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DIÁRIO DE CLASSE

Doping no Processo Penal ou Complexo de Lance


Armstrong
11 de janeiro de 2014, 8h00

Por Alexandre Morais da Rosa

Na Europa, o ciclismo movimenta as massas e o Tour de France é


acompanhado ao vivo pela mídia. De 1999 em diante, Lance Armstrong
sagrou-se campeão por sete vezes — por equipe e no individual. Estava
lançada a sorte — e a marca — de um grande desportista, não fossem as
vitórias maculadas pela utilização de eritropoietina — EPO —, droga
que aumenta a produção de eritrócitos (glóbulos vermelhos do sangue) e
melhora a eficiência aeróbica. Armstrong ganhou várias competições até
2012. E a casa caiu.

O processo penal como jogo


Entender o processo penal como jogo não é novidade. Embora o processo penal exija
racionalidade dos jogadores, o exercício do jogo mostra que as decisões são tomadas para
além da racionalidade. Daí que a metáfora da Teoria dos Jogos pode ser invocada para
modelar, de alguma maneira, a matriz teórica de como as decisões podem ser tomadas,
partindo-se do estudo dos comportamentos dos jogadores, julgadores, estratégias, táticas e
recompensas. Em coluna anterior falei do tema e também que iria explicitar a noção de
doping processual (clique aqui para ver).

Na linha do que venho pesquisando, especialmente sobre a aplicação da Teoria dos Jogos
no Processo Penal[1], cabe expor algumas linhas sobre a noção de doping aplicada ao
Processo Penal. A pretensão é a de promover nova compreensão do fair play e da teoria das
nulidades, em trabalho futuro.

Para uma noção de doping processual

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Grosso modo, doping é fraude, jogo sujo! Surgido no âmbito dos esportes, o doping se
constitui como problema privado e público[2], especialmente nas competições, tanto assim
que o Comitê Olímpico Internacional criou uma entidade para “combater” o fenômeno, a
World Anti-Doping Agency — WADA. A função básica seria a prevenção e repressão da
fraude e da trapaça nas disputas, garantindo-se o fair play (jogo limpo) e protegendo tanto
os atletas como o próprio jogo.

No campo do processo penal entendido como jogo, pode-se invocar, quem sabe, a noção de
doping processual para superar a teoria das nulidades. No Brasil, a teoria das nulidades do
processo penal, com origem civilista, é caótica. Prevalece a discussão entre ausência de
prejuízo, malversação das normas procedimentais, enfim, dilemas ideológicos travestidos
de questões processuais, cuja superação é necessária.

A legitimidade do provimento judicial dependerá do desenrolar correto dos atos e posições


subjetivas previstos em lei, do fair play. E a perfeita observância dos atos e posições
subjetivas dos atos antecedentes (sub-jogos) é condição de possibilidade à validade dos
subsequentes. Logo, a mácula procedimental ocorrida no início do processo — partida —
contamina os demais, os quais para sua validade precisam guardar referência com os
anteriores. O ato praticado em desconformidade com a estrutura do procedimento é
inservível à finalidade a que se destina. A decisão final, preparada pelo procedimento,
também se constitui como parte desse, ou melhor, sua parte final, o julgamento do jogo
processual.

A doutrina diferencia a “mera irregularidade” (sem violação do conteúdo do ato), da


“inexistência” (por ausência de requisito de sua validade — alegações finais por não
advogado ou sentença por não juiz), “nulidade relativa” e “nulidade absoluta”. Em relação a
essa distinção, também com Lopes Jr, pode-se afirmar a insuficiência das categorias e, a
partir do processo como procedimento em contraditório, bem assim da reserva de
jurisdição, só há nulidade por decisão judicial. Entretanto, o regime de nulidades do Código
de Processo Penal (arts. 563-573), além de ultrapassado, é confuso[3]. Adota a
compreensão mitológica da verdade substancial (CPP, art. 566), possui dispositivos
revogados noutros locais do próprio CPP (art. 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica
compreensão civilista, incompatível com o devido processo legal substancial, da ausência
de prejuízo — pas nullité sans grief (CPP, art. 563). Assim é que, superada a distinção
arbitrária e sem sentido, todas as hipóteses de violação ao devido processo legal substancial
serão declaradas nulas, manejando-se a noção de doping.

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Nesse breve texto, para fim exemplificativo, ainda que o art. 212 do CPP exclua o juiz da
gestão da prova, ou seja, descabe o papel de jogador (art. 212. As perguntas serão
formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que
puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de
outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá
complementar a inquirição.), parte significativa dos julgadores permanece atrelada ao
modelo presidencialista e inquisidor. A atual redação não deixa dúvida acerca do papel do
juiz no desenrolar da colheita da prova testemunhal, colocando-o no papel de mero
espectador, sendo atribuída aos jogadores a formulação direta das perguntas à testemunha
(nos moldes do cross-examination norte-americano ou do esame incrociato[4] italiano). Tal
mudança, pois, é decorrente da busca de adequação da norma processual penal à
Constituição da República, eis que, ao abandonar o modelo presidencialista de condução da
colheita da prova testemunhal, situa o magistrado no lugar de garantidor da forma da
informação oral. Na estratégia processual a tática das perguntas é dos jogadores, inclusive
quando se pretende inserir a dúvida[5]. Daí que não há sentido sequer na possível alegação
da produção em favor da defesa, uma vez que o esclarecimento só acontece no caso de
dúvida e, por evidente, a dúvida absolve (CPP, art. 386, VII). Até mesmo porque, a Teoria
do Prejuízo (pas nullitè sans grief, encampada pelo CPP, art. 563) como hoje posta,
encontra-se ultrapassada (neste sentido também Lopes Jr., Tovo Loureiro[6], Jacinto Nelson
de Miranda Coutinho[7], dentre outros), e a desconsideração do lugar de julgador é a
manifestação inequívoca de dano à parte, porquanto a condução do processo por juiz
imparcial e equidistante restou atingida, como bem pontua Lenio Streck (clique aqui para
ler).

Daí que se pode entender a função da noção de doping no contexto processual.


Especificamente no campo normativo, o Estatuto do Torcedor (Lei n. 12.299/10) prevê o
art. 41-E: “Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma,
o resultado da competição esportiva”. Talvez se possa aproveitar essa disposição para
mostrar que o devido processo legal substancial deve ser levado a sério.

Para tanto, resta evidente que a questão das autolesões permanece impunível, dado o
consentimento válido, o sujeito não pode invocar nulidade a que deu causa. Logo,
Autodoping se vincula às escolhas táticas dos jogadores processuais, ou seja, a escolha por
não apresentar uma prova, deixar de formular alguma pergunta, etc. Já o Heterodoping,
todavia, significa a inclusão de aspectos externos, como a corrupção, a coação de

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testemunhas, omissões de provas, utilização de ilícitas, de sistemas não acessíveis ao


jogador adverso, enfim, para além das jogadas lícitas.

No caso da acusação pública, via Ministério Público, diante dos princípios democráticos da
atividade, não se pode aceitar o autodoping, como por exemplo, a exclusão de prova
favorável à defesa, a manipulação da investigação, perguntas sugestionáveis, realização de
reconhecimento sem linha de suspeitos, proporcionalidade em favor do Estado, utilização
de argumentos “para torcida”, estilo MacGyver (clique aqui para ler).

A surpresa e o suspense no processo antidoping


Alfred Hitchcock dizia que o terror se obtém com a surpresa, enquanto o suspense pelo
aviso antecipado. O que se passa no campo do Direito e do processo penal é um misto entre
as diversas surpresas, que causam terror, antecedidas pelo aviso de que isto irá acontecer. O
aviso de que isto irá acontecer está presente no discurso midiático do terror e se pode
invocar a metáfora de filmes e livros, justamente para dar sentido ao que se passa.

O filme “Tubarão” contou com um recurso que o próprio Steven Spielberg não contava nas
filmagens: o efeito suspense conseguido somente porque o terror da surpresa era precedido
do suspense em que o predador apenas era sugerido, indicado, como se não estivesse
presente. Consta que “o principal atrativo do filme, o tubarão mecânico, apresentou vários
problemas durante as filmagens, causados pela água salgada do mar, pois Spielberg não
quis filmar em uma piscina, como seria o convencional. Várias sequências em que o
Tubarão apareceria, Spielberg teve que substituí-lo por filmagens de marolas e movimentos
de água. Mesmo nas poucas ocasiões em que o Tubarão podia ser usado, a responsável pela
montagem teve que usar de muita habilidade, para que as cenas não parecessem falsas. As
platéias do mundo todo não notaram essas falhas, graças ao exímio trabalho de direção e
montagem. Mas para todos os artistas que trabalharam no filme ficou a irritação com aquele
"maldito tubarão", conforme diziam nas entrevistas e depoimentos posteriores”. Esse efeito
semblant que o filme proporciona, a saber, de se estar com medo em qualquer lugar, pois o
“Tubarão” poderia se fazer presente, do nada, no efeito surpresa, ocasionou o “suspense” de
toda uma geração... Essa estrutura de se aproveitar de uma “surpresa” violenta para causar
“suspense” e se usar ideologicamente, de fato, está presente na nossa película diária: a
continuação incessante do medo!

Nesse sentido, o “crime-tubarão” é utilizado como mecanismo midiático da violência


constitutiva do humano e, paradoxalmente tratado como se fosse uma surpresa no cotidiano,

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fomentado por uma realidade excludente, na qual o neoliberalismo (e sua faceta penal forte)
se esgueira como financiador oculto desta economia criminal e obscena. A surpresa é, no
caso, falsa, da ordem do semblant. Sabe-se, desde antes, que as possíveis variáveis do crime
não decorrem, de regra, de um ato de terror individual, mas sim de toda uma coletividade
que produz e se regozija com o crime. De qualquer modo, percebe-se que o destino de
quem pretende sair desta metáfora é complicado, justamente porque as coordenadas
culturais em que se está submerso reproduzem o modelo da única possibilidade capaz de
nos livrar do tubarão: matando-o! E se mata; muito. O sistema penal produz vítimas de
todos os lados. Somente não percebe quem continua acreditando nos contos de mocinho e
bandido. De um lado o mal, organizado para causar o desespero dos que se situam —
imaginariamente e sem culpa — do lado do bem. O poder se organiza assim, especialmente
no Direito Penal.

Acontece, entretanto, diante do levante punitivista e do agigantamento do sistema penal, as


soluções processuais, diretamente: seus custos passaram a ser gigantescos. Daí que a partir
da lógica do custo/benefício, as normas processuais precisaram ser mais eficientes, e, sem
ética, utiliza-se o doping. Importando-se as noções de tradições diversas, desprezando o
giro que o modo de pensar da filosofia pragmática exige, algumas novidades foram
introduzidas no país, tudo sob o mote de matar o “tubarão”, dentre elas delação premiada e
acordo de leniência (vale consultar os textos de Juliano Keller do Valle e Ana Carolina
Lamy — clique aqui para ver). Para isso a Justiça Criminal eficiente, com custos reduzidos,
sem direito de defesa — parece que economia processual significa economia do direito de
defesa —, abolindo-se os limites garantistas do sistema penal.

Por isso, apegar-se ao “Garantismo Constitucional” de Luigi Ferrajoli é a busca de um


limite ao “eficientismo” do processo penal, ainda que não se concorde com tudo que
escreve. Articula garantias mínimas que devem, necessariamente, fazer barreira para se
evitar que se negocie o “direito à liberdade” e a presunção de inocência. Defender direitos
de acusados passou a ser uma atividade clandestina. Em nome do bem, dos bons e justos,
divididos em dois lados, os enunciadores da salvação colocam-se na missão (quase divina)
de defenestrar o mal na terra, transformando qualquer violador da ordem em “tubarão”, na
luta por sua extinção.

Talvez se possa entender um pouco mais sobre os dilemas contemporâneos do processo


penal eficiente quando se é acusado, a saber, ao se colocar na posição de quem pode ser
punido. E logo, logo você será! Qual o juiz que se pretende ver julgando-nos? Se nós

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fóssemos os juízes, poderíamos dizer que seríamos garantistas? Ou a garantia somente


interessa quando formos acusados? O que não se pode é continuar aceitando as “novidades”
legislativas sem uma profunda reflexão de qual é o papel do Poder Judiciário, nem os
efeitos que as posições podem engendrar no coletivo. Os limites democráticos precisam ser
recompostos. O “tubarão” já foi preso, morto, esquartejado, mas sempre surge o medo de
que ele retorne, não porque o quer, mas porque o “tubarão” habita o mais íntimo do
humano. Surpresa? Medo? Angústia? Tudo humano, demasiadamente humano, diria
Nietzsche. Mais dia menos dia todos precisaremos de juízes garantistas... basta conseguir
ficar vivo.

Para não concluir


Assim é que, se no jogo precisa-se de juiz para garantir as normas do próprio jogo, a noção
de doping pode ser útil para se pensar a superação da teoria das nulidades prevalecente,
apontando que a fraude é novo conceito, não mais em hipóteses expressas, mas para se
entender o autodoping e o heterodoping, os quais, em situação de violação do devido
processo legal substancial, podem gerar a violação do fair play (denúncias genéricas,
utilização de declarações do inquérito policial e não renovadas, provas ilícitas, encontro
fortuito, etc.). A teoria das nulidades, articulada pelo senso comum teórico, não consegue
entender que o desenrolar do jogo processual prevalece sobre o resultado. Mesmo com uma
vitória processual, no fundo, o que há é fraude. Daí que nesse texto preliminar, sem prejuízo
de novas pesquisas, aponta-se para a metáfora do doping como novo significante a ser,
quem sabe, aprofundado e empregado na compreensão democrática de devido processo
legal substancial, lido conforme a Teoria dos Jogos e fair play. Precisamos superar os
juristas fixados no complexo de Lance Armstrong, os quais podem até ganhar e fazer boas
ações (lembremos da fundação para tratamento do câncer), não fosse a vitória um engodo
(clique aqui para ler). Se ganham fraudando, cabe a lembrança de que quem frauda aceita
que o outro fraude e mais: joga sujo sempre, ainda que com boas intenções. Por isso nos
lembra Agostinho Ramalho Marques Neto: “quem nos salva da bondade dos bons?”

[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria
dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Os autores citados encontram-se no livro.

[2] Dentre as diversas obras, vale indicar ROXIN, Claus; GRECO, Luis; LEITE, Alaor.
Doping e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2011, bem assim as obras de Leonardo Schmitt
de Bem, dentre elas: Intervenção penal no doping desportivo. In: APPROBATO, Machado.

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Curso de direito desportivo sistêmico. São Paulo: 2010.

[3] PAULA, Leonardo Costa. As nulidades no processo penal. Curitiba: Juruá, 2013;
BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma
crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Trad. Angela Nogueira Pessoa.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; LOUREIRO, Antonio Tovo. Nulidades & Limitação do
Poder de Punir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; LOPES JR, Aury. Direito Processual
Penal. São Paulo: Saraiva, 2012; PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo
Penal: São Paulo: Atlas, 2013.

[4] TONINI, Paolo. Lineamenti di Diritto Processuale Penale. Milano: Giuffrè, 2008. p.
133.

[5] OLIVEIRA, Francisco da Costa. O Interrogatório de testemunhas. Coimbra: Almedina


2007.

[6] LOUREIRO, Antonio Tovo. Nulidades & Limitação do Poder de Punir...., p. 93-100:
"Ainda que se aceite a distinção entre nulidades relativas e absolutas na qual se apoiam os
autores e da qual não se compartilha, cumpre apontar uma vulnerabilidade deste
entendimento. Os autores realizam uma abertura conceitual excessiva no limite entre os
casos em que é necessário demonstrar o prejuízo, pois apenas atrela-se a necessidade
demonstração do prejuízo ao fato de constituir a hipótese uma nulidade relativa. A falha
deste raciocínio é que não há previsão explícita de quais atributos a violação deve possuir
para que seja digna de nulidade absoluta."

[7] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson. Introdução aos Princípios Gerais do Processo
Penal Brasileiro in Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Nota Dez Editora, n. 01,
2001. p. 44.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e
professor de Processo Penal na UFSC.

Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2014, 8h00

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