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Rodrigo Rocha Monteiro de Castro

Walerido Jorge Warde Júnior


Carolina Dias Tavares Guerreiro

(coordenadores)

Direito Empresarial
EOutros Estudos de Direito em Homenagem ao

Professor José Alexandre Tavares Guerreiro

Editora Quartier Latin do Brasil


São Paulo, verão de 2013
quartieriatin@quartierlatin.art.br
www.quartieriatin.art.br
Editora Quartier Latin do Brasil
Rua Santo Amaro, 316 - Centro - São Paulo

Coordenação Editorial: Vinícius Vieira


Diagramação: Victor Guimarães Syívio;
José Ubiratan Ferraz Bueno
Revisão Gramatical: Studio Quartier
Capa: Eduardo Nallis Vilianova

Castro, Rodrigo Rocha Monteiro de; Warde Júnior,


Walfrido Jorge; Guerreiro, Caroilna Dias Tavares
(coord.). Direito Empresarial e Outros Estudos em
Homenagem ao Professor José Alexandre Tavares
Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

ISBN 85-7674-654-9

1. Direito. 2. Direito Comercial. I. Título

índices para catálogo sistemático:


1. Brasil: Direito
2. Brasil: Direito Comercial

Contato: quartierlatin@quartierlatin. art.br


www.quartierlatin. art.br
Apontamentos sobre Desvios
NO Exercício do Direito de
Voto: Abuso de Direito,
Benefício Particular e
Conflito de Interesses

Paulo Cezar Aragão


Paulo Cezar Aracão -185

1. Introdução
O acionista deve exercer o direito de voto, sempre, no interesse da
companhia (ex causa societatis). É oque dispõe oart. 115, caput, da Lei das
S.A.'. Esta é a regra geral, que há de informar todo o exame da questão
dos desvios no exercício do direito de voto e que deve pautar a análise das
situações previstas na lei acionária.
Inicialmente, destaca-se que o art. 115, caput, trata da questão
envolvendo o abuso do direito de voto do acionista em assembléia geral.
Por sua vez, o seu §1° regula o conflito de interesses, estabelecendo três
hipóteses de impedimento de voto - quais sejam, voto relativo ao laudo
de avaliação de bens com que o acionista concorrer para a formação do
capital social, à aprovação de suas contas como administrador e quando
existir benefício particular - e uma regra geral de conflito de interesses, a
seranalisada casuisticamente e expostfactum.
Depreende-se, desde já, que ocaput ç. o§1° do art. 115 da Lei das S.A.
cuidam de várias situações jurídicas, que devem ser claramente distingmdas^.
Todavia, grandes controvérsias existem, tanto na esfera doutrinária quanto
jurisprudencial(especialmente administrativa - i.e., CVM) quanto à noção
de voto abusivo, bem como relacionadas à operacionalidade do dispositivo
que veda o voto do acionista quando estiver em jogo benefício particular
e da regra geral sobre conflito de interesses.
Assim, pretende-se, no presente ensaio, contribuir para o estabele
cimento mais preciso das diferenças entre as noções devoto abusivo, votação
em situações em que exista benefício particular e o voto em conflito de
interesses, que se veem freqüentemente misturadas. Não se pretende dizer
que sejam estanques - e será demonstrado que não o são -, mas é preciso
que se esclareça que são situações distintas, devendo, por isto mesmo,
comportar tratamento também diverso.

"Nesse sentido, pode-se dizer que, embora o voto seja livre, o acionista está obrigado a
perseguir o interesse social." (LEÂES, Luiz Gastão Paes de Barros. Comentários à Lei das
Sociedades Anônimas (artigosS2 a 120). SãoPaulo: Saraiva, 1980, p. 246).
Nessa linha, ver CUNHA, Rodrigo Eerraz Pimenta da. Estrutura deinteresses nasSociedades
Anônimas-, hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2007, pp. 264-265.
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2. Abuso do Direito de Voto


O abuso do direito de voto, regrado no caput do art. 115 da LSA,
consiste na violação objetiva da regra geral do exercício do direito de voto
no interesse da companhia.
O abuso não supõe necessariamente a oposição, o conflito de dois
interesses- o próprio do acionista (mesmo que em benefício de terceiro) e o
da companhia. Para que seja abusivo, nos termos da LSA, basta que o voto
lançado tenha porfinalidade causar prejuízo ao interesse dacompanhia ou
dos demais acionistas^. Esta é a figura autônoma do abuso do direito de voto,
que não pressupõe, assim, parasuaverificação, que sejam atendidos outros
interessesem detrimento do interesse social. E o voto adaemulationem,i.e.,
que ocorre mesmo que inexistente o objetivo de atender outros interesses
(do próprio acionista oudeterceiros)'*. E tanto isso éverdade que, observe-
-se, o caput do art. 115 da LSA trata do dano à companhia ou a outros
acionistas e da obtenção de vantagem como hipóteses alternativas, ligadas
pela conjunção oiv.
"Art. 115. O acionista deve exercer o direito a voto no interesse
da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o
fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de
obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de

Cumpre referir, aqui, queFábio KonderComparato entende queo único interesse protegido
pela norma legai é o interesse comum dos acionistas, o qual está ligado à participação de
cada um nopatrimônio social. Assim, o voto abusivo causa ou podecausar prejuízo ao
patrimônio social e,somente como conseqüência, aopatrimônio individual dosacionistas
(cf. COMPARATO, Fábio Konder. Controle conjunto, abusonoexercício do votoacionário e
alienação indireta decontrole empresarial. In: .Direito Empresarial, Estudos ePareceres.
São Paulo: Saraiva, 1990.pp. 81-102, p. 90).
Neste sentido, Erasmo Valladão bem referiu aocomentar oart. 115, caput, da Lei dasS.A.:"(...)
além de inibir o voto proferido com o intuito de obtervantagens indevidas ('obter, para si
ou pra outrem,vantagem a que não fazjus e de que resulte,ou possa resultar,prejuízo para
a companhia ou para outros acionistas'), pune também o voto proferido ad aemulationem
('com o fim de causar danoàcompanhia ouaoutrosacionistas')." (FRANÇA, Erasmo Valladão
Azevedo e Novaes. Conflitos de Interesses nas Assembléias de S.A. São Paulo: Malbeiros,
1993/ P- EFábio KonderComparato leciona que se verifica, no voto ad aemulationem, a
prevalência do intento de prejudicarterceiros sobre o desejo de auferir vantagens pessoais
(COMPARATO, Fábio Konder. Controle conjunto, abuso no exercício do voto acionário e
alienação indireta de controle empresarial. In: . Direito Empresarial, Estudos e Pareceres.
São Paulo: Saraiva, 1990. pp. 81-102, p. 91). Caminhando na mesma direção, ver REGO,
Marcelo Lamy. In: LAMV FILHO, Alfredo,BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.). Direitodas
Companhias, v. 1. Rio de janeiro: Forense, 2009, pp. 417-418; e BATALHA, Wilson de Souza
Campos. Comentários à Lei dasSA, v. 11. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 557.
Paulo Cezar AragAo - 187

que resulte, ou possa resultar, prejuízo paraa companhia ou para


outros acionistas."

Assim, a existência de conflito entre o interesse do acionista votante em


obter certa vantagem (a que não fazjus) e o da companhia não está, nessa
hipótese, necessariamente em questão. O interesse do acionista votante
não é elemento integrante do tipo, pois pode existir abuso pela simples
intenção de causar dano à companhia, muito embora tal conflito possa até
existir, se o acionistavotante buscaa obtenção de uma vantagemindevida^
para si ou para terceiro que resulte ou possaresultar dano à companhia ou
a outros acionistas.

De qualquer forma, deve-se ressaltar que, no caso do voto abusivo,


pode simexistir um interesse conflitante doacionista para coma companhia,
que causa ou pode causar prejuízo à companhia oua outros acionistas. Pode
o acionista votar com a finahdade de obter, para si oupara outrem, vantagem
a que [o beneficiário da mesma vantagem] nãofaz jus e de que resulte, ou
possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas. E aqui,
assim, podem ser vislumbradas, eventualmente, as situações previstas no
§1° do art. 115^.
No entanto, um elemento é fundamental na caracterização do abuso:
a atuação intencional do acionista. Será abusivo, segundo a lei, aquele
voto lançado, ou exercido na dicção do legislador (pressupondo o concreto
exercício do voto'' e,portanto, a sua revisão exposf) "com o fim de causar
dano à companhia, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem"'. Sem

Destaque-se, também, quea vantagem háde serindevida. Todos aqueles que deixam de
lado esta característicaterminariam, sem perceber,sustentando que o acionistanão pode
votarem si próprio para o cargo de administrador, ou aprovar a remuneração de que irá
partilhar pelo exercício do mandato...
Como bem salienta Erasmo Valladão, os conceitos de abuso do direito de voto e de conflito
de interesses são distintos, mas, do modo como disposto na LSA, eles se interligam(FRANÇA,
Erasmo Valladão Azevedoe Novaes. Conflitos deinteresses nasAssembléias deS.A. SãoPaulo:
Malbeiros, 1993, p. 93).
Assim bem expressou a Diretora Norma Jonssen Parente, quandode seuvotono IA CVM
2002/2405,julgado em09/10/2003: "No casodo copuf do artigo 115, quecuida do abuso
do direito de voto, tem-se que estesomente podeserverificado aposteríorí. Enecessário
haver o votoparaque se configure o abuso de direito, dondese conclui que,semo voto,
não pode ocorrer o abuso."
Cf. CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura deinteresses nasSociedades Anônimas-,
hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latin,2007, p. 266.
Para configurar o abusode poder necessária seráa provadodano:STJ, REsp 10.836/SP, 3"
Turma, Rei. Min. Cláudio Santos, |. 04/02/1992.
i88 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

este elemento doloso- e, obviamente,o dano ou a potencialidade de dano


por assim dizer, não se caracterizará o abuso. É elemento essencial e
indispensável para a caracterização do voto como abusivo'".
Dito de outra forma, a existência de um interesse individual para o
voto do acionista não é, em si,relevante para a caracterização do abuso no
exercício do direito devoto: a deliberação é censurável porque se afasta da
obrigação básica doacionista, qual seja, fazer com que a companhia realize
o seu fim social, causando-lhe intencional prejuízo.
Isto fica aindamais claro nas hipóteses de exercício abusivo do direito
de voto pelo acionista controlador, referidas no § 1° do art. 117 da LSA,
onde a lei deu maior desenvolvimento à casuística dessa figura (de forma
explicável, já que o voto abusivo do controlador tenderá a prevalecer
nas deliberações sociais, sendo menos discutido —ainda que freqüente
—o voto abusivo do minoritário, eventualmente vencido, de que cuida o
§3° do art. 115). Alei ocomprova ao arrolar exemplos" de situações que
podem concretizar-se por meio do exercício do voto, como aorientação da
companhia, pelo controlador, em prejuízo da participação dos acionistas
minoritários (alínea a ), areorganização societária em prejuízo dos demais
acionistas (alínea b ), a aprovação de alteração estatutária, políticas ou
decisões que não tenham por fim ointeresse da companhia evisem a causar
prejuízo aos acionistas minoritários (ahnea "c") ou ainda a ratificação de
ato ilegal do administrador, por definição, contrário ao interesse social, pela
assembléia geral (aUnea "e").
Abuso no direito de voto, enfim, haverá se o voto é intencionalmente
lesivo à companhia, satisfazendo ou não um interesse de acionista ou de
terceiro contrário aointeresse da companhia.
Neste sentido, ver FRANÇA, Erasmo Valiadâo Azevedo e Novaes. Conflitos de Interesses nos
/^sembleiosdeS.A. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 83; eCARVALHOSA, Modesto. Comentários
à Lei de Sociedades Anônimas, v. 2. 4 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 461-462 (muito
embora, após asseverar a necessidade do elemento intencional, afirmar que, diante da
dificuldade de se provar o elemento intencional, deve se buscar um conceito objetivo
do voto abusivo, bastando, então, o exame objetivo do ato de votar contrariamente ao
interessesocial paraa configuração do ilícito).
Éassente oentendimento deque oart. 117, §1°, tem caráter exemplificativo, como decidido
pelo SuperiorTribunal de Justiça no REsp n° 798.264 (3= Turma, Rei. Min. Carlos Alberto
Menezes Direito, Rei. para Acórdão Min. NancyAndrighi, j.6/2/2007, DJ16/04/2007, p.
189), com referência aoensinamento deModesto Carvalhosa, Nelson Eizirik, Alfredo Sérgio
Lazzareschi Neto e Fran Martins.
Paulo Cezar Aragão -189

3. O §1° DO ART. 115 DA LSA


Como destaca Erasmo Valladão, na linha carneluttiana, interesse é
uma relação existente entre um sujeito, que possui uma necessidade, e o
bem apto a satisfazê-Ia, determinada na previsão geral e abstrata de uma
norma'^. E há conflito de interesses quando os interesses existentes de
diferentes sujeitos se relacionam e são incompatíveis, ou seja, quando a
satisfação de uma necessidade exclui a situação favorável à satisfação de
uma necessidade distinta^^.

Ao se estudar o conflito de interesses na assembléia de sociedade


anônima, pode-se falar de um conflito de interesses lato sensu, que ocorre
caso o acionista nãocumpra quaisquer de seus deveres (como, porexemplo,
o próprio voto emulativo, visto noitem anterior), jáque, como determina o
art. 115, caput, da LSA, o interesse da companhia sempre deve prevalecer.
Mas também é possível falar em um conflito de interesses stricto sensu na
assembléia da sociedade anônima, o qual é entendido como o conflito
verificado quando do lançamento do voto em assembléia, ou seja; aovotar,
o voto é influenciado porpossuir o acionista (ou terceiro) interesse pessoal
contrário ao interesse da sociedade.
Pois bem. De um lado, o ordenamento jurídico procura combater o
conflito de interesses prestando atenção aoconflito potencial deinteresses,
impedindo o voto naquelas situações que considera de maior risco. E,
justamente, é o que faz o art. 115, §1°, ao proibir o voto {divieto di voto)
nas deliberações da assembléia geral relativas (i) ao laudo de avaliação de
bens com que concorrer para a formação docapital social, (ii) à aprovação
de suas contas como administrador e (iii) nas que puderem beneficiá-lo de
modo particular.Assim, nestas deliberações, o que existe é uma presunção
absoluta e, portanto, uma proibição expressa de voto, pouco importando
se, na prática, existe ou não conflito de interesses (mesmo porque, e não se
pode negar, tais regras até podem ter outros objetivos que não a vedação

Cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflitos deinteresses nos Assembléias
deS.A. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 15. No mesmo sentido, JAEGER. Cinteresse sociale.
Milano: Giuffrè, 1972, p.3;e CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da.Estruturo deinteresses nas
SociedadesAnônimos-, hierarquia e conflitos.São Paulo:Quartier Latin, 2007, p. 34.
CARNELUTTI, Francesco.Sistemadidirittoprocesuale civile. Padova:Cedam, 1936,v.1, p. 13.
igo - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

à atuação em conflito de interesses, como a tutela dos credores sociais no


caso da avaliação dos bens aportados).
Por outro lado, por não poder arrolar e proibir todas as situações
possíveis einimagináveis de conflito de interesses, pode-se estabelecer regra
geral a ser verificada no caso concreto. E isso também consta do art. 115,
§1°, infine-, quando não verificada nenhuma situação de divieto di voto,
recorre-se à regra geral de conflito de interesses.
Assim, como lecionam Egberto Lacerda Teixeira e José Alexandre
Tavares Guerreiro, o §1° do art. 115 da LSA regra a atuação em conflito
de interesses, trabalhando com presunções absolutas de conflito e com
situações que devem ser vistas caso a caso'"*.
Sobre as duas primeiras hipóteses do §1° doart. 115 inexistem grandes
controvérsias: são maciçamente consideradas como dispositivos que regulam
um impedimento devoto (conflito formal deinteresses, sendo realizada uma
análise exante, independentemente do mérito da decisão e das circunstâncias
de fato emque foi adotada).Todavia, ao se analisar o impedimento devoto
quando a deliberação puder beneficiar o acionista de modo particular, bem
como a regra geral de conflitode interesses, existeenorme confusão - talvez
decorrentes da não correta dissociação acima reahzada.
Portanto, serão estudadas, apartir de agora, aproibição de voto quan
do existente benefício particular do acionista e a regra sobre deliberação
em conflito de interesses, no intuito de contribuir para a compreensão
de tais conceitos.
Não escapa ao autoro fato de que a matéria tem sido abundantemente
analisada, pela doutrina e pela jurispmdência. E preciso contudo reconhecer
que, em certos casos, adistinção conceituai não se tem aperfeiçoado, mas antes
- pela freqüência com que são usados osconceitos - confundido, usando-se o
conceito deconflito de interesses deforma claramente equívoca (i.e. não unívoca).

3.1. Benefício Particular


Quando aLSA proíbe que oacionista vote em situações em que possa
auferir um benefício particular, não trata de qualquer proveito indireto e

14 Cf. TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, JoséAlexandre Tavares. Dassociedades anônimas


no direitobrasileiro.São Paulo:José Buschatsky, 1979, pp. 278-279.
Paulo Cezar Aracâo -191

particular que um acionista em particular possa tirar da deliberação que


resulta em benefício para toda uma coletividade de acionistas. Como
destacado em decisão da CVM'^, o voto que aprova um dividendo em
momento necessário para que certo acionistavotante insolvente salde seus
débitos (ou subscreva novas ações) o irá beneficiar pessoal e diretamente de
forma talvez maior do que aos demais acionistas não premidos por débitos
e que irão receber igual dividendo, mas nem por isto aquele acionista está
impedido de votar em tal circunstância.
Uma coisa é a utilidade particular para certo acionista da deliberação
queresulta embenefício geral. Outra,obenefício verdadeiramente particular.
Procurou a lei, nesse passo, cuidar de casos - por sua natureza,
relativamente raros na vida das companhias - em que se pretenda atribuir
um benefício permitido pela lei (ou seja, lícito) a um acionista ou a um
conjunto determinado de acionistas que não será estendido aos demais.
Carvalho de Mendonça, tratando do tema à luz da Lei n° 3.150/1882 e
doDecreto n°434/1891, que se referiam a"vantagem particular", definia o
conceito como "tudo que rompe a igualdade que, emprincípio, deve reinar
entreossócios""". Porisso utifizou a LSAo adjetivo particular, quepoderia
ser substituído por extraordinário ou excepcionaP, sem que se perdesse a
essência do conceito.

A característicadominante do benefício particular, então, é a ruptura


lícita da igualdade entre os acionistas, em vista da concessão de uma
liberalidade a um oua alguns deles, não sendo relevante discutir - no exame
da legahdade do voto lançado - o caráter comutativo ou não do ato. Não
se cuida, em tal caso, de a dehberação ser ou não benéfica à companhia
(embora, naturalmente, deva sê-lo —como determina o art. 115, caput),

Voto do Presidente da CVM, Marcelo Trindade, no julgamento do Processo CVM n° RJ


2006/6785, julgado em 25/9/06.
CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado deDireito Comerciai Brasiieiro, v. III. São
Paulo; Freitas Bastos, 1959, p.312. Assim também REGO, Marcelo Lamy. In: LAMY FILHO,
Alfredo, BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.). Direito dasCompanhias, v. 1. Rio deJaneiro:
Forense, 2009, p. 413; FRANÇA, Erasmo Vailadão Azevedo e Novaes. Ainda oconceito de
benefício particular: anotações aojulgamento doprocesso CVM n. RJ-zcog/S-^n. Revista
de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v.149-150, pp. 293-322,
jan./dez. 2008, p. 319.
Osalemães, porexemplo, utilizam otermo So/icfervorte/Y, "vantagem especial ou vantagem
particular", emtradução livre, nos §§ 26, 41(1), 243 e 399(1) daAktiengesetz de 6/9/65.
192 - Apontamentos sobre Desvios no ExercIcio do Direito de Voto

bastando para impedir o voto a existência de benefício lícito ou vantagem


lícita que não sejam atribuídos a todos os acionistas titulares de valores
mobiliários de igual natureza.
Nessesentido,a lição de Erasmo Valladão, segundo o qual a vantagem
particular de que cuida aLSA corresponde a^'benefíciosperfeitamente lícitos,
que aleipermitesejam atribuídos aos acionistas"^^, seguida por Marcelo Lamy
Rego ao dizer que "não érequisito ointeresse conflitante ou oexercício abusivo
abusivo

porque alei nãopressupõe vantagem ilícita"'^''.


O exemplo clássico de benefício particular é a emissão de uma parte
beneficiária favorecendo a acionistas que, porventura, tenham feito (ou
se obrigado a fazer) contribuição de serviços à companhia, não passíveis
por isso mesmo de conferência ao capital social, mas a doutrina menciona
também o pagamento de pensão, inclusive extensível aos herdeiros, ou
outros benefícios dogênero querepresentem uma quebra no tratamento de
igualdade entre acionistas^". Tal benefício pode, inclusive, serestabelecido
estatutariamente, por ocasião da constituição da companhia^h Neste
caso, deverá o prospecto conter, com clareza, a descrição "(d)asvantagens
particulares, a que terão direito osfundadores ou terceiros, e o dispositivo do
projeto do estatuto que as regula^ (art. 84, VI, LSA)^^.
Além dos casos já referidos de benefício que favorece apenas o
acionista controlador ou de vantagem do fundador da companhia. Pontes

FRANÇA, ErasmoValladão Azevedo e Novaes. Conflitos de Interesses nas Assembléias de S.A.


SãoPaulo: Malheiros, 1993,p. 90. Do mesmo modo, verCUNFlA, Rodrigo Ferraz Pimenta
da. Estruturade interesses nas SociedadesAnônimas: hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier
Latin, 2007, p.272-273; ElZIRÍK, Nelson. A lei das S/A comentada, v. São Paulo: Quartier
Latin, 2011, pp. 658-659.
REGO, Marcelo Lamy. In: LAMY FILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.).
Direito das Companhias, v. I.Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 413.
Cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedoe Novaes.Ainda o conceito de benefício particular:
anotações aojulgamento do processoCVM n. RJ-2009/5.811. Revista de DireitoMercantil,
Industrial, Econômico e Financeiro, SãoPaulo, v.149-150, pp. 293-322, jan./dez. 2008, pp.
318-319; FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedoe Novaes.O conceito de 'benefício particular'
e o Parecer de Orientação 34 da CVM. In: . Temas de Direito Societário, Falimentar e
Teoria daEmpresa. São Paulo: Malheiros, 2009. pp. 568-580, p. 576; ElZIRIK, Nelson, zt/e/
dasS/A comentada, v. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 659.
Assim o prevê, expressamente, o citado§ 26 áaAktiengesetz a\emã.
Vale notar quea lei usa indistintamente "benefícios" e "vantagens" particulares, talvez um
resquício de legislações anteriores, que usavam esta última expressão e que, inclusive,
previam expressamente que as vantagens seriam previstas no estatuto social, exigência
quefoi eliminada já peloDecreto-lei n° 2.627/40 e posteriormente pela LSA.
Paulo Cezar Aragão -193

de Miranda^^, comentando o Decreto-Lei n° 2.627/40, refere-se a


hipóteses também interessantes, tais como o prêmio dado ao acionista que
descobriu processo de fabricação útil à sociedade (então autorizado pelo
art. 87, parágrafo único, "g") ou, inversamente, ao voto do acionista sobre a
suspensão de seus próprios direitos, nos termos do atual art. 120 da LSA,
correspondente ao art. 85 da lei anterior.
Cabe, então, recordar a bção sempre atual de Trajano de Miranda
Valverde, comentando conceito similar do Decreto-Lei n° 2.627/40^'':
"Se —para exemplificar —a assembléia geral resolve atribuir (art.
87, parág. único, g) uma bonificação a determinados acionistas,
por este ou aquele motivo não poderão eles, como diretamente
interessados, tomar parte nessa debberação. Esta, com efeito, virá
beneficiá-los de modo particular, quebrando, ainda que justo seja
o tratamento, e a lei o permita, a regra de igualdade de tratamento
para todos os acionistas da mesma classe ou categoria (art. 78). A
vantagem conferidaa um ou maisacionistas, comumente,consiste
em uma participação nos lucros líquidos da sociedade, durante
certo tempo, ou no direito,algumas vezes extensivo aos herdeiros,
de receberdeterminada soma,por mês,ou anualmente,a título de
pensão ou aposentadoria. Representa quasesempre, a recompensa
pelos trabalhos ou serviços prestados pelo acionista à companhia."
Ainda, é importante sabentar que se reconhece a existência de dois
tipos de benefício particular. Há, de um lado, aquele que favorece apenas
um único acionista (ou alguns deles), por força de um atributo pessoal (e
particular) daquele(s) acionista(s), como seria o caso já citado da criação
de uma parte beneficiária para os prestadores de certo serviço. Por outro
lado, bá o benefício que favorece toda uma categoria de acionistas, por uma
distinção estranha aos direitos previstos na lei ou nos estatutos para as ações
que detém,como severificou emalguns casos levados a exame da CVM, nos
quais a relação de trocaem operações de reorganização societária foi fixada
de forma distinta para acionistas titulares de ações de espécies ou classes
diferentes, ou mesmo para ações integrantes do bloco de controle e ações

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, v. 50. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1984, p. 247.
VALVERDE, Trajanode Miranda.Soc/erfoí/e/3oMções,v. II. Rio de Janeiro: Forense,1959,p. 67.
194 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

também com direito a voto dos demais acionistas minoritários. Sobre esta
última situação, a CVM, no Parecer de Orientação n° 34, de 18/08/2006,
indicou que não iria reprimir operações de tal natureza, reconhecendo, de
forma talvezexcessivamente indireta, a sua legalidade, desdeque respeitado
o impedimento de voto^^.
Assim, o benefício particular pode ter fundamento pessoal ou, no
conceito tradicional da palavra, categórico.
Nas hipóteses em que se verifica que o acionista auferirá, com a
deliberação, um benefício particular, não pode ele votar, ''porque está-
-se-lhe concedendo umfavor, que muitas vezes, inclusive, é difícil de avaliar,
representando algo aleatórid'^^. A LSA é clara ao estabelecer, aqui, um
impedimento devoto{divieto di votòf e quenãopodeserconfundida com
a regra geral sobre conflito de interesses (que será analisada no próximo
item), mesmo porque, se não fossem situações distintas, não existiriam
motivos para a lei realizar a distinção (pois, como diz a básica regra de
hermenêutica, o legislador não utiliza palavras inúteis^®).
A Lei das S.A. prevê, no § 1° do art. 115, que o acionista não pode
exercer seu direito de voto se adeliberação aser tomada puder beneficiá-lo

Erasmo Valladão acredita que as hipóteses enfocadas peloParecer de Orientação n° 34


não tratam de benefício particular (e, portanto,de divieto di voto), massim de conflitode
interesses (mesmo porquea matéria seria regrada de modoespecial peloart. 264da LSA)
(cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Oconceito de'benefício particular' e o
Parecer de Orientação 34 da CVM. In: . Temas deDireito Societário, FolimentareTeoria da
Empresa. São Paulo: Malheiros, 2009.pp.568-580, pp.578-580; FRANÇA, Erasmo Valladão
>Azevedo e Novaes. Ainda o conceito de benefício particular: anotações ao julgamento
do processo CVM n. RJ-2009/5.8n. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e
Financeiro, São Paulo, v. 149-150, pp. 293-322, jan./dez. 2008, p.321). No mesmo sentido,
ver ElZIRIK, Nelson. Alei das S/A comentada, v. i.São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 659, em
nota de rodapé.
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Ainda o conceito de benefício particular:
anotações ao julgamento do processo CVM n. RJ-2009/5.8n. Revista deDireito Mercantil,
Industrial, Econômico eFinanceiro, São Paulo, v. 149-150, p. 293-322, jan./dez. 2008, p. 319.
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflitos deinteresses nasAssembléias deS.A. São
Paulo: Malheiros, i993,pp. 90-91; EI2IRlK,Nelson.A/e/£3'£7s5/Acomen/í7íyí7,v.i.SãoPaulo:Quartier
Latin, 2on, pp. 655-656; REGO, Marcelo Lamy. In: LAMY FILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA,
José Luiz (coord.). Direito das Companhias, v. I. Rio deJaneiro: Forense, 2009, p.410 ss.
"Presume-se que a lei não contenha palavras supérfluas; devem todas ser entendidas
como escritas adrede para influir no sentido da frase respectiva.", cf. MAXIMILIANO,
Carlos. Hermenêutica e aplicação dodireito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 91.
Especificamente sobre o art. 115, §i°, da LSA, ver FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e
Novaes. O conceito de 'benefício particular'e o Parecerde Orientação34 da CVM. In: .
Temas deDireito Societário, Falimentare Teoria daEmpresa. São Paulo: Malheiros, 2009.pp.
568-580, p. 575.
Paulo Cezar Aracâo -195

de modo particular.Assim,juntamente com as deliberações da assembléia


geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a
formação do capital social e à aprovação desuas contas como administrador,
o acionista resta impedido devotar quando puder auferir benefício particular
de determinada deliberação. Proibido está de votar, sendo a verificação
da situação realizada ex ante. O padrão do impedimento é totalmente
objetivo, qual seja, a existência davantagem que não seja atribuída a todos
osacionistas namesma condição, pouco importando aexistência de interesse
pessoal extrassocial por parte do acionista.
Em certo caso de reorganização societária, submetido à CVM no
Processo n° RJ2006/6785 (Tele Norte Leste Participações S.A.), emrazão
da relação de troca fixada de forma assimétrica, entendeu o Colegiado
que estaria impedido de votar o acionista que, de fato, auferisse, ao final
da reestruturação societária, um benefício particular em função da relação
de troca atribuída. Neste processo, o então Presidente da CVM, Marcelo
Trindade, analisou a questão do seguinte modo:
"Assim, quando oimpedimento de voto decorrer de um benefi'cio que
será obtido por força de uma situação subjetiva, isto é, ligada àpessoa
do acionista, oimpedimento será dessa pessoa, quaisquer que sejam
as ações desua titularidade, e com todas elas. Dessa natureza são as
duas primeiras hipóteses mencionadas pelo §1° do art. 115 da Lei
das S.A. De outro lado, quando oimpedimento de voto decorrer de
um benefício que objetivamente atinja atoda uma classe ou espécie
de ações, isto é, a toda uma categoria de acionistas —como ocorre
nas bipóteses do Parecer de Orientação n. 34 —, oimpedimento não
alcançará a pessoa do acionista, com as demais ações de que seja
titular, deoutra classe ouespécie não impedida de votar .
É preciso, porém, identificar o traço fundamental da figura jurídica
ora analisada: o benefício resultante da deliberação assemblear, para que
se resolva no impedimento de voto, deve ser de fato atribuído de forma
realmente particular {excludente, por assim dizer, da outorga geral) a um
acionista ou a alguns acionistas.
Isto necessariamente decorrerá da condição de acionista (o único que
pode votar na assembléia geral) e, portanto, da propriedade da ação (cujo
igô - Apontamentos sobre Desvios no ExercIcio do Direito de Voto

titular poderia exercer o direito de voto na matéria, ao menos em tese),


mas não lhe é atribuído por força da mera propriedade da ação, como
sucede, por exemplo, com qualquer outro direito político ou econômico
usual, mas sim concedido apenas a certos acionistas que tenham outro
predicado específico, estranho à mera propriedade da ação, queosdistinga
como categoria, predicado esse não partilhado genericamente por todos os
demais acionistas (como serem controladores oufundadores). A condição de
acionista, assim, é necessária para que se possa falar em benefício particular
legalmente relevante, mas não ésuficiente.
O benefício torna-se particular, assim, uma vez que seja outorgado
por força de tal predicado próprio a uma categoria ou grupo de acionistas,
identificados por outro atributo comum que não a simples titularidade de
valores mobiliários da mesma classe ou espécie. Em outros termos, o traço
distintivopara definir-se quem auferirá ou não certobenefício não é o status
de acionista, mas esse outro atributo estranho atal status, eque define uma
categoria específica ou particular, aqueles únicos acionistas que, além de
sê-lo, possuem (também com exclusividade, ponto ao qual se voltará, pela
sua relevância) tal outro atributo.
Ainda, é importante voltar a analisar o posicionamento da CVM.
Durante algum tempo aCVM adotou oentendimento de que obenefício
particular estaria necessariamente vinculado à qualidade de acionista^' ou,
como dito por Erasmo Valladão, nasua condição de acionista"^^, dando às
ações de uns vantagens que as ações de outros não possuem. No entanto, a
CVM passou a adotar posição mais abrangente, como se extrai dos votos

Nesse sentido, veja-se o Voto do Diretor Luiz Antônio deSampaio Campos no Proc. IA
n RJ 2001/4977, decidido em 19/12/2001:'^.o conceito de beneficio particular está ligado
diretamente ao conceito de igualdade entre os acionistas, ou seja, tudo aquilo que dê um
tratamento aos acionistas - enquanto acionistas, é bom que sefrise - diferente do que está
geralmente disponi\^el aos demais acionistas pode representar uma vantagem ou um beneficio
particular. Rompida esta igualdade, poderia haver um beneficio particular". Na mesma linha,
o Voto do Diretor Pedro Oliva Marcílio deSouza no Processo n° RJ 2006/6785, decidido
em 25/9/06. [d]eumamaneira geral, interesse particular' vem sendo entendido como um
beneficio a determinado acionista, nesta qualidade (ou seja, nõo setrata de outros benefícios
que um acionista pode receber como contrapatte em contrato com a companhia ou como
administrador dela ou porque qualquer outraforma que nõo em decorrência de sua qualidade
de acionistaj'.
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. O conceito de 'benefício particular' e o
Parecer de Orientação 34 da CVM. In: . Temas de Direito Societário, Falimentare Teoria
da Empresa. São Paulo: Malheiros, 2009. pp. 568-580, p. 576.
Paulo Cezar Aracâo -197

da Presidente Maria Helena dos Santos Fernandes Santana e do Diretor


Marcos Pinto no Processo CVM n° RJ 2009/13179, decidido em 9/9/10
(caso Tractebel)^^ A Presidente Maria Helena dos Santos Fernandes
Santana assim asseverou:

"Em breve síntese, a discussão se dá a respeito de dois aspectos da


interpretação do disposto no § 1° do art. 115. Primeiro, embora
prepondere naCVMoentendimento deque, nocaso dedeliberação
que possa beneficiar oacionista 'de modo particular', oconflito deve
serexaminado antes dadeliberação, bastando, para sua configuração,
a identificação do benefi'cio particular a ser revertido em favor do
acionista, hácontrovérsia quanto àextensão dessa hipótese. Discute-
-se, a propósito, se ela se restringe ao beneficio particular recebido
pelo acionista, nasua qualidade de acionista, que rompe aigualdade
entre os sócios, ouse abrange qualquer benefi'cio aser concedido por
conta dadeliberação, ao acionista, que não seja extensível aos demais.
Nesse ponto, parece-me mais acertada a segunda posição, pelas
mesmas razões que foram manifestadas pelo Ex-Presidente
Marcelo Trindade em seu voto no julgamento do Inquérito
Administrativo RJ2001/4977. Com efeito, sob pena de se adotar
uma interpretação vazia de utilidade prática e em descompasso
com a atual realidade das companhias abertas, entendo que o
acionista está impedido de votar toda vez que da deliberação
possa resultar a seu favor um benefício particular, ou seja, que
não seja extensível aos demais acionistas."
E o Diretor Marcos Pinto anotou:

Cabe registrar ovoto discordante nesse mesmo caso, no particular, do DiretorOtavio Vazbek,
no qual declara que: "ocomponbo, 00 menos emparte, os considerações de Erasmo Valíadão e
do ex-Diretor LuísAntônio deSampaio Campos, já anteriormente referidos, beneficiopartículaj
éaquele que decorre do rompimento darelação de igualdade dos acionistas enquanto tais. E
aquilo que cria diferenciações onde não hánenhum outrofundamento jundico (que não oda
condição de acionista) que aspossajustificar (...) "Ora, narelação que aquisediscute, oacionista
controladorfiguro como alienante de um determinado bem, em relação contratual autônoma,
motivo pelo qual ele pode ser considerado parte interessada naconclusão daquele contrato.
Mas os benefícios que ele obteria daquele contrato não teriam sido propriamente subtraídos à
coletividadedos demais acionistas. Compreendo que conflito deinteresses ebenefciosparticulares
sejam categorias que semisturam em alguma medida eque essa confusão, talvez também esteja
relacionada aoprocesso pelo qual, no Brasil, progressivamente, seesvaziou a vedação do voto
em coso deconflito deinteresses. Mas, uma vez afastado aquele esvaziamento, nãoháporque
manter as duas esferasindiferenciadas."
198 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

"Durante muito tempo, entendeu-se que a hipótese de impedi


mento de voto por benefício particular, prevista no art. 115,
§1°, aplicar-se-ia apenas às vantagens concedidas aos acionistas
enquanto sócios da companhia. Todavia, conforme ressaltei no
Caso Duratex, essa posição não encontra amparo na Lei n°
6.404, de 1976.

"Quando a lei impede o acionista de votar em situações 'que


puderem beneficiá-lo de modo particular', sua hipótese de
incidência não se restringe àsvantagens recebidas pelo acionista
enquanto sócio. Seu campo de aplicação é muito mais amplo,
alcançando qualquer vantagem dequegozeapenas um acionista."
Malgrado a inconteste autoridade dos diretores da CVM citados
acima, o fato é que a identificação do benefício particular com a qualidade
deacionista deixa talvez sem explicação o exemplo clássico de talvantagem,
qual seja, a emissão departes beneficiárias para o acionista, que obviamente
não decorre da qualidade de acionista, mas sim de fundador ou prestador
de serviços.
Com dito anteriormente, a qualidade de acionista é, a rigor, relevante
para que exista o problema do impedimento de voto (já que apenas os
acionistas exercem esse direito), mas não para restringir o alcance dobenefício
que está sendo aprovado. Ele vota, passe o tnusmo, "'enquanto acionista", mas
eventualmente se beneficia independentemente de sê-lo. O que justifica
o benefício não é a sua qualidade de acionista, mas outra qualquer (como
prestador de serviços extraordinários ou fundador da sociedade). Mas,
antes que se extraia dessa afirmativa conclusão equivocada, o benefício será
relevante, para impedir o voto, apenas se for efetivamente particular, não
havendo outros favorecidos, em caráter genérico, não acionistas.
Se o aspecto relevante fosse apenas o benefício auferido "na qualidade
de acionista"^^, a questão não suscitaria maiores discussões. No entanto,
admitindo para argumentar que prevaleça a orientação anterior do caso
Tractebel, nem poristo sepode ver aqui umbenefício efetivamente/lar/ícM/ar.

No mesmo sentido, o recente voto do DiretorOtávIo Yazbekno Proc.CVM RJ n° 2011/9011,


decididoem16/02/12, e que classifica o beneficio auferido em umacontratação privilegiada
como um caso de conflito de interesses (e não de benefício particular), mantendo sua
orientação divergente no caso Tractebel referido acima.
Paulo Cezar Aragâo -199

Umavisão talvez inspirada pela situação concreta objeto do Parecer


de Orientação n° 34levou a CVM aentender, originalmente, que benefício
particular seria aquela vantagem assimétrica que o acionista, como tal,
assegura para si ao votar, mas é preciso, à luz da orientação prevalecente
naquela autarquia, analisar-se a questão numa perspectiva mais ampla.
Vale por isto recordar, como feito pela Presidente Maria Helena
Santana, os termos do voto (então vencido no Colegiado da CVM) do
então Diretor Marcelo Trindade, no julgamento do IA n° RJ 2001/4977,
em 19/12/01;

"Na verdade, embora a doutrina sempre considere o benefício


particular aque se refere o§1° do art. 115 como um benefício na
qualidade de acionista, tal assertiva parece irrealística, dado que
a própria lei, dentre os direitos essenciais dos acionistas, inclui
o de serem tratados de maneira idêntica, quando detentores da
mesma espécie e classe de ações. Tal regra levaria quase sempre
à nulidade da deliberação assemblear que pretendesse conferir
direitos especiais a certos acionistas, independentemente da
discussão sobre o impedimento de voto.
"A mim me parece que, embora tratando de benefício particular,
quis alei extremar uma hipótese mais ampla que as anteriores,
porém ainda previamente perceptível, de conflito de interesses, a
qual ocorre sempre que se possa atestar prévia einduvidosamente
que adeliberação trará benefício ao acionista, não extensível aos
demais, ou à companhia."
Como jávisto, este atributo que, de alguma forma, distingue acategoria
que irá auferir obenefício particular, pode ser tanto individual (como no
caso sempre referido da emissão de partes beneficiárias) ou abranger toda
uma coletividade de acionistas que, repita-se, se congrega por um predicado
extrínseco às ações de que são titulares (os controladores, fundadores ou
acionistas merecedores de recompensa especial, como lembrado), ações essas
sem nada que as distinga daquelas de titularidade dos demais acionistas.
Assim, não se pode falar em impedimento de voto por força de benefício
particular se ovoto lançado não beneficia oacionista enquanto titular de
ações ordinárias como tal, mas sim o favorece em outra categoria, desde
que, mesmo nesta outra categoria, o benefício tampouco seja particular.
200 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

favorecendo todos aqueles que compõem esta última categoria, sem


nenhuma referência discriminatória.

Deste modo,seriaum benefício particular o votodo acionista ordinário


que estabelecesse, por hipótese, uma extensão de prazo de duração das partes
beneficiárias emitidas, mas apenas em favordo acionistaordinário votante.
A vantagem assimétrica existe na medida em que o benefício adicional
não abrange todos os titulares dessa outra categoria distinta, mas apenas
os acionistas, gerando assim aparticularidade na vantagem, que resulta no
impedimento de voto.
Xrata-se de situação lógica muito semelhante à deliberação dos
acionistas da companhia que, por algema razão, deliberam conceder
vantagem adicional às ações preferenciais, como sucedeu concretamente com
quase todas ascompanhias aoensejo daminirreforma da LSAresultante da
Lei n° 10.303/01. Naquela ocasião, as ações preferenciais das companhias
abertas passaram, necessariamente, a ter pelo menos uma das vantagens
previstas no §1° do art. 17 da LSA, em sua atual redação, raramente então
outorgadas às mesmas ações preferenciais. Para tanto, tornou-se necessária
a aprovação de alteração estatutária com os votos dos titulares de ações
ordinárias, não constando ter havido discussão quanto àpossibUidade de os
titulares dessas ações ordinárias poderem votar livremente se, porventura,
fossem também proprietários de qualquer número de ações preferenciais
a serem beneficiadas pela reforma. Neste caso verificou-se um benefício
ou vantagem a ser atribuído por votação dos acionistas ordinários a outra
categoria distinta de valores mobiliários, mas sem a dita particularidade
geradora do impedimento de voto.
Nestes termos, por exemplo, não bá nada de particular no benefício
de que se favorece oacionista ordinário particularmente em deÜberações a
serem tomadas com relação aações preferenciais por ele detidas, podendo
votar como qualquer outro acionista preferencial^^. Assim, o exercício do
33 Nessa linha, ovoto do Presidente Marcelo Fernandez Trindade no julgamento do Proc RJ
2007/0947- decidido em 22/5/07: "(b) reiterar oentendimento de que em assembléias
especiais convocadas para ratificar deliberação de conversão de ações preferenciais em
ordinárias, não estão impedidos de votar osacionistas titulares de ações ordinárias de
controle que detiverem ações preferenciais, nem os demais acionistas titulares deações
preferenciais queforem ao mesmo tempotitulares deaçõesordinárias", fazendo referência
àdecisão proferida nojácitado Proc. RJ 2006/5785 (caso Telemar), decidido em 25/9/06.
Paulo Cezar Aragão - 20^

direito de voto, havendo simultaneidade de situações jurídicas, só atinge


a condição de outorga de benefício particular se a particularidade (i.e., a
assimetria) existe na esfera jurídica em que irá existir o benefício.
O que a lei impede, parece claro a esta altura, não é o voto quando
hádualidade de situações jurídicas —jáodecidiu a CVM repetidamente —,
mas sim quando há dualidade de tratamentos na mesma situação jurídica.
Portanto, haverá benefício particular se os acionistas a (que
formam um subconjunto dos acionistas da companhia A) forem os únicos
areceber obenefício aprovado na assembléia da mesma companhia A, por
um predicado estranho àcondição de acionista eque lhes seja, exatamente,
particular, não sendo compartilhado por quaisquer terceiros. Ao contrário,
se os acionistas A^ aA"^' forem apenas alguns entre os terceiros que compõem
outra categoria distinta, o benefício que está sendo aprovado para esta
categoria não éparticular atais acionistas. É, ao contrário, genérico, comum
a todos os integrantes desta outra categoria, cujo atributo distintivo é ser
formada também por titulares de outros valores mobiliários (no caso,
os acionistas A^ a A*^). E se, então, esta outra categoria, que é a única
beneficiada, tem, entre os seus membros, também um ou mais acionistas,
isto não significa que haja aparticularidade que gera oimpedimento de
voto previsto em lei.
Se avantagem lícita que está sendo atribuída não oé auma cole
tmdade definida de acionistas, caracterizados por determinados predicados
particulares, específicos (tais como serem acionistas fundadores ou
controladores, nos exemplos práticos já referidos), mas sim évantagem ou
benefício outorgado aoutra categoria da qual alguns acionistas também
participam, mas que não lhes éexclusiva, os acionistas não estarão aprovando
benefício para a sua própria coletividade, mas para outro conjunto
(categoria) de investidores, da qual eventualmente também participam.
Pelo exposto, verifica-se que obenefício de que trata alei éobenefício
direto, específico (ou, na dicção da lei, particular), a vantagem que a
assembléia pode atribuir a certo acionista ou, como visto, a uma dada
categoria de acionistas, enão aoutra categoria de sujeitos de direito.
202 - Apontamentos sobre Desvios no ExercIcio do Direito de Voto

3.2. Conflito de Interesses


Passa-se, agora, a analisar a mais usual (e, por isto mesmo, mais
freqüentemente enfocada) situação prevista no §1° do art. 115 da LSA,
qual seja, a regra geral sobre conflito de interesses.
No caso do benefício particular, bem como navotação sobre o laudo
de avaliação de bens com que o acionista concorrer para a formação do
capital social e à aprovação de suas contas como administrador, a lei visa a
garantir aisenção do resultado da votação, sem considerar se adeliberação
é ou não favorável à companhia, ainda que obviamente deva sê-lo (e, se
não o for, será tratada à luzde um dos outros dois casos, o do conflito de
interesse ou do abuso de direito de voto): existe uma presunção absoluta de
conflito de interesses - por mais que não ocorra na prática -, sendo, então,
o padrão do impedimento totalmente objetivo.
Já quando o art. 115, §1°, da LSA regula o conflito de interesses,
ba uma situação distinta, onde o elemento objetivo deixa de prevalecer,
ao menos para quem, na linha da maioria da doutrina^'', com a qual
34 Defendendo que setrata de conflito formal, dentre outros, ver: CARVALHOSA, Modesto.
Comentários àLei de Sociedades Anônimas, v. 2.4 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 465
ss; SALOMAO FILHO, Callxto. Conflito de interesses: a oportunidade perdida. In: . O
novo Direito Societário. 3. ed. rev. eampl. São Paulo: Malheiros, 2006. pp. 90-104, pp. 99-
-100; SALOMÃO FILHO, Calixto. Deveres fiduciários docontrolador. In: .Onovo Direito
Societário. 3. ed. rev. eampl. São Paulo: Malheiros, 2006. pp. 167-177, pp. 172-173.
Por outro lado, entendendo que o art. 115, §1°, regula o conflito de interesses de modo
material (substancial) (do mesmo modo como na lei anterior), ver, exemplificativamente:
CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura de interesses nasSociedades Anônimas:
hierarquia
S/A econflitos.
cornentada, v. 1. SãoSão Paulo:
Paulo: QuartierLatin,
Quartier 2007,
Latin, 2011, pp.pp. 274-287; ElZIRIK,Erasmo
662-663;FRANÇA, Nelson.Valladão
A/e/í/os
Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas Assembléias de S.A.. São Paulo: Malheiros,
1993/ P- 91 ss; GUERREIRO, JoséAlexandre Tavares. Conflitos de interesse entresociedade
controladora e controlada eentre coligadas, noexercício dovoto em Assembléias Gerais e
reuniões sociais. Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico eFinanceiro, São Paulo, ano
22 n.5i,pp.29-32, jul./set.1983, pp. 29-32; LAMY FILHO, Alfredo. Sociedades associadas
- Exercício de voto em Assembléias Gerais - Conflito de interesses - Aprevalência do
interesse social. In: . Temas de S. A.: exposições e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar,
2007, p.309-312, LAMY FILHO, Alfredo. Abuso do direito de votoe conflito de interesses
- Interpretação doArt. 115 e seu §1° - Odireito devoto docontrolador. In: . Temas de
S.A.: exposições e pareceres. Rio deJaneiro: Renovar, 2007, pp. 349-358; LEÃES, Luiz Gastão
Paes de Barros. Conflito de interesses. Ointeresse social e o interesse da empresa. Voto
conflitante e vedação doexercício dodireito devoto. Abuso dodireito de voto e abuso do
poderde controle. In: .EstudosepareceressobreSociedadesAnônimas. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1989, pp. 9-27; LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Conflito de interesses e
vedação de voto nas assembléias das sociedades anônimas. Revista deDireito Mercantil,
industrial. Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 92, pp.107-110, out./dez.1993; LEÃES, Luiz
Gastão Paesde Barros. Açãode anulação de deliberação assemblear decorrente de voto
Paulo Cezar Aracâo - 203

modestamente concordamos, filia-se ao conceito de que a apuração do


conflito pressupõe o caráter substancial (ou material) deste último, ouseja,
que nega —o que nos parece acertado —a existência de um conflito apenas
pela situaçãoformal (ou potencial) de o acionista que irá votar beneficiar-
-se, de modo uniforme com os demais colocados em situação idêntica, do
resultado da deliberação.
O conflito de interesses, como se sabe, corresponde àquela situação
em que há incompatibilidade entre os dois interesses em jogo: de um
lado encontra-se o interesse extrassocial do acionista (econômico ou não,
direto ou de terceiro, desde que relevante^^ e objetivamente constatável)
e, contraposto a este, o interesse da companhia, sendo que a satisfação de
um interesse só pode dar-se com o sacrifício (ou a subordinação) de outro
interesse próprio ou de terceiro^^.
Assim, se o acionista vota aprovando certa relação de substituição de
ações em reorganização societária, seu interesse emobter a melhor relação
possível (i.e., emitindo o menor número de novas ações) está em conflito
com o interesse da outra sociedade envolvida em receber o maior número
possível de ações pelos ativos que irá contribuir ao capital da outra sociedade.
Se há duas vontades distintas, o conflito se resolve pela negociação
entre partes independentes até se atingir um ponto de presumível equilíbrio.
Se, ao contrário, a mesmavontade prevalece nas duas pontas da operação,
como no caso da incorporação de controlada (aque a leidá solução distinta,
por sinal), um interesse poderá estar sendo indevidamente subordinado a

de acionista com interesse conflitante. In: . Pareceres,v. I.São Paulo; Singular, 2004. pp.
175-184; PEIXOTO, Carlos FulgênciodaCunha.Soc/ef/odesporoções, v. 3. São Paulo: Saraiva,
'973/ P- 81; PENTEADO, Mauro Rodrigues. Reorganização operacional e societária. Ação
declaratória de nulidade de deliberações de Conselho de Administração de S/A. Suposto
conflito de interesses. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São
Paulo,ano 46, n. 146,pp. 237-268, abr./jun. 2007, p. 253; REGO, MarceloLamy. In: LAMY
FILHO, Alfredo,BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.).Direito das Companhias, v.1. Rio de
Janeiro: Forense, 2009,p.411,421 ss; TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre
Tavares. Das sociedades anônimas no direito brasileiro. São Paulo: José Buscbatsky, 1979, pp.
278-279; SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade dosadministradores deS/A: business
judgment ruie. Rio deJaneiro: EIsevier, 2007, pp. 25-43; VALVERDE, Trajano de Miranda.
Sociedadepor Ações, v. 11. Riode Janeiro: Forense,1959, p. 315.
Assim, é possível excluir o conflito de6o^ofe/o.
Cf. ENRIQUES, Luca. II conflito dlnteresse degli amministratori disocietàper azioni. Milano:
Giuffrè, 2000,' p. 147 ss; ElZIRIK, Nelson. Alei das S/A comentada, v. 1. São Paulo: Quartier
Latin, 2011, pp. 661-662.
204 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

outro. Frise-se que isto é, apenas, uma possibilidade, exceto para aqueles
que, minoritariamente, assumem que ovoto nesse caso é sempre irregular.
Talvez a confusão de conceitos freqüentemente vista em decisões
administrativas e judiciais e mesmo na doutrina decorre do fato de que
conflito em sentido lato, como antes destacado, existe sempre. Osdiversos
interesses numa sociedade se relacionam, e o conflito se torna relevante,
exigindo disciplina legal, quando os interesses são incompatíveis, ou seja,
quando a satisfação de uma necessidade exclui a situação favorável à
satisfação de uma necessidade distinta.
E a LSA, ao regular o conflito de interesses do voto lançado em
assembléia, reconhece que talconflito deinteresses censurável éverificado a
posteriori, quando, de fato, éaferível aocorrência de indevida subordinação
de um interesse ao outro, que cause ou possa causar dano àsociedade (como
também o faz ao cuidar do conflito de interesses na administração da
companhia, nos termos do art. 156, eao disciplinar aquestão envolvendo
as operações realizadas pelos administradores nos grupos de fato, como
dispõe oart. 245, isso sem contar na previsão de incorporação de companhia
controlada, ateor do que determina oart. Ou, mais especificamente,
a subordinação indevida do interesse da companhia (i.e., dos acionistas
como um todo) ao interesse individual do acionista^®.
Parece fundamental, neste sentido, citar o ex-Diretor da CVM Luiz
Antonio de Sampaio Campos, em voto proferido no Processo CVM n°
RJ 2001/4977 (Tele Celular Sul Participações S.A.):
Eaqui talvez seja omomento para se abrir um parêntese para
explicitar que oconflito de interesses referido na Lei n° 6.404/76,
ao contrário do que entendeu ovoto da ilustre Diretora Relatora,
não é qualquer conflito de interesse, muito menos a expressão
conflito de interesse que se vê sendo utilizada comumente, atorto

Ou seja, a interpretação sistemática demonstra que o art. 115, §1", prevê um conflito
substancial, e nao formai (cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo eNovaes. Ainda oconceito
de beneficio particular: anotações ao julgamento do processo CVM n. RJ-2009/5 8ti Revista
de Direito Mercantil, industrial. Econômico eFinanceiro, São Paulo, v. 149-150, pp. 293-522
jan./dez. 2008, pp. 312-313).
Quando faz prevalecer um interesse próprio sobre ointeresse da sociedade (cf. SOLIMENA,
Luigi. ilconflitto di interessi deliamministratore di società per azioni nelle operazioni con Ia
società amministrata. Milão: Ciuffrè, 1999, p. 141).
Paulo Cezar Aracão - 205

e a direito, num sentido lato. A expressão conflito de interesse


tem de ser examinada na sua acepção técnica.
Primeiramente, deve ficar dito que o interesse em conflito há de
ser extrasocial,não decorrenteda situação de sócio do acionista.
Este interesse extrassocial, estranho mesmo à relação social, é
que deve se contrapor ao interesse social. A contraposição entre
interesses de acionistas nãoautoriza a aplicação do § 1°do artigo
115 da Lei n° 6.404/76.

Mais ainda, esta contraposição, este conflito, deve ser substancial,


nãoformal, efetivo einconciliável. Seria aquele conflito deinteresse
que não permitiria a convergência ou aconciliação, mas que, para
o atendimento do interesse de umadaspartes, necessariamente se
exigiria o sacrifício daoutra parte. Para se alcançar um interesse,
ter-se-ia invariavelmente que prejudicar o outro.
Assim, não se pode concordar com a posição dos formalistas que,
por pressuporem que a existência do conflito levará necessariamente àsua
solução inadequada, concluem que oacionista interessado (i.e., que tenha
um interesse em jogo na deliberação aser tomada) não poderá votar nunca.
Pelo conflito formal, o acionista fica impedido de votar em deliberação
sempre que tiver outro interesse envolvido que não única eexclusivamente
o interesse da companhia; faz-se, então, uma verificação prévia {apriori),
o que não é admissível. A razão parece estar com a corrente majoritária,
segundo a qual não basta haver o conflito, mas é preciso que ele seja de
fato mal resolvido, com aindevida (e provada aposteriori) subordinação do
interesse dacompanhia ao interesse do acionista votante.
Em primeiro lugar, é impossível proibir todo e qualquer voto em
situação de conflito de interesses, mesmo porque arealidade émuito mais
rica do que a imaginação do intérprete. Não havendo critério prévio e
universal para evidenciar oque seja interesse conflitante, asua constatação
torna-se uma questão fática, àluz da ocasião em que ovoto élançado. Logo,
"(a) conflituosidade deverá ser apreciada em cada caso concreto, conforme
as circunstâncias"^^.

39 LEÃES, Euiz Gastão Paes de Barros. Conflito de Interesses. Ointeresse social eointeresse da
empresa. Voto conflitante evedação do exercício do direito de voto. Abuso do direito de
2o6 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

Em segundo lugar, efetivamente, nem sempreque o acionista possua


um interesse pessoal extrassocietário ele votará de modo a subordinar o
interesse social no intuito de obter uma vantagem indevida (e, a rigor, a
proibição do voto em diversas situações pode,na prática, isso sim,ir contra o
interessesocial) - mesmoporque a presunção é de que todos agem de boa-
Assim, encontra-se na posição dos formalistas um grave apriorismo:
não parece razoável supor que o acionistasemprevotará de forma indevida
quando possua um interesse extrassocietário, razão pela qual deveria a lei
exigirsempre a abstençãodo acionistainteressado, como se,dada a chance,
este fosse invariavelmente tomar a decisão de prejudicar a companhia e,
ainda, como se benefício particular (objetivamente verificado) e conflito
de interesses (necessariamente subjetivos, por força do próprio conceito
carneluttiano) fossem a mesma coisa e devessem ter o mesmo tratamento'*'.

voto e abuso do poder de controle. In; . Estudos e pareceres sobre Sociedades Anônimas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp. 9-27, p. 26. De modo Idêntico, dentre outros, ver
LEÃES, LuIzGastão Paesde Barros. Conflitode Interessese vedação de voto nas assembléias
das sociedades anônimas. Revistade Direito Mercantil, industrial, Econômico e Financeiro, São
Paulo, V. 92, pp. 107-110, out./dez. 1993, p. 110; LAMY FILHO, Alfredo. Abuso do direito
de voto e conflito de Interesses - Interpretação do Art.115 e seu §1°- O direito de voto do
controlador. In: . Temas de S.A.: exposições e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar,2007,
PP-349-358,p.356,VALVERDE.Trajano de Miranda.5oc/edodepoMções,v. II. Rio de Janeiro:
Forense, 1959,p. 315; PEIXOTO, CarlosFulgénclo da Cunha.Sociedades por ações,v.3. São
Paulo: Saraiva, 1973, p. 81.
"(...) cumpre salientar que o livre exercíciode voto é a regra,e seu exercício em boa-fé deve
ser presumido. Eventual vedação de voto feriria, em princípio,o direito de liberdade de
manifestação {voice) do acionista' (CUNHA, RodrigoFerrazPimenta da. Estruturo deinteresses
nasSociedades Anônimas-, hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latln, 2007, p. 279).
Vale recordar aqui os comentários de OtávioYazbek no julgamento do caso Tractebel,
já mencionado acima, onde discute de forma bastante relevante o confronto entre o
benefício particular e o conflito de Interesses, mostrando uma Importante contradição na
análise do tema, qual seja entender-se que a característica do conflito seria a Ilegalidade
da deliberação tomada, o que acaba levando mais uma vez à adoção da teseformalista,
como se toda situação de conflito não pudesse ser resolvida de forma adequada:
Neste ponto, aliás, também quero deixar registrada uma discordância em relação às
posições do Professor Erasmo Valladão sobre o tema. Isso porque, em razão de sua
Interpretação acerca do conflito deInteresses, ele acaba por diferenciar benefício privado
deconflito deInteresses asseverando que o primeiro consistiria em uma vantagem lícita,
enquanto osegundo envolveria vantagens Ilícitas. Com todo o respeito pela posição do
autor, não vejo como concordar com ela.
Pelo que se pode depreender da análise do referido autor, conflito de Interesses
corresponderia a vantagens Ilícitas em razão justamente da equiparação, essencial para
a sua análise, entre voto dado sob conflito e voto abusivo. Se essa correlação apresenta
razoabiIIdade ante o entendimento adotado na discussão daquele tema, porém não me
parece queo mesmo valha plenamente para a presente discussão - aquele conceito de
conflito, se extrapolado, geraria aqui uma Incongruência.
Isso porque ainda que se sigaa linhade que conflitos apenas podem ser Identificados ao
produzirem efeitos (quando do reconhecimento dalllcitude dosseus resultados, portanto).
Paulo Cezar Aracão - 207

Determinadas deliberações, ainda que potencialmente danosas, podem


representar a oportunidade de que tanto a companhia quanto o acionista
obtenham vantagens econômicas; é possível a prevalência do interesse da
companhia inclusive naquelas hipóteses de conflito potencial (mesmo
porque assim sempre deve votar o acionista, como determina o caput do
art. 115 da LSA)-'^.
Neste sentido, remete-se ao voto do ex-Diretor da CVM Luiz Antonio
de Sampaio Campos noInquérito Administrativo CVMTA/RJ2002/1153:
"O exame formal, aberto, preventivo e aparente do conflito de
interesse (...) é algo,a meu ver,muito violentoe assistemático dentro
do regime do anonimato, poisafastaa presunção de boa-fé,queme
parece ser a presunção geral, e mais, tolhe um direito fundamental
do acionista ordinário que é o direito de voto, no pressuposto de
que ele não teria como resistir à tentação. Dito de outra forma,
estar-se-ia a expropriar previamente o direito de voto do acionista
no pressuposto de que ele poderia vira prejudicar a companhia se
lhe fosse permitido votar, em virtude de um aparente e eventual
conflito de interesse. Haveria a presunção de que o acionista
perpetraria uma ilegalidade acaso fosse lícito que proferisse o seu
voto, presumivelmente numa espécie de consagração da fraqueza
humana. A presunção da púnica fides cartaginesa".
Portanto, é necessário que existao conflito entre o interesse extrassocial
do acionista e o interesse da companhia, sendo que tal conflito somente
pode ser verificado in concreto. Ora, o acionista cometeo ato flícito quando

isso não autorizaria dizer que um conflito só existe quando aquele efeito danoso tenha se
produzido. O conflito já existia antes, os interesses contrapostos já existiam - difícil era a
sua identificação. Indo além, dizer que conflitos de interesses correspondem a vantagens
ilícitas, neste contexto que ora descrevo, eqüivaleria a dizer que qualquer contratação
realizada quando haviaaquele tipo de contraposiçãoseria,também, ilegal.
Ora, tanto não há ilicitude nas contratações que, como já exposto, a Lei não proíbe
relações em que interessescontráriosestejamenvolvidos. Em suma, noscasosde posições
contratuais contrapostas entre acionista e sociedade (e uma vez afastada a hipótese do
benefício particular), muitas vezes podem existir interesses contrapostos (ou seja, oconflito
de interesses propriamente dito). Nem por isso há,aí, ilicitude. Entendo que equiparar o
interesse existente em caso de conflito de interesses a interesse ilícito, assim, gera uma
dificuldade insolúvel."
Ver RECO, Marcelo Lamy. In: LAMY FILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA, José Luiz(coord.).
Direito das Companhias, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, zoog, p.422; e ElZIRIK, Nelson. Alei
das S/A comentada, v. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 663.
2o8 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

vota contra o interesse da sociedade e isso causa ou possa causar dano à


companhia, e não por possuir interesses extrassociais.
E assim já se manifestou o Superior Tribunal deJustiça:
"Na verdade, na sociedade comercial há conflitos de interesse e
de força, prevalecendo a força do capital,porque issoé inerente à
natureza da sociedade. Não existindo um interesse estritamente
colidente de um acionista em relação à própria empresa não há
razão para se afastar da votação o acionista, porque a todo o
momento se poderia interpretar que tal ou qual atitude deste
acionista estaria ou não colidindo com ointeresse daquela, quando
é ele, por ter a maioria do capital, quem tomaas decisões."«
Os coautores do anteprojeto da LSA, citados pelo ex-Diretor da
CVTNd Luiz Antonio de Sampaio Campos em seu voto no Inquérito
Administrativo n° RJ2002/1153 (Previ), resumem bem o tema:
E, com aautoridade de co-autores do anteprojeto que se converteu
na Lei n 6.404/76, em pareceres elaborados para ocaso específlco:
Alfiredo LamyFiüio:
O conflito terá pois que ser caracterizado como 'una relazione de
incompatibmtà assoluta', como diz SANTAGATA,para causar dano
àsociedade, pois oque está em jogo éointeresse da sociedade, enão
da minoria, na expressão de FERRI.'
José Luiz Bulhões Pedreira:

Interesse conflitante significa interesse oposto, contrário, incom


patível ou colidente. Não éapenas interesse diferente, ou distinto,
que pode ser, inclusive, coincidente com o da companhia, ou
complementar a este: éválido ovoto proferido pelo acionista no
interesse da companhia, ainda que na deliberação tenha outro
interesse próprio, distinto do da companhia, desde que não seja
com este conflitante.'

Uma vez demonstrado que, para a caracterização do conflito de


interesses, não basta a duplicidade de interesses, mas que estes

43 Voto do Ministro Aidir Passarinho Júnior no REsp 131.300 (Rei. Min. César Asfor Rocha,
4= Turma, j. 29/08/2000).
Paulo Cezar Aragão - 209

estejam inconciliavelmente em choque, percebe-se que a tese do


conflito formal é incompatível com uma tal noção de conflito.
Haveria, então, de ser, no dizer de Cario Santagata 'una realizione
de incompatibUità assoluta'."
E caminhando nesse sentido, tem-se que inexistem motivos para
a lei estabelecer um controle formal se, por exemplo, autorizou que
o controlador contrate com a companhia (LSA, art. 117, §1°, "f") -
justamente o caso paradigmático para quem defende o conflito de
interesses formal"*"*. Issosem contarque adotar o critério formal iriacontra
o fenômeno da concentração empresarial e atuação por meio de grupos
de sociedade, sendo que a própria lei reconhece tal fenômeno e o regula
(sem realizar a proibição das relações entre as sociedades do mesmogrupo
—de fato ou de direito —, mas muito pelo contrário)"*'.
Além de todo o exposto, tem-se que a lei não proibiu o voto em caso
de conflito de interesses - como o fez com as outras situações previstas no
art. 115, §1°, da LSA'*^ E tanto isso é verdade que se quisesse a lei tratar
os acionistas desta forma, impedindo-lhe de antemão o voto - ou mesmo
dificultando o seu exercício —teriam sido mantidos os §§ 5° a 10° do art. 115
introduzidos pelo Congresso Nacional na reforma que resultou na Lei n°
10.303/01,que exigiam a realização de umaassembléia de minoritários para
44 Cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflitos de interesses nasAssembléias de
S.A. SãoPaulo: Maiheiros, 1993, p.96; FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Ainda o
conceito de benefício particular: anotações aojulgamento doprocesso CVM n.RJ-2009/5.811.
Revista de Direito Mercantil, industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 149-150, pp. 293-
-322, jan./dez.2008,p.312,319; FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de
interesses: formal ou substancial? Nova decisão da CVMsobre a questão. Revistade Direito
Mercantil, industrial. Econômicoe Financeiro, São Paulo, ano 41,n. 128,pp. 225-262, out./dez.
2002, pp.259-260; REGO, Marcelo Lamy. In: LAMY FILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA,
José Luiz (coord.).Direito das Companhias, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.423.
45 LEÃES, Luiz Gastão Paesde Barros. Ação de anulação de deliberação assembleardecorrente
de voto de acionista com interesse conflitante. In: . Pareceres,v. I.São Paulo: Singular,
2004. pp. 175-184, p. 181; LAMY FILHO, Alfredo. Abuso do direito de voto e conflito de
interesses - Interpretação do Art. 115 e seu§1° - O direito devoto do controlador. In: .
Temas deS.A. : exposições e pareceres. Rio deJaneiro: Renovar, 2007, pp.349-358, pp.352-
-353; FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Con/7/íos de//líeressesnosAssemWe/osde
S.A. São Paulo: Maiheiros, 1993, pp. 94-95; FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes.
Conflito de interesses: formal ou substancial? Nova decisão da CVMsobre a questão. Revista
de DireitoMercantil,Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo,ano 41, n.128, pp. 225-262,
out./dez. 2002, p. 260.
46 Da mesma forma, no conflito de interesses na administração da companhia, a regra não é
a proibição, como estabelecido no art. 156da LSA: quando a lei quis, ela proibiu a atuação
dos administradores em determinadas situações (art. 154, §2°) ou, inclusive, a ocupação
do cargo (art. 147, §3°).
210 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

permitir ovoto do controlador, após uma verificação prévia dainexistência de


conflito. Comobemexplicitou o Presidente da República na Mensagem de
Veto n° 1.213/01, ao vetar a introdução dos referidos parágrafos, a exigência
de tal procedimento eqüivaleria a impedir de plano o voto do controlador,
dando margem apossíveis abusos daminoria. Este não foi o caminho trUliado
pelo legislador. Como dito acima, optou a lei porestabelecer a regra geral da
liberdade do voto e punir os desvios.
Nessa toada, é relevante lembrar, seguindo os passos de Luiz Gastão
Paes de Barros Lcães"*^, que no caso do voto proferido em conflito de
interesses, a sanção é a anulabilidade do voto, conforme previsto no §4°
do art. 115. Resta, aqui, mais uma comprovação de que é mais acertada
e condizente com o sistema da LSA a posição majoritária, do conflito
substancial. Destarte, vale citar mais um trecho do Inquérito Administrativo
n° RJ 2002/1153 (Previ):
"E, nesse sentido, não posso imaginar que tenha sido obra
do acaso e que não tenha propósito a inserção do tema da
anulabilidade específica e tão-somente paraa hipótese de conflito
deinteresses, deixando defora e semqualquer referência às demais
três hipóteses do parágrafo 1°, do art. 115.
A opinião de José Luiz Bulhões Pedreira, no já citado parecer,
é eloqüente:
'O § 1° do artigo 115 dispõe ainda que acionista não poderá
votar nas deliberações daAssembléia Geralem que tiverinteresse
conflitante com o da companhia, mas essa norma não pode ser
interpretada isoladamente —comabstração do § 4°do artigo115 —
no qualaleiacrescenta quea deliberação tomadaem decorrência do
voto deacionista que teminteresse conflitante como dacompanhia
é anulável, e que o acionista responderá pelos danos causados
e será obrigado a transferir para a companhia as vantagens que
tiverauferido. Se a leiproibisse o exercício do voto pelo acionista

LEÃES, LuizGastão Paes de Barros. Conflito de interesses. O interesse social e o interesse da


empresa. Votoconflitantee vedação do exercício do direito de voto. Abuso do direito de
voto e abuso do poder de controle. In: . Estudose pareceres sobre Sociedades Anônimas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp. 9-27, p. 26. Ver, também, REGO, Marcelo Lamy.
In: LAMY FILHO, Alfredo,BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.). Direitodos Companhias,
V. I. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 425-426.
Paulo Cezar Aragão - 211

em situação de conflito de interesses, a violação da norma legal


implicaria nulidade do voto, e não a sua anulabilidade'."
E, pelos mesmos argumentos, e também porque não se pode realizar
uma interpretação extensiva ou aplicação analógicadas proibições de voto
a hipóteses não expressamente previstas na lei''®, não se pode acompanhar
a (relativa) mudança de orientação da CVM no julgamento do caso
Tractebel (Processo CVM n° RJ 2009/13179). Lá, evitando as posições
extremadas (conflito substancial vs. conflito forma!), o Relator do caso,
Diretor Alexsandro Lopes, terminou concluindo que há situações que
se enquadram no conflito visível a priori, de cunho portanto formal (na
distinção já clássica, embora não exata) e outros de índole mais sutil, se
existente de todo, onde apenas aposteriori seria possível a apuração:
"Compartilho integralmente com a forma de interpretação do
artigo115,parágrafo 1°,proposta porComparato. Entendo queo
conflitode interesses pode serveriflcado tanto a priori,nos casos
em que possa ser facilmente evidenciado, quanto a posteriori,
nas situações em que não transpareça de maneira reluzente."*"
E, assim, a CVM seguiu posição de Fábio Konder Comparato'" para
quem, apesar de reconhecer que o conflito de interesses é material, leciona
48 Cf.LEÃES, Luiz Gastão Paesde Barros. Conflitode interesses.O interessesocial e o interesse
daempresa. Voto conflitante evedação doexercício dodireito devoto. Abuso dodireito de
votoe abusodo poderde controle. In: . Estudos epareceres sobre Sociedades Anônimas.
SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp.9-27, p.26; LEÂES, Luiz Gastão Paes de Barros.
Açãode anulaçãode deliberaçãoassembleardecorrente de votode acionista cominteresse
conflitante. In: . Pareceres, v. I.São Paulo: Singular, 2004. pp. 175-184, p. 180; ElZIRIK,
Nelson. A lei das S/Acomentada, v. i. São Paulo: Quartier Latin, 2on, pp. 655-656; REGO,
Marcelo Lamy. In: LAMY EILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.). Direito
das Companhias, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 424.
49 AComissão de Valores Mobiliários modificou a sua posiçãosobre a matériaem diversas
oportunidades: noInquérito Administrativo CVM TA/RJ 2001/4977 (Rei. Dir. NormaJonssen
Parente, j. 19/12/2001), entendeu que, no caso, existiria conflito formal. Já no Inquérito
Administrativo CVM TA/RJ 2002/1153 (Rei. Dir. Norma Jonssen Parente, j. 06/11/2002),
entendeu que se tratava de conflito substancial de interesses; no mesmo sentido foi o
julgamento do Processo Administrativo CVM n° RJ 2004/5495, tendo o Conselho de
Recursos do Sistema Financeiro Nacional - CRSEN, no acórdão 47^8 /2004, entendido
que se tratava de conflito formal de interesses. Porfim, no Processo Administrativo CVM
RJ 2009/13179 (Rei. Dir. Alexsandro Broedel Lopes, j. 09/09/2010), a CVM adotou o
posicionamento estampado no corpo do texto.
50 COMPARATO, Fábio Konder. Controle conjunto, abuso no exercício do voto acionário e
alienaçãoindiretade controleempresarial. In: . Direito Empresarial, Estudos ePareceres.
São Paulo: Saraiva, 1990. pp. 81-102, p.91. No Processo Administrativo CVM RJ 2009/13179,
os votos do Diretor Marcos Pinto e da Presidente Maria Helena dos Santos Fernandes de
Santana(que pela ata da reuniãoacompanharam asconclusõesdo relator, ainda que o teor
212 - Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

que permanece a proibição do voto (conflito formal) quando se trata de


uma questão flagrante de conflito de interesses:
"(...) para que haja impedimento do voto é mister que o conflito
de interesses transpareça a priori da própria estrutura da relação
ou negócio sobre que se vai deliberar, como, por exemplo, um
contrato bilateral entre a companhia e o acionista."
Seguiu a CVM, nestecaso, então, uma terceira corrente, e que confunde
de forma equivocadao binômio formal-substancial com o binômio evidente-
-implícito, para concluir que existe conflito a priori (formal) quando ele é
evidente também antecipadamente, numa situação formal, como o contrato
entre o acionista e a com a companhia, sendo ele substancial quando a sua
apuração depende de análise mais profunda.
Assim, termina a CVTVI por concluir - de forma até certo ponto
circular - que o conflito será supostamente formal quando o intérprete,
na esferajudicial ou administrativa, entender que ele existe independente
de prova, icto oculi, dependendo de prova para a sua configuração quando,
enfim, tal prova for necessária.
Não podem restar dúvidas,assim, que o conflito de interesses somente
pode ser analisado caso a caso e expostfactum, devendo restar provado
tanto a deliberação em conflito quanto o dano ou a potencialidade de
dano à companhia^'-". Logo, a ilicitude não se encontra no exercício do

de cada voto apresente particularidades relevantes) seguiram a orientação de Comparato. O


item 29 do voto do Diretor Marcos Pinto, o item 58 do voto do relator, o voto da Presidente
e o item 29 do voto do Diretor Otávio Yazbek reprisam a citação do ilustre comercialista.
Sobre o dano atual ou potencial, ver STESURI, Aldo. // conflitío di interessi. Milano: Giuffrè,
1999»P-142; e GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Abstenção de voto e conflito de interesses.
In: KUYVEN, Luiz Eernando Martins. Temas essenciais de direito empresarial - Estudos em
homenagem a Modesto Carvaíhosa. São Paulo; Saraiva, 2012. pp. 681-692, pp. 682-683.
Aqui,pode-se até pensarem trabalhar com um sistema de presunções e inversão do ônus
da prova.Se o acionista vota possuindo interesse extrassocial, e tal fato resta comprovado,
deve ele provar a higidez da deliberação (i.e., que a deliberação atende ao interesse
social). Poroutro lado, caso seja seguido um procedimento semelhante ao previsto no
caput do art.156da LSA (ou seja: o acionista com interesse extrassocial não vota e informa
tal situação aos demais acionistas, sendo, então, a deliberação tomada por acionistas
desinteressados e devidamente informados), tem-se que existe verdadeira presunção de
correição da deliberação, sendo, então, que o ônus probatório do não-atendimento do
interesse social recai sobre os ombros de quem contesta a deliberação (sendo tal ônus
muito mais pesado). Caminhando neste sentido, ver: CHEDIAK, Julian Fonseca Pena. O
conflitodo administrador de sociedade anônima: uma sugestão de alteração no enfoque
do tema. In:ADAMEK, Marcelo Vieiravon (coord.). Temasde Direito Societário e Empresarial
Contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2on. pp. 409-417.
Paulo Cezar Aragão - 213

direito de voto quando o acionista possua, na deliberação, algum interesse


extrassocial, mas sim quando o exercício do direito de voto não atende os
interesses sociais. Mesmo porque, e é importante ressaltar, o acionista não
precisa sacrificar os seus próprios interesses: desde que coloque sempre o
interesse da companhia em primeiro lugar, é lógico que pode satisfazer
interesses pessoais no exercício do seu direito de voto^^.

4. Considerações Finais
Em resumo, benefício particular, conflito deinteresses e voto abusivo
sãofiguras distintas aindaquefreqüentemente confundidas, muito embora
em alguns casos possa haver entrelaçamento entre elas'"*.
Assim, no caso do benefício particular, a satisfação do interesse da
companhia é irrelevante para a análise, já que o voto do beneficiado em
particular será sempre havido, por imperativo legal, como irregular. E,
havendo benefício lícito que favorece um único acionista ou, de outra
forma, um grupo deles identificados por um atributo (necessariamente
particular) estranho à sua condição de titulares de valores mobiliários de
idêntica natureza^^, o impedimento de voto abrangerá apenas o acionista
beneficiado ou, conforme o caso,alcançará toda a categoria de acionistas que

"O acionista pode votar segundo seu interessepróprio,desde que esse interesse não seja
conflitante, mas compatível, com o interesse da companhia(...)." (REGO, Marcelo Lamy.
In: LAMY FILHO, Alfredo, BULHÕES PEDREIRA, José Luiz (coord.). Direito das Companhias,
V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 403).
Assim, caberia, em tese, fechar o tema com um breve trecho do voto do ex-Presidente
da CVM, Marcelo Fernandez Trindade, no Processo n° RJ 2006/6785 (Tele Norte Leste
Participações S.A.): "Qualqueroutrasoluçãodeterminaria, necessariamente, a análise do
interesse econômico que os acionistasindiretamente(e não como contrapartes, terceiros
beneficiados ou conjunto de acionistas beneficiado)teriam em uma certa deliberação
societária. Essadiscussão, a meu ver, deslocaria o tema do campo do beneficio particular,
como modalidade de vantagemque impede objetivamenteo voto, para um de outros dois
campos: "(i) o do conflito de interesses, nos casos em que for possível aferir, a posteriori,
se o voto dado pelo acionista em defesade seu própriointeresse e contrao interesse da
companhia; (ii)o do voto abusivo, se for possívelverificarque o voto foi proferido 'com o
fimde causar dano à companhia ou a outrosacionistas, ou de obter, parasiou paraoutrem,
vantagem a que não fazjuse de que resulte, ou possaresultar, prejuízoparaa companhia
ou para outros acionistas' (art. 115 da Lei6.404/76).
Asrazões que motivamo voto do acionistasão múltiplas, e se relacionamaos maisdiversos
fatores. Avantagem indireta que umacionista obtenhade umacertadeliberação nãodeve
impedi-lo de votar,apenas os benefícios diretos —como os das duas primeiras hipóteses
do § 1° do art. 115 da Lei das S.A., e os do Parecer de Orientação 34".
Foi utilizado, de caso pensado, o conceito não-técnico de natureza a fim de evitar a
necessidade de um maior detalhamento entre valores mobiliários de espécie, classe, série
ou outras distinções legais.
214 " Apontamentos sobre Desvios no Exercício do Direito de Voto

compartilhe tal atributo (por isto, a CVM, sem tomar em conta a pessoa
do acionista, tem corretamenteentendido que o titular de ações ordinárias
beneficiado com certa deliberação tomada em prejuízo do interesse dos
acionistas preferenciais pode votar livremente com as ações preferenciais
que porventura possuir).
No caso do conflito de interesses, o confronto de interesses é funda
mental, jáque caberá ao juiz (ou àCVM, na esfera administrativa) determinar,
à luz do caso concreto e da prova, sem uma posição preconcebida, se houve
ou nãosubordinação irregular ou se,aocontrário, os dois interesses se acomo
daram de forma adequada. O conflito de interesses há de ser substancial, ou
seja, deve ser provado.
Por fim, no caso do abuso do voto, o que se torna irrelevante na
análise é o interesse do acionista votante, já que o ponto fundamental é o
intencional e indevido desatendimento do interesse da companhia, havendo
abuso se este último foi prejudicado, ainda que nenhuma vantagem o
acionista votante (controlador ou não) (ou terceiro) tenha obtido (voto ad
aemulationem). O abuso do direito de voto pressupõe, primordialmente, a
existência da intenção de causar dano à companhia ou a outros acionistas,
satisfazendo ou não um interesse de acionista ou de terceiro contrário ao
interesse da companhia. Ausente seja o elemento intencional de causar
dano à companhia, descabe falar em abuso do direito devoto (ainda mais
se ausente qualquer indício de que a operação seja danosa à companhia).

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