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COMUNICAÇÃO

E POLÍTICA

SILVIO AUGUSTO DE CARVALHO

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2017
Conselho editorial  roberto paes e gisele lima

Autor do original  silvio augusto de carvalho

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  gisele lima, paula r. de a. machado e aline karina rabello

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  luís salgueiro

Revisão linguística  claudia lins

Revisão de conteúdo  gabriel nava lima

Imagem de capa  guayo fuentes | shutterstock.com

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

C331c Carvalho, Silvio Augusto de


Comunicação e política / Silvio Augusto de Carvalho.
Rio de Janeiro : SESES, 2017.
152 p.
ISBN: 978-85-5548-488-9.

1. Comunicação. 2. Política. 3. Mídias.


4. Globalização. I. SESES. II. Estácio.

CDD 302.23

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. Uma invenção humana maravilhosa: a política 7


A construção da política 8
Introdução: uma viagem histórica 8
A origem grega e romana da política 9
Os sentidos cotidianos da política 10
Afinal, o que é a política? 12

A invenção do modelo democrático de política 16


Desconstruindo o modelo despótico e patriarcal 19

A revolução maquiavélica 22

Estado de natureza e Contrato Social: Hobbes e Rousseau 26

2. Esferas pública
e privada 35
Reflexões sobre as esferas pública e privada 36
Auge do pensamento liberal 36

As esferas pública e privada: o pensamento de Hannah Arendt 40

A contribuição decisiva de Habermas 44

A vez de John Thompson: a mídia e a modernidade 51


Público e privado: um segundo sentido 53
Jornais, sociedade e poder 54
Os jornais e a separação do compartilhamento do espaço 56
A mídia eletrônica e o poder político: um novo mundo 57
Pluralismo regulado 58
3. Poder e visibilidade 63
Introdução: poder e controle 64

Transformando a ideia de poder: a contribuição de Michel Foucault 64

O poder disciplinar 66
Pan-óptico 71
Saber e poder 73
O poder: uma nova concepção 74

As sociedades de controle 75

Comunicação e política vai ao cinema 81

A sociedade do espetáculo 82
Ideologia e alienação 82
Uma análise do espetáculo 84

4. O espetáculo moderno e a globalização 91


As formas do espetáculo moderno 92
O espetáculo na vida política e social moderna 93
Diálogo entre autores: Debord e Kellner 97

As transformações do Estado-nação 103


As mudanças no papel do Estado 106

A globalização perversa 112

5. Novas tecnologias e transformação


social: possibilidades 119
O potencial das novas mídias na globalização 120

Criando a contra-hegemonia 120


Hegemonia, contra-hegemonia e comunicação 123

O espaço online: uma nova participação política nacional e internacional 127

A nova esfera pública e as mídias digitais 135


A nova esfera conversacional: os estudos de André Lemos 139
Prefácio

Prezados(as) alunos(as),

Você está prestes a começar uma grande viagem que contribuirá para am-
pliar seu conhecimento sobre a relação entre duas das mais importantes áreas da
atividade humana – a Comunicação e a Política. Aliás, um dos objetivos centrais
deste livro consiste em, antes de tudo, discutir a própria formação da política
como a conhecemos hoje para, em seguida, apontar uma série de articulações
entre essas duas linhas de conhecimento e ação.
Pode-se dizer que, mais do que nunca, essas áreas estão ligadas, formando
uma complexa interface que exige do estudante de Comunicação cada vez mais
conhecimento crítico. Para começo de conversa, procura-se aqui fornecer a você
um conjunto de reflexões, ideias e questionamentos que, certamente, irão con-
tribuir não apenas para sua formação intelectual, como também para seu exer-
cício profissional. Portanto, o caminho que você tem à frente é um verdadeiro
desafio que se estrutura em cinco capítulos.
O primeiro deles irá discutir o significado da palavra Política, que, à primei-
ra vista, parece ser tão simples, mas, na verdade, é recheada de uma série de usos
e diferentes camadas de sentido. Esses níveis de significados estão relacionados
à própria origem do termo, que vem de duas grandes tradições filosóficas no
Ocidente: Grécia e Roma antigas. Por isso, neste capítulo, ainda se reflete sobre
as utilizações mais gerais e específicas da palavra, com ênfase na relação que ela
estabelece entre Estado e sociedade. Para concluir essa primeira rodada, debate-
-se, finalmente, a construção dos pactos sociais, de cunho liberal, que estão na
base da criação das instituições modernas, como as conhecemos.
O segundo capítulo, por sua vez, continua tais reflexões, mas amplia sua
análise ao introduzir categorias fundamentais do pensamento ocidental, como
as esferas pública e privada. Cada uma delas é vista por autores diferentes, que
(cada um à sua maneira) contribuem decisivamente para entender o processo de
modernização ocidental a partir dessas dicotomias. Nas páginas finais desse capí-
tulo, abre-se uma discussão fundamental para você, estudante de Comunicação,
que consiste na relação entre a mídia e as novas formas de visibilidade que alte-
ram, dramaticamente, a natureza da esfera pública anterior aos meios de comu-
nicação eletrônicos.

5
Já na terceira parte, o debate inicial sobre visibilidade é adensado por autores
que buscam entender as novas formas de poder e seus efeitos sobre o cidadão
moderno. Nesse sentido, faz-se um breve histórico daquilo que se pode chamar
de tecnologias de poder desde a Idade Média até os tempos atuais, passando
pelos dispositivos microfísicos de controle até chegar às novas tecnologias de
Comunicação e às formas de espetáculo modernas. Com o quarto capítulo, pro-
cura-se articular a discussão sobre o poder, alcançando o nível internacional; por
isso, enfatiza-se o complexo processo de globalização e seus impactos sobre a
estrutura tradicional do Estado. Apontam-se, nesse sentido, as profundas trans-
formações pelas quais aquilo que se chama de Estado Moderno está passando e
seus impactos na cidadania.
Por fim, conclui-se mostrando as enormes potencialidades políticas intrín-
secas às Novas Tecnologias de Comunicação, o que possibilita outras estraté-
gias comunicacionais, pautadas em modelos de interação social modernos, que
quebram as hierarquias anteriores. Dessa forma, a parte final não apresenta um
diagnóstico preciso sobre as complexas relações entre Comunicação e Política;
ao contrário, ela enfatiza o potencial de transformação das mídias atuais a partir
de sua apropriação por novos sujeitos sociais. Portanto, em vez de fechamento,
este livro aponta para as possíveis reconstruções da cidadania brasileira em um
mundo em franca e complexa transformação.
A capacidade transformadora permanece, assim, nas mãos do sujeito que faz
a História.

Bons estudos!

6
1
Uma invenção
humana
maravilhosa: a
política
Uma invenção humana maravilhosa: a política

A construção da política

Introdução: uma viagem histórica

O estudo da política é um dos campos mais fascinantes do pensamento humano.


Ao contrário do que tendemos a imaginar, a política – como a conhecemos hoje – nem
sempre esteve presente nas relações humanas. Na verdade, podemos dizer que ela foi
uma das maiores invenções de toda a humanidade, criada há muitos séculos pelas civili-
zações grega e romana. Então, inicialmente, faremos uma verdadeira viagem no tempo,
tentando entender, afinal, como a política foi construída por nossos antepassados. Para
isso, iremos discutir como eram as relações de poder quando as sociedades ainda eram
governadas por chefes tribais que faziam de sua vontade a própria lei da comunidade.
Neste percurso, ainda veremos como grandes autores clássicos pensaram a po-
lítica ao longo dos tempos, tendo-nos legado uma série de ensinamentos, ideias e
projetos. Cada um deles contribuiu – e muito – para formar tanto a ação políti-
ca moderna quanto a sua teoria e construir o sentido dessa palavra aparentemente
simples, mas com muitos significados. Nossa viagem, portanto, tem como partida
Grécia e Roma Antigas (Figura 1.1), mas o ponto de chegada é nosso momento
presente. Por isso, iremos estudar o passado para melhor compreendermos a política
como reflexão e prática de nossa contemporaneidade.

Figura 1.1  –  Epidauros, cidade da Grécia Antiga.


Autor: Merlin (2002). Fonte: https://goo.gl/vjLUPO

capítulo 1 •8
OBJETIVOS
Os principais objetivos de nossa discussão podem ser resumidos nos seguintes pontos:

•  Estudar a origem grega e latina da palavra política e a construção ocidental do discurso político;
•  Entender e diferenciar os diversos usos e significados do vocábulo política;
•  Estudar a história da invenção do modelo político ocidental;
•  Refletir sobre as contribuições de Maquiavel, Hobbes e Rousseau para a política.

A origem grega e romana da política

A palavra política é antiga e tem origem na civilização grega. A expressão clás-


sica, ta politika, significa basicamente os negócios públicos, aquilo que diz respeito
a todos, como as leis e o orçamento. Essa expressão nasce, por sua vez, da palavra
polis, cujo sentido é o de comunidade que se organiza, na qual vivem os cidadãos
(em grego, politikos). Eles são os sujeitos que nascem na cidade e que são livres,
iguais e portadores de dois direitos fundamentais: a isonomia e a isegoria.

CONCEITO
Isonomia corresponde à igualdade de todos os cidadãos diante da lei. Assim, os mem-
bros da comunidade devem ser vistos e julgados da mesma forma. Já isegoria relaciona-se
ao direito de expor suas ideias, opiniões, enfim, seus pensamentos em público sem sofrer
pressão ou constrangimentos.
No entanto, o vocabulário político não tem apenas origem grega. Os termos e o
exercício da política possuem uma segunda matriz – a República Romana, período que
se estende de 509 a.C. a 27 a.C. Assim, do lado de Roma, herdamos, entre outras, a
palavra civitas, que é a tradução latina de polis, portanto, “cidade como ente público e
privado” (CHAUÍ, 2000, p. 479). Temos ainda uma expressão muito importante, lega-
da pelos romanos – a res publica. Já ouviu essa expressão? Polis e civitas, portanto,
indicam uma unidade político-administrativa, um ordenamento jurídico que passa a ser
formulado teoricamente.

capítulo 1 •9
CONCEITO
Res publica é um termo, de origem latina, que significa coisa pública, aquilo que é de
todos e, como tal, não pode ser considerado propriedade privada de ninguém. Por isso, ele
indica as questões coletivas que devem ser gerenciadas pelo populus romanos, os cidadãos
de Roma (Figura 1.2).

Figura 1.2  –  Fórum romano. Autor: Carla Tavares (2015). Fonte: https://goo.gl/QfGba4

Os sentidos cotidianos da política

Você já refletiu sobre os vários significados de política que usamos em nosso


cotidiano? A quem eles se referem? Como seu sentido muda em cada situação?
Para você entender melhor tudo isso, é preciso observar algo que parece simples,
mas está na própria alma da política. O termo, em qualquer de seus usos, na
linguagem comum ou na linguagem dos especialistas profissionais, refere-se ao
exercício de alguma forma de poder e, naturalmente, às múltiplas consequências
desse exercício (RIBEIRO, 1981, p.8 – grifo do autor).

AUTOR
João Ubaldo Ribeiro (1941–2014), escritor brasileiro, jornalista, professor e cronista,
ganhador do prêmio Camões (2008), era membro da Academia Brasileira de Letras. Uma
de suas obras mais conhecidas é Viva o Povo Brasileiro (1984). Além de romancista, João
Ubaldo (Figura 1.3) escreveu em 1981 um ensaio sobre o significado e a importância da
política, intitulado Política: Quem Manda, Por Que Manda, Como Manda.

capítulo 1 • 10
Figura 1.3  –  João Ubaldo Ribeiro, autor do ensaio Política: Quem Manda, Por Que Manda,
Como Manda. Autor: Diego Mascarenhas (2009). Fonte: https://goo.gl/rwwGzh

REFLEXÃO
As decisões dos governantes irão afetar diretamente o conjunto da sociedade; da mes-
ma forma, grupos sociais podem, por sua vez, criticá-las, opor-se a elas, formular novos proje-
tos de educação nacional e assim por diante. Se o Congresso é responsável por discussões
políticas, o Supremo Tribunal Federal (STF) – Figura 1.4 – é o guardião da Constituição. Ele
é o poder responsável por analisar se as decisões tomadas estão dentro dos limites da lei. A
política é sempre um complicado jogo de poder em que diferentes grupos sociais lutam por
meio de ideias para impor seus projetos sociais e de nação. A política é o espaço do poder e
do convencimento. Trocando em miúdos, podemos dizer que a política tem a ver com “quem
manda, por que manda, como manda” (Ibidem, p. 9 – grifo do autor).

Figura 1.4  –  STF, o guardião da Constituição Federal. Autor: Fabio Pozzebom/Abr (2006).
Fonte:. https://goo.gl/UiWyW5

capítulo 1 • 11
A política é uma ação que sempre afeta o coletivo, pois ela tende a atingir
a sociedade. Mas, no dia a dia, criamos mais sentidos para ela. Você já deve ter
percebido que, muitas vezes, acaba usando o termo política para se referir ape-
nas aos políticos, isto é, aos profissionais da área – como senadores, deputados
etc. Nesse caso, você está se referindo a uma atividade de governo, exercida
por certo profissional, o “político”. No entanto, seria esse o único uso do termo
política? Reflita, agora, com calma! Existem outros significados? Quais seriam
eles? Referem-se a quê?
O termo pode ainda se ligar a expressões como política universitária, polí-
tica empresarial, política sindical. São muitos os exemplos. Pense, apenas para
exercitar seu raciocínio, na expressão política universitária. Ela se refere, entre
outras coisas, à maneira como uma instituição – no caso, a universidade – define
sua gestão. De forma semelhante, empresas também formulam políticas de ascen-
são profissional, e sindicatos têm políticas de conquistas trabalhistas.
Há outros sentidos possíveis? Sim, pois política também pode ser usada de
forma mais ampla, como manifestações sobre o aborto, discriminação, exclusão,
desmatamento. Nesse caso, política tem a ver com ação coletiva que busca in-
fluenciar o governo (e os outros membros da sociedade). Diz respeito à capacidade
humana de expressar publicamente suas opiniões, apoiar grandes causas, debater
ideias e argumentar no espaço público. Toda sociedade humana tem o poder polí-
tico de pressionar, criticar ou apoiar o governo. Enfim, são vários os significados.

Afinal, o que é a política?

Você deve estar mais curioso agora, pois, juntos, descobrimos algo muito
importante: a política não é tão simples assim. Por isso, vamos analisá-la
passo a passo.
No dia a dia, acabamos usando e abusando do termo política. Então,
vamos deixar de lado esses aspectos mais gerais e refletir sobre os significa-
dos mais específicos desse vocábulo. O primeiro deles aponta justamente para
governo como “direção e administração do poder público, sob a forma do
Estado”. (CHAUÍ, p. 475) Para começo de conversa, você sabe que existe
diferença entre governo e Estado?

capítulo 1 • 12
CONCEITO
O Estado Moderno é o resultado da “progressiva centralização do poder” (BOB-
BIO, 1998, p. 426) que ocorre com o fim do feudalismo. Em outras palavras, o Estado
Moderno consiste em uma unidade administrativa centralizada sobre um território. Ele
é formado por um conjunto de instituições conectadas que têm por função organizar
as relações sociais, neutralizar conflitos e atender às necessidades da população que
habita seu território. Max Weber (1864–1920) define, por sua vez, o Estado como
“monopólio da violência física legítima”, ou seja, ele detém o poder de polícia sobre
seus cidadãos e o poder de guerra contra outros Estados. Enquanto conjunto de insti-
tuições, ele é permanente.

CONCEITO
O Governo pode ser entendido como “o conjunto de pessoas que exercem o poder
político e que determinam a orientação política de uma determinada sociedade”(BOB-
BIO, 1998, p. 553). Por isso, quando uma coalizão político-partidária ganha as eleições,
ela conquista a legitimidade de gerenciar o Estado. Desta forma, pela expressão ‘go-
vernantes’ se entende o conjunto de pessoas que governam o Estado, e pela de ‘gover-
nados’, o grupo de pessoas que estão sujeitas ao poder de governo na esfera estatal
(Ibidem, p. 553).

Quando dizemos que o primeiro significado de política diz respeito ao


governo e à sua autoridade, estamos enfatizando o poder do governo de di-
rigir toda uma sociedade, usando, para isso, das instituições que formam o
Estado. São, por exemplo, os projetos de lei do Parlamento ou as decisões do
Executivo que afetam toda a sociedade. Isso significa que nós podemos tanto
concordar quanto discordar das decisões dos governantes, que foram eleitos
com nosso voto. Portanto, a política aqui diz respeito tanto ao Estado quanto
à sociedade civil – você e seus colegas, por exemplo – que têm o direito de
discordar, criticar e de propor alterações nas decisões daqueles que governam.
Então, esse primeiro sentido específico de política aqui se vincula às deci-
sões do Estado e suas consequências na vida de todos nós.

capítulo 1 • 13
COMENTÁRIO
Quando o Legislativo discute a legalização do porte de armas ou modificações na de-
marcação de áreas indígenas, ele também está fazendo política. Os projetos, ao se transfor-
marem em leis, irão permitir (ou não) o porte de armas e novas maneiras de nossa sociedade
responder aos desejos e às necessidades de nossos povos ancestrais e nativos (Figura 1.5).
Por isso, a dimensão pública da política pode ser considerada uma de suas características
mais importantes. O que está em jogo – e faz da política algo belo e extraordinário – é que
ela não se refere apenas a você ou a seus colegas de sala de aula, mas a todos nós. Por isso,
por ser coletiva, ela é o exercício humano em que o “nós” se coloca acima do “eu”. Ela
se preocupa com todos! Nunca se esqueça disso.

Figura 1.5  –  Manifestação de povos indígenas: ato político. Autor: Geraldo Magela/Agên-
cia Senado (2015). Fonte: https://goo.gl/ukuGHz

Contudo, a política também pode conter um segundo significado especí-


fico, que aponta para a atividade de especialistas: os políticos que se elegem
e exercem suas funções após serem eleitos. Chauí (2000), no entanto, reflete
que, muitas vezes, a população sente a política como algo distante, realizada
sem que suas necessidades estejam sendo, de fato, contempladas pelos agentes
do governo. Por causa dessa sensação de distância, o terceiro significado do
termo define a política como cheia de interesses particulares, dissimulados
e frequentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por
meios ilícitos ou ilegítimos (ibidem, pg. 476).

capítulo 1 • 14
Em resumo, podemos sintetizar três aspectos mais específicos de política:

•  Ela tem a ver com o governo e a sua relação com a sociedade;


•  Ela se refere à atividade de especialistas (como os políticos);
•  Ela é caracterizada como atividade ilícita.

O que estaria acontecendo, atualmente, seria um aumento deste último signi-


ficado, o de corrupção, sobre o primeiro, a política como atividade governamental
voltada para a sociedade. O resultado dessa contaminação é que a política, como
um todo, passa a ser sinônimo de corrupção.
No entanto, reflita sobre o seguinte ponto: podemos discordar do modo
como os políticos estão fazendo uso do poder que lhes concedemos demo-
craticamente por meio do voto, mas não devemos desqualificar toda a po-
lítica. O objetivo de nossa discussão, aqui, consiste em mostrar a você a im-
portância da política como solução democrática e legítima de problemas
coletivos. Portanto, desqualificá-la como simples sinônimo de corrupção é
a pior das saídas.

REFLEXÃO
Você já refletiu que o combate à corrupção somente pode acontecer por meio do for-
talecimento das instituições que a investigam e a combatem? Ora, tudo isso só pode ser
possível por meio de ações políticas dos governantes e da sociedade – o que é também
uma atividade política.

REFLEXÃO
Por mais que ser apolítico pareça interessante, na verdade, esse indivíduo está tomando
uma decisão política diante da questão das cotas raciais e sociais, do tema do aborto, da
exclusão social, de um novo imposto que pode ou não contribuir para diminuir a desigualda-
de social. Ser apolítico, na verdade, é uma decisão política muito conservadora! Você acaba
ficando fora de tudo o que irá mudar (ou não) a vida de todos. “A apatia social é, pois, uma
forma passiva de fazer política” (Ibidem, p. 479).

capítulo 1 • 15
CONCEITO
“O termo apatia significa um estado de indiferença, estranhamento, passividade e falta
de interesse pelos fenômenos políticos [...]. As instituições políticas e as demais manifes-
tações da vida política ocupam, no horizonte psicológico do apático, uma posição bastante
periférica” (BOBBIO, 1998, p. 56 – grifo do autor).

Depois de tudo isso, você já deve ter percebido outro ponto central da po-
lítica: ela é a ação humana coletiva que, por excelência, transforma o mundo.
Se é por meio da política que definimos impostos, elegemos presidentes, dis-
cutimos o orçamento, criamos leis, estruturamos ou desestruturamos a saúde
pública e a educação pública, se é pela política que decidimos se o Estado deve
ou não intervir na economia, isso mostra que a política é o instrumento mais
importante de reflexão e transformação social de nosso presente a partir do
legado de nossos antepassados.

A invenção do modelo democrático de política

A primeira questão que você deve compreender, agora, é a origem histórica


do modelo democrático de política, essa invenção dos gregos e romanos. Mas,
para começo de conversa, é preciso você saber o que havia antes da política nas
regiões onde floresceram essas duas sociedades.

ATENÇÃO
Contexto histórico
Vamos viajar juntos no tempo até os impérios micênico (1600 a.C. – 1050 a.C.) e o
etrusco. Os primeiros viveram na ilha de Creta, ao passo que os segundos habitaram a
península itálica (sua chegada se deu entre 1.200 a.C. e 700 a.C.). Os micênicos (Figura
1.6 A) tinham um sistema político baseado na figura do rei e forte organização militar, que
detinha terras. A sociedade era composta por escravos, trabalhadores livres e comerciantes.
Eram navegadores famosos, além de terem sido grandes guerreiros e construtores de mag-
níficas muralhas e edifícios. Representam uma das civilizações mais sofisticadas da Grécia.
Já os etruscos (Figura 1.6 B) teriam chegado à península itálica por volta do século XIII

capítulo 1 • 16
a.C., de acordo com o grande historiador grego Heródoto (485 a.C. – 425 a.C.). Esse povo,
com costumes semelhantes aos orientais, exerceu tamanha influência sobre Roma que os
três últimos imperadores romanos antes da República (509 a.C.) foram etruscos. Viviam em
aldeias e tinham arte rudimentar, mas competiram com romanos, gregos e cartagineses no
comércio mediterrâneo.

Figura 1.6 – A. Mapa da civilização micênica. B. Desenho etrusco. Autores: Alexikoua,


(2013); W. Deecke, Annali dell' Instituto di Correspondenza Archeologica (2015). Fontes:
https://goo.gl/y6uGdw, https://goo.gl/3qPct8

Durante esse período, historiadores, sociólogos e antropólogos definem que o


poder era despótico e patriarcal.

CONCEITO
“Despotismo significa, em sentido específico, forma de governo em que quem detém o
poder mantém, em relação a seus súditos, o mesmo tipo de relação que o senhor (em grego,
despotes) tem para com os escravos que lhe pertencem [...].” Com base nessa distinção,
desde a Antiguidade, vem-se chamando despótica a forma de governo em que a relação
entre governantes e governados pode ser comparada à existente entre senhores e escravos
(BOBBIO, 1993, p. 539).

Patriarcal tem origem na palavra grega patriarkh s, que, por sua vez, significa pater. O
termo indica o domínio do homem sobre a mulher e qualquer outro indivíduo em determinada
sociedade, como filho, escravo e súditos.

capítulo 1 • 17
De forma geral, podemos dizer que o chefe nessas sociedades sintetizava três tipos
sociais muito poderosos – o rei, o sacerdote e o capitão – e repassava sua autoridade
a seus aliados. Assim, por exemplo, conferia seu poder religioso a um grupo de sacer-
dotes, o poder militar a um conjunto de guerreiros e parte de suas terras a parentes ou
aliados. Todos aqueles que se beneficiavam juravam lealdade e lhe pagavam tributos.
Mesmo quando as terras eram comunais, como no caso de uma aldeia distante, seus
habitantes eram obrigados a arrecadar impostos e enviá-los ao centro do reino.
Com o tempo e as conquistas, o domínio territorial tendia a crescer, de modo
que a comunidade aumentava, e, por isso, seus sacerdotes e demais funcionários
constituíram as primeiras burocracias, redes de profissionais que se especializa-
vam na coleta de tributos, por exemplo.
A primeira das características centrais do poder despótico ou patriarcal, nessas
sociedades, consistia em que ele não conhecia limites, sendo baseado em laços de
sangue. O chefe também tendia a fazer alianças políticas com aqueles que lhe ju-
ravam lealdade. Ao mesmo tempo, em função da concentração de seu poder, ele
definia o que era permitido e proibido e apelava, para manter seu domínio, tanto
para o sagrado (os deuses) quanto para a força das armas e o poder econômico,
vindo da posse de terras ou impostos. Segundo Chauí (2000), o domínio estava
corporificado na própria figura do chefe: a cabeça, representando sua autoridade; o
peito, suas ideias, e assim por diante. Outra característica se ligava ao sobrenatural,
ou seja, o poder era também mágico; por isso, o chefe era considerado divino e
repassava sua divindade por meio do sangue, a hereditariedade.

AUTOR
Marilena de Souza Chauí (Figura 1.7), nascida em 1941, é uma das maiores filósofas brasi-
leiras. Professora de História da Filosofia na Uni-
versidade de São Paulo (USP) e especialista no
filósofo holandês Spinoza (1632–1677), escre-
veu sobre ele o clássico A Nervura do Real
(1999). Além disso, contribuiu com inestimáveis
trabalhos sobre o marxismo, a democracia e o
papel da mídia na sociedade moderna.
Figura 1.7  –  Marilena de Souza Chauí, importante filósofa e professora brasileira. Autora:
Ivone Perez/Rede Brasil Atual. (2010). Fonte: https://goo.gl/8OtW9B

capítulo 1 • 18
Quando historiadores, filósofos e cientistas políticos defendem que os gregos
e os romanos inventaram a política, a ideia central é a de que essas civilizações
foram capazes de desconstruir as características que acabamos de ver. Apesar de
suas diferenças, podemos dizer que os dois povos desfizeram essa estrutura de
poder e, sobre suas ruínas, criaram um novo modelo de se fazer política, o qual,
com o tempo, irá espalhar-se por todo o Ocidente e por outras regiões do mundo!
Como? É o que você verá a seguir.

Desconstruindo o modelo despótico e patriarcal

Com o passar do tempo, as relações sociais se tornaram mais complexas. Em


função do aumento dos clãs, houve demanda por maiores territórios, gerando
grande número de guerras. Um dos efeitos desse processo foi a migração para
as aldeias, que passaram a concentrar mais e mais habitantes. Diante dessa nova
situação social, podemos apontar, pelo menos, duas inovações: o surgimento das
grandes cidades (Figura 1.9) e de conflitos sociais. Disputas são acirradas; inte-
resses, questionados. Havia a necessidade de que fosse criado um mecanismo de
solução desses novos dilemas.

Figura 1.8  –  Acrópole, Grécia antiga. Autor: Jebulon (2015).


Fonte: https://goo.gl/SWmN7x

CONCEITO
Clã consiste em um grupo de pessoas que se unem e formam uma rede de parentesco,
que tem um ancestral comum.

capítulo 1 • 19
ATIVIDADE
Do ponto de vista prático, o que a invenção da política fez? Como, de fato, o modelo
despótico e patriarcal anterior foi substituído pelo modelo democrático de se fazer política?

A solução foi a política, ou seja, o modelo democrático de política. O modelo


político começa a desconstruir o anterior em vários pontos.

ATENÇÃO
Contexto histórico
Para tentar amenizar os conflitos sociais na cidade-estado de Atenas, em 594 a.C.,
o grande jurista e poeta Sólon (638 a.C. – 558 a.C.) foi convocado para elaborar nova
legislação e iniciou uma série de reformas econômicas, políticas e sociais. Mas foi Clís-
tenes (565 a.C. – 492 a.C.) que, em 508 a.C., conseguiu formular leis para a grande
transformação política que viria (como direito ao voto e ocupação de cargos públicos).
Essas mudanças formaram as bases do regime democrático grego. Entre as conquistas,
estava a assembleia popular, destinada apenas aos cidadãos (o que excluía mulheres e
escravos). No entanto, será com Péricles (495/492 a.C. – 429 a.C.) que as reais condi-
ções de participação no governo da cidade-estado serão consolidadas, com melhoria na
qualidade de vida, inclusive para o campo.

A partir da formulação dessas leis, que têm em Péricles seu grande represen-
tante, são criadas as bases da democracia grega. Como resultado, começa a haver
separação de poderes. Você se lembra de que discutimos pouco antes o fato de que
o chefe representava o rei, o sacerdote e o capitão? Essas esferas de poder vão muito
lentamente se distinguindo. Assim, a autoridade civil se separa da militar. Por
isso, as guerras passam, antes de tudo, a ser discutidas pela sociedade. Os chefes
militares começam a ser eleitos. Mesmo em Esparta e Roma, cujo poder político
ainda era militarizado, essas discussões antecediam às conquistas.
Apesar de seus limites práticos, a lei passa a ser identificada com a vontade
pública – de todos os habitantes daquela sociedade – em oposição à legislação
como vontade do chefe tribal. Ora, se a lei é, a partir dessa mudança, pensada
como expressão da vontade de todos, ela também passa a ser vista como um

capítulo 1 • 20
instrumento que estabelece e define direitos e deveres de todo mundo – e não
apenas de um patriarca.
Como você pode ver, o século V a.C. foi um divisor de águas na história da
Grécia. Com Péricles e outros juristas, consolidou-se a base da democracia por
meio da criação de várias instituições. As assembleias formadas por indivíduos
vistos como cidadãos tratavam de assuntos ligados à coletividade, como guerras,
impostos, orçamento etc. Tudo isso acontecia em um espaço que pertencia a to-
dos, compartilhado por aqueles que debatiam os assuntos da cidade-estado. Isso
já foi um ganho inestimável. Não havia apenas o espaço da casa, isto é, privado,
onde estavam os filhos, a esposa e os escravos; ao contrário, a democracia grega
consolida um espaço que, sendo de todos, permite a cada um a exposição de
suas ideias, opiniões e argumentos. Sua consolidação teve como consequência
a criação de dois espaços: o público, de todos (Figura 1.9), e o privado (de
âmbito pessoal, individual).

Figura 1.9  –  O parlamento, um espaço público moderno. Autor: Marcos Oliveira/Agência


Senado (2015). Fonte: https://goo.gl/VshJ7b

ATENÇÃO
Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e decisão significa
que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações não foram fixadas de uma vez
por todas por alguma vontade transcendente, que erros de avaliação ou de decisão podem
ser corrigidos, que uma ação pode gerar problemas novos, não previstos nem imaginados, que
exigirão o aparecimento de novas leis e novas instituições. (CHAUÍ, 2000, p. 485.)

capítulo 1 • 21
Em outras palavras, a invenção do modelo de política coloca o destino da
História nas mãos do cidadão, pois cada coletividade tem o dever e o direito de
escolher seus próprios líderes. É na relação entre representantes e representados
que as ações políticas interferem na vida de todos nós e abrem, inclusive, a possi-
bilidade de que erros sejam sanados, de que decisões equivocadas sejam revistas.
Uma sociedade passa, mais do que nunca, a ser vista como uma invenção humana
e, portanto, pode ser humana e politicamente repensada, reconstruída, transfor-
mada! Com a invenção do modelo democrático de política, o destino foi lançado
nas mãos da humanidade.
Esse é, em linhas bem simples, o legado das civilizações grega e romana que
chegou até nós. Mas como esse conjunto de ideias, de modelos de governo, de
compreensão e criação do espaço público e do privado foi repensado – e recriado
– temporalmente pelas civilizações mais próximas a você?

A revolução maquiavélica

Uma das características mais importantes das obras medievais e renascentistas


diz respeito à relação entre política e religião. Por mais diferentes que fossem os
trabalhos dos grandes pensadores daquela época, os fundamentos da política eram
pensados como exteriores a ela. O que isso significa? De forma bem simples, po-
demos dizer que as bases do jogo político eram explicadas pela existência de Deus,
isto é, a existência de uma vontade divina que doa o poder aos homens para que
eles façam política; portanto, uma explicação cristã. Outra resposta estaria na pró-
pria natureza do ser humano, que seria um ser naturalmente político.
Por fim, a última explicação defendia a existência, no universo, de um impulso
que faria os homens racionais, o que iria leva-los à política. Observe que, em todos
eles, nenhuma resposta sobre a origem dessa atividade a relaciona à história e à socie-
dade; ao contrário, são análises que cancelam os processos históricos e as relações so-
ciais, substituindo-os por Deus, pela natureza ou pela racionalidade. Será Maquiavel,
o grande pensador italiano, que fará uma verdadeira revolução nesse modo de pensar.
Para introduzir nosso novo pensador, é fundamental responder à seguinte questão:
“Em que consiste a ‘revolução maquiavélica’?”. Podemos dizer que esse pensador inau-
gura uma regra metodológica nova que consiste na análise da realidade tal como
ela é, e não como gostaríamos que fosse. As respostas dos jogos políticos não devem
ser procuradas em Deus, mas na própria dinâmica histórica dos fatos.

capítulo 1 • 22
Isso significa que, pela primeira vez, o pensamento político não mais se preocupa
como as coisas deveriam ser. Ao contrário, a análise deve se ater à realidade, ao reino
das coisas como elas são. Por isso, Maquiavel ainda consegue operar uma separação en-
tre a política e a moral, pois a primeira consiste na dinâmica que diz respeito a todos os
membros de uma comunidade – ao poder político – ao passo que a segunda, a moral,
é a esfera do indivíduo. Quando falamos da “revolução”, portanto, estamos mostran-
do que o italiano desloca profundamente o modo como a política era vista. O que
importa para ele é a análise histórica dos fatos políticos e a sua separação da
moral individual. Uma coisa não deve se misturar à outra. Assim, as respostas para
o comando de um Estado não estão na religião nem na ética pessoal, mas na própria
política. Para começo de conversa, ele argumenta que a política tem, na verdade, a ver
com a conquista e a manutenção do poder.

AUTOR
Nicolau Maquiavel (1469–1527) foi um dos maiores pensadores políticos de todos os
tempos. O estudioso, que também era poeta, diplomata e historiador, notabilizou-se por duas
obras fundamentais: O Príncipe (publicado postumamente em 1532) e Discursos sobre a
Primeira Década de Tito Lívio (em 1531). Maquiavel (Figura 1.10) deu autonomia à política,
desligando-a da religião e separando-a da ética individual.

Figura 1.10  –  Escultura de Nicolau Maquiavel, pensador italiano.


Autor: JoJan (2005). Fonte: https://goo.gl/YxJo5K

capítulo 1 • 23
Podemos dizer, com certo grau de simplificação, que Maquiavel, ao contrá-
rio, buscou compreender as experiências históricas de seu tempo e seus sentidos
políticos mais profundos. “Seu ponto de partida e chegada é a realidade concreta”
(SADEK, 2002, p.17). Por isso, não se trata do Estado ideal, “que nunca existiu”,
mas do “Estado real”. Daí sua ênfase na “verdade efetiva das coisas”, isto é, no
valor concreto dos fatos como base para entendermos a política.
Para Maquiavel, a finalidade da política não é o bem comum, mas a tomada
e a manutenção do poder. O poder passa a ser visto como de origem humana,
nasce das relações sociais, e não do divino. Muito mais do que virtudes religiosas,
o que o governante precisa ter é virtù. Já ouviu este termo italiano antes? A virtù
é uma ideia extremamente interessante nas reflexões de Maquiavel. De maneira
bem simplificada, ela consiste na capacidade que o dirigente deve ter de se adap-
tar às circunstâncias – de ser capaz de se aproveitar do momento político e
aumentar, por exemplo, seu poder. O dirigente com virtù, portanto, é aquele que
sabe analisar como ninguém o panorama político de seu tempo para fazer aliados,
enfraquecer os poderosos, expandir os limites de seu território etc. Não se trata,
por isso, de um conjunto fixo de qualidades morais que nunca mudam diante da
transformação da história. Para Maquiavel, agir da mesma maneira diante de cir-
cunstâncias diferente, certamente levará o governante ao fracasso. Virtù é astúcia,
inteligência e perspicácia na política.
Para ele, uma cidade é, na verdade, dividida entre dois desejos opostos.
Esses desejos são os dos grandes, que querem oprimir o povo, e o próprio povo
que não quer ser oprimido pelos grandes, pois “os anseios do povo são mais legí-
timos que aqueles dos poderosos, porquanto estes tencionam oprimir, e aqueles,
furtar-se à opressão” (MAQUIAVEL, 2007, p. 46). Você se lembra de que, para
os autores clássicos, uma cidade deve ser harmoniosa e de que o fim da política
consistiria em buscar e manter essa harmonia e justiça?
Maquiavel desconstrói os argumentos dos doutores do saber medieval. Para
ele, uma sociedade é atravessada por lutas internas, estruturadas a partir do con-
flito entre duas partes. A política, portanto, não seria doada por Deus, por nenhu-
ma natureza ou razão; ao contrário, o poder político nasce dessas lutas e tenta uni-
ficar a sociedade dividida. Para ele, a política é filha dos conflitos sociais; nasce das
lutas e nas lutas entre esses dois desejos opostos, o dos poderosos e o do povo.
A harmonia e a justiça ou mesmo a moral não podem mais ser usadas como
categorias, isto é, como ideias, para se analisarem os processos políticos. Por isso,
como Chauí (2000) pondera, a política é obra da própria sociedade, isto é, deve

capítulo 1 • 24
ser pensada como uma forma de ação social nascida das divisões internas da
sociedade. Assim, ela passa a ser vista como “um feixe de forças, proveniente das
ações concretas dos homens em sociedade” (SADEK, 2002, p.8). Como resultado,
a História (com H maiúsculo) torna-se o pano de fundo a partir do qual entende-
mos a política. História vira sinônimo de “fonte de ensinamentos”.
No entanto, além da virtù, existe outra característica que todo soberano deve
ter. Como vimos, seu comportamento deve variar ao sabor dos tempos, de acordo
com cada momento político. Assim, por exemplo, o governante não tem de ser
violento, mas, se necessário, poderá parecer violento ou mesmo o ser – se as cir-
cunstâncias exigirem. É a análise da sucessão dos fatos que dirá a melhor saída, que
dará a ele a astúcia para adaptar-se às circunstâncias. Você percebeu que estamos
falando de circunstâncias históricas, da sucessão imprevisível dos fatos? Maquiavel
chama essa dinâmica de Fortuna (a transformação histórica e política dos acon-
tecimentos, que, por isso, tem como característica central ser imprevisível, tra-
zendo consigo a sorte e o azar).
Mais uma vez: caberá ao governante com virtù saber lidar e minimizar os
males do azar e aproveitar-se dos momentos de sorte. Daí a importância da pru-
dência; ela “consiste em saber-se reconhecer a extensão dos inconvenientes e tomar
por bom o que é menos ruim” (MAQUIAVEL, pg. 111, 2007). O governante
com virtù sabe minimizar o azar e se apropriar da sorte (as duas faces da Fortuna).
Por isso, é capaz de conquistar a liberdade e, assim, vencer a necessidade. A li-
berdade consiste no esforço humano concreto de superar os limites impostos
pelos fatos e de mudar as circunstâncias políticas em seu favor.

ATENÇÃO
Segundo a Mitologia, a deusa grega Fortuna era a divindade que presidia todos os acon-
tecimentos da vida humana, distribuindo tanto o bem como o mal de acordo com seus ca-
prichos e desejos, representando a imprevisibilidade. De acordo com Maquiavel, a Fortuna
era um dos requisitos para o soberano conquistar e manter o poder na medida em que ela
consistia em um conjunto de acontecimentos e circunstâncias que nunca podiam ser plena-
mente controladas. Mesmo instável, a Fortuna poderia ser controlada pela virtù, a astúcia e
capacidade de se adaptar às novas situações.

capítulo 1 • 25
CONEXÃO
“Mas acima de tudo um príncipe deve esmerar-se para oferecer de si, em cada gesto seu,
a ideia de um homem com grandeza e que excele no pensar” (Ibidem, p. 108). Isso significa
algo fundamental para você, que é da área de Comunicação. O que está em jogo é a cons-
trução da imagem do dirigente diante da sociedade, que não precisa ser – mas deve
parecer real. Portanto, Maquiavel aproxima a Política da Comunicação, pois grande parte
da arte política consiste, para ele, na representação, isto é, na construção de imagens.

Por fim, para conquistar e manter o poder, o soberano precisa ainda aliar as
características da raposa e do leão. “E pois que o príncipe precisa saber realmente
valer-se da sua natureza animal, convém que tome como modelos a raposa e o
leão” (Ibidem, p. 85). Isso quer dizer que o dirigente deve ter a astúcia, a inteligên-
cia da raposa, e, quando necessário, pode usar da força do leão. Portanto, com ele,
o pensamento político sofreu uma verdadeira revolução, e a política conquistou
seu próprio espaço de reflexão voltado para a História humana.
Quem, porém, eram os outros grandes pensadores que, então, refletiam so-
bre a teoria e a ação política? Enfim, como pensaram a política e a sociedade?
Assim como Maquiavel, eles queriam saber qual a origem da sociedade e da po-
lítica. Perguntavam-se como indivíduos isolados passam a viver coletivamente.
O que gera tantos conflitos entre eles? Enfim, por que aceitam submeter-se a
normas sociais?

Estado de natureza e Contrato Social: Hobbes e Rousseau

Imagine a seguinte situação: um sujeito vive com sua família em determi-


nada região, mas ainda não há leis, de forma que a fazenda na qual mora fica
desprotegida. Esse homem, por sua vez, desconfia de seus vizinhos, que podem a
qualquer momento invadir suas terras e conquistá-las, agredir tanto a ele quanto
a seus familiares. Isso faz com que ele tenha uma vida de desconfiança e tensão
permanentes, pois não há proteção. Ora, não havendo lei, a posse da propriedade
de nada vale. Não há contrato. Dessa forma, a desconfiança ainda o leva a tentar
antecipar-se à ação de seus vizinhos. Assim, em vez de ficar em uma posição
passiva, esperando a provável invasão, ele pode, ao contrário, invadir as terras de
outros. Para isso, ele tem apenas de usar da força pura e simples, da força bruta

capítulo 1 • 26
para vencer aqueles que, na sua desconfiança, irão a qualquer momento tentar
vencê-lo. O homem se torna “lobo do próprio homem”. Já ouviu essa expressão?
Agora, observe esta outra situação: antes das leis e dos contratos, enfim, da
forma como vivemos hoje, havia outro tipo de vida. Nela, os indivíduos viviam
isolados pelas florestas, sobreviviam da própria natureza, caçando, pescando e co-
lhendo frutos; por causa desse estilo de vida, desconheciam as lutas e a lei do mais
forte. Sua linguagem era composta por canções e gestos, vivendo a verdadeira
felicidade. Ora, o fim desta era acaba no exato instante em que um desses sujeitos
resolve cercar seu terreno para desfrute próprio e, assim, impedir a entrada de seu
vizinho. Esse fato, a divisão da propriedade socialmente criada, dá início a uma
guerra de todos contra todos e, como consequência, corrompe a alma humana.
Essas duas situações ilustram de forma muito simples o modo como dois filó-
sofos – o inglês Thomas Hobbes (1588–1679) e o francês Jean Jacques Rousseau
(1712–1778) – refletem sobre a situação pré-social dos indivíduos antes de firma-
rem o Contrato Social e viveram sob o poder de uma autoridade política.

AUTOR
Thomas Hobbes (1588-1679), inglês, foi filósofo político e matemático. Hobbes (Figura
1.11) escreveu, entre outras obras, Leviatã (1651), considerado um marco teórico sobre o
contrato social.

Figura 1.11  –  O filósofo inglês Tomas Hobbes. Autor: John Michael Wright (1964).
Fonte: https://goo.gl/NR4Cgv

capítulo 1 • 27
ATENÇÃO
Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder co-
mum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se
chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. A guerra não
consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a
vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. (HOBBES, 2006)

O pensador inglês argumenta que a natureza da guerra, no estado pré-social,


não consiste, portanto, na luta entre si, mas na disposição humana permanente
para o conflito. Para Hobbes (2006), torna-se manifesto que, durante o tempo
em que os homens vivem sem um poder comum capaz de manter a todos em res-
peito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra – uma guerra de
todos os homens contra todos os homens. Preste atenção: o autor está definindo
o homem como um ser em constante luta, negando os argumentos da tradição
clássica. Para Aristóteles, por exemplo, os homens são seres naturalmente sociais
e que desenvolvem suas habilidades no Estado. “Esta é a convicção da maioria
das pessoas, que preferem fechar os olhos à tensão que há na convivência com os
demais homens, e conceber a relação social como harmônica” (RIBEIRO, 2002,
p. 57, grifo do autor).
Para Hobbes, portanto, precisamos deixar de lado o mito de que o homem
é sociável por natureza, o que nos impede de perceber que as relações sociais são,
como Maquiavel advertiu, atravessadas por interesses e conflitos. “A política só será
uma ciência se soubermos como o homem é de fato, e não na sua ilusão” (Ibidem, p.
57,58). A descoberta dessa realidade permite criar e manter o Estado.
Ora, como você deve ter observado nas duas situações que mostramos,
Rousseau percorre o caminho inverso.

AUTOR
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), francês, foi filósofo, escritor e ainda com-
positor. Sua obra influenciou a Revolução Francesa (1789). Como Hobbes, Rousseau
(Figura 1.12) foi um dos principais expoentes na elaboração do Contrato Social.
Defendia que o homem nasce bom, mas, em virtude das consequências da criação da
propriedade privada, ele se corrompe.

capítulo 1 • 28
Figura 1.12  –  O filósofo francês Jean Jacques Rousseau.
Autor: Quentin de La Tour (2004).Fonte: https://goo.gl/RP8zY6

O objetivo de Rousseau passa, justamente, por mostrar como a ação política


humana é capaz de resolver esse grande dilema. Com sua obra mais importante,
o Contrato Social (1762), ele busca construir as “condições de possibilidade de um
pacto legítimo” (NASCIMENTO, 2002, pg. 195). Em outras palavras, ele tenta
explicar como aconteceu a passagem do estado de natureza vivido pelos homens em
sociedade (cujos símbolos eram a pureza e a harmonia) para a organização civil sem
que os mais fortes controlem os mais fracos. Vamos tentar entender isso melhor.
Rousseau acreditava que, antes da criação da propriedade privada, os indivíduos vi-
viam isolados e em perfeita harmonia uns com os outros. No entanto, o advento da
propriedade privada, segundo sua teoria, corrompeu o ser humano, dando origem
ao Estado de Sociedade. Para ele, o Estado não é bom. Na verdade, é um mal neces-
sário. Só com a criação do Contrato Social e de todo um arcabouço legal é que – de
acordo com Rousseau – seria possível submeter todos os cidadãos à lei.

CONCEITO
Em Rousseau, Estado civil é o resultado do pacto social, isto é, do Contrato Social que
permite com que os seres humanos sejam capazes de viver preservando seu direito à vida e
ao bem-estar. Em outras palavras, passa a imperar o interesse coletivo. O Estado de Socie-
dade, ao contrário, ocorre em função das consequências da instituição social da propriedade

capítulo 1 • 29
que tende a corromper o coração humano. Para Rousseau, o povo é o soberano, pois elabora
as próprias leis e obedece a elas.

CONCEITO
Em Hobbes, Estado de natureza é a condição da luta de todos contra todos, ou
seja, quando o “homem é lobo do homem”. Dessa forma, o ser humano é considerado
mau por natureza e usa da própria força como tática de domínio sobre o outro. Para
resolver essa situação de conflito permanente, é instituído o Contrato Social, por meio
do qual é criado o Estado que passa a regular, por intermédio do monarca, a relação
entre todos.

ATIVIDADE
Como a guerra de todos contra todos é resolvida? Qual a solução para o conflito?

Como sabemos, a solução se dá por um Contrato Social (Figura 1.13),


por meio do qual é feita a passagem do Estado de Sociedade, em Rousseau,
ou do Estado de Natureza, em Hobbes, para a sociedade civil. Por meio deles,
os indivíduos renunciam à sua liberdade natural e a seus bens como rique-
za e armas, transferindo-os coletivamente para um terceiro. Mas as respostas
de cada um dos autores são diferentes. Então, fique atento! Em síntese, para
Hobbes, essa renúncia dos indivíduos deve ser feita por meio de um pacto
de submissão, isto é, baseada no medo dos indivíduos. Assim, a multidão
de indivíduos, em Hobbes, transforma-se em um corpo político, isto é, o
Estado. É ele que detém “a espada e a lei” e, por isso, conta com o poder
de fazer a lei e de aplicá-la, assim como de proteger a propriedade privada.
Portanto, aqui o Estado é soberano e detém o poder político. Essa concepção
do Estado criado a partir do pacto de submissão e do medo é representado
pelo monarca e deu origem ao Estado Absolutista.

capítulo 1 • 30
Figura 1.13  –  A Constituição como Contrato Social. Autor: Agência Brasil (1988).
Fonte: https://goo.gl/tqe7DW

Já para Rousseau, o Estado era considerado um “mal necessário”, mas seu


controle deveria permanecer nas mãos dos indivíduos. A soberania é o exer-
cício da autoridade que emana do próprio povo. O dirigente então é ape-
nas o representante da soberania. No entendimento de Rousseau, o povo é,
ao mesmo tempo, soberano e súdito. É soberano, pois dele emanam tanto o
poder quanto as leis, e súdito, pois precisa obedecer àquilo que ele mesmo
criou. Ser livre significa ter a obrigação de seguir a lei. Uma das consequências
dessa concepção de Estado, elaborada por Rousseau, foi a própria Revolução
Francesa, pois os revoltosos partiam da ideia de que o povo detinha o poder.
Por isso, enfrentaram a monarquia absolutista. Portanto, é bom lembrar-se
disto: enquanto o conceito de pacto social, em Hobbes, leva ao Absolutismo,
o do Rousseau influenciou a Revolução Francesa.
Essas são, em linhas muito gerais, as soluções de Hobbes e Rousseau para o
problema central de guerra de todos contra todos e sua passagem para a sociedade
civil por meio do Contrato Social. No entanto, naquele momento histórico, es-
tava nascendo uma classe social formada por comerciantes que tinham poder eco-
nômico, mas, por não terem origem nobre, não tinham poder político. Essa classe
social ficou conhecida como burguesia, e sua ação no campo político modificou
completamente a estrutura social e política vigente até então. Portanto, a burgue-
sia precisava de um novo pensador, alguém capaz de legitimar a força não apenas
do seu dinheiro, mas também de seu esforço, isto é, do trabalho e da exploração.

capítulo 1 • 31
Quem será esse pensador que mudará tão dramaticamente a natureza da teoria e
da ação políticas? Prepare-se para o próximo capítulo.

RESUMO
Em síntese:

•  Discutimos a origem da política e os diversos usos do termo no cotidiano;


•  Sintetizamos que pólis e civitas indicam unidade político-administrativa;
•  Enfatizamos a natureza pública da política como atividade de poder que afeta a sociedade;
•  Estudamos a política como ação coletiva de transformação social (tanto da parte dos go-
vernos quanto no que diz respeito ao coletivo);
•  Aprendemos que o modelo político ocidental foi invenção de gregos e romanos, que fun-
daram as bases da democracia moderna, como a conhecemos, em oposição ao poder des-
pótico e patriarcal;
•  Discutimos que, na tradição política, Maquiavel realizou uma verdadeira revolução ao sepa-
rar da religião e da natureza o domínio da política. A política é pensada como solução humana
para os dilemas sociais tendo em vista a divisão das sociedades entre dois desejos: o dos
poderosos e o do povo;
•  Refletimos que a política passa a ser analisada dentro de um padrão que não tem em vista
a ética cristã individual. A arte da política exige virtù e Fortuna. A política é luta pela conquis-
ta e manutenção do poder;
•  Estudamos que Maquiavel enfatizou a importância da construção da imagem pelo dirigente,
apreendendo a importância dos processos comunicacionais nas relações de poder modernas;
•  Estudamos as respostas de Hobbes e Rousseau em relação ao estado pré-contratual, ca-
racterizado pela guerra de todos contra todos. Ambos defenderam o Contrato Social como
forma de superação dos conflitos humanos;
•  Vimos que Hobbes defendeu o Estado como soberano, como resultado do pacto de
submissão, ao passo que Rousseau aponta que a soberania permanece com o próprio
povo, sendo o dirigente apenas seu representante.

capítulo 1 • 32
ATIVIDADE
Questão 1
Leia com atenção o seguinte trecho:
“Por isso, será preciso que ele [o príncipe] possua uma natural disposição para trans-
mudar-se segundo o exijam os cambiantes ventos da Fortuna e das circunstâncias, e, como
eu dizia acima, que, havendo a possibilidade, ele não se aparte do bem, mas que, havendo a
necessidade, saiba valer-se do mal” (MAQUIAVEL, 2007).
Diante do que foi estudado, reflita sobre a principal característica que o dirigente precisa
ter para se apropriar, dentro de suas possibilidades, das circunstâncias históricas.

Questão 2
Quais as principais diferenças entre a política (inventada pelos gregos e romanos) e o
modelo de poder despótico e patriarcal, que imperava anteriormente a essas civilizações?

EXERCÍCIO RESOLVIDO
1) O dirigente deve possui virtù, qualidade que permitirá a ele apoderar-se das instabi-
lidades históricas, minimizando o azar e se aproveitando da sorte. Assim, poderá aliar-se ao
povo, enfraquecer os fortes e criar uma imagem adequada às circunstâncias do momento.

2) Os gregos construíram a dimensão e o poder público em oposição ao poder privado


do soberano. Criaram um Estado impessoal em oposição à vontade pessoal do chefe tribal.
Permitiram a discordância de ideias e a expressão da contradição por meio da criação da
pólis e seus afazeres públicos. Possibilitaram a separação entre público e privado, além da
distinção entre as esferas civil, militar e religiosa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1998.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
HOBBES, T. Leviatã: ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo:
Martin Claret, 2006.
MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Porto Alegre: L&PM, 2007.

capítulo 1 • 33
NASCIMENTO, M. Rousseau: da servidão à liberdade. In: Os Clássicos da Política. (Org.) WEFFORT,
F. São Paulo: Ática, 2002.
RIBEIRO, J. U. Política: Quem Manda, Por Que Manda, Como Manda. Rio de Janeiro: Objetiva, 1981.
RIBEIRO, R. J. R. Hobbes: o Medo e a Esperança. In: Os Clássicos da Política. (Org.) WEFFORT, F.
São Paulo: Ática, 2002.
SADEK, M. O Cidadão sem Fortuna, o Intelectual da Virtú. In: Os Clássicos da Política. (Org.)
WEFFORT, F. São Paulo: Ática, 2002.

capítulo 1 • 34
2
Esferas pública
e privada
Esferas pública e privada

Reflexões sobre as esferas pública e privada

O período histórico sobre o qual falamos no capítulo anterior, marcado pela


queda da nobreza e ascensão de uma nova classe, foi caracterizado por grande con-
tradição: mesmo a burguesia tendo se tornado a classe social mais poderosa econo-
micamente, o regime político ainda se baseava na figura do rei e a nobreza detinha
poder e privilégios. O que isso significa em termos de Teoria Política? Significa que
a burguesia precisava de uma nova teoria que a legitimasse, demonstrando a im-
portância das inovações burguesas para o mundo moderno, como o trabalho em
oposição aos gastos dos nobres – não mais o poder do sangue, da hereditariedade,
mas a força do capital. Portanto, os objetivos deste capítulo são:

OBJETIVOS
Portanto, os objetivos deste capítulo são:
•  Entender a construção do liberalismo em Locke;
•  Refletir sobre os papéis que o Estado desempenha dentro desse modelo;
•  Observar as diferentes maneiras de se analisar o processo de modernização a partir de
sua dimensão política;
•  Explicar o surgimento e desenvolvimento dos conceitos de esfera pública e privada;
•  Analisar a relação entre mídia e esfera pública na Modernidade.
•  Discutir a importância do Pluralismo Regulado para a mídia.

Auge do pensamento liberal

O pensador que traduziu os desejos da burguesia e, ao mesmo tempo, cons-


truiu os argumentos para a sua legitimação diante do Antigo Regime foi John
Locke (Figura 2.1), um dos maiores teóricos do Liberalismo e que tanto contri-
buiu para a conformação do Estado e de grandes transformações políticas.

capítulo 2 • 36
AUTOR
John Locke (1632-1704), filósofo inglês, foi um dos maiores expoentes do liberalismo,
contribuindo para as teorias do Contrato Social. Ele também desenvolveu trabalhos sobre a
origem e natureza do conhecimento. Defendeu o respeito ao direito natural do ser humano
– vida, liberdade e propriedade privada (Figura 2.2). Suas ideias foram fundamentais na
luta da burguesia emergente contra o poder da nobreza.

Figura 2.1 – O filósofo inglês John Locke. Autor: Godfrey Kneller (2016).
Fonte: https://goo.gl/SJIjDU

Figura 2.2 – Fábrica, exemplo de esfera privada. Autor: Matt (2006).


Fonte: https://goo.gl/5og0wl

capítulo 2 • 37
CONCEITO
Contrato Social consiste em um conjunto de teorias desenvolvidas para explicar a for-
mação do Estado e, por consequência, a manutenção da ordem social. Os indivíduos abririam
mão de uma série de direitos, transferindo-os para o Estado de forma a obter vantagens
sociais, entre elas segurança, proteção da propriedade e liberdade. Seus principais formu-
ladores foram Thomas Hobbes (1588–1679), Jean Jacques Rousseau (1712–1778) e
John Locke (1632–1704).

CONCEITO
Antigo regime foi o sistema de governo que se estabeleceu na Europa a partir do final
da Idade Média. As monarquias que dominavam os Estados nascentes cooptaram a nobreza
e clero, formando um corpo aristocrático, que comandava a sociedade. Criou-se, portanto,
uma nova formação, baseada em três estratos sociais: o clero, a nobreza e o povo. Essa
estrutura social será destruída com a Revolução Francesa (1789).

O primeiro ponto que você deve entender sobre o pensamento de Locke é o


modo como ele define a natureza da propriedade privada. Como você deve estar
lembrado, tanto para Hobbes quanto para Rousseau, a propriedade não é um
direito natural, pois ela não vale nada sem a força da lei. “A propriedade privada
é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano” (CHAUÍ,
2000, pg. 519 – grifos do autor). Locke parte da ideia de que os bens necessários
à sobrevivência, vinculados ao Direito Natural, são obtidos pelo trabalho.
Ao mesmo tempo, defende a ideia de que Deus é o criador de todas as coisas e
que, mesmo quando expulsou o homem do paraíso, permitiu que ele ainda tivesse
direitos sobre o mundo a partir de seu esforço. Com o trabalho, o homem con-
quista a propriedade privada como direito natural, pois ela nada mais é do que o
fruto de sua luta cotidiana pela sobrevivência. Para ele, é por meio do trabalho que
o indivíduo consegue produzir e obter os frutos que passam a lhe pertencer. Além
disso, é importante observar a ideia de formação do Estado que, segundo Locke,
nasceu de um pacto de consentimento, ou seja, todos os indivíduos abrem mão
de seus direitos – voluntariamente – em nome da criação dessa instituição. Em

capítulo 2 • 38
momentos de conflito social, porém, se essa mesma sociedade achar necessário,
pode retirar quem está no controle.
Por isso, para nosso pensador, apenas o consentimento da sociedade é a ver-
dadeira fonte de todo o poder político – e não Deus ou a tradição. Para você ter
uma ideia da importância desse pensador, as reflexões de Locke exerceram forte
influência sobre as revoluções liberais modernas, como a Revolução Americana
(1776). Há, porém, outro elemento essencial para você que estuda Comunicação:
a liberdade de expressão, fundamental como exercício pleno da Democracia,
é fruto direto das ideias liberais. Assim, quando discutimos liberdade de ex-
pressão (em todas as suas formas), estamos recorrendo a esse conjunto de valo-
res. Pluralidade de veículos de comunicação, diferentes pontos de vista políticos,
debates, enfim, todos esses temas resultam dessa grande matriz de pensamento.
Assim, o Liberalismo marca uma grande conquista das sociedades modernas.
Nele, o Estado também deve atuar como mediador de conflitos – e legislador.
Benjamin Constant (1767–1830), um teórico do Liberalismo, definia assim sua
visão de Liberdade:

“É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não


poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de
nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de
vários indivíduos”. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de
escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade,
até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter
que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada
um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre
seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados
preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas
de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias.
Enfim, é o direito, para cada um, de influir sobre a administração do
governo, seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários, seja
por representações, petições, reivindicações, às quais a autoridade é
mais ou menos obrigada a levar em consideração”. (CONSTANT, 2015)

Como você pode ver pelo texto anterior, o Liberalismo é muito mais que um
mero conjunto de ideias de defesa de interesses econômicos. Ao contrário, ele diz

capítulo 2 • 39
respeito ao modo como a sociedade pode expressar livremente suas opiniões, criar
e se guiar pelas leis, reunir-se, discutir, votar, criticar, manifestar-se. Enfim, ele am-
plia a relação entre sociedade e Estado, formando a base de toda a nossa liberdade
de agir e pensar. Assim, podemos dizer que o Liberalismo é um projeto que busca
encontrar para o Estado uma justificação leiga, protegida de qualquer usurpação
religiosa, absolutista e até mesmo populista.
Para concluir essa parte, é fundamental enfatizarmos outro ponto. Você per-
cebeu que tudo o que discutimos tem a ver com as expressões espaço público e
espaço privado? O próprio surgimento do capitalismo baseou-se na propriedade
privada e na sua relação com o que é de todos. Ao mesmo tempo, os sentidos de
público e privado variaram ao longo da história do Ocidente. Na Grécia e Roma
antigas, o significado de público é radicalmente diferente do atual. Podemos dizer
que essas duas ideias influenciaram o modo como discutimos política tanto no
passado quanto agora.
A seguir, nossa discussão terá como centro de análise os sentidos de pú-
blico e privado. Para tanto, separamos três grandes pensadores que discutiram
brilhantemente essas ideias: Hannah Arendt (1906–1975), Jürgen Habermas
(1929) e John Thompson (1951). Iniciaremos com Hannah Arendt, que, além
de refletir sobre as dimensões pública e privada, no livro A Condição Humana
(1958), analisou filosófica e historicamente as raízes dos sistemas totalitários
no século XX. Na obra As Origens do Totalitarismo (1951), a autora reflete so-
bre o domínio total, suas origens, seu potencial destrutivo – e sua banalização
–, ampliando nossa visão a respeito dos conflitos na contemporaneidade. É,
portanto, uma obra imperdível.

As esferas pública e privada: o pensamento de Hannah Arendt

AUTOR
Hannah Arendt (1906–1975), filósofa alemã, de origem judaica, foi uma das maio-
res pensadoras do século XX. Além de escrever A Condição Humana (1958), em que
faz uma análise dos sentidos das ideias de público e privado ao longo da história do Oci-
dente, Arendt (Figura 2.3) também escreveu o livro As Origens do Totalitarismo (1951),
em que faz uma reflexão filosófica e histórica sobre as raízes dos sistemas totalitários

capítulo 2 • 40
no século XX. Essa obra é referência a todos que queiram estudar a política mundial no
século XX. Além disso, seu pensamento é marcado por um profundo e sofisticado diá-
logo com a Antiguidade Clássica. Contribuiu também com reflexões sobre a Política e a
Liberdade dentro da tradição Liberal.

Figura 2.3 – A filósofa alemã Hannah Arendt.


Autor: Albarluque (2014). Fonte: https://goo.gl/CKOtO6

Segundo Arendt, o nascimento do espaço público possibilitou a criação de


atividades e instituições permanentes, relacionadas aos negócios e interesses de
todos. Ao mesmo tempo, consagrou-se uma dimensão destinada à família e à
manutenção da vida. Podemos dizer que houve uma divisão fundamental entre
as esferas pública e privada. Mas, afinal, o que era o espaço público na Grécia
Antiga? Antes de tudo, ele diz respeito à palavra e ação. Pense, por exemplo,
em um conjunto de cidadãos discutindo leis e orçamento. Eles estão agindo por
meio do discurso, da troca de ideias e da exposição de diferentes pontos de vis-
ta. Por isso, a primeira característica da esfera pública pode ser sintetizada na
Pluralidade, pois é nesse espaço que um mesmo tema pode ser visto por muitas
pessoas sob múltiplos pontos de vista. Assim, determinado assunto possibilitava
uma série de diferentes análises, disputas e argumentos. Seguindo essa linha de
raciocínio, espaço público, aqui, significa um conjunto diverso de perspectivas –
uma pluralidade. Uma única perspectiva sobre o mundo, no entender da autora,
acabaria aniquilando-o.

capítulo 2 • 41
CONCEITO
Cidade-estado era a unidade política, com suas leis e administração dentro do territó-
rio grego formando as polis, como Atenas e Esparta (verdadeiros centros políticos, culturais
e econômicos onde se encontravam as assembleias de cidadãos que se reuniam para dis-
cutir os assuntos públicos). O surgimento dessas unidades políticas consumou a queda do
poder patriarcal, pois nelas se separou, para sempre, a dimensão pública da privada.

A segunda propriedade de “público” é marcada pela visibilidade. Dessa for-


ma, a autora o define como “tudo que pode ser visto e ouvido por todos e tem
a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido
pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade” (ARENDT, 2007, p. 59).
Público é, nesse segundo sentido, o aparente e que pode também ser comunica-
do; ou seja, aparência e comunicação estão interligadas.
No entanto, existe ainda um terceiro significado de “público” e que diz
respeito “ao que é comum a todos” e, como elemento coletivo, atua como um
verdadeiro mediador. Nesse terceiro aspecto, público e comum estão relacio-
nados. Têm a ver com “o artefato humano, com o produto das mãos humanas,
com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo
homem”. (Ibidem, p. 67)
O melhor exemplo dado pela autora para representar o sentido de bem co-
mum do espaço público é o da mesa. Pense bem: o que uma mesa faz com aqueles
que se sentam ao seu redor? Ora, a primeira resposta é bem simples: ela separa o
grupo de pessoas! Mas isso não é tudo. A mesa também estabelece uma ligação,
uma relação entre todos aqueles que estão ali sentados, de modo que ela atua tan-
to separando quanto ligando o grupo. Ela estabelece um elemento comum entre
todos. Por isso, a mesa tem a força de manter os membros juntos em um tipo
de relação que separa e agrega. O espaço público foi, assim, construído por uma
geração e transferido a outra que, por sua vez, irá entregá-lo à seguinte. Assim,
podemos sintetizar de maneira bem simples os três sentidos de público:

•  Pluralidade;
•  Visibilidade;
•  Bem comum.

capítulo 2 • 42
Quando se fala da permanência no espaço público, entendido como bem
comum, seu sentido se vincula a uma característica muito importante da socie-
dade grega: os cidadãos lutavam pela excelência de suas ações e feitos, realizados
sob o olhar de todos. O melhor guerreiro, o melhor lutador, o melhor orador. O
que estava em jogo era a possibilidade de realizar ações que possibilitassem que o
nome do cidadão, sua coragem, honra e conhecimento fossem narrados a gerações
futuras, transcendendo, assim, o tempo de uma simples vida humana. É com
essa luta pela imortalidade em mente que os grandes guerreiros gregos – Heitor,
Aquiles, Ulisses – realizaram seus grandes feitos. Quando o cidadão se aparta dessa
dimensão pública, o que resta é apenas a sombra do universo privado, sem grandes
feitos e ações destinados a todos.
Assim, ao chegarmos ao mundo, somos arremessados dentro de um espaço
construído pelo esforço de nossos antepassados. Mas, ao crescermos, também re-
construiremos este mundo para as próximas gerações. Por isso, esse terceiro senti-
do de público, enquanto bem comum, também tem a ver com o legado que cada
geração constrói e deixa para a posterior.

Pois diferentemente do bem comum tal como o cristianismo o concebia – a salvação


da alma do indivíduo como interesse comum a todos –, o mundo comum é aquilo que
adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração
de nossa vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá
à nossa breve permanência. É isto o que temos em comum não só com aqueles que vivem
conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois
de nós. Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações
na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que
é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a
preservar da ruína natural do tempo. (ARENDT, 2007, p. 64, 65)

E o que é espaço privado? A esfera privada pode ser compreendida como o


espaço das necessidades e carências humanas, onde ocorriam as atividades básicas
da administração da casa. Nessa dimensão, dava-se o domínio do chefe da família
tanto sobre a mulher e os filhos quanto sobre os escravos, muitas vezes por meio
da violência, imperando a desigualdade de poderes e a ausência de um discurso
racional e livre. Assim, nada limitava o poder do chefe. Por outro lado, privado

capítulo 2 • 43
também se liga à ideia de privação, isto é, de ser destituído das coisas e ações
fundamentais da vida humana, que eram realizadas no espaço público. Aqui, ao
contrário da partilha de algo construído coletivamente, temos o movimento opos-
to: o indivíduo está separado do mundo comum das coisas e, por isso, privado
de realizar algo permanente. Portanto, privado diz respeito a:
•  Espaço da casa e família, das necessidades básicas e do império do domínio
do chefe do lar, da ausência da ação comunicacional;
•  Estar destituído da capacidade de realizar grandes feitos, de debater temas
públicos, de construir um legado.

Se o espaço público tem pluralidade de perspectivas, o privado é dominado


pelo ponto de vista do chefe familiar. Se a igualdade de valor, em tese, imperava no
espaço público, permitindo a livre expressão de opiniões e o debate entre iguais,
no espaço privado o domínio do cidadão prevalecia sobre todos, impedindo a
ação comunicativa. Ademais, dentro dessa concepção, o cidadão se realizava, de
fato, transcendendo as necessidades do espaço privado e, assim, conquistava a au-
tonomia da ação e da palavra na dimensão pública. Se o público, por sua vez, era
o espaço do visível e da memória (i.e., o da imortalidade), o privado consistia na
obscuridade e na morte sem vestígios.
Portanto, a liberdade grega consistia em uma aliança entre pares – cidadãos
–, o que, mais uma vez, excluía tanto mulheres quanto escravos. Assim, a
Democracia grega estava vinculada à liberdade entre iguais, e não à ideia de
justiça que hoje temos.

A contribuição decisiva de Habermas

Agora, vamos acompanhar algumas contribuições de Jürgens Habermas


(Figura 2.4) sobre o tema da esfera pública e a sua relação com o desenvolvi-
mento da imprensa, seu adensamento enquanto esfera de debates e, finalmente,
seu declínio.

capítulo 2 • 44
AUTOR
Jürgen Habermas (1929), filósofo e sociólogo alemão, é um dos continuadores da Teoria
Crítica, desenvolvida pela Escola de Frankfurt. Contribuiu decisivamente para os estudos
sobre as dimensões pública e privada das sociedades ocidentais por meio da obra Mudança
Estrutural na Esfera Pública (1962). Também se dedicou ao estudo da Democracia e de sua
dimensão comunicacional por meio da razão libertadora.

Figura 2.4  –  O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas.


Autor: Wolfram Huke (2008). Fonte: https://goo.gl/Hk8u8u

Para começar, imagine a seguinte cena: um conjunto de ingleses do século


XVIII, economicamente estáveis, adquire o costume de se reunir nos fins de tarde
e início de noite nos salões londrinos. Esses burgueses se sentam para discutir
os assuntos do dia. O século é caracterizado pela mais profunda transformação
do panorama econômico e social inglês. Há um grande número de desempre-
gados que vêm dos campos à procura de emprego em cidades como Londres e
Manchester. Após conquistarem os empregos, trabalham muito, mais de dez horas
por dia. Quando os senhores de nosso salão se sentam para beber e conversar, o
tema das transformações sociais é o principal das conversas. Ganha a manchete
dos jornais – alguns estão sobre a mesa, outros sendo lidos ou folheados pelos
membros do grupo. A conversa se intensifica com cada um opinando sobre o as-
sunto, até que um deles aponta outra reportagem cujo conteúdo é sobre aumento

capítulo 2 • 45
de impostos. Isso consome a atenção de todos. Caso o imposto seja aprovado no
Parlamento inglês, eles serão afetados. Decidem-se, então, por entrar em contato
com conhecidos e amigos, elaborar um documento de crítica ao imposto e levá-lo
ao Parlamento, para debate (Figura 2.5).

Figura 2.5  –  Inglaterra, um dos berços da esfera pública.

Essa é uma situação fictícia, isto é, inventada, mas conta com alguns elementos
básicos para entendermos as ideias de Habermas. A primeira delas diz respeito ao
fato de que, a partir do século XVI, o capitalismo transforma a Europa e acarreta
profundas modificações institucionais, gerando as condições de emergência da es-
fera pública moderna. Assim, aos poucos, a autoridade pública deixa de ser vista
como a atividade palaciana e começa a se ligar à construção do Estado Moderno.
Portanto, público se relaciona a Estado. Por outro lado, a esfera privada se vincula
a dois aspectos: às atividades econômicas e às relações familiares. O primeiro
deles diz respeito à emergência das empresas capitalistas que estão transformando
toda a sociedade; o segundo, aos laços sociais e de afeto que estruturam essa insti-
tuição social, a família.
Entre o domínio do público, entendido como atividade estatal, e o privado,
concebido como relações econômicas e familiares, surge uma nova dimensão
social – a esfera pública burguesa, em que os indivíduos se reuniam para a troca
de ideias (Figura 2.6). Os temas eram quase sempre relacionados à sociedade e
às decisões do Estado; por isso, acabavam afetando a todos, gerando acalorados

capítulo 2 • 46
debates. O ponto fundamental é que essas discussões expressavam a reação dos
membros desse espaço público burguês às determinações do Estado. Assim, as
ações dos políticos podiam ser aceitas ou mesmo contestadas, como no caso de
nosso exemplo sobre o imposto.

Figura 2.6  –  Espaço de conversação.


Autor: Joshua Benoliel (1912). Fonte: https://goo.gl/BzZJyI

No entanto, contestação implica debate; e debate, por sua vez, exige jogo de
ideias. Agora, temos outra característica fundamental da esfera pública: o uso da
razão. Você pode perceber que, em linhas gerais, os membros de nosso salão têm
condições econômicas e sociais bem semelhantes, de modo que, nos debates, só
lhes resta a argumentação. Dessa maneira, “desenvolve-se uma CONSCIÊNCIA
POLÍTICA que articula, contra a Monarquia absoluta, a concepção e a exigência
de leis genéricas e abstratas e que, por fim, aprende a se autoafirmar, ou seja, afir-
mar a opinião pública como única fonte legítima das leis” (HABERMAS, 2003, p.
71 – grifos nossos). Contra a nobreza e os seus privilégios, havia a necessidade de
leis que igualassem todos os cidadãos – essa era uma das lutas centrais desse novo
espaço de discussão política.
Cada um dos participantes irá, portanto, expor suas opiniões, dar exemplos,
procurar defender seus pontos de vista e vencer os argumentos de seus adversários.

capítulo 2 • 47
Uns se colocam a favor; outros, contra. O debate torna-se acalorado. Mas, em tese,
vencerá o melhor argumento, aquele que conseguir apontar as falhas e fraquezas
das ideias opostas (e, portanto, ter sido capaz de persuadir os demais membros do
grupo). Ao final da discussão, chegam a um consenso, obtido pelo uso racional
das ideias, isto é, pela razão comunicativa.

CONCEITO
Razão comunicativa se refere à razão a ser usada em um diálogo, imprimindo mais rigor
à interação. Assim, cada falante (interlocutor) irá elaborar uma ideia acerca de um fato, norma
ou experiência (“uma pretensão de validade”). A pessoa com a qual você dialoga, porém, pode
contestar seu ponto de vista por meio de argumentos bem-fundados. Para Freitag (1993), a
racionalidade, em Habermas, não está na capacidade abstrata inerente ao indivíduo isolado,
mas em um procedimento argumentativo pelo qual dois ou mais sujeitos se põem de acordo
sobre questões relacionadas, por exemplo, à justiça. Dessa forma, de acordo com a autora,
todas as verdades antes consideradas inabaláveis podem ser revistas em uma conversa – e as
normas vigentes têm, por sua vez, de ser justificadas. Isso significa que as relações sociais são
consideradas por Habermas o resultado de uma negociação, isto é, de uma interação na qual
se busca o consenso e se respeita o diálogo, cuja vitória está no melhor argumento.

Há, porém, outra inovação fundamental trazida pelo pensador: todos estão
discutindo a situação da Inglaterra a partir de reportagens da mídia impressa.
Cada jornal tem um ponto de vista diferente, possibilitando a seus leitores acesso
a diversas perspectivas sobre o mesmo tema. Isso significa que essa esfera pública
burguesa está se criando na sua relação com a imprensa, que a abastece de dados
e óticas opostas. É um espaço onde há pluralidade de ideias por haver diferentes
jornais. A imprensa passa a ser um elemento fundamental para a realização do
debate na esfera pública, pois as sociedades, na Modernidade, são não apenas den-
samente populosas, mas também complexas. As dimensões de uma pequena as-
sembleia grega já não dão conta de expressar o tamanho e as características de um
novo período histórico. “Uma esfera pública funcionando politicamente aparece
primeiro na Inglaterra na virada do século XVIII. Forças que querem então passar
a ter influência sobre as decisões do poder estatal apelam para o público pensante
a fim de legitimar reivindicações ante esse novo fórum” (Ibidem, p. 75).

capítulo 2 • 48
O papel da imprensa, portanto, é fundamental para Habermas (2003), pois
ela foi a instituição moderna que irrigou e estimulou o debate nesse novo modelo
de esfera pública que se alastra por toda a Europa. Só para você ter uma ideia,
o autor demonstra que os debates políticos começavam nesses salões para, de-
pois, chegarem ao próprio Parlamento, influenciando as instituições modernas.
Os Parlamentos vão se tornar, dentro desse raciocínio, cada vez mais abertos às
críticas e aos debates, possibilitando maior vigilância e ação política por parte da
sociedade civil.
Antes de continuarmos, vamos deixar claros alguns conceitos centrais de
Habermas. Como você deve ter percebido, discutimos bastante a esfera pública,
que, para esse autor, remete a uma instância intermediária entre o Estado e a
sociedade. Para ele, a característica mais importante dessa dimensão social é a ca-
pacidade das pessoas de formularem ideias e expressarem suas opiniões sobre
determinados temas por meio da ação comunicativa. Dessa forma, esse espaço
representa seus pontos de vista por meio da opinião pública, que desempenha
papel fundamental no controle do poder político por ser uma maneira de ver,
expressar e, no limite, discordar de determinado tema.
Outro aspecto essencial diz respeito ao fato de que a opinião pública somente
pode se organizar a partir da liberdade de reunião, de expressão e de associação
– conquista do conjunto de ideias chamado Liberalismo. Sintetizando:

•  A conscientização Política contra a Monarquia ocorre na esfera pública por


meio da opinião pública e do uso da ação comunicativa;
•  Os cidadãos passam a exigir leis de caráter genérico e abstrato;
•  Opinião pública é reivindicada como única fonte legítima de poder político.

A burguesia, dentro desse raciocínio, não é demonizada por Habermas; ao


contrário, é vista como contraponto ao poder do Estado. Em palavras mais sim-
ples, a burguesia é o segmento social que pode se opor às decisões equivocadas
das instituições, discutindo projetos públicos e levando suas reivindicações ao
Parlamento. Portanto, dentro da visão de nosso autor, o poder de crítica – e de
transformação social da burguesia – pode se contrapor a possíveis desmandos co-
metidos pelas instituições. Dessa forma, é a opinião pública que se consolida

capítulo 2 • 49
como um novo poder político. Tudo isso ocorre também na medida em que esses
sujeitos contavam com liberdade relativa na sua esfera privada, onde tinham alto
grau de autonomia e liberdade. Eles não estavam presos às necessidades eco-
nômicas básicas e, por isso, dedicavam-se a outras atividades. Assim, as pessoas
podiam, por exemplo, participar de associações voluntárias ou de reuniões de dis-
cussões literárias, onde se debatiam as grandes obras da época.

“O público pensante dos ‘homens’ constitui-se em público dos ‘cidadãos’, no qual ficam
se entendendo sobre as questões da res publica. Essa esfera pública politicamente em
funcionamento torna-se, sob a ‘constituição republicana’, um princípio de organização do
Estado Liberal de Direito. Em seu âmbito está estabelecida a sociedade civil burguesa
como esfera da autonomia privada (cada qual deve poder procurar a sua ‘felicidade’ por
aquele caminho que lhe pareça útil).” (HABERMAS, 2003, p. 131)

O declínio dessa esfera está amplamente articulado à emergência de


grandes conglomerados midiáticos que corroem a diversidade de opiniões
geradas, a princípio, nesse espaço. “Ao invés de uma opinião pública, o que
se configura na esfera pública manipulada é uma atmosfera pronta para a
aclamação, é um clima de opinião” (Ibidem, p. 254). Assim, a partir desse
processo, os meios de comunicação cada vez mais atuam como transmissores
de propaganda, contribuindo para a redução e a simplificação dos debates
políticos, em que a razão passa a ser substituída pela roupa do candidato e
por sua aparência. Por isso, o autor defende o surgimento de uma “cultura
da integração” (Ibidem, p. 253).
Você deve estar percebendo que Habermas acaba tendo uma posição cética em
relação à esfera pública que teria perdido toda a sua grandeza passada, devido à sua
integração ao consumismo. Por isso, em grande medida, os esforços de Habermas
se dão no sentido de resgatar a energia e o potencial dessa primeira esfera pública
política. Vejamos agora um novo autor, que também discute as relações entre
mídia e esfera pública.

capítulo 2 • 50
A vez de John Thompson: a mídia e a modernidade

AUTOR
John Thompson (1951), sociólogo americano, é um dos mais importantes representantes
dos estudos de mídia na atualidade. Desenvolveu trabalhos sobre o papel da mídia na Moder-
nidade, a estruturação dos escândalos políticos nas sociedades midiatizadas e sua visibilidade.

Imagine a seguinte situação: o rei aparece na praça de uma grande cidade,


cercado por seus conselheiros, familiares e ministros. Após algum tempo, toda a
população, espremida no local, ouve e observa atentamente o discurso do monar-
ca. Suas roupas, seus gestos, suas palavras (enfim, todo o seu comportamento) são
analisados por seus súditos. Aqueles que estão mais perto podem, inclusive, obser-
var detidamente suas expressões faciais, que, depois do discurso, serão discutidas
por todos. Pelo exemplo, você percebe que os súditos estão interagindo pratica-
mente face a face com o rei e o seu grupo. Eles, inclusive, podem acompanhar as
expressões tanto do monarca quanto dos conhecidos ao lado. A atividade política
dos tempos antigos e o espaço público eram muito diferentes da política e esfera
pública nos tempos atuais.
Podemos afirmar que a visibilidade (i.e., o caráter de ser visto em público)
mudou muito com a chegada da imprensa – e, em seguida, dos meios de comuni-
cação eletrônicos. É isso que veremos agora, pois houve uma verdadeira “transfor-
mação na natureza da visibilidade e na sua relação com o poder” (THOMPSON,
1998, p. 109). Essa modificação pode ser compreendida quando levamos em
conta a dicotomia público/privado, pois ela interfere no pensamento e no fazer
político. Assim, nosso autor procura descrever historicamente tais mudanças,
acompanhando suas transformações ao longo do tempo.
Essa dicotomia, como você pôde ver com as ideias de Hannah Arendt e
Habermas, foi se modificando desde o período greco-romano até os dias atuais.
Thompson (1998) enfatiza um sentido básico que se consolidou na Idade Média:
o significado de público se liga ao domínio e poder político institucional, que
se encarnava cada vez mais naquilo que chamamos, modernamente, de Estado.
Já privado, por sua vez, vincula-se às atividades econômicas e relações pes-
soais que fugiam ao domínio político.

capítulo 2 • 51
A Figura 2.7 apresenta um diagrama elaborado por Thompson sobre as no-
vas configurações entre o espaço público e privado na Modernidade. Observe
com atenção:

Figura 2.7  –  Diagrama de Thompson sobre as configurações entre o espaço público e


privado na Modernidade. Autor: Adaptada de Thompson (1998, 112).

Vamos analisá-lo começando pelo domínio privado. Em linhas gerais, ele


se refere às organizações como as empresas que operam na busca de lucros
e também às relações familiares. Por outro lado, o domínio público abarca
instituições estatais, como os ministérios, e as paraestatais e organizações
econômicas do Estado, como empresas nacionais – a exemplo da Petróleo
Brasileiro S.A. (Petrobras), estatal de economia mista. Segundo Thompson,
com o processo de crescente complexidade das sociedades modernas, surgiram
organizações intermediárias – como as empresas não lucrativas de beneficência
e mesmo os partidos políticos.

capítulo 2 • 52
CONCEITO
Empresa paraestatal é uma pessoa jurídica de direito privado criada por lei e que, por
isso, não tem o lucro como finalidade essencial. Portanto, seu funcionamento está amparado
em dispositivos legais, e ela se dedica, por exemplo, a atividades de ensino a determinados
grupos sociais. O Serviço Social da Indústria (Sesi), o Serviço Social do Comércio (Sesc) e o
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) são exemplos de paraestatais.

Público e privado: um segundo sentido

Como você acaba de ver, o primeiro sentido de público e privado corres-


ponde, grosso modo, a poder político institucional e atividade econômica/relações
pessoais, respectivamente – enfim, ao que chamamos genericamente de Estado
e sociedade. No entanto, existe ainda um segundo significado dessa dicotomia
dentro das discussões políticas no Ocidente. No que diz respeito a público, o ter-
mo também significa “aberto, acessível ao público”, “visível”, “observável”, “reali-
zado em frente a espectadores”, “aberto a todos”. Já o sentido de privado liga-se ao
“que se esconde da vista dos outros”, “dito ou feito em privacidade”, “em segredo”,
“em círculo restrito”. Lembra-se de nosso primeiro exemplo (o rei discursando
diante do povo aglomerado na praça)? Nessa situação, temos público no sentido
de publicidade, de abertura, enfim, de visibilidade. Naturalmente, os comícios
modernos, pensando em nossa época, também se encaixam nessa categoria.
Por outro lado, privado se liga a privacidade, segredo e, por isso, invisi-
bilidade. “Um ato público é um ato visível, realizado abertamente para que
qualquer um possa ver; um ato privado é invisível, realizado secretamente atrás
de portas fechadas” (Ibidem, p. 112). Então, o segundo sentido de público e
privado (visível e invisível) não corresponde ao primeiro (Estado e empresas
privadas/família). O que aconteceu? O que houve na história do Ocidente que
levou a essa separação?
A resposta não deixa de ser fascinante. Peguemos o exemplo da Grécia e
suas assembleias de cidadãos. Aqueles espaços constituíam a dimensão públi-
ca, pois os cidadãos, indivíduos livres e iguais, podiam ocupar-se do debate
acerca dos assuntos políticos do Estado. Isso mostra que a antiga Democracia
grega demonstrava certo compromisso com a visibilidade do poder. Assim, os
assuntos de Estado eram debatidos por todos os cidadãos em um espaço em

capítulo 2 • 53
que todos potencialmente se viam. Mas, com a desagregação desses grandes
impérios, em especial o romano, e com a chegada do período medieval, uma
nova modalidade de poder surge. Os assuntos das cortes passam a ser discuti-
dos entre os monarcas e seus aliados, ou seja, as principais questões do poder
são transferidas do espaço visível para as discussões secretas entre o rei e os
seus conselheiros.
Podemos dizer que os reis apareciam “apenas para afirmar seu poder publica-
mente (visivelmente), não para tornar públicas (visíveis) as razões em que assenta-
vam suas decisões políticas” (Ibidem, p. 113). Como você pode observar, a partir
desse ponto, o que é público, no sentido de estatal, não será necessariamente
público, no sentido de visível. Preste muita atenção. Assim, por exemplo, as
aparições dos monarcas passam a ser calculadas por seus conselheiros cujo objetivo
central era reafirmar o poder. Dentro desse complexo processo histórico, surge a
“razão de Estado”, ou seja, a doutrina do segredo de Estado. Basicamente, esse
conjunto de ideias defendia que o poder do príncipe era mais efetivo e verdadeiro
se escondido das pessoas – como a vontade de Deus, que também é invisível.
No entanto, com o desenvolvimento dos Estados Constitucionais Modernos,
a invisibilidade volta a ser mais limitada – especialmente com o surgimento da
imprensa, que passa a buscar informação e fiscalizar os poderes constituídos. O
caráter secreto, privativo do poder, passa a ser fiscalizado. Ademais, com a estru-
tura moderna do Estado, o debate parlamentar reinstaura, parcialmente, o caráter
aberto, isto é, visível, das questões públicas.
No entanto, você deve estar se perguntando: como o surgimento dos meios de
comunicação de massa influenciou todas essas transformações? Como as relações
sociais e de poder foram reconfiguradas pelo aparecimento da mídia? Enfim, o que
mudou na política com os meios de comunicação de massa?

Jornais, sociedade e poder

Nosso primeiro passo agora consiste em observar como eram as relações


sociais antes da mídia. Mais uma vez, retornemos ao exemplo do monarca dis-
cursando em público. Naquele caso, tanto o rei como o povo estavam compar-
tilhando o mesmo espaço. Thompson denomina essa situação de publicidade
tradicional de copresença. O que isso significa? Basicamente, que o poder real
era público, isto é, apresentava-se como forma visível a todos na praça, e, ao
mesmo tempo, os participantes dividiam um espaço em comum. As relações

capítulo 2 • 54
eram, por isso, face a face. Não havia nenhum dispositivo técnico (como uma
tela) entre o monarca e a comunidade; ao contrário, eles se relacionavam direta-
mente por meio da visão, da audição e de outros sentidos. Enfim, as presenças
compartilhavam o mesmo espaço.
Além disso, também havia um potencial dialógico. Com o rei, de fato, a
conversação era impossível. Mas, se fosse um funcionário encarregado de cobrar
impostos e que estivesse anunciando o aumento do tributo, os populares podiam,
em contrapartida, questioná-lo, criticá-lo e assim por diante – enfim, estabelecer
um diálogo. Os jornais (Figura 2.8) rompem com toda essa estrutura, e, com
isso, surgem novas formas de publicidade. “A característica fundamental dessas
novas formas é que, com a extensão da disponibilidade oferecida pela mídia, a
publicidade de indivíduos, ações ou eventos não está mais limitada à partilha de
um lugar comum” (Ibidem, p. 114).

Figura 2.8  –  Jornais impressos. Autor: Glen Bowman (2006).


Fonte: https://goo.gl/Bkfw5L

capítulo 2 • 55
ATENÇÃO
Quando o autor usa o termo “publicidade”, ele está se referindo ao caráter de visibilidade
de um evento, pessoa ou situação. Por isso, estamos pensando no segundo sentido de público,
como discutimos anteriormente. É a natureza da publicidade/visibilidade que mudará ao longo
do tempo, em especial com o surgimento da mídia.

Os jornais e a separação do compartilhamento do espaço

Agora, vamos dividir e diferenciar aquilo que, genericamente, chamamos mí-


dia. Em primeiro lugar, discutiremos o impacto da imprensa escrita sobre as rela-
ções sociais e, depois, a influência da mídia eletrônica. Quanto à internet, iremos
discuti-la à parte, no último capítulo.
Com o advento dos jornais, houve imediatamente a separação do compar-
tilhamento do espaço. Por exemplo: um comício político podia ser lido a qui-
lômetros de distância de sua ocorrência. Isso significa que, por mais simples que
pareça, na verdade, o surgimento da mídia impressa rompe o compartilhamento
de tempo e espaço. O evento é usufruído na sua dimensão semiótica, isto é, a
partir das fotografias e palavras, que são representações do ocorrido. Por isso, o
fato político passa a se tornar público a indivíduos que não estavam fisicamente no
local. Ademais, a interação face a face, que tanto caracterizava o modelo anterior,
é substituída, em parte, pelos jornais.
Naturalmente, os comícios continuam até hoje, mas a presença física deixou
de ser obrigatória em função da mediação dos jornais. O leitor da reportagem
sobre o evento, por exemplo, não pode agora questionar o político. Você se lembra
de que, no exemplo do discurso sobre o aumento dos impostos, a população podia
criticar e questionar o orador? Agora, esse potencial dialógico (ou seja, conversar
com o outro) não mais existe.
Com o advento da mídia impressa, a ação de fazer algo público se separa do
potencial dialógico da fala e “fica cada vez mais dependente do acesso aos meios de
produção e transmissão da palavra impressa” (Ibidem, p. 115). Thompson (1998)
define essa nova forma de relação de quase interação mediada, pois a dimensão
do diálogo deixa de se realizar. Para concluir essa parte, você ainda deve ficar
atento ao fato de que muitos dos políticos desses comícios passam a orientar a
sua conduta não apenas para o público presente na praça, mas também para os

capítulo 2 • 56
leitores em potencial dos jornais. E, finalmente, as reações do povo não são mais
perceptíveis ao político, ou seja, ele não mais vê se os indivíduos estão gostando
ou não do evento, pois o grande público é um público de leitores.

A mídia eletrônica e o poder político: um novo mundo

Como os jornais, a TV também separa a partilha de um mesmo local, a


copresença, rompendo as categorias de tempo e espaço. Por outro lado, ela
acrescenta uma série de novas características, como a ênfase nos sentidos da
visão e da audição. A televisão, ao focalizar tais percepções, religa a publicidade
à capacidade humana de ver e ouvir (Figura 2.9). Como você deve se lembrar,
nos comícios antigos, muito do espetáculo estava vinculado a esses sentidos, que
gerenciavam a atenção para o evento. Por isso, podemos dizer que a TV renova
o nexo entre visibilidade e publicidade, que havia sido perdido, por exemplo,
com os jornais impressos.

Figura 2.9  –  Modalidades midiáticas.


Autor: Enrico Verta (2016). Fonte: https://goo.gl/MpCgyH

Outra das características desse meio é que ele aumenta o número de indiví-
duos com acesso às imagens, atingindo escala global. Além disso, a TV “cria um

capítulo 2 • 57
campo de visão completamente diferente do campo de visão que os indivíduos
têm com os outros em seus encontros diários” (Ibidem, p. 117).
Thompson ainda observa que, ao contrário da situação de praça (onde o ora-
dor vê o público), na TV, o telespectador não é visto por quem aparece no vídeo.
Portanto, esse novo tipo de publicidade independe de o indivíduo ser percebido
nessas novas modalidades de publicidade mediada. “O tipo de publicidade criada
pela televisão é assim caracterizado pelo contraste fundamental entre produtores e
receptores no que diz respeito à visibilidade e invisibilidade, à capacidade de ver e
de ser visto” (Ibidem, p. 118).

ATENÇÃO
O autor critica a ideia de esfera pública, de Habermas, que, segundo ele, está baseada
em um modelo de comunicação greco-romano. Para Thompson, esses espaços da Anti-
guidade possibilitavam algo superado nos tempos modernos: a interação face a face. “A
esfera pública, como na Grécia Antiga, se constituía, sobretudo, do discurso, de avaliações
de diferentes argumentos, opiniões e pontos de vista, num intercâmbio dialógico de palavras
faladas em locais públicos e comuns” (Ibidem, p. 119). Assim, Habermas teria aderido a uma
ideia de publicidade como copresença, privando-se de entender as novas modalidades de
interação, as publicidades mediadas pelos meios de comunicação.

Pluralismo regulado

As novas interações sociais, constituídas pela mídia, elaboram um novo tipo


de poder que se vincula à visibilidade, ao ato de ser visto. O político precisa,
por exemplo, construir sua reputação nos meios de comunicação que podem,
por outro lado, destruí-la. O poder, cada vez mais, torna-se algo que passa a ser
construído e desconstruído na esfera do visível. Thompson não tece, portanto,
um diagnóstico negativo da mídia; ao contrário, a análise desse autor enfatiza a
função fundamental que ela exerce nas sociedades modernas. Assim, não há como
negligenciar o papel dos meios de comunicação, que, afinal, mudaram as relações
sociais por meio das interações mediadas. Você se lembra de que, antes do advento
da mídia, as interações eram face a face? Se a interação mediada é uma das carac-
terísticas centrais da sociedade moderna – e se essa interação é criada pela mídia –,

capítulo 2 • 58
então a renovação da vida pública passa necessariamente pelo papel exercido pelos
meios de comunicação na contemporaneidade.
Para Thompson, o problema consiste no modo como as empresas midiáticas
sofreram processos de concentração, o que acarreta ameaças à liberdade de ex-
pressão e à diversidade de pontos de vista. A fim de administrar esse cenário de
concentração, esse autor propõe o princípio do Pluralismo Regulado, uma “es-
trutura institucional que abriga e garante a existência de uma pluralidade de inde-
pendentes organizações de mídia” (THOMPSON, 1998, p. 207). Além de ofere-
cer instrumentos de análise crítica à atual configuração centralizada dos meios de
comunicação, o Pluralismo Regulado propõe a descentralização dos recursos
destinados às empresas de comunicação e a separação da mídia do poder estatal.
A partir desses dois princípios fundamentais, de acordo com Thompson, os
meios de comunicação podem ser menos afetados pelos abusos do Estado, pois os
recursos seriam pulverizados, isto é, divididos entre várias empresas e diferentes
segmentos de mídia. Por outro lado, o autor ainda observa que devemos deixar de
lado a postura ingênua de que o mercado se regule. Assim, o Pluralismo procura
romper tanto com o poder do Estado quanto com a concentração empresarial da
mídia pelo mercado. Uma das saídas para esse impasse, de acordo com ele, seria o
fortalecimento dos meios de comunicação não comerciais.
O ponto central, portanto, consiste em incorporar nas Democracias modernas prin-
cípios de organização e regulação da mídia de massa, abrindo possibilidades para que
diversos segmentos sociais possam expressar suas ideias. Em outras palavras, a conquista
da pluralidade midiática – de diversas mídias expressando diferentes ideias – é um dos
elementos centrais para o fortalecimento das sociedades democráticas (o que acarretaria
maior conscientização social e uma esfera pública mais pluralista e aberta ao debate).
Agora, precisamos articular as concepções de público e privado, de Thompson, com
o Pluralismo Regulado. Você deve se lembrar de que o segundo sentido de público
e privado diz respeito, respectivamente, a aberto/visível e escondido/secreto. Uma das
formas de poder modernas diz respeito ao modo como a mídia torna invisível à opinião
pública uma série de questões fundamentais ao convívio social. Em palavras mais sim-
ples, a concentração da mídia pode tornar invisíveis temas centrais à esfera pública
por meio de seleção, censura ou encobrimento de informações. Por isso, o princípio
do Pluralismo, que implica diversas mídias atuando no espaço público, permite que tais
temas privados – no sentido de invisíveis – sejam expostos ao olhar de todos, ou seja,
tornados públicos. Assim, a diversidade midiática e a sua consequente pluralidade
de ideias, em tese, possibilita a publicidade de informações mantidas em segredo.

capítulo 2 • 59
O Pluralismo contribui para tornar público o que até então era privado, no sentido
de escondido. O importante, portanto, é o acesso às informações em uma Democracia
deliberativa, isto é, que permite e mesmo suscita discussões:

Uma concepção deliberativa não pressupõe que cada indivíduo já


possua uma vontade predeterminada ou um conjunto de preferências,
nem define a legitimidade como a soma aritmética das preferências.
Mais do que isto, o processo de deliberação em si mesmo é crucial,
porque é através dele, de consideração e avaliação de diferentes
pontos de vista, que os indivíduos chegam a formar suas vontades.
(THOMPSON, 1998, p. 221.)

REFLEXÃO
Já pensou como a mídia influencia na formação de nosso eu? Em outras palavras, já
refletiu sobre a maneira como os meios de comunicação organizam a formação do self? Essa
expressão, grosso modo, significa a identidade do indivíduo – seu eu. Antes do advento dos
meios de comunicação, o self era formado por um conjunto de interações que remetiam a
relações locais – à comunidade – e implicavam também conhecimentos daquela localidade
repassados de geração a geração.
Com a mídia, especialmente a eletrônica, o processo de formação de individualidades se
tornou mais complexo, pois a construção do eu passa a depender também de materiais sim-
bólicos mediados, como as imagens de TV. Você se recorda de que uma das características
fundamentais das interações sociais modernas é que elas se tornam mediadas? Por isso, o
indivíduo tem acesso a informações originárias de diferentes fontes midiáticas, que contri-
buem para a formação de um novo eu.

RESUMO
Em síntese:
•  Aprendemos que John Locke foi responsável por uma nova formulação de Contrato So-
cial, baseada no consentimento. Suas ideias contribuíram para a vitória da burguesia sobre
a Monarquia e influenciaram grandes transformações políticas. Por isso, elas adensaram o

capítulo 2 • 60
legado liberal baseado na ideia de liberdade de ação, pensamento e expressão, elementos
que fundam a Comunicação Social e a Democracia;
•  Acompanhamos o conceito de esfera pública e privada em Hannah Arendt. Segundo ela, o
público tem a ver com pluralidade, visibilidade e construção do bem comum. O privado se refere
ao espaço da família, da ausência de razão argumentativa e do domínio entre seus membros;
•  Vimos o conceito de esfera pública em Habermas, especialmente sua vertente política,
consolidada na Inglaterra, século XVIII.
•  Refletimos que, nessa esfera, fomentada pelas informações da imprensa, o público debate
a interferência do Estado na sociedade, formando a opinião pública, fonte de toda a legitimi-
dade política. Tal opinião se constrói a partir da razão comunicativa, na qual impera o melhor
argumento como forma de conquista de entendimento;
•  Estudamos o conceito de público e privado em Thompson. No primeiro sentido, público
tem a ver com Estado, e privado, com família e economia. No segundo, público diz respeito
ao visível, acessível à opinião pública, e privado se refere ao obscuro, escondido, alheio à
vigilância social;
•  Discutimos que Thompson propõe o Pluralismo Regulado como resposta democrática à
concentração das empresas midiáticas, permitindo a pluralidade de veículos e de ideias, in-
centivando, assim, a Democracia deliberativa.

ATIVIDADE
1) O conceito de Contrato Social, em Locke, pode ser definido pela alternativa:
a) O Contrato Social foi pactuado entre indivíduos em razão de seu medo de perderem a
propriedade privada, sua segurança e integridade física.
b) O Contrato Social foi pactuado por indivíduos para se preservarem dos efeitos da institui-
ção da propriedade privada no Estado de Sociedade.
c) O Contrato Social foi pactuado em razão da separação entre política e moral, permitindo o
melhor gerenciamento dos conflitos sociais em uma sociedade.
d) O Contrato Social foi pactuado como forma de consentimento entre os indivíduos que
transferem seus poderes para o Estado, cuja função consiste em preservar direitos e deveres.
e) O Contrato Social foi pactuado para separar as esferas pública e privada e, dessa forma,
permitir o gerenciamento do Estado nos assuntos íntimos e morais da população em geral.

capítulo 2 • 61
2) As principais características da esfera pública, em Hannah Arendt, podem ser sinte-
tizadas por:
a) Separação da moral e da política por meio da introdução do gerenciamento político, plura-
lidade de pontos de vista e bem comum.
b) Pluralidade de pontos de vista, pluralismo regulado e constituição do self a partir das rela-
ções que o indivíduo moderno tece com a mídia em geral.
c) Pluralismo regulado, visibilidade pública e instituição do bem comum como fonte de co-
nhecimentos e memória humana para os cidadãos.
d) Pluralidade de pontos de vista, visibilidade pública entre aqueles que discutiam assuntos
coletivos e construção do bem comum, vinculado à permanência e memória.
e) Pluralidade de pontos de vista, hierarquia de poder entre cidadãos e divisão de tarefas
sociais na esfera familiar, em especial entre homens e mulheres.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
1) Resposta: d.
2) Resposta: d.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
CONSTANT, B. Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos. São Paulo: Atlas, 2015.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
FREITAG, B. A Teoria Crítica Ontem e Hoje. São Paulo: Brasiliense, 1993.
HABERMAS, J. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro , 2003.
THOMPSON, J. A Mídia e a Modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis (RJ): Vozes, 1998.

capítulo 2 • 62
3
Poder e visibilidade
Poder e visibilidade

Introdução: poder e controle

Você deve estar lembrado de que, no último capítulo, discutimos o processo


por meio do qual o poder vai se ligando cada vez mais à visibilidade e cria no-
vas modalidades de domínio que se intensificam com o advento da TV e jornais
impressos. Agora, nossa discussão consiste em aprofundar esse fascinante debate
sobre a natureza do poder e as suas transformações a partir do século XVIII até
nossos dias.

OBJETIVOS
Os principais objetivos deste capítulo são:

•  Entender a relação entre poder e visibilidade;


•  Refletir sobre a ligação entre poder e saber;
•  Entender que o poder não está apenas no Estado;
•  Descobrir a natureza disciplinar do poder;
•  Compreender as sociedades de controle;
•  Estudar a Sociedade do Espetáculo.

Transformando a ideia de poder: a contribuição de Michel Foucault

Nossa intenção, agora, é refletir sobre as principais características do poder


disciplinar. Já ouviu falar dele? Para melhor entendê-lo, vamos sintetizar alguns
pontos de outra modalidade de domínio, que antecedeu a sociedade disciplinar.
Para começo de conversa, podemos dizer que houve um diferente tipo de poder,
consolidado durante o período do Antigo Regime, no qual o domínio estava
concentrado nas mãos dos monarcas. Era o poder soberano.
O monarca, representação máxima do poder soberano, dominava seu terri-
tório a partir de uma capital de onde eram emitidos decretos, leis, ordens – e
também onde eram formulados, inclusive, modelos de comportamento. O rei
tentava determinar como os súditos deveriam viver e se comportar dia a dia. Nesse

capítulo 3 • 64
sentido, a capital não era apenas um centro administrativo, era ainda um “centro
moral” de todo o reino, o núcleo da circulação de tudo o que buscava dar forma à
vida cotidiana do povo (Figura 3.1).

Figura 3.1  –  Luís XIV recebe delegação de Zurique.


Autor: Nicolas de Largillierre (1710). Fonte: https://goo.gl/oEyV6q

O ponto fundamental desse tipo de poder era que o soberano tinha, na ver-
dade, direito de vida e morte sobre seus súditos. Assim, ele podia, por exemplo,
executar quem quisesse e deixar que os demais vivessem em paz – e com medo. Por
isso, uma das frases mais famosas do filósofo francês Michel Foucault é que o so-
berano tem o poder de “fazer morrer e deixar viver”. Já refletiu sobre as possíveis
relações entre o poder soberano, de Foucault, e o Contrato Social, em Hobbes?
No primeiro, o rei tem poder absoluto sobre a vida de seus súditos a partir do
direito de vida e morte; no segundo, o Estado Absoluto, encarnado no monarca,
é construído a partir de um pacto de submissão. Do ponto de vista de Hobbes, os
indivíduos sentem-se inseguros na sociedade e veem os outros como agressores. É
essa insegurança – esse medo – que os faz transferir seu poder ao soberano, pois
nele procuram proteção. Caso o soberano rompa o contrato social, deixando de
protegê-los, abre-se a possibilidade para que os súditos se rebelem. Para Foucault,
por outro lado, era por ser capaz de matar que o soberano tinha, também, direito
sobre todos. Assim, podemos dizer que a relação do monarca com o súdito era
unidirecional, isto é, um lado tinha poder absoluto sobre o outro, pois o poder
emanava de cima para baixo. Como resultado dessa relação tão desigual, a pos-
sibilidade de viver de cada um dependia simplesmente da vontade do soberano.

capítulo 3 • 65
AUTOR
Michel Foucault (1926–1984), filósofo francês, foi um dos maiores pensadores do
século XX. Foucault (Figura 3.2) refletiu sobre as diversas formas de poder e controle nas
sociedades moderna e medieval – como o poder soberano e o disciplinar. Entre suas obras,
destacam-se As Palavras e as Coisas (1966), Vigiar e Punir (1975) e Em Defesa da Socieda-
de (1975–1976). Notabilizou-se por apreender novas dimensões do poder.

Figura 3.2 – O filósofo francês Michel Foucault.


Autor: Paulo Loboda (2015). Fonte: https://goo.gl/RafsmZ

Com o advento do capitalismo, esse modelo centrado no poder do rei foi


substituído por novas relações sociais e políticas que, dessa maneira, exigiam ou-
tras formas de controle. A partir do século XVIII, especialmente, um novo con-
junto de técnicas e dispositivos vai se articular, formando modalidades de domínio
que se adéquam às exigências da nova época. Como você deve estar percebendo,
estamos diante de uma ideia de poder inovadora e criativa, que observa as formas
de controle além da economia.

O poder disciplinar

O poder disciplinar se estabelece, entre outros, a partir do controle dos


corpos dos indivíduos. De antemão, é importante saber que esse tipo de

capítulo 3 • 66
domínio tem como finalidade “adestrar”, “controlar”, “disciplinar” os sujeitos.
Sua função consiste em administrar as multidões confusas que abarrotam as
cidades em franco processo de modernização. O poder atua sobre o espaço,
contribuindo para determinar posições, comportamentos, produções, relações
entre indivíduos. Ao contrário da visão marxista, Foucault não acredita que o
poder permanece nas mãos de uma classe dominante. O poder, dessa forma,
torna-se complexo demais para ser determinado e explicado apenas pela eco-
nomia. Ele também não poderia ser compreendido somente pela instituição
de pactos sociais.
Para Foucault, não podemos tomar o poder como um fenômeno de do-
minação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre outros. O ponto central
consiste em entendê-lo como um conjunto de técnicas e táticas – de práticas
e relações que se estabelecem na sociedade. O poder é a engrenagem que move
o corpo social. Mas, para “adestrar” e “disciplinar”, ele precisa de informações
sobre os sujeitos que serão controlados, exigindo a produção de um saber sobre
as massas de indivíduos potencialmente disciplináveis. Para “adestrar” sujeitos,
é preciso conhecê-los. O poder se realiza a partir da criação de saberes. Poder e
saber são indissociáveis.
Foucault perceberá que o disciplinamento dos corpos irá consolidar-se em
uma técnica de controle tanto da dimensão biológica desses sujeitos quanto
de seus desejos. Assim, podemos dizer que a disciplina irá transformar-se em
uma técnica de gestão humana. Isso significa que o tempo e o espaço vão ser
utilizados para controlar a multiplicidade dos corpos, levando-os a aumentar
sua produção para o nascente sistema capitalista. Mas atenção: Foucault não
reflete apenas sobre o poder na sua relação com o trabalho. Ao contrário, as
análises de nosso autor demonstram o modo como são criadas técnicas que
disciplinam toda a sociedade. Nesse sentido, as relações na fábrica (Figura
3.3) são apenas uma das modalidades de controle presentes também em es-
colas, exércitos, hospitais – e modernamente, em bancos, museus, meios de
comunicação e até mesmo filas. Por isso, tais técnicas de controle disciplinam
os corpos no interior de várias instituições e espaços. Elas são o resultado de
processos de circulação às vezes rápidos – modalidades de controle do exército
são repassadas, por exemplo, às escolas.

capítulo 3 • 67
Figura 3.3  –  Fábrica, uma forma de poder. Autor: Marc Ferrez.
Fonte: https://goo.gl/1b1Drs

Podemos dizer que as técnicas de controle nasceram a partir das transforma-


ções da emergente sociedade burguesa, cujos corpos eram disciplinados, em vários
espaços, para aumentar o fluxo produtivo. No entanto, tais técnicas se espalha-
ram pelo tecido social e alcançaram eficiência na distribuição e disciplina dos
sujeitos por meio da clausura e de seus princípios, como a minúcia e o detalhe.
Nesse complexo processo, as técnicas de disciplina buscam separar os espaços
de modo a estabelecer mecanismos de vigilância e controle por meio da divisão
minuciosa em subespaços, passando a controlar as pessoas que neles transitam,
operam ou trabalham. Assim, a regra de localização funcional das instituições
disciplinares – como a prisão e o hospital – codifica e hierarquiza espaços que,
antes, eram deixados livres e, por isso, prontos a vários usos. Tais espaços são cada
vez mais fechados, isolados, classificados, possibilitando a vigilância, a ruptura
de conversas perigosas – e seu uso específico e produtivo. Podemos dizer que a
disciplina cria um “espaço analítico” de forma a “vigiar o comportamento de cada
um” (FOUCAULT, 2004, p. 131). A relação do indivíduo com o espaço passa a
ser objeto de poder.
A clausura leva ao controle por meio da minúcia e do detalhe. Os cor-
pos, nesse sentido, são individualizados sobre os espaços, como o da prisão.
Dentro dessa lógica, o poder os distribui de forma a criar relações de controle

capítulo 3 • 68
e automação. A organização dos indivíduos em fila, por exemplo, possibilitou
crescente vigilância sobre os corpos, facilitando sua localização no espaço e, ao
mesmo tempo, fazendo dele elemento de organização de individualidades. Por
isso, com uma tática aparentemente simples como a fila, foi possível distribuir,
classificar e dividir os corpos a partir de semelhanças e diferenças. Pense na
escola. Cada aluno, de acordo com nosso autor, passa a ser alinhado a partir
de seu desempenho, sua idade e seu comportamento em diferentes filas, po-
dendo ser deslocado a outros alinhamentos de acordo com as expectativas de
gerenciamento da direção.
A sociedade se torna algo disciplinado, fruto de um cálculo preciso cujo objeti-
vo consiste na fabricação de “corpos dóceis”, isto é, automatizados. Para Foucault,
“é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado”. Por meio da disciplina, o poder tem a capacidade
de, ao mesmo tempo, classificar, controlar, adestrar e produzir um conjunto de
conhecimentos sobre os indivíduos. Podemos perceber que tais técnicas atuam por
meio da escala, a qual permite que os corpos sejam detalhadamente controlados,
a partir de elementos infinitesimais. Nesse processo, como você já deve ter perce-
bido, o corpo é o próprio objeto, o espaço em que se inscrevem relações de poder,
produzindo sujeitos autômatos. Mas ainda temos o controle sobre tempo, espaço
e movimento para domínio contínuo. Essa outra fórmula, a modalidade, per-
mite que o corpo seja controlado não apenas no espaço, mas também a partir de
seus gestos e de seu ritmo, tornando tanto sua rotina quanto seu comportamento
previsíveis e, portanto, controláveis.
Por tudo isso, o poder disciplinar consegue realizar dois movimentos
fundamentais de controle social. Pense em um hospital do século XVIII
(Figura 3.4). Nesse espaço, os sujeitos são classificados, observados e obje-
tos de um intenso controle que se encarna, entre outras coisas, no relatório.
Temos, nesse caso, a disciplina se exercendo sobre o indivíduo, que se torna
importante base de conhecimento para o poder. Por outro lado, todos esses
relatórios, essas anotações e descrições sobre cada paciente vão gerar infor-
mações para o nível mais alto do hospital. O que aconteceu? Esses dados cuja
base é o indivíduo irão, agora, representar a soma de todos esses sujeitos, isto
é, a população. Portanto, esse poder disciplinar opera como um mecanis-
mo de controle dual, ou seja, alcança dois polos: o indivíduo, de um lado,
e a população, de outro.

capítulo 3 • 69
Figura 3.4  –  Hospital, um espaço de disciplina. Autor: Oficina de Lisboa (1740).
Fonte: https://goo.gl/gwTt2E

Para concluir esta parte, na transição dos séculos XVII e XVIII, a aplicação
das técnicas disciplinares contribuiu para o controle dos corpos dos indivíduos,
tornados “dóceis”, instituindo a “anatopolítica do corpo”. Um poder microfí-
sico que atua de maneira infinitesimal na sociedade, cobrindo todos os sujeitos e
atuando na forma de rede, o que lhe permite gerenciar mesmo aqueles que estão
nas margens do sistema. O poder atravessa todo o tecido social. De acordo com
nosso autor, essa microfísica do poder, porém, é contrabalançada por outro me-
canismo, a biopolítica da espécie.
Neste período em que estamos discutindo, existe outro elemento fundamen-
tal: a entrada da vida, isto é, dos fenômenos próprios da espécie humana nos
cálculos do poder. Por isso, a dimensão biológica do ser humano – como o corpo
– passa a ser gerenciada pela política. Nesse sentido, o Estado se encarrega da vida
e de seus processos biológicos para controlá-los e modificá-los. Para nosso autor,
“deveríamos falar de ‘biopolítica’, o que faz com que a vida e seus mecanismos
entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do saber-poder um agente de
transformação da vida humana” (FOUCAULT, 1999, p. 292). O crescimento
populacional e a explosão demográfica do século XVIII colocam a espécie humana
e os seus processos biológicos como tema central do Estado, que cria mecanismos
de controle de nascimento, morte, fecundidade, migração. Em outras palavras, o
poder elaborou técnicas de controle populacional como quadros estatísticos por
meio dos quais é possível prever o futuro a partir das experiências do passado.
Novos saberes são então consolidados, como a Estatística e a Demografia.
Em síntese, podemos dizer que a espécie humana entra no jogo das estratégias
políticas do Estado, que instaura normas – mecanismos contínuos de regulação
e controle dessa população. Aqui, temos outro ponto muito importante: com

capítulo 3 • 70
o aparecimento de uma sociedade normalizada, isto é, atravessada por meca-
nismos de regulação e controle, o poder passa a se exercer tanto nos corpos
quanto na população. Isso significa que, por um lado, a disciplina se aplica aos
indivíduos, adestrando-os; por outro, o controle atua sobre a população a partir de
mecanismos de regulação, como a natalidade. Por isso, Foucault argumenta que
os mecanismos de disciplina e regulação podem ser aplicados tanto aos indivíduos
quanto à espécie.

Pan-óptico

Preste atenção no pan-óptico ilustrado na Figura 3.5.

Figura 3.5  –  Pan-óptico. Autor: Italiaugalde (2010). Fonte: https://goo.gl/Ps7Wxi

Como você pode perceber, pan-óptico é uma estrutura prisional, desenvolvida


por Jeremy Bentham, por volta de 1785, partindo dos princípios do racionalis-
mo. Sua vantagem está na estrutura, a qual, de maneira simples, possibilita que
apenas um guarda seja capaz de observar e vigiar todos os presos. O pan-óptico é
uma prisão circular cujo núcleo é tomado pela guarda central, ao passo que suas
bordas são compostas pelas celas dos prisioneiros. Outro detalhe importante: nela,
os fundos transparentes das celas são voltados para o centro, o que permite que o
funcionário vigie os presos a todo o momento.

capítulo 3 • 71
ATENÇÃO
Jeremy Bentham (1748–1832), filósofo e jurista inglês, tornou-se famoso pela ideali-
zação do pan-óptico, prisão ideal de confinamento e vigilância e gestão financeira. Bentham
(Figura 3.6) pertencia à corrente filosófica chamada Utilitarismo, que refletia sobre o com-
portamento humano a partir de uma categoria central: sua utilidade.

Figura 3.6  –  O filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham.


Autor: Henry William Pickersgill (1875). Fonte: https://goo.gl/3Pggti

Para coroar essa situação, a luz que sai da guarda central impede que os de-
tentos vejam o funcionário, quer seja ele guarda ou inspetor. Apesar de o detento
sempre ter a imagem da torre de vigília à sua frente e saber que está sendo vigiado,
ele nunca terá certeza de que está sendo de fato espionado. Essa relação tem
um efeito psicológico dramático, pois, após algum tempo, o prisioneiro absorve
a ideia de estar sendo vigiado e passa, com isso, a vigiar seus próprios gestos e
comportamentos. O indivíduo interioriza a vigilância. Assim, o controle passa
a atuar de dentro do próprio sujeito, e não mais de fora. “No panopticon, cada
um, de acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou por alguns outros; trata-se
de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto”
(Ibidem, pp. 220,221).

capítulo 3 • 72
REFLEXÃO
Você já ouviu falar no livro “1984”? O autor, George Orwell (1903–1950), narra a história
de uma sociedade completamente dominada por um único personagem, o Grande Irmão (Big
Brother, em inglês). A expressão pode ter levado à criação do programa de mesmo nome, que
alcança altos índices de audiência na versão brasileira (o BBB – Big Brother Brasil). O enredo
do livro nos conta que o Grande Irmão assume o poder após uma guerra global e, para mantê-
-lo, lança mão de uma série de artifícios semelhantes aos descritos por Foucault. As ruas, por
exemplo, são revestidas por enormes cartazes com mensagens do tipo: “O Grande Irmão está
de olho em você”. Ao mesmo tempo, teletelas estão espalhadas em lugares públicos e nos
recantos mais íntimos dos lares, criando um conjunto de mecanismos de vigilância e punição
impressionantes. A intimidade de todos é devassada por dispositivos técnicos.
Por outro lado, ninguém viu o Grande Irmão, cuja figura intimidadora sempre permanece
invisível atrás das câmeras. Como em um gigantesco pan-óptico, as pessoas se sentem ob-
servadas, mas não são capazes de observar. A devassa da intimidade é tão grande quanto a
da casa BBB (Big Brother Brasil). No entanto, o programa nacional coloca complexas ques-
tões: a vigilância autoritária da tela está se articulando a uma sociedade exibicionista? Explo-
rar a esfera privada de uma pessoa não está se tornando uma forma de participação pública?
Quais os efeitos dessas novas relações de controle que, agora, contam com a cumplicidade
da própria população? Ao contrário da obra, na qual as pessoas temiam o censor, isto é, o
Grande Irmão, não estamos querendo ser vistos e apreciados por esse olhar invisível? Até
que ponto não estamos contribuindo para criar nossos próprios pan-ópticos?

Saber e poder

Como já dissemos, a estrutura da prisão possibilita a coleta constante de in-


formações sobre o comportamento e o estado psicológico dos detentos. Aqui,
chegamos a um dos pontos centrais do pensamento de Foucault – a relação sa-
ber– poder, mencionada no início. Com a coleta de dados, a diretoria será capaz
de elaborar sofisticado e minucioso conhecimento, isto é, saber, sobre os prisio-
neiros – aptidões, características psicológicas, reações etc. Esse conhecimento, por
outro lado, possibilitará uma série de novas intervenções, ou seja, novos exercícios
de poder sobre a população carcerária. O que isso significa?
“Nas sociedades indo-europeias [...], saber e poder eram exatamente correspon-
dentes, correlatos, superpostos. Não podia haver saber sem poder” (FOUCAULT,

capítulo 3 • 73
1996, p. 49). Nesses termos, é possível se dizer que não existe poder sem vincu-
lação a um campo de saber. A recíproca é também verdadeira: não há saber que
não se ligue a um tipo de poder. O poder está em todos os lugares e é exercido
por profissionais que usam o conhecimento adquirido nos campos dos saberes
científicos (como a Psiquiatria, a Pedagogia etc.) para respaldar suas ações. Em
síntese, para Foucault, não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber. Isso significa que o conjunto de mecanismos de vigilância e poder
gera saber, que, por seu lado, permite novas modalidades e intervenções de poder.
Nesse sentido, poder e saber estão ligados um ao outro. De igual maneira, no
exemplo do hospital, as informações coletadas sobre os pacientes irão promover
um conjunto de conhecimentos sobre a população que, a partir daí, pode sofrer
novas intervenções.

O poder: uma nova concepção

Diante de tudo o que foi dito, agora é importante observar em Foucault ou-
tros aspectos diferenciais do poder. O primeiro deles diz respeito ao fato de que,
ao contrário do que vimos até aqui, o poder não se vincula, apenas, ao Estado.
Você se lembra de nossa longa discussão sobre a importância do Estado? E de
como o poder se relaciona a ele? Foucault procura demonstrar que o poder é
encontrado não apenas nas instituições clássicas do Estado Moderno. Como dis-
semos, o poder é sempre exercício, e esse exercício pode ser encontrado em toda
a sociedade nos seus menores espaços. Assim, ele tem uma dimensão que é, ao
mesmo tempo, microfísica e descentralizada. O poder é dispersão. Dentro dessa
linha de raciocínio, ele é reticulado e cria “redes de dominação”.
Além de ser exercício constante, descentralizado e microfísico, o poder ain-
da não opera negativamente. Isso significa que, para Foucault, o poder é também
capaz de gerar prazer – contrariamente às teorias clássicas nas quais ele era visto
como repressão ou opressão. O poder, dessa forma, não seria apenas o Estado,
sendo representado pela polícia, a impedir violentamente uma manifestação. De
acordo com nosso autor, esse aspecto repressivo é a sua mais evidente caracterís-
tica. Mas ele é mais do que isso. “O poder possui uma eficácia produtiva, uma
riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto que explica o
fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas
para aprimorá-lo, adestrá-lo”. (MACHADO, 1979, p. 16)

capítulo 3 • 74
ATENÇÃO
“Quando se definem os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção pura-
mente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. [...] O que
faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como
uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma
saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo
o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem como função reprimir”.
(FOUCAULT, 1979, p. 7, 8.)

As sociedades de controle

Nosso objetivo, agora, consiste em descobrir novas modalidades de poder que


surgem após a Segunda Guerra Mundial, no século XX. Um dos pensadores que
melhor refletiu sobre as modificações na natureza do poder, sempre dialogando
com Foucault, foi Gilles Deleuze. Como você deve se lembrar, Foucault situou
as sociedades disciplinares entre os séculos XVIII e XIX, atingindo seu apogeu
na primeira metade do século XX. Tais mecanismos de poder procedem à orga-
nização e administração dos meios de confinamento de modo que a vida de um
indivíduo consistia em um circuito infindável entre espaços fechados. Da família,
o sujeito ingressava na escola para, em seguida, adentrar no Exército e, mais tarde,
conquistar emprego em uma fábrica. Às vezes, era atendido em hospitais; even-
tualmente, era preso. Nesse sentido, a vida consistia em uma série de trajetórias
do indivíduo ao longo de espaços fechados. Grosso modo, tínhamos um projeto
de confinamento e distribuição dos corpos no espaço e ordenados no tempo para
compor forças produtivas e gerar sujeitos dóceis.

AUTOR
Gilles Deleuze (1925–1995), filósofo francês, foi um dos grandes pensadores do sé-
culo XX, responsável por obras seminais como o Anti-Édipo (1972), no qual discute Filosofia
e Psicanálise junto com seu companheiro de estudos, Félix Guattari (1930–1992). Para
Deleuze (Figura 3.7), a Filosofia sempre foi “a criação de conceitos”.

capítulo 3 • 75
Figura 3.7  –  O filósofo francês Gilles Deleuze, à direita sem cachecol.
Autor: Charles J. Stivale (2011). Fonte: https://goo.gl/9zo3HX

Esse modelo disciplinar sucedeu as sociedades de soberania nas quais se pro-


curava açambarcar a produção, isto é, extrair o máximo possível de recurso dos
súditos, dentro de uma lógica de poder em que o soberano tinha direito de vida e
morte sobre todos. Cronologicamente, temos o poder soberano seguido pelo dis-
ciplinar até meados do século XX. A partir desse período, de acordo com Deleuze
(1992), surge novo ordenamento de controle social. Para ele, essas instituições
de confinamento, as disciplinas, entraram, por sua vez, em crise diante de novas
forças sociais. Que forças são essas? “São as sociedades de controle que estão substi-
tuindo as sociedades disciplinares”. (DELEUZE, 1992, p. 220 – grifo do autor)
Em síntese:

•  Poder soberano (Foucault);


•  Poder disciplinar/sociedade disciplinar (Foucault);
•  Sociedade de controle (Deleuze).

capítulo 3 • 76
Em que medida, porém, essas novas formações sociais se diferenciam das ante-
riores? Para responder a essa questão, vamos acompanhar passo a passo as reflexões
de nosso autor. Nas sociedades disciplinares, temos elementos de controle estru-
turados em ambientes fechados, concretos e específicos; desse modo, a prisão e a
escola, por exemplo, atuam como moldes. Um molde consiste em um dispositivo
de disciplina que opera por técnicas de clausura, controlando por meio do deta-
lhe e da minúcia.
As sociedades de controle se fundamentam, por outro lado, em controlatos
–diferentes formas de domínio que podem ser consideradas “uma modulação,
como uma moldagem autodeformante que mudasse continuamente” (Ibidem, p.
220). Qual a diferença entre a lógica das disciplinas e a dos controlatos? Se a
fábrica era um espaço fechado que buscava o equilíbrio a partir da maximização
da produção e da queda dos salários, a empresa “é uma alma, um gás”. Com o
advento da empresa moderna, cria-se um estado de constante mudança a partir do
discurso da competência e do mérito, instituindo desafios, concursos e palestras.
Mais do que a fábrica, a empresa se esforça “em impor uma modulação para cada
salário” (Ibidem, p. 220). Isso significa que as variações salariais são moduladas a
partir de sistemas de prêmios, de modo que a empresa introduz, o tempo todo,
uma intensa rivalidade entre os funcionários. Os indivíduos são, dessa forma, co-
locados uns contra os outros a partir do princípio do “salário por mérito”. Nesse
caso, a modulação do salário – a sua variação – opera dividindo, separando, enfra-
quecendo os sujeitos.
Ao contrário, nas fábricas, os indivíduos tendiam a formar, apesar das dispu-
tas, um corpo interno com uma dupla vantagem: por um lado, permitia ao patrão
exercer o princípio disciplinar da vigilância, fiscalizando cada elemento da massa;
por outro, os sindicatos tinham maior potencial de mobilização coletiva. Portanto,
a passagem da fábrica para a empresa significa, para Deleuze, mudança não apenas
nas tecnologias, mas também na própria natureza do capitalismo. Com a empresa
substituindo a fábrica, a formação permanente tende a tomar o lugar da escola,
introduzindo uma nova forma de “controle contínuo” que suplanta a escola. Cada
vez mais, a formação se dá na rede empresarial, colonizando os espaços e as fun-
ções tradicionais do sistema escolar. Isso significa outra transformação. Se, nas
sociedades disciplinares, os indivíduos sempre recomeçavam os ciclos de vida, nas
sociedades de controle, nunca se termina nada, pois a vida passa a ser estruturada
em estados continuados de formação, de exame e de competições por mérito.

capítulo 3 • 77
Os mecanismos disciplinares atuavam em dois polos: enquanto a assinatu-
ra indicava o indivíduo, sua identidade, o número da matrícula permitia vigiar
o sujeito no interior da massa. Como vimos, esse tipo de poder cobria tanto
a totalidade quanto o indivíduo, a unidade mínima de formação coletiva. Já
as sociedades de controle deslocam a vigilância para a “cifra” – a senha, por
exemplo. “A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o
acesso à informação, ou a rejeição” (Ibidem, p. 222). Não estamos mais diante
do par indivíduo/massa; ao contrário, para o autor, os indivíduos se torna-
ram “dividuais”, ou seja, divisíveis. As massas, em contrapartida, tornaram-se
mercado, amostras, porcentagens – bancos de dados. Essa profunda mutação
pode ser observada no dinheiro. As sociedades disciplinares se estruturaram
em moedas cunhadas a ouro, medida-padrão das relações comerciais. Com o
advento da nova organização social, o padrão-ouro foi substituído por novas
relações, entre elas as trocas flutuantes, isto é, os fluxos de capital, que ins-
tauram novas modulações. Esse sistema de controle atua sobre a economia
nacional, colocando em risco a estabilidade das nações.
As transformações também afetaram a natureza das máquinas, dispositivos
que exprimem as forças sociais que lhes deram origem. Por exemplo, nas socie-
dades soberanas, as máquinas eram simples como alavancas, roldanas e relógios.
Com as disciplinas, surgiram “máquinas energéticas”, baseadas na eletricidade, no
aço e na capacidade de produção de bens em massa. As sociedades de controle, por
sua vez, modificam a natureza dos aparelhos de alta produção energética, substi-
tuindo-os por máquinas de Informática, ou seja, os computadores, e instauram o
“capitalismo de sobreprodução”.
No capitalismo do século XIX, baseado na fábrica, o capitalista não só de-
tinha a posse da propriedade privada, como também poderia possuir a casa do
operário e ser o dono da escola. O mercado, por sua vez, era controlado por
especializações, conquista imperial ou mesmo queda no custo da produção. Nas
sociedades de controle, porém, o sistema se reestrutura com ênfase no setor de
serviços, na montagem de peças destacadas ou na compra de produtos acabados.
Esse novo ordenamento aposta nas novas tecnologias (Figura 3.8) como dispo-
sitivos orientados para o produto, isto é, o mercado. “O que ele [o sistema] quer
vender são serviços, e o que quer comprar são ações”.(Ibidem, p. 223)

capítulo 3 • 78
Figura 3.8  –  Novas tecnologias nas relações sociais. Autor: Rodrigo Padula (2016).
Fonte: https://goo.gl/PG3wZV

De acordo com Deleuze (1992), o capitalismo passa a atuar de forma dis-


persiva a partir do uso de cifras e dados moduláveis ao sabor do mercado e das
oscilações do fluxo de capital. A empresa moderna é constituída, em larga medida,
por gerentes. A conquista de mercado se dá por tomada de controle e pela previsão
do preço das ações na bolsa de valores articulando análise de diferentes dados e
estatísticas. A estratégia consiste na fixação de cotações, e não apenas na redução
dos custos da produção, dilema clássico das sociedades disciplinares. A agregação
de valor ao produto requer mais aplicação das novas tecnologias.
O setor de vendas se torna a alma da empresa, e, em consequência, o mar-
keting desponta como novo fenômeno social, incumbido de imprimir à unidade
empresarial uma nova característica – sua alma, isto é, uma personalidade. “O
marketing é agora o instrumento de controle social” (Ibidem, p. 224), de modo
que a marca da empresa passa a encarnar credibilidade, poder, status social e,
ainda, um novo estilo de vida. Ao introduzir e adensar a dimensão simbólica na
empresa, o marketing imprime personalidade às relações de mercado, não tão
compreensíveis às sociedades disciplinares, reduzidas aos processos de aumento de
produção e redução salarial. A venda do produto passa a ser atravessada por mo-
dalidades simbólicas de persuasão que se sobrepõem à sua utilidade. O processo
de venda se torna, ainda mais, uma complexa relação social, em que os desejos
humanos são identificados, monitorados e despertados. O indivíduo passa a ser
constantemente monitorado como o centro de persistentes técnicas de convenci-
mento que tendem a fazer do ato de compra uma perpétua repetição de anseios

capítulo 3 • 79
inconscientes. Nesse sentido, o deslocamento das táticas e a ênfase nas vendas
contribuem para a edificação de uma nova natureza sistêmica, capaz de “dividir” o
indivíduo em prestações, cartões de crédito, senhas (Figura 3.9).

Figura 3.9  –  O código numérico como fator de inclusão e exclusão.


Autor: Ana Volpe/Agência Senado (2016). Fonte: https://goo.gl/1VXmTe

O conjunto dessas novas tecnologias, por sua vez, contribui para que o con-
trole dos espaços enclausurados das sociedades disciplinares se desloque para
espaços abertos. As barreiras físicas são substituídas por mecanismos eletrônicos
capazes de detectar a localização do indivíduo em qualquer espaço. Como resul-
tado, o que passa a valer não é mais a barreira, mas o dispositivo eletrônico de
detecção. No regime das prisões, por exemplo, o confinamento está sendo repos-
to, pelo menos para penas mais leves, por tornozeleiras eletrônicas. Nas escolas,
em função da aplicação cada vez mais consistente de mecanismos de formação
continuada e avaliação permanente, a empresa está sendo introduzida em todos
os níveis escolares. Na rede hospitalar, a especialização fragmenta o corpo do
indivíduo, transformando-o em “divíduo”, passível de múltiplas intervenções de
diferentes especialistas.

Com a “Era do Acesso” ocorre, portanto, uma mudança de perspectiva que traz para o
centro da atividade econômica o controle do tempo do consumidor. O consumidor não
é mais um alvo do mercado, ele torna-se o próprio mercado, cujo potencial é preciso
prospectar e processar.

capítulo 3 • 80
Pois como argumentam os consultores de marketing Don Peppers e Martha Rogers,
não se trata mais de vender um único produto para um maior número possível de
consumidores, mas, sim, de tentar vender para um único consumidor o maior número
possível de produtos, durante um longo período de tempo. Em outras palavras, é preciso
acessar o consumidor e torná-lo cativo. (SANTOS, 2011, p. 143.)

Comunicação e política vai ao cinema

Código 46 (2003), filme de Michael Winterbottom (Figura 3.10). Sinopse: em uma


sociedade futurista, as pessoas não podem sair nem entrar nas cidades a não ser por
meio de pontos de checagem. Para viajar, precisam de salvo-conduto. Os cidadãos
sem documentos estão excluídos da cidade em bairros pobres. William (Tim Robbins)
é designado para investigar um caso de fraude em outra cidade, quando se vê entre o
dever e a paixão.

Figura 3.10  –  Autor do filme Código 46, Michael Winterbottom.


Autor: Siebbi (2009).Fonte: https://goo.gl/UPUR4c

capítulo 3 • 81
A sociedade do espetáculo

Agora, vamos discutir uma nova teoria política, que teve grande influência nos
anos 1960 e que contribuiu, também, para as reflexões sobre o papel da mídia e
a emergência do espetáculo como forma de compreensão da sociedade moderna.
O autor responsável pela formulação da ideia de sociedade do espetáculo, Guy
Debord (1931–1994), discute a importância crescente da visibilidade na cons-
trução do indivíduo. Ao contrário dos dois pensadores anteriores, ele pode ser in-
serido dentro da teoria marxista. Por isso, antes de refletirmos sobre os principais
temas de Debord, estudaremos os conceitos marxistas de ideologia e alienação
que irão ajudar-nos a compreender a lógica do pensamento desse intelectual e
militante francês.

Ideologia e alienação

No entendimento de Marx, a sociedade civil é um sistema de relações so-


ciais que organiza a produção econômica, como a agricultura, a indústria e o
comércio, e se realiza em instituições sociais, como a família, a igreja e, moder-
namente, os meios de comunicação. Por isso, além de sua estrutura propriamente
econômica, a sociedade conta com dimensão superestrutural, um espaço no
qual as relações sociais são representadas por ideias e valores. Nesse complexo
processo, as classes sociais são criadas, causando antagonismos entre os dois
sujeitos históricos clássicos, o burguês, que detém a posse privada dos meios
de produção, e o trabalhador, que vende sua força de trabalho. Dentro dessa
linha de raciocínio, o conflito se encarna, em termos mais abstratos, na relação
capital e trabalho.

AUTOR
Karl Marx (1818–1883), pensador alemão, foi responsável pela elaboração da maior
crítica ao sistema capitalista até hoje feita. Partiu da ideia de que o motor da história
humana é o conflito entre classes sociais, as quais se configuram entre burgueses e
trabalhadores. Marx (Figura 3.11) analisou a sociedade como uma estrutura dividida entre
poderes antagônicos que quase sempre se apresentam de maneira invertida; daí a im-
portância do conceito de ideologia.

capítulo 3 • 82
Figura 3.11  –  O pensador alemão Karl Marx. Autor: John Jabez Edwin Mayall (1875).
Fonte: https://goo.gl/Siz4Mn

Ao analisar o conflito capital/trabalho, Marx procurou entender a causa da


manutenção da ordem social e encontrou suas raízes na ideologia. Apesar de não
ser responsável por sua primeira formulação, o pensador alemão imprimiu novo
sentido ao termo. Para ele, diante da necessidade que tem o ser humano de dar
sentido à realidade e à vida, é preciso compreender as formas de conhecimento
ilusório que mascaram os conflitos sociais. “Os homens, até hoje, sempre tive-
ram falsas noções sobre si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser” (MARX,
2006, p.1). Dentro dessa linha de raciocínio, o conceito adquire sentido nega-
tivo, pois serve como instrumento de dominação e, por isso, passa a fazer parte
dos jogos de poder e das tentativas de manutenção de privilégio. Nesse sentido,
a ideologia atua conformando e organizando maneiras de pensar – e agir sobre
a realidade concreta.
Em grande medida, seu poder é caracterizado por ser insidioso e invisível.
Assim, suas próprias vítimas tendem a partilhar de seu caráter ilusório. Podemos
dizer que, enquanto falsa consciência, a ideologia pode contribuir para natura-
lizar as relações sociais – por exemplo, no caso do discurso machista tradicional,
em que a mulher é vista como naturalmente propensa a tarefas restritas ao
ambiente familiar. Desse modo, a formação social brasileira, estruturada a partir
do domínio masculino, é escondida, e, ao mesmo tempo, o papel da mulher

capítulo 3 • 83
na sociedade é reduzido (e naturalizado) a tarefas domésticas. A ideologia faz
pensar que mulheres são donas de casa natas, escondendo o processo histórico
de dominação masculino que contribuiu para determinar um papel social vin-
culado quase que exclusivamente ao lar.
Dentro da visão de Marx, a ideologia também atua encobrindo relações
sociais de exploração. Por exemplo, ela impede que o trabalhador muitas vezes
se veja como sujeito explorado na relação capital/trabalho. Para Marx, é essa
relação que produz, no final do processo, o lucro ao capitalista. Outra forma
de ação da ideologia é a generalização dos interesses de uma classe ou mesmo
de um grupo social para toda a sociedade. Nessa linha de raciocínio, podemos
mencionar o discurso dos jornais tradicionais que estariam defendendo não o
interesse de toda a nação, mas apenas de seus proprietários e aliados políticos.
Dessa forma, para a concepção marxista, discursos como “o leitor deseja”, “a na-
ção quer” seriam, na verdade, expressões ideológicas de determinado segmento
social, que tende a universalizar seus interesses, colocando-os como bandeiras
de toda a sociedade.
Em síntese, a ideologia é um conjunto de ideias e de valores sistematizados
de forma a influenciar condutas e ações de grupos sociais por meio de estratégias
de naturalização, encobrimento e universalização (entre outras). Como resul-
tado, o mundo aparece invertido. Por tudo isso, tais ideias tendem a produzir
alienação, pois o trabalhador deixa de se ver em sua própria criação – ele não
se reconhece no produto do trabalho, que se transforma em algo estranho a ele
(primeiro sentido do termo). Mas alienação tem ainda um segundo significa-
do: nele, o trabalhador não se vê mais como sujeito histórico e, por isso, torna-se
incapaz de perceber seu potencial de transformação política. A alienação, nesse
sentido mais profundo, contribui para que o trabalhador não se veja mais
como sujeito capaz de mudança social.

Uma análise do espetáculo

AUTOR
Guy Debord (1931–1994), teórico francês marxista, era também escritor e documen-
tarista. Suas ideias influenciaram as manifestações de maio de 1968. Foi também ativista
político, participando de várias organizações militantes da época, como a Internacional Situa-

capítulo 3 • 84
cionista. Sua obra mais famosa, A Sociedade do Espetáculo (1967), tornou-se um clássico
nos estudos marxistas do século XX.

Figura 3.12  –  Guy Debord, ao centro. Autor: Ralph Rumney,éditions Allia (2011).
Fonte: https://goo.gl/MJCJ4F

De antemão, Debord entende a sociedade moderna como uma grande acu-


mulação de espetáculos, isto é, de representações disseminadas no tecido social das
mais diversas formas – inclusive pelos meios de comunicação de massa e da TV,
em particular. Dentro dessa linha de raciocínio, tais imagens espetaculares criam
um mundo à parte, que exige apenas atividade de contemplação e passividade.
Por isso, nosso autor argumenta que esse complexo processo moderno leva à au-
tonomia das imagens, ou seja, elas aparecem a cada um de nós como um mundo
desligado das relações de produção e sem interesse algum. Dessa forma, o espe-
táculo se apresenta – a exemplo da ideologia – como algo neutro, desinteressado,
descomprometido com a dimensão política.
Segundo as reflexões de Debord, o espetáculo tende a concentrar a atenção
e a consciência do indivíduo, deslocando-as dos problemas mais importantes
da atualidade. Por isso, ele ilude nosso olhar e cria falsa consciência. Essa
abordagem do autor nos leva a outro ponto importante: esse processo não

capítulo 3 • 85
pode ser considerado mera soma de representações. “O espetáculo não é um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por
imagens” (DEBORD, 2003, p. 14). Sob essa ótica, o espetáculo tem como
objetivo usar de sua aparência para desviar a consciência humana dos reais
problemas políticos, econômicos e sociais. Mas, na medida em que se apresen-
ta como coisa visível, ele abusa de um sentido humano específico – a visão – e,
por outro lado, é resultado de inovações técnicas massivas, como é o caso das
imagens de televisão. Em síntese, apesar de se apresentar como imagem, o
espetáculo atua como relação social, adensada pela tecnologia, cujos efei-
tos tendem a alienar sujeitos sociais.

ATENÇÃO
O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especiali-
zadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão
o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão, o sentido mais
abstrato e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade
atual. (DEBORD, 1997)

Ainda seguindo o pensamento de nosso autor, podemos dizer que o es-


petáculo expressa o coração do sistema por meio de imagens. Pense aqui nas
diversas formas de entretenimento de nossos tempos – os programas de audi-
tório, os shows musicais, o Big Brother Brasil (BBB), a cobertura da morte de
cantores famosos. Talvez um dos maiores exemplos de espetáculo, no século
XX, tenha sido o Nazismo. Por traduzir a política em um conjunto de even-
tos – multidões, retratos gigantescos, shows musicais, cores fortes, fotografia
–, o Nazismo (Figura 3.12) se estruturou dentro dessa lógica. Ele privilegia
sentidos – como audição e visão – e, ao mesmo tempo, atua como relação
social de controle do imaginário coletivo, buscando consolidar-se a partir do
gerenciamento emocional da população. Como resultado dessa proliferação de
processos na sociedade moderna, o espetáculo constrói, para nosso autor, um
modelo de vida social.

capítulo 3 • 86
Figura 3.13  –  Nazismo, o espetáculo na sociedade alemã.
Autor: German Federal Archives (1934). Fonte: https://goo.gl/y9BF2O

Por isso, ele se realiza duplamente na medida em que, por um lado, produz
imagens em massa e, por outro, atinge seu ápice no consumo. “A forma e o con-
teúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema
existente” (Ibidem, p. 15). Sua linguagem é a produção incessante de representa-
ções que tendem a encobrir as relações de produção e domínio que estão na base
do sistema. Como consequência, o autor pondera que:

•  A realidade é invadida pela contemplação do espetáculo;


•  O indivíduo tende a aderir positivamente a esse estilo de vida;
•  A alienação é a essência desse novo modelo social.

Desenvolvendo essa linha de reflexão, Debord argumenta que o espetáculo


tanto se torna o processo de universalização das aparências quanto faz da vida hu-
mana mera aparência. Assim, ele passa a ser uma “negação visível da vida” (Ibidem,
p. 16), uma vez que expressa na forma sensorial – a das imagens, por exemplo – o
sentido de uma sociedade que busca o controle por meio da alienação. O papel
desempenhado pelas imagens é tão importante que passa a ser representado pela
equação: “o que aparece é bom, o que é bom aparece” (Ibidem, p. 17). Diante

capítulo 3 • 87
desse quadro, a única exigência – para Debord – é a “aceitação passiva”, que, por
sua vez, já está inscrita na maneira pela qual as imagens traduzem (e ocultam) a
realidade do sistema. Em síntese, o espetáculo continua na dimensão simbólica o
mesmo processo de submissão dos homens vivos, desencadeado na economia. A
degradação do “ser” em “ter”, característica da fase anterior do capitalismo, teria
sido substituída pela ênfase não apenas no “ter”, mas no “parecer”.
O espetáculo como adorno de objetos produzidos, exposição da lógica do sistema
e setor avançado da economia que produz imagens/objetos em massa se consolida
como vetor de produção social e modelador de estilos de vida. Seguindo esse raciocí-
nio, o mundo real é representado por simples imagens que se tornam seres reais e, em
nível mais profundo, motivações eficientes, produzindo comportamentos hipnóticos.
A lógica desse processo social formula, em nível mais amplo, tendência social de “fa-
zer ver” por imagens um mundo concreto que não é mais diretamente apreensível.
As imagens, que corporificam a dimensão social do espetáculo, assumem o primeiro
plano. Para nosso autor, o espetáculo é o “herdeiro de toda a fraqueza do projeto filo-
sófico ocidental” (Ibidem, p.19). Isso significa, para ele, que a compreensão ocidental
do mundo privilegiou a visão dentro de uma lógica voltada para o olhar.
Por todos esses aspectos, o espetáculo define a tênue linha entre o permitido
e o possível, limitando pensamento e ação. “O espetáculo é a conservação da in-
consciência na modificação prática das condições de vida” (Ibidem, p. 23). Para
Debord, os meios de comunicação de massa são a expressão mais acabada do es-
petáculo moderno que prioriza imagens, consumo e alienação em detrimento da
vida real, da crítica e da transformação histórica.

RESUMO
Em síntese:
•  Aprendemos que o poder soberano consiste no direito de vida e morte do monarca sobre
seus súditos;
•  Refletimos sobre os mecanismos de disciplinamento do tempo e do espaço, transformando
os indivíduos em corpos dóceis;
•  Descobrimos que o poder remete ao saber, e vice-versa;
•  Aprendemos que o poder é microfísico e descentralizado;
•  Descobrimos que, além da repressão, o poder produz prazer;
•  Estudamos as sociedades de controle e os controlatos;
•  Descobrimos que os controles modernos são mais sutis, suaves e eficazes que os contro-
les disciplinares, pois os primeiros atuam por modulações;

capítulo 3 • 88
•  Refletimos sobre os conceitos de ideologia e alienação;
•  Estudamos que as sociedades capitalistas modernas se estruturam na produção e disse-
minação de espetáculos, entendidos como relação social mediatizada por imagens que criam
alienação política;
•  Discutimos que o espetáculo produz alienação.

ATIVIDADE
1) Discuta e compare as semelhanças e diferenças entre a sociedade disciplinar e a socie-
dade de controle.

2) Reflita sobre o conceito de espetáculo, desenvolvido por Guy Debord.

EXERCÍCIO RESOLVIDO
1) As sociedades disciplinares criam mecanismos de controle em espaços fechados, isola-
dos e de confinamento a partir do tempo e espaço. As sociedades de controle são abertas,
de modo que as novas tecnologias de informação permitem que o poder se exerça em es-
paços abertos. As sociedades disciplinares incidem sobre o indivíduo e a massa, ao passo
que as de controle criam dados numéricos. As senhas do controle substituem os portões de
entrada física (nas fábricas) das disciplinares. Nestas últimas, cada ciclo concluído implicava
o início de outro: da escola para o Exército, por exemplo. Nas sociedades de controle, o
domínio se faz por meio de formação continuada, meritocracia e prêmios. Dessa forma, nas
disciplinas temos moldes, ao passo que nos controlatos temos modulações permanentes de
formação que substituem a escola. Nas disciplinas, o dinheiro tinha o ouro como base; nas
sociedades de controle, temos o capital financeiro e seus fluxos.

2) Para Debord, o espetáculo não consiste apenas em soma de imagens espetaculares e


sensacionais. Ao contrário, o conceito é definido como uma relação social que liga, de um
lado, a própria estrutura do sistema e, de outro, os indivíduos. A característica fundamental
dessa relação social é que ela atua produzindo alienação e passividade na medida em que
opera no sentido de que não percebamos as reais contradições do sistema. Sua função fun-
damental, portanto, consiste em produzir alienação e passividade, retirando dos sujeitos sua
capacidade de transformação histórica e política.

capítulo 3 • 89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. São Gonçalo: Ebook, 2003.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: 34, 1992.
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2005.
____________. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999
____________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1994.
____________. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2004.
GAMA, G; GAMA, C; PINHO, L. Foucault, o Corpo e o Poder Disciplinar. Revista Digital
efdeportes, Buenos Aires, ano 14, n. 136, set. 2009. Disponível em: https://goo.gl/QFicBQ.
[Acesso em 2017 abr 25.]

capítulo 3 • 90
4
O espetáculo
moderno e a
globalização
O espetáculo moderno e a globalização

As formas do espetáculo moderno

Você se lembra de que, no capítulo anterior, discutimos a ideia central de espe-


táculo durante o final da década de 1960 e início dos anos 1970? Uma sociedade
nunca se congela no tempo e no espaço; ao contrário, é algo dinâmico, sempre im-
previsível e que sofre profundas transformações. O espetáculo já não é o mesmo –
ele mudou em vários aspectos, especialmente com o advento das novas tecnologias
de informação. Neste capítulo, refletiremos sobre as modificações na economia
do espetáculo e mostraremos a você as relações que ele tem com uma importante
mudança no panorama mundial: a globalização. Vivemos tempos complexos, que
exigem muita reflexão. A própria ideia de nação sofreu profundas mudanças na
sua natureza, e as novas tecnologias contribuíram decisivamente para a construção
de outra paisagem global.
No entanto, que tipos de mudanças são essas? As nações ainda cum-
prem os mesmos papeis de antigamente? Que modificações ocorreram na
economia? Como a política está sendo influenciada por essas mudanças? E,
como falávamos antes, em que medida os espetáculos atuais se diferenciam
daqueles dos anos 1970? São essas as questões que tentaremos responder nas
próximas páginas.

OBJETIVOS
Os objetivos centrais deste capítulo são:
•  Discutir o conceito de espetáculo moderno;
•  Refletir sobre suas principais diferenças em relação aos anos 1960 e 1970;
•  Estudar o fenômeno da globalização;
•  Compreender como o Estado Moderno está perdendo legitimidade frente à socieda-
de globalizada;
•  Refletir sobre as novas relações entre Estado e economia globalizada;
•  Discutir as tentativas de controle da política nesse novo panorama mundial.

capítulo 4 • 92
O espetáculo na vida política e social moderna

O primeiro ponto que precisamos rever aqui é bem simples, mas, ao mesmo
tempo, muito importante: o espetáculo é um dos princípios organizadores de vá-
rias dimensões da sociedade, isto é, da economia, da política e também da cultura.
Isso significa que ele não pode ser resumido apenas a um conjunto de imagens,
lembra-se? O espetáculo é, ao contrário, uma relação social que liga todas essas
dimensões da sociedade. O ponto a se considerar agora é que ele se tornou mais
sofisticado para atender às necessidades do público moderno. O pensador que
dará continuidade a essas reflexões é Douglas Kellner.

AUTOR
Douglas Kellner (1943), professor da Universidade da Califórnia, em Los Ange-
les (EUA), desenvolveu vários trabalhos sobre mídia e cultura na contemporaneidade.
É um dos maiores representantes dos estudos sobre a cultura moderna e sua relação
com as novas tecnologias. Suas reflexões recebem influência dos mais variados campos
teóricos, construindo uma síntese intelectual de grande originalidade. Entre suas obras,
destaca-se A Cultura da Mídia (2001).

Para Kellner (2004), as diversas formas de entretenimento invadiram o


espaço das notícias e informações, criando o que ele define por infoentreteni-
mento. Você deve se lembrar de que, no capítulo anterior, quando discutimos
o espetáculo, refletimos sobre as décadas de 1960 e 1970. Naqueles períodos,
tínhamos as chamadas mídias tradicionais, como TV, rádio etc. No entanto,
com o advento das novas tecnologias, presenciamos a articulação desses veícu-
los com o ciberespaço. Uma das grandes inovações da década de 1980 diz res-
peito à articulação entre mídias tradicionais e novas tecnologias/novas mídias,
o que possibilita a criação de espetáculos que ligam o ciberespaço à cultura
moderna. Quantos são os shows que podem ser transmitidos tanto pela TV
quanto pela internet? Pense, por exemplo, nas celebridades que se tornaram
famosas por meio on-line.

capítulo 4 • 93
CONCEITO
Ciberespaço (Figura 4.1) designa os novos meios de comunicação que surgem da
interconexão mundial dos computadores. Diz respeito não apenas à infraestrutura, mas tam-
bém ao volume de informações que trafega pela rede e os seres humanos que nela navegam.
Já o termo cibercultura, por sua vez, enfatiza o conjunto de práticas, atitudes, modos de
pensamento e valores que se desenvolvem juntamente ao ciberespaço. O pensador Pierre
Lévy elabora tais conceitos em sua obra Cibercultura (1999).

Figura 4.1 – Ciberespaço. Autor: Everaldo Coelho (2005).


Fonte: https://goo.gl/ztrgRG

O ponto crucial aqui é refletir sobre o computador como tecnologia que pos-
sibilita, ao mesmo tempo, tanto uma nova experiência social quanto uma ferra-
menta que modifica a própria produção de conhecimento humano. Nesse senti-
do, pensamento, linguagem – e a sensibilidade – são afetados pelo advento dessa
tecnologia que transforma, por sua vez, as relações sociais, desde a educação até os
processos econômicos. Seguindo essa linha de raciocínio, tais dispositivos são res-
ponsáveis pela produção de inovadoras modalidades de conhecimento e interação
social. Em síntese, trata-se de outra relação antropológica, no sentido de que o ser
humano agora dispõe de tecnologias que contribuem para instituir novas formas
de sociabilidade – como, por exemplo, as comunidades virtuais, nas quais in-
divíduos de diferentes partes do globo se comunicam. Um dos resultados mais

capítulo 4 • 94
surpreendentes é a criação da “inteligência coletiva” – conhecimentos elaborados
conjuntamente e que podem ser compartilhados por todos que estão conectados.
A inteligência coletiva pode, agora, ser reformulada como “cérebro global” me-
diante a colaboração dos usuários.
O resultado dessa ligação entre tecnologia, espetáculo e cultura é que “a vida
político-social também é cada vez mais moldada pelo espetáculo”. (KELLNER,
2004, p. 5) O entretenimento, portanto, é inseparável da informação, e esta, por
sua vez, está também ligada a ele. O autor define como infoentretenimento essa
articulação entre entretenimento e informação. Esse conjunto de mídias (tra-
dicionais e novas) cria e dissemina produções simbólicas destinadas a despertar
fantasias, contribuindo para modelar desejos, emoções e estilos de vida.

CONCEITO
Infoentretenimento é o termo usado para designar o modo como as diferentes formas
de entretenimento foram, cada vez mais, colonizando os espaços sociais da mídia em geral.
Como resultado, temos o entrelaçamento entre informação e diversão. A vida de celebri-
dades passa a ser foco de atenção das mídias, como a cobertura da vida e morte do cantor
Michael Jackson (1958–2009).

Não pense, porém, que os espetáculos são algo novo, que apenas surgiram no
século XX. Ao contrário, podemos observar formas de espetáculo nas mais antigas
civilizações, como as Olimpíadas, na Grécia, ou ainda os combates de gladiadores,
na Roma Antiga. Mesmo Maquiavel, o genial teórico da política (1469–1527), já
aconselhava o governante a fazer uso de espetáculos como meio de controle social.
O que define nosso período, portanto, não se trata desse fenômeno em si, mas
do cruzamento do espetáculo com as novas tecnologias (Figura 4.2), formando o
tecnoespetáculo, ou seja, o espetáculo narrado pelos meios de comunicação de
massa. Nesse sentido, grandes espetáculos políticos modernos têm sua arquitetura
construída em vista de sua transmissão tanto pela TV quanto pela mídia on-line.
Por isso, a tecnologia influencia a natureza do espetáculo moderno – sua forma,
veiculação e conteúdo.

capítulo 4 • 95
Figura 4.2  –  Infoentretenimento.
Autor: Rodrigo de Paula (2016). Fonte: https://goo.gl/G1d44B

AUTOR
Pierre Lévy (1956), teórico francês que conquistou vários prêmios internacionais, no-
tabilizou-se pelos estudos das novas tecnologias da informação e seu profundo impacto
na produção e natureza do conhecimento humano. Lévy (Figura 4.3) elaborou conceitos
básicos para o entendimento dessa nova dimensão, tais como cibercultura e ciberespaço.
Atualmente, leciona na Universidade de Ottawa, no Canadá.

Figura 4.3  –  O teórico francês Pierre Lévy.


Autor: Damião Francisco (2009). Fonte: https://goo.gl/Jq6bsm

capítulo 4 • 96
CONEXÃO
As Olimpíadas começaram na Grécia Antiga – no ano 776 a.C., na cidade de Olímpia – e
foram celebradas até o ano 393. Esses jogos atléticos (Figura 4.4) disputados entre as ci-
dades-estado tinham importante caráter não apenas religioso, mas também político e social.
Para você ter uma ideia, durante o período das Olimpíadas os conflitos eram suspensos e
se conquistava harmonia provisória – a chamada “paz olímpica”, que permitia aos atletas se
deslocarem em segurança por toda a região. Podemos dizer que tais jogos foram um dos
maiores espetáculos da Antiguidade.

Figura 4.4  –  Jogos gregos. Autor: Agência Brasil (2016).


Fonte: https://goo.gl/7Bpphc

Diálogo entre autores: Debord e Kellner

Como você deve ter observado, Douglas Kellner (1943) está dialogando com
Guy Debord (1931–1994), tendo como ponto de reflexão a ideia de espetáculo e
a sociedade de consumo. Como já vimos, a realidade tende a ser substituída por
imagens, e estas, por sua vez, adquirem o estatuto de realidade. Dessa forma, se-
riam essas imagens substitutivas que estariam guiando e em larga medida criando
um “comportamento hipnótico”. Dentro dessa linha de pensamento, o espetáculo
adquire o poder de levar a ver a realidade a partir do seu ponto de vista, que é
atravessado pelos interesses dos donos das corporações que os produzem. Como
resultado desse complexo processo, o indivíduo moderno é levado a ver o mundo

capítulo 4 • 97
pelas lentes desse jogo de poder, que irá priorizar um sentido fundamental do ser
humano: a visão.
Por isso, o espetáculo enfatiza tudo aquilo que se dá a ver; mostra-se, enfim,
prioriza o sentido da visão, criando e disseminando imagens. “O que corresponde
ao espetáculo para Debord é, dessa forma, o espectador, o agente e consumidor de
um sistema social relacionado à submissão, ao conformismo e ao cultivo de um
diferencial vendável”. (KELLNER, 2004, p. 6) Portanto, a sociedade do espetá-
culo é um espaço que produz passividade e alienação, isto é, alcança o potencial
crítico do cidadão e o transforma em mero consumidor. Como resultado, tem-se
a diluição da crítica e a disseminação de produtos – e sua compra – a partir de
mecanismos culturais como filmes, shows, revistas, programas de auditório etc.
Kellner (2004) concorda, em grande parte, com essa análise, enfatizando al-
guns aspectos centrais e ampliando outros. Para ele, por exemplo, o espetáculo
é um fenômeno moderno da cultura da mídia e que representa valores atuais.
Assim, se quisermos entender nossa sociedade, temos de acompanhar e refletir
sobre suas produções culturais, ou seja, a forma como essa sociedade está criando
a cultura do entretenimento, que representa um de seus valores mais profundos.
Para estudarmos uma sociedade, não precisamos, por exemplo, analisar apenas
sua dimensão econômica; ao contrário, podemos refletir sobre toda a sociedade a
partir de suas produções culturais e seu consumo.
O processo de modernização social se deu pelo consumo, em especial durante
o século XX, quando se consolidou a produção em série de objetos. Nesse sentido,
a cultura do consumo está vinculada a um complexo conjunto de elementos, como
valores, práticas sociais e instituições que contribuíram para definir a modernida-
de ocidental. Esse conjunto articulado de percepções e ações contribuiu, em larga
medida, para o aumento exponencial do consumo na contemporaneidade. Sendo
assim, o consumo se converteu em uma das questões mais importantes da vida
social, pois os valores associados a ele passaram a invadir outras áreas da sociedade.
Quais valores são esses? Habermas (2003), por exemplo, reflete sobre a co-
lonização da esfera pública pelos valores de mercado. Podemos também ob-
servar que, além de terem se tornado foco crucial da vida moderna, os valores
da cultura de consumo adquirem tamanho prestígio, que se espalham por ou-
tras áreas da vida humana. “A motivação básica dos consumidores modernos é
um anseio de experimentar na realidade aqueles prazeres criados e desfrutados
pela imaginação, um anseio que resulta num consumo incessante da novidade”.
(CAMPBELL, 2001, p. 132)

capítulo 4 • 98
Uma vez que esses valores são tão importantes e representam tanto de
nossa sociedade, eles têm, por sua vez, um potencial tremendo de influenciar
comportamentos sociais. São, por exemplos, os filmes de Hollywood que, em
grande medida, tendem a moldar hábitos e, assim, expressar valores de uma
sociedade que se organiza a partir do consumo de produtos simbólicos. Além
disso, os diversos conflitos sociais são ainda narrados por meio de uma fór-
mula – o espetáculo. Assim, as sociedades modernas foram responsáveis pela
elaboração de um padrão narrativo, que molda fatos e eventos reais a partir
da lógica do espetáculo.

CONEXÃO
Como vimos anteriormente, Thompson (1998) rediscute os conceitos de público e pri-
vado a partir de dois princípios. O primeiro deles aponta para público como relativo a Estado,
ao passo que privado se refere à dimensão econômica e familiar. No entanto, seu segundo
princípio vincula público a visível e privado a secreto. Essas duas ideias de visibilidade e invi-
sibilidade estão, por sua vez, presentes no modo como a mídia atua sobre o espaço público.
Já refletiu sobre isso? O espetáculo, por exemplo, pode ser usado pela mídia como forma
de hipervisibilidade, ou seja, de cobrir determinado fato de tal maneira que ele passa a ser
o tema central das discussões públicas, deslocando nossa percepção de outros assuntos
de grande interesse. Jogos de futebol, tragédias e outros tipos de entretenimento podem,
muitas vezes, substituir as pautas centrais do noticiário em momentos cruciais de votação
no Parlamento. Por outro lado, a invisibilidade, como algo secreto, pode ser usada na forma
de censura explícita, ou seja, determinado tema não se converte em reportagem. Isso sem
mencionar as possibilidades de enquadramentos enviesados, isto é, que reconstroem os fa-
tos parcial e desequilibradamente. Seja como for, tanto hipervisibilidade, como no caso do
espetáculo, quanto invisibilidade, como no caso da censura, podem se converter em tática de
manipulação midiática.

Pense, por exemplo, no modo como as celebridades são mais expostas na sua
intimidade nas entrevistas de famosos sobre aspectos de sua vida privada. Na ló-
gica do espetáculo, um dos elementos centrais do sensacionalismo consiste na
narração da vida íntima dos poderosos ou famosos.

capítulo 4 • 99
EXEMPLO
Você deve se recordar da morte do cantor americano Michael Jackson (1958–2009). Ela
ocorreu no dia 25 de junho de 2009, em virtude de intoxicação por vários produtos. A morte
de Michael Jackson causou comoção em todo o planeta, gerando um dos maiores picos de
acessos na internet e aumentando ainda mais a venda de seus discos. A realização de um
evento público em homenagem ao falecimento do artista foi acompanhada por mais de 1 bilhão
de espectadores. Em 2010, grandes gravadoras assinaram contratos milionários para manter
os direitos de distribuição das músicas de Jackson. Como você deve se lembrar, a própria vida
pessoal do cantor havia sido coberta incessantemente pela mídia (Figura 4.5).

Figura 4.5  –  O cantor Michael Jackson. Autor: Zoran Veselinovic (1988).


Fonte: https://goo.gl/FSjL1E

Fatos como eventos esportivos, doenças de artistas, comícios de políticos e


escândalos dos mais variados tipos tendem a se tornar coberturas comuns no noti-
ciário cotidiano. Estamos diante de “fenômenos que têm se submetido à lógica do
espetáculo e à compactação na era do sensacionalismo” (Ibidem, p. 5). As cobertu-
ras midiáticas de tiroteios, invasões policiais, sequestros – além das reportagens da
vida íntima de artistas – são apenas alguns exemplos da dimensão cada vez mais
espetacular da mídia.
Nesse sentido, Kellner (2004) ainda contribui ao deixar de lado as análises
muito abstratas de Debord. Em vez de partir para generalizações como faz o
pensador francês, nosso autor apresenta uma série de exemplos sobre a con-
taminação da vida cotidiana pelo espetáculo moderno, mostrando o processo

capítulo 4 • 100
prático de construção do espetáculo e das celebridades. “A celebridade tam-
bém é produzida e manipulada no mundo do espetáculo” (Ibidem, p. 6), lan-
çando mão de assessores para assegurar seu espaço e tempo de glória. Por outro
lado, esses mesmos famosos tendem a se transformar em marcas, a criar sites de
negócios ou, pelo menos, a contratar profissionais para cuidar de sua imagem no
cruel universo dos espetáculos.

EXEMPLO
Gwyneth Paltrow (Figura 4.6) é uma das atrizes americanas que criou um verdadeiro império
de estilo e comportamento, chamado Goop. A princípio destinado apenas a ser um site sobre
dicas de vida em geral, o Goop se transformou em uma plataforma de conteúdo e e-commerce.
Hoje, o espaço se dedica a vender cosméticos naturais e outros produtos que representam um
estilo de vida – entre eles, pijamas de U$ 1.000,00. Ao mesmo tempo, o site ainda é utilizado
para manter e controlar a fama da atriz, especialmente quando Gwyneth se separou do cantor da
banda ColdPlay, Chris Martin. O controle da informação como forma de manter (ou aumentar) a
fama está levando especialistas como Troy Carter, da Atom Factory, a assessorar jovens cantores.
O objetivo disso é descobrir seu público-alvo. O lançamento da música All About the Bass, da
cantora, Megan Traynor, cujo tema versa sobre mulheres um pouco acima do peso, atingiu o topo
da parada americana e contou com 1,4 bilhão de visualizações no YouTube. (Fonte: Estadão. Link
de acesso: https://goo.gl/wszpzD. 27 de junho de 2016).

Figura 4.6  –  A atriz americana Gwyneth Paltrow. Autor: Mingle Media TV Network (2012).
Fonte: https://goo.gl/7VB3Jv

capítulo 4 • 101
“Sob a influência de uma cultura imagética multimídia, os espetáculos sedu-
tores fascinam os ingênuos e a sociedade de consumo, envolvendo-os na semiótica
de um mundo novo de entretenimento, informação e consumo, que influencia
profundamente o pensamento e a ação” (Ibidem, p. 5). Qual o resultado desse pro-
cesso? Podemos sintetizá-lo como a produção de novas formas culturais, moldadas
pelo padrão do espetáculo. Dentro dessa linha de reflexão, a cultura moderna se
apropria da antiga tradição do espetáculo e a remodela a partir das novas tecnolo-
gias disponíveis, criando uma percepção de mundo que cultua a personalidade, a
celebridade e a fama.
Já pensou nos filmes da cultura do espetáculo? Temos desde O Gladiador,
passando por outro clássico moderno, Titanic, sem deixar de lado Guerra nas
Estrelas. Para nosso autor, não há como discutir a lógica do espetáculo sem le-
var em consideração como esse padrão é elaborado pelo cinema hollywoodiano.
Nesse sentido, podemos pensar ainda em exemplos bem atuais: X-Men, Hulk e O
Homem-Aranha. Por sua vez, para celebrizar essas produções são necessários mais
shows. O que é a cerimônia do Oscar se não a maior das celebrações dessa imensa
cultura do espetáculo? Por isso, um espetáculo, a cerimônia do Oscar, é criado
para celebrizar outro espetáculo, a cultura hollywoodiana de filmes. Dentro dessa
linha de raciocínio, podem ainda ser citados como exemplos os vídeos da MTV
e, especialmente, o Big Brother Brasil. Além disso, é importante observar que um
dos ingredientes do espetáculo moderno também consiste no sexo. “O espetáculo
do sexo é também um dos elementos da cultura da mídia, permeando todas as for-
mas culturais e criando seus próprios gêneros na pornografia, uma das principais
e maiores áreas do espetáculo” (Ibidem, p. 11).

EXEMPLO
Talvez um dos maiores exemplos de espetáculo seja o Big Brother Brasil, o BBB, que
se converteu em um dos programas de maior audiência nacional e que leva às últimas con-
sequências a noção de hipervisibilidade, controle público e mediação simbólica. Na sua 17ª
edição, em 2017o BBB pode também ser visto praticamente sem cortes na TV por assina-
tura. O programa teve sua estreia em 2002 e rapidamente consolidou sua audiência. O final
da 10ª temporada é celebrado como o de maior público na história do reality show no mundo
– 154 milhões de votos.

capítulo 4 • 102
Espetáculo e tecnologia estão interligados entre si, condicionando trans-
formações em várias dimensões da vida. Por tudo isso, eles estão interferindo
na reconfiguração de relações econômicas, sociais e nas concepções de mun-
do. Estamos diante da aceleração de um complexo processo de formação da
Modernidade, entendida como o “estilo, costume da vida ou organização social,
que emergiam na Europa a partir do século XVII e que se tornaram mais ou
menos mundiais em sua influência”. (GIDDENS, 1991, p. 8) Esse modelo de
vida, por sua vez, espalha-se pelo mundo e intensifica sua dinâmica no século
XX. Nesse sentido, Modernidade se contrapõe a Tradição, na qual as pessoas
honram o passado e seus símbolos na medida em que eles englobam e contri-
buem para perpetuar a cultura tradicional.
Na Modernidade, ao contrário, as identidades cada vez menos se anco-
ram na tradição, na religião ou no direito, pois nascem dentro de processos
reflexivos. “A reflexividade da vida social moderna consiste no fato em que as
práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de infor-
mação renovada sobre estas próprias práticas” (Ibidem, p. 45). Nesse sentido,
o indivíduo adquire identidades múltiplas e ambíguas a partir de seu percurso
no interior dos espaços público e privado. Ao mesmo tempo, a “experiência
mediada” se desloca para o centro da vida em virtude da interação que o
sujeito moderno passa a ter com as diversas modalidades de mídias – como
o Marketing e a Publicidade. Os dispositivos midiáticos, por sua vez, contri-
buem para o acesso à informação e a reflexão que o indivíduo elabora sobre si
mesmo. Com o crescente grau de especialização, os conhecimentos também
se tornam cada vez mais específicos, contribuindo para o aparecimento de
sistemas peritos, resultado das revoluções científicas. Os conhecimentos e as
próprias autoridades se tornam provisórios.
Outra das consequências desse processo é o enfraquecimento do Estado-
nação. Que novo cenário é esse? Como os Estados estão se relacionando uns com
os outros agora? Essa relação, que engloba a tecnologia e o novo panorama inter-
nacional de nações, é a discussão das próximas páginas.

As transformações do Estado-nação

Para começo de conversa, você já refletiu sobre quais elementos estão na base
daquilo que chamamos de Estado-nação? Podemos pensar, antes de tudo, em um
território, pois sem espaço não há possibilidade concreta de construção de nada.

capítulo 4 • 103
Então, temos aqui um dos ingredientes básicos. Mas isso não basta, concorda?
Precisamos de outros elementos para formá-lo. Grosso modo, podemos afirmar
que um Estado é constituído por vários elementos, como território, soberania
interna e externa, povo e nacionalidade.
Dentro dessa linha de raciocínio, o território constitui o primeiro elemento
do Estado-nação. Podemos dizer de maneira bem simples que o território forma
a dimensão geográfica do Estado, a base física a partir da qual ele exercerá sua ju-
risdição soberana dentro de limites determinados. O segundo elemento é o povo,
conjunto de membros de uma sociedade política ligado pelo vínculo jurídico-po-
lítico da nacionalidade, isto é, o atributo que capacita os indivíduos a se tornarem
cidadãos e, com esse status, participarem da formação da vontade do Estado e do
exercício do poder soberano.
Além desses dois elementos, é fundamental você saber que, para haver Estado-
nação, é necessário haver nação dentro do território. A nação representa uma co-
letividade real que se sente unida pela origem comum, pelos laços linguísticos,
culturais ou espirituais, pelos interesses comuns, por ideais e aspirações comuns.
Assim, nação pode ser entendida como grupo constituído por pessoas que não
precisam ocupar um mesmo espaço físico para compartilhar dos mesmos valores
axiológicos e da vontade de comungar um mesmo destino. (Por axiológico enten-
de-se tudo aquilo que se refere a um valor.)

ATENÇÃO
Existem Estados que não são nações, como é o caso do Iraque, do Paquistão, de vários paí-
ses africanos e da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Por outro lado, há
nações sem Estado, a exemplo dos índios Ianomamis, no Brasil, e os bascos, na Espanha.

Antes de prosseguirmos, preste atenção aos seguintes pontos:


1) Nacionalidade:

•  Sentido jurídico-político: demarca vínculo entre membro do povo e Estado;


•  Sentido étnico-cultural: demarca laços linguísticos, culturais, espirituais ou
mesmo interesses, ideais e aspirações comuns.

capítulo 4 • 104
2) Soberania:

•  Interna: designa o poder político no Estado, expressando internamente seu


poder de comando, ou seja, a plenitude da capacidade de direito em relação aos
demais poderes dentro do Estado;
•  Externa: designa o atributo do Estado Nacional de não ser submetido às
vontades estatais exteriores. Nesse sentido, apenas o Estado é dotado de soberania,
sendo que outras comunidades ou pessoas coletivas de direito interno, no limite,
podem ser dotadas tão somente de autonomia.

Em síntese, esses são os elementos essenciais formadores do Estado Moderno.

REFLEXÃO
Você já refletiu sobre as diferenças entre os conceitos de legitimidade e legalidade? À
primeira vista, eles parecem semelhantes, mas não são, pois apontam para diferentes tipos
de adesão entre o indivíduo e o Estado. No caso, a legitimidade aponta que o poder soberano,
no Estado Moderno, não implica apenas que os sujeitos devam estar submetidos às diretrizes
legais (conceito de legalidade). A legitimidade requer que o Estado esteja preocupado em
atender às aspirações legítimas da sociedade. Dentro dessa linha de raciocínio, enquanto a
legalidade exige adesão externa, ou seja, basta ao cidadão cumprir a norma emanada, o re-
conhecimento da legitimidade requer que a obediência se dê por adesão interna, psicológica.
(LIMA; GOIS, 2015.)

ATENÇÃO
O conceito de Estado-nação, como você acaba de ver, é extraordinariamente comple-
xo e rico, abrindo a possibilidade de diversas reflexões. Os dois autores que se seguem,
Baumann (1925–2017) e Santos (1926–2001), no entanto, trabalham com o conceito de
forma mais livre, não seguindo todas as determinações de Estado-nação. Fazemos esse
esclarecimento para você não se esquecer de que há um conceito de Estado-nação defi-
nido pela Ciência Política.

capítulo 4 • 105
Por isso, para você não se esquecer de que o emprego do conceito está sendo usado de
forma menos sistemática, empregaremos o termo de forma simples: apenas Estado.

As mudanças no papel do Estado

Agora, precisamos entender o papel do Estado em dois momentos fundamen-


tais da história moderna: durante a Guerra Fria e após o seu término.

ATENÇÃO
Guerra Fria (1945–1989) é o termo usado para designar o conflito ideológico entre
a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos, que
começa logo após o final da Segunda Guerra Mundial (1939–1945). A primeira con-
tava com economia planificada e partido único, ao passo que os EUA se estruturavam
em economia de mercado e pluripartidarismo. Em linhas gerais, as duas superpotências
tentaram implantar seus sistemas políticos e econômicos nos países sob sua influência.
O mundo foi, portanto, dividido em duas áreas de controle: o bloco socialista e o capi-
talista. A “paz armada” levou à criação de blocos militares: a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan), chefiada pelos americanos, e o Pacto de Varsóvia, comandado
pelos soviéticos.

Baumann (1999) sintetiza a época da Guerra Fria, enfatizando que, na


prática, tudo no mundo significava a partir dessa divisão de poder. Em ou-
tras palavras, a política dessas duas superpotências produzia a imagem de um
planeta em equilíbrio: ou se era capitalista ou comunista. Os chamados não
alinhados, isto é, Estados que não queriam participar de nenhum dos dois
blocos de poder, sofriam ainda mais pressões para se adaptarem às regras do
jogo. Esse controle impedia, na verdade, que uma série de outras dimensões
sociais e políticas viessem à tona, especialmente as questões relativas à identi-
dade dos povos. “O ‘cenário global’ era visto cada vez mais como um teatro de
coexistência e da competição entre grupos de Estados e não entre os próprios
Estados”. (BAUMANN, 1999, p. 70) Assim, os blocos competiam entre si,
dividindo o mundo entre o “bem” e o “mal”.

capítulo 4 • 106
AUTOR
Zigmunt Baumann (1925–2017), sociólogo de origem polonesa, foi professor emérito
de Sociologia nas Faculdades de Leeds (Inglaterra) e Varsóvia (Polônia). Humanista, o pen-
sador se notabilizou pelas profundas reflexões sobre a pós-modernidade, demonstrando o
caráter fugidio das novas relações sociais. Baumann (Figura 4.7) sempre procurou criticar a
dimensão desumana do capitalismo, enquanto sistema que institui relações frágeis, mutáveis
e “líquidas”. Foi também militante político e defendeu o socialismo até o fim da vida.

Figura 4.7  –  O sociólogo polonês Zigmunt Baumann.


Autor: Forumlitfest (2013). Fonte: https://goo.gl/XnsmMF

Quantos, porém, não foram os Estados que se desagregaram após o colapso


dessa divisão do mundo? Já pensou nisso? O controle sobre os Estados de cada
grupo impunha tamanho domínio que os conflitos internos não conseguiam
emergir. Nesse sentido, tudo ficava soterrado no grande conflito entre “comunis-
tas” e “capitalistas”, retratado de maneira tão simplista e estereotipada pelo cinema
de Hollywood. Hoje, com a desagregação dos blocos, ocorrida com a queda do
Muro de Berlim (1989), as ideias de totalidade e equilíbrio também desaparece-
ram. Ao contrário, temos “um campo de forças dispersas e díspares” (Ibidem, p.
64), o que cria, de acordo com o autor, a sensação de que “ninguém parece estar
no controle agora”. Com o fim dos dois blocos, é o papel dos Estados que muda.
Para nosso autor, a primeira característica abandonada pelo Estado é o pró-
prio controle da política econômica em virtude do complexo processo da glo-
balização. Pelo termo, devemos entender um complexo processo de integração

capítulo 4 • 107
das diversas partes do planeta, o que tende a possibilitar maior articulação so-
cial e espacial das relações humanas. Um dos grandes instrumentos usados nesses
processos consiste nas novas tecnologias cujas conquistas humanas modificaram
a existência moderna. Como resultado, foi criado o hoje famoso termo aldeia
global, que aponta justamente para o modo como o mundo se tornou menor em
razão da integração informacional e tecnológica (Figura 4.8). Quantas vezes você
tem acesso direto a situações que ocorrem do outro lado do planeta? Quantos são
os amigos ou parentes do outro lado do mundo com os quais você hoje conversa
por meio dessas tecnologias?

Figura 4.8  –  Processo de integração global.


Autor: Luciane Hilu e Claude René Tarrit (2011). Fonte: https://goo.gl/JnF19O

Isso tem implicações profundas, pois tanto o espaço quanto o tempo – as cate-
gorias centrais da vida humana – foram modificados por meio de aviões, telefones,
internet, celulares etc. A globalização, portanto, aponta para essas transformações
e conta com efeitos positivos, pois é capaz, em tese, de integrar, aproximar, criar
mais liberdade. Já pensou que a cura de uma doença pode ser compartilhada ra-
pidamente entre países? Nesse sentido, ela é resultado de um verdadeiro proces-
so tecnológico e informacional, gestado no fim do século passado, e ainda em

capítulo 4 • 108
desdobramento. É bom você também não se esquecer de que a origem da globali-
zação é motivo de muita polêmica, pois vários autores defendem que, na verdade,
ela começou ao longo das grandes navegações, no século XV, quando o mundo
passou a se integrar a partir das descobertas de novas terras. Mas quais são seus
efeitos negativos?
Baumann (1999) reflete que a globalização cria uma série de transformações
que estão gerando mais desigualdade social e afetando as bases do Estado. O
ponto central de nosso autor é que, nesse processo, o Estado está perdendo cada
vez mais a capacidade de controlar sua própria economia. A questão é, por-
tanto, a seguinte: Porque isso está acontecendo? São vários os fatores. O mercado
financeiro internacional tende a impor suas leis e normas sobre todas as nações.
Organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e
Organização Mundial do Comércio (OMC) seriam, nesse sentido, organizações
fundadas com o objetivo de gerir o capital internacional, o livre movimento de ca-
pitais e as regras de livre mercado. Dentro desse modelo, o papel que a política dos
Estados desempenha é cada vez menor, pois as regras do jogo já foram definidas, a
princípio, pelos grandes atores internacionais.
Como resultado dessa nova arquitetura financeira, o Estado tem cada vez
menos capacidade de resistir à especulação. O equilíbrio orçamentário, fun-
damental à gestão dos bens públicos, pode ser completamente destruído pela
fuga desses capitais, colocando em risco toda a economia nacional. Sem recur-
sos e sem poder, tanto o país quanto as suas empresas podem falir em minutos.
Por isso, a imposição de regras de livre mercado e a livre movimentação de
capitais têm outro efeito sobre o Estado: enfraquecem o controle político
sobre a economia.
A globalização também implica a remessa e o contato das várias dimensões
simbólicas entre as nações, o que coloca em primeiro plano a função da cultura
na criação de identidades (Figura 4.10). É aqui que podemos articular a ideia
de sociedade do espetáculo e globalização, pois esse processo implica também a
universalização das ideias, dos filmes, vídeos, enfim, das representações de mun-
do americanizadas. Dentro dessa linha de reflexão, a cultura dominante também
tenderia a se impor sobre a das nações mais frágeis.

capítulo 4 • 109
Figura 4.9  –  Entrevista na TV. Autor: Silvio Tanaka (2009). Fonte: https://goo.gl/jliXMj

REFLEXÃO
Observar a imposição cultural de uma nação poderosa sobre outras é um importante
ato de reflexão na contemporaneidade. Mas você já pensou que grande parte desse proces-
so também encontra resistência na recepção? Quando você assiste a um programa – por
exemplo, norte-americano –, isso não significa que concordará com a mensagem veiculada.
Ao contrário, Hall (2003) observa que, a despeito de o sistema global ser montado de modo
a dominar nações mais frágeis e suas populações, o que está em jogo é a capacidade de
leitura crítica que o indivíduo faz desse programa. Em outras palavras, a recepção pode se dar
de três maneiras: aceitação, negação e negociação. De forma bem direta, podemos aceitar o
conteúdo da mensagem, mas também recusá-lo. Ou ainda, há uma terceira relação possível:
negociamos com o conteúdo a fim de preservar determinados aspectos e excluir outros que
não nos interessam.

AUTOR
Stuart Hall (1932–2014) foi um dos principais expoentes do Centro Contemporâneo
de Estudos Culturais, na Inglaterra. Nascido na Jamaica, Hall (Figura 4.10) foi responsável
por ensaios sobre cultura, política e os meios de comunicação, enfatizando o papel criativo e
ativo do processo da recepção. Expandiu os estudos culturais, incluindo, entre outras coisas,
gênero e raça, além de dialogar com pensadores de diversas matrizes teóricas.

capítulo 4 • 110
Figura 4.10  –  O ensaísta Stuart Hall.
Autor: Allarichall (2013). Fonte: https://goo.gl/Z41XVb

Por isso, nosso autor defende que o Estado perde sua capacidade de contro-
le sobre dois pontos fundamentais: economia e cultura, permanecendo apenas
com a capacidade repressiva. O poder da violência seria exercido para manter
a segurança de grandes empresas transnacionais implantadas nos países mais
frágeis. Por isso, a repressão seria usada para a manutenção da ordem de forma
a criar um ambiente de segurança e estabilidade para o desenvolvimento dos
negócios de empresas internacionais em cada país. Como resultado, o Estado
iria tornar-se cada vez mais violento em relação à sua própria população, espe-
cialmente no que diz respeito aos movimentos sociais organizados e críticos às
consequências negativas do processo da globalização.
Seguindo essa linha de raciocínio, temos dois fatos que se articulam: de
um lado, o caráter extraterritorial do capital financeiro internacional, que
não tem residência fixa (ao contrário, é volátil e, por isso, pode ser retirado a
qualquer momento da economia do Estado, gerando efeitos catastróficos); do
outro, os Estados, que, ao perderem sua capacidade de controle sobre a própria
economia e suas produções culturais, tornam-se cada vez mais frágeis. Nesse
sentido, ocorre a integração de dois aspectos centrais que compõem a chama-
da globalização: os capitais financeiros internacionais e o enfraquecimento do
Estado. Em contrapartida, ocorre o aumento da dimensão repressiva. Como
resultado dessa análise, o poder político passa a ser apenas nominal, ou seja, não

capítulo 4 • 111
tem sentido prático nem efetivo, pois o grande poder – dentro da visão do nosso
autor –torna-se anônimo.
Portanto, fragmentação política e globalização econômica se articulam.
Dentro dessa linha reflexiva, a globalização contribuiu para acentuar o processo
de domínio de certos Estados sobre outros, criando hierarquia de poder em
nível internacional. Segundo essa lógica, estamos diante de uma nova ideia de
globalização: a globalização perversa.

A globalização perversa

Você já ouviu falar na expressão globalização perversa? Ela foi criada pelo
pensador brasileiro e professor Milton Santos (1926–2001). Como você já deve
ter percebido, o termo tem estreita relação com tudo o que estamos discutindo
nos tópicos anteriores. Para Santos, o ponto central consiste no modo como esse
processo se estrutura a partir de uma “dupla tirania”. Em outras palavras, a globali-
zação é uma conjuntura montada a partir de dois elementos centrais: informação e
dinheiro. Então, compreender as transformações do mundo contemporâneo exige
que sempre pensemos esse novo panorama ligando a tecnologia da informação
e o capital. A análise de Santos (2001) tem várias semelhanças com as formula-
das por Baumann (1999). Por exemplo, ele também observa o encolhimento das
funções sociais e políticas do Estado, o que acarreta, entre outros fatores, a dimi-
nuição da noção de bem público e de solidariedade. Nesse sentido, ficamos cada
vez mais indiferentes aos outros seres humanos e à importância do Estado diante
das desigualdades estruturais.
Para ele, informação e dinheiro estão na base do discurso moderno, isto é,
organizam os discursos na contemporaneidade, escondendo-se, muitas vezes,
sob a fachada de neutralidade. Santos (2001) critica, antes de tudo, a ideia de
que as novas tecnologias gerariam aumento e partilha do conhecimento entre
todos os cidadãos do mundo. O pensador brasileiro pondera que, na verdade,
grande parte das informações é compartilhada por Estados altamente desenvol-
vidos e empresas transnacionais.
Você já pensou, por um momento, em quantos africanos têm acesso à in-
ternet de qualidade? Quantos deles dispõem dessa tecnologia em casa? “É deste
modo que a periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda mais pe-
riférica, seja porque não dispõe totalmente de novos meios de produção, seja
porque lhe escapa a possibilidade de controle” (Ibidem, p. 20). Para completar

capítulo 4 • 112
seu raciocínio, ele ainda levanta outra questão fundamental: tendo em vista a
concentração da informação em poucas empresas de comunicação, grande parte
das reportagens tende a ser “manipulada”, encobrindo as reais condições de do-
minação e opressão dos povos.
O autor ainda critica o termo “aldeia global”. Santos (2001) demonstra que,
ao contrário do discurso de que o tempo e o espaço são encurtados, o que acon-
tece na realidade é que essas profundas modificações são acessíveis a um número
restrito de pessoas. Dentro dessa ideia, a tecnologia está longe de alcançar a todos.
Isso significa que tempo e espaço têm efeitos diversos para pessoas vindas de países
diferentes. No entender do pensador brasileiro, a ideia de “mercado global”, por
sua vez, não aponta para uma questão central – a de que há concentração de tran-
sações dos mercados nos países mais ricos.
Você já refletiu sobre a ideia de “desterritorialização”? Por esse termo indi-
camos perda de vínculo que une o indivíduo ao território, gerando enfraque-
cimento do controle das territorialidades (pessoais ou coletivas) tanto em nível
econômico como simbólico. Dentro do discurso da globalização, as fronteiras
teriam sido diluídas, o que possibilita, entre outras coisas, não apenas o fluxo
de capitais financeiros, mas também o de pessoas. Mas todos os indivíduos, de
fato, podem deslocar-se nessa nova paisagem moderna? O que você vê nos jor-
nais na seção internacional? Para nosso autor, quase sempre verdadeiras tragédias
desencadeadas por migrações. Pessoas oriundas do conflito na Síria e da fome
na África sobrecarregam embarcações que acabam afundando no mar durante
sua travessia para a Europa. Quando, ao contrário, conseguem aportar em solo
europeu, são presas e deportadas. O pensador brasileiro pondera que não se trata
de um simples fluxo livre de pessoas, capazes de se deslocar de um canto a outro
do mundo. Ao contrário, os deslocamentos livres são, na verdade, privilégio de
uns poucos contemplados pela globalização. “A humanidade desterritorializada
é apenas um mito” (Ibidem, p. 21).

REFLEXÃO
Um barco que saiu de Trípole, na Líbia, em fevereiro de 2015, naufragou no Mediterrâneo
a cerca de 180 Km da ilha italiana de Lampedusa. Ele carregava, irregularmente, cerca de
850 pessoas a bordo – a maior parte delas proveniente da África e do Oriente Médio. Dados
da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) apontam que apenas 28 pessoas
sobreviveram. Tragédias naturais, fome, guerras civis e violência tendem a levar milhares de

capítulo 4 • 113
pessoas a tentar uma nova vida em solo europeu. Como, via de regra, são barradas pelas au-
toridades, a única alternativa se encontra nas viagens clandestinas, especialmente por meio
de barcos superlotados de refugiados. As péssimas condições de transporte e de saúde dos
passageiros gera, quase sempre, efeitos catastróficos. Desde o início da década de 1990,
os Europeus têm respondido às migrações com aumento do número de militares para fisca-
lização de viagens marítimas. Só para você ter uma ideia, a Grécia cercou sua fronteira com
a Turquia, ao passo que a Espanha criou campos armados em regiões no Norte da África,
além de fiscalização no Estreito de Gibraltar. A Itália, por sua vez, aumentou a vistoria sobre
embarcações. A questão para refletirmos é: onde está o livre deslocamento da globalização?

Ora, mas além dos efeitos das tecnologias, qual o efeito do dinheiro nesse
processo? Santos (2001) observa que o ponto central aqui consiste no poder do
capital financeiro, que, por sua vez, articula-se às novas tecnologias. São compo-
nentes que, na verdade, devem ser observados em conjunto de modo a perceber-
mos suas ações como uma soma. Aqui, os argumentos de nosso autor dialogam,
mais uma vez, com os de Baumann (1999), pois uma das características mais
prejudiciais do capital financeiro consiste em ser volátil. O que isso significa?
Basicamente, queremos dizer que esse tipo de capital pode ser retirado a qualquer
momento de uma nação, retornando na forma de crédito, por exemplo, a seu país
de origem. Assim, países frágeis, muitas vezes, tendem a pagar juros altíssimos
para tentar manter esses capitais nas suas contas.
Há, porém, outro efeito tão negativo quanto o anterior. Santos (2001) reflete
que, na nova economia mundial, passa a existir uma separação entre capital e pro-
dução. Como assim? Aqui, cabe esclarecer uma questão central que diz respeito à
diferença entre capital produtivo e especulativo. O primeiro nada mais é do que
o conjunto de recursos que pode ser investido na produção de bens, o que gera
riquezas e cria, também, novas oportunidades de trabalho, isto é, empregos. O
especulativo, por sua vez, não está vinculado à produção de riquezas ou à criação
de postos de trabalho; ao contrário, ele se liga à produção de lucros muito rápidos
por meio de atividades especulativas.

EXEMPLO
Uma atividade especulativa, de forma direta, pode ser entendida como toda atividade de
compra e venda de produtos agrícolas, moedas ou ativos financeiros. Só que o objetivo dessa

capítulo 4 • 114
atividade é lucrar com a diferença dos preços de compra e venda. Pense que você trabalha, a
título de exemplo, em uma empresa com ações sendo negociadas na bolsa de valores. Como
você é responsável pelo setor de criação, está informado de que será lançado um produto
inovador no mercado. O que você faz? Compra muitas ações da empresa, apostando que o
produto será um sucesso. Como resultado, você ganhará muito dinheiro, pois pode vender as
ações no mercado a preços muito mais altos do que comprou. Assim, você tentou adivinhar
o preço das ações e lucrou com isso. Essa é a alma da especulação.

Uma das consequências mais dramáticas desse afastamento entre capital e


produção é que a economia dos Estados tende a se basear, em grande parte, nos
capitais especulativos. Dentro da linha de pensamento do autor, a economia mo-
derna tende a ser cada vez mais contaminada pela especulação. Assim, a tecnologia
da informação (que sempre se apresenta de forma neutra) e o capital se articulam
na montagem de uma nova estrutura de poder que, como já vimos, enfraquece
os Estados, enrijece as fronteiras e contribui para solidificar hierarquias entre os
povos. Santos aponta, nesse sentido, que transformar esse panorama é um dos
maiores desafios modernos.

RESUMO
Em síntese:
•  Estudamos que o espetáculo moderno se diferencia das formas espetaculares dos anos
1960 e 1970 pela articulação mais complexa e profunda entre informação e entretenimento,
produzindo o infoentretenimento;
•  Abordamos o fato de que o espetáculo sempre existiu desde a Antiguidade clássica, como
na Grécia e Roma Antigas, nas Olimpíadas e nos combates entre gladiadores.
•  Refletimos sobre a relação entre espetáculo moderno e tecnologia na medida em que as
novas tecnologias de informação criam padrões narrativos;
•  Vimos que o espetáculo moderno representa valores sociais e, dialeticamente, serve para
moldar comportamentos;
•  Estudamos que o Estado-nação se baseia no território, povo, na soberania e nacionalidade;
•  Enfatizamos que o uso dos autores não corresponde à natureza do conceito de Estado-na-
ção elaborado pela Ciência Política. Por isso, optamos pelo uso do termo Estado;
•  Analisamos que a nacionalidade tem sentido jurídico-político e étnico-cultural;

capítulo 4 • 115
•  Demonstramos que, com o fim da Guerra Fria, os Estados passam por profundas modifi-
cações. Entre elas, perdem parte de seu controle sobre a política econômica e as produções
culturais, mantendo seu caráter repressivo;
•  Salientamos que informação e dinheiro são dois componentes fundamentais na estrutura-
ção da Nova Ordem Mundial.

ATIVIDADE
1) Discuta os principais elementos de formação do Estado-nação.
2) Qual a nova relação que pode ser percebida entre capital, produção e especulação
na contemporaneidade?

EXERCÍCIO RESOLVIDO
1) Tradicionalmente, o Estado-nação se estruturou a partir de território, povo, soberania e na-
cionalidade. O território demarca a base física e o limite a partir do qual a soberania do Estado
será exercida. O povo é o conjunto de membros de uma sociedade política ligado pelo vínculo
jurídico-político da nacionalidade. Por outro lado, para que haja Estado-nação, é fundamental
a existência de uma nação dentro do próprio Estado. Por nação entende-se uma coletividade
real unida por sentimentos comuns e mesmos ideais, a partir de uma mesma história comum.
O Exército, por outro lado, existe para garantir a soberania.
2) A relação entre capital e produção, a princípio, estruturava o capitalismo produtivo no
sentido de que o capital era investido na produção de mercadorias, gerando, entre outras
coisas, postos de trabalho. Com o advento do capital financeiro, deu-se a desvinculação
entre ele e o setor da produção, substituída, agora, pela especulação. Dessa forma, em
vez de investimento na produção e de geração de empregos, tem-se a especulação como
padrão central do capitalismo financeiro. Além do mais, deve-se observar que tais capitais
também são voláteis, ou seja, podem ser transferidos de um país a outro, causando dese-
quilíbrio financeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMANN, Z. Globalização: as consequência humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
CAMPBELL, C. A ética romântica e o espírito do consumidor moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

capítulo 4 • 116
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
KELLNER, D. A cultura da mídia e o triunfo do espetáculo. In: Revista Líbero, ano VI, v. 6, n. 11.
LIMA, M; GOIS, G. Ciência política. Rio de Janeiro: Seses, 2015.
SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo:
Record, 2000.

capítulo 4 • 117
capítulo 4 • 118
5
Novas tecnologias
e transformação
social:
possibilidades
Novas tecnologias e transformação
social: possibilidades

O potencial das novas mídias na globalização

Ao longo de nossa discussão sobre globalização, você deve ter notado que o
diagnóstico foi pessimista, ou seja, os autores estudados enfatizaram as caracterís-
ticas negativas desse processo. Agora, trilharemos outro caminho: vamos mostrar
a você uma série de alternativas de transformação social disponibilizadas pelas
tecnologias. Refletiremos sobre o modo como a apropriação das novas mídias pos-
sibilita a abertura de processos – rupturas, transformações e inovações no interior
da própria globalização. Afinal, a História é feita por homens e mulheres, pelo
modo como eles se apropriam das condições do passado e criam soluções, po-
dendo abrir caminhos para seu futuro. Por isso, é fundamental analisarmos uma
série de exemplos acerca das novas mídias e de seu potencial na transformação da
realidade política de nosso tempo.

OBJETIVOS
Este capítulo tem como objetivos:

•  Discutir a natureza das novas tecnologias midiáticas;


•  Refletir sobre as novas modalidades comunicacionais;
•  Comparar os modelos de comunicação das mídias tradicionais e on-line;
•  Analisar os potenciais contra-hegemônicos das novas tecnologias;
•  Analisar a construção de uma nova modalidade potencial de esfera pública;
•  Compreender a relação entre comunicação, cidadania e democracia.

Criando a contra-hegemonia

Para começo de conversa, precisamos entender as possibilidades abertas com


as novas tecnologias. Um dos elementos centrais da rede é ela permitir a expres-
são de uma série de pontos de vista nem sempre veiculados pela mídia tradi-
cional – TV, rádio, jornais impressos etc. Pensar no potencial comunicacional

capítulo 5 • 120
e político da internet significa, pelo menos, pensar em duas questões muito
importantes: ela possibilita que o produtor de conteúdos não seja censurado
por filtros ideológicos (em outras palavras, sua opinião poderá ser livremente
disseminada na rede, pois não estará diante de restrições acerca do conteúdo da
mensagem). Nesse sentido, o editor funciona como filtro, ou seja, ele decide o
que vai ou não ser publicado.

CONCEITO
Rede, genericamente, quer dizer um conjunto de elementos, como objetos e pessoas,
interligados uns aos outros, promovendo a circulação de propriedades materiais ou imateriais
entre cada um de seus polos. Para este trabalho, rede indica a interconexão de computado-
res e dispositivos, possibilitando a troca de informações sob a forma de dados numéricos.

Isso que acabamos de mostrar expõe um segundo ponto: o de que a rede


permite aos produtores de conteúdo encontrar alternativas à censura da política
editorial dos grandes jornais. O que isso quer dizer? Em linhas gerais, a grande
imprensa é composta pelas corporações midiáticas que estão nas mãos de grupos
políticos. Nesse sentido, tais elites políticas são detentoras da propriedade privada
dos meios de comunicação, que tendem a definir sua linha editorial. Esse controle
é o resultado complexo da articulação de oligarquias regionais, seus representan-
tes políticos, os centros de poder federal e a entrada de capitais internacionais na
gestão de algumas grandes empresas de comunicação nacionais. Essa centraliza-
ção midiática primeiramente se adensa na Ditadura (1964–1985), sendo mantida
mesmo durante o período de redemocratização.
Dentro dessa linha de raciocínio, estudiosos das mídias, como Suzy Santos
(2006), ponderam que na base desse processo está o coronelismo eletrônico,
ideia elaborada a partir do conceito de coronelismo, na obra Coronelismo, Enxada
e Voto (1949), de Vítor Nunes Leal (1914–1985). Historicamente, o coronelismo
define um sistema de relações de clientelismo por meio do qual os coronéis, ao
perderem seu poder econômico, usam de sua influência política como elemento
de manutenção de seu controle local. Trata-se de um “compromisso” que o coro-
nel estabelece com os níveis estadual e federal. Santos (2006) observa que o ter-
mo coronelismo eletrônico herda as principais características do coronelismo:
transição temporal, clientelismo com alto grau de reciprocidade e diluição entre
as esferas pública e privada.

capítulo 5 • 121
Nessa perspectiva, o controle da terra é, em larga medida, substituído pela
posse dos meios de comunicação, que contam com lógica capitalista diferencia-
da: publicidades governamentais, direção dos negócios repassada a parentes (pres-
cindindo de valores capitalistas fundamentais) e geração de programas de baixa
qualidade. O coronelismo eletrônico pode ser concebido como “um sistema de
reciprocidade”, nutrido no clientelismo. Por exemplo, oligarquias regionais po-
dem eleger um senador que conquista outorga de uma rádio no interior, passando
a retransmitir programas de grandes emissoras e informações locais. Essa rede de
alianças políticas, nesse sentido, contribui para a constituição de uma estrutura
midiática centralizada. Tecnicamente, estamos diante de uma situação de oligo-
pólio midiático. Essas elites políticas têm, portanto, o poder de definir o que será
ou não publicado – e seu enquadramento. Como resultado desse complexo pro-
cesso que estamos simplificando, podemos dizer que os grandes veículos de comu-
nicação tendem a construir um discurso quase que único sobre a realidade políti-
ca. Em síntese, a configuração midiática centralizada produz efeitos ideológicos.

CONCEITO
Oligopólio indica uma configuração de mercado na qual existem poucos órgãos de mí-
dia controlando grande fatia do universo de comunicação. Monopólio, por sua vez, refere-se
a uma situação em que há apenas um órgão comandando todo o mercado da área.

CONCEITO
Enquadramento indica, de acordo com Entman (1994), o processo de seleção de al-
guns aspectos da realidade, de modo a destacá-los em um texto comunicativo, promovendo
uma particular definição do problema, interpretação de sua causa e possível solução. Quando
a mídia enquadra, ela está reconstruindo ideologicamente um fato, evento ou processo. O
enquadramento define a “janela” a partir da qual olhamos o mundo.

Por meio do ciberespaço, temos então uma nova oportunidade – a de disponi-


bilizar pontos de vista sobre o mundo que não estão, a princípio, sendo veiculados
pela mídia tradicional. Estamos, portanto, diante de uma nova paisagem comu-
nicacional que coloca grandes desafios a todos nós – e inovadoras possibilidades

capítulo 5 • 122
de transformação política. Potencialmente, a dimensão on-line possibilita formas
inovadoras de criação e novos instrumentos tecnológicos, que, entre outras vanta-
gens, facilitam inclusive a realização de trabalhos autônomos. Quantos publicitá-
rios estão lançando mão dessas novas modalidades de criar, de inventar?

AUTOR
Dênis de Moraes (1954), doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), é um dos principais teóricos que trabalham com o pensamento de
Gramsci no Brasil. Já organizou e escreveu mais de 20 obras, enfatizando a Comunicação
como um processo complexo de luta pela hegemonia e contra-hegemonia. Atualmente, é
professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Moraes (2000) demonstra que podemos driblar o monopólio da divulgação


da mídia tradicional, criando uma comunicação contra-hegemônica. Mas então
o que é contra-hegemonia? Para entendermos esse conceito e como ele pode ser
aplicado tanto na imprensa quanto na publicidade, precisamos antes refletir sobre
outra ideia: a hegemonia.

Hegemonia, contra-hegemonia e comunicação

Foi o marxista italiano Antônio Gramsci (1891–1937), responsável por uma


profunda reformulação da tradição de pensamento marxista, que elaborou esse
conceito. Hegemonia pode ser definida como a capacidade de um grupo social de
determinar o sentido da realidade, exercer sua liderança intelectual e moral sobre
o conjunto da sociedade (COUTINHO, 2014, p. 41) e, dessa maneira, organizar
a própria cultura. Trata-se, portanto, de uma luta que se desenvolve no terreno das
ideias e das construções imaginárias coletivas, isto é, “uma luta pela sistematização
de formas culturais” (grifo do autor).
O que isso significa? Vejamos passo a passo. Pense na seguinte situação: um
ditador, para manter seu poder absoluto junto à população, pode determinar que
a polícia exerça sua violência física contra todos aqueles que não aceitam a vigência
do atual regime. Assim, todos os dissidentes (aqueles que desobedecem às ordens
do ditador) serão castigados, presos, processados etc. Após tamanha violência físi-
ca, a ordem tende a voltar às ruas, e, por certo tempo, a situação se estabiliza em

capítulo 5 • 123
favor do governante. O problema desse tipo de domínio é que ele não será capaz
de se legitimar, isto é, de se justificar por muito tempo, uma vez que a violência
da polícia certamente afetará a reputação de quem permanece no poder. Apesar de
eficiente, a violência pura e simples não é capaz, em tese, de manter ninguém no
poder em longo prazo.

AUTOR
Antônio Gramsci (1891–1937), um dos maiores teóricos marxistas do século XX, foi
também militante político. Em grande medida, os esforços desse pensador se concentra-
ram na crítica ao determinismo do marxismo ortodoxo, reformulando o pensamento de es-
querda por meio da rearticulação entre o político e o econômico. Preso pelo regime fascista
de Benito Mussolini, Gramsci (Figura 5.1) escreveu na prisão os famosos Cadernos do
Cárcere, discutindo com os principais teóricos de seu tempo e da Antiguidade, entre eles,
Maquiavel. Entre seus conceitos, destacam-se a hegemonia, o bloco histórico, a revolução
passiva – e o intelectual orgânico. Tais ideias contribuíram para ampliar a percepção dos
conflitos políticos além de sua dimensão econômica.

Figura 5.1  –  O pensador italiano Antônio Gramsci. Autor: Masae (2007).


Fonte: https://goo.gl/0wIIeH

capítulo 5 • 124
AUTOR
Eduardo Granja Coutinho (1967) é doutor em Teoria da Comunicação de Cultura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é professor da pós-graduação
da mesma universidade e, como Dênis de Moraes, é um dos autores que pesquisa as rela-
ções entre Comunicação, hegemonia e contra-hegemonia. Publicou, entre outros, A Comuni-
cação do Oprimido e Outros Ensaios (2014) e Velhas Histórias, Memórias Futuras: o sentido
da tradição em Paulinho da Viola (2011).

O que essa situação demonstra? Que o domínio de uma sociedade não pode se
dar apenas por meio de atos de coerção física. Vale a pena lembrar que Maquiavel
propõe as mais variadas estratégias de controle – tanto a força do leão quanto a
esperteza da raposa. Ou seja, restringir o domínio apenas à violência é descrédito
certo para o governante. Dentro da linha de raciocínio de Maquiavel, por exem-
plo, o governante deve ser esperto, convincente, inteligente. Por isso, a maioria
das pessoas precisa ser levada a acreditar nas suas boas intenções, propostas e
projetos. Estamos, na verdade, diante de outra estratégia de controle, a do con-
vencimento da mente e do coração das pessoas. Quando a maioria da população
é convencida por um projeto político, seu comportamento tende a ser guiado
pelas ideias que estão sendo disseminadas na sociedade.
Dentro desse raciocínio, tais ideias podem ser fabricadas e veiculadas pelos
meios de comunicação ao longo de anos e mesmo décadas. Qual o resultado? Essa
visão de mundo passa a se naturalizar, a fazer parte do imaginário coletivo. Uma
vez naturalizadas, deixamos de questioná-las, de criticá-las e, portanto, passamos
a ser guiados por elas. O domínio hegemônico, por isso, pode ser compreendido
como a forma de domínio social que se dá pelo controle da mente e do coração
de uma sociedade.
Nesse sentido, a hegemonia tem a ver com o domínio não apenas político,
mas também cultural, isto é, ela incide sobre o conjunto de ideias e comporta-
mentos de uma sociedade. Na sua relação central com a comunicação, o conceito
de hegemonia ajuda-nos a desvendar os jogos de consenso e dissenso que atraves-
sam e condicionam a produção simbólica nos meios de comunicação, interferindo
na conformação do imaginário social e nas disputas de sentido e de poder na
contemporaneidade (MORAES, 2010, p. 54).

capítulo 5 • 125
Desse modo, a hegemonia tem a ver com “entrechoques de percepções”, prio-
rizando a produção de saberes e representações de mundo para o exercício da
“direção cultural”. As mídias, então, funcionariam como “caixas de ressonância”
das disputas ideológicas na sociedade e “distribuidores de conteúdo”. A especifi-
cidade da imprensa e da publicidade é que elas seriam “a parte mais dinâmica” da
estrutura ideológica do capitalismo, organizando tais visões de mundo, articuladas
em configurações midiáticas monopolizadas. Ao criarem “cartografias do mundo
coletivo”, tais aparelhos atuam sobre o imaginário social. Os símbolos revelam o
que está por trás da organização da sociedade e da própria compreensão da história
humana (Idem, 2002, p.1) e operam no sentido de naturalizar visões de mundo
e auxiliar na condução política de grupos sociais e na definição do significado do
mundo. Trata-se, portanto, de uma luta que se desenvolve no terreno das ideias e
das construções imaginárias coletivas.

CONEXÃO
Partindo do princípio que norteou seu conceito de hegemonia, Gramsci elaborou o
conceito de intelectual orgânico. O intelectual orgânico em Gramsci se diferencia do
chamado intelectual tradicional, pois este último se especializa na elaboração de teoria e
se afasta da atividade prática e política. O orgânico, ao contrário, é o intelectual que elabora
teoria, mas age, atua, participa, ensina, organiza e conduz o grupo social a que per-
tence por meio tanto de reflexões quanto de práticas políticas. Para Gramsci, cada
grupo social cria para si intelectuais responsáveis por conferir sistematicidade, coerência
e consciência a suas ideias e sentimentos. Desse modo, o intelectual orgânico, ao deixar o
universo puro da teoria e se engajar em atividades práticas e cotidianas, ajuda na formação
de uma nova hegemonia – de uma nova visão político-cultural de mundo. Por isso, o caráter
orgânico do intelectual, para Gramsci, é resultado de seu comprometimento e participação
na formulação de ideias que contribuem para a ação política efetiva – e de sua interação
cotidiana com os membros de seu grupo.
Dentro dessa linha de pensamento, a relação orgânica entre intelectual e grupos su-
balternos não apenas contribui para a superação da natureza acrítica do senso comum dos
indivíduos, mas também potencializa a capacidade intelectual do grupo e confere eficácia
à atividade política. É a partir do contato permanente com grupos/classes sociais que os
intelectuais orgânicos se tornam capazes de elaborar os problemas cotidianos enfrentados
– e de propor ações práticas à sua superação. Portanto, ele faz a conexão entre o grupo

capítulo 5 • 126
social a que pertence e outros segmentos, estabelecendo a comunicação política –
isto é, a linguagem – como tática de persuasão.

EXEMPLO
Quando as peças publicitárias, especialmente de bebidas alcoólicas, publicam imagens
de mulheres como objeto de desejo e as ligam à cerveja, por exemplo, o que está acontecen-
do? Em grande medida, tais peças tendem a contribuir para criar um imaginário coletivo que
vincula o lazer a uma atividade social – a ação de beber. Estamos, portanto, diante da cons-
trução de um modelo de comportamento cultural que relaciona lazer e bebida e, ao mesmo
tempo, conecta essa relação à mulher como objeto de desejo. Assim, criamos uma ideia de
tempo livre que acaba sendo redutora de outras possibilidades de lazer.

Sob essa ótica, a mídia corporativa procura impor sua visão hegemônica
sobre a sociedade, mas esse processo, por sua vez, encontra resistência. Um
dos tipos de resistência mais marcantes na atualidade tem sido, de acordo com
Moraes, as mídias alternativas on-line que possibilitam a publicação de conteú-
dos diferenciados e não censurados. Por construir uma visão diferenciada de
mundo e um novo projeto político de sociedade, essas mídias atuam, dentro
dessa visão, como veículos contra-hegemônicos – em outras palavras, disposi-
tivos midiáticos procurando impor sua própria hegemonia, que se opõe, por sua
vez, à das mídias tradicionais. São lutas pela imposição de diferentes visões de
mundo, travadas por diferentes grupos sociais no interior dos processos comu-
nicacionais de uma sociedade.

O espaço online: uma nova participação política nacional e internacional

Agora que você entendeu o que é hegemonia e contra-hegemonia, podemos


continuar nossa discussão, refletindo sobre as características que moldam o espaço
social aberto pelas novas tecnologias – o ciberespaço e a sua dimensão cultural,
a cibercultura. Moraes observa que o ciberespaço pode ser concebido como um
universo sem controle e hierarquias aparentes e sem pontos fixos para a veiculação
de conteúdos. Isso quer dizer que os usuários da rede não estão sujeitos à censura
prévia que poderia uniformizar dados. Assim cada nó incorpora novos navegantes,

capítulo 5 • 127
que são potencialmente tanto produtores quanto emissores de novos conteúdos
(Figura 5.2). Por nó entendemos aqui um “ponto de conexão” por meio do qual
os usuários se ligam uns aos outros.

Figura 5.2  –  Todo internauta é também um produtor de conteúdo.


Fonte: Hobbit . Shutterstock. DP.

Não estamos mais diante de um modelo tradicional de comunicação em que


tínhamos um centro emissor, como a TV, alcançando milhões de receptores.
Esse modelo, que pode ser sintetizado pela expressão “um-todos”, foi substituído
por uma nova equação: “todos-todos” (Figura 5.3).

Figura 5.3  –  Novos modelos comunicacionais. Fonte: Rawpixel.com. Shutterstock .DP.

capítulo 5 • 128
O que isso quer dizer? Basicamente, o usuário deixa de ser mero consu-
midor e pode, ao mesmo tempo, produzir e receber conteúdos. Temos um
modelo comunicacional não mais hierarquizado, pois a comunicação tende a
se estruturar horizontalmente. Em tese, todos podem produzir e consumir de
maneira muito mais democrática. “A dinâmica da internet como um sistema
universal desprovido de centros fixos de enunciação e também de significações
unívocas não encontra paralelo nos meios de comunicação que conhecemos
até hoje” (MORAES, 2000, p. 143). Cabe, por isso, à própria capacidade do
usuário decidir como usar esse mosaico de possibilidades, pois no ciberespaço
as contradições não precisam ser silenciadas. Com isso, queremos enfatizar
que a veiculação de diferentes conteúdos faz parte da própria natureza da di-
mensão on-line. O teor político do que produzimos e postamos na rede varia
de acordo com a nossa própria visão de mundo. “Em última análise, são os
usuários – indivíduos ou coletivo – que acabam por determinar os sentidos
possíveis para as mensagens” (Idem, p. 144).
Apesar dessa análise inovadora do potencial da internet, existem outros ele-
mentos que devem ser observados na construção da rede. O primeiro deles leva
em consideração um dos conceitos-chaves elaborados por Michel Foucault: o de
microfísica do poder. As relações sociais são atravessadas por diferentes formas
de poder, que se ramificam ao longo de toda a sociedade, alcançando a dimensão
microfísica dos indivíduos nas suas menores interações. Dentro desse raciocínio,
apesar de não se apresentarem como dispositivos de controle, as mídias on-line
possibilitam a constituição de novas formas de vigilância e punição. Por exemplo,
o Facebook contribui para que empresas analisem o perfil de seus potenciais fun-
cionários durante o processo de contratação, pois grande parte da constituição do
self do indivíduo é exposta publicamente na rede. Nesse sentido, eis a pergunta:
a dimensão on-line não estaria contribuindo para a reconstituição de dispositivos
semelhantes ao pan-óptico? Como podemos observar, um dos elementos centrais
do poder – conforme nos ensinou Foucault – é sua aparente neutralidade, o que
pode deslocar nossa atenção das novas modalidades de controle modernas que
surgem com a internet.
O segundo elemento diz respeito ao fato de que as grandes corporações que
nasceram no Vale do Silício se constroem criando e, consequentemente, mani-
pulando a informação. Pela expressão Vale do Silício entendemos a região da
Califórnia (EUA) na qual foram criadas e desenvolvidas várias empresas de tecno-
logia. Nesse sentido, grandes empresas da área tendem a controlar as informações

capítulo 5 • 129
tal como a mídia tradicional. Para os objetivos de nossa discussão, o ponto central
é que a informática há muito deixou de ser apenas um mero setor da economia
para se transformar na esfera social em que grande parte da produção, do comércio
e das finanças está se desenvolvendo. A vida cotidiana e o próprio poder do Estado
também são afetados pelas grandes corporações, como resultado desse complexo
processo que privilegia a tecnologia.
O Facebook, por exemplo, tem detalhes dos usuários à sua disposição que,
em tese, possibilitam a identificação da inclinação política de cada perfil, ao passo
que a ferramenta de busca Google pode atuar de maneira mais invisível, gerando
a impressão de que o dado obtido é neutro e imparcial. Reportagem da revista
Carta Capital (de 06/05/2016) aponta que, em pesquisa publicada nos Estados
Unidos em 2015, candidatos postos no topo da lista de busca obtiveram vantagem
de 37% sobre os demais. Tratava-se de estudo sobre eleições fictícias nas quais os
eleitores – 2 mil participantes de 50 estados americanos – deveriam opinar antes
e depois de utilizar um buscador fictício. Em outra análise, os resultados de busca
manipulados influenciaram a opinião de 33,9% dos pesquisados sobre técnicas de
extração de gás e petróleo. De acordo com Robert Epstein, um dos participantes
da pesquisa, o Google tornou-se a principal porta de entrada do conhecimento e
geralmente é bom em dar informação procurada nas primeiras posições. Para ele,
cerca de 50% dos cliques vão para os primeiros dois colocados da lista e mais de
90% para os dez primeiros.
Até agora, estamos enfatizando a dimensão on-line, ou seja, discutindo a re-
lação do usuário com a rede, seus modos de interação, as novas possibilidades de
comunicação e, acima de tudo, as potencialidades da internet. Por outro lado,
você também deve ficar atento à outra dimensão (a dimensão concreta da vida, o
espaço da rua, do debate político, a interação face a face), pois ela ainda é uma das
características essenciais de nossas relações sociais. O ponto central aqui é que você
não deve pensar a dimensão do ciberespaço separadamente das interações coti-
dianas que ocorrem, por exemplo, na rua e na faculdade. Seguindo esse raciocínio,
a internet e o espaço da rua – ou seja, a dimensão on-line e a concreta – devem
ser analisados (e vividos) como esferas de vida complementares. Para Moraes
(2000), nenhuma dessas dimensões fica presa em si mesma; ao contrário, elas
interagem, comunicam-se e se influenciam o tempo todo. Quantas manifestações
ocorrem a partir de debates na internet? “É, pois, viável combinar os instrumentos
de ação político-cultural que o real e o virtual fornecem, sem perder de vista que é

capítulo 5 • 130
no território físico, socialmente reconhecido e vivenciado, que se tece o imaginá-
rio do futuro” (Ibidem, p. 144).
Outro importante aspecto sobre o qual você pode refletir neste momento
diz respeito aos grupos políticos e à sua luta pela conquista de hegemonia – a
direção político-cultural de uma sociedade. No Brasil, você já percebeu que,
nos últimos anos, todas as grandes manifestações públicas nascidas na internet
sempre foram patrocinadas por um grupo político? Mesmo as manifestações
de 2013, nascidas das discussões sobre a meia passagem, foram ampliadas por-
que vários grupos políticos apoiaram o movimento e, durante esse processo,
incluíram suas bandeiras de luta à manifestação. Tudo isso tem relação com
Gramsci na medida em que, para ele, uma sociedade é um espaço de disputas
hegemônicas de tal sorte que cada grupo social específico lutará para impor –
pelo convencimento – suas ideias sobre os demais segmentos sociais. Seguindo
essa lógica, a dinâmica política consiste no debate de ideias e na tentativa
constante de vencer as posições do adversário.
Nesse sentido, o fortalecimento hegemônico de um grupo consiste na ex-
pansão de sua perspectiva político-cultural – hegemonia – sobre os demais, pos-
sibilitando novas coligações políticas e, como resultado, a conquista do poder.
Todo esse intenso movimento de persuasão tem como um de seus elementos
centrais o intelectual orgânico, que, como dissemos, organiza o conhecimento
e os sentimentos de seu grupo social e os comunica politicamente aos demais
atores políticos, dentro da dinâmica de luta por hegemonia.
No entanto ainda há outra questão essencial para você refletir. Certamente, já
ouviu alguém dizer que, com a internet, o jornal impresso acabaria. Esse discurso,
por sua vez, já foi usado nas discussões sobre TV e rádio, nas quais se afirmava que
o nascimento da primeira acabaria com as transmissões radiofônicas. Mas, como
você sabe, nada disso aconteceu. Todas as mídias – desde o rádio até os veículos
on-line – continuam presentes e agindo em nosso cotidiano; além disso, são mais
bem-compreendidas a partir das interações recíprocas, complementares e não
substitutivas (Figura 5.4).

capítulo 5 • 131
Figura 5.4  –  Virtual e real: relação de complementaridade.
Fonte: Nenetus. Shutterstock. DP.

EXEMPLO
Você já refletiu sobre sites como o do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra (MST) ou da Anistia Internacional Brasil (AI)? Peguemos algumas das manchetes
dos dois. Da Anistia, temos: “Debate: ‘Mulheres negras na resistência e mobilização por
direitos humanos’ lota cine Odeon”; “É hora de líderes globais garantirem justiça, verdade
e reparação para os milhões de vítimas” (sobre a guerra na Síria). No site do MST, por
outro lado, temos: “Frentes se unem às centrais sindicais e fortalecem a greve geral do
28 de abril”, “MST lamenta a morte do militante Arcanjo Neto”. A existência do ciberes-
paço está possibilitando participações políticas e intervenções nas discussões públicas
que, de outro modo, seriam muito mais difíceis. Mas, como estudante, você deve também
refletir sobre o fato de que esses sites também se posicionam politicamente – sem
nenhuma neutralidade. Nesse sentido, eles expressam uma visão de mundo específica
sobre a realidade – ou seja, tal qual a mídia empresarial, Anistia e MST elaboram sua pró-
pria hegemonia e tentam compartilhá-la com seus leitores. Sua ressonância (seu grau de
propagação na sociedade) é menor, mas isso não significa que não haja luta hegemônica
na forma de disputa pelo controle de informação (Figura 5.5).

capítulo 5 • 132
Figura 5.5  –  MST: intenso uso da rede como tática contra-hegemônica.
Fonte: Wilson Dias/ABr. Wikimedia. DP.

Moraes ainda destaca que, entre as características democráticas das redes que
contribuem para o aumento da liberdade de expressão, estão o barateamento dos
custos, a abrangência global e a velocidade de transmissão, circulação e veiculação
das mensagens além da autonomia diante de centros tradicionais de mídia. O
alcance internacional dessa mídia é outra de suas propriedades positivas. Dentro
do pensamento de nosso autor, se os efeitos negativos da globalização tendem a
atingir todo o planeta, a resistência deve se dar também em nível global. Aqui,
tocamos em um ponto fundamental: a globalização. Como já discutimos, ela é um
processo que ocorre não apenas no âmbito econômico, mas também no social,
político e cultural. Nesse sentido, ela estabelece a integração entre países, insti-
tuições, empresas e pessoas de todo o mundo, gerando troca de ideias, transações
financeiras e comerciais, além de contribuir para espalhar valores culturais. Como
a tecnologia é uma de suas bases estruturantes, a globalização contribui para a
redução das distâncias. Ela é, portanto, um processo complexo que articula e
reconfigura diferentes dimensões sociais.
Para nosso autor, trata-se de enfrentar o lado negativo desse processo – como,
por exemplo, a imposição de valores culturais hegemônicos – e de estabelecer
formas de conquista de novas hegemonias. As novas tecnologias, portanto, seriam
os dispositivos mais adequados à resistência global e à criação de formas participa-
tivas, horizontais e dialógicas de comunicação. Só para você ter uma ideia, um site
como o da Anistia Internacional possibilita, pelo menos, três conquistas:

capítulo 5 • 133
•  Publicar internacionalmente denúncias de abusos de Direitos Humanos e
acompanhar suas investigações;
•  Interconectar ações direcionadas para a defesa de Direitos Humanos;
•  Agilizar denúncias contra abusos de Direitos Humanos (como torturas, por
exemplo) e providenciar soluções.

Para concluir essa parte, podemos dizer que a nova estrutura comunicacional
contribui para a consolidação de práticas comunicativas interativas, pois todos
podem dialogar. Além do mais, essas ações, como mostramos, são descentralizadas
e, por isso, não estão submetidas aos recursos centralizadores e hierarquizados da
mídia tradicional. “As entidades civis valem-se da internet enquanto esfera pública
de comunicação livre de regulamentação e controles externos para veicular infor-
mações e análises quase sempre orientadas para o fortalecimento da cidadania e
para o questionamento de hegemonias constituídas” (Ibidem, p. 153). Diante de
tudo isso, o ciberespaço traz consigo um enorme potencial para acentuar a visi-
bilidade de agentes civis no espaço público, como é o caso do MST, formando
comunidades virtuais por afinidades eletivas.

REFLEXÃO
A expressão pós-verdade foi formalmente introduzida no Dicionário Oxford em 2016.
Você já ouviu falar dela? De acordo com Oxford (2016), ela “se relaciona ou denota cir-
cunstâncias nas quais os fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública
do que apelos à emoção e crenças pessoais”. A expressão demonstra a crescente perda
da importância da verdade no debate político. Reportagem do site Nexo (de 16/11/2016
e atualizada em 19/04/2017) traz como exemplos as eleições presidenciais americanas
de 2017, vencidas por Donald Trump, e a saída do Reino Unido da União Europeia (UE),
conhecida como “Brexit” – ambas como representações do uso indiscriminado da mentira
como substituto da busca da verdade. No primeiro caso, difundiu-se a notícia de que Barack
Obama, então presidente dos EUA, foi o criador do Estado Islâmico; no segundo, veiculou-se
que a permanência do Reino Unido, na EU, estaria custando US$ 470 milhões por semana..
Nas duas situações, podemos observar o modo como o uso da mentira se conver-
teu em estratégia bem-sucedida de apelo a preconceitos e emoções. Apesar de terem
sido desmascaradas como falsas, a denúncia não bastou para mudar o voto majoritário
nos dois exemplos. Nesse sentido, a mídia on-line – pense no Facebook – parece con-

capítulo 5 • 134
tribuir ainda mais para a proliferação de boatos infundados por meio da replicação de
dados obtidos sem verificação. O resultado desse processo, como você deve imaginar,
é a proliferação indiscriminada de notícias falsas a partir da replicação de comentários
e dados nas redes on-line. As relações de confiança, afeto e respeito na rede não ape-
nas parecem contribuir para o aumento exponencial da pós-verdade, mas também lhe
conferem legitimidade.

Até aqui, mostramos a você um modo de analisar as mídias digitais, tendo


como base os conceitos de hegemonia e contra-hegemonia. Agora, nossa intenção
é lhe oferecer outra maneira de refletir sobre as mesmas mídias, mas usando o
conceito de esfera pública que já estudamos. Dentro dessa perspectiva, estruturada
a partir do pensamento de Habermas, demonstraremos como o autor amplia o
conceito de esfera pública em seus últimos escritos e de sua validade para nossos
estudos. Portanto, na próxima parte, você terá outra possibilidade de estudar as
mídias digitais.

A nova esfera pública e as mídias digitais

De antemão, é preciso deixar de lado algumas ilusões tradicionais que


contaminam as reflexões sobre as novas tecnologias. A primeira delas diz
respeito à ênfase colocada, muitas vezes, nos aspectos técnicos da internet,
privilegiando a dimensão mais descritiva dos estudos sobre as mídias on-line.
Em segundo, existe a tendência a se associar de forma determinista o poten-
cial das novas tecnologias à revitalização das instituições e práticas democrá-
ticas. Dentro dessa linha de pensamento, toda nova tecnologia impactaria
democraticamente a sociedade. No entanto, você deve ficar atento, pois tais
tecnologias de ponta também podem ser instrumentalizadas para construir
formas centralizadoras de poder, como no caso das disputas de mercado en-
tre provedores. Resultado: a emergência de elites transnacionais no mercado
tecnológico cada vez mais competitivo. Portanto, refletir sobre as relações
entre novas tecnologias e democracia não implica apenas a existência de
estruturas comunicacionais eficientes.
A consolidação da democracia está relacionada a outros elementos mais
complexos, vinculados à motivação corrente entre os cidadãos, à natureza

capítulo 5 • 135
de seus interesses (particulares e coletivos) e, naturalmente, à sua disposição
em se engajar em debates – o que adensa sua participação na esfera pública.

As novas aplicações tecnológicas, independentemente de favorecer


ou dificultar a democracia, devem ser pensadas de maneira associada
com os elementos sócio-históricos próprios dos atores sociais e com
os procedimentos da comunicação estabelecida entre os sujeitos
comunicantes concretos. (MAIA, 2000, p. 2.)

Nesse sentido, muito mais do que as tecnologias em si, o que está em jogo é a
complexa relação entre rede, democracia e esfera pública. Por isso, nosso objetivo
a seguir é:

•  Refletir de maneira mais aprofundada sobre a esfera pública;


•  Articular a esfera pública e as novas tecnologias, em especial a internet.

Um dos pontos fundamentais da esfera pública é ela não apenas ser adequada
à comunicação de conteúdo, mas também promover a formação de opiniões e,
como consequência, a tomada de decisões. Dentro desse raciocínio, a esfera públi-
ca tem o potencial de possibilitar que os fluxos de comunicação sejam filtrados e
sintetizados a ponto de se condensarem em opiniões públicas, que expressam te-
mas e posições. Desse modo, podemos afirmar que a esfera pública é fundamental,
pois se transforma no local da comunicação, ou seja, no espaço no qual as pes-
soas discutem questões de interesse comum, formam opiniões e planejam ações.
Portanto, a esfera pública pode ser sintetizada como o reino da troca de ideias que
se estabelece fora dos espaços formais do debate político.
Como resultado da elaboração da opinião pública nessa esfera, as autoridades
podem ser questionadas e criticadas a partir de argumentos racionais, elaborados
pelos próprios cidadãos. O ponto central aqui é que o debate crítico faz uso públi-
co da razão – a troca de ideias necessita da visibilidade. Você se lembra do segundo
sentido de público, em Thompson? Outro dos aspectos centrais diz respeito à
ampliação do número de participantes da formação da opinião pública, cuja cons-
trução não pode implicar pressões ou coerções sobre os indivíduos. Ao contrário,
os sujeitos em processo de ação discursiva devem estar em condições semelhantes
para a troca de pontos de vista, dentro de um espírito universal e recíproco.

capítulo 5 • 136
Em síntese, a troca de ideias na Esfera Pública, de Habermas, pressupõe:

•  Universalidade;
•  Racionalidade;
•  Não coerção;
•  Reciprocidade.

Essas “arenas conversacionais” se estruturam, nessa concepção, a partir da


comunicação do agir orientado para o entendimento entre indivíduos. Isso sig-
nifica que o fundamento mais importante da esfera pública é a linguagem que
se apresenta como instrumento potencialmente aberto para parceiros reais – e
futuros. Com o desenvolvimento da ideia de esfera pública, Habermas (1997)
reflete que, nas sociedades modernas, surgem esferas públicas internacionais,
nacionais, regionais e comunais. Como resultado, elas são formadas pela atua-
ção de organizações de voluntários, de grupos que lutam por causas específicas
(violência contra a mulher, desmatamento etc.) e até de agrupamentos de pais
esperando filhos, entre outros. Por isso, grosso modo, podemos resumir os tipos
modernos de esfera pública em:

•  Episódico: como no caso de bares e cafés;


•  Organizado: reuniões de partidos, concertos, encontros de pais;
•  Abstrato: organizado pela mídia na forma de leitores, ouvintes, telespecta-
dores e internautas espalhados globalmente.

Maia (2000) adverte, porém, que Habermas não chegou a estudar o surgi-
mento da esfera pública virtual, dimensão criada pela infraestrutura de novas tec-
nologias da informação e comunicação. Essa tarefa, no entanto, está sendo desen-
volvida pelos novos pesquisadores da área. Para a autora, a articulação entre esfera
pública e internet ocorre na medida em que a dimensão online:

se mostra como um importante “lugar”, uma “arena conversacional”,


na qual o espaço se desdobra e novas conversações e discussões
políticas podem seguir seu curso. As redes eletrônicas permitem com
que as pessoas interajam localmente ou transcendam as fronteiras
do Estado-nação, para trocar informação e compartilhar interesses
comuns em fóruns virtuais, em escala global. (Ibidem, p. 5.)

capítulo 5 • 137
Por outro lado, a internet levanta outra questão central – o problema do acesso
à rede, pois o debate efetivo implica universalização das condições à internet. Maia
(2000) pondera, no entanto, que as “barreiras digitais” existem e que representam
a lógica de exclusão própria das novas tecnologias de informação, que podem ser
apreendidas em diferentes níveis:

•  Grupo do centro: tem pleno acesso às novas tecnologias;


•  Grupo de usuários periféricos: tem acesso às tecnologias, mas a usa episodicamente;
•  Grupo de acesso periférico: pode ter computador, mas não está conectado à
rede; ao contrário, depende de acesso público;
•  Grupo dos “imunes ao progresso”: nunca usa computador, não dispõe de
educação formal necessária na interação com as tecnologias e está excluído.

Dentro dessa linha de raciocínio, as chamadas barreiras digitais acabariam


reforçando, em nível tecnológico, as exclusões socioeconômicas e culturais, re-
forçando assimetrias já existentes e, com isso, ampliando ainda mais a exclusão.
“Além disso, para que as pessoas possam utilizar as tecnologias com propósito e
confiança, pouco adianta ter computadores e conexões disponíveis, se os recur-
sos educativos e cognitivos e a capacitação técnica específica não são providos”
(Ibidem, p. 6). Daí a urgência de projetos de democratização do acesso às tec-
nologias. Por outro lado, a questão do acesso (e da participação) traz consigo o
problema da cultura política favorável à formação de uma opinião pública crítica
e politizada. Grande parte desse potencial, pondera a pesquisadora, advém de
movimentos sociais e organizações voluntárias da sociedade civil “que se mostram
importantes para captar ‘situações-problema’”. São grupos “enraizados nas esferas
sociais” e que têm experiência prática “da existência ou da identidade”.

REFLEXÃO
Um dos pontos centrais da exclusão tecnológica é que ela não diz respeito apenas ao
acesso à rede. Grande parte dos dispositivos tecnológicos, criados a princípio para facilitar a
vida do cidadão, acabou tomando outro destino. O uso de caixas eletrônicos, a resolução de
problemas via telecentros e a conversa com “facilitadores” via computador estão contribuindo
para aumentar a exclusão. Por isso, o conceito de infoexclusão não deve ser pensado ape-

capítulo 5 • 138
nas em termos de acesso à rede, mas como uma ideia mais ampla que aponte para qualquer
tipo de exclusão informacional a que um grupo social é submetido. Nesse sentido, toda tec-
nologia cria os excluídos que não dominam sua nova linguagem. Grande parte das empresas
de seleção faz seu recrutamento via on-line – o e-recrutment, ferramenta que possibilita a
elaboração de cadastro no sistema das instituições, as quais ainda exigem domínio de, pelo
menos, uma língua estrangeira.

Esses grupos tendem a formar, nesse sentido, “redes cívicas” que se expressam,
comunicam-se e se consolidam usando novas tecnologias. Por isso, a esfera pública
moderna não pode ser pensada sem você observar que, cada vez mais, ela se liga e
se expressa em novas dimensões sociais – como os veículos on-line. Nosso objetivo
agora é demonstrar tais usos, potencialidades e iniciativas.

A nova esfera conversacional: os estudos de André Lemos

Outro pensador das novas tecnologias, André Lemos (2007), também reflete
sobre as transformações em curso na atualidade a partir desses dois grandes mo-
delos de mídia. Muito mais do que mera substituição, eles tendem a se articular.
Para começo de conversa, é preciso você se recordar de que os jornais foram um
dos elementos centrais para a constituição da esfera pública e sua dinamização,
pois era por meio deles que a conversação se estruturava. Os jornais irrigavam
informacionalmente a esfera pública, levando aos leitores temas de ordem coleti-
va. Portanto, aqueles primeiros veículos foram fundamentais na formação tanto
do público, entendido como público leitor, quanto da opinião pública – ambos
formaram as bases da democracia moderna. No entanto, segundo Lemos, a mídia
tradicional acabou difundindo informações homogêneas e, com o advento da
sociedade de massa, misturou fato e entretenimento.
Dentro dessa percepção, a mídia de massa cumpriu dois papéis contraditó-
rios: ela criou a opinião pública, mas também contribuiu para enfraquecê-la.
“É a sociedade do espetáculo e das imagens que mistura realidade ao entreteni-
mento e que, de uma forma ou de outra, cria uma narcose de sentidos”. (LEMOS,
2009, p. 10) Para ele, portanto, apesar de ampliar e consolidar a Opinião públi-
ca, esse tipo de mídia mina a vitalidade social e a força política do público que
ela mesma ajudou a criar. Que mídia é essa? Nosso autor a define como “mídia

capítulo 5 • 139
massiva”. Quais são, então, suas principais características? Como ela atua? Uma
mídia massiva pode ser concebida como aquela que tem fluxo centralizado de
informações. O controle editorial feito pelas grandes corporações midiáticas acaba
por definir os conteúdos que serão publicados. As mídias massivas são aquelas que
se constituem como empresas que buscam lucros, competindo por publicidade, e
que se instituem dentro do modelo de comunicação hierarquizado.
Dentro da linha de raciocínio de nosso autor, esse modelo tradicional está
sendo complementado por uma segunda estrutura de comunicação, chamada de
“mídia pós-massiva”. Vale aqui não esquecer que os modelos não se substituem;
eles, ao contrário, interagem uns com os outros. Essa nova mídia pós-massiva
pode, em linhas gerais, ser caracterizada pela liberação do polo do emissor, o qual é
capaz de produzir conteúdo sem sofrer, necessariamente, censura. O usuário con-
quista autonomia; ao mesmo tempo, em tese, esses novos produtores de conteúdo
não competem por verbas publicitárias, como as empresas de mídia massiva. Além
disso, em função de seu caráter descentralizado, essas mídias pós-massivas estão
espalhadas por todo o globo, ou seja, não estão concentradas em território fixo.
O fluxo de informação, por sua vez, promove a interação entre todos, rompendo
a centralização estrutural das corporações do setor. Um dos resultados é a criação
de verdadeiros nichos, ou seja, grupos de usuários que se especializam tanto na
produção quanto na leitura e interação desses novos conteúdos.
Tudo isso cria as condições para uma verdadeira conversação planetária, mas
que pode reforçar os vínculos locais, pois cada comunidade de internautas pode
reelaborar ações globais a partir de suas próprias necessidades. Reutilizamos da-
dos coletados na rede com a possibilidade de reaplicá-los, muitas vezes, em nossa
comunidade. “A conversação aberta e livre é a base para a ação política” (Ibidem,
p. 13). Essa nova relação permite que a conversação ocorra no próprio momento
da produção e troca de informações. Não há, como na mídia tradicional, um
intervalo entre a recepção da notícia e a sua reação. Na dinâmica do ciberespaço,
a produção de informações e a conversação acontecem no mesmo instante.
Como resultado, temos uma nova esfera pública, muito mais conversacional que
informacional, pois sua natureza possibilita interações quase que instantâneas.
Qual o resultado dessa nova forma de interação? O usuário deixa de ser um mero
espectador, isto é, um simples consumidor de espetáculos, e adquire nova posição,
estando apto a colocar suas ideias como base de qualquer conversa.
O que você tem a dizer? Essa passa a ser a questão fundamental. Nesse sentido,
a discussão sobre um ponto de vista é o primeiro passo para a transformação do

capítulo 5 • 140
mundo à sua volta. Uma esfera pública conversacional traz consigo esse grande
potencial transformador – o do resgate da essência da política, isto é, da reflexão
e da ação transformadora das coisas ao seu redor. “A potência sociocultural da
conversação está em marcha” (Ibidem, p. 21). Nosso autor, portanto, aposta no
ciberespaço como uma possível estratégia para a construção de uma “nova esfe-
ra pública de conversação” (Figura 5.6), resgatando o potencial transformador
das redes sociais e contribuindo para transformá-lo em uma nova arena política.
Podemos sintetizar sua ideia a partir da articulação da rede, isto é, do ciberespaço,
com a democracia participativa atingindo dimensões globais.

Figura 5.6  –  Mídias pós-massivas contribuem para um novo tipo de conversação.


Fonte: Chaay Tee. Shutterstock. DP.

Por isso, com a liberação da palavra, isto é, com a possibilidade que cada
um tem de produzir conteúdos, as interações planetárias podem contribuir para
transformações socioculturais. Tudo isso, como dissemos, é uma grande aposta
– e uma aposta positiva na potencialidade das novas mídias e na conformação
de novas formas de sociabilidade e fortalecimento da democracia participativa.
Democracia, conforme Habermas tão bem ensinou, tem a ver com participação,
diálogo, interação, reciprocidade.

REFLEXÃO
As diversas características do ciberespaço, entre elas a liberdade e o anonimato, tam-
bém podem acarretar efeitos negativos, como crimes – a exemplo de pedofilia, racismo,

capítulo 5 • 141
homofobia etc. Tendo em vista a abertura propiciada pela dimensão on-line, crianças e
adolescentes acabam sendo expostos na rede, tornando-se vítimas de criminosos que se
apropriam das facilidades tecnológicas. De acordo com a ONG SaferNet, no Brasil a cada
mês são criados pelo menos mil novos sites de pornografia infantil, dos quais as maiores ví-
timas são crianças entre 9 e 13 anos – e também bebês de 0 a 3 meses. Um dos aspectos
da rede que mais facilitam a ação de pedófilos é o anonimato, pois os criminosos podem
se esconder, criando falsos perfis e, ao mesmo tempo, adotando linguagem de fácil com-
preensão. Acrescente-se a isso o uso de jogos interativos por meio dos quais as vítimas
entram em contato com várias pessoas – inclusive os criminosos. Além disso, a pedofilia
está na base de um grande mercado de venda de imagens de crianças e adolescentes
mediante diversas formas de pagamento.

Nosso objetivo foi mostrar a você diferentes formas de analisar as novas tecno-
logias além de sua dimensão propriamente técnica. Nesse caso, você acompanhou
duas possibilidades ricas de reflexões e de potencial transformador – a matriz de
pensamento de Gramsci e de Habermas. Agora, vamos refletir um pouco mais
sobre a formação de nossa cidadania, que, naturalmente, está ligada à formação e
ao adensamento de nossa própria democracia.

A construção da cidadania e da democracia

Você deve ter notado que, ao longo deste último capítulo, estamos refletindo
sobre as novas aberturas e possibilidades oferecidas pelas novas mídias – as mí-
dias pós-massivas – e de sua complementaridade com as mídias tradicionais – as
massivas. O ponto-chave de nossa discussão diz respeito a uma questão central:
a construção da cidadania no Brasil. Não há democracia sem exercício efetivo da
cidadania. Por isso, temos de enfatizar algo essencial: não há cidadania – e muito
menos democracia – sem democratização da comunicação. Qualquer exercício
cidadão de fato passa pela pluralidade informacional como parâmetro inalienável
da consolidação daquilo que vimos chamando de Esfera Pública e sua parceira, a
opinião pública. Então, apesar de parecer simples, algumas indagações tomam o
primeiro plano de nossas reflexões: o que é cidadania? Qual é o seu percurso no
Brasil? Como a cidadania se relaciona com os oligopólios midiáticos? Enfim, que
democracia, afinal, é a democracia brasileira?

capítulo 5 • 142
A cidadania tem a ver com a conquista e o exercício efetivo de certos direi-
tos, considerados essenciais à vida humana. “Tornou-se costume desdobrar a
cidadania em direitos civis, políticos e sociais”. (CARVALHO, 2006, p. 9) Um
cidadão pleno seria aquele capaz de desfrutar, como o autor mesmo coloca, de
todos os três direitos. Assim, os direitos civis seriam aqueles relacionados à vida
humana, à liberdade, à igualdade perante a lei, à propriedade. Dessa maneira,
cabe-nos dizer que tais direitos básicos podem, por sua vez, acarretar outros
derivativos, como o direito de ir e vir e de expressar sua própria opinião. Por
isso, em grande medida, esses direitos fundamentais exigem a existência de uma
justiça livre, teoricamente imparcial, barata e de acesso fácil a todos. “Sua pedra
de toque é a liberdade individual” (Ibidem, p. 9).
Já os direitos políticos são aqueles que dizem respeito à participação de to-
dos nós no governo da sociedade e consistem no exercício de nossa capacidade
de defender um ponto de vista, enfim, uma ideologia. Por isso, ao contrário do
que se pensa, os direitos políticos não podem ser reduzidos à filiação partidária –
como a criação e organização de um partido. Dentro desse raciocínio, qualquer
cidadão, sem filiação partidária alguma, pode por exemplo entrar com pedido
de impeachment contra presidentes – o que é uma forma de exercício de direito
político. O voto é outra ação que também representa o mesmo direito. Mas sem
direitos civis, como a liberdade de expressão, os direitos políticos (como o do
voto e o pedido de impeachment) ficam “esvaziados de conteúdo”, adquirindo
existência meramente formal. Portanto, falar em direitos políticos significa tam-
bém defender a existência de partidos livres e de um Parlamento. “Sua essência
é a ideia de autogoverno” (Ibidem, p.10).
E os direitos sociais? Podemos afirmar que “os direitos sociais garantem a
participação [da sociedade] na riqueza coletiva” (Ibidem, p. 10). Eles dizem res-
peito ao direito à educação pública de qualidade, à saúde pública universal e de
qualidade, ao salário-mínimo justo e, naturalmente, à aposentadoria. Portanto,
para o autor, a garantia da existência desses direitos depende de um Estado forte
e acessível a todos, pois esses são os direitos responsáveis pela diminuição das de-
sigualdades sociais em sociedades capitalistas. “A ideia central em que se baseiam
é a justiça social” (Ibidem, p. 10).
Um dos pensadores que refletiu sobre o desenvolvimento desses direitos foi T.
A. Marshall, que analisou seu processo tendo a Inglaterra como parâmetro. Dentro
da análise histórica de Marshall, cada direito se desenvolveu com consequência do
anterior. Foi com base nas liberdades civis, por exemplo, que os ingleses, após

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árduas lutas, conquistaram o direito ao voto, que, por sua vez, levou o Partido
Trabalhista inglês ao poder. Os trabalhistas, então, conseguiram implementar as
conquistas relativas aos direitos sociais, articulando a longa história de consolida-
ção dos direitos de cidadania. “O surgimento sequencial dos direitos sugere que a
própria ideia de direitos e, portanto, da própria cidadania é um fenômeno histó-
rico” (Ibidem, p. 11). Todo esse processo se constitui, como demonstramos, pela
consolidação de duas liberdades: a civil e a política.

Na história do Estado Moderno, as duas liberdades são estreitamente


ligadas e interconectadas, tanto que, quando uma desaparece, também
desaparece a outra. Mais precisamente: sem liberdade civil, como a
liberdade de imprensa e de opinião, como a liberdade de associação
e de reunião, a participação popular no poder político é um engano;
mas, sem participação política no poder, as liberdades civis têm
pouca probabilidade de durar. Enquanto as liberdades civis são uma
condição necessária para o exercício da liberdade política, a liberdade
política, ou seja, o controle popular do poder político é uma condição
necessária para, primeiro, obter e, depois, conservar as liberdades civis.
Trata-se, como qualquer um pode ver, do velho problema da relação
entre liberalismo e democracia. (BOBBIO, 1996, p. 65.)

Para concluir nossa discussão, procuramos demonstrar que a liberdade de ex-


pressão e pensamento, em geral, e das mídias, em particular, é a condição funda-
mental para a construção e o exercício pleno da democracia em qualquer socieda-
de. Para tanto, é necessário que você permaneça atento aos fundamentos políticos
que compõem a base dos modelos de estruturação midiática, os quais podem
tanto contribuir como impedir a instituição da pluralidade informacional. Dessa
forma, o pleno exercício da democracia – que sempre implica participação – exige
a diversidade e a pluralidade midiática como fundamento essencial à formação
de uma opinião pública. Somente uma opinião pública consistente e crítica pode
fazer da democracia – e da cidadania – um exercício constante de diálogo, voltado
ao entendimento a partir da força do melhor argumento. Mas, tendo em vista que
toda sociedade é uma estrutura de conflitos sociais, a livre expressão das diferen-
ças, ecoadas em diferentes mídias, é a única possibilidade efetiva de resgate e defesa
permanente dos ideais democráticos.

capítulo 5 • 144
RESUMO
Em síntese:
•  Vimos que as novas tecnologias possibilitaram a construção de novas modalidades de mídia;
•  Discutimos os conceitos de hegemonia como tipo de domínio político-cultural e como a
mídia tradicional tende a elaborar visões hegemônicas junto ao imaginário coletivo;
•  Refletimos sobre o conceito de contra-hegemonia, isto é, como as novas mídias podem
elaborar visões de mundo contrárias às hegemônicas, impondo sua ideologia;
•  Estudamos as características das novas mídias e a sua estrutura descentralizada, além de
seu novo modelo de comunicação, baseado na relação “todos-todos”, em oposição à mídia
tradicional (“um-todos”);
•  Enfatizamos a velocidade de transmissão, a liberdade de produção de conteúdos e a di-
mensão planetária das novas mídias, o que potencializa apropriações contra-hegemônicas
por parte das mais diversas entidades civis;
•  Demonstramos que a resistência aos aspectos negativos da globalização tornou-se internacional;
•  Estudamos o conceito de mídias massivas e pós-massivas e suas funções na socieda-
de moderna;
•  Ressaltamos que os dois tipos de mídias não substituem um ao outro; ao contrário, eles
se complementam;
•  Refletimos sobre a potencial construção de uma nova Esfera Pública conversacional, ca-
racterizada muito mais pela dinâmica da conversação do que pela troca de informações;
•  Discutimos as várias etapas da construção da cidadania e dos obstáculos à concretização
da democracia no Brasil diante da estrutura oligopolizada da mídia brasileira.

ATIVIDADE
1) Discuta as principais características da mídia on-line de acordo com as reflexões de Dênis
de Moraes.

2) Discorra sobre a sequência dos direitos de cidadania e a sua relação com a estrutura
oligopolizada da mídia brasileira.

capítulo 5 • 145
EXERCÍCIO RESOLVIDO
1) As novas mídias são caracterizadas pela descentralização, o que possibilita a cada usuá-
rio publicar informações a partir de um ponto diferenciado da rede. Além disso, elas não
obedecem à estrutura centralizada das mídias tradicionais, o que permite que a produção
de conteúdos não seja submetida, em tese, a nenhum controle ideológico. Isso aponta tam-
bém para outro elemento: a diversidade ideológica presente em seus conteúdos o tempo
todo. Além disso, tais mídias têm alcance global, o que potencializa sua apropriação pelas
entidades civis, ampliando a resistência aos efeitos perversos da chamada globalização. Tais
mídias também são consideradas de estrutura comunicacional horizontal, de modo que todos
possam produzir para todos.

2) Os direitos humanos podem ser pensados como conquistas históricas em sequência de


acordo com a visão de T. A. Marshall. Assim, tivemos, em primeiro lugar, os direitos civis,
relacionados com a conquista das liberdades básicas do direito à vida, à propriedade, ao
ir e vir, à liberdade de expressão. Em seguida, dentro desse processo histórico, surgem os
chamados direitos políticos, que consistem na possibilidade de que a sociedade participe
do governo por meio da instituição de partidos, do voto, da criação de um Parlamento e
do exercício de seus pontos de vista e ideologias. Por fim, foram conquistados os direitos
sociais, que dizem respeito ao modo como a sociedade participa da riqueza coletiva – por
exemplo, por meio do acesso à educação pública de qualidade e de saúde universal. São
esses os direitos básicos de constituição da cidadania. Sua relação com o monopólio da
Comunicação é negativa no sentido de que toda cidadania plena exige, necessariamente,
a pluralidade de informação, como uma espécie de direito de quarta geração, ou seja, um
direito posterior aos direitos sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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