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O grito de independência de turistas pelo mundo e no Brasil

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turistas-pelo-mundo-e-no-brasil/

Acervo Online | Brasil


por Rita de Cássia Ariza da Cruz
14 de setembro de 2020

As cenas fartamente reproduzidas por diferentes meios de comunicação


revelam, especialmente em ambientes praianos, uma espécie de
deslocamento entre realidade e fantasia, como se a viagem tivesse
transportado essas pessoas para um mundo paralelo ou quiçá para um
tempo-espaço assemelhado àquele do chamado “velho normal”

O grito, de Edvard Munch

Brasileiros que, em atenção aos protocolos sanitários estabelecidos por


governos nas diferentes instâncias, permanecem, há meses, restritos na sua
mobilidade espacial cotidiana, acompanharam, talvez admirados, talvez
estupefatos, as notícias sobre lotação em praias e outros espaços
tradicionalmente frequentados por turistas neste feriado da Independência do
Brasil.

Ao contrário, entretanto, da emissão de um simples juízo de valor, buscamos


analisar os fatos, considerando, principalmente, a complexidade de suas
causas, sem enveredar pela análise de seus efeitos, os quais possivelmente
sejam sentidos apenas em futuro próximo. Nessa direção, tomamos a tela de
Edvard Munch (1863-1944), O grito, de 1893, como uma metáfora, dado a
mesma evocar sentimentos muito próprios ao momento que atravessamos,
como ansiedade e incerteza, os quais, por distintas razões, teriam também
marcado a vida de seu autor.[1]

Em 3 de julho passado, uma sexta-feira em pleno feriado prolongado da


Independência dos Estados Unidos, o jornal “The Philadelphia Inquire”
publicou a matéria intitulada “What pandemic? Tourists crowd Jersey Shore
beaches for Independence Day weekend” . É notório que Estados Unidos e
Brasil têm presidentes que minimizam a importância da pandemia em seus
respectivos países assim como, sistematicamente, aparecem em público sem
o uso de máscaras e, no caso do brasileiro, muitas vezes interagindo
fisicamente com pessoas em aglomerações. Entretanto, se faz necessário
destacar que cenas de praias lotadas têm se repetido em diferentes lugares
do planeta, como, por exemplo, Reino Unido, França, Espanha, Portugal e
Austrália, o que indica que esse fenômeno não pode ser compreendido
levando-se em conta apenas o comportamento de respectivos chefes de
Estado.

A transformação das viagens em objeto de desejo e de consumo, ou seja, a


invenção do turismo,[2] decorre de um processo lento, que resulta de uma
convergência de fatores como progressos técnicos e científicos, que
tornaram os deslocamentos humanos mais rápidos, seguros e confortáveis
ao longo dos séculos. Mas, também, da construção social de uma
valorização econômica e cultural das viagens enquanto, por um lado, uma
forma de dinamizar economias locais, regionais e nacionais[3] e, por outro,
uma espécie de escape à rigidez imposta pelas obrigações cotidianas,
orientadas pelo mundo do trabalho. As viagens tornaram-se, assim, ao longo
do século XX, sinônimos de lazer, prazer e entretenimento.

Por outro lado, como têm alertado profissionais da saúde, especialmente


psiquiatras, a pandemia da SARS-CoV-2 trouxe, entre seus efeitos
deletérios, o aparecimento e o agravamento de problemas de saúde
emocional e mental. O avanço da doença pelo mundo e as sistemáticas
notícias sobre mortes por Covid-19, somadas às quarentenas e ao
isolamento e necessário distanciamento social formam, juntos, o quadro
dramático em que nos vimos inseridos. Segundo a Academia Brasileira de
Ciência, os danos humanos, econômicos e sociais sem precedentes
provocam um estresse “que impacta nossas mentes” e “aumenta o risco de
desenvolvimento de transtornos mentais”.

Amalgamados no tempo presente, os pressupostos acima nos ajudam a


entender por que um dos efeitos do confinamento prolongado é a saída, em
massa, no feriado da Independência, em direção a lugares diferentes do
lugar de moradia, em plena pandemia. O desejo reprimido de viajar, enfim,
transborda como um grito de liberdade, uma válvula de escape para a
ansiedade e as incertezas trazidas pelo novo coronavírus, sendo, portanto,
absolutamente compreensível. Ocorre, todavia, que as cenas fartamente
reproduzidas por diferentes meios de comunicação revelam, especialmente
em ambientes praianos, uma espécie de deslocamento entre realidade e
fantasia, como se a viagem tivesse transportado essas pessoas para um
mundo paralelo ou quiçá para um tempo-espaço assemelhado àquele do
chamado “velho normal”.

Praia do Flamengo na zona sul do Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Ao “grito” dos turistas soma-se o estridor de comerciantes em geral, direta ou


indiretamente relacionados à economia do turismo, como prestadores de
serviços de hospedagem, de alimentação, de lazer, entre outros, todos
ávidos por retomar suas atividades, que são, em grande parte dos casos, seu
único meio de sobrevivência. A pressão sobre governantes aumenta na
medida em que o tempo passa e a economia padece. Não é difícil
compreender o apelo de pequenos empresários e também de trabalhadores,
muitos já desempregados pela crise. Importante lembrar que em algumas
localidades do mundo e do Brasil, a taxa de dependência do turismo é
elevada.

Mas o alarido provocado pela crise pandêmica é mais complexo.


Profissionais da saúde não se cansam de alertar para a necessidade de
cumprimento de protocolos básicos, como uso de máscaras e de álcool gel, e
para os iminentes riscos à saúde trazidos por aglomerações. Muitos
padeceram contaminados na linha de frente do combate à doença, somando-
se, no caso brasileiro, às mais de 100 mil vítimas fatais. Por isso, não é difícil
entender por que entre eles tantos bradam, cotidianamente, pela
conscientização da população em geral. Suas vozes são, entretanto,
abafadas por achismos e negacionismos de toda sorte, os quais vão do uso
aleatório de vermífogo à pretensa cura por hidroxicloroquina. E quando o
garoto propaganda é o próprio presidente da República se estabelece uma
concorrência desleal entre discurso científico e discurso político-ideológico,
este frequentemente bramindo palavras de ordem a favor de um
medicamento cuja eficácia tem sido sistematicamente questionada por
pesquisadores em todo o mundo. Esse discurso é, certamente, um estímulo
a mais para turistas ávidos por viajar.

O que o noticiário neste feriado também trouxe à tona foi a voz inquietante de
populações residentes em localidades tomadas por visitantes no feriado
prolongado, as quais revelam sua preocupação com a presença maciça de
“estrangeiros” em seus territórios, na maior parte dos casos sem a aplicação
de medidas preventivas como medição de temperatura corporal.
Naturalmente, ainda que o turismo dinamize as economias locais e gere
postos de trabalho e renda para parte dos residentes, é compreensível que
populações receptoras desses fluxos exponham seu legítimo receio de
contágio diante do imponderável.

Por fim, cabe dizer que alguns governos estaduais e municipais, Brasil afora,
anunciaram medidas para o controle e a fiscalização da circulação de
pessoas em localidades turísticas, como foi o caso do governo do estado de
São Paulo e de algumas prefeituras de municípios litorâneos paulistas. A
Operação Independência, divulgada pelo governo João Dória pouco antes do
feriado de 7 de Setembro , envolveu, em uma parceria, a Polícia Militar, o
Departamento de Estradas de Rodagem (DER), Agencia de Transportes do
Estado de São Paulo (Artesp), concessionárias de rodovias e prefeituras
municipais. Entre as medidas previstas, encontra-se o uso de megafones
pela PM para “divulgação de mensagens de conscientização e prevenção ao
coronavírus e também apoio a equipes locais de Vigilância Sanitária e
Guarda Civil”.

O que as imagens do feriado prolongado nos mostraram, entretanto, é que,


aparentemente, neste caso, não ganha quem grita mais alto. Praias
apinhadas de banhistas, muitos sem máscara e sem distanciamento social,
revelam que falou mais alto o desejo do lazer à beira mar, enquanto o bom
senso padeceu sufocado pelo grito de independência dos turistas.

Rita de Cássia Ariza da Cruz é docente do curso de Geografia e do


Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana e coordenadora do
Laboratório de Estudos Regionais-LERGEO do Departamento de Geografia
da FFLCH/USP.

[1] Conforme se lê na página oficial do museu Edvard Munch.

[2] BOYER, Marc. História do turismo de massa. Bauru (SP): EDUSC, 2003.


[3] Não se deve ignorar o fato de que em 2019, por exemplo, o volume de
negócios do turismo no mundo foi equivalente àqueles relativos à exportação
de petróleo, produção de alimentos ou de automóveis, de acordo com a
Organização Mundial do Turismo – UNWTO , órgão vinculado à ONU.

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