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Direito Empresarial
EOutros Estudos de Direito em Homenagem ao
ISBN 85-7674-654-9
1. Introdução
O acionista deve exercer o direito de voto, sempre, no interesse da
companhia (ex causa societatis). É oque dispõe oart. 115, caput, da Lei das
S.A.'. Esta é a regra geral, que há de informar todo o exame da questão
dos desvios no exercício do direito de voto e que deve pautar a análise das
situações previstas na lei acionária.
Inicialmente, destaca-se que o art. 115, caput, trata da questão
envolvendo o abuso do direito de voto do acionista em assembléia geral.
Por sua vez, o seu §1° regula o conflito de interesses, estabelecendo três
hipóteses de impedimento de voto - quais sejam, voto relativo ao laudo
de avaliação de bens com que o acionista concorrer para a formação do
capital social, à aprovação de suas contas como administrador e quando
existir benefício particular - e uma regra geral de conflito de interesses, a
seranalisada casuisticamente e expostfactum.
Depreende-se, desde já, que ocaput ç. o§1° do art. 115 da Lei das S.A.
cuidam de várias situações jurídicas, que devem ser claramente distingmdas^.
Todavia, grandes controvérsias existem, tanto na esfera doutrinária quanto
jurisprudencial(especialmente administrativa - i.e., CVM) quanto à noção
de voto abusivo, bem como relacionadas à operacionalidade do dispositivo
que veda o voto do acionista quando estiver em jogo benefício particular
e da regra geral sobre conflito de interesses.
Assim, pretende-se, no presente ensaio, contribuir para o estabele
cimento mais preciso das diferenças entre as noções devoto abusivo, votação
em situações em que exista benefício particular e o voto em conflito de
interesses, que se veem freqüentemente misturadas. Não se pretende dizer
que sejam estanques - e será demonstrado que não o são -, mas é preciso
que se esclareça que são situações distintas, devendo, por isto mesmo,
comportar tratamento também diverso.
"Nesse sentido, pode-se dizer que, embora o voto seja livre, o acionista está obrigado a
perseguir o interesse social." (LEÂES, Luiz Gastão Paes de Barros. Comentários à Lei das
Sociedades Anônimas (artigosS2 a 120). SãoPaulo: Saraiva, 1980, p. 246).
Nessa linha, ver CUNHA, Rodrigo Eerraz Pimenta da. Estrutura deinteresses nasSociedades
Anônimas-, hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2007, pp. 264-265.
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Cumpre referir, aqui, queFábio KonderComparato entende queo único interesse protegido
pela norma legai é o interesse comum dos acionistas, o qual está ligado à participação de
cada um nopatrimônio social. Assim, o voto abusivo causa ou podecausar prejuízo ao
patrimônio social e,somente como conseqüência, aopatrimônio individual dosacionistas
(cf. COMPARATO, Fábio Konder. Controle conjunto, abusonoexercício do votoacionário e
alienação indireta decontrole empresarial. In: .Direito Empresarial, Estudos ePareceres.
São Paulo: Saraiva, 1990.pp. 81-102, p. 90).
Neste sentido, Erasmo Valladão bem referiu aocomentar oart. 115, caput, da Lei dasS.A.:"(...)
além de inibir o voto proferido com o intuito de obtervantagens indevidas ('obter, para si
ou pra outrem,vantagem a que não fazjus e de que resulte,ou possa resultar,prejuízo para
a companhia ou para outros acionistas'), pune também o voto proferido ad aemulationem
('com o fim de causar danoàcompanhia ouaoutrosacionistas')." (FRANÇA, Erasmo Valladão
Azevedo e Novaes. Conflitos de Interesses nas Assembléias de S.A. São Paulo: Malbeiros,
1993/ P- EFábio KonderComparato leciona que se verifica, no voto ad aemulationem, a
prevalência do intento de prejudicarterceiros sobre o desejo de auferir vantagens pessoais
(COMPARATO, Fábio Konder. Controle conjunto, abuso no exercício do voto acionário e
alienação indireta de controle empresarial. In: . Direito Empresarial, Estudos e Pareceres.
São Paulo: Saraiva, 1990. pp. 81-102, p. 91). Caminhando na mesma direção, ver REGO,
Marcelo Lamy. In: LAMV FILHO, Alfredo,BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.). Direitodas
Companhias, v. 1. Rio de janeiro: Forense, 2009, pp. 417-418; e BATALHA, Wilson de Souza
Campos. Comentários à Lei dasSA, v. 11. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 557.
Paulo Cezar AragAo - 187
Destaque-se, também, quea vantagem háde serindevida. Todos aqueles que deixam de
lado esta característicaterminariam, sem perceber,sustentando que o acionistanão pode
votarem si próprio para o cargo de administrador, ou aprovar a remuneração de que irá
partilhar pelo exercício do mandato...
Como bem salienta Erasmo Valladão, os conceitos de abuso do direito de voto e de conflito
de interesses são distintos, mas, do modo como disposto na LSA, eles se interligam(FRANÇA,
Erasmo Valladão Azevedoe Novaes. Conflitos deinteresses nasAssembléias deS.A. SãoPaulo:
Malbeiros, 1993, p. 93).
Assim bem expressou a Diretora Norma Jonssen Parente, quandode seuvotono IA CVM
2002/2405,julgado em09/10/2003: "No casodo copuf do artigo 115, quecuida do abuso
do direito de voto, tem-se que estesomente podeserverificado aposteríorí. Enecessário
haver o votoparaque se configure o abuso de direito, dondese conclui que,semo voto,
não pode ocorrer o abuso."
Cf. CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura deinteresses nasSociedades Anônimas-,
hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latin,2007, p. 266.
Para configurar o abusode poder necessária seráa provadodano:STJ, REsp 10.836/SP, 3"
Turma, Rei. Min. Cláudio Santos, |. 04/02/1992.
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Cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflitos deinteresses nos Assembléias
deS.A. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 15. No mesmo sentido, JAEGER. Cinteresse sociale.
Milano: Giuffrè, 1972, p.3;e CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da.Estruturo deinteresses nas
SociedadesAnônimos-, hierarquia e conflitos.São Paulo:Quartier Latin, 2007, p. 34.
CARNELUTTI, Francesco.Sistemadidirittoprocesuale civile. Padova:Cedam, 1936,v.1, p. 13.
igo - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, v. 50. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1984, p. 247.
VALVERDE, Trajanode Miranda.Soc/erfoí/e/3oMções,v. II. Rio de Janeiro: Forense,1959,p. 67.
194 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto
também com direito a voto dos demais acionistas minoritários. Sobre esta
última situação, a CVM, no Parecer de Orientação n° 34, de 18/08/2006,
indicou que não iria reprimir operações de tal natureza, reconhecendo, de
forma talvezexcessivamente indireta, a sua legalidade, desdeque respeitado
o impedimento de voto^^.
Assim, o benefício particular pode ter fundamento pessoal ou, no
conceito tradicional da palavra, categórico.
Nas hipóteses em que se verifica que o acionista auferirá, com a
deliberação, um benefício particular, não pode ele votar, ''porque está-
-se-lhe concedendo umfavor, que muitas vezes, inclusive, é difícil de avaliar,
representando algo aleatórid'^^. A LSA é clara ao estabelecer, aqui, um
impedimento devoto{divieto di votòf e quenãopodeserconfundida com
a regra geral sobre conflito de interesses (que será analisada no próximo
item), mesmo porque, se não fossem situações distintas, não existiriam
motivos para a lei realizar a distinção (pois, como diz a básica regra de
hermenêutica, o legislador não utiliza palavras inúteis^®).
A Lei das S.A. prevê, no § 1° do art. 115, que o acionista não pode
exercer seu direito de voto se adeliberação aser tomada puder beneficiá-lo
Nesse sentido, veja-se o Voto do Diretor Luiz Antônio deSampaio Campos no Proc. IA
n RJ 2001/4977, decidido em 19/12/2001:'^.o conceito de beneficio particular está ligado
diretamente ao conceito de igualdade entre os acionistas, ou seja, tudo aquilo que dê um
tratamento aos acionistas - enquanto acionistas, é bom que sefrise - diferente do que está
geralmente disponi\^el aos demais acionistas pode representar uma vantagem ou um beneficio
particular. Rompida esta igualdade, poderia haver um beneficio particular". Na mesma linha,
o Voto do Diretor Pedro Oliva Marcílio deSouza no Processo n° RJ 2006/6785, decidido
em 25/9/06. [d]eumamaneira geral, interesse particular' vem sendo entendido como um
beneficio a determinado acionista, nesta qualidade (ou seja, nõo setrata de outros benefícios
que um acionista pode receber como contrapatte em contrato com a companhia ou como
administrador dela ou porque qualquer outraforma que nõo em decorrência de sua qualidade
de acionistaj'.
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. O conceito de 'benefício particular' e o
Parecer de Orientação 34 da CVM. In: . Temas de Direito Societário, Falimentare Teoria
da Empresa. São Paulo: Malheiros, 2009. pp. 568-580, p. 576.
Paulo Cezar Aracâo -197
Cabe registrar ovoto discordante nesse mesmo caso, no particular, do DiretorOtavio Vazbek,
no qual declara que: "ocomponbo, 00 menos emparte, os considerações de Erasmo Valíadão e
do ex-Diretor LuísAntônio deSampaio Campos, já anteriormente referidos, beneficiopartículaj
éaquele que decorre do rompimento darelação de igualdade dos acionistas enquanto tais. E
aquilo que cria diferenciações onde não hánenhum outrofundamento jundico (que não oda
condição de acionista) que aspossajustificar (...) "Ora, narelação que aquisediscute, oacionista
controladorfiguro como alienante de um determinado bem, em relação contratual autônoma,
motivo pelo qual ele pode ser considerado parte interessada naconclusão daquele contrato.
Mas os benefícios que ele obteria daquele contrato não teriam sido propriamente subtraídos à
coletividadedos demais acionistas. Compreendo que conflito deinteresses ebenefciosparticulares
sejam categorias que semisturam em alguma medida eque essa confusão, talvez também esteja
relacionada aoprocesso pelo qual, no Brasil, progressivamente, seesvaziou a vedação do voto
em coso deconflito deinteresses. Mas, uma vez afastado aquele esvaziamento, nãoháporque
manter as duas esferasindiferenciadas."
198 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto
de acionista com interesse conflitante. In: . Pareceres,v. I.São Paulo; Singular, 2004. pp.
175-184; PEIXOTO, Carlos FulgênciodaCunha.Soc/ef/odesporoções, v. 3. São Paulo: Saraiva,
'973/ P- 81; PENTEADO, Mauro Rodrigues. Reorganização operacional e societária. Ação
declaratória de nulidade de deliberações de Conselho de Administração de S/A. Suposto
conflito de interesses. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São
Paulo,ano 46, n. 146,pp. 237-268, abr./jun. 2007, p. 253; REGO, MarceloLamy. In: LAMY
FILHO, Alfredo,BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.).Direito das Companhias, v.1. Rio de
Janeiro: Forense, 2009,p.411,421 ss; TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre
Tavares. Das sociedades anônimas no direito brasileiro. São Paulo: José Buscbatsky, 1979, pp.
278-279; SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade dosadministradores deS/A: business
judgment ruie. Rio deJaneiro: EIsevier, 2007, pp. 25-43; VALVERDE, Trajano de Miranda.
Sociedadepor Ações, v. 11. Riode Janeiro: Forense,1959, p. 315.
Assim, é possível excluir o conflito de6o^ofe/o.
Cf. ENRIQUES, Luca. II conflito dlnteresse degli amministratori disocietàper azioni. Milano:
Giuffrè, 2000,' p. 147 ss; ElZIRIK, Nelson. Alei das S/A comentada, v. 1. São Paulo: Quartier
Latin, 2011, pp. 661-662.
204 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto
outro. Frise-se que isto é, apenas, uma possibilidade, exceto para aqueles
que, minoritariamente, assumem que ovoto nesse caso é sempre irregular.
Talvez a confusão de conceitos freqüentemente vista em decisões
administrativas e judiciais e mesmo na doutrina decorre do fato de que
conflito em sentido lato, como antes destacado, existe sempre. Osdiversos
interesses numa sociedade se relacionam, e o conflito se torna relevante,
exigindo disciplina legal, quando os interesses são incompatíveis, ou seja,
quando a satisfação de uma necessidade exclui a situação favorável à
satisfação de uma necessidade distinta.
E a LSA, ao regular o conflito de interesses do voto lançado em
assembléia, reconhece que talconflito deinteresses censurável éverificado a
posteriori, quando, de fato, éaferível aocorrência de indevida subordinação
de um interesse ao outro, que cause ou possa causar dano àsociedade (como
também o faz ao cuidar do conflito de interesses na administração da
companhia, nos termos do art. 156, eao disciplinar aquestão envolvendo
as operações realizadas pelos administradores nos grupos de fato, como
dispõe oart. 245, isso sem contar na previsão de incorporação de companhia
controlada, ateor do que determina oart. Ou, mais especificamente,
a subordinação indevida do interesse da companhia (i.e., dos acionistas
como um todo) ao interesse individual do acionista^®.
Parece fundamental, neste sentido, citar o ex-Diretor da CVM Luiz
Antonio de Sampaio Campos, em voto proferido no Processo CVM n°
RJ 2001/4977 (Tele Celular Sul Participações S.A.):
Eaqui talvez seja omomento para se abrir um parêntese para
explicitar que oconflito de interesses referido na Lei n° 6.404/76,
ao contrário do que entendeu ovoto da ilustre Diretora Relatora,
não é qualquer conflito de interesse, muito menos a expressão
conflito de interesse que se vê sendo utilizada comumente, atorto
Ou seja, a interpretação sistemática demonstra que o art. 115, §1", prevê um conflito
substancial, e nao formai (cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo eNovaes. Ainda oconceito
de beneficio particular: anotações ao julgamento do processo CVM n. RJ-2009/5 8ti Revista
de Direito Mercantil, industrial. Econômico eFinanceiro, São Paulo, v. 149-150, pp. 293-522
jan./dez. 2008, pp. 312-313).
Quando faz prevalecer um interesse próprio sobre ointeresse da sociedade (cf. SOLIMENA,
Luigi. ilconflitto di interessi deliamministratore di società per azioni nelle operazioni con Ia
società amministrata. Milão: Ciuffrè, 1999, p. 141).
Paulo Cezar Aracão - 205
39 LEÃES, Euiz Gastão Paes de Barros. Conflito de Interesses. Ointeresse social eointeresse da
empresa. Voto conflitante evedação do exercício do direito de voto. Abuso do direito de
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voto e abuso do poder de controle. In; . Estudos e pareceres sobre Sociedades Anônimas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp. 9-27, p. 26. De modo Idêntico, dentre outros, ver
LEÃES, LuIzGastão Paesde Barros. Conflitode Interessese vedação de voto nas assembléias
das sociedades anônimas. Revistade Direito Mercantil, industrial, Econômico e Financeiro, São
Paulo, V. 92, pp. 107-110, out./dez. 1993, p. 110; LAMY FILHO, Alfredo. Abuso do direito
de voto e conflito de Interesses - Interpretação do Art.115 e seu §1°- O direito de voto do
controlador. In: . Temas de S.A.: exposições e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar,2007,
PP-349-358,p.356,VALVERDE.Trajano de Miranda.5oc/edodepoMções,v. II. Rio de Janeiro:
Forense, 1959,p. 315; PEIXOTO, CarlosFulgénclo da Cunha.Sociedades por ações,v.3. São
Paulo: Saraiva, 1973, p. 81.
"(...) cumpre salientar que o livre exercíciode voto é a regra,e seu exercício em boa-fé deve
ser presumido. Eventual vedação de voto feriria, em princípio,o direito de liberdade de
manifestação {voice) do acionista' (CUNHA, RodrigoFerrazPimenta da. Estruturo deinteresses
nasSociedades Anônimas-, hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latln, 2007, p. 279).
Vale recordar aqui os comentários de OtávioYazbek no julgamento do caso Tractebel,
já mencionado acima, onde discute de forma bastante relevante o confronto entre o
benefício particular e o conflito de Interesses, mostrando uma Importante contradição na
análise do tema, qual seja entender-se que a característica do conflito seria a Ilegalidade
da deliberação tomada, o que acaba levando mais uma vez à adoção da teseformalista,
como se toda situação de conflito não pudesse ser resolvida de forma adequada:
Neste ponto, aliás, também quero deixar registrada uma discordância em relação às
posições do Professor Erasmo Valladão sobre o tema. Isso porque, em razão de sua
Interpretação acerca do conflito deInteresses, ele acaba por diferenciar benefício privado
deconflito deInteresses asseverando que o primeiro consistiria em uma vantagem lícita,
enquanto osegundo envolveria vantagens Ilícitas. Com todo o respeito pela posição do
autor, não vejo como concordar com ela.
Pelo que se pode depreender da análise do referido autor, conflito de Interesses
corresponderia a vantagens Ilícitas em razão justamente da equiparação, essencial para
a sua análise, entre voto dado sob conflito e voto abusivo. Se essa correlação apresenta
razoabiIIdade ante o entendimento adotado na discussão daquele tema, porém não me
parece queo mesmo valha plenamente para a presente discussão - aquele conceito de
conflito, se extrapolado, geraria aqui uma Incongruência.
Isso porque ainda que se sigaa linhade que conflitos apenas podem ser Identificados ao
produzirem efeitos (quando do reconhecimento dalllcitude dosseus resultados, portanto).
Paulo Cezar Aracão - 207
isso não autorizaria dizer que um conflito só existe quando aquele efeito danoso tenha se
produzido. O conflito já existia antes, os interesses contrapostos já existiam - difícil era a
sua identificação. Indo além, dizer que conflitos de interesses correspondem a vantagens
ilícitas, neste contexto que ora descrevo, eqüivaleria a dizer que qualquer contratação
realizada quando haviaaquele tipo de contraposiçãoseria,também, ilegal.
Ora, tanto não há ilicitude nas contratações que, como já exposto, a Lei não proíbe
relações em que interessescontráriosestejamenvolvidos. Em suma, noscasosde posições
contratuais contrapostas entre acionista e sociedade (e uma vez afastada a hipótese do
benefício particular), muitas vezes podem existir interesses contrapostos (ou seja, oconflito
de interesses propriamente dito). Nem por isso há,aí, ilicitude. Entendo que equiparar o
interesse existente em caso de conflito de interesses a interesse ilícito, assim, gera uma
dificuldade insolúvel."
Ver RECO, Marcelo Lamy. In: LAMY FILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA, José Luiz(coord.).
Direito das Companhias, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, zoog, p.422; e ElZIRIK, Nelson. Alei
das S/A comentada, v. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 663.
2o8 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto
43 Voto do Ministro Aidir Passarinho Júnior no REsp 131.300 (Rei. Min. César Asfor Rocha,
4= Turma, j. 29/08/2000).
Paulo Cezar Aragão - 209
4. Considerações Finais
Em resumo, benefício particular, conflito deinteresses e voto abusivo
sãofiguras distintas aindaquefreqüentemente confundidas, muito embora
em alguns casos possa haver entrelaçamento entre elas'"*.
Assim, no caso do benefício particular, a satisfação do interesse da
companhia é irrelevante para a análise, já que o voto do beneficiado em
particular será sempre havido, por imperativo legal, como irregular. E,
havendo benefício lícito que favorece um único acionista ou, de outra
forma, um grupo deles identificados por um atributo (necessariamente
particular) estranho à sua condição de titulares de valores mobiliários de
idêntica natureza^^, o impedimento de voto abrangerá apenas o acionista
beneficiado ou, conforme o caso,alcançará toda a categoria de acionistas que
"O acionista pode votar segundo seu interessepróprio,desde que esse interesse não seja
conflitante, mas compatível, com o interesse da companhia(...)." (REGO, Marcelo Lamy.
In: LAMY FILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.). Direito das Companhias,
V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 403).
Assim, caberia, em tese, fechar o tema com um breve trecho do voto do ex-Presidente
da CVM, Marcelo Fernandez Trindade, no Processo n° RJ 2006/6785 (Tele Norte Leste
Participações S.A.): "Qualqueroutrasoluçãodeterminaria, necessariamente, a análise do
interesse econômico que os acionistasindiretamente(e não como contrapartes, terceiros
beneficiados ou conjunto de acionistas beneficiado)teriam em uma certa deliberação
societária. Essadiscussão, a meu ver, deslocaria o tema do campo do beneficio particular,
como modalidade de vantagemque impede objetivamenteo voto, para um de outros dois
campos: "(i) o do conflito de interesses, nos casos em que for possível aferir, a posteriori,
se o voto dado pelo acionista em defesade seu própriointeresse e contrao interesse da
companhia; (ii)o do voto abusivo, se for possívelverificarque o voto foi proferido 'com o
fimde causar dano à companhia ou a outrosacionistas, ou de obter, parasiou paraoutrem,
vantagem a que não fazjuse de que resulte, ou possaresultar, prejuízoparaa companhia
ou para outros acionistas' (art. 115 da Lei6.404/76).
Asrazões que motivamo voto do acionistasão múltiplas, e se relacionamaos maisdiversos
fatores. Avantagem indireta que umacionista obtenhade umacertadeliberação nãodeve
impedi-lo de votar,apenas os benefícios diretos —como os das duas primeiras hipóteses
do § 1° do art. 115 da Lei das S.A., e os do Parecer de Orientação 34".
Foi utilizado, de caso pensado, o conceito não-técnico de natureza a fim de evitar a
necessidade de um maior detalhamento entre valores mobiliários de espécie, classe, série
ou outras distinções legais.
214 " Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto
compartilhe tal atributo (por isto, a CVM, sem tomar em conta a pessoa
do acionista, tem corretamenteentendido que o titular de ações ordinárias
beneficiado com certa deliberação tomada em prejuízo do interesse dos
acionistas preferenciais pode votar livremente com as ações preferenciais
que porventura possuir).
No caso do conflito de interesses, o confronto de interesses é funda
mental, jáque caberá ao juiz (ou àCVM, na esfera administrativa) determinar,
à luz do caso concreto e da prova, sem uma posição preconcebida, se houve
ou nãosubordinação irregular ou se,aocontrário, os dois interesses se acomo
daram de forma adequada. O conflito de interesses há de ser substancial, ou
seja, deve ser provado.
Por fim, no caso do abuso do voto, o que se torna irrelevante na
análise é o interesse do acionista votante, já que o ponto fundamental é o
intencional e indevido desatendimento do interesse da companhia, havendo
abuso se este último foi prejudicado, ainda que nenhuma vantagem o
acionista votante (controlador ou não) (ou terceiro) tenha obtido (voto ad
aemulationem). O abuso do direito de voto pressupõe, primordialmente, a
existência da intenção de causar dano à companhia ou a outros acionistas,
satisfazendo ou não um interesse de acionista ou de terceiro contrário ao
interesse da companhia. Ausente seja o elemento intencional de causar
dano à companhia, descabe falar em abuso do direito devoto (ainda mais
se ausente qualquer indício de que a operação seja danosa à companhia).