Você está na página 1de 3

ataque à democracia

Para entender o 8 de janeiro, é preciso compreender a nova direita jurídica brasileira

Conceito de contrapúblico ajuda a decifrar caráter anti-institucional e indecoroso desse grupo

José Bento Camassa

03/01/2024

O 8 de janeiro de 2023 está prestes a completar um ano. A tentativa de golpe vinha sendo
alimentada há anos por discursos do ex-presidente contra as instituições democráticas. O Estado de
Direito sempre esteve na mira de Jair Bolsonaro. Muitos deram-lhe pólvora.

O mundo do Direito não ficou alheio a essa movimentação. Tem se celebrado amplamente a
oposição de juristas aos arroubos autoritários do capitão reformado, mas pouco tem se falado do
apoio tácito ou manifesto que outros tantos ofereceram. Formando uma nova direita jurídica,
associações, autores e editoras mobilizaram conhecimentos acadêmicos para fornecer uma retórica
instrumental às bravatas e aos planos do ex-presidente. Essa rede, que vai além da conhecida figura
de Ives Gandra Martins, é uma importante engrenagem do movimento bolsonarista.

Suas ideias dialogaram intimamente com bandeiras de Bolsonaro. Por exemplo, invocando o artigo
142 da Constituição Federal, aventou uma teratológica “intervenção militar constitucional”. Abusando
do conceito de ativismo judicial, deu a deixa para a tese da existência de uma “ditadura do STF”.
Questionando o papel contramajoritário da corte constitucional, aproximou-se da noção tóxica de que
“as minorias têm que se curvar às maiorias”.

Esse ideário não foi forjado à margem do Direito. Gente do ramo ajudou a construí-lo e propagá-lo.
Para compreender a atuação dessa direita jurídica na esfera pública, é preciso relembrar dois
episódios reveladores da peculiaridade desse grupo, um antes e outro depois do 8 de janeiro.

A outra carta

11 de agosto de 2022. Sob holofotes, a antiga Faculdade de Direito da USP testemunhava a leitura
pública da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros pela Democracia”. O projeto fora concebido como
uma manifestação de juristas em resposta às ameaças de Bolsonaro contra a justiça eleitoral.

A Carta estava envolta em uma aura de civismo. Em discurso naquele 11 de agosto, José Carlos
Dias, ex-ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, exortava para que se colocassem velhas
divergências políticas de lado, em nome da união pela democracia. Clamava-se para que toda a
comunidade jurídica denunciasse os intentos golpistas do então chefe de Estado.

Seria isso possível?

Mesmo Brasil, mesma época. Um grupo de advogados também resolve lançar uma carta pública
para se posicionar politicamente. Esse outro manifesto, tal qual o da USP, dizia que o poder emana
do povo e por ele deve ser exercido. Também abraçava a concepção da imperatividade da proteção
aos direitos fundamentais. O título do abaixo-assinado – “Manifesto à Nação brasileira” – é quase um
genérico da carta lida na USP.
Qual a diferença, afinal?

Simplesmente o fato de que o segundo manifesto não se opunha à presidência então vigente;
respaldava-a com orgulho. Pontificava, ainda, um lema protointegralista – “Deus, Pátria, Família e
Liberdade” – e um slogan bolsonarista, com leve modificação – “Deus seja Louvado. Brasil acima de
Tudo”. Era uma reação à primeira Carta. Era um lembrete incômodo de que havia, sim, amplas
camadas de profissionais jurídicos pró-Bolsonaro.

O libelo, como a Carta da USP, alcançou 1 milhão de assinaturas. Mesmo que o número de adesões
possa ter sido inflado de maneira fraudulenta, não se pode negar a magnitude do alcance desse
panfleto bolsonarista.

O manifesto ostentava, como idealizador, um desconhecido “Movimento dos Advogados de Direita


(ADBR)”. Pesquisando a respeito, descobre-se que a fundação dessa associação não foi um
fenômeno isolado nos últimos anos. Organização análoga é a autointitulada “Ordem dos Advogados
Conservadores do Brasil (OACB)”.

O nome da “OACB” é sintomático do ideário da nova direita jurídica. Por um lado, imita a sigla de uso
privativo da Ordem dos Advogados do Brasil. Por outro, rejeita a legitimidade do órgão de classe da
advocacia no país. O nome da associação tenta nos convencer da impossibilidade de conservadores
serem ouvidos e influírem na OAB, o que está longe de ser verdade.

Ora, o adjetivo “conservadores” em “OACB” só pode remeter a um novo tipo de direita. Ou melhor, a
uma nova direita, intimamente ligada ao bolsonarismo. Não uma velha direita conservadora ou
moderada , mas uma extrema direita ou uma direita radical. Uma direita que não admitiu que o
presidente do Conselho Federal OAB da época, Felipe Santa Cruz, criticasse medidas de Bolsonaro.

Um contrapúblico jurídico de direita

A maior peculiaridade dessa direita jurídica emergente é o fato de se conceber como um


contrapúblico. Nas ciências sociais, tal conceito descreve setores que contestam o mainstream, que
rechaçam os limites dos discursos hegemônicos na esfera pública.

Esses grupos não são, necessariamente, marginalizados. Também são contrapúblicos aquelas
comunidades que percebem seus discursos e valores como divergentes das ideias vicejantes na
esfera pública, mesmo que as visões desses grupos não sejam tão periféricas na realidade. É
precisamente o que se nota na “OACB”: seu nome alardeia um antagonismo peremptório à Ordem,
fugindo de qualquer ponderação sobre o histórico de posições políticas conservadoras que a
entidade já teve.

Conforme Rocha e Medeiros, o método da atuação dos contrapúblicos consiste no uso “do choque
intencional, do recurso à performatividade disruptiva e da transgressão de normas de decoro, os
quais podem ser utilizados de forma consciente como uma estratégia política contra-hegemônica
radical”.

Não surpreende, pois, que a direita jurídica contrapublicística tenha flertado com um golpe de Estado;
que seu estilo tenha inspirado os participantes dos atos de 8 de janeiro… e seus defensores.
Da tribuna, contra o tribunal

“Senhores (…), nessas bancadas aqui, (…) estão as pessoas mais odiadas deste país.”

Não se imaginaria, há algum tempo, que essa frase teria sido proferida justo contra o Supremo
Tribunal Federal, instituição distante do foco da imprensa até o início deste século. Em 23 de
setembro de 2023, Sebastião Coelho, desembargador federal aposentado e advogado do primeiro
réu a ser julgado pelos crimes dos atos de 8 de janeiro, gastou seu tempo de sustentação oral para
fazer diatribes contra a corte que julgaria o seu cliente. Optou por chocar, ao arrepio de seu dever de
ofício.

É perigoso conceber a postura de Coelho como mera crítica ao STF. Criticar a corte se tornou um
esporte nacional. O comportamento de seus ministros, seus procedimentos, julgados e inquéritos
nunca foram tão escrutinados e, com toda a razão, questionados na imprensa. Todavia, por
impiedosas que sejam as críticas à atuação recentes do STF feitas em balizas liberais, progressistas
ou conservadoras – mas não extremistas – cumprem com o decoro do debate público. Em contraste,
o contrapúblico jurídico de direita pátrio costuma fugir desse fair play intelectual.

Um alerta

A tática do advogado ilumina o modus operandi da direita jurídica bolsonarista: sua performance
indecorosa e bélica, sua caracterização do STF como um inimigo a ser odiado, seu desapreço por
tradicionais espaços de debate jurídico, como a OAB e as universidades. Entretanto, autores dessa
mesma direita por vezes se apropriam, com distorções e exageros, de discussões antigas e
conceitos consagrados no meio jurídico, como “ativismo judicial” e “supremocracia”. Também apelam
para a ideia de direitos humanos. É um modo de reivindicar cidadania intelectual aos seus
posicionamentos extremados, buscando legitimá-los.

Saibamos discernir esse ardil das tantas objeções necessárias e urgentes ao STF. Minimizar ou
banalizar a arenga de Coelho e colegas como apenas mais uma crítica ao tribunal é um risco. O
Brasil normalizou por anos uma caricatura de extrema direita na televisão e nas mídias sociais. O 8
de janeiro nos lembra a catástrofe a que isso nos levou.

José Bento Camassa – Doutorando em História e estudante de Direito na USP

Você também pode gostar