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Lédio Rosa de Andrade O QUE É DIREITO ALTERNATIVO?

Apresentação

Os interesses dominantes em qualquer sociedade

O que é Direito fabricam mecanismos que os preservam. Uma das formas


adotadas é a que se conhece por instituição. Dentre elas,
talvez a que tenha conseguido mais "sacralidade" seja a
Alternativo? do Direito — o Direito e as estruturas de sua realização.
Uma das características das instituições é a de obter de
seus operadores uma colaboração ideologicamente
2a Edição, revisada e atualizada envolvida. Um operador do Direito crê que nas suas lides
busca-se e se oferece Justiça, esta mesma que garante
que o mundo seja como ele é.
O movimento Direito Alternativo não é algo muito
definível. Ele aglomera desde messiânicos deslumbrados
até sofisticados críticos da sociedade. Mas se não é
possível enquadrá-lo em conceito, não se lhe pode negar
um inestimável valor. Seus adeptos, no Brasil, avisaram a

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todos, inclusive aos comportados componentes do


mundo jurídico, que o Direito não é neutro, mas, pelo
contrário, está comprometido com um determinado tipo Introdução
de sociedade.
A ferocidade típica dos críticos do Direito Alternativo
não é dirigida aos seus erros, que são muitos. É uma
agressividade inconformada com o seu maior acerto: o
mundo jurídico foi questionado, e a partir de suas
entranhas. A sociedade ouviu falar e falou sobre uma O Direito Alternativo, ou Movimento do Direito
instituição protegida pelo silêncio. O Direito e seus Alternativo, é um movimento de juristas, ou seja, de um
aparatos foram todos trazidos para as páginas mundanas grupo de pessoas com certos objetivos comuns que se
dos jornais, discutidos como coisa comum, dessas tantas organizaram, no Brasil, para produzir uma nova forma de
das quais alguns se servem para manter "modos" de ver e praticar o Direito, a partir do ano de 1990. De início
produzir misérias, muitas sob a custódia de declarações eram apenas juízes de Direito, hoje são também
jurídicas. advogados, promotores de Justiça, professores,
Este livro, sem fazer apologias, discute os significados e estudantes, procuradores e, enfim, todos os profissionais
as razões de uma atitude alternativa a uma maneira vinculados à Ciência Jurídica.
conformada de lidar com as leis. Em última instância, Para se compreender o significado de Direito
explica o grito de independência dado por alguns diante Alternativo, entendo necessário, como medida
de um sistema que se reproduz com o comprometimento propedêutica, dizer exatamente o que "não" é Direito
dos juristas. Alternativo. Isso torna-se imprescindível devido a uma
estereotipagem efetuada sobre o movimento, pois, de
Léo Rosa de Andrade forma dogmatizada, alguns críticos alegam ser uma
Doutor em Direito pela UFSC e professor na Unisul corrente do Direito contra a lei, que defende a liberdade
total
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do julgador, o que significaria um tremendo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo:
voluntarismo jurídico com capacidade de permitir a Editora Ícone, 1995, 239 p. Coleção Elementos de
quebra do Estado de Direito e, pior, a possibilidade de se Direito). Ele distingue três aspectos, independentes entre
levar o Direito e, consequentemente, a própria sociedade, si, do positivismo jurídico, quais sejam: a) o método,
a uma prática fascista. Uma espécie de retorno ao go- para o estudo do Direito; b) a teoria do Direito; e c) a
verno dos homens sobre o governo sob leis. Não obstante ideologia do Direito.
inexistir: a) qualquer escrito alternativo defendendo estas A meu ver, as críticas do Direito Alternativo são
ideias; e b) qualquer jurista alternativo apregoando a direcionadas: 1) à teoria juspositiva, pois descreve a
formação de uma sociedade anômica, com magistrados realidade de forma falsa; e 2) à ideologia juspositiva,
livres para julgarem de acordo com sua própria vontade, pois interfere na realidade criando valores úteis às classes
criou-se esse preconceito sobre o movimento a ponto de mais favorecidas em detrimento da grande maioria da
ensurdecer os juristas tradicionais que, simplesmente, população. Trata-se de uma critica fundada em um juízo
repetem essas acusações sem qualquer fundamento axiológico, de valor. Quanto ao método, por ser o
teórico ou prático, de maneira totalmente dogmática e, científico, é aceitável se não trabalhado dogmaticamente.
pior, inverídica. O magistrado Amilton Buena de Carvalho, talvez o
De uma forma introdutória pelo avesso, afirmo que o maior responsável pelo surgimento do Direito
Direito Alternativo não é um movimento contra a lei, não Alternativo Brasileiro, não deixa dúvidas sobre a
defende a livre interpretação do juiz e, deveras necessidade de leis para resguardar a vida 'em sociedade,
importante, não despreza a teoria do Direito. ao afirmar de maneira expressa: "A lei escrita é conquista
Por criticar o positivismo jurídico, alguns alternativos — da humanidade e não se vislumbra possibilidade de vida
e quase todos os seus críticos— confundem sua proposta, em sociedade sem normas (sejam elas escritas ou não)"
colocando-a como sendo contrária à estrutura legal (Direito Alternativo na Jurisprudência. São Paulo: Edi-
vigente, fundada na existência de um sistema oficial e tora Acadêmica, 1993, p. 8.)
hierárquico de leis, para regular as relações sociais. Creio que alguns exemplos históricos concretos poderão
Nesse ponto, tornam-se importantes os ensinamentos do aclarar, em definitivo, a polêmica. Até época bem
pensador italiano Norberto Bobbio (O Positivismo recente, na África do Sul, perdurava o regime conhecido
mundialmente por
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Apartheid. O mesmo era edificado sob um sistema legal sistema de normas e contra a interpretação a ele dada
e hierárquico, devidamente emanado do parlamento, pelos magistrados brancos, pois acarretavam terríveis
produzido em conformidade com o sistema legal vigente, consequências sociais, inaceitáveis no mundo atual.
Havia leis, formalmente perfeitas, que proibiam, por Para não ficar no passado, posso ilustrar com outra
ilustração, um ser humano branco de sentar em um banco situação, ainda em vigor. Nos países islâmicos, como
de praça junto a outro ser humano negro. Tal regime resultado de uma interpretação (oficializada) feita do
político jurídico era combatido com vigor, dentro Alcorão, as mulheres estão submetidas a uma ordem
daquele país, pela grande maioria da população, com legal (formalmente Perfeita) terrível. A palavra de um
base em um direito popular, não oficial, mas homem sempre prevalece contra a palavra de uma
essencialmente legítimo, e também por todas as nações mulher.
ocidentais democráticas, sob as determinações da Assim, basta um marido levar suas suspeitas de adultério
Organização das Nações Unidas - ONU, por afrontar os a um tribunal, para sua esposa correr o risco de ser
princípios gerais e universais do sistema democrático e condenada à morte. O mesmo vale para um pai, que
do Direito moderno. denuncia a filha solteira de manter relações sexuais. Os
Nesse caso concreto, não se pode acusar os juristas sul- críticos desses sistemas jurídicos não são contra a lei em
africanos, assim como os juristas da ONU e dos países si, não apregoam a anomia, mas combatem a
ocidentais antiapartheid, de serem contra a lei, de determinada estrutura jurídica, sua interpretação e
defenderem o voluntarismo dos magistrados, devido ao aplicação.
fato de combaterem o regime legal e segregacionista Com o Direito Alternativo brasileiro ocorre uma
daquele país, mantido por um sistema oficial de normas similaridade. Não se está a lutar contra a existência de
jurídicas. Isso porque ninguém combatia a existência, em um sistema de normas escritas no Brasil, e não se
si, de um sistema legal na África do Sul. Da mesma defende a ausência de limites aos julgadores. Labuta-se
forma, não se defendia a liberdade total dos juízes de contra o conteúdo de algumas leis, contra a falta de
direito daquele país. Aliás, eles judiciavam em perfeita aplicação de outras e contra a interpretação reacionária
sintonia com o sistema racista. A resistência interna e a efetuada pela grande maioria dos juristas brasileiros, em
indignação mundial eram contra o conteúdo daquele especial pelos juízes de Direito, desembargadores e
ministros, aos textos legais. Isto porque esta realidade
16 leva o arcabouço jurídico do Estado a ser-

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vir pequenas classes sociais, em detrimento de todo o Um pouco de história


provo, com suas raras exceções. Para uma ampla compreensão sobre o Direito
Vejamos outros dois exemplos claros. Todos os países Alternativo, é necessário começar com o golpe de
civilizados e democráticos ocidentais indignam-se (talvez Estado, levado a cabo no Brasil no ano de 1964. Com o
sem o mesmo fervor exercido contra o Apartheid) contra assalto dos militares ao poder e à administração do país,
a concentração de renda e a concentração da propriedade a sociedade ficou submetida à violência, e uma de suas
da terra existentes no Brasil, e seus corolários: miséria, graves consequências foi o total tolhimento de qualquer
fome, mortalidade infantil, violência, criminalidade, etc.. reivindicação por "direitos", tanto individuais como
No âmbito interno também há resistência. Esta triste e coletivos. O cidadão brasileiro, nesse período, Perdeu,
brutal realidade é permitida e protegida pelo arcabouço ou, pelo menos, teve diminuída sua capacidade de ir em
jurídico oficial brasileiro, sendo perfeitamente legal sob juízo, exercitar seus direitos subjetivos, para pleitear
os aspectos formal e sistêmico. Lutar contra ela não direitos objetivos relacionados com sua condição social,
significa buscar a destruição da estrutura legal ou do econômica e laborai. Na mesma medida, todo tipo de
sistema jurídico do Brasil, mas a tentativa de associação, quando não proibida, encontrava sérios pro-
modificação do seu conteúdo e interpretação, para alterar blemas para se organizar, e isso não permitia pleitear
suas consequências sociais. Repete-se a liça outrora direitos coletivamente, como ocorre hoje
efetuada contra a escravatura (um sistema legal estatal)
em nosso país. Isso é a essência do Direito Alternativo. 19
Com o escopo de explicar o significado de Direito
Alternativo, inicio com um breve repasse histórico.

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em dia, por exemplo, com o Movimento dos Sem-Terra, Outro problema grave criado pela ditadura militar diz
dos aposentados, dos sem-teto, das centrais sindicais, etc. respeito ao ensino jurídico. Naqueles anos, as faculdades
O Poder Judiciário, não obstante ter sofrido algumas de Direito foram mais legalistas que outrora, e sua
restrições pelas legislações de exceção, foi o menos pedagogia cingia-se a transmitir os conteúdos (aparentes,
atingido e o que menos reagiu às violências praticadas não ideológicos) das normas em vigor, o pensamento de
pelos golpistas. Suas atividades, durante todo esse alguns doutrinadores e da jurisprudência, quase sempre,
período, foram normais. O Direito Positivo, a prática de extrema direita. O bom aluno era o decorador, o
forense em geral e um número significante de juristas possuidor de boa memória, mesmo sendo incapaz de
mantiveram suas funções sem grandes modificações, criar uma linha. Tentar problematizar a Ciência Jurídica,
apesar da ditadura. Os magistrados, ressalvadas poucas criticar seus dogmas era prática subversiva e poderia
exceções, não foram atingidos pela pródiga atividade levar à Prisão, à tortura e, até mesmo, à morte. Nos dias
legiferante dos militares; ao contrário, muitos se sentiram atuais, no tocante à prática pedagógica e ao conteúdo
mais poderosos e mais "autoridades". Tanto é verdade ministrado, a realidade pouco mudou, ressalvadas apenas
que, por volta de 1975, em um Congresso Nacional dos algumas faculdades com ensino mais crítico.
Magistrados, o então juiz de Direito João Baptista Com o fim da ditadura (1985), teve início o processo
Herkenhoff, hoje companheiro alternativo, em sessão para a elaboração da nova Constituição Federal. A
plenária, propôs uma moção pedindo tão-só a volta do Associação dos Magistrados Brasileiros organizou várias
Estado de Direito (não incluiu a palavra Democrático) e reuniões regionais para confeccionar propostas ao
foi derrotado de forma esmagadora, recebendo apoio Congresso Constituinte. Nessas reuniões, alguns juízes,
apenas de três ou quatro congressistas. Os juízes, em especial no Rio Grande do Sul, contrários ao regime
desembargadores e ministros presentes não quiseram a militar, mas isolados e sós, identificaram-se com -outros
volta do Estado de Direito. Aqui surge então urna grande colegas de profissão e concatenaram-se na defesa de
questão. Como pode ser normal a atividade do Poder temas comuns, como a reforma agrária, a democratização
Judiciário, incumbido de fazer Justiça, sob uma ditadura do Poder Judiciário, o acesso à Justiça, a distribuição de
militar? renda, entre outros.

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Também havia, como hoje há, uma forte insatisfação (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do
com a profissão e com a atitude do Poder Judiciário Adolescente, Código do Consumidor e Lei de Execuções
frente aos cruciais problemas nacionais. O Judiciário Penais). Isto gera uma grande dissintonia entre o discurso
sempre comportou-se como uma instituição neutra, jurídico hegemônico e a realidade socioeconômica do
alheia aos problemas da população, sob o argumento de país.
ser sua função tão-só aplicar a lei, ignorando as dificul- Existiam, ainda, os descontentes com os benefícios
dades e conflitos existentes na sociedade e, até mesmo, o usufruídos (as chamadas mordomias) pelos magistrados,
resultado dessa aplicação. Por corolário, a atividade de em especial pelos membros dos tribunais, como uso de
julgar foi burocratizada e circunscreveu-se, ressalvadas veículos oficiais para fins particulares, o nepotismo, as
raras exceções, a resolver problemas setoriais da classe isenções fiscais, etc. Por derradeiro, talvez a mais
média e rica na área cível e a condenar pobres no âmbito angustiante das decepções, estava o descrédito popular
criminal. Além disso, os julgadores deparavam-se, e se- do Poder Judiciário, resultando não só na perda do
guem deparando-se, com o anacronismo da legislação, monopólio da função jurisdicional, pois vários conflitos
com a rigidez processual e sua consequente ineficácia jurídicos passaram a ser resolvidos fora de seu campo de
social da prestação jurisdicional e com o caráter atuação (as grandes corporações possuem mecanismos
meramente exegético da cultura jurídica dominante. O privados para resolver seus conflitos e a multidão de
resultado é a formação de julgadores completamente excluídos está submetida à lei do mais forte), mas
vinculados à lei, ou melhor, a algumas leis eleitas corno também na própria desconfiguração da autoridade parti-
prioritárias, e à jurisprudência dos tribunais. É curioso, cular do julgador.
mas os legalistas defendem e interpretam de forma Todo esse quadro criou uma tensão intrapoder. Do
extensiva as leis repressivas (Código Penal) e as descontentamento surgiu uma práxis jurídica alternativa.
protetoras de Direitos privados (Códigos Civil e Simultaneamente, a sociedade civil começou a organizar-
Comercial), ao mesmo tempo que negam, não aplicam ou se e a trazer ao Poder Judiciário reivindicações não
interpretam restritivamente as leis em vigor com resolvidas pelos outros Poderes; todas, até então,
conteúdo social ou as que estabelecem direitos coletivos consideras políticas, econômicas ou sociais, não
jurídicas. São exem-
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plos, as questões da terra (ocupações políticas), dos Entre esses julgadores inovadores estavam os primeiros
salários (grandes conflitos coletivos e greves - sistema juízes alternativos, mas não só eles. Outros magistrados
econômico) e, inclusive, pedidos de indenizações por também se rebelaram contra o distanciamento e, até certo
mortes ocasionadas pelo regime anterior (política). A ponto, abandono do Poder Judiciário às questões sociais.
população politizou o Judiciário, transformando as lides Alguns agiram individualmente e embasados nas mais
jurídicas de demandas só interindividuais em conflitos diversas ideologias (como o jusnaturalismo teológico, ou
coletivos e classistas. natural, e o marxismo) propugnavam a aplicação da
Incapaz de dar solução a esses pleitos, novamente, os Justiça como fator legitimador da atividade jurisdicional.
magistrados, em sua ampla maioria, socorreram-se do Outros se organizaram em agrupamentos distintos, como
argumento da neutralidade e da apoliticidade, e negaram- foi o caso dos Juízes para a Democracia, movimento
se a ingressar nessas polêmicas, para eles não jurídicas, surgido em São Paulo, com inspiração nos juízes
ou juridicamente irrelevantes. Entretanto nem todos espanhóis denominados Jueces para la Democracia.
assumiram essa postura. Alguns magistrados O seguinte esquema permite uma visão global desse
abandonaram a atividade só formal, dita tecnodedutiva, e processo e do surgimento de correntes jurídicas no
assumiram seu compromisso com o social, ou melhor Direito brasileiro, pós-golpe.
dito, passaram a compreender a atividade jurisdicional
como uma prática comprometida com as condições
socioeconômicas da população. Passaram a dar
importância aos resultados, aos efeitos reais de suas
sentenças. Até porque a prática jurídica tida como
apolítica, de pura técnica neutra, é, em realidade, uma
práxis ideológica, vinculada ao poder hegemônico,
comprometida, de igual forma, com determinadas
condições socioeconômicas e políticas. A diferença
destas formas jurídicas de agir está, no âmago, em quem
se beneficia delas.
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O primeiro passo para o início do Direito Alternativo foi sociais. O alvo central da matéria jornalística foi o juiz,
a criação de um grupo de estudos, organizado por alguns hoje desembargador, Amilton Bueno de Carvalho, um
juízes de Direito gaúchos, comuns e trabalhistas, após dos responsáveis pela organização desses encontros.
participarem de reuniões promovidas pela associação O efeito desejado pelo órgão de imprensa acabou
classista, com o propósito de levantar sugestões aos invertido, pois não houve ridicularização ou
legisladores constituintes. Nesse mesmo tempo, juristas desmoralização; ao contrário, a publicação acabou
não magistrados, como Edmundo Lima de Arruda Júnior, servindo como um grande veículo de propaganda, unindo
Antônio Carlos Wolkmer, Miguel Pressburger, Miguel vários magistrados descontentes com a postura
Baldez, Clèmerson Merlin Clève, entre outros, tradicional do Judiciário, mas até aquele momento
influenciados pelo movimento italiano do uso alternativo isolados e desorganizados. Muitos foram os juízes que
do Direito, já falavam na possibilidade de criação de um escreveram artigos em jornais e revistas defendendo os
Direito Alternativo, isso por volta do ano de 1987. Não colegas gaúchos. Eu mesmo procurei Amilton após esse
se pensava, até então, na criação de um movimento fato, pessoa desconhecida antes do ocorrido.
jurídico crítico, organizado em todo o Brasil. Portanto é correto afirmar ter sido o mês de outubro de
O episódio histórico responsável pelo surgimento do 1990 a data de início do Direito Alternativo ou, hoje mais
Direito Alternativo ocorreu no dia 25 de outubro de consolidado, Movimento do Direito Alternativo
1990, quando o Jornal da Tarde, de São Paulo, veiculou Brasileiro. Isso porque Amilton e outros juristas críticos
um artigo redigido pelo jornalista Luiz Maklouf, com a (Roberto Aguiar, José Geraldo de Souza, Miguel Baldez,
manchete "JUIZES GAÚCHOS COLOCAM DIREITO Miguel Pressburger, José Reinaldo Lopes, Jackson
ACIMA DA LEI". Essa reportagem teve o objetivo de Azevedo, Edmundo Lima de Arruda Júnior) receberam a
ridicularizar e desmoralizar o grupo de magistrados do notícia sobre a publicação da reportagem por telefone,
Rio Grande do Sul, que, até aquela data, reuniam-se para quando estavam reunidos na casa da juíza do trabalho
discutir a Ciência Jurídica sob uma visão crítica e debater Ilce Marques de Carvalho, na cidade de Salvador, Bahia,
formas alternativas de aplicação do Direito positivado, participando do III Encontro Nacional da "Nova Escola
buscando alcançar fins Jurídica". Após a chamada telefônica, numa espécie de
respos-
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ta, decidiu-se realizar o I Encontro Internacional de Naquele Encontro, foi criado o Instituto de Direito
Direito Alternativo, na cidade de Florianópolis, Santa Alternativo - IDA, com sede na cidade de Florianópolis.
Catarina, nos dias 04 a 07 de setembro de 1991. Como Vários outros encontros e congressos foram realizados,
ato preparativo para o congresso, foi publicado o livro como: I Encontro Internacional de Direito Alternativo do
Lições de Direito Alternativo 1. Desta forma, deu-se o Trabalho, agosto de 1992, e II Encontro Internacional de
nascimento do movimento. Direito Alternativo, em setembro de 1993, ambos em
O nome Direito Alternativo foi dado pela imprensa, pois Florianópolis; I Seminário de Direito Agrário
os juízes gaúchos apontados no artigo do jornalista Luiz Alternativo, Campinas, 1992; Seminário Nacional de
Maklouf assim foram denominados. Isso deve-se, Direito Alternativo, Rio de Janeiro, 1993. Novamente em
acredito, à circunstância de Amilton ser professor, já Florianópolis, o II Encontro Internacional de Direito
naqueles dias, mesmo antes de surgir o movimento, da Alternativo do Trabalho e, em Blumenau, o I Congresso
cadeira de Direito Alternativo, na Escola Superior da de Direito Civil Alternativo, ambos em 1994.
Magistratura do Rio Grande do Sul. No exterior o tema foi debatido, sendo exemplo o curso
Sendo um movimento de crítica à ordem estabelecida e Seguridad Jurídica y Crítica dei Derecho en
havendo, na época, ao final de uma ditadura militar, um Iberoamérica, ocorrido na Universidade Internacional de
forte espírito de reivindicação social e de luta por Andaluzia, na Sede Iberoamericana Santa Maria de la
liberdade, o Direito Alternativo virou uma espécie de Rabida, Huelva, Andaluzia, Espanha, no final de 1994.
moda. Seus eventos foram de grande sucesso, sendo Outro fator de extrema importância foi a participação de
exemplo o I Encontro Internacional. Os organizadores juristas alternativos em quase todos os eventos jurídicos
previam a participação de aproximadamente quatrocentas efetuados desde o ano de 1991 até a presente data.
pessoas. As inscrições, por falta de espaço físico, foram Amilton Bueno de Carvalho profere palestra,
encerradas ao atingir o número de 1.200 participantes. O literalmente, em quase todos os finais de semana. Além
livro Lições de Direito Alternativo 1, com uma tiragem dele, vários outros juristas participam de encontros,
de dois mil exemplares, esgotou em um mês. congres-

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sos e seminários promovidos por estudantes, advogados, até o ano de 1995, quando encerrou suas atividades, um
até mesmo magistrados e membros do Ministério total de vinte e dois mil e duzentos e trinta livros, ou seja,
Público. no prazo de quatro anos, uma média de quatrocentos e
Foram publicados vários livros sobre o assunto. Os sessenta e três obras vendidas por mês. Ressalto que
primeiros pela editora Acadêmica, de São Paulo, como: esses livros foram comprados em decorrência de uma
Lições de Direito Alternativo 1 e Lições de Direito escolha livre dos leitores, pois não são manuais
Alternativo 2, vários autores; Magistratura e Direito obrigatórios nas faculdades de Direito e nem são
Alternativo e Direito Alternativo na Jurisprudência, de utilizados em concursos públicos.
Amilton Bueno de Carvalho; Ministério Público e Vários foram os artigos publicados em revistas e em
Direito Alternativo, de Antônio Alberto Machado e jornais sobre Direito Alternativo, bem como algumas
Marcelo Pedroso Goulart; Juiz Alternativo e Poder dissertações de mestrado e teses de doutorado foram
Judiciário, meu; Introdução à Sociologia Jurídica elaboradas sobre o tema, não havendo, entretanto, uma
Alternativa, de Edmundo Lima de Arruda Jr.; Lições de catalogação, motivo pelo qual torna-se impossível citar a
Direito Alternativo do Trabalho, vários autores; Ensino todos. Fora das fronteiras brasileiras alguns artigos foram
Jurídico e Direito Alternativo, de Horácio Wanderlei publicados sobre o movimento. O professor argentino,
Rodrigues; Lições de Direito Civil Alternativo, vários radicado no México, Óscar Correas escreveu
autores; Razão e Racionalidade Jurídica, vários autores, Alternatividad y derecho: el derecho alternativo frente a
Lições Alternativas de Direito Processual, vários la teoria del derecho, texto publicado na revista Crítica
autores, e Revista de Direito Alternativo, volumes 1, 2 e Jurídica, México, e o livro Teoria del Derecho,
3. A editora Livraria do Advogado publicou os livros Barcelona, Maria
Motivações Ideológicas da Sentença e Princípios do Jesus Bosch, S. L., 1995. Os professores Joaquín Herrera
Processo Civil, ambos do desembargador Rui Portanova; Flores e David Sanchez Rubio, ambos de Sevilha,
a editora Alfa-Ômega, a obra Pluralismo Jurídico: Espanha, redigiram o trabalho Aproximación al derecho
fundamentos de uma nova cultura do Direito, de Antônio alternativo em Iberoamérica, publicado na revista Jueces
Carlos Wolkmer; a editora Sérgio Antonio Fabris, o livro para la Democracia, Madri. Carlos Maria Cárcova, jurista
Justiça Alternativa de Elício de Cresci. argentino, publicou o livro Teorias jurídicas alternativas,
Só a editora Acadêmica publicou trinta e um mil e Centro Editor de América Latina,
cinquenta exemplares, tendo vendido,
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Buenos Aires. O professor David Sanchez Rubio eleição, entre outras disciplinas oferecidas.
publicou o livro Filosofia, Derecho y Liberación em O Movimento do Direito Alternativo começou com
América Latina, editora Desclée, Bilbao, 1999, quando juízes de Direito, em seguida alastrou-se por todas as
estuda os autores alternativos brasileiros. Eu publiquei: áreas jurídicas, abrangendo promotores de justiça,
Brasil: magistratura y Guerra de Posición, na revista advogados, professores e estudantes. Sua ascensão foi
Jueces para la Democracia, Madri e Dret Alternatiu, na rápida e transformou-se em uma corrente organizada,
revista catalã Demà, Periòdic per la Revolta. Um artigo talvez a maior, do pensamento jurídico crítico ao Direito
de Amilton Bueno de Carvalho foi traduzido e publicado tradicional, no Brasil.
na revista Porta Voz, do Instituto Latino Americano de Sem embargo, devo registrar que o modismo inicial
Serviços Alternativos - ILSA, Paris, sob o título acabou. Os últimos encontros e congressos tiveram um
Actuación de los jueces alternativos ganchos en ei número de participantes bastante menor, e a publicação
proceso de postransición democrática: (o una nueva de livros e artigos foi reduzida. Nos anos de 1994 e 1995,
praxis en busca de una teoria). Além disso, foram houve um refluxo do movimento, a meu ver muito
criadas três disciplinas em universidades sobre Direito positivo, permitindo a seus membros uma espécie de
Alternativo, uma em graduação, como optativa, na parada para reflexão, pois a prática exercitada foi
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL, extraordinária, mas sua teoria era e ainda é embrionária e
Tubarão, hoje desativada, e duas em pós-graduação, uma necessita ser aprofundada. No final do ano de 1995,
em nível de mestrado, na Universidade Federal de Santa entretanto, o movimento volta a ressurgir, de forma lenta.
Catarina -UFSC, Florianópolis, e outra em nível de Foi publicado o livro GRAMSCI : Estado, Direito e
especialização, na Universidade Regional do Noroeste do Sociedade, de vários autores, com muitos artigos sobre
Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, Ijuí. Uma outra cadeira Direito Alternativo. Eu defendi minha tese de doutorado
sobre Direito Alternativo já existia na Escola Superior da na Universidade de Barcelona com o título: O
Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul. No MOVIMENTO DE DIREITO ALTERNATIVO
corrente ano ministrei uma cadeira optativa sobre Direito BRASILEIRO (Contexto, história, posições e situação
Alternativo, na Universidade do Extremo Sul atual). Este estudo, após revisado, foi publicado, em
Catarinense, UNESC, Criciúma, sendo a mesmo 1996, pela editora Livraria do Advogado, com o título
escolhida livremente pelos alunos, através de Introdução ao Direito Alterna-

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tivo Brasileiro. Já em 1997 foram publicadas as seguintes ticipação de vários pensadores nacionais e estrangeiros.
obras: Direito Alternativo em Movimento, de Amilton Em setembro de 1998 ocorreu o III Encontro Nacional
Bueno de Carvalho, pela editora Luam e Tempo do de Direito Civil Alternativo, na cidade de Cáceres, MT, o
Direito Alternativo, de Cláudio Souto, pela editora que demonstra que a ideia alternativa já se espalhou por
Livraria do Advogado. Saíram, em 1998, as obras Direito todos os rincões deste país.
e Século XXI: conflito e ordem na onda neoliberal pós- O movimento, na atualidade mais maduro, passa por um
moderna, de Edmundo Lima de Arruda Júnior, e Teoria e instante histórico especialmente importante. Após um
Prática do Direito Alternativo, de Amilton Bueno de início eufórico, houve uma parada para reciclagem.
Carvalho, editora Síntese. Os membros do movimento Pouco a pouco foi retomando seu rumo e hoje volta à
passaram a publicar obras sobre outros temas, mas pauta do mundo jurídico brasileiro. Duas opções se
sempre mantendo a alternatividade como marco teórico. abrem: 1) ou se firmará como uma corrente crítica do
São exemplos Aplicação da Pena e Garantismo, de Direito, consolidando uma práxis jurídica alternativa e o
Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho, editora início de uma nova teoria do Direito; 2) ou não terá êxito
Lumen Juris, e Direito ao Direito, meu, pela editora JM. e ficará na história como uma moda, uma revolta
Recentemente, Amilton Bueno de Carvalho e seu filho momentânea que veio e passou. Apesar das constantes
Salo de Carvalho traduziram a obra do escritor argentino críticas e dos preconceitos criados contra o movimento, a
Diego J. Duquelesky Gomez, intitulada Entre a Lei e o primeira hipótese vem se consolidando. Ele ainda
Direito: uma contribuição à Teoria do Direito continua atuante, não obstante ter saído da vitrina do
Alternativo, publicada pela editora Lumen Juris. cotidiano forense. Seus membros sempre mantiveram
Nos dias 16 a 19 de outubro de 1996, aconteceu o III suas atividades, e não foram poucas as conquistas
Encontro Internacional de Direito Alternativo, democráticas ocorridas no dia-a-dia dos tribunais e
novamente na cidade de Florianópolis. O IDA realizou, fóruns de Justiça nos últimos seis anos. Fala-se em um
em março e setembro de 1998, na mesma cidade, o I grande congresso internacional em 2001 para sua
Congresso Internacional de Neo Socialismo e o IV reconstrução. Penso que nada deva ser reconstruído, pois
Encontro Internacional de Direito Alternativo, e em o Direito Alternativo nunca morreu. Nestes 11 anos de
junho de 1999 o II Congresso Internacional de Neo existência, não se
Socialismo, todos com a par-
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passou um único ano sem a presença dos alternativos em


vários congressos, encontros, semanas jurídicas e demais
atividades relacionadas com a Ciência Jurídica. O
movimento não se institucionalizou, mas se transformou
em uma forte ideia, presente na consciência dos juristas
brasileiros e no cotidiano forense nacional. Usando uma
expressão de Rui Portanova, se ele não alterou as
relações de força e de poder no mundo do Direito, pelo
menos infernizou e inferniza a vida das classes
hegemônicas e de seus juristas.

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LÉDIO ROSA DE ANDRADE O QUE É DIREITO ALTERNATIVO?

O amadurecimento existentes, com o escopo de combater a miséria,


promover a liberdade e a igualdade material,
Na fase inicial, mais ou menos em seu primeiro ano de
fortalecendo uma possível democracia real.
vida, o movimento do Direito Alternativo cingiu-se a
Os juristas alternativos pretendem-se orgânicos, motivo
duas posturas básicas no nível técnico/teórico: a) defesa
pelo qual buscam, em suas atividades forenses
contra as ferozes críticas efetuadas pelos juristas
cotidianas, criticar a ordem estabelecida, demonstrando o
tradicionais, que, na maioria das vezes, acusaram os
que entendem ser a ideologia latente do discurso oficial,
alternativos de práticas que não realizaram, de conceitos
com o propósito de desmitificá-lo, possibilitando as
e teorias que não escreveram e não defenderam; e b)
transformações pretendidas. Daí resulta uma de suas
crítica ao sistema jurídico tradicional estabelecido.
primeiras atividades, qual seja, a de destruir os mitos e os
Após a consolidação do movimento, com a realização
dogmas sustentadores da ideologia jurídica hegemônica,
dos primeiros congressos, algumas teorias surgiram e
isto porque acredita-se que, uma vez desnudado o
vários autores alternativos buscaram descrever, delimitar
discurso jurídico oficial, ou seja, demonstrado para que e
e explicar o conteúdo do movimento e sua prática.
a quem realmente serve, qual a verdadeira intenção
Um dos primeiros conceitos surgidos foi o de Jurista
embutida em sua fala e em suas verdades, evitar-se-ão a
Orgânico. Para os alternativos, os operadores jurídicos
adesão aerifica, a fé irrestrita, a obediência cega, e se
(juízes, promotores, advogados, professores, etc.), em
construirão condições para câmbios.
sua maioria, estão comprometidos com as classes
É importante salientar que a prática alternativa deseja
dominantes e laboram para manter a sociedade
mudanças sociais, mas não pretende transformar a
exatamente como se encontra, não querem mudar nada
sociedade através do Direito (ou só através do Direito),
de estruturalmente importante, porquanto os privilégios
ou através das instituições jurídicas. Toda transformação
que lhes favorecem estão estabelecidos e
social só pode ser resultado da ação articulada de vários
institucionalizados. Orgânico, portanto, é aquele jurista
movimentos sociais progressistas (partidos políticos,
comprometido com a mudança social, que faz de seu
sindicatos, movimentos organizados, etc.), entendidos
labor uma luta constante em prol de transformações
como aqueles comprometidos com mudanças, em todas
estruturais no seio da sociedade, buscando alterar as
as instâncias sociais. Isso é pensamento unânime entre os
relações de poder nela
alternativos. Acre-
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dita-se, entretanto, ser importante o mundo jurídico estar nação imposta." (CARVALHO, Amilton Bueno de.
envolvido na liça pela construção de uma nova Magistratura e Direito Alternativo. São Paulo, Editora
sociedade, ou uma nova forma de viver. Assim, desejam Acadêmica, 1992, p. 89).
assumir seu papel orgânico na prática da alternatividade Afirmando dever o operar jurídico alternativo abandonar
jurídica, pois entendem ser possível uma atividade qualquer postura de neutralidade, assumindo,
progressistas na juridicidade, e que é necessária sua abertamente, um compromisso ético com as classes
união às demais forças de esquerda existentes. menos favorecidas, bem como serem os princípios gerais
Com fulcro nessa ideia de organicidade, o magistrado do Direito os critérios limites do julgador, o magistrado
Amilton Bueno de Carvalho, após criticar a lei como gaúcho elaborou mais alguns conceitos teóricos tentando
parcial e vinculada à classe que a produziu, não delimitar a atuação alternativa. Em realidade, o
aceitando uma adesão dogmática à mesma, apregoando movimento alternativo foi dividido em três atividades
ser ela um referencial importante, mas sob constante prático-teóricas, a saber:
crítica, criou o conceito Jusnaturalismo de Caminhada. 1) Positivismo de Combate. Muitas reivindicações
Para ele, a lei deve ser a positivação de utopias. Essas populares encontram-se erigidas à condição de lei. Como
devem representar a união da máxima cristã vida em exemplo, cito a Constituição Federal, o Estatuto da
abundância para todos, com o jusnaturalismo. Disso Criança e do Adolescente, o Código do Consumidor, a
resultam Direitos Naturais definidos pelo homem, em seu Lei n.º 8.009/90 (bens impenhoráveis), entre tantas
momento histórico, como os melhores para a outras. Essas normas, contudo, em contradição com todas
humanidade. as falácias positivistas, simplesmente não são cumpridas
Sob essas primeiras teorizações, foram surgindo ou, quando são, sofrem violenta interpretação restritiva.
conceitos sobre Direito Alternativo. Amilton conceituou Logo, não basta apenas tornar lei os anseios da
Direito Alternativo, em sentido amplo, como "atuação população. Após a atividade legiferante, incumbe ao
jurídica comprometida com a busca de vida com operador jurídico alternativo lutar pela efetivação
dignidade para todos, ambicionando emancipação (concretização) de todas essas legislações. Pode parecer
popular com abertura de espaços democráticos, tornando- paradoxal, mas uma das principais práticas alternativas é
se instrumento de defesa/libertação contra a domi a luta pelo cumprimento da lei. A isso se chama

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positivismo de combate ou, como atualmente prefere nas ruas, emergente da população, ainda não elevado à
Amilton, positivação combativa. Esse campo de atuação condição de lei oficial, ao contrário, com ela competindo.
está localizado na esfera da legislação instituída, ou seja, É o caso, por exemplo, do Movimento dos Sem-Terra, na
legalmente produzida pelo Estado. luta por um Direito, tido como legítimo, de ter um solo
2) Uso alternativo do Direito. Ainda dentro do campo de para trabalhar e sobreviver, em conflito com o direito de
atuação do Direito Positivo, do arcabouço jurídico do propriedade formalmente estabelecido na legislação
Estado. Partindo de uma visão restrita do movimento brasileira. Para diferenciar esse Direito paralelo,
italiano antes estudado, os juristas latino-americanos, em entendido como popular e efetivador de Justiça, do
especial os brasileiros, entendem por uso alternativo do produzido pelos mafiosos ou narcotraficantes, pois
Direito o processo hermenêutico pelo qual o interprete dá também paralelo, colocam-se fatores diferenciadores
à norma legal um sentido diferente daquele pretendido ético/morais. Só é legítimo o Direito da rua que visa
pelo legislador de direita ou pela classe dominante. efetuar conquistas democráticas, para edificar uma
Assim, realiza-se uma exegese extensiva de todos os sociedade mais igualitária e, consequentemente, mais
textos legais com cunho popular e uma interpretação justa. Esta postura, sob meu entender, possui graves difi-
restritiva da leis que privilegiam as classes mais culdades epistemológicas, porquanto fundamenta uma
favorecidas. teoria com valores subjetivos, até o momento usados com
Adotando a Constituição Federal como norma condutora, maestria pelos detentores do discurso jurídico oficial.
em especial seus princípios, os juristas alternativos Não há uma identidade ideológica no Direito Alternativo,
efetuam, sempre, uma interpretação social ou teleológica não obstante existir uma concordância, especialmente em
das leis, ou seja, objetivam dar um sentido à norma, bus- relação a algumas críticas ao positivismo jurídico e ao
cando atender (ou favorecer) as classes menos paradigma jurídico liberal/legal. Para comprovar isso,
privilegiadas, ou a maioria da sociedade civil. basta ver o pensamento do professor Edmundo Lima de
3) Direito Alternativo em sentido estrito. Trata-se de uma Arruda Jr.. De formação marxista, ele critica alguns
visão do Direito sob a ótica do pluralismo jurídico. alternativos que exaltam a Justiça sobre a lei, por retornar
Significa o Direito existente ao jusnaturalismo. Não aceita,

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igualmente, a denominação "uso alternativo do Direito", cracia não meramente formal, mas real, com ampliação
pois entende que não há, nos países periféricos, um das conquistas populares e com a for-
Estado de Direito mínimo; crê correto falar-se de uso do mulação/implementação de um novo projeto de
Direito, a ser praticado por todos os operadores jurídicos sociedade, de base socialista." (ARRUDA JR., Edmundo
comprometidos com um projeto democrático, para ele Lima de. Reflexões sobre um ensino jurídico alternativo,
sinônimo de socialismo. in CARVALHO, Amilton Bueno de. (Org.) Revista de
O marxismo é considerado o referencial básico do Direito Alternativo, n.º 1, São Paulo, Editora Acadêmica,
movimento, mas não o é exclusivamente. Edmundo 1992, p. 60-61).
também divide, assim como Amilton, a atividade Para ele, o alternativismo é uma opção política, e sua
alternativa em três campos de atuação, a saber: a) no crítica ao Direito dominante não pode ser entendida
plano do instituído sonegado, ou seja, normas prevendo como uma crítica ao Direito em si, mas contra um
direitos que não são efetivados; b) no plano do instituído determinado Direito, ditado por um minoria em nome da
relido, tem-se o campo para a hermenêutica, mas não só maioria. Efetua, ainda, uma análise da sociedade dividida
do magistrado e, sim, de todos os juristas; e c) no plano em classes, não aceitando um Poder Judiciário supra
do instituinte negado, de igual modo a partir do classes. Por conseguinte, os alternativos assumem uma
pensamento pluralista. postura em favor das classes trabalhadoras e subalternas.
Por acreditar na inviabilidade, no atual contexto O pluralismo jurídico é uma corrente muito forte no
histórico, de uma revolução violenta, Edmundo entende interior do alternativismo, possuindo vários defensores.
ser objetivo do movimento pôr em prática a denominada Os mais destacados são Miguel Pressburger e seu Direito
revolução passiva (Antonio Gramsci), isso significando Insurgente, José Geraldo de Souza Júnior, continuados
"ampliar os espaços de luta [inclusive na sociedade de Roberto Lyra Filho, e coordenador do projeto O
política], possibilitando a formação jurídica articulada Direito Achado na Rua, desenvolvido na Universidade
dentro de um horizonte não fundado no ideário de Brasília, e o professor da Universidade Federal de
conservador burguês (a mobilidade a qualquer custo, a Santa Catarina, Antônio Carlos Wolkmer. Esses juristas
perspectiva individualista egoísta), mas comprometido não aceitam que a produção do Direito seja uma
com a construção de uma demo- exclusividade, um monopólio

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do Estado. O professor catarinense sugere uma mudança de


Pressburger vê o Direito Alternativo como o outro paradigma no Direito, para construir um novo
Direito, o não-estatal. Como advogado prático, entende fundamento de validade, e propõe um Direito
ser função do jurista orgânico demonstrar à população as Comunitário, não identificado com o monismo jurídico,
desigualdades sociais escondidas sob a igualdade legal, quer dizer, com o Estado como único agente produtor de
bem como organizá-la, para melhor defender seus normas jurídicas. As fontes do Direito seriam várias,
direitos, ou seja, o Direito paralelo, insurgente. incluindo as lutas e conquistas da sociedade e dos mo-
José Geraldo, pessoa vinculada aos Movimentos Sociais vimentos populares. Nem toda manifestação normativa
Organizados, vê, nestes sujeitos coletivos de Direito, um fora do Estado (Ku-Klux-Klan e Esquadrões da Morte,
potencial capaz de criar espaços políticos de atuação e, por ilustração), para ele, é legítima. Há, por corolário, a
inclusive, novas categorias jurídicas com possibilidade necessidade de alguns requisitos morais para legitimar o
de estruturar as relações solidárias de uma sociedade Direito Alternativo não-estatal. São exemplos: o respeito
alternativa. à vida humana, a eticidade e o valor justo. O Direito
O autor que mais aprofunda o tema do pluralismo Estatal deverá estar subordinado ao Direito Comunitário,
jurídico é Antônio Carlos Wolkmer. Ele entende que o sendo este o alternativo.
Estado liberal-burguês-capitalista produz um modelo de A própria sociedade, em um determinado momento
cultura (padrões de conduta da vida humana) demarcado histórico, conceituará o significado de Direito Justo. Para
pelos paradigmas do idealismo individualista, Wolkmer, a sociedade civil, os movimentos sociais, hoje
racionalismo liberal e formalismo positivista. Estes submetidos à exploração e à dominação, estão se
paradigmas estão em crise e não mais atendem às transformando em novas fontes de Direito, criando uma
necessidades das sociedades dos países capitalistas juridicidade paralela ao Estado, isto é, um Direito
periféricos. Wolkmer crê, outrossim, na necessidade de Comunitário, que transpassará o próprio Direito Positivo
novos referenciais de conduta, hoje emergentes. Por isto, vigente. Esse novo Direito, segundo sua ótica, é
vê os movimentos e as práticas sociais existentes na construído tendo como base os seguintes valores morais:
sociedade civil como fontes geradoras do pluralismo a solidariedade, o respeito à vida humana, a alteridade, a
jurídico. participação coletiva, a éti-

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ca, a justiça e o bem-comum. Como demonstrarei ao estatal, para tomar seu lugar. O professor Óscar Correas
final, estes conceitos ou valores morais são fórmulas assim pensa. Para ele, o Direito Alternativo é um
vazias (usando expressão de Pietro Barcellona), além de sistema normativo cuja obediência obriga à prática de
serem correntes na Teoria Jurídica hoje hegemônica, e, condutas ou omissões tipificadas como delitos ou formas
em realidade, nada dizem de concreto, pois ética, justiça menores de faltas (contravenções, por exemplo), pelo
e bem-comum foram palavras muitas bem adaptadas nas sistema jurídico hegemônico. O Direito Alternativo,
bocas de muitos ditadores. assevera, é uma forma jurídica, ou prática jurídica ligada
Diverso do pluralismo, outros juristas alternativos, como à disputa do poder, mas não via guerra civil. Busca
Clèmerson Merlin Clève, entendem ser função do Direito chegar ao poder debilitando a hegemonia do grupo social
Alternativo, no presente momento histórico, a defesa que o detém, para tomar seu lugar.
incondicional da Constituição. Ele fala em uma nova Conforme demonstrei, várias são as concepções sobre
dogmática jurídica alternativa, capaz de dar aos juristas, Direito Alternativo. Entre os pontos em comum mais
com base na Constituição, um método científico objetivo, importantes, estão: a) a ideia de modificar a sociedade,
para a prática da alternatividade e sua vinculação com o para acabar com a miséria de grande parte da população;
social. b) a não aceitação do liberalismo como modelo político e
Existem os críticos da própria expressão Direito do capitalismo como modelo econômico definitivos.
Alternativo. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho vem Deseja-se superá-los.
afirmando, nos últimos congressos, ser equivocada essa
denominação, pois não se está a lutar por outro Direito e, Fase atual
sim, pela transformação do Direito Positivo vigente. O
O movimento encontra-se perplexo. Aliás, como ocorre
movimento cinge-se ao instituído.
com a esquerda em todo o mundo: sabe muito bem
Por fim, há os que entendem que o Direito Alternativo,
contra o que e contra quem luta, mas não possui uma
necessariamente, deve ser subversivo (não no sentido
proposta alternativa de sociedade. O momento é de busca
pejorativo, delituoso, hoje corrente) do Direito
de uma teoria jurídica alternativa realmente capaz de dar
hegemônico, ou seja, deve buscar subverter a hegemonia
conta do fenômeno jurídico, permitindo sua
da normatividade
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integração com todos os demais fenômenos sociais, isso


com o escopo de transformar a sociedade, erigindo
condições e relações de vida entre os seres humanos, nas
quais não haja lugar para a miséria, para a fome, para e
exploração e para a dominação. Este é um velho e
repetitivo discurso utópico, mas até hoje não elevado à
condição de realidade. Assim, enquanto isso, os al-
ternativos continuam laborando com as armas
disponíveis, que, na atualidade, são as mencionadas
anteriormente.
Há de ter-se presente que para o Direito Alternativo,
buscando amparo na psicanálise, o sentido de progresso
na civilização não corresponde à teoria do sentido da
História. Ao contrário, põe em discussão a própria ideia
de um "sentido" para a História. O progresso não está no
futuro, no grande dia que chegará. O progresso é agora,
em movimento circular de reforma do laço social, de
destruição das ficções mestras, liberando o ser humano e
inventando e reinventando as instituições sociais
necessárias à manutenção da civilização.
A perplexidade acaba se diluindo no agir do momento,
mesmo sem uma teoria acabada sobre uma sociedade
ideal (ela seria absoluta e incompatível com o ser
humano), até porque presente e futuro são indissociáveis
no desenvolvimento histórico.

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