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Nesta série de artigos investigaremos as

teorias libertárias mais usadas para negar direitos


a animais, verificando se elas realmente se
sustentam. Começaremos pela abordagem
jusnaturalista.

No post "Por que nenhum animal tem o


direito de não ser caçado", Luciano Tataki
argumenta o seguinte:
"Como bom jusnaturalista acredito apenas
nos direitos naturais: vida, liberdade e
propriedade. Os animais não têm noção desses
direitos e aceitar que eles têm, não apenas é nos
colocar no mesmo nível deles, mas também é nos
negar o direito de usufruir de recursos que são
oriundos dos seus corpos. Não apenas da carne,
mas de ossos, couro, pelo, plumas, etc. Em A
Ética da Liberdade, Murray Rothbard já
argumento logo no início do capítulo sobre os
“direitos” dos animais que se os animais tivessem
direitos não poderíamos matá-los nem pra comê-
los. Fora que eles não possuem nenhuma noção
de responsabilidade, tal como não pertencem a
mesma espécie que a gente, e a preservação da
nossa espécie deve ser priorizada, já que não
priorizar seria o equivalente a abrir mão dos
nossos direitos."
Este trecho possui 2 linhas argumentativas.
Vamos a elas:

1. "aceitar que eles têm [direitos] é nos


negar o direito de usufruir de recursos que
são oriundos dos seus corpos. se os animais
tivessem direitos não poderíamos matá-los
nem pra comê-los."
A expressão latina argumentum ad
consequentiam ("argumento por consequência")
descreve um argumento que tenta declarar-se
como verdadeiro ou falso em função das
consequências desejadas ou indesejadas a que ele
conduz. Um exemplo disso seria, por exemplo,
alguém declarar que "hoje não vai chover porque
se chovesse arruinaria meu dia". Ou um vendedor
de escravos dizendo "escravidão é correta porque
sem escravos eu não continuaria ganhando
dinheiro". Porém o clima não varia conforme sua
satisfação, nem a eticidade de condutas flutua
conforme os ganhos pessoais de um sujeito.
Da mesma forma o argumento citado, de
que "animais não têm direitos porque se tivessem
não poderíamos usufruir de recursos que são
oriundos de seus corpos". Talvez não pudéssemos
manter nosso estilo de vida atual se só
pudéssemos nos alimentar de animais mortos
naturalmente. Mas isso não quer dizer nada
quanto à moralidade de matar animais. Se
pudéssemos, por exemplo, comprar humanos
para serem cobaias medicinais, usufruindo de
recursos oriundos de seus corpos, provavelmente
a medicina já teria avançado muito mais, e isso
não quer dizer que a prática seja correta!

E pior, note que ao tentar justificar sua


posição ética com base em complicações para
nossa vida e consequências desagradáveis que
não segui-la geraria, o jusnaturalista está,
curiosamente, usando exatamente do
consequencialismo moral que ele tanto condena.

O argumento final "a preservação da


nossa espécie deve ser priorizada, já que não
priorizar seria o equivalente a abrir mão dos
nossos direitos." é grosseiramente falso pois os
direitos naturais são negativos, e uma das
características dos direitos negativos é
justamente que ninguém abre mão dos próprios
direitos ao respeitar os dos demais. No mais, é
uma versão grosseira da mesma falácia,
"seria muito ruim para o nosso grupo se
tivéssemos que respeitar isso aí;
consequencialmente é ruim, logo
jusnaturalisticamente é errado".

2. "Os animais não têm noção desses


direitos. eles não possuem nenhuma noção
de responsabilidade"
Essa história de "eles não têm noção destes
direitos" não significa nada. Ora, segundo a visão
jusnaturalista os direitos naturais valem
independentemente de deliberação de seus
portadores, não dependendo nem mesmo de eles
saberem que os têm Uma comunidade jamais
pode ter ouvido falar sobre direitos
naturais, como é o caso dos prisioneiros
nascidos no Campo 14, nem por isso o
jusnaturalista vai dizer que essas pessoas não
teriam direitos.

Os animais têm os mesmos bens naturais -


vida, liberdade e propriedade - que os humanos:
um animal tem sua vida, a não ser que o matem;
tem liberdade, enquanto não o aprisionarem e
tem suas propriedades (como um ninho, por
exemplo) enquanto não lhe privarem delas.
Certamente eles não podem discursar em favor
de seus direitos, mas tente matar o seu cachorro
(tente apenas hipoteticamente, por favor) e veja
como ele resistirá com todas as forças que tiver,
demonstrando claramente que tal ato é contra a
vontade dele.

É verdade que animais podem se atacar uns


aos outros ou até a humanos. Mas até aí novidade
nenhuma, já que há indivíduos da própria espécie
humana que se atacam uns aos outros e nem por
isso declara-se a inexistência de nossos direitos.
Uma vaquinha pode levar sua vida sem jamais
ameaçar qualquer indivíduo — e não haveria
qualquer legitimidade em tirar os bens naturais
dela e de outros animais enquanto fossem
pacíficos.
Rothbard por sua vez tem um capitulo
inteiro dedicado a esta questão. Pois bem,
vejamos o que ele escreveu em A Ética da
Liberdade, versículo 21: Os "direitos" dos
animais (reparem nas aspas jocosas em direitos.
Vamos ver se ele faz jus a elas).

Rothbard começa dizendo que


"Logicamente, existem muitas complicações
com este posicionamento [de que animais têm
direitos], incluindo como se deve chegar a algum
critério sobre quais animais ou seres vivos devem
ser incluídos na esfera de direitos e quais deixar
de fora. (Por exemplo, não existem muitos
teóricos que iriam tão longe quanto Albert
Schweitzer e negariam o direito de qualquer um
de pisar em uma barata. E, se a teoria fosse
estendida além de seres conscientes para todos os
seres vivos, como bactérias e plantas, a raça
humana iria extinguir-se rapidamente)."
A raça humana não iria se extinguir, talvez
apenas ter seu número drasticamente reduzido.
Ou talvez nem isso, segundo estudos que indicam
que a produção de carne é, na verdade, mais
custosa do que a de vegetais. Mas mesmo que
fôssemos ser todos extintos: e daí? Estamos
falando de certo e errado absolutos aqui ou de
consequencialismos? Temos aqui de novo a
falácia de dizer que se algo é consequencialmente
indesejável, então seria jusnaturalmente
errado. Se o respeito à conclusão pelos direitos
dos animais nos levaria a uma redução na nossa
população, paciência, isto é uma consequência e
os jusnaturalistas rejeitam considerações
consequencialistas.

Dessa forma, a necessidade do Rothbard em


definir um critério para "quais" seres incluir ou
excluir é baseada simplesmente na vontade a
posteriori dele mesmo de evitar certas
consequências. E se seguirmos a ideia de que os
primeiros usuários devem ser os donos de seus
corpos, bastante popular entre os
anarcocapitalistas, o critério já fica evidente:
qualquer um que seja o primeiro usuário de seu
corpo deve ser o dono dele. Se animais usam seus
corpos, deveriam ser os donos. Se era esse o
grande problema, está resolvido, e já poderíamos
parar por aqui.

(Outro ponto curioso: ainda que se rejeite essa


solução, tudo que Rothbard faz nesse parágrafo é
um "argumentum ad preguiça": ora, se há "muitas
complicações lógicas" a animais terem direitos,
isso não significa automaticamente que eles não
tenham. Significa apenas que teremos que
elaborar um raciocínio apto a lidar com essa
complexidade).

Mas Rothbard propõe uma abordagem


extra. Segundo ele, os direitos:
"são fundamentados na natureza do
homem: a capacidade individual do homem de
escolha consciente, a necessidade que ele tem de
usar sua mente e sua energia para adotar
objetivos e valores, para decifrar o mundo, para
buscar seus fins para sobreviver e prosperar, sua
capacidade e necessidade de se comunicar e
interagir com outros seres humanos e de
participar da divisão do trabalho. Em suma, o
homem é um animal racional e social. Nenhum
outro animal ou ser possui esta habilidade de
raciocinar, de fazer escolhas conscientes, de
transformar seu ambiente a fim de prosperar, ou
de colaborar conscientemente com a sociedade e
na divisão do trabalho."
Bonito, não? O que Rothbard esqueceu é
que sim, os homens fazem todas estas coisas
belas, cooperação, divisão do trabalho... mas só
os homens também constroem bombas atômicas,
queimam ônibus com pessoas dentro, praticam
genocídios, promovem guerras em escala
mundial e gravam axé. Existe tanta violência na
natureza do homem quanto bondade. O que
Rothbard pratica aqui é um "naturalismo
seletivo": aquilo que é conveniente para a
argumentação dele, ele considera como "natureza
humana"; o que não é, ele deixa pra lá. E, pra
piorar, nem mesmo as cooperações são
exclusividade humana. Formigas cooperam entre
si - e até com as plantas de que se alimentam;
animais se juntam em bandos para melhorar suas
chances de sobrevivência; as cracas pegam carona
nas baleias, numa relação mutuamente benéfica.
Etc, etc, etc. É claro que formigas e outros
animais nunca escreveram tratados sobre
direitos. Mas isso só parece significar que a
cooperação naquela espécie é muito
mais natural do que na dos humanos, afinal as
formigas simplesmente agem cooperativamente,
sem precisar serem coagidas por leis.

Mais exemplos?
10 duplas de animais que possuem estranhos
acordos de cooperação

Ademais, Rothbard certamente concordaria


que transformar seu ambiente a fim de prosperar,
apesar de ser "da natureza do homem", não
autoriza um homem a prosperar às custas de
outro. O motivo para isso provavelmente seria
levantado como "ora, o outro indivíduo também
possui tal fim de prosperar em sua natureza".
Correto. Mas o mesmo se aplica aos animais! Eles
claramente são indivíduos engajados na
finalidade de sobreviver e prosperar: é claro que,
devido às restrições técnicas dos animais, eles
alcançam muito menos prosperidade (pelo
menos a material) do que o homem médio, mas a
busca pela sobrevivência e prosperidade estão lá,
em suas naturezas, tanto quanto na nossa.
Apesar disso, segue Rothbard:
"Deste modo, enquanto os direitos naturais,
como temos enfatizado, são absolutos, há um
sentindo no qual eles são relativos: eles são
relativos à espécie humana."
"Deste modo" que modo? Como vimos, os
argumentos de Rothbard até aqui foram
completamente furados. Deste modo, fica claro
que quando ele afirma que direitos são relativos à
espécia humana, ele está tirando isso de lugar
nenhum.
"Uma ética de direitos para a raça humana é
precisamente isto: para todos os homens, sem
levar em consideração raça, credo, cor ou sexo,
mas exclusivamente para a espécie homem. A
passagem bíblica foi perspicaz ao dizer que ao
homem foi "dado" — ou, como dizemos no
direito natural, o homem "tem" — o domínio
sobre todas as espécies da Terra. A lei natural é
necessariamente limitada à espécie."
É óbvio que "uma ética de direitos para a
raça humana" é, por definição, só para os
humanos. Mas de onde diabos Rothbard tirou
que direitos naturais são só para humanos? É o
ponto que ele precisava fundamentar mas não
fundamenta nunca. Ele continua seu devaneio de
traçar uma linha arbitrária. Ele fala em direitos
universais para indivíduos independentemente
de sexo, raça, cor, etc. mas quando chegamos na
espécie... epa! Ai toda a ladainha de até então
sobre direitos universalizáveis e autoproprietários
não importa mais: é só pra indivíduos da espécie
humana. Por que? Porque sim! A citação bíblica
cai muito bem com o caráter religioso dos
argumentos até então.
"Além disso, pode se verificar que o
conceito de uma ética de espécie é parte da
natureza do mundo ao se contemplar as
atividades das outras espécies na natureza. (...)é a
condição do mundo, e de todas as espécies
naturais, que eles vivam de se alimentar de outras
espécies. A sobrevivência entre as espécies é uma
questão de dentes e garras. "
Se tem uma coisa que é da natureza do
mundo é os indivíduos resolverem suas contendas
da forma que quiserem, incluindo pela força. É da
natureza do mundo que alguns cooperam, e
também que alguns dos fortes oprimem e
escravizam os fracos — não fosse esse o caso,
nem sequer precisaríamos discutir éticas disso ou
daquilo. Não satisfeito, aqui Rothbard apenas
repete o naturalismo seletivo.
"Chamar a atenção para o fato de que os
animais, no fim das contas, não respeitam os
"direitos" dos outros animais não é apenas uma
brincadeira"
Não, é também idiotice. É como dizer que
se humanos não respeitarem os direitos de outros
humanos então humano nenhum tem direito. A
existência de indivíduos que praticam agressão
não retira os direitos dos não-agressores. Porra,
rothbard.
"Com certeza seria um absurdo dizer que o
lobo é "mau" porque ele apenas existe por
devorar e "agredir" ovelhas, galinhas etc. O lobo
não é um ser mau que "agride" outras espécies;
ele está simplesmente seguindo a lei natural de
sua própria sobrevivência."
Mas quem se importa se o lobo (ou o
alienígena que ele cita no parágrafo seguinte) "é
mau"? Se é da natureza do serial killer psicopata
matar (em vez de por uma maldade genuína),
então ele também "não agride" ao agir assim?!
Até então Rothbard vinha falando de agressão em
termos de danos objetivos. Ele não estava
preocupado com a "maldade" do agressor como
elemento caracterizador da agressão, mas de
repente parece que agora isso importa. Mas o
lobo não é agressor "porque é mau" ou bom ou o
que seja: nas palavras do próprio Rothbard no
Capítulo 8, o lobo é agressor porque está
"invadindo a propriedade de outro sem o
consentimento da vítima".
"Além disso, se um lobo ataca um homem e
o homem o mata, seria um absurdo dizer que o
lobo era um "agressor malévolo" ou que o lobo
devia ser "punido" por seu "crime"."
Se um lobo ataca um homem e o homem o
mata, isso é a boa e velha legitima defesa. Parece
que quando é pra recusar direitos a animais
Rothbard esquece até os conceitos mais
elementares...

Outra confusão vergonhosa é a entre Ética e


Direito. A evidente impraticabilidade de levar
lobos a tribunais e a inutilidade de mantê-los
presos em cadeias é um empecilho relativo ao
Direito, que Rothbard tenta levantar para validar
seu ponto Ético. Mas uma coisa não tem a ver
com outra. Punição diz respeito ao Direito, não à
Ética: a impossibilidade ou inviabilidade de punir
algum crime não torna a ação mais nem menos
criminosa. Não é porque, por exemplo, não vale a
pena gastarmos recursos identificando, caçando e
punindo alguém que roubou apenas uma balinha
que o roubo se torna ético e direitos de
propriedade deixam de ser válidos. Da mesma
forma a inviabilidade de punir certas ações
animais nada tem a ver com a validade de
direitos. Mais uma vez: porra, Rothbard!
"E, todavia, estas seriam as implicações de
se estender uma ética de direitos naturais aos
animais. Qualquer conceito de direitos, de
criminalidade, de agressão, só pode se aplicar a
ações de um homem ou grupo de homens contra
outros seres humanos."
Isto é falso. "Agressão" nós já comentamos
acima. "Crime" é ação agressiva que viola direitos.
E autopropriedade, que é a base dos direitos, nós
já vimos que animais deveriam ter porque
exercem o uso de seus corpos. O que tem de não-
aplicável a animais? Nada.
Além do mais, Rothbard ignora vergonhosamente
um aspecto: Ainda que um animal não possa
observar o dever de não agredir outro, ainda
assim NÓS podemos observar o dever de não
agredi-los, se for o caso. Muda-se, no mínimo, a
forma como devemos interagir com eles.
"Há, na verdade, uma justiça bruta no
ditado popular que diz que "nós reconheceremos
os direitos dos animais assim que eles o
solicitarem". O fato de que animais obviamente
não podem requerer os seus "direitos" é parte de
suas naturezas e parte da razão pela qual eles
claramente não são equivalentes aos seres
humanos, nem possuem os direitos deles."
Existem duas interpretações possíveis nesse
parágrafo.

A primeira, mais grosseira (mas não menos


popular) é a de que direitos derivam de
requisição argumentativa. Esse argumento
apenas confunde toscamente a razão ser um
requisito para alguém PENSAR sobre ética com
ela ser requisito para alguém ser TITULAR de
direitos. Comentarei mais sobre isso no próximo
post da série. Outro problema curioso é que
ninguém precisa "requerer" propriedades
naturais: se direitos realmente são "naturais", a
característica disso é que os seres já os terão
independentemente de terem que pedir. E aliás,
pedir a quem?! A nós? Se a comunidade humana
não tem poder para dar ou tirar direitos, como
ela poderia dar ou tirá-los de animais?

A segunda interpretação, provavelmente a


original pretendida pelo Rothbard, é que existe
algo na "natureza humana" que nos dá direitos.
Mas o que seria esse algo? Até aqui vimos
Rothbard falar muito de natureza humana, mas
apenas das partes dela que lhe eram convenientes
para montar seu argumento, ignorando o que era
inconveniente e ignorando que as naturezas de
outros animais também têm pontos em comum
com o que ele alegou para a nossa. Isso está mais
pra arbitrariedade do que pra "ética dedutiva".

E pronto. É só isso o capítulo de Rothbard.

Um adendo: na verdade, além da fragilidade do


"naturalismo seletivo" praticado, antes de mais
nada, uma ética jusnaturalista já é falha em sua
essência porque tenta derivar de um suposto
"ser", natural, uma ética, a qual está no campo do
"dever-ser". O filósofo David Hume já havia
observado essa impossibilidade de se concluir
automaticamente um "dever-ser" a partir de um
"ser", o que ficou conhecido como Guilhotina de
Hume, na qual a abordagem jusnaturalista já
merece ser descartada logo de saída. Sim, além de
ser falha em seu conteúdo, a abordagem
discutida aqui já estava errada logo de início, no
método dela.

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