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Os Cinco Solas da Reforma

Sola Scriptura, Sola Christus, Sola Gratia, Sola Fide, Soli Deo Gloria
Teo Cavaco, 15 de outubro, 2017

John Wycliffe (1328-1384), professor na Universidade de Oxford, teólogo e primeiro


tradutor da Bíblia para a língua inglesa, John Huss (1369-1415), pensador e linguista boémio
(hoje República Checa) e Jerónimo Savonarola (1452-1498) profundo estudioso de filosofia e
de medicina, e depois padre dominicano e pregador de Florença, Itália, entre tantos outros,
foram mortos por defenderem os seus ideais de conduta e de fé, denunciando que havia um
grande contraste entre o que a Igreja Romana era e o que deveria ser - e por isso defendiam a
necessidade de reformas, uma vez que apontavam a incompatibilidade entre várias normas e
práticas do clero e os ensinos e vida de Jesus e dos Seus apóstolos.

No cárcere, sentenciado pelo Papa para ser queimado vivo, John Huss disse: "Podem
matar o ganso (em alemão, sua língua natal, huss é ganso), mas daqui a cem anos, Deus
suscitará um cisne que não poderão queimar".

Quando, a 31 de outubro de 1517 (cento e dois anos após a morte de John Huss)
Martinho Lutero afixou à porta da capela da cidade universitária alemã de Wittemberg, onde
era professor, as suas famosas 95 teses (ou 95 proposições para serem debatidas), tinha como
principal objetivo debater vários pontos teológicos da doutrina católica romana, sobretudo a
questão sobre se a salvação era pela fé somente, ou se era necessária a ajuda das obras
praticadas pelos cristãos (por exemplo as ignominiosas indulgências, do latim indulgentia, que
provém de indulgeo, "para ser gentil" - a remissão, total ou parcial, da pena temporal devida,
para a justiça de Deus, pelos pecados que foram perdoados, ou seja, do mal causado como
consequência do pecado já perdoado através da confissão sacramental, concedida pela Igreja
Católica no exercício do “poder das chaves”, por meio da aplicação dos superabundantes
méritos de Cristo e dos santos, por algum motivo justo e razoável. Embora "no sacramento da
Penitência a culpa do pecado seja removida, e com ele o castigo eterno devido aos pecados
mortais, ainda permanece a pena temporal exigida pela Justiça Divina, e essa exigência deve
ser cumprida na vida presente ou depois da morte, isto é, no Purgatório”1. Uma indulgência
oferece ao pecador penitente meios para cumprir esta dívida durante a sua vida na terra,
reparando o mal que teria sido cometido pelo pecado).

Durante a Idade Média, vários documentos declaravam que indulgências de caráter


extraordinário foram concedidas. A fim de tentar corrigir tais abusos, o Quarto Concílio de
Latrão (1215), os Papas Clemente IV (1265) e João XXII (1316), o Concílio de Ravena (1317), e
os Papas Bonifácio IX (1392), Martinho V (1417) e Sisto IV (1471) proibiram a prática de certos
membros de ordens religiosas que falsamente alegavam que as indulgências concederiam o
perdão de todos os tipos de pecados; mas, apesar das restrições, o final da Idade Média
proporcionou um crescimento considerável de abusos, tais como a livre venda de indulgências
por profissionais "perdoadores" - a pregação destes era falsa, atribuindo às indulgências

1
https://www.facebook.com/ComunidadeSaoJoaoBatistaDoJdPeryAlto/posts/161315630746053,
consultado a 13 de outubro, 2017
características muito além da doutrina oficial, afirmando que "assim que uma moeda tilinte no
cofre, uma alma sai do purgatório".

E, em 1517, o próprio Papa Leão X ofereceu indulgências para quem desse esmolas
para construir a Basílica de São Pedro em Roma - o agressivo marketing de Johann Tetzel em
promover esta causa provocou Martinho Lutero a escrever algumas das suas 95 Teses (“as
indulgências não levam a alma diretamente ao céu, uma vez que o papa nenhuma pena
dispensa às almas no purgatório das que segundo os cânones da Igreja deviam ter expiado e
pago na presente vida", ou “deve-se ensinar aos cristãos que o papa, por dever seu, preferiria
distribuir o seu dinheiro aos que em geral são despojados do dinheiro pelos apregoadores de
indulgência, vendendo, se necessário fosse, a própria catedral de São Pedro”2).

Depois de Lutero, outros grandes reformadores protestantes foram importantes no


movimento de renovação do cristianismo - João Calvino, homem de mente privilegiada que
sistematizou brilhantemente os princípios doutrinários, em várias publicações, principalmente
nas “Instituições da Religião Cristã” (Institutas), obra que ainda é muito usada, hoje, por
teólogos e professores.

Também foram importantes:

- Filipe Melanchton, astrónomo alemão, colaborador de Lutero que redigiu a


“Confissão de Augsburgo” (1530), convertendo-se no principal líder do luteranismo após a
morte de Lutero; é considerado o primeiro sistemático da Reforma (Loci communes, 1521 -
posteriormente reeditado com melhoramentos). Publicou trabalhos não apenas na Teologia,
mas também na Psicologia, Física e filosofia. Além de ser um entusiasta da astronomia grega,
foi o primeiro a imprimir uma versão parafraseada do livro Tetrabiblos de Ptolomeu. Além
destes, escreveu comentários ao Novo Testamento, sobre a “Epístola aos Colossenses” e sobre
a “Epístola aos Romanos”;

- Theodore de Béze, teólogo protestante francês que desempenhou um papel


importante no início da Reforma Protestante, discípulo de João Calvino e seu sucessor na
liderança da Igreja em Genebra; foi o autor da conhecida obra de teatro "Abraão sacrificando"
(1552) e, na filosofia política, deixou-nos o clássico "Do direito dos magistrados sobre os seus
sujeitos", obra na qual expõe os argumentos da licitude de se responder às tiranias do seu
tempo com "remédios justos", privilegiando os instrumentos institucionais, previstos nas leis
fundamentais de um reino, em detrimento da luta armada. Foi ainda autor do livro "A Vida e a
Morte de João Calvino";

- Ulrich Zuínglio, o líder da reforma suíça e fundador das igrejas reformadas suíças.
Independentemente de Martinho Lutero, que era doctor biblicus, Zuínglio chegou a conclusões
semelhantes pelo estudo das escrituras do ponto de vista de um erudito humanista. Zuínglio
não deixou uma igreja organizada, mas as suas doutrinas influenciaram as confissões
calvinistas: enquanto Lutero quis responder à questão "como serei salvo?", Zuínglio propôs
outra: "como será salvo o meu povo?";

2
http://www.arqnet.pt/portal/teoria/teses.html, consultado em 13 de outubro, 2017
- Martim Bucer, reformador protestante em Estrasburgo, que influenciou as vertentes
luterana, calvinista, anglicana em doutrina e práticas; foi originalmente um membro da Ordem
Dominicana, mas depois, influenciado por Martinho Lutero, em 1518 anulou os seus votos
monásticos, começando a trabalhar para a necessidade de uma Reforma na Igreja Romana;

- Menno Simons (reforma radical), teólogo originário da Frísia (hoje Holanda), primeiro
ordenado padre católico, em 1524, mas depois considerado um dos reformadores radicais,
ligado aos anabatistas; convertido ao Anabatismo em 1536, a sua influência sobre o grupo foi
tão forte que estes, no norte da Europa, foram chamados de menonitas;

- e tantos outros.

Assim, chamamos globalmente Reforma Protestante a um movimento de


renascimento, mas também de rutura, de quebra de paradigmas (do grego paradeigma,
significando modelo ou padrão).

Renascimento da Palavra, mas também da necessidade de uma vida com Aquela


coerente – ou seja, uma mudança com ciência e com conhecimento, que trata diretamente
com a forma de crer e perceber as coisas, baseada numa insatisfação3- foi precisamente isto
que aconteceu com Lutero.

Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus
Cristo (Romanos 5:1) - este texto bíblico foi um dos que principalmente motivaram Martinho
Lutero a empreender uma Reforma, algo que, como já vimos, outros, antes, pressentiram.

Com efeito, Lutero e os outros Reformadores conseguiram defender a verdade bíblica


de que podemos ser justificados (perdoados) pela fé e, como consequência, reatarmos um
relacionamento com Deus, o qual produzirá uma paz indescritível, e que isto está acessível a
todos, pois não depende de dogmas, mas sim de uma perceção de que a vida é muito mais do
que um simples respirar, e de que as nossas necessidades vão muito além do que comer,
beber e conquistar os nossos sonhos ou, nalguns casos, devaneios...

Neste contexto, os Cinco solas são frases latinas que definem os princípios
fundamentais (os credos teológicos básicos dos reformadores da Reforma Protestante), em
contradição com o pensamento, a conduta e o ensino da Igreja Católica Apostólica Romana, a
qual tinha usurpado os atributos ou qualidades divinos para a Igreja e sua hierarquia,
especialmente para o seu superior, o Papa. A palavra latina "sola" significa "somente" em
português.

3
Segundo Kuhn, para que haja quebra de paradigma é preciso que haja uma insatisfação
Fui convidado a convosco conversar acerca de um deles, o Sola Christus (somente
Cristo), o ensinamento de que Cristo é o único mediador entre Deus e a humanidade, e que
não há salvação através de nenhum outro - ao rejeitar todos os outros mediadores entre Deus
e a humanidade, este princípio doutrinário rejeita o sacerdotismo, que é a crença de que não
existem sacramentos da igreja sem os serviços de sacerdotes ordenados por sucessão
apostólica, sob a autoridade do papa.

Ou seja, este "somente" mostra a suficiência e a exclusividade de Cristo no processo de


salvação. Desde a eternidade, Deus promove a aliança da redenção, onde o beneficiário é o
homem e o executor dessa aliança é o Seu Filho unigénito, Jesus Cristo, o Messias prometido -
portanto, somente Cristo é o instrumento de nossa salvação, sendo que, assim, o homem nada
pode fazer pela e para a sua salvação, dado que Jesus Cristo realizou a obra da redenção, ao
ser sacrificado na cruz do calvário, vertendo o seu sangue como sacrifício pelos nossos
pecados.

E não há salvação em nenhum outro: porque abaixo do céu não existe nenhum outro
nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos Atos 4.12.

Mas, no século XVI, a afirmação Sola Christus tinha, a meu ver, um outro alcance: com
efeito, por exemplo Lutero também pregou o "sacerdócio geral dos batizados" (mais tarde
modificado no luteranismo e na teologia protestante clássica para "sacerdócio de todos os
crentes"), ou seja, negou-se o uso exclusivo do título de padre (do latim sacerdos) para o clero
– o qual tinha, assim, a função do ministério sagrado para o qual está comprometida a
proclamação pública do Evangelho e da administração dos sacramentos.

Ficam então identificados os chamados "ministros de Cristo" como sendo os que


exercem o ligar e o desligar da absolvição e da excomunhão através do ministério da Lei e do
Evangelho, definida na fórmula luterana de santa absolvição: o "chamado e ordenado servo da
Palavra" perdoa pecados dos penitentes (diz as palavras do perdão de Cristo: "Eu perdoo todos
os teus pecados"), sem qualquer adição de penitências ou satisfações e não como um
intercessor ou "sacerdote mediador", mas "em virtude da sua função como um chamado e
ordenado servo da Palavra" e "em lugar e pelo comando da nosso Senhor Jesus Cristo". Nesta
tradição, a absolvição do penitente reconcilia-o com Deus diretamente, mediante a fé no
perdão de Cristo, em vez de ter o padre e a Igreja como mediadores entre este e Deus4.

E o que significará, no século XXI, a afirmação Sola Christus? O mesmo? Outra(s)


coisa(s)?

Talvez estejamos a assistir, nos últimos anos, nos países ocidentais, à secularização da
fé evangélica, a uma erosão da Fé Centrada em Cristo - uma Fé “à deriva”, sem Valores

4
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cinco_Solas
http://oscincosolas.blogspot.pt/2012/09/os-cinco-solas-da-reforma-protestante.html
http://www.monergismo.com/textos/cinco_solas/cinco_solas_reforma_erosao.htm
absolutos, de um individualismo permissivo, na qual, muitas vezes, os seus interesses se
confundem com os da cultura.

Qual tem sido o resultado? O que me aprouve chamar de uma “Fé de substituição”.

Assim, foi-se substituindo:

- a santidade pela integridade | Porquanto está escrito: Sede santos, porque eu sou
santo (1 Pedro 1:16);

- o arrependimento pela recuperação | Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os


pecadores, ao arrependimento (Lucas 5:32);

- a verdade pela intuição | Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida;


ninguém vem ao Pai, senão por mim (João 14:6);

- a fé pelo sentimento | Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como


está escrito: Mas o justo viverá pela fé (Romanos 1:17);

- a providência pelo acaso | Vida e misericórdia me concedeste; e o teu cuidado


guardou o meu espírito (Jó 10:12);

- a esperança duradoura pela gratificação imediata | Mas nós, que somos do dia,
sejamos sóbrios, vestindo-nos da couraça da fé e do amor, e tendo por capacete a esperança
da salvação (1 Tessalonicenses 5:8);

- Cristo e a Sua cruz por mim | Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as
coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus (Colossenses 3:1).

Hoje, 15 de outubro de 2017:

1. Reafirmamos que a nossa salvação é realizada unicamente pela obra mediatória do


Cristo histórico. A Sua vida sem pecado e a Sua expiação, por si só, são suficientes para a nossa
justificação e consequente reconciliação com o Pai;

2. Negamos que o evangelho esteja a ser pregado se a obra substitutiva de Cristo não
estiver a ser declarada e se a fé em Cristo e na Sua obra não estiver a ser invocada.

Estamos a necessitar, pois, de uma nova Reforma?!...

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