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Resumo
A inserção dos psicólogos na Saúde Pública foi estimulada a partir da Reforma Sanitária Brasileira. No entanto a
formação em Psicologia, ao privilegiar um modelo de clínica tradicional, desconsidera as especificidades da prática
nesse âmbito. Tal contexto justifica a presente pesquisa, que buscou cartografar a prática dos psicólogos nas Policlínicas
Municipais do Recife. A metodologia utilizada funda-se em um enfoque qualitativo de cunho fenomenológico. Os
dados foram colhidos via narrativas e interpretados através do método proposto por Giorgi. As conclusões apontam
para a necessidade de desenvolver uma atitude clínica ético-política vinculada às dimensões histórico-culturais e
socioeconômicas da população. Assinala para a necessidade de se repensar a formação acadêmica dos psicólogos,
privilegiando modalidades de prática psicológica que possam acolher a demanda de sofrimento dos usuários,
privilegiando uma maior articulação com o social.
Palavras-chave: Fenomenologia; Formação do psicólogo; Políticas públicas; Modalidades de prática.
Abstract
Psychologists’ incoming in Public Health was stimulated since the Brazilian Health Reform. However, psychology
formation privileges a traditional clinical model which does not consider this practice’s specificities. Such context
justifies the present research, which aimed to map psychologists’ practice in Municipal Polyclinics from Recife
City. Used Methodology based on a qualitative phenomenological focus. Data were collected through narratives
and interpreted using Giorgi method proposal. Conclusions point to a need to develop an ethical-political clinical
attitude, linked to the population’s historical, cultural and socio-economical dimensions. It also sign the need to
rethink psychologists’ academic formation, privileging modalities of psychological practices that can answer to
sua atuação como psiquiatra, discordou enfaticamen- destinadas a reverter o modelo assistencial organicis-
te dos tratamentos dados aos pacientes dessas insti- ta e medicalizante que havia” (Dimenstein, 1998, p.
tuições. Essa situação pôde ser vista com frequência 63).
nos hospitais psiquiátricos brasileiros, a exemplo do É nesse momento histórico que o profissional de
Hospital Colônia de Barbacena, instituição essa vi- Psicologia passa a atuar na rede pública de saúde, in-
sitada por Basaglia em 1979 (Antunes, Botelho & serindo-se no setor público de atenção à saúde men-
Costa, 2013). tal. Desde a criação da Psicologia como profissão,
Tal contexto histórico foi o marco disparador da em 1962, a ação do psicólogo estava voltada para a
necessidade de inserir o doente mental na sociedade, atuação na clínica privada, na escola e na indústria,
tarefa assumida pela Reforma Psiquiátrica. Datada centrada na dimensão técnico-científica, alienada do
na virada da década de 1970 para a de 1980, funda- processo histórico e político em que a Psicologia es-
mentava-se nas críticas de maus tratos, abandono, tava inserida. A partir da década de 1980, uma nova
fraudes no financiamento e em todos os excessos e problemática se impõe à Psicologia, advinda da inser-
desvios constatados nos hospícios (Tenório, 2001). ção dos psicólogos na rede pública de saúde sob a in-
A Reforma objetivava responder às questões sociais, fluência da Reforma Psiquiátrica. No entanto, apesar
políticas, clínicas e, principalmente, à crise do mo- desse novo direcionamento,
delo hospitalocêntrico e aos esforços dos movimen- [...] os cursos universitários de psicologia, parti-
tos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos. cularmente os de graduação, se mostraram geral-
Buscava possibilitar a recuperação da cidadania dos mente inertes frente aos desafios dos novos campos
asilados, defendendo a convivência social com a lou- de atuação profissional na área pública, repetindo
os padrões hegemônicos de formação voltados
cura e, nessa direção, um processo de politização na
para uma prática clínica nos consultórios privados.
prática clínica, com novas formulações em relação a (Vasconcelos, 2004, p. 76).
essa prática e propostas de reformulação legal nas po-
líticas públicas de saúde. Nesse sentido, o psicólogo brasileiro – inserido
O movimento da Reforma Psiquiátrica teve como na rede pública – deparou-se com questionamentos
meta principal a luta antimanicomial convocando a sobre sua prática, até então fundados em modelos
todos para a discussão e reconstrução da relação com técnico-científicos derivados da Ciência da Natureza
o louco e a loucura. O marco dessa luta foi a VIII Moderna e transportados para a constituição da
Conferência Nacional de Saúde realizada em 1986, Psicologia sem uma explicitação e diferenciação de
essa conferência teve um papel primordial em todo seu objeto de estudo, gerando os grandes sistemas
o movimento desencadeado pela crítica ao modelo psicológicos sustentados por uma pseudo unidade da
hospitalocêntrico e apresentou as bases da Reforma Psicologia (Cimino & Barreto, 2013). E, em
ços psicológicos tradicionais, que são voltados para existencial vem desenvolvendo pesquisas e trabalhos
o atendimento de uma minoria pertencente às clas- que contemplem diferentes possibilidades de práti-
ses média e alta. O crescente envolvimento com os ca psicológica, as quais têm se mostrado eficazes no
serviços ofertados pelas Unidades Básicas de Saúde, atendimento ao sofrimento contemporâneo, entre eles
vinculadas à assistência em Saúde Pública, “vem ge- destacam-se: plantão psicológico, psicodiagnóstico
rando desafios e angústia para os psicólogos compro- colaborativo e oficinas de criatividade. O Plantão
missados com uma transformação pessoal. Para que Psicológico surgiu nos anos 1960, sob a coordenação
esta se efetive, faz-se necessária outra postura, outra de Rachel Rosenberg e Oswaldo de Barros Santos,
forma de conceber as relações sociais, o homem, a sendo considerado um serviço inovador de atenção
vida” (Andrade & Morato, 2004). psicológica prestado à população. É um atendimen-
Retomando o foco da Reforma psiquiátrica, to destinado a pessoas que necessitam de uma ajuda
novos mecanismos de cuidado foram apresentados especializada, no momento da demanda, ampliando
no Projeto de Lei 3657 de 1989 – “Lei da Reforma suas compreensões acerca da situação vivida e bus-
Psiquiátrica”, aprovado somente em abril de 2001. ca de soluções concretas e circunscritas à realidade
Apresentava artigos que apontavam para modifi- sociocultural da clientela atendida (Barreto, 2009).
cações substanciais, no entanto ainda indicava uma Pode ser implantado em ambiente clínico, educacio-
postura tímida em relação à substituição asilar. É im- nal, comunitário ou institucional. Outra importante
portante ressaltar que a referida Lei regulamenta o modalidade de prática psicológica a ser considerada
funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial é o psicodiagnóstico colaborativo, que se constitui
(CAPS), além de deliberar também assistência em como uma proposta diagnóstica que considerada o
outros dispositivos, como por exemplo, os Serviços cliente como um parceiro ativo do processo (Yehia,
Residenciais Terapêuticos, criando moradia para 2009). Nesse sentido, cliente e psicólogo participam
clientela egressa de longa permanência institucional. e constroem em conjunto as possibilidades diagnósti-
Tal perspectiva coincide com a proposta de uma cas de modo a beneficiar o cliente com intervenções
“clínica ampliada”, que aponta para a necessidade de durante o processo, através de uma compreensão
buscar outros saberes/fazeres extraclínicos, neces- mútua para a solução dos problemas. A Oficina de
sários à reformulação do conceito de doença mental Criatividade é outra modalidade a ser considerada;
oriundo da clinica tradicional. Esse olhar supõe uma trata-se de atividades realizadas em grupos – que po-
não valorização da doença ou da sintomatologia tra- dem ser oferecidas em diferentes contextos – e utiliza
dicional, privilegiando um voltar-se para a existência recursos expressivos para o acesso à experiência do
da pessoa doente em sua totalidade, valorizando tanto cliente (Cupertino, 2008). Tal modalidade de prática
as condições objetivas de vida, como as subjetivas aponta para o trabalho do psicólogo – voltado para
Diante da amplidão da rede pública, optamos enquadram nessa perspectiva. Na presente pesquisa,
por cartografar a ação do psicólogo nas Unidades optou-se pela fenomenologia pautada no pensamento
Ambulatoriais – Policlínicas da cidade do Recife, de Edmund Husserl (1976/2008). A fenomenologia
distribuídas nos seis Distritos Sanitários, estes no husserliana, conhecida também como fenomenologia
momento da realização da pesquisa, contavam com pura, considera fenômeno aquilo que se torna pre-
nove Unidades Ambulatoriais - Policlínicas. Tal de- sente e pode ser conhecido por meio da consciência.
limitação justifica-se pelo fato de que a presente pes- Segundo ele, a consciência humana é intencional,
quisa está inserida em um projeto mais amplo, onde ou seja, ela é sempre consciência de alguma coisa,
as demais instâncias de atenção psicológica foram es- cabendo à fenomenologia o estudo da significação
tudadas por outros pesquisadores (CAPS, Programa dessas vivências. Para tanto, propõe “voltar às coisas
de Saúde da Família, entre outras). mesmas” como acesso às essências contidas no modo
de aparecer dos fenômenos que permite aproximar
Material e Métodos dos conceitos que distinguem e classificam os fatos.
Indica a necessidade de suspender os juízos em rela-
Na presente pesquisa, o método utilizado recorreu ção ao mundo transcendente (mundo exterior) para
a um enfoque qualitativo e privilegiou a perspectiva chegar ao fenômeno. Essa postura denominou-se “re-
clínica interventiva de cunho fenomenológico, como dução fenomenológica” e, através dela, é que se che-
estratégia para o acesso e registro da experiência clí- ga à essência do fenômeno em questão.
nica de psicólogos no âmbito da Saúde Pública. Quanto à metodologia de pesquisa, a psicologia
O enfoque qualitativo pressupõe “que as pessoas fenomenológica vincula-se à filosofia interpretati-
agem em função de suas crenças, percepções, senti- vista (Schawandt, 2008). Toda ação humana é con-
mentos e valores, e seu comportamento tem sempre siderada significativa, ou seja, possui um conteúdo
um sentido, um significado que não se dá a conhecer intencional, cabendo ao pesquisador compreender o
de modo imediato, precisando ser desvelado” (Alves, significado que constitui essa ação. A compreensão
1991, p. 54). interpretativa tem três diferentes formas, são elas:
O caráter interventivo, próprio do agir clínico, ao identificação empática, sociologia fenomenológica e
possibilitar espaço para que alguém conte sua expe- jogos de linguagem. A presente pesquisa é baseada na
riência, enfocando o trabalho cotidiano, oportuniza a compreensão pela identificação empática, que busca
elaboração da experiência no próprio ato de contar. captar o significado contido na experiência dos psicó-
O conhecimento passa a ser construído na ação entre logos, ou seja, requer entender a intenção subjetiva do
os envolvidos, momento em que o participante narra ator a partir de dentro (crenças, desejos) de maneira
larização como o conhecer sua própria história, no cadas, buscou-se o que havia de comum nos relatos
próprio lugar em que está. de experiência dos sujeitos colaboradores, para fins
Considerando a narrativa como instrumen- de confirmação e verificação das convergências entre
to, após anuência dos gestores das nove Unidades as experiências destes sobre a pesquisa contida nas
Ambulatoriais - Policlínicas, os psicólogos foram unidades significativas.
informados sobre a pesquisa e convidados a cola-
borar com o estudo. Dos profissionais convidados, Resultados e Discussão
cinco participaram, e a eles foi solicitado – indivi-
dualmente, e em local previamente combinado – que Como proposto no primeiro momento metodo-
relatassem sua experiência clínica na Policlínica à lógico, foi feita a leitura geral de cada entrevista,
qual estavam vinculados. A narrativa foi estimulada buscando a compreensão do sentido do todo, para,
pela seguinte colocação disparadora: “Fale-me da sua posteriormente, partir para identificação das unidades
experiência nos atendimentos psicológicos realizados significativas que configuram o segundo momento
nas policlínicas”. A partir dessa posição, o pesqui- metodológico. As unidades significativas identifi-
sador atentava para os fenômenos vivenciados pelo cadas nas entrevistas dos sujeitos colaboradores,
sujeito colaborador nas suas experiências profissio- focadas na experiência quanto ao atendimento psi-
nais e buscava enfocar os significados relacionados à cológico nas Unidades Ambulatoriais/Policlínicas,
prática clínica destes. são as seguintes: I) acolhimento do usuário; II) com-
As narrativas/depoimentos foram gravadas com preensão de sofrimento; III) modalidades de prática;
a autorização dos sujeitos colaboradores que aceita- IV) sentimento frente às dificuldades; e V) formação
ram participar da presente pesquisa. Posteriormente acadêmica.
foram transcritos e literalizados – diz-se do processo Com a identificação das unidades significativas,
de trabalhar as narrativas – a fim de tornar o texto passamos para o terceiro momento metodológico, que
mais fluido e acessível à leitura e à compreensão res- se constitui na transformação das expressões cotidia-
peitando-se o texto original. Após a confirmação dos nas dos sujeitos numa linguagem psicológica. Pelo
depoimentos literalizados pelos sujeitos colaborado- fato de os sujeitos colaboradores serem psicólogos,
res, os depoimentos foram interpretados, buscando a os relatos já apresentam uma linguagem psicológica,
compreensão do seu sentido pelo pesquisador. o que facilitou o trabalho dos pesquisadores na ela-
Como método de conhecimento e interpretação dos boração da compreensão empática dos depoimentos.
depoimentos, foi utilizada a proposta de Giorgi (2008). Partindo para o quarto momento metodológico, a fim
Tal método fenomenológico “parte das descrições ou de estruturar melhor a experiência, foi feita a síntese
entrevistas transcritas dos participantes sobre suas ex- das unidades significativas transformadas, constituída
atendimento no setor de psicologia, pois não foram diante da demanda, experiência acentuada quando
encontradas causas biológicas para os sintomas en- necessitam selecionar os clientes que “precisam” ser
contrados; mas, apesar desse encaminhamento, não atendidos, reconhecendo a dificuldade de tal decisão
há troca entre os profissionais envolvidos. Os psicó- diante de sintomas e sofrimentos mentais graves.
logos afirmam que, entre os casos que foram encami- Nessa direção, podemos inferir o quanto a objetivida-
nhados e aqueles que são considerados urgentes, os de metafísica da atuação profissional assume impor-
últimos são priorizados. Nesse sentido, percebemos tância secundária diante das ‘coisas como aparecem’
posturas diferentes em relação à grande procura, que (Goto, 2008).
gera a lista de espera, uma vez que alguns psicólogos, Compreensão de sofrimento: Em relação à com-
pelo modo de marcação da Policlínica, sequer têm preensão do sofrimento vivenciado pelos usuários das
acesso ao número de usuários que não são atendidos. Policlínicas, os psicólogos ressaltam que ele possui
Já alguns profissionais relatam que, diante da grande íntima ligação com os fatores familiares, culturais,
procura e aliada ao pequeno número de profissionais econômicos, políticos e sociais. Diante de tamanha
para o atendimento aos usuários, muitas vezes se faz amplitude, os recursos clínicos se mostram insufi-
necessário uma ‘seleção’ daqueles que serão atendi- cientes para responder às queixas, que trazem sofri-
dos, já que não há vagas para todos. mentos muito concretos.
PSI 01: “a demanda de psicologia é grande... há PSI 1: “[o paciente] vive num contexto tão comple-
momentos de saturação... quando encontro aquele xo de sofrimento, junto a outros, que a intervenção
corredor cheio... e digo para mim mesma... o que eu feita ali, no espaço clínico, é uma intervenção pe-
tenho é muito pouco para favorecer... não há vagas quena frente ao que está sendo revelado”.
para a realização de atendimentos mais específicos
PSI 04: “Uma angústia existencial como qualquer
que requerem tempo... essa é uma das dificuldades
criatura na face da terra... o fato de serem pesso-
na prática psicológica em Policlínica Pública... não
as pertencentes a uma classe econômica muito
há vaga para todo mundo, e você tem que favore-
carente... mas as necessidades são... angústias...
cer um limite... às vezes, é preciso selecionar quem
preocupações... dificuldades... dificuldades com
entra... isso é difícil porque os sintomas são graves,
emprego... problema familiar... violência... violên-
e o sofrimento mais ainda... um sofrimento mental
cia doméstica... separação... adolescentes com...
que precisa de uma intervenção... não temos como
problemas de aprendizagem...”
atender...”
Diante de tais relatos, percebe-se a consciência da
Nessa direção, Amatuzzi (2009) ressalta que uma
insuficiência da intervenção psicológica realizada, o
psicologia de inspiração fenomenológica é, princi-
sofrimento dos usuários revela carências que apon-
palmente, caracterizada pela importância que dá ao
tam para a necessidade de uma ação interdisciplinar.
tiva mágica sobre o poder do psicólogo. Estas são [pois] prioriza a subjetividade humana e aproxima-se
possibilidades compreensivas que acompanham a do método qualitativo ... a Psicologia deve partir de
descrição da pratica exercida, uma tentativa de en- sua própria visão de mundo em sua construção cien-
contrar a “essência do fenômeno” gerado na relação tífica, de um retorno às origens fenomenológicas dos
psicólogo-usuário. No entanto ainda consideram que processos psicológicos”.
o não engajamento ao tratamento proposto centra-se Segundo Andrade e Morato (2004), a possibili-
na dificuldade do usuário de “investir” ou “entender” dade de assumir outras modalidades de prática psi-
o tratamento, como apresentado no relato indicado cológica exige uma transformação pessoal que leva
abaixo: a outra postura, outro modo de conceber as relações
PSI 03: “[...] porque a questão do investimento é sociais, o homem e a vida. Tal mudança implica a
uma coisa complicada... o investimento no trata- suspensão dos conhecimentos definidos previamen-
mento aqui... porque tem pacientes que não conse- te sobre a prática psicológica, exigindo um mergu-
guem investir por mais mobilizados que estejam... lhar na relação intersubjetiva que se estabelece en-
não conseguem... na realidade... entender esse tra- tre psicólogo e usuário, para assim poder intuir sua
tamento.... não conseguem evoluir bem... não con- “essência” (Penna, 2001). Ou, dito de outro modo,
seguem usufruir de todos os benefícios... é como se partir do que se revela na relação intersubjetiva para
não tivesse ainda uma compreensão... têm muitos
questionar o modelo proposto a priori pelo psicólogo,
que procuram... porque... assim... tem ‘n’ motivos..
têm aqueles que procuram para se afastar do tra- fazendo uma redução fenomenológica ao modo de
balho... tem uns que procuram para poder pegar Husserl (1976/2008), na busca de outras modalidades
remédio... e tem aqueles que pegam o remédio e de pratica que venham a acolher a real demanda dos
não usam... naturalmente não é comigo... vai para o usuários.
psiquiatra e ele percebe que precisa de um acompa- III) Modalidades de prática: Apesar da ênfase na
nhamento do psicólogo e aí vem pra cá...” psicoterapia individual, foram encontradas também
Dessa forma, os psicólogos indicam que o usuário as seguintes modalidades de prática: oficina diagnós-
não consegue investir no “tratamento”, por não en- tica, plantão psicológico, ludoterapia e atendimentos
tender a proposta, buscando atendimento psicológico em grupo para crianças, adolescentes e adultos. As
como motivo para afastar-se do trabalho ou ser medi- práticas desenvolvidas enfatizam a dimensão subje-
cado. Fica evidente que, nesse momento, o psicólogo tiva do sofrimento vivido pelos usuários e revelam
não questiona se está atendendo às necessidades do a limitação da ação clínica para acolher a demanda
usuário, não conseguindo abrir-se para outras modali- trazida vinculada às questões concretas que envolvem
dades de prática psicológica. Fica preso à perspectiva condições econômicas, culturais, violência, falta de
da clínica tradicional de acompanhamento em longo moradia, entre outros. Essas possibilidades de atendi-
de funcionamento do serviço prestado nos ambulató- apontando para a insuficiência da intervenção psico-
rios, de forma a discutir sobre o papel dessas unida- lógica frente ao grande número de pacientes e com-
des, e para a necessidade de construção de práticas plexidade da demanda apresentada, confirmando a
que atendam a essa nova demanda, contextualizando especificidade da clínica psicológica e das interfaces
as problemáticas emergentes das diversas comunida- que a rodeiam.
des atendidas. PSI 1: “... são poucos psicólogos na Policlínica
Para além de tais compreensões, importa ressaltar para atender as pessoas que buscam atenção... em
a importância da experiência e dos fenômenos que termos de remuneração, também é algo frustrante...
emergem da relação psicólogo-usuário que apontam fica difícil para nós... Há momentos de saturação...
para a necessidade de uma atitude fenomenológica, quando encontro aquele corredor cheio... e digo
privilegiando a descrição e a compreensão dos fe- para mim mesma... o que eu tenho é muito pouco
para favorecer... não há vagas para todo mundo e
nômenos que emergem de tal relação. Atitude feno-
você tem que favorecer um limite...”.
menológica, conforme indica Penna (2001), consis-
te numa experiência direta das coisas como se dão PSI 2: “As dificuldades que a gente tem primeiro
à consciência. Nessa direção, ao relatarem o modo é em relação ao número de profissionais... que eu
acho que ainda é muito restrito ... é a dificuldade da
como trabalham, os psicólogos descrevem sua ação
frustração... daquele sentimento de tristeza porque
como pautada na clínica individual, mesmo consi- em alguns locais vemos que as pessoas não têm o
derando a possibilidade de uma psicoterapia breve. mínimo para sobreviver... De impotência... inclusi-
Ficam na descrição e no reconhecimento da insufici- ve já citei isso no próprio serviço...”.
ência de tal modelo, não conseguindo voltar-se “para
Nota-se que, embora haja nos profissionais o re-
as coisas mesmas” que emergem na relação intersub-
conhecimento das nuances que a prática em Saúde
jetiva com o usuário.
Pública demanda, ainda predomina o sentimento de
PSI 2: “Temos que trabalhar com os recursos que a impotência, possivelmente gerado pela dificuldade
gente pode... então... faço aqui atendimento indivi-
de apropriação dos conhecimentos necessários para
dual ... Procuramos trabalhar mais com a psicotera-
pia breve... mais focal...”.
a atuação na Saúde Pública. Conhecimentos esses,
diferentes daqueles já referendados tradicionalmente
PSI 4: “O trabalho que eu desenvolvo aqui no ser- na construção da identidade do psicólogo e na forma-
viço público... na policlínica... é um trabalho am- ção profissional. As dificuldades no rompimento com
bulatorial e é um trabalho de psicoterapia com ado-
esse referencial também foi evidenciado por Dias e
lescentes e com adultos ... e eu trabalho da mesma
forma que eu trabalho no meu consultório particu- Muller (2008, p. 58) como um processo “muito difí-
lar...” cil, pois coloca em cheque o fazer do psicólogo e sua
observa-se que, à medida que é promovida experiên- partir da Reforma Psiquiátrica possam resvalar cada
cia dialógica entre o vivido e a atuação profissionais vez mais na formação/prática dos profissionais de
promovendo rupturas com o estabelecido nos mode- psicologia, bem como nas melhorias necessárias aos
los institucionais e/ou teóricos, aproxima-se assim, atendimentos prestados por eles na Saúde Pública.
da dimensão ético-política necessária para a prática Reverberando a atualidade das críticas outrora feitas
psicológica em Saúde Pública (Cimino & Barreto, por Husserl (1991 citado por Goto, 2008, p. 106),
2013). Nessa mesma direção, Sá (2009) indica que o ao observar que a ciência moderna está carente de
setting clínico não é mais visto na sua ambiência físi- significados, “isso quer dizer que a ciência não tem
ca e/ou conceitual emergindo da própria experiência respondido, e ainda, nem dado a importância para a
no exercício do cuidado. Tal problemática corrobo- existência humana”.
ra as reflexões de Amatuzzi (2009), que indica que o Diante do que foi revelado, nas entrevistas reali-
atendimento e, por consequência, a sua qualidade ad- zadas, percebemos que os dados confirmam os prin-
quirem grande importância no processo clínico “pois cipais fatores dificultadores expostos por Dimenstein
é a partir desta que a capacidade de ver claramente e (1998), Lima (2005), Yamamoto e Cunha (1998),
de orientar a própria conduta por parte da pessoa que Carvalho, Bosi e Freire (2009): a inadequação da for-
se relaciona com o psicólogo vai se estabelecendo” mação acadêmica para a atuação do psicólogo em ins-
(p.98). Reafirmando, segundo o autor, a necessidade tituições de saúde pública, dificuldade de adaptar-se
de a prática psicológica requerer mais que esclareci- às condições de perfil profissional exigido pelo SUS e
mentos teóricos recorrendo, também, às elucidações a transposição do modelo hegemônico de clínica psi-
de experiências vividas em contextos específicos. cológica tradicional para o setor público. Aliados a
V) Formação acadêmica: os psicólogos afirmam esses fatores, ressaltamos, como dificuldades, o gran-
não terem tido apoio de sua formação acadêmica para de número de pacientes, falta de condições físicas e
atuação no serviço público de saúde. As teorias e téc- materiais e número reduzido de profissionais. Os re-
nicas aprendidas são importadas e não se adaptam sultados apontam para a necessidade de reformulação
à realidade brasileira. Tal contexto demanda grande do modo de funcionamento do serviço prestado nos
ambulatórios, de forma a discutir sobre o papel des-
flexibilidade em nível profissional e pessoal por parte
sas unidades, buscando uma eficaz integração com os
do psicólogo, além da necessidade de estudos com-
outros serviços existentes, de modo a potencializar os
plementares. Além dos fatores já discutidos sobre a
atendimentos em número e qualidade.
identidade/formação profissional do ponto de vista
histórico, Dias e Muller (2008) apontam também o
desconhecimento e desvalorização da atuação do Considerações Finais
Recebido: 30/07/2013
Última revisão: 26/04/2016
Aceite final: 26/04/2016
Sobre as autoras:
Ana Paula Noriko Cimino – Instituto Brasileiro de Gestão & Marketing. Mestre em Psicologia Clínica
pela Universidade Católica de Pernambuco e docente da graduação e pós-graduação (lato sensu) do Instituto
Brasileiro de Gestão & Marketing – Faculdade IBGM. E-mail: ananoriko@hotmail.com
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira Leite – Doutoranda em Psicologia Clínica pela
Universidade Católica de Pernambuco, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco
e docente da pós-graduação (lato sensu) do Instituto Brasileiro de Gestão & Marketing – Faculdade IBGM.
E-mail: daniellesiqueira_psico@hotmail.com