos na clínica de visão subnormal do Hospital das
te contribuem para o processo de escolarização do seu Clínicas da UNICAMP. Arq. Bras. Oftalmol., v.5, n.12, p.65-9, 1988.

filho. Não basta identificar tais situações, mas perceber 8. Nobre, M.I.R.S. - Grupo de mães: confecção de materiais. Arq.
Bras. Oftalmol., v.59, n.4, p.352, 1996.
que a responsabilidade de promovê-las é também da
9. Organizacion Mundial De La Salud - Prevention de la ceguera.
família (Nucci, 1997). Ginebra, OMS, 1973. 102p. (Informes Técnicos, 518).
As mães muitas vezes participam deste processo 10. Piovesan, A. e Temporini, E.R. - Pesquisa exploratória:
sem informações, agindo por instinto e usando procedimento metodológico para o estudo de fatores humanos no
experiências anteriores de outros filhos não portadores campo da saúde pública. Rev. Saúde Públ., v.29, n.4, p.318-25,
1995.
de deficiência visual já em processo de escolarização.
11. Shepherd, R.B. - Fisioterapia em pediatria. São Paulo, Santos.
O professor pode e deve orientá-las sobre as diferentes 1996. 421p.
possibilidades que os pais têm de auxiliar no processo. 12. Temporini, E.R. - Percepção de professores do Sistema de
A participação da família deve ser entendida como Ensino do Estado de São Paulo sobre seu preparo em saúde do
extremamente necessária, até como direito dos pais de escolar. Rev. Saúde Públ., v.22, n.5, p.411-21, 1988.
serem informados sobre a programação desenvolvida 13. Temporini, E.R. - Aspectos do plano de oftalmologia sanitária
escolar do Estado de São Paulo. Rev. Saúde Públ., v.16, p.243-60,
com seus filhos e sobre a melhor forma de ajudá-los
1982.
em casa (Brasil, 1994).
14. Thylefors, B.; Négrel, A.D.; Pararajasegaram, R.; Dadzie,K.Y. -
Estudos realizados no CEPRE evidenciam a Global data on blindness. Bulletin WHO, n.73, p.115-21, 1995.
importância de se promover reuniões com grupos de

27
por uma escola aberta às
necessidades dos alunos

lúcia de araújo ramos martins

Professora Adjunta do Departamento de Educação, Docente na área da Educação Especial, no Curso de Pedagogia e na
Pós-Graduação em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

RESUMO:

POR UMA ESCOLA ABERTA ÀS NECESSIDADES DOS ALUNOS: A inclusão escolar de educandos com necessidades especiais é um
fenômeno que ganha força nos dias atuais. Apesar de já ser uma realidade em alguns países e de expressar um processo de
desenvolvimento educacional, ainda enfrenta muitas barreiras em nosso país, principalmente em decorrência da desinformação e do
preconceito. Tais barreiras somente serão vencidas com persistência e participação de toda a sociedade na tarefa de realizar a inclusão
social desses indivíduos. Nesse contexto, as instituições de ensino superior têm uma grande parcela de responsabilidade. Foi a partir da
compreensão dessa responsabilidade, que surgiu, no âmbito do Departamento de Educação da UFRN, a pesquisa-ação ora relatada,
desenvolvida nos anos de 1998 e 1999, numa escola municipal da cidade de Natal/RN (Brasil). Através dessa investigação, procurou-se
conhecer, com mais profundidade, como vem se processando a inclusão de educandos com necessidades especiais, assim como se
buscou desencadear ações concretas voltadas para apoiar o processo inclusivo empreendido na instituição escolar.

UNITERMOS:
Necessidade educativas especiais - Inclusão escolar - Educação - Educação especial

ABSTRACT:

FOR AN OPEN SCHOOL TO THE STUDENTS WITH SPECIAL NEEDS: The inclusion of students with special needs is a phenomenon that
wins force in the current days. In spite of already being a reality in some countries and to express a process of educational development,
it still faces many barriers in our country, mainly due to the lack of information and prejudice. Such barriers will only be dropped out
though persistence and the participation of the whole society in the task of accomplishing those individuals' social inclusion. In that
context, the higher education institutions have a great portion of responsibility. Starting from the understanding of this responsibility that
appeared in the Department of Education of UFRN this research-action here reported. The study was developed from the year of 1998 to
1999 in a local school of the city of Natal/RN (Brazil). Through that investigation, we tried to know more deeply how the students inclusion
with special needs in regular education has been developed, as well as to unchain concrete actions to support the inclusive process
already undertaken in the school institution.

UNITERMS:
Special educational needs - School inclusion - Education - Special education

Artigo Original

MARTINS, L.A.R. – Por uma escola aberta às necessidades do aluno. Temas sobre Desenvolvimento, v.10, n.55, p.28-34,
2001.

28
Como conseqüência das representações sobre as Pouco a pouco, outro paradigma começa a ganhar
pessoas que apresentavam deficiências, sempre identifi- força, principalmente a partir da década de 90: o da
cadas como “doentes” e “incapazes”, a sua educação Inclusão, em conseqüência das insatisfações existen-
realizou-se tradicionalmente de forma distinta daquela tes em relação às modalidades de atendimento em
dirigida aos alunos considerados normais. A elas foram Educação Especial, que, para muitos, contribuíam para
reservados espaços segregados, onde suas interações a segregação e estigmatização dos educandos, assim
sociais se tornavam restritas e a sua aprendizagem como não davam respostas adequadas às suas
bastante prejudicada (Monteiro, 1996). necessidades educacionais e sociais. O modelo da
A primeira conseqüência desta situação está relacio- inclusão escolar, que tem suas bases em noções
nada às atitudes assumidas frente a esta diferença, que, sócio-construtivistas, defende - em relação ao aluno
segundo Little (1987), geraram a criação de modelos com necessidades especiais - o “seu direito e a sua
educacionais diferentes para crianças consideradas necessidade de participar, de ser considerado como
normais e para crianças consideradas “excepcionais”, os um membro legítimo e ativo no interior da comunida-
quais não atendiam às suas necessidades. de”. Isto vem justificar “as classes inclusivas, onde as
Em outras palavras, dois sistemas foram gerados: o relações sociais são compreendidas como
regular e o especial, obedecendo cada um a pressupostos catalisadoras da aprendizagem”, nas quais é permitido
políticos educacionais diferentes, além de envolver pessoal ao aluno se situar “em um contexto de aprendizagem
com características de formação diversas (Van Steelandt, mais significativa e motivante, suscitando mais esforço
1991). Aos poucos, foi sendo reconhecida a necessidade de colaboração que a segregação tradicional
de uma fusão dos dois sistemas num único, capaz de vivenciada por esses alunos” (Saint-Laurent, 1997).
atender a todos, sem distinção. Hoje, já se começa a Este novo paradigma começa a ser disseminado
admitir que não é a criança que deve se adaptar à escola, mais especificamente a partir da Assembléia Mundial
mas, sim, a escola é que deve se adaptar à criança realizada em junho de 1994, na cidade de Salamanca,
(Martins, 1997, 1999). Espanha, sob os auspícios da UNESCO, quando
A partir da segunda metade do século XX, representantes de 92 países e de 25 organizações
especialmente a partir da década de 70, o portador de internacionais assumiram o compromisso de procurar
deficiência começa a ter acesso à classe regular - se a educar juntos a todos os alunos, sem restrições face
essa se adaptasse - sem causar qualquer transtorno. às suas diversidades.
Assim, a sua permanência nesta modalidade educacional Alguns destes países já desenvolviam, há algum
não acarretava mudanças no currículo nem na maneira de tempo, um trabalho pioneiro de educação inclusiva,
condução do trabalho pedagógico pelos docentes. Caso entre os quais estão o Canadá, os Estados Unidos, a
ele não se adaptasse ao ritmo da classe, seria encaminha- Espanha e a Itália. Segundo destaca Sassaki (1997), “a
do a outras modalidades especializadas, como por exem- experiência em muitos países demonstra que a integra-
plo à classe especial ou à escola especializada. Nesta fase, ção das crianças e jovens com necessidades especiais
a Educação Especial era regida pelo paradigma da é melhor atingida dentro de escolas inclusivas que
Integração. atendem todas as crianças na comunidade.(...)
Surgem, posteriormente, reações da parte de Enquanto as escolas inclusivas oferecem ambientes
integrantes de vários segmentos sociais, os quais aceitam favoráveis para se conseguirem oportunidades iguais e
e defendem que cada pessoa tem “o direito de ser diferente participação plena, seu sucesso exige esforço
e de ter necessidades especiais, que a sociedade deve conjunto, não somente de professores e funcionários
reconhecer e atender” (Van Steenlandt, 1991), inclusive na da escola, como também de alunos, pais, famílias e
escola. Começa-se a questionar a necessidade de adaptar voluntários”.
pessoas a modelos educacionais preestabelecidos, Necessário se fazia, a partir daquele momento, que
reconhecendo-se a importância de adaptar os ambientes a escola começasse a se estruturar e que se abrisse
onde estes indivíduos se desenvolvem, os meios, os para atender tanto às crianças tidas como normais -
programas e as condições de vida às suas necessidades, que se encontravam excluídas - como as que
para que fossem capazes de usufruir dos direitos comuns apresentavam necessidades especiais.
aos demais cidadãos (Monereo apud Van Steelandt, 1991). Para Stainback e Stainback (1997; 1999), o trabalho
Em outras palavras, tudo isto implicava na pessoa ser com estes educandos em classes inclusivas origina-se na
aceita e respeitada como qualquer cidadão, com as suas filosofia segundo a qual todos podem aprender e vivenciar
diferenças (Amaral, 1994; Jimenez, 1997). proveitosamente a escola regular e a sua comunidade.

29
Uma escola inclusiva é aquela que educa todos em classes ção de toda a sociedade na tarefa de realizar a
regulares, onde todos têm oportunidades educacionais inclusão destes indivíduos. Neste contexto, as
adequadas, onde possuem desafios a vencer de maneira instituições de ensino superior têm uma grande parcela
coerente com as suas condições, onde recebem apoio de responsabilidade.
juntamente com os seus professores, onde são aceitos e
ajudados pelos demais membros da escola. INCLUSÃO: PESQUISA E AÇÃO
A inclusão questiona as políticas e a organização da NUMA ESCOLA REGULAR
educação especial e regular, bem como tem por
objetivo não deixar ninguém fora do ensino regular, Mesmo com todas as dificuldades, o movimento em
desde o começo (Mantoan, 1997). A escola inclusiva prol da inclusão escolar de educandos com necessida-
procura valorizar a diversidade existente no alunado - des especiais é um fenômeno que ganha força nos
inerente à comunidade humana - ao mesmo tempo em dias atuais. É uma realidade que expressa um proces-
que busca repensar categorias, representações e so em desenvolvimento, mas que - como já detalhamos
determinados rótulos que enfatizam os déficits, em - exige a participação efetiva de todos.
detrimento das potencialidades dos educandos A Lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases
(Baumel, 1998). da educação brasileira, reforça, no art. 58 e 59, a im-
Os benefícios advindos dessa nova forma de ver e portância do atendimento educacional a pessoas com
perceber a educação repercutem em todos os alunos, necessidades especiais, ministrados preferencialmente
não apenas naqueles que apresentam necessidades em escolas regulares, estabelecendo que sejam cria-
especiais. A diversidade em classe regular é dos serviços de apoio especializado e assegurados
instrumento de fortalecimento para os seus integrantes currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e
e de maior aprendizagem para seus membros. A organizações específicas para atender às peculiarida-
inclusão é vista, pois, como benéfica para todos os des dos alunos. Destaca, ainda, a necessidade de
alunos da escola, ou seja, como um instrumento de capacitar docentes do ensino regular para o atendi-
transformação positiva para os alunos em geral - não mento escolar destes educandos em classes regulares.
só para os que apresentam necessidades especiais -, No entanto, embora ofereça o respaldo necessário
pois favorece a construção de novos conhecimentos e ao trabalho inclusivo, a legislação - por si só - não
estratégias, bem como oferece uma oportunidade opera mudanças. A inclusão estabelece, para o
ímpar de participar na resolução de alguns problemas sistema educacional, vários desafios: a conscientiza-
que comumente envolvem estas pessoas no cotidiano, ção da comunidade escolar e da sociedade em geral
tornando-os mais receptivos e sensíveis às questões a sobre a nova maneira de entender e educar estes
eles relacionadas. educandos; o investimento sério na preparação
Quando se advoga a inclusão destes alunos na continuada da equipe escolar (docentes, técnicos,
escola regular, além dos aspectos legais que a respal- administradores e funcionários); a preparação de
dam, é fundamental analisar que esta escola é um pessoal especializado na área, em nível de Graduação
direito de todos os cidadãos. Fuenteteja (1995) vê a e Pós-graduação (lato sensu), para prestar apoio aos
participação efetiva dos alunos com necessidades professores generalistas; a formação, em nível de
especiais na classe regular como uma oportunidade de Mestrado e Doutorado (stricto sensu), de professores
favorecer a integração ao bairro e aos demais ambien- formadores de professores e de outros profissionais
tes onde a criança vive. A inclusão escolar é, portanto, para o atendimento educacional e para o desenvolvi-
percebida como um ponto chave de todo o processo de mento de pesquisas que possam subsidiar a ação
inclusão social de pessoas com necessidades educativa empreendida; a estruturação de métodos,
especiais. técnicas e recursos de ensino adequados a este
Esta inclusão escolar, contudo, vem enfrentando alunado; a adaptação de currículos para atender às
inúmeras barreiras. Os mecanismos segregacionistas necessidades e especificidades dos alunos em classes
presentes nas práticas sociais assim como as atitudes regulares; o envolvimento de pais e pessoas da
preconceituosas - resultantes, muitas vezes, do desco- comunidade ampla neste processo (Martins, 1999).
nhecimento diante destas pessoas - que foram e são Foi, portanto, a partir da preocupação com a
ainda socialmente transmitidas e incentivadas, são questão da inclusão escolar de educandos com
difíceis de ser modificadas. As barreiras, porém, necessidades especiais que um dos projetos
somente serão vencidas com persistência e participa-

30
desenvolvidos pelos profissionais e estudantes1 que educação atuantes na escola, sobre a educação
integram a Base de Estudos e Pesquisas sobre inclusiva de pessoas com necessidades especiais.
Educação de Pessoas com Necessidades Especiais, A metodologia utilizada no projeto envolveu,
do Programa de Pós-Graduação em Educação da basicamente: reuniões semanais de estudo para
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), fundamentação teórica da equipe responsável pelo
durante os anos de 1998 e 1999, objetivou desenca- projeto; reuniões quinzenais da equipe de pesquisado-
dear ações voltadas para a investigação sobre a res e bolsistas de Iniciação Científica para discussão
questão da inclusão escolar de portadores de de questões relativas ao processo inclusivo que se
deficiência, em uma escola municipal em Natal, bem buscava empreender na escola e para acompanha-
como para apoiar sistematicamente o processo mento técnico das ações empreendidas; reuniões
inclusivo empreendido na instituição. periódicas com docentes e técnicos, na escola
Vale a pena salientarmos que todas as escolas escolhida, para discussão, orientação e
municipais desta capital, por orientação da Secretaria acompanhamento do trabalho desenvolvido;
de Educação, estão buscando trabalhar na perspectiva observação de atividades realizadas em sala de aula e
inclusivista, embora muito ainda necessite ser extra classe, envolvendo tanto as crianças com
empreendido no sentido de aprimorar este processo. necessidades educativas especiais como os demais
A intenção deste grupo era, portanto, além de alunos; assessoramento sistemático a professores,
investigar a questão da inclusão, assessorar a equipe técnicos e familiares de educandos com necessidades
da escola, fazendo com que fossem mais respeitados especiais; visitas domiciliares a famílias de alunos com
os direitos destes alunos como cidadãos, entre os necessidades especiais; realização de palestras
quais o de receber educação em uma escola de quinzenais, na escola, sobre temas solicitados pelos
qualidade, que fosse comum a todos os demais docentes e técnicos, contando com a participação de
educandos de sua faixa etária. Para tanto, desenvol- profissionais de diversas áreas, atuantes na UFRN e
veu-se uma pesquisa-ação, na qual pesquisadores e na Secretaria de Educação; realização de um trabalho
pesquisados foram envolvidos num mesmo trabalho de pesquisa pelos professores sobre temas relaciona-
(Santos, 1999). dos à educação de pessoas com necessidades
Conforme atesta Thiollent (1998), este tipo de especiais, culminando com um dia especial quando os
investigação permite, entre outros aspectos: a coleta, resultados foram compartilhados, numa grande feira
em movimento, de informação a respeito de situações cultural, com todas as pessoas da comunidade escolar
e de atores; a concretização de conhecimentos teóri- (dirigentes, técnicos, alunos, pais, funcionários).
cos; a comparação de idéias e conceitos sobre deter-
minado tema da parte de vários interlocutores; o ALGUMAS CONSTATAÇÕES
surgimento de regras práticas para resolver
determinadas situações. A investigação desenvolvida nos permitiu uma
Foram propostos e perseguidos os seguintes imersão mais aprofundada na realidade escolar, na
objetivos, no decorrer dos dois anos de desenvolvi- qual se buscou refletir sobre como se desenvolve a
mento do projeto: empreender um conjunto de ações, inclusão de alunos que apresentam necessidades
em âmbito institucional – Universidade / Secretaria – e especiais numa escola municipal, bem como empre-
em âmbito escolar, que assegurassem a inclusão ender uma série de ações com vistas a apoiar e
escolar de educandos com necessidades especiais à aprimorar esse processo na escola escolhida.
escola regular, com qualidade; investigar as dificulda- Percebeu-se, depois de algum tempo de
des enfrentadas pelos docentes, no cotidiano escolar, observação sistemática, de contatos grupais e
na classe inclusiva; acompanhar, de forma permanen- pessoais com técnicos, docentes e discentes e,
te, os professores, os técnicos e os alunos portadores principalmente, de ouvir as professoras de classes
de deficiência que se encontram em classes regulares; regulares, já que muitas delas – embora cientes de que
realizar preparação, em serviço, dos profissionais de teriam que aceitar os alunos com necessidades
especiais em suas classes regulares, por obediência à
1
Participaram deste projeto: os Professores Doutores Lúcia de Araújo R. Martins legislação vigente e às determinações emanadas da
(Coordenadora), Gláucia N. Luz Pires e José Pires (Departamento de Educação / UFRN);
as Professoras Especializadas Benedita Cruz Macedo, Ana Leite Cavalcanti e Ana Delma Secretaria Municipal de Educação de Natal –
Castro (SEPA/ UFRN); as Professoras Mestres Maria Antonieta Brito (SME) e Maria José
Belém Cordeiro (SECD/RN), além das alunas bolsistas de Iniciação Científica Kelly apresentavam sérias resistências para lidar com essas
Sarmento, Norma Suely Chacon e Vanessa Gosson Gadêlha de Freitas (Departamento de
Educação / UFRN). crianças, por considerar que já possuíam um grande

31
número de alunos que apresentavam dificuldades de dos alunos, para refletir junto com os docentes,
aprendizagem e que a presença destes alunos - que respeitando o seu saber e desafiando-os a buscar
portavam déficits mais acentuados - acarretaria um caminhos para que sejam ofertadas oportunidades
encargo a mais, para o qual não se achavam ainda educacionais adequadas, flexíveis e ajustadas às
preparadas. necessidades e habilidades de todas as crianças.
No entanto, algumas professoras, que tinham crianças Outro aspecto destacado pelos docentes diz
portadoras de deficiência em suas classes, já vinham respeito à necessidade de material específico para
buscando aprender mais sobre a questão, participando de trabalhar com alguns educandos que apresentam
Encontros e Seminários promovidos pela Secretaria de necessidades especiais. No caso, por exemplo, de uma
Educação e outras instituições locais, tendo uma delas criança que apresentava múltiplas deficiências, ou seja,
retornado à UFRN e se matriculado em disciplinas do deficiência visual (visão subnormal) associada a
Núcleo Temático de Educação Especial, no Curso de déficits mental e auditivo, sentiu-se a importância da
Pedagogia, procurando respostas para as suas dúvidas e classe ser dotada de quadro branco, pincel piloto
ansiedades frente a este alunado. Na realidade, estas específico, livros com tipos ampliados, entre outros
professoras demonstravam que a sua intenção não era a materiais, então, inexistentes na escola. A professora
de ter estes alunos inseridos apenas fisicamente em suas necessitava também de maior orientação sobre como
classes, mas a de aprender mais sobre como trabalhar atuar frente à múltipla deficiência da aluna, sendo
com eles e como facilitar a aprendizagem de todos aqueles realizado um trabalho visando estimular a utilização de
que estavam sob a sua responsabilidade. recursos comunicativos bem como a melhorar a
De maneira geral, porém, os docentes que recebiam interação social com os colegas.
alunos com necessidades especiais careciam de No tocante aos alunos que apresentam deficiências
acompanhamento técnico mais efetivo e sistemático, físicas, a necessidade maior se prendia à acessibili-
de ações que possibilitassem avaliação continuada e dade e a ambientes adaptados para atender as suas
reflexiva de sua prática. Isto se processava, igualmen- necessidades básicas (de locomoção e fisiológicas).
te, com outras professoras que, mesmo ainda não se Foi observado, inclusive, que a escola dispunha de um
deparando com a presença destes educandos em suas local destinado a ser implantado um elevador para
classes, poderiam recebê-los em outros períodos facilitar o deslocamento dos deficientes físicos para os
letivos. andares superiores (local que, inclusive, está marcado
No entanto, pelo fato de a equipe da escola não ter com uma placa, contendo o símbolo internacional de
em seu quadro de profissionais elementos técnicos que acesso e uma grade de proteção); porém, este
assumissem qualquer responsabilidade de orientação equipamento ficou apenas na intenção inicial, nunca foi
neste processo - embora possuíssem supervisores, instalado.
orientadores, psicólogos e, até mesmo, psicopedago- De igual modo, constatou-se a existência de um
gos -, os docentes dependiam, para resolver questões banheiro adaptado para deficientes físicos na escola,
pertinentes à inclusão, na maioria das vezes, dos desde a sua construção, sem que os docentes e alunos
profissionais especializados sediados em nível central tivessem conhecimento dele. Este ambiente era
na Secretaria Municipal de Educação (SME). Embora desconhecido, inclusive, por uma aluna paraplégica,
bem preparados para a sua função, são em número que se desloca em cadeira de rodas, a qual tinha que
reduzido e, tendo que supervisionar um grande número utilizar, com sérias dificuldades, as instalações comuns
de escolas, não dispõem de condições para desenvol- da escola, enquanto que o banheiro adaptado era
ver um trabalho de orientação mais permanente em usado como depósito de material, por desconheci-
cada instituição escolar, onde fossem - em conjunto - mento ou descaso dos dirigentes da escola.
debatidos e resolvidos problemas, sugeridos métodos, A rotatividade dos elementos que compõem a
técnicas e atividades facilitadoras da inclusão. direção da escola (por se constituir num cargo de
Assim, embora empunhando a bandeira da inclusão confiança), bem como da equipe técnica e docente, é
escolar, a SME ainda trabalha, de modo geral, com também um dos fatores que prejudica a continuidade
equipes diversas, tanto em nível central como em nível de ações nesta escola, como na maioria das
escolar, reforçando a existência de dois modelos instituições de cunho governamental. No decorrer
educacionais paralelos - o regular e o especial. O ideal destes dois anos de desenvolvimento do projeto, vários
seria que todas as equipes da Secretaria e das escolas profissionais foram transferidos para outras escolas e
estivessem preparadas para atuar frente à diversidade outros ingressaram na que trabalhávamos, tendo-se

32
que recomeçar o processo de orientação em vários oportunidade para confrontar e refletir sobre
casos. Somente a partir de janeiro de 2000 - quando questões inerentes à prática do professor, com base
este projeto já estava em fase de elaboração de em experiências diversificadas vivenciadas em outras
relatório - é que a escola participou do processo de instituições, oportunizando um leque de alternativas
eleição direta para dirigentes escolares, o que trará, pedagógicas com todos os educandos;
possivelmente, uma estabilidade na liderança da maior conhecimento dos vínculos existentes entre
escola e possibilidade de maior continuidade de ações. o aluno com necessidades especiais e sua família, as
Embora tendo uma equipe privilegiada, a escola dificuldades que permeiam estas relações e as
investigada, igualmente, investia pouco nas famílias possibilidades de envolvimento dos familiares no
dos seus alunos, deixando de realizar uma parceria processo inclusivo;
que traria benefícios para todos, pois os pais e fami- maior conhecimento e reorganização do espaço
liares, mais do que ninguém, conhecem as potenciali- físico da escola, em benefício da inclusão escolar e
dades e dificuldades das suas crianças e, quando bem social dos alunos;
trabalhados, podem ser excelentes aliados dos profes- maior dotação de material didático específico
sores, com vistas à inclusão escolar e social dos filhos. necessário ao atendimento de alguns tipos de
Observou-se, também, a necessidade de se investir educandos, em classes inclusivas;
mais nos alunos considerados normais, que poderiam estímulo ao respeito e à apreciação pelos
ser excelentes colaboradores no processo inclusivo, no diversos modos de ser e viver das pessoas;
que diz respeito às áreas social, lingüística, cognitiva e quebra de barreiras atitudinais nos alunos em
acadêmica. Embora compartilhassem dos mesmos geral, oportunizando a construção de espaços
ambientes físicos, necessitavam ser trabalhados, com socializadores, imprescindíveis à inclusão escolar e
vistas a desenvolver maior interação com seus pares social dos educandos que apresentam necessidades
com necessidades especiais, e, também, a ter atitudes especiais;
de apoio e respeito às diferenças de cada um. valorização dos alunos pertencentes à comuni-
dade escolar, entre os quais os que apresentam
RESULTADOS OBSERVADOS necessidades especiais que, por meio da mediação
APÓS A AÇÃO DESENVOLVIDA entre eles e os professores bem como entre si
mesmos, conseguiram ser vistos como pessoas ativas,
De forma geral, as atividades empreendidas, com direito a participação e à voz.
sistematicamente, na escola escolhida, no decorrer de
1998-1999, possibilitaram: CONSIDERAÇÕES FINAIS
maior conhecimento da realidade existente na
escola, no que tange à inclusão escolar de crianças Incluir uma criança na escola regular não significa,
com necessidades especiais; apenas, matriculá-la e colocar mais uma carteira na
abertura de um espaço canalizador das angústias sala de aula comum. Observa-se, a partir da investiga-
e dificuldades sentidas pelos docentes, a fim de se ção realizada, que, para que a escola se torne inclusiva
discutirem e se buscarem alternativas de solução para - ou seja, aquele tipo de instituição que, além de aberta
as questões evidenciadas no cotidiano escolar; para trabalhar com todos os alunos, incentiva a
mudanças atitudinais, na maioria das professoras aprendizagem e a participação ativa de todos -,
e técnicos da escola, que desencadearam um “olhar necessário se faz um investimento efetivo, sistemático,
diferenciado” para o aluno portador de deficiência, o envolvendo a comunidade escolar como um todo:
qual deixou de ser percebido como “o doente”, para ser professores, técnicos, dirigentes, funcionários, alunos,
olhado como um ser capaz de aprender; pais e, até mesmo, mudança significativa na sua
maior aprofundamento dos conhecimentos própria proposta educacional.
teóricos e práticos necessários ao professor e à equipe Só com uma ação ampla e contínua de formação
técnica, para atuar frente à diversidade do alunado em serviço dos profissionais da educação, na qual
existente na escola, envolvendo as formas de aprender sejam revistos modelos, concepções e formas de
da criança e de propor tarefas adaptadas às suas atuação pedagógica, bem como sejam derrubadas
possibilidades de aprendizagem; barreiras atitudinais ainda existentes, pode-se oferecer
um ensino de maior qualidade, que responda de forma
mais adequada às necessidades de seus alunos,

33
independentemente das suas condições individuais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Para tanto, há necessidade de se investir também em
recursos que possam apoiar a aprendizagem dos 1. Amaral, L.A. - Pensar a diferença/deficiência. Brasília,
alunos, sejam eles materiais, sejam eles naturais: os Coordenadoria Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência, 1994.
próprios colegas - maior fonte de desafio e de 2. Baumel, R.C. e Semeghini, I. (Org). - Integrar/Incluir: desafio
para a escola atual. São Paulo, FEUSP, 1998.
contribuição para a aprendizagem.
3. Fonseca, V. - Educação Especial. Porto Alegre, Artes Médicas,
É importante, portanto, sensibilizar e preparar os
1987.
alunos, os pais (em geral) e os demais recursos
4. Fuentetaja, A.L. - Integracion escolar del niño com síndrome de
humanos existentes na instituição para saber conviver Down. In: El síndrome hoy: perspectivas para el futuro. Madri,
com as diferenças do alunado (que envolvem caracte- Associación Síndrome de Down de Madrid. 1995. p.77-98.
rísticas específicas, sejam elas físicas, intelectuais, 5. Guidetti, M. e Tourrette, C. - Handicaps et développement
sensoriais, de raça, sexo, idade, religião, entre outras), psycologique de l’ enfant. Paris, Armand Colin, 1996.

bem como para que se tornem elementos ativos e 6. Jiménez, R.B. - Educação especial e reforma educativa. In:
Bautista, R. - Necessidades educativas especiais. Lisboa,
participantes do processo inclusivo. Dinalivros, 1997. p.9- 51.
Urge, também, em alguns casos, entre outros 7. Little, D.M. - Um crime contre l'énfance: l’uniformité des
aspectos, o oferecimento de: um currículo flexível, programmes scolaires et de leur enseignement ou un nouveau regard
adaptado às condições dos educandos; a derrubada de sur l’intégration á la majorité. In: Éducation / Intégration. Monteal,
L’ Institut G. Allan Roeher, 1987.
barreiras físicas existentes na escola; o aproveitamento
8. López, J.F.G. - Nuevas perspectivas en la educación e
adequado de ambientes previamente planejados para Integración de los niños com síndrome de Down. Barcelona,
facilitar a convivência dos portadores de deficiência no Paidós, 1995.
ambiente escolar. 9. Mantoan, M.T.E. (Org.) - A integração de pessoas com
Enfim, educar de maneira inclusiva pessoas com deficiências: contribuições para uma reflexão sobre o tema. São
Paulo, Memnon, 1997.
necessidades especiais requer um esforço que extra-
10. Martins, L.A.R. - A escola regular frente à integração do portador
pola os limites da escola e atinge a sociedade de uma
de deficiência. In: Martins, L.A.R. (Org.) - Educação Especial. Natal,
forma mais ampla. Neste contexto, as instituições de EDUFRN, 1997.
ensino superior se inserem, pois a complexidade do 11. Martins, M.T.É. - Integração escolar do portador da síndrome de
trabalho requer: constantes pesquisas que visem a Down: um estudo sobre a percepção dos educadores. Revista
avaliação dos programas educacionais e das necessi- Brasileira de Educação Especial, n.5, p.77-86, 1999.

dades que os portadores de deficiência e outros 12. Martins, M.T.É. - A diferença/ deficiência sob uma ótica histórica.
Educação em Questão, v 8-9, n.1-2, p.126-41, 1998.
segmentos normalmente excluídos apresentam na
13. Monteiro, M. - Crianças e linguagem num contexto especial: um
escola; ações de extensão que atinjam os docentes estudo etnográfico. In: Kramer, S. e Leite, M.I. - Infância: fios e
atuantes no sistema governamental, relativamente à desafios da pesquisa. Campinas, Papirus, 1996. p.149 -79.
sua formação continuada; mudanças substanciais nos 14. Saint-Laurent, L. - A educação de alunos com necessidades
currículos dos cursos de graduação, a fim de preparar especiais. In: Mantoan, M.T.E (Org.) - A integração de pessoas
com deficiências: contribuições para uma reflexão sobre o tema.
os profissionais para atuar adequadamente frente às São Paulo, Memnon, 1997.
diferenças individuais destas pessoas na escola e na 15. Sassaki, R.K. - Inclusão: construindo uma sociedade para
comunidade. todos. Rio de Janeiro, WVA, 1997.
Enseja-se, a partir da realização deste projeto, uma 16. Stainback, W. e Stainback, S. - Un seul système, un seul but:
continuidade de ações de ensino, pesquisa e extensão, fusion entre l’éducation spéciale et l’éducation régulière. In: Forest,
M. - Éducation/ Integration. Ontário, L’Institut G. Allan Roeher,
na UFRN, voltadas para a temática da inclusão educa-
1987. p.37-42.
cional de pessoas com necessidades especiais em
17. Stainback, W. e Stainback, S. - Inclusão: um guia para
escolas governamentais, bem como em outras institui- educadores. Porto Alegre, Artmed, 1999.
ções que se proponham a atuar nesta perspectiva. 18. Thiollent, M. - Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo,
Cortez, 1998. 112p.
19. Van Steelandt, D. - La integración de niños discapacitados a
la educación comum. Santiago, Oficina Regional de Educación de
la UNESCO para América Latina y el Caribe (OREALC), 1991.

34
sexualidade na deficiência mental:
alguns aspectos para orientação de pais

solange leme ferreira

Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina

RESUMO:

SEXUALIDADE NA DEFICIÊNCIA MENTAL: ALGUNS ASPECTOS PARA ORIENTAÇÃO DE PAIS: O presente artigo pretende fazer alguns
apontamentos à reflexão que resulte na construção e estabelecimento de uma postura pessoal dos pais de pessoas com deficiência mental frente à
questão da sexualidade para que, assim, possam realizar, na prática, de maneira sensível e atenta, a educação sexual de seus filhos, e estes
possam ter suas indagações respondidas e o seu prazer encontrado.

UNITERMOS:
Deficiência mental - Sexualidade - Família

ABSTRACT:

SEXUALITY IN THE MENTALLY RETARDED: SOME ASPECTS FOR THE PARENTS’ ORIENTATION: This paper is intended to rise some
questions for reflection resulting in the construction and establishment of a personal posture of parents of mentally retarded people in
face of her/his sexuality, so that they can carry out in sensible and attentive practice the sexual education of their children, who can have
their own questions well answered and their pleasure fully met.

UNITERMS:
Mental retardation - Sexuality - Family

Comunicação

FERREIRA, S.L. – Sexualidade na deficiência mental: alguns aspectos para orientação de pais. Temas sobre
Desenvolvimento, v.10, n.55, p.35-9, 2001.

35
Sexualidade! Palavra tão simples, porém com um signi- o presente artigo pretende fazer alguns apontamentos à
ficado capaz de suscitar reações nem sempre associadas reflexão que resulte na construção e estabelecimento de
ao prazer, mas ao constrangimento, dúvidas ou até mesmo uma postura pessoal destes pais frente à questão para
omissão. que, assim, possam realizar, na prática, de maneira
Segundo Glat (1992), “sexo é um tema que mobiliza a sensível e atenta, a educação sexual de seus filhos, e
todos nós, pois a maneira como falamos (ou não) sobre o estes possam ter suas indagações respondidas e o seu
sexo e encaramos os valores e os comportamentos prazer encontrado.
sexuais do outro - seja este outro deficiente ou não - é um Proceder a educação sexual de um filho é uma situação
reflexo dos nossos próprios valores e comportamentos muito particular, muito pessoal, para a qual não há receitas
sexuais”. previamente preparadas. Cada díade - pais e filho - deve
Por que isso, se sexualidade é amor, afetividade, busca encontrar a maneira mais serena e eficaz para desenvolver
de prazer e genitalidade (Dias e colaboradores, 1995)? Se o processo de informação/compreensão acerca da
sexualidade é um conjunto de fenômenos do relaciona- sexualidade humana. Principalmente porque, segundo
mento humano e da existência biológica, cultural, afetiva, Vasconcelos (1993), “não há em sexualidade algo que
erótica e genital do ser humano (Denari, 1997)? Se, ainda, deva ser transmitido, mas sim algo que precisa ser
conforme essa mesma autora, sexualidade dá sentido ao construído, elaborado em cada sujeito. A marca de uma
homem, mulher, menino, menina, idoso, idosa, participan- educação autoritária é sempre transmitir. Sobretudo em
do do fazer-se de cada um enquanto ser humano? sexualidade, essa marca precisa ser desfeita, se quisermos
Apesar de tantas constatações de que a sexualidade que se faça uma educação para a liberdade”.
humana é uma manifestação fisiológica bastante importan- Para iniciar a reflexão, são propícias duas questões:
te para o equilíbrio biopsicológico do indivíduo, ela é ainda 1. Se a sexualidade é um instinto natural biológico,
mantida sob o controle de muitos tabus e repressões existirão, então, diferenças na sexualidade de portadores
sociais. de deficiência mental, tipicamente relacionadas a tal
Para o deficiente mental, este controle não é diferente e condição?
é até exacerbado pelo fato de a maioria das pessoas igno- 2. Quais problemas sexuais são encontrados junto a
rar que todo ser humano, independentemente do nível de portadores de deficiência mental que são diferentes dos
seu funcionamento intelectual, deve ter supridas as suas encontrados em pessoas normais?
necessidades de afeto, felicidade, dignidade, reconheci- Vários estudos concluem não haver evidências
mento e valorização. científicas para afirmar a existência de diferença qualitativa
Os próprios meios de comunicação (Dias e colabora- entre a sexualidade de portadores e não portadores de
dores, 1995) têm imprimido um descrédito generalizado à deficiência mental, a não ser, talvez, nos casos neurologi-
pessoa portadora de necessidades especiais, quer no camente mais prejudicados (Glat, 1992; Glat e Cândida,
âmbito familiar, quer na comunidade em geral. Ou, confor- 1996; Denari, 1998). Estas pessoas têm necessidades
me Denari (1998), há uma noção equivocada e discutível a normais, experiências normais e emoções humanas
respeito da pessoa deficiente mental, que a coloca como normais, sendo que as eventuais atitudes sexuais atípicas
deficiente ou retardada também em seu desenvolvimento são muito mais resultado da inibição sexual a que são
sexual e afetivo. Tal pressuposição vem distorcendo a submetidas do que de uma disfunção intrínseca à sua
compreensão de seu desenvolvimento, resultando na condição. Esta afirmação significa, conforme Denari (1998),
negação não somente de sua sexualidade, mas também que o deficiente mental não é deficiente em seus impulsos
no controle de sua expressão, quer por repressão sexuais; ele sente prazer, desejo, ama e quer ser amado, e
comportamental, quer por canalização de atividades pode aprender a exprimir e controlar a sua sexualidade,
concorrentes ou, ainda, por via medicamentosa. desfrutando normalmente da convivência social e afetiva
Considerando-se, então, que: com seus pares. Isto é um direito seu, individual, e não
1. a sexualidade é elemento integrante do desenvol- uma concessão social.
vimento e ajustamento humano; Segundo Facion (1995), não há qualquer problema na
2. a sexualidade do indivíduo com deficiência mental sexualidade do deficiente mental; a sua sexualidade pode
não é, intrinsecamente, problemática ou diferente; estar intacta como em qualquer outra pessoa normal.
3. educar não significa a imposição de normas e Poderá haver, sim, problemas na manifestação do
condutas, mas sim a preparação para a vida; comportamento sexual, mas não na sexualidade em si. Os
4. os pais do deficiente mental são mediadores problemas, quando existem, advêm dos seus déficits
indispensáveis para o seu desenvolvimento e realização, perceptivos, discriminativos, cognitivos e de autoconhe-

36
cimento, que dificultam a este indivíduo discriminar o modo não se sentem aptos para lidar com a sexualidade destes
de agir conforme as normas e valores estabelecidos pela filhos.
chamada sociedade normal. Assim, não existe distúrbio da Psicólogo com experiência de 20 anos com psicoses
sexualidade do deficiente mental, mas distúrbio na infantis, principalmente o autismo infantil, Fación (1990)
manifestação desta sexualidade. alerta que, para entender a sexualidade na doença/
Nesta mesma perspectiva, há a consideração de deficiência mental, é preciso entender como a sexualidade
Assumpção Jr. (1998) de que a sexualidade humana é se processa em nós mesmos. Se conseguirmos compre-
uma conduta complexa, profundamente regulada por ender esta parte de nossa vida, talvez diminua o grau de
estruturas sociais, aprendida em função da observação e incompreensão da sexualidade na doença/deficiência
reelaboração de informações, de maneira que possa resis- mental. Embora o nascimento de um filho portador de uma
tir às forças afetivas, pois, enquanto as estratégias adequa- doença ou deficiência mental traga sentimentos de culpa,
das não são encontradas, o impulso deve ser cognitiva- de impotência, medo de gerar outro filho com problema
mente controlado, para que situações fora de controle não mental etc., é fundamental que os pais tenham uma
ocorram. Em função destas características, a sexualidade vivência sexual bem prazerosa, para que a educação
do deficiente mental deve ser visualizada levando-se em sexual de seu filho seja eficiente e transmita a sensação do
conta que o seu déficit cognitivo lhe dificulta perceber e real. Esta regra de harmonia com a própria sexualidade é
reagir aos estímulos externos e internos com expressão de verdadeira também para o terapeuta/educador.
conduta adequada e adaptada ao ambiente que o rodeia. Gauderer (1987) e Glat e Cândida (1996) também
Portanto, a preocupação de pais, educadores e alertam para que, antes de orientar um jovem em questões
terapeutas do deficiente mental, segundo Facion (1995), sexuais, é fundamental que nossa própria sexualidade
não deve ser acerca da permissão ou proibição da sua esteja bem resolvida, pois, caso contrário, corremos o risco
sexualidade, mas sim acerca do “quando”, “como” e “onde” de racionalizar nossas dificuldades ou repressões internas,
devem ser manifestadas as suas atividades sexuais. transformando-as em valores morais preconceituosos que
Assim, “se pensarmos o deficiente mental como serão, por sua vez, transmitidos àqueles que orientaremos.
alguém capaz de ser educado e treinado de maneira tal O resultado é “ou a alienação destes, que procurarão
que possa participar, dentro de seus limites, de uma alguém menos “moralista”, ou “careta”, com o perigo de
estrutura social, no mais puro espírito da integração e caírem no extremo oposto, ou os enchemos de culpa, que
normalização, temos obrigatoriamente que considerá-lo acarretará danos psicológicos talvez irreparáveis.” (Glat,
como ser sexuado e, portanto, criar condições 1992).
educacionais e sociais para que possa expressar, de Assim, muitas vezes, conforme Facion (1990), é
maneira adequada, essa parcela de seu Ser, constituindo- necessário investigar e, posteriormente, orientar os pais
se um indivíduo propriamente dito, com direito à vida em com relação à sua própria atividade sexual para, então,
toda a sua plenitude” (Assumpção Jr., 1998). encontrar estratégias mais adequadas à resolução dos
Segundo Glat (1992), muitos se opõem à educação problemas sexuais de seu filho com doença/deficiência
sexual de jovens com deficiência mental, alegando que isto mental. Defendendo a educação sexual liberta de tabus,
pode provocar um interesse pelo prazer sexual que, talvez, aquele autor oferece algumas orientações aos pais do
não fosse naturalmente despertado. Não poderia haver doente/deficiente mental, como:
questão mais falsa do que esta! Pois, em nossos dias, o tomar banho com o(a) filho(a), trocar de roupa perto
qualquer criança é constantemente invadida por informa- deste(a) filho(a), para que o corpo, como um todo, e não
ções sobre sexo pelos meios de comunicação, conversas apenas partes dele, possa ser percebido como algo
com colegas ou aquelas que ouvem de adultos. O proble- natural;
ma é que estas informações chegam deturpadas, fragmen- o limitar os locais da masturbação, não proibir a sua
tadas ou são mal interpretadas. prática. Os limites, naturalmente, não devem ser estreitos
Para Abreu (1974), um deficiente mental, quer de pouca demais para não tolher a sensação e a realização do
idade ou de baixa capacidade intelectual, tem curiosidade prazer. Assim, a masturbação deve ser privativa e não
sexual e condições de manifestá-la. No entanto, pela mídia, proibida;
defronta-se com a maciça divulgação de assuntos sexuais o mostrar ao(a) filho(a) que sexo é prazeroso e que
desprovida de uma análise crítica, tornado-se, quase este prazer deve ser para todos;
sempre, um simples receptor dessas informações. Por o ensinar o(a) filho(a) a masturbar-se, se preciso,
outro lado, os pais de portadores de deficiência mental fornecendo-lhe modelo, para evitar que se machuque com
nunca acham que têm informação e modo de manejo, ou toques agressivos, ou que utilize objetos impróprios. Entre

37
os portadores de deficiência mental severa, apenas 10% o ensino gradual de condutas sexuais, que sejam
poderiam apresentar uma masturbação exagerada. E socialmente aceitas no ambiente em que o indivíduo se
devido a este exagero de manipulação de seus órgãos encontra inserido. Desta maneira também pensa Lipp
sexuais, por demorarem muito para atingir ao orgasmo, (1986, 1988), acrescentando que o ideal é começar a
chegam a machucar os seus órgãos erógenos, resultando educação sexual desde a infância, pois o que a criança
em escoriações, hematomas e até ferimentos graves nas aprende sobre o amor, afeição e contato físico afetará a
áreas genitais. Neste caso, é preciso que a manifestação sua atitude referente ao sexo quando crescer. Por exem-
da masturbação seja orientada detalhadamente; devendo plo, se os pais aplaudem quando a criança toca em seu
ser a filha ensinada pela mãe, e o filho ensinado pelo pai, piano, mas a punem quando ela toca em seu órgão genital,
neste caso, visando prevenir o aparecimento de relações ela aprenderá que há algo errado com relação ao seu
incestuosas. sexo, ou que ele é vergonhoso, ou sujo, e poderá desen-
É bastante difícil, para os pais, a questão da volver sentimentos de culpa pelas emoções vivenciadas e,
masturbação - estimulação dos órgãos sexuais para desta forma, não entendidas.
produzir prazer sexual - do filho deficiente mental. Para Neste sentido, para iniciar a construção e estabeleci-
Lipp (1988), a masturbação talvez seja a única forma que mento de uma postura pessoal frente à educação sexual
grande parte dos deficientes mentais encontra para de seus filhos com deficiência mental, é interessante que
expressar fisicamente seus impulsos sexuais; por isso, os os pais reflitam e discutam com pessoas de suas relações,
pais devem prover orientações e limites para a sua e de sua confiança, os seguintes aspectos apontados por
ocorrência. Se é feita em particular, de modo agradável, Reche (1993):
sem sanções, é extremamente importante para o bem- o não se pode impedir a gratificação sexual do
estar emocional do indivíduo; portanto, deve ser permitida e deficiente mental; negar a sua sexualidade é como negar a
julgada normal. Facion (1995) orienta que se permita a este existência de sua personalidade;
indivíduo a masturbação, para que ele possa buscar o seu o deficiência mental é diferente de deficiência sexual; o
orgasmo - uma das coisas mais legítimas da vida humana. quociente intelectual (QI) do deficiente mental não é
A este respeito, John Elbers (apud Glat, 1992), assistente diretamente proporcional ao seu quociente sexual (QS);
social e então presidente da Federação Holandesa de Pais o não existe sexualidade de segunda categoria; a
de Excepcionais, faz um depoimento: “Nossa diretriz autonomia sexual do deficiente mental é diferente de sua
principal é a de que sexo é normal, e mesmo as pessoas autonomia intelectual;
mais prejudicadas têm direito a ter sexo a seu modo. Isso o a sexualidade não acontece a partir da adolescência;
pode significar um abraço, ou masturbação, ou ela já se manifesta desde a infância; por isso, o ensino
simplesmente uma conversa”. sexual deve iniciar-se o mais breve possível;
Enfim, a questão que emerge não é mais se o o ensino sexual é o mesmo para indivíduos portadores
deficiente mental deve ou não receber uma educação ou não de deficiência mental. O que diferirá são os passos
sexual, mas sim a maneira mais apropriada para que esse do processo que serão mais longos, em maior quantidade
processo se realize. e mais repetitivos.
Para Ferreira (1999), após os pais compreenderem que Um outro item inquietante quando se discute a
a sexualidade do filho deficiente mental não difere da de sexualidade dos deficientes mentais refere-se ao
outros indivíduos, o segundo passo é identificar o nível de casamento. Embora sejam aspectos que se relacionam, é
entendimento deste filho e, então, selecionar livros, ou importantíssimo que casamento e sexualidade não sejam
outros materiais, de educação sexual específicos para a analisados como interdependentes. Uma questão é discutir
faixa etária que corresponda à sua idade mental. Este tipo a sexualidade do deficiente mental, nos seus aspectos de
de material auxilia os pais, na medida em que fornecem e manifestação, adequação, gravidez, orientação etc. Outra
acrescentam informações, argumentações e ilustrações questão é discutir o casamento entre pessoas com
apropriadas à curiosidade do educando. Também é preciso deficiência mental, nos aspectos referentes à autonomia
que os pais deixem de lado os mitos do tipo “o deficiente financeira, cuidados básicos e educação de filhos, entre
mental é um anjo e, portanto, assexuado”, que acabam outros.
aumentando ainda mais a dificuldade natural dos pais em O casamento de pessoas com deficiência mental é
lidar com o assunto. ainda tão grande tabu, que freqüentemente se encontra
Dado que a excitação é biológica, ocorre ausente em depoimentos de familiares ou do próprio
independentemente de fatores externos, segundo Facion portador daquela condição. No estudo de Glat (1989), das
(1990), desde cedo é preciso propiciar ao deficiente mental 35 mulheres entrevistadas, apenas três abordaram este

38
tópico, às vezes até mesmo de modo fantasioso ou, então, 2. Assumpção Júnior, F.B. - Sexualidade e deficiência mental. In:
Marquezine, M.C. e colaboradores - Perspectivas
demonstrando o cerceamento por parte dos familiares. Na multidisciplinares em educação especial. Universidade Estadual
pesquisa de Massitel (1998) junto a psicólogos e diretores de Londrina, 1998. p.327-32.
de escolas especiais para alunos com deficiência mental, o 3. D’Abreu, A.A. - A problemática sexual do excepcional. Mensagem
casamento entre portadores desta condição foi uma ques- da APAE, v.1, n.1, p.1-6, 1974.
tão muito polêmica. Metade dos entrevistados acreditava 4. Denari, F.E. - O adolescente especial e a sexualidade: nem
anjo nem fera. São Carlos, 1997. (Tese - Doutorado - Universidade
que o casamento poderia ser viável, desde que a família
Federal de São Carlos).
apoiasse tal relacionamento e desde que o casal não
5. Denari, F.E. - Deficiência e sexualidade: direito ou concessão. In:
tivesse filhos e fosse independente na área social e Marquezine, M.C. e colaboradores - Perspectivas
profissional. Assumpção e Sproverieri (1987) apontam que, multidisciplinares em educação especial. Universidade Estadual
freqüentemente, no casamento, os deficientes mentais não de Londrina, 1998. p.333-8.

conseguem estabelecer relações positivas e fazer trocas 6. Dias, T.R.S. e colaboradores - Deficiência mental e sexualidade: a
perspectiva de mães de deficientes. Integração, v.6, n.15, p.7-14,
satisfatórias, quer no tocante ao sustento econômico da 1995.
família assim constituída, quer na educação de um filho. Há 7. Facion, J.R. - A sexualidade na deficiência mental. IV Encontro
a demanda de recursos próprios para subsistir e ser Paranaense de Psicologia. Universidade Estadual de Londrina,
independente, e o deficiente mental raramente apresenta 1990.
condições pessoais de participar do processo produtivo e 8. Facion, J.R. - A sexualidade dos portadores de necessidades
especiais. IV Ciclo Londrinense de Debates sobre o Excepcional.
competitivo de uma sociedade capitalista, pela incapacida- Universidade Estadual de Londrina, 1995.
de de gerir seus próprios recursos econômicos, e ganhar 9. Ferreira, S.L. - A linguagem do afeto. Folha de Londrina/Folha do
dinheiro de forma regular para o seu sustento. Paraná. 17 de setembro, 1999, p.5.
Independentemente de ser ou não pelo casamento, as 10. Gauderer, E.C. - Crianças, adolescentes e nós:
pessoas com deficiência mental são capazes e têm direito questionamentos e emoções. São Paulo, Almed, 1987.
de manter relacionamentos afetivos, que são fundamentais 11. Glat, R. - Somos iguais a vocês: depoimentos de mulheres
com deficiência mental. Rio de Janeiro, Editora Agir, 1989.
para as suas vidas. As dificuldades que possam aparecer
12. Glat, R. - A sexualidade da pessoa com deficiência mental.
neste âmbito não são decorrentes, inerentemente, da sua
Revista Brasileira de Educação Especial, v.1, n.1, p. 65-74, 1992.
condição de deficiente mental, mas decorrem de nós
13. Glat, R. e Cândida, R. - Sexualidade e deficiência mental:
mesmos, que constituímos uma sociedade imbuída de pesquisando, refletindo e debatendo sobre o tema. Rio de
falsa devoção referente às questões sobre sexualidade. Janeiro, Sette Letras, 1996.
Continuar infantilizando o deficiente mental, valendo-se 14. Lipp, M.N. - O excepcional e a noção de sexo com
de seu quociente intelectual rebaixado como justificativa responsabilidade. Estudos de Psicologia, v.3, n.1-2, p.128-30,
1986.
para impedi-lo de exercer a sua sexualidade, é, no mínimo,
15. Lipp, M.N. - Sexo para deficientes mentais. São Paulo, Cortez,
uma cruel tirania. Neste sentido, a afirmação de Glat e 1988.
Cândida (1996) é apropriadíssima para finalizar este artigo: 16. Massitel, O.B.L. - Um estudo das manifestações inadequadas da
“Para que um indivíduo possa ser integrado socialmente, sexualidade em ambiente escolar de alunos portadores de deficiência
ele tem que, antes de tudo, estar integrado consigo mesmo mental. In: Marquezine, M.C. e colaboradores - Perspectivas
multidisciplinares em educação especial. Universidade Estadual
e essa integração pessoal nos seres humanos passa, de Londrina, 1998. p.339-43.
inegavelmente, pela aceitação e desenvolvimento saudável 17. Reche, C. - Percepção de pais de adolescentes com Síndrome
de sua sexualidade”. de Down a respeito do interesse pelo sexo oposto, das
manifestações sexuais e da educação sexual. Pessoas com
Necessidades Especiais. Universidade Federal do Rio Grande do
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Sul, Porto Alegre, 1993. (Seminário).
18. Vasconcelos, N.A. - Sexualidade e deficiência: uma dupla
1. Assumpção Júnior, F.B. e Sprovieri, M.H.S. - Sexualidade e alteridade. Temas em Educação Especial, v.2, p.283-92, 1993.
deficiência mental. São Paulo, Editora Morais, 1987.

39
o trabalho com crianças vítimas de violência
sexual doméstica: promovendo a resiliência

antonio augusto pinto junior

Psicólogo Clínico, Mestrando em Psicologia do Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, Bolsista da CAPES

RESUMO:

O TRABALHO COM CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA: PROMOVENDO A RESILIÊNCIA: A violência sexual
doméstica contra a criança e o adolescente tem sido, nos últimos anos, alvo de interesse e preocupação dos pesquisadores do
desenvolvimento infantil, principalmente no que se refere às conseqüências e seqüelas psicológicas. O presente trabalho discute as
questões teóricas acerca da violência sexual doméstica contra crianças, enfocando a caracterização, incidência e principais
conseqüências ao desenvolvimento infantil. Aborda o conceito de resiliência, como a capacidade de um desenvolvimento normal apesar
das situações adversas, e os principais fatores de proteção que moderam a relação entre abuso sexual e desajustamento e que
minimizam o impacto de risco. Finalmente, comenta um caso de duas irmãs (oito e dez anos) vítimas de violência sexual praticada pelos
tios, que foram avaliadas e acompanhadas social e psicologicamente por um período de dois anos, visando a promoção de
comportamentos resilientes. Os dados revelam que o estudo sobre a resiliência se mostra relevante para identificar os processos pelos
quais pode se delinear as intervenções clínicas e a prevenção em relação ao fenômeno de vitimização infantil.

UNITERMOS:
Infância - Violência doméstica - Violência sexual - Violência contra a criança - Resiliência

ABSTRACT:

WORKING WITH CHILDREN SEXUALLY ABUSED AT HOME: PROMOTING THE RESILIENCE: The sexual domestic violence against child
and teenager has been, in the last years, object of interest and worriment of researchers of children development, mainly referring the
consequences and psychological sequels. This study discusses the theoretical questions about sexual domestic violence against
children, focusing the characterization, incidence and main consequences to the child development. It approaches the resilience concept
as a possibility of normal development in spite of threatening circumstances, and main protective factors that moderate the relation
between sexual abuse and maladjustment and that reduce the impact risk. Finally, it presents a case of two sisters (8 and 10 years old),
victims of sexual violence perpetrated by their uncles, evaluated and attended in social and psychological levels, in a period of two years,
seeking the improvement of resilient behaviors. The outcomes reveal that the studies about resilience become relevant to identify the
process that outlines the clinical interventions and the prevention against child sexual abuse phenomenon.

UNITERMS:
Childhood - Violence at home - Sexual abuse - Violence against children - Resilience

Artigo Original

PINTO JUNIOR, A.A. –O trabalho com crianças vítimas de violência sexual doméstica: promovendo a resilência. Temas sobre
Desenvolvimento, v.10, n.56, p.40-6, 2001.

40
CARACTERIZAÇÃO DO FENÔMENO uma venda que impossibilita ver o indesejável pelos
que rodeiam este fenômeno.
Vivemos uma contemporaneidade caracterizada Além disso, por apresentar um caráter incestuoso,
pela violência, talvez o maior mal que assola a nossa envolve não só a sexualidade dos adultos, mas
sociedade atualmente. Todos os meios de comunica- também a das crianças, colocando sobre as últimas o
ção estão freqüentemente veiculando notícias nas peso da culpabilidade.
quais o foco central é a violência. Violência urbana, Os vários estudos na área revelam que a família
violência na escola, violência no trânsito, violência incestogênica se mostra freqüentemente como
política, violência contra a mulher, violência contra o conflituosa e disfuncional, com uma estrutura familiar
idoso... violência contra a criança e o adolescente. patriarcal rígida, oculta no segredo, e com o pai
Atualmente, a infância brasileira vive imersa num mantendo sua posição de domínio pela força e
latifúndio de violências, e ser criança ou adolescente coação. A relação conjugal geralmente é incapaz de
no Brasil continua sendo um risco muito grande. satisfazer a enorme dependência da mãe ou do pai,
Consideramos que todas as formas de violência contra que freqüentemente foram negligenciados ou
a criança e adolescente, como abandono, pobreza, vitimizados na infância. O sistema familiar é fechado e
infância prostituída e outras, sejam crimes contra a as pessoas externas à família nuclear são comumente
humanidade e precisam e devem ser combatidas com vistas como perigosas e suspeitas. Os limites não são
grande esforço e comprometimento dos órgãos respeitados e há pouca delimitação dos espaços
públicos e da sociedade como um todo. físicos, privacidade e dos pertences dos membros. A
Porém, abordaremos aqui um tipo de violência negação é um dos mecanismos de defesa mais
contra a criança e o adolescente, que é a mais utilizados pelos membros da família incestogênica.
camuflada e, muitas vezes, imperceptível, pois ocorre Geralmente os agressores apresentam personali-
onde menos se esperaria, ou seja, entre as quatro dade sociopática, com abuso de substância química,
paredes do que chamam lar: a violência sexual geralmente o álcool; é comum verificar a pedofilia como
doméstica contra crianças. uma psicopatologia entre os agressores.
As últimas três décadas têm sido marcadas por um A mãe representa um importante papel como
notável interesse na pesquisa e estudo sobre a facilitadora na união incestuosa entre o pai/padrasto e
questão da violência doméstica contra a criança e o filha(o). Ela freqüentemente ignora as evidências do
adolescente, especialmente no que se refere ao incesto e é incapaz de proteger seus filhos do marido
fenômeno da vitimização sexual. Atualmente, a antes ou mesmo depois da descoberta da vitimização.
violência sexual doméstica vem sendo reconhecida Geralmente traz histórias de privação emocional e/ou
tanto como um importante problema social quanto um vitimização sexual ou física, mostrando-se dependente
problema de saúde pública. e passiva, com aversão à sexualidade.
Segundo Azevedo e Guerra (1998), violência sexual As estimativas da incidência de violência sexual,
doméstica contra crianças e adolescentes é: “Todo ato tanto a nível internacional quanto nacional, sugerem
ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual números alarmantes e estarrecedores. Dados do
entre um ou mais adultos que tenham para com ela "National Center on Child Abuse and Neglect" dos
uma relação de consangüinidade, afinidade e/ou mera Estados Unidos apontam que anualmente 125.000
responsabilidade, tendo por finalidade estimular crianças são vítimas de violência sexual (Kaplan e
sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma Sadock, 1990). Finkelhor (1994), em um estudo
estimulação sexual sobre sua pessoa ou a de outra epidemiológico de 21 países, identificou que em torno
pessoa”. de 7% a 36% de mulheres e 3% a 29% de homens
De todas as formas de violência doméstica, a sexual sofreram algum tipo de violência sexual na infância.
é talvez uma das mais difíceis de se delimitar ou mes- Especificamente em relação à violência sexual
mo identificar, pois, na grande maioria das vezes, doméstica, Kirschner e colaboradores (1993) apontam
permanece velada no pacto do silêncio, não somente um número estarrecedor de mulheres que experiencia-
dos agressores e vítimas, mas também de pessoas e ram relações incestuosas na infância, ou seja, uma
profissionais que não conseguem perceber, tanto em para cada cinco mulheres. Finkelhor (1994) afirma que
função dos mecanismos de ocultação criados pelos a violência sexual doméstica representa entre um terço
próprios envolvidos, como pela necessidade de colocar e a metade dos casos de violência sexual de meninas.
Hussian e Chapel (1983, citados por Schetky e Green,

41
1988) revelam que 14% das adolescentes, pacientes Segundo Janis e Levental (1968), o evento estressor é:
de hospitais psiquiátricos, foram vítimas de violência “qualquer mudança no ambiente que induz a um alto
sexual doméstica. grau de tensão emocional e que interfere nos padrões
As estatísticas nesta área, no Brasil, mostram-se de resposta do indivíduo”. Se a experiência de vitimiza-
escassas, e a maior parte delas refere-se a casos ção sexual faz gerar uma grande tensão emocional,
notificados a órgãos governamentais e/ou não gover- parece coerente, então, considerar este tipo de
namentais e se originam de pesquisas acadêmicas. experiência como um evento estressor, que interfere no
Cohen (1993), em estudo em São Paulo sobre funcionamento psicológico das vítimas e no processo
incesto, constatou que entre as vítimas de violência de desenvolvimento.
sexual que fizeram denúncia policial 22,55% foram Contudo, as diferentes pesquisas na área mostram
vítimas de violência sexual por parte de algum parente que a forma e a intensidade dos sintomas e desajusta-
e que o agressor era o pai em 46% dos casos, seguido mentos expressados podem variar amplamente de
pelo padrasto (20,6%), tio (13,8%), primo (10,9%) e o indivíduo para indivíduo, sendo que algumas crianças
irmão (3,7%). revelam ausência de sintomas, mostrando-se “imunes”
Tais dados, na realidade, não representam um aos estímulos estressores.
retrato fidedigno da ocorrência do fenômeno, pois se Num estudo sobre as conseqüências da violência
referem a casos denunciados e, como sabemos, a sexual contra crianças, Kendall (citado por Liem e
grande maioria dos casos nunca é notificada aos colaboradores, 1997) revela que aproximadamente um
órgãos competentes, permanecendo oculta e masca- terço das crianças com histórico de violência sexual
rada pelo complô do silêncio compartilhado pela não mostra sinais de sintomas, e um número
família, pelos profissionais, vizinhos e a sociedade significativo de crianças sintomáticas pode recuperar-
como um todo. se rapidamente. Em outro estudo, Werner (1989)
Assim, a violência sexual doméstica denunciada encontrou também um terço de crianças que vivenci-
representa somente a ponta de um “iceberg”, cuja real aram eventos estressores, mas sem seqüelas
dimensão só poderemos reconhecer quando desvelar- significativas no desenvolvimento.
mos a cifra oculta dos casos não notificados. Com base nestes e em outros dados científicos,
percebe-se, hoje, um interesse na pesquisa sobre os
RESILIÊNCIA FRENTE À fatores relacionados ao não comprometimento da
VIOLÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA saúde mental após a experiência de violência sexual
doméstica, ou seja, fatores que podem moderar os
Nesta perspectiva, a violência sexual contra a efeitos adversos da vivência de vitimização ou da
criança/adolescente pode representar um verdadeiro situação de risco.
fator de risco ao processo de desenvolvimento. A Segundo Garmerzy (1996), a definição de risco está
transgressão da proibição do incesto pode trazer sérias relacionada à identificação de fatores que acentuam ou
conseqüências para a vítima, implicando na inibem distúrbios, transtornos e respostas
perturbação da noção de identidade e outros distúrbios desadaptadas.
de personalidade e de adaptação social. Muitos pesquisadores de diferentes disciplinas -
Durante as ultimas três décadas, têm-se percebido educação, medicina, psicologia etc. - têm usado o
numerosos questionamentos e estudos científicos a termo resiliência para descrever o funcionamento
respeito das seqüelas mentais, a longo e curto prazo, adequado e/ou competente do indivíduo, apesar de um
relacionadas à vivência de abusos sexuais domésticos. histórico de exposição a um ou mais fatores de riscos.
Muitos trabalhos relatam uma grande variedade de Alvarez (1999) refere-se ao conceito de resiliência
dificuldades e distúrbios nas áreas afetiva, cognitiva e como oriundo de sobreviventes de campos de
social. Os dados empíricos revelam, muitas vezes, a concentração nazistas que reconstruíram suas vidas,
presença de sintomas em crianças vítimas de violência enquanto outros não conseguiram ultrapassar o trauma
sexual, como ansiedade, depressão, auto-estima pelo qual passaram. Através de um acompanhamento
negativa, doenças psicossomáticas, distúrbios de intergeracional, percebeu-se uma qualidade que
atenção, concentração e outros. passava de uma geração à outra e que estava
Desta forma, a violência sexual doméstica pode ser associada à esperança quanto ao futuro.
caracterizada como um evento gerador de estresse. Percebe-se que o conceito de resiliência mostra-se
um constructo ainda em formação, e a sua definição e

42
classificação podem variar de acordo com o critério resiliência. Tais fatores são denominados de fatores de
usado pelo pesquisador, não havendo, assim, um proteção.
consenso sobre sua conceituação nem acerca das Freqüentemente, os fatores de proteção são
possibilidades de sua explicação. escolhidos tendo como base os fatores sumarizados
Liem e colaboradores (1997) afirmam que o termo por Werner (1989) e por Luthar e Zigler (1999):
resiliência é freqüentemente usado em intercâmbio a - atributos temperamentais e disposicionais da
com outros termos, como “invulnerabilidade”, criança (autonomia, independência, habilidades
“resistência ao estresse” etc. É também definido como intelectuais, gênero, interesses múltiplos, controle
a capacidade de prevalecer, crescer, fortalecer e até interno, auto-estima positiva etc.);
prosperar mesmo na presença de dificuldades. b - a disponibilidade de suporte extra-familiar
Segundo Masten e colaboradores (citados por (colegas, professor, instituições de serviço social etc.).
Heller e colaboradores, 1999), resiliência “é o Os fatores de proteção descritos na literatura sobre
processo, capacidade ou resultado de uma adaptação resiliência podem ser divididos em duas categorias:
bem sucedida, a despeito das circunstâncias individual e ambiental. As qualidades pessoais e as
desafiadoras ou ameaçadoras” (1999). influências sociais interagem por todo o tempo, e as
Para Zimmerman e Arunkumar (1994), a resiliência variações nas circunstâncias e nas reações a elas
relaciona-se a fatores e processos que interrompem a produzem cadeias de eventos que alteram o quadro da
trajetória de risco, tendo como conseqüência a resiliência ao longo do tempo.
adaptação bem sucedida, mesmo na presença das A natureza flutuante da resiliência nasce das
adversidades. mudanças do desenvolvimento da personalidade que
Rutter (1985) entende resiliência como uma capaci- acompanha a maturação física e biológica, como
dade pessoal para elaborar estratégias de ação, também das mudanças das condições situacionais e
conforme objetivos próprios, mantendo a auto-estima, ambientais nas quais a maturação ocorre.
mostrando confiança e crédito na própria eficácia, além Assim, enquanto processo, a resiliência deriva da
de habilidades para lidar com mudanças e situações interação entre influências maturacionais, individuais e
sociais de forma adaptada. ambientais, caracterizada pela fluidez e dinamismo,
Já para Radke e colaboradores (citados por Kinard, variando sempre com as mudanças ambientais e
1998), as crianças que apresentam adaptação bem condições situacionais do indivíduo.
sucedida frente à adversidade devem ser retratadas Se, por um lado, a pesquisa sobre resiliência ainda
como sobreviventes, ao invés de resilientes, pois suas exige muitos esforços na operacionalização e definição
experiências de estresse e adversidade não deixam de de seu constructo, por outro, a investigação dos
trazer conseqüências. comportamentos resilientes e fatores de proteção
Hoje, há um consenso entre os teóricos de que a lançam luz na questão do desenvolvimento humano. A
resiliência é um fenômeno dinâmico e relativo, pois as pesquisa em resiliência não está apenas centralizada
pessoas não são resilientes em todos os momentos e nas variáveis de risco nem pressupõe que todas as
em todas as situações da vida. crianças vítimas de violência sexual irão apresentar
Segundo Koller (1999), “a capacidade de resiliência problemas significativos de saúde mental.
depende das características individuais e ambientais É claro que a experiência de violação sexual traz
que podem variar ao longo da vida”. um impacto para a vítima, pois é um ato violento e
Desta maneira, uma pessoa pode mostrar-se abusivo; porém, afirmar que uma experiência de
resiliente e bem adaptada em uma determinada área vitimização sexual na infância irá gerar, necessaria-
(por exemplo, a social) e apresentar um funcionamento mente, desordens afetivas, sexuais e/ou comporta-
não tão competente em outra (por exemplo, a vida mentais parece-nos uma postura fechada e
acadêmica), e outra pessoa pode mostrar-se resiliente determinista, que não leva em conta as múltiplas
em uma determinada área num certo período da vida e possibilidades que o sujeito tem para vencer
mostrar-se vulnerável e sem competência em um outro obstáculos, adversidades e conflitos em sua vida.
período. A questão da resiliência supõe um interjogo
Os estudos sobre a temática examinam vários complexo entre processos de desenvolvimento antes
fatores que moderam a relação entre o abuso sexual e do abuso e transações (positivas e/ou negativas) com o
desajustamento e que minimizam o impacto de risco, ambiente. Tais transações podem, em alguns casos,
incrementando, assim, o desenvolvimento da conduzir a uma trajetória psicopatológica e, em outros,

43
os recursos de proteção da vítima podem ser suficien- prevenir o risco de uma patologia grave, podem
tes para prevenir o risco de desenvolvimento de uma promover práticas de suporte terapêutico adequadas.
psicopatologia severa.
O enfoque na capacidade de resiliência abre a ILUSTRAÇÃO CLÍNICA
possibilidade de não pensar apenas sobre a avaliação
dos riscos e conseqüências negativas do evento de O caso que iremos relatar refere-se a duas
vitimização infantil, mas também de dirigir o olhar para meninas2, Vitória (dez anos) e Nina (oito anos), vítimas
os condicionantes que podem atenuar os efeitos de violência sexual praticada pelos tios paternos, em
negativos do abuso sexual na infância. 1999. As crianças foram atendidas numa instituição-
Neste sentido, o estudo sobre a resiliência abrigo para crianças vitimizadas em Guaratinguetá/SP,
relacionada ao abuso sexual infantil mostra-se rele- pois as mesmas tinham fugido de casa e estavam
vante para identificar os processos através dos quais pedindo comida e pouso num bairro do município. As
pode-se delinear as intervenções clínicas e programas crianças alegaram que tinham fugido de casa, pois
de prevenção, além de encorajar os pesquisadores a seus pais estavam alcoolizados e, segundo elas,
pensar mais em termos de potencial ao invés de quando isso ocorria, o pai ficava muito agressivo.
fatores de risco, o que pode resultar no estudo de O genitor é dependente alcoólico e quase diaria-
diferentes tipos de estratégias de tratamento. mente agredia física e psicologicamente as filhas,
O fenômeno da violência sexual doméstica é fazendo uso de vários instrumentos para efetuar a
caracterizado, como pudemos ver, por várias nuances violência (cinta, correia, pau, faca etc.).
em sua constituição e, desta forma, exige ações com- A mãe, por sua vez, mostrava-se negligente, não se
prometidas dos profissionais envolvidos com a importando nem mesmo com a alimentação dos filhos.
questão. Por isso, todo o planejamento do processo de “Quando a mãe cozinha e tá belda, nóis não consegue
intervenção em casos de vitimização sexual doméstica comer porque ela coloca muito sal na comida" (Nina).
deve ser conduzido necessariamente em bases Em visita ao domicílio, a assistente social da institui-
multiprofissionais e transdiciplinares, pois a atuação ção constatou que a família residia em apenas um
profissional nunca deverá se dar isoladamente. cômodo, construído com blocos e um banheiro fora da
Desta forma, o planejamento de ações deverá ser casa, sem as mínimas condições de higiene. Ao lado
realizado em função da identificação do problema, da casa existia um quarto com saída independente,
exigindo a compreensão profunda do fenômeno, com a que era ocupado esporadicamente pelos irmãos do pai,
avaliação de gravidade do fato, seu impacto sobre a também alcoólatras e acusados de abusos sexuais
vítima e os demais membros da família, procurando contra as crianças. Segundo o relato de Nina, os tios
investigar o funcionamento psíquico, os riscos levavam as meninas para este quarto e lá praticavam
psicossociais e áreas de competência desta vítima. os mais perversos atos, desde a felação até a
Na realidade, em casos de violência sexual contra penetração vaginal.
crianças, deve-se estabelecer uma estrutura de As crianças denunciaram ao psicólogo da instituição
atendimento com parceiros da área judiciária, de os assédios sexuais, cometidos pelos três tios
proteção social, de saúde e de educação, visando a paternos. Vitória declarou ter relatado ao pai as
construção de uma rede de suporte bio-psico-social. vitimizações sexuais, porém este se negou a acreditar,
Tendo como âncora os aportes da teoria de agredindo fisicamente a menina, chamando-a de
resiliência, alguns tipos de intervenções podem ser “prostituta”3.
delineados a partir das áreas de competência As sessões de avaliação psicológica dos casos
identificadas, com o objetivo de construir uma fundação deram-se na própria instituição em que as crianças
sólida para o desenvolvimento mais adequado da foram abrigadas.
criança e o restabelecimento mais saudável dos O processo diagnóstico contou com a realização de
vínculos afetivos. seis sessões, englobando entrevista não dirigida, o uso
Mas, para isso, é necessário focar a atenção mais de instrumentos projetivos e uma sessão de devolutiva
na saúde e educação do que na enfermidade e déficits. ou “feedback” para as crianças e encaminhamento do
Na medida em que somos capazes de conhecer com laudo para o Fórum da Comarca do Município.
maior profundidade os condicionantes através dos
2
Os nomes foram alterados para preservar a identidade das crianças.
quais se desenvolvem os comportamentos resilientes, 2
Existe a suspeita de que o próprio pai também tenha usado as crianças sexualmente.
será possível desenvolver intervenções que, além de

44
Como não foi atendida a solicitação do compare- Uma auxiliar de enfermagem da Unidade Básica de
cimento dos pais, a avaliação foi fechada apenas com Saúde, localizada no mesmo bairro da instituição em
os contatos entre terapeuta e as crianças. que as crianças ficaram abrigadas, sensibilizada pelo
De maneira geral, a relação transferencial se caso, solicitou ao juiz da Vara da Infância e Juventude
estabeleceu prontamente, revelando, assim, um a guarda e a possível adoção das meninas. O processo
ambiente propício para o surgimento do material de destituição do pátrio poder está, ainda, em anda-
psicológico latente. mento e é possível que os pais, por falta de condições
As crianças em foco mostraram-se afetivas no sociais, psicológicas e jurídicas, não consigam reaver a
contato, sem nenhuma dificuldade para se vincular ao guarda e a tutela de suas filhas.
terapeuta do sexo masculino. Este fato torna-se de A partir do momento em que as crianças foram
extrema relevância, pois a literatura na área da encaminhadas para o novo lar, procurou-se desenvol-
violência doméstica tem mostrado que algumas ver uma estratégia de ação, envolvendo todos os
crianças vitimizadas, sexualmente, por um agressor do profissionais que estavam trabalhando no caso, ou
sexo masculino tendem a se distanciar ou temer o seja, psicólogos, assistentes sociais e professoras, no
contato com terapeutas deste mesmo sexo. Tal fato sentido de auxiliar as meninas na superação dos
sugeriu um prognóstico positivo, visto que, apesar dos traumas e no desenvolvimento de potencialidades e
abusos sexuais, as crianças conseguem, ainda, competências.
estabelecer vínculos saudáveis com a figura masculina. A família substituta passou a receber orientações e
A avaliação psicológica das crianças indicou a suporte psico-social semanais, visando a adaptação e
presença do conflito intrafamiliar, cuja dinâmica é a criação dos vínculos afetivos e protetivos
marcada por formas violentas de relacionamento necessários. Nas sessões com o psicólogo e assistente
interpessoal. Apesar dos sinais evidentes de confusão, social foram trabalhados os medos, angústias,
ansiedade, medo e traços depressivos em suas dificuldades no contato com as crianças e formas mais
personalidades, Vitória e Nina revelaram alguns adequadas de abordagem dos conflitos que emergiam
indicadores de comportamento resiliente. As meninas no cotidiano da família e crianças.
demonstraram funções de discriminação e juízo bem As professoras de Vitória e Nina também participa-
estruturadas, com adequado grau de diferenciação e ram deste processo, recebendo orientações no sentido
integração de ego. Encontrou-se um aparente dinamis- de estimular a auto-estima e desenvolver as potenciali-
mo de afetividade e busca de contato, que ficou de dades cognitivas e intelectuais das crianças,
certa forma explícito no vínculo terapêutico durante procurando estabelecer um contato mais próximo e
todo o processo diagnóstico. Além disso, as funções afetivo com elas. Além disso, foi sugerido às professo-
cognitivas estavam preservadas. ras que propiciassem um maior número de atividades
Apesar da vivência extrema de vitimização sexual grupais, com a participação de Vitória e Nina, para
sofrida por Vitória e Nina, a fuga do ambiente domés- desenvolver a socialização, inclusão e afetividade.
tico também pode ser considerada como um comporta- As crianças, por sua vez, foram encaminhadas para
mento de resiliência e/ou resistência ao desenvolvi- um processo psicoterapêutico, visando trabalhar a
mento de uma provável patologia psicológica. superação dos traumas e o desenvolvimento da auto-
Assim, na avaliação psicológica, que não focalizou estima e auto-imagem positiva. Com sessões
apenas os aspectos psicopatológicos, ficaram semanais, o processo terapêutico de Vitória e Nina
evidentes os aspectos saudáveis das personalidades mostrou-se bem sucedido. Tendo em vista a
das meninas, revelando potencialidades de ego, capacidade cognitiva, de reestruturação e de
capacidade de reestruturação e possibilidade de desenvolvimento de vínculos das crianças; a relação
construção de novos vínculos parentais. transferencial, no "setting" clínico, proporcionou
Diante dos fatos, foi efetuada denúncia na mudanças significativas na forma como as meninas
Delegacia da Mulher do município, e as crianças foram avaliavam a experiência de vitimização sexual.
encaminhadas ao exame médico legal, que constatou o Passaram a perceber que, apesar de seu histórico de
estupro de Vitória e Nina, com rompimento do hímen. vitimização, poderiam encontrar novos sentidos para
Assim, os tios foram criminalizados e foi decretada a suas existências e possibilidades de futuro. Com o
sua prisão preventiva. As crianças, por sua vez, foram desenrolar do processo, foi-se percebendo uma
colocadas em processo de adoção. diminuição dos níveis de ansiedade, depressão e

45
angústia, com uma capacidade maior de enfrentamento planejamento de ações preventivas e de intervenção
das adversidades e dos conflitos interpessoais. bem sucedida para as vítimas de violência sexual
Tentou-se desenvolver também um trabalho com os doméstica.
pais biológicos das meninas, encaminhando-os para
tratamento do alcoolismo e para os programas de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
desenvolvimento social do município. Porém, sem o
engajamento necessário neste processo, os pais 1. Alvarez, A.M.S. - A resiliência e o morar na rua: estudo com
biológicos abandonaram o tratamento, e muito pouco moradores de rua – crianças e adultos – na cidade de São Paulo.
São Paulo, 1999. (Dissertação - Mestrado - Faculdade de Saúde
progresso foi alcançado no sentido de restabeleci-
Pública / USP).
mento dos vínculos parentais com as crianças. Por
2. Azevedo, M.A. e Guerra, V.N.A. - Infância e violência fatal em
isso, talvez, não consigam reaver a guarda de suas família. São Paulo, Iglu, 1998.
filhas. 3. Cohen, C. - O Incesto: um desejo. São Paulo, Casa do Psicólogo,
Dois anos depois, desde o início do trabalho com 1993.
Vitória e Nina, elas continuam em acompanhamento 4. Finkelhor, D. - The international epidemiology of child sexual
psicológico e parecem felizes com sua nova família, abuse. Child Abuse Neglect, v.18, p.409-17, 1994.

mostrando-se bem adaptadas ao novo lar. Apesar de 5. Gamerzy, N. - Reflections and commentary on risk, resilience and
development. In: Haggerty, R.J.; Sherrod, L.R. ; Gamerzy, N.; Rutter,
algumas vezes manifestarem saudades de seus pais M. (Org.) - Stress, risk and resilience in children and
biológicos, não revelam desejo de retornar à casa adolescents: processes, mechanisms and interventions.
paterna. Cambridge, Cambridge University Press, 1996. p.1-19.
Na escola apresentam ótimo desempenho escolar, 6. Heller, S.S.; Larrieu, J.A.; D’Imperio, R.; Boris, N.W. - Research on
resilience to child maltreatment: empirical considerations. Child
não apresentando qualquer problema na esfera Abuse Neglect, v.23, n.4, p.321-38, 1999.
intelectual. Conseguem estabelecer relações afetivas 7. Janis, I.L. e Levental, H. - Human reactions to stress. In:
adequadas com as professoras e colegas, participando Borgattan, E.F. e Lambert, W.W. (Org.) - Handbook of personality
efetivamente dos grupos e sentido-se pertencentes a theory and research. Chicago, Rand McNally & Co, 1968. p.1032-
54.
eles.
8. Kaplan, H.I. e Sadock, B.J. - Compêndio de psiquiatria. Porto
De maneira geral, as meninas parecem ter
Alegre, Artes Médicas, 1990.
superado os traumas sofridos, sem seqüelas significati-
9. Kinard, E.M. - Methodological issues in assessing resilience in
vas em seu desenvolvimento, o que sugere um bom maltreated children. Child Abuse Neglect, v.22, n.7, p.669-80, 1998.
prognóstico, com potencialidades afetivas, intelectuais 10. Kirschner, S.; Kirschner, D.A.; Rappaport, R.L. - Working with
e excelente capacidade de adaptação e de superação adult incest survivors: the healing journey. New York,
de adversidades. Brunner/Mazel, 1993.

Assim, se resiliência é o processo de funcionamento 11. Koller, S.H. - Uma família em situação de risco: resiliência e
vulnerabilidade. Interfaces Revista de Psicologia, v.2, n.1, p.81-5,
adequado e competente, apesar de um histórico de 1999.
exposição a um ou vários fatores de risco, e se um 12. Liem, J.H.; James, J.B.; O’toole, J.G.; Boudewyn, A.C. -
sujeito poderá não ser resiliente em todos os Assessing resilience in adults with histories of childhood sexual
momentos de sua vida, podemos afirmar que, hoje, abuse. Am. J. Orthopsychiat., v.4, n.67, p.594-606, 1997.
Vitória e Nina se enquadram neste conceito. 13. Luttar, S.S. e Zigler, E. - Vulnerability and competence: a review
of research on resilience in childhood. Am. J. Orthopsychiat., v.61,
Apesar das limitações impostas pelo seu histórico p.6-22, 1991.
de vida, marcado por opressões e abusos de toda 14. Rutter, N. - Resilience in the face of adversity: protective factors
espécie, Vitória e Nina conseguem vislumbrar as and resilience to psychiatric disorder. Brit. J. Psychiat., v.147, p.598-
oportunidades, não deixando que tais limitações as 611, 1985.
impeçam de caminhar para o seu desenvolvimento 15. Schetky, D.H. e Green, A.H. - Child sexual abuse: a handbook
for health care and legal professionals. New York, Brunner/Mazel,
enquanto seres humanos dignos de respeito e
1998.
reconhecimento.
16. Werner, E.E. - High risk children in young adulthood: a
Este caso ilustra a importância do modelo conceitual longitudinal study from birth to 32 years. Am. J. Orthopsychiat.,
de resiliência quando se trabalha com vítimas de abuso v.147, p.598-611, 1989.
sexual, pois nos abre a possibilidade de uma observa- 17. Zimmerman, M. e Arunkumar, R. - Resiliency research:
ção analítica e detalhada de cada um dos mecanismos implications for school and police. Social Police Report, v.8, p.1-18,
1994.
e fatores de proteção subjacentes aos comportamentos
resilientes da criança, além de mostrar-se eficaz no

46
depoimento
PROJETO PARA mente superados, permanecem impregnando rodas" (Estudo apresentado em 1994.) A
(RE)HABILITAÇÃO FÍSICA E a "cultura" do tratamento. Alguns paradoxos pretensão contida no discurso das instituições
COGNITIVA DE PORTADORES DE com que os profissionais da (re)habilitação típicas de intervenção conflita com os
PARALISIA CEREBRAL convivem intimamente, mesmo que nem conteúdos validados cientificamente.
sempre identificados, podem ser representa- Em "Prognóstico da Evolução da
"A voz do poeta não precisa apenas ser um dos pelas dicotomias básicas: atender x tra- Paralisia Cerebral Espástica: 22 Anos de uma
registro do homem, pode ser também um de seus tar; acomodar x desenvolver; corrigir x (re)ha- Análise Retrospectiva" (Rede Nacional de
amparos, o pilar que o ajude a resistir e bilitar e, fundamentalmente, ênfase na lesão x
prevalecer." Hospitais do Aparelho Locomotor/SARAH),
ênfase na plasticidade (capacidade de recu- encontramos a seguinte afirmação: "É bem
William Faulkner peração da função nervosa após uma lesão), conhecido que a evolução cognitiva e motora
ênfase na patologia x ênfase no indivíduo. está relacionada à localização anatômica e à
Histórico e considerações Assim traduzidas, estas contradições extensão da lesão cerebral. Apesar de
expressam resquícios de modelos conceitu- diagnósticos precoces e intervenções
Conceituando (re)habilitação como um ais e filosóficos elaborados sob a ótica do adequadas, a incapacidade é permanente".
processo individual que diz respeito ao defeito, da incapacidade e da limitação. Em Isto demonstra novamente a contradição
desenvolvimento das capacidades adapta- especial, em paralisia cerebral, há um choque elementar: conceitos científicos de
tivas do indivíduo em diferentes fases da vida, entre a velocidade da produção de conheci- (re)habilitação têm como inequívoco que a
é necessário enfocar esse indivíduo em seus mento teórico e a lentidão de sua aplicação plasticidade do sistema nervoso central é
aspectos funcionais: físicos, psíquicos, clínica. notável nos primeiros anos de vida; a
cognitivos, educacionais e sociais. É necessário buscar alternativas de detecção precoce e a intervenção adequada
intervenções. Talvez a construção de um favorecem dramaticamente o prognóstico.
A história da (re)habilitação é contempo-
rânea e por estar próxima de nós é mais difícil paradigma em que a (re)habilitação seja vista Na maioria dos estudos e publicações
de ser vista em sua generalidade: os proble- pela semiótica das disciplinas, construindo encontramos parâmetros utilizados para a
mas e as diferentes respostas dadas a eles uma metodologia terapêutica/técnica que as predição da evolução do paciente e,
parecem impossibilitar uma análise global. Ou interligue na ação. principalmente, seu prognóstico para
seja, quanto mais próximo do trivial, mais O panorama até aqui exposto pode ser deambulação. Entre estes parâmetros
difícil de ser enxergado. Porém, é possível analisado sob vários aspectos. Porém, podemos destacar a importância dada ao
assinalar quais têm sido as principais prioritariamente, destaco a incipiente prejuízo cognitivo detectado e o grau de
questões e temas que interessam à sistematização dos estudos, resultado da acometimento global. Indivíduos com este
(re)habilitação. E, principalmente, integrar e ausência de intercâmbio entre o atendimento perfil são qualificados como de mau
incorporar os avanços científicos e técnicos e a pesquisa científica. A maioria dos prognóstico. Estudos científicos consistentes
do período à prática clínica. trabalhos clássicos na área é composta de demonstram que esta clientela muito se
estudos retrospectivos que englobam beneficia da estimulação ambiental, sendo
A (re)habilitação requer investigação
populações e períodos muito extensos e que os fatores clínicos avaliados para
contínua; recursos e padrões que ofereçam
valem-se de metodologia inespecífica. Os predição de evolução deveriam ser os
acesso e trânsito a uma prática reflexiva, e
resultados apenas descrevem achados parâmetros para a intervenção.
que esta favoreça o diálogo, em oposição à
discussão superficial ou polêmica. O terreno clínicos e dados epidemiológicos. Um dos grandes problemas da paralisia
apresenta conceitos opacos e apenas o Temos elaborado instrumentos para cerebral é que ela pode ser considerada
empenho por nitidez e transparência o torna descrever, avaliar e mensurar a deficiência, "auto-alimentadora". A incapacidade se
passível de conexão e entrelaçamento entre mas produzimos pouco material para constrói temporalmente pelo uso ou desuso
as diversas disciplinas envolvidas. A comuni- investigar e assessorar o potencial. (in)adequado. A intervenção tem que ser
cação clara e conceitualmente elaborada é a É sob esta perspectiva histórica que firme, adequada e decisiva, sob o risco de
única dinâmica confiável e organizada para muitas técnicas se estabeleceram e se subtratarmos e indevidamente entendermos
aqueles que querem incorporar os pontos de perpetuaram. Nossos centros de referência e como limite da resposta da patologia o limi-
vista de outros em suas perspectivas instituições especializadas desenvolvem tado ou inadequado investimento terapêutico.
pessoais. Esse jogo é parte essencial de escalas para predizer o que os pacientes não Na idade de zero a dois anos a criança
qualquer investigação que procure construir, vão fazer e, assim, estruturam o tratamento e encontra-se no "estágio sensório-motor"
modificar e aplicar conceitos, regras e destinam os recursos. Por exemplo, o "méto- (Piaget). Nesta fase, inicialmente age por
princípios. Parafraseando Kant, conceitos do Sarah", que "permite que qualquer médi- reflexos; pensa pela atividade motora;
sem conteúdo são vazios, experiências sem co, já no primeiro ano de vida da criança, e progressivamente o movimento se forma
conceitos são cegas. com precisão estatística absoluta, possa direcionado a um objetivo, à medida em que
Ainda convivemos com alguns pressu- saber se a criança vai andar ou se só será o controle cortical é gradualmente
postos ou crenças de que, embora cientifica- possível sua locomoção em cadeira de estabelecido.

47
depoimento
"Paralisia cerebral é o resultado de uma fenomenal. Trata-se, para esses psicólogos, Piaget ocupou-se com o conceito de
lesão ou mau desenvolvimento do cérebro, de um processo cognitivo básico. Para a "espaço pessoal" como função de desenvol-
de caráter não progressivo, existindo desde a Escola Sensório-Tônica, de Werner e vimento cognitivo, investigando sua progres-
infância. A deficiência motora se expressa em Wapner, todo ato perceptivo envolve influên- são através da maturação de conceitos de
padrões anormais de postura e movimentos, cias que decorrem dos movimentos ou das distância, profundidade e perspectiva. O
associados a um tono postural anormal" posições assumidas pelo corpo. Esses crescente conhecimento de relações espa-
(Bobath). A criança PC não tem condições de autores assinalam que a relação organismo/ ciais e o grau de confiança e sentimentos
executar e repetir os movimentos padrões da meio não se cumpre de forma satisfatória positivos experienciados com adultos diminui
espécie e, assim, adquirir coordenação sem que vários fatores estejam presentes, a necessidade deste dispositivo protetor
sensório-motora. Portanto, é necessário agir entre os quais a ação motora. Em consonân- (comportamento manifesto durante o terceiro
terapeuticamente sobre o desenvolvimento cia com Merleau-Ponty, consideram que a trimestre do primeiro ano de vida). À medida
funcional global. percepção do corpo resulta de um conjunto em que a criança se aproxima da idade
Estudos amplamente divulgados sobre de numerosas associações visuais, táteis e escolar, a necessidade de distância de seus
bebês biologicamente normais sob efeito de cinestésicas. pares está correlacionada com a sua auto-
privações ambientais estão entre as primeiras Em quadros patológicos, limitações imagem e sentimento de confiança. A auto-
demonstrações da importância das experiên- físicas ou deformidades há tendência de estima da criança é decisivamente influencia-
cias infantis iniciais na determinação da ocorrer distorções da imagem corporal e da pelas interações entre as suas forças
inteligência e ajustamento. Vários autores conseqüente desorganização de ego. intrínsecas e as atitudes e comportamentos
aprofundaram-se estudando o efeito deletério As crianças seguras, na fase da latência, das pessoas "significativas".
para o desenvolvimento global da "carência livres de ansiedade, não mostram comporta- É muito conhecida a importância do
ambiental" (Spitz e Goldfarb). mento sugerindo distúrbio emocional ou de contato visual para o estabelecimento de
O "vivo" precisa da experiência, precisa personalidade. O mesmo pode se dar inver- "rapport" entre o bebê e o cuidador. Durante
estar em atividade. Sistema nervoso central e samente: se não houver boa estruturação os três primeiros meses de vida, os bebês,
corpo (cérebro/músculo) mantêm-se em das fases iniciais, haverá dificuldade em deitados de costas, assumem a postura assi-
exercício constante como resultado da esti- relação ao meio ambiente e à sociabilização. métrica conhecida como reflexo tônico-
mulação ambiental e em busca de satisfação A realidade interna dá lugar, gradualmente, a cervical assimétrico (RTCA). Isto leva a
biológica. O grau em que dependemos de uma realidade exterior. Quanto mais saudá- canalizar a visão na direção da mão esticada
nosso meio, normalmente variado, e a ativi- vel for a representação mental da limitação, e, em conseqüência, prepara o caminho para
dade mental que este suscita nos permite mais satisfatória será a estruturação global. a coordenação olho-mão. A criança PC pode
deduzir o isolamento perceptual ou privação "O 'eu' constitui a expressão psicológica de apresentar persistência do RTCA e incidência
sensorial da criança PC, limitada ao padrão uma combinação firmemente associada entre elevada de alterações visuais (60% a 90%
da patologia. todas as sensações corporais" (Jung). dos casos). Isto acarreta restrições para
Reich também enfatizou a importância do A criança com deficiência física poderá seguimento visual e execução de atividades
contato físico/toques corporais e massagens desenvolver-se com um "self" não deformado integrando olho-mão. "Mais de 90% do que
em bebês para profilaxia e/ou combate ao à medida em que sua relação com os cuida- chega ao cérebro ("input" sensorial) é visual"
encouraçamento infantil. O que Reich de- dores (a mãe, inicialmente, e os "outros") for (Gaiarsa).
monstrou foi a dialética entre o vegetativo e de aceitação. "Em presença da limitação ou As crianças PC estão impossibilitadas de
movimentação corporal. "Nosso aparelho deformidade parcial, a criança pode reagir se desenvolver espontaneamente e, sem
locomotor é, também, um aparelho sensorial com um investimento ou negação parcial, esta "assistência", estaremos deprivando-as.
(...) o 'sexto sentido' é a sensação de posição sendo que a mãe pode manter uma atitude
e movimento, a propriocepção. Se todos os de rejeição, indiferença ou igualmente nega- Propostas
esforços, posições e intenções presentes em ção. É a combinação desses fatos que pode
meu corpo podem ser sentidos, então eles levar à distorção da imagem corporal ou à
negação das partes do corpo" (Ajuriaguerra). Considerando a magnitude da patologia e
podem se tornar conscientes e, no limite,
os diversos comprometimentos clínicos,
voluntários" (Gaiarsa). O desenvolvimento das crianças com PC
acredito que um programa de (re)habilitação
Para Bobath, o desenvolvimento global é determinado pelas mesmas leis que regem
e educação deva envolver os seguintes
da criança depende diretamente de suas o desenvolvimento de outras crianças e pelas
conceitos e referenciais:
possibilidades de movimentar-se. O dimensões do processo de aprendizagem e
desempenho que se mostram imprescindí- 1) Neuroplasticidade; métodos fisiotera-
"feedback" tátil e proprioceptivo proporciona o
veis para outros grupos. Assim, o ambiente e pêuticos; biomecânica e ergonomia
desenvolvimento da imagem corporal.
a relação com PC ou bebê de alto risco As conexões sinápticas são modificáveis
Segundo os gestaltistas (Wertheimer,
devem estar totalmente orientados por e esta capacidade de modificação permite
Kohler e Koffka), percepção é o processo por
objetivos terapêuticos definidos. tanto a aprendizagem quanto a recuperação
meio do qual se apreendem as estruturas
após uma lesão.
que integram o meio comportamental ou

48
depoimento
A intervenção fisioterapêutica que esti- Sobre o processo de conhecer e apren- motivar e conduzir este debate, permitindo ao
mule a resposta motora mais próxima do der: os "inputs", vindos dos órgãos sensoriais, aluno formar seus próprios conceitos.
normal possível deverá desencadear cone- passam pela formação dos significantes e O aluno/aprendiz ensina particularidades
xões nervosas funcionais e inibir padrões são elaborados e decodificados pela memó- de sua elaboração e padrão ao educador que
anormais. Estará, assim, promovendo altera- ria (auditiva/visual), acomodados, assimilados planeja suas estratégias a partir das estrutu-
ções plásticas, disponibilizando o circuito neu- e significados. ras e eixos pessoais do aluno. Deve haver
ronal para ser usado, eventualmente, na base Estratégias originam-se de comporta- personalização do currículo e "tutoria". O
de um processo motor automático ou mentos semi-estratégicos, tais como olhar ou desenvolvimento do projeto pedagógico deve
voluntário. nomear, de processos automáticos como estar centrado nas dificuldades/habilidades
As crianças PC, em sua maioria, apre- agrupamentos e associações e da metame- específicas e na busca das ferramentas e
sentam espasticidade importante em vários mória. Com estímulos e perguntas os adultos acessórios para viabilizar a proposta.
grupos musculares. Como resultado da podem oferecer a estrutura básica para a A convivência em grupo é desejável e
espasticidade ocorre encurtamento gradual criança completar ou recuperar o processo necessária. As práticas em grupo exercitam
da musculatura, contraturas e deformidades e/ou informação. Indícios e intenções devem solidariedade e aumentam o repertório pes-
ósseas. Além da abordagem fisioterapêutica ser interpretados e valorizados. soal. O repertório das habilidades e conhe-
são necessários recursos e procedimentos 3) Pedagogia especializada e tecnologia cimentos que uma criança pode alcançar por
para manejo clínico da espasticidade. de (re)habilitação. O processo de ensino si só é limitado; porém, norteada pedagogica-
Fisiologia do movimento, biomecânica e auxiliado por computadores, com uso de mente, pode descobrir que a cooperação e a
ergonomia são utilizados para aproximar sistemas dinâmicos e adaptativos, ajuda mútua permitem a ela obter ampliação
permanentemente o paciente das condições personalizando o aprendizado e satisfação maior no processo de conhecer.
de desenvolvimento satisfatórias. A educação se constrói no plano da Em outras palavras, a ajuda mútua é um dos
Se os aspectos biomecânicos do prática e se alimenta de formulações teóricas fatores de felicidade individual. A educação é
aparelho locomotor forem negligenciados ou originárias de várias disciplinas. A educação o processo pelo qual se pode chegar a um
desprotegidos, o desenvolvimento ficará de criança com múltipla deficiência leva essa equilíbrio harmônico entre os interesses
ainda mais limitado. É importante permitir que definição ao limite: construção de uma prática individuais e o entrelaçamento destes com o
o organismo escale os degraus da maturação conjunta. Todas as palavras que poderíamos bem-estar coletivo.
global e, assim, condição clínica e potencial elencar para expressar os propósitos da
neurológico estarão conjugados educação - ensinamento, instrução, criativida- Metodologia, procedimentos e
satisfatoriamente em algum momento. de, disciplina, aquisição de conhecimentos, instrumentos
2) Técnicas Integrativas em Paralisia introdução de modelos e princípios éticos e
Cerebral (sensório-motor-cognitivo) morais - podem ser traduzidas por dois
Metodologicamente cada indivíduo deve
O planejamento da ação terapêutica para processos complementares: "desenvolvi-
ser rigorosa e pontualmente triado quanto aos
estimulação global deve pressupor as bases mento individual" e "iniciação social". Estes
seus aspectos clínicos e estágios de desen-
do desenvolvimento normal e as rotas anor- propósitos tornam-se um desafio muito mais
volvimento. A ênfase deve ser dada ao poten-
mais que a patologia impõe. O terapeuta amplo quando se trata de educar um indiví-
cial de desenvolvimento, e o planejamento
deve saber combinar as diversas concepções duo com necessidades especiais. Freud
estruturado nas habilidades e capacidades
técnicas (Bobath, Kabat, Aires), introduzindo enumera as tarefas do educador: a) reco-
específicas. O programa de (re)habilitação e
estimulação e assistência gradual, hierarqui- nhecer a constituição característica de cada
educação deverá ser individualizado, acatan-
zada e interligada. São desejáveis as estraté- criança; b) deduzir, por pequenos indícios, o
do estes parâmetros a serem normatizados
gias planejadas, valendo-se de instruções que acontece em sua mente; c) oferecer o
amor necessário e, ao mesmo tempo, manter Os procedimentos e instrumentos deve-
verbais, auxílios à memória, pistas, indícios e
um conveniente grau de autoridade. rão ser padronizados. Os pacientes/alunos
suporte operacional concreto se necessário.
deverão ser reexaminados em uma periodi-
"A função do cérebro não é decodificar Frente a esta complexidade de objetivos,
cidade preestabelecida, e sua evolução men-
sinais nem interpretar mensagens ou aceitar o educador "especial" precisará fazer ajustes
surada em protocolos de "follow-up" a definir.
imagens (...) nem sequer é função do cérebro permanentes e planejar dinâmica e criativa-
mente as alternativas para cumprir este Uma avaliação válida de comportamento
organizar o 'input' sensorial ou processar
papel. deve levar em conta a idade do sujeito e seu
dados (...) Os sistemas perceptivos, incluindo
nível de desenvolvimento global. É essencial
os centros nervosos em vários níveis até o A escola representa não apenas um
conhecer o que se deve esperar no desenvol-
cérebro, são modos de procurar e extrair de ambiente de transmissão de conhecimento,
vimento normal da criança. Teorias de fases
um campo flutuante de energia ambiental mas também uma arena para o debate das
ou estágios (Freud, Piaget, Gesell, Vygotsky)
informações sobre o ambiente" (Gibson). grandes questões humanas e sociais. É
facilitam a compreensão do processo.
imprescindível que o professor consiga

49
depoimento
Os profissionais deverão discutir os casos devem estar centradas nos interesses das Justificativa teórica
internamente, ter com as famílias relações crianças e adequadas à fase de
estreitas e, se possível, envolvê-las concreta- desenvolvimento. Tudo o que somos e fazemos depende
mente no programa. As experiências corporais devem ser do funcionamento do nosso sistema nervoso,
Deverá haver visita domiciliar sistemática estimuladas, facilitadas ou realizadas em bem como dos processos normais do desen-
com orientação para adaptações na residên- conjunto, dependendo do grau de dificuldade. volvimento; assim, as mais diversas e com-
cia. Os conceitos e as práticas de "acessibili- Este trabalho básico inicial exige uma plexas funções tais como memória, percep-
dade" e "inclusão" devem começar na casa e atitude de continência (no sentido ção, análise, planejamento, coordenação e
na família do deficiente. psicanalítico), aceitação e busca de auxiliar a execução de movimentos são resultado de
A família deve dar, em casa, na rotina, criança a vencer os obstáculos iniciais. Deve- interações precisas, finas e corretas entre os
continuidade ao programa, devendo ser se levar em conta a frustração causada pelas milhares de neurônios (Annunciato e Silva,
orientada e supervisionada para facilitação limitações motoras. É preciso estar atento 1995).
das AVDs. para que a criança não esmoreça em seus Por muito tempo acreditou-se que o
Nesta perspectiva e planejamento, a propósitos, mas também é necessário Sistema Nervoso Central estava pronto
interdisciplinaridade já referida fica melhor apresentar-lhe desafios permanentes. desde o nascimento e era imutável. Moderna-
esclarecida. Tal interdisciplinaridade deve O adulto, nesta dinâmica, funciona como mente, com o aprofundamento das neuro-
concretizar-se na ação e colaboração efetiva extensão da criança, motivando, organizan- ciências e a melhor compreensão do conceito
dos setores heterogêneos. O programa do, integrando e complementando fisicamen- de plasticidade, sabe-se que, quando a
(re)habilitacional e educacional do PC requer te sua ação. As atividades devem sempre criança nasce, o SNC ainda não está comple-
a análise semiótica das especialidades envol- permitir que ela demonstre o que sabe para o tamente desenvolvido e que a relação com o
vidas. A semiótica, entendida como ciência planejamento das seqüências. meio, no decorrer de sua maturação, influen-
dos signos, permite a decomposição das Além da sociabilização, prazer e auto- cia este desenvolvimento. É esta capacidade
abordagens isoladas para recodificá-las sob a estima, esta proposta favorece a mediação de modificação que proporciona tanto a
ótica da integração disciplinar. O grau de para as funções: motivação e aprendizado. aprendizagem como a recuperação após
integração real das disciplinas é o que viabili- uma lesão neurológica (Hallett, 1999).
zará um modelo de atendimento diferenciado Paralisia Cerebral é um distúrbio do
Motivação:
e o enriquecimento do projeto. A este plane- movimento e da postura, persistente, porém,
jamento básico podem e devem ser agrega- como dinamizador, como estímulo,
não fixo, surgido nos primeiros anos de vida
dos serviços e/ou produtos que lhe dêem como algo a ser reforçado pela interferência no desenvolvimento do
sustentação científica e/ou material. SNC causado por uma lesão corporal não
A área tem forte carência de pesquisa, o Aprendizagem: serial conceitual de progressiva, porém sujeito a mudanças no
que favorece o relacionamento com habilidades decorrer do desenvolvimento (Schwartzman,
estruturas acadêmicas. Esta vinculação No brinquedo a criança comporta-se de 1993).
sistemática e dinâmica parece natural e forma mais avançada do que nas atividades A criança PC não tem condições de
necessária. da vida real e aprende a separar objeto e executar e repetir os movimentos padrões da
Como sugestão de serviço, a brinquedo- significado. "Tanto pela criação da situação espécie e, assim, adquirir coordenação
teca com propósitos de sociabilização e imaginada como pela definição de regras e sensório-motora. Portanto, é necessário agir
estimulação global já foi implantada, com propostas específicas, o brinquedo cria uma terapeuticamente sobre o desenvolvimento
sucesso, pela Professora Nilse Cunha, na zona de desenvolvimento proximal - do real funcional global.
Escola Indianópolis, para outro segmento. para o potencial" (Vygotsky). O cérebro é um supersistema de
Nossa clientela seria muito beneficiada por Desta maneira, pode-se alcançar como sistemas. Cada sistema é composto por uma
esta abordagem. As dinâmicas lúdicas, "efeito colateral" do brincar a integração entre complexa interligação de pequenas regiões
principalmente nas fases iniciais do movimento, pensamento e linguagem, corticais e núcleos subcorticais, formados por
atendimento - Estimulação Ambiental - capacidades sensoriais, intelectuais, motoras neurônios, todos ligados por sinapses. A
afetam positivamente várias funções, e de prontidão, que antecedem o processo estrutura conhecida como "sistema límbico" é
facilitando a integração sensorial. de leitura e escrita. tanto cortical como subcortical.
O ambiente e as propostas lúdicas Melanie Klein constatou, em seus estu- Níveis de arquitetura neural: neurônio,
permitem que se refaça com a criança, dos, que no brincar a criança pode repre- circuitos locais, núcleos subcorticais, regiões
através do brinquedo, o caminho "fisiológico" sentar simbolicamente suas ansiedades e corticais, sistemas e sistemas de sistemas.
da adaptação e exploração do meio ambiente conflitos inconscientes. Utilizou, para análise As principais conseqüências deste arranjo
que a lesão interrompeu. As atividades de crianças, a ferramenta play technique. são:
1) o que um neurônio faz depende do
conjunto de neurônios vizinhos;

50
depoimento
2) o que os sistemas fazem depende de das condições afetivo-emocionais que as cada estágio de seu desenvolvimento
como os conjuntos se influenciam acompanham (Amiralian, 1997). representa uma singularidade qualitativa, isto
mutuamente na arquitetura e É preciso enxergar não apenas os é, uma estrutura orgânica e psicológica espe-
3) a contribuição de cada um dos distúrbios, mas, fundamentalmente, a pessoa cífica; exatamente no mesmo caminho uma
conjuntos para o funcionamento do sistema a que luta e convive com eles, e procura criança deficiente representa qualitativamente
que pertence depende de sua localização afirmar-se como pessoa integral para além e uma diferença, um tipo único de
neste sistema (Damásio, 1994). acima deles (...) Assim fazendo poderemos desenvolvimento" (Vygotsky).
A recuperação da função nervosa após nos tornar pilares sólidos para que ambos os
uma lesão pode se dar pela reorganização lados, o usuário e o profissional, se REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
sináptica, pelo desenvolvimento de colaterais empenhem igualmente na construção de
e pela formação de novas e múltiplas pontes (Capovilla). 1. Aguilar-Rebolledo, F. - Plasticidad cerebral:
antecedentes científicos y perspectivas de
conexões sinápticas. Uma avaliação global não deve
desarollo. Bol. Med. Hosp. Infant. Mex., v.55, n.9,
Diante de bebês com fatores de risco negligenciar o significado dos itens indivi- p.514-25, 1998.
para disfunções neuromotoras, a intervenção duais. "As teorias são inevitáveis, mas não
2. Ajuriaguerra, J. - Manual de psiquiatria infantil.
e estimulação ambiental é fator de importân- passam de meios auxiliares. Assim que se Rio de Janeiro, Atheneu, 1977.
cia crítica já que as interações com o meio transformam em dogmas, isso significa que 3. Amiralian, M.L.T.M. - Deficiência: alternativas
bem como com o próprio corpo influenciam uma dúvida interna está sendo abafada. É de intervenção. São Paulo, Casa do Psicólogo,
decisivamente o desenvolvimento. necessário um grande número de pontos de 1997.
vista teóricos para produzir, ainda que apro- 4. Annunciato, N.F. e Silva, C.F. - Desenvolvimento
Durante o aprendizado ocorrem do sistema nervoso. Temas sobre Desenvolvi-
ximadamente, uma imagem da multiplicidade
alterações plásticas nas estruturas do SNC mento, v.4, n.24, p.35-46, 1995.
da alma" (Jung).
relacionadas à função; desta forma, a 5. Bobath, B. - Atividade postural reflexa
plasticidade neural representa o substrato de A complexidade, variabilidade e imprevisi-
anormal causada por lesões cerebrais. 2ª ed.
todo o controle neural, refletindo a adaptação bilidade do comportamento humano impe- (Trad. por Elaine Elisabetsky). São Paulo, Manole,
funcional do SN diante das modificações nos dem a certeza esperada ao se tratar dos 1978. 132p.

meios externo e interno, inclusive buscando fenômenos físicos. "O ser humano está muito 6. Bobath, K. - A deficiência motora em
minimizar os efeitos de lesões estruturais e longe de ser padronizado, mas o desejo do pacientes com paralisia cerebral. São Paulo,
cientista é ter um padrão sobre o qual Editora Manole, 1989.
funcionais (Aguilar-Rebolledo, 1998).
trabalhar" (Aldous Huxley, 1977). 7. Capovilla, F.C. - Tecnologia em (re)habilitação
A repetição dos padrões fisiológicos da cognitiva: uma perspectiva multidisciplinar. São
ativação muscular e movimentação em mol- A busca da resposta constrói um Paul, Edunisc, 1998.
des próximos da normalidade aperfeiçoa e percurso inevitável e necessário do teórico ao
8. Damásio, A.R. - O erro de Descartes: emoção,
prolonga o registro e memória desse padrão. clínico, permanentemente, um ir e vir, visando razão e o cérebro humano. São Paulo,
o aprimoramento mútuo. São os princípios e Companhia das Letras, 1996.
Além disso, muitas estratégias percep-
fundamentos construtivos que fazem a 9. Freud, S. - Introductory lectures on psycho-
tivas básicas, tais como esquema corporal,
pergunta correta transformar-se em ponte. analysis. Londres, s/d.
audição, visão e olfato estão vinculadas aos
10. Gaiarsa, J.A. - O olhar. São Paulo, Gente,
centros de emoção e aprendizado do sistema 2000.
límbico. A motivação, o alerta e a concentra- Conclusão
11. Gesel, A. e Amatruda, C.C. - Diagnóstico do
ção também são elementos críticos no desenvolvimento: avaliação e tratamento
aprendizado motor: "Só aprendemos quando O processo de desenvolvimento está neuropsicológico no latente e na criança
fazemos e fazemos somente quando apren- pequena. São Paulo, Atheneu.
fundamentado na experimentação e imitação.
demos" (Umphred e Appley, 1994). As prá- O ambiente oferece oportunidades, exemplos 12. Gibson, J.J. - The senses considered as
ticas e rotinas devem ter a perspectiva de perceptual systems. Boston, Houghton-Mifflin,
e modelos. O aprendizado organiza, amplia,
1966.
vivências sensoriais corretivas. A interação hierarquiza. E as emoções parecem ser os
13. Goldfarb, W. - Emotional and intellectual
com o paciente/aluno deve atender a respon- sensores que nos guiam para o encontro consequences of psychologic deprivation in
sabilidade da técnica e do vínculo: a interação entre a natureza e as circunstâncias. infancy, In: Psychopathology of childhood.
não se dá apenas em níveis conscientes e Qualquer alteração neste sistema, seja Harvard, Harvard University Press, 1961.
objetivos, mas interfere diretamente em primária ou secundária, aprisiona o organis- 14. Hallett, M. - Motor cortex plasticity.
mecanismos sensoriais, afetivos e cognitivos. mo a estágios limitantes de onde deve ser Eletroencephalography and clinical
neurophysiology, USA, supl. 50, p.85-91, 1999.
O terapeuta precisa conhecer as implica- resgatado.
ções de uma perda orgânica para a dinâmica 15. Jung, C.G. - A prática da psicoterapia. Rio de
"A criança cujo desenvolvimento está Janeiro, Editora Vozes, 1981.
da personalidade e ajustamento pessoal e impedido por um defeito não é simplesmente 16. Jung, C.G. - Psicogênese das doenças
social (...). Estes conhecimentos pressupõem uma criança menos desenvolvida que seus mentais. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1971.
a compreensão das limitações funcionais pares; mais precisamente ela tem se desen-
impostas pelas deficiências e a compreensão volvido diferentemente (...) uma criança em

51
depoimento
17. Klein, M. - The psychoanalysis of children. 22. Schwartzman, J.S. - Paralisia cerebral: histórico 26. Vygotsky, L.S.e Leontiev, A.N. - Psicologia e
Londres, Horgarth, 1932. e classificação, epidemiologia e etiologia, pedagogia: bases psicológicas da
18. Merleau-Ponty, M. - Fenomenologia da diagnósticos, prejuízos associados, tratamento e aprendizagem e do desenvolvimento. São
percepção. São Paulo, Freitas Bastos, 1971. prognóstico. Temas Sobre Desenvolvimento, v.3, Paulo, Moraes, 1991.
19. Piaget, J. - A tomada de consciência; São n.13, 1993. 27. Walkining prognosys in cerebral palsy: a 22
Paulo, Editora Mehoramentos / Edusp, 1977. 23. Umphred, D. e Appley, M.B. - Sistema límbico: year retrospective analysis. Rede Nacional de
20. Spitz, R.A. - Hospitalism; an inquiry into the influência sobre o controle motor e aprendizagem. Hospitais do Aparelho Locomotor/SARAH.
genesis of psychiatric conditions in early childhood. In: Umphred, D.A. - Fisioterapia neurológica. 2ª 28. Wapner, S. - El percepto del cuerpo. Buenos
In: Psychoanalytic study of the child. ed. (Trad. por Lília Bretenitz Ribeiro). São Paulo, Aires, Paidos, 1969.
International Universities Press, 1945. Manole. 1994. p.53-77.

21. Reich, W. - Encouraçamento numa criança 24. Vygotsky, L.S. - A formação social da mente.
recém-nascida. Orgone Energy Bulletin, v.3, n.3, São Paulo, Martins Fontes, 1984.
1951. 25. Vygotsky, L.S. - Pensamento e linguagem. Germana Valéria Concílio Savoy
São Paulo, Martins Fontes, 1987.
Janeiro 2001

52

Você também pode gostar