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Sumário
Introdução
Há mais de três décadas o país deixou de ser direcionado por Atos Institucionais. A
Emenda Constitucional nº 11, em seu artigo 3º revogou-os 1 no que contrariassem a
Carta Maior. Este foi um dos sinais de que as transformações políticas de ordem
democrática estavam prestes a acontecer.
O ano de 2014 será destacado por vários eventos e datas importantes no Brasil,
especialmente referente ao relatório que será emitido pela Comissão da Verdade, e
os eventos que consequentemente sucederão. Além da Copa do Mundo de Futebol,
1 Brasília, Emenda Constitucional nº 11, de 13 de outubro de 1978, art. 3º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc11-78.htm. A EC nº 11
apenas entrou em vigor em 1º de janeiro de 1979.
2 Brasília, Exposição de Motivos anexo Projeto de Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, 30 de abril de 2010. Item 6. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/projetos/EXPMOTIV/EMI/2010/14%20-%20SDH%20MD%20MJ%20MP.htm
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o país completará 50 (cinquenta) anos de golpe militar, 35 (trinta e cinco) anos de
promulgação da Lei da Anistia, 36 (trinta e seis) anos de criação do Pacto São José
da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos) ratificado e
convertido em norma no Brasil apenas em 1992, 26 (vinte de seis) anos da
promulgação da Carta Maior, 19 (dezenove) anos de criação da Comissão Especial
sobre mortos e desaparecidos – Lei 9.140/1995, 11(onze) anos da criação da
comissão de anistia – Lei 10.599/2002, 4 (quatro) anos da Decisão do STF
ratificando o entendimento interno brasileiro sobre a revisão da Lei de Anistia e da
sentença do caso Araguaia proferida pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, e 3 (três) anos da Lei 12.528/2011 que instituiu a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) culminando nos 2 (dois) anos de atividades desenvolvidas por esta
Comissão.
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em sua história transições de regimes políticos incluíram em suas agendas algumas
ações como: Persecução judicial dos agentes violadores de direitos humanos; busca
pela verdade pela criação de Comissão da Verdade; Adoção de políticas de
reparação, seja pela compensação financeira ou por medidas simbólicas; Atos de
honra e valorização das vítimas através de uma série de medidas; a iniciativa de
construção de memoriais, museus ou incentivo e condução de debates sobre o
ocorrido; Desenvolvimento de medidas de reconciliação sem sacrificar os
instrumentos de justiça e responsabilização; e, finalmente reforma institucional no
sentido de não repetição de abusos.3 Esses elementos compõem o que chamamos
de Justiça de Transição.
3 BICKFORD, Louis. Transitional Justice. In: The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity. Nova Iorque: MacMillan, pp.1045-1047
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fato de que passamos por dois regimes políticos, a Monarquia e a República
Presidencialista4.
5 Pierangeli, José Henrique e Zaffaroni, Raúl Eugenio. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 223.
6 Barbosa, Rui. Anistia Inversa – Caso de teratologia jurídica. In obras completas. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, 1995. Vol XXIV, T. III, p. 38/39.
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servidores dos poderes Legislativo e Judiciário, os Militares e os dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares7.
Note-se, tanto pelo extrato temporal, como pelas condições da época o marcante
propósito de reintegração da nação incumbida à lei, ainda em fase de formação,
uma vez que as emendas à lei ainda eram possíveis. Entretanto, nesta mesma
ocasião, o então Presidente da República Federativa do Brasil optou por excluir do
rol de beneficiados pela anistia a prática de terrorismo. Neste sentido, sua
mensagem determina uma interpretação bastante clara do que viria a ser terrorismo
para os porta-estandartes do poder:
“Não é abrangido quem foi condenado pela Justiça por crime que não é
estritamente político: assim o terrorista, pois ele não se volta contra o
Governo, o regime, ou mesmo contra o Estado. Sua ação é contra a
humanidade e, por isso, repelida pela comunidade universal, que sanciona,
7 Brasília, Lei 6.683, 28 de Agosto de 1979. Art. 1º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm
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como indispensáveis, leis repressivas de que se valem países da mais alta
formação democrática. A anistia tem o sentido de reintegrar o cidadão na
militância política, e o terrorista não foi e não é um político, a menos que se
Sem grandes inclinações sobre o tema, e da polêmica que ele comporta, o perdão
coletivo, perdão traduzido em forma de lei, mais precisamente na Lei 6.683/79,
levada ao julgamento no Supremo Tribunal Federal, foi uma oportunidade para que
o entendimento jurisprudencial nacional estabelecesse conexão entre a legislação e
o Pacto São José da Costa Rica, amadurecendo uma posição sobre o assunto.
Ocorre que o que poderia ser um palco de discussões, passou ao largo do debate e
resultado disso foi a manutenção do status quo. Em sua maioria, os Ministros
10 Barroso, Luis Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. p.6. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-
content/themes/LRB/pdf/constituicao_democracia_e_supremacia_judicial.pdf.
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membros do Supremo Tribunal Federal, optaram pelo debate processual, o que
impediu maiores considerações materiais sobre o tema. Neste sentido, vale a
apreciação do Ministro Ayres Brito em seu voto, que é parte integrante da decisão
proferida pelo STF, em 24/09/2010, em sede de Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, ADPF 153, interposta pela OAB e demais entidades, julgada
improcedente por 7 votos a 2.
11 Ministro Ayres Brito, em sede de julgamento da ADPF 153, votou pela interpretação excludente no sentido de estender a anistia aos crimes previstos no inciso XLIII do artigo 5º da CRFB
(crimes hediondos e os que lhe sejam equiparados: Homicídio, tortura e estupro, especialmente). Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf
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constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última
análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das
pretensões judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade
vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal
12 Barroso, Luis Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo p.7. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-
content/themes/LRB/pdf/constituicao_democracia_e_supremacia_judicial.pdf.
13 Sentença Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia vs Brasil). 24 de novembro de 2010. p 4.
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1978, e o Brasil se tornou país signatário do tratado apenas em 1992, com o decreto
nº 678/1992. Em 2002, por meio do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, o
Brasil editou o decreto nº 4.463 reconhecendo a competência da Corte
Interamericana em casos relativos à interpretação e aplicação da convenção de 22
de novembro de 1969, além da aplicação para fatos posteriores a 10 de dezembro
de 1998.
Após largos 15 (quinze) anos, 2 meses depois da decisão proferida pela mais alta
corte de justiça brasileira sobre a impossibilidade de revisão da Lei da Anistia, em 24
de novembro de 2011, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decide pelo
afastamento da aplicação da Lei da Anistia.
14 Sentença Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia vs Brasil). 24 de novembro de 2010. p 114.
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Verdade para apuração das violações de direitos ocorridas no período da ditadura.
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congens, ou seja, normas peremptórias, obrigatórias aos Estados contidos
na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (também conhecida
como Pacto São José da Costa Rica, doravante indicada também somente
16 Voto Fundamentado do Juiz Ad Hoc Roberto Figueiredo Caldas com relação à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do
Araguaia”) Vs. Brasil de 24 de Novembro de 2010. p.1.
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investigations into gross violations of human rights, the granting of amnesty
for acts, omissions and offences associated with political objectives and the
recommendation of measures for the restoration of the human and civil
O caso brasileiro não seria diferente, contudo desde 1979, ano da Lei da Anistia, até
hoje, a agenda de políticas públicas voltadas para uma forma de reparação e/ou
Justiça de Transição se apresentou por diversos momentos em diferentes
modalidades.
18 Minow, Martha. Between Vengeance and Forgiveness. Boston: Beacon Press, 1998. p.3.
19 Brasília, Exposição de Motivos anexo Projeto de Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, 30 de abril de 2010. Item 7. Disponível em:
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prestação de contas sobre as investigações. Houve ainda criação de leis para
ampliação de prazos para habilitação às buscas e identificação das ossadas, além
da ampliação do lapso temporal dos fatos ocorridos prolongando-os até a
promulgação da Carta Maior. Tais medidas não foram suficientes para esgotar os
trabalhos iniciados pela Comissão. Em 2002, foi criada a Comissão de Anistia pela
Lei 10.599/200220, subordinada ao Ministério da Justiça. Ambas as comissões
esbarraram em questões jurídico-legais penais e não conseguiram atuar de forma
plena, bem como esgotar e satisfazer os próprios objetivos.
20 Brasília, Exposição de Motivos anexo Projeto de Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, 30 de abril de 2010. Item 8. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/projetos/EXPMOTIV/EMI/2010/14%20-%20SDH%20MD%20MJ%20MP.htm
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Adicionalmente à lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, foi criada a Lei de
Acesso a Informações, lei 12.527/2011. Conforme o discurso Presidenta da
República, Dilma Rousseff, durante cerimônia de sanção do projeto de lei que
garante o acesso a informações públicas e do projeto de Lei que cria a Comissão
Nacional da Verdade de 18 de novembro de 2011, sendo as duas atreladas entre si.
“Esta é uma importante conexão, uma conexão decisiva com a lei que cria a
Comissão da Verdade. Uma não existe sem a outra, uma é pré-requisito
para a outra, e isso lançará luzes sobre períodos da nossa história que a
sociedade precisa e deve conhecer. São momentos difíceis que foram
contados até hoje, ou, melhor dizendo, foram contados durante os
acontecimentos sob um regime de censura, arbítrio e repressão, quando a
21 Roussef, Dilma. Discurso durante cerimônia de sanção do projeto de lei que promulgou as leis 12.527/11 e 12.528/2011. Brasília, 18 de novembro de 2011. Disponível em:
http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-cerimonia-de-sancao-do-projeto-de-lei-que-garante-o-acesso-a-informacoes-publicas-e-
do-projeto-de-lei-que-cria-a-comissao-nacional-da-verdade.
22 Brasília, Lei 12.528, de 18 de Novembro de 2011, art. 1º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm
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II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas,
mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria,
ainda que ocorridos no exterior;
III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as
circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos
mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos
diversos aparelhos estatais e na sociedade;
VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história
dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar
Neste sentido, pode-se afirmar que após diversas experiências com outras
modalidades de transição, finalmente o Brasil pode compartilhar pontos em comum
com sua modalidade atual de transição e a modalidade sul africana.
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estruturar melhor definição:
Nessa linha, não só o objetivo da CNV será importante para o país, assim como as
consequências que deixará, todo o acervo de informações e documentos que a CNV
reunir, terão como destinação o Arquivo Público Nacional.
24 Polak, Michael, Memória Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3.
25 Brasília, Balanço de Atividades 1 ano de Comissão Nacional da Verdade, p.11. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/balanco_1ano.pdf.
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A Comissão Nacional da Verdade, composta de forma pluralista, será
integrada por 7 (sete) membros, designados pelo Presidente da República,
dentre brasileiros, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados
com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem
Mais uma vez a lei está coadunada aos ditames estabelecidos na sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos para o caso Araguaia.
26 Brasília, Lei 12.528, de 18 de Novembro de 2011. Art. 2º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm.
27 Sentença Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia vs Brasil). 24 de novembro de 2010. p 107.
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Sob a vigência da Comissão, o país experimenta o fenômeno da substituição e troca
de nome das escolas da rede de ensino público, suprimindo os heróis da ditadura
um a um por nomes de outras personalidades. Em 2013, via eleição interna, e ação
conjunta da Comissão Estadual da Verdade, Salvador e Nova Iguaçu, no Rio de
Janeiro, trocaram os nomes do ex-presidente general Emilio Garrastazu Médici e
Escola Estadual Presidente Costa e Silva pelo ativista político Carlos Marighela e
Abdias Nascimento respectivamente. Ambas as escolas realizaram votação interna
para a escolha dos novos nomes28. A projeção é que as substituições não se limitem
aos nomes das escolas da rede pública, e atinjam inclusive as ruas, praças e
avenidas das cidades país afora.
Reflexão Final
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Não foi a primeira oportunidade em que o país foi compelido a incluir em sua agenda
de políticas públicas ações positivas para preservação dos direitos humanos. Apesar
de ser um país que possui adesão da sociedade neste tema, paradoxalmente as
instituições não têm por hábito concretizar a tendência social em práticas
afirmativas. Um caso emblemático é a Lei Maria da Penha, promulgada em situação
semelhante à Lei da Comissão Nacional da Verdade, em virtude de sentença
proferida pela mesma Corte Interamericana de Direitos Humanos.
30 São José da Costa Rica, sentença Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia vs Brasil). 24 de novembro de 2010. p 95.
31 São José da Costa Rica, sentença Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia vs Brasil). 24 de novembro de 2010. p 103.
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Neste sentido, é possível compreender que a sentença proferida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos acertou em privilegiar a preservação de direitos
humanos. Para isso a Comissão Nacional da Verdade será mais uma das etapas
para o fortalecimento e construção das bases da democracia brasileira.
Barbosa, Rui. Anistia Inversa, caso de teratologia jurídica. In obras completas. Rio
de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, 1995. Vol XXXIV, T. III.
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Brasília, Comissão Nacional da Verdade. Balanço de Atividades 1 ano de Comissão
Nacional da Verdade, p.11.
Brickford, Louis. Transitional Justice. In: The Encyclopedia of Genocide and Crimes
Against Humanity. Nova Iorque: MacMillian.
Escolas com nomes de militares são rebatizadas no Rio e na Bahia. Jornal O Globo,
Rio de Janeiro, 12 de dez. 2013. País.
Histórias da ditadura que a escola não contava. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 09
de nov. 2013. Educação.
Minow, Martha. Between Vengeance and Forgiveness. Boston: Beacon Press, 1998.
País tem quase mil escolas com nomes de Presidentes da ditadura. Jornal O Globo,
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Rio de Janeiro, 02 de set. 2013. Educação.
São José da Costa Rica, Sentença Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso
Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia vs Brasil). 24 de nov. de 2010.
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