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Tatiana de Oliveira

MEMORIAL ACADÊMICO

Memorial apresentado ao Programa de Pós-


graduação em Antropologia e Arqueologia da
Universidade Federal do Paraná como parte do
processo seletivo para o Curso de Mestrado turma
2021.

Curitiba – PR
2020
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Memorial acadêmico

Comungando com pautas ambientais que ganhavam visibilidade, em 1989 ingressei no


curso de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Durante a disciplina
de Climatologia e Meteorologia, comentei com alguns amigos, fascinada, que pela primeira vez
estava gostando de estudar alguma coisa – no caso, os tipos de nuvens. Em contrapartida, sentia
dificuldade em matérias que envolviam cálculos, o que não me impediu de me destacar na
disciplina de dendrometria, da qual fui monitora. Havia apenas uma vaga remunerada e,
passando em segundo lugar, aceitei animada a tarefa de corrigir os exercícios da caderneta de
campo dos alunos do segundo ano, mesmo sem remuneração. Gostava de relembrar de todos
os passos das medições de árvores que, como eles, havia feito no ano anterior e achava que, de
alguma forma, estar perto de todos aqueles números poderia me ajudar para as próximas
disciplinas que eu teria pela frente. Este, entretanto, foi meu maior local de proximidade com
programas de pesquisa na graduação.
Embora sem nenhuma titulação além da graduação, em 1995 fui admitida na Faculdade
de Agronomia e Engenharia Florestal (FAEF), em Garça, interior de São Paulo, para lecionar
por um semestre duas disciplinas: Silvicultura, para o curso de Agronomia e Florestamento e
Reflorestamento, para o curso de Engenharia Florestal. Pude compreender como meus
professores tinham sido competentes, principalmente ao recorrer às minhas anotações de aula
para desta vez eu preparar as minhas.
No ano seguinte, comecei a trabalhar e residir no Parque Nacional Grande Sertão
Veredas, onde a organização não governamental (ONG) Fundação Pró-Natureza (Funatura),
desenvolvia atividades para a implementação da Unidade de Conservação (UC), por meio de
convênio de cooperação técnica com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama), órgão que na época era o gestor do Parque. A equipe de campo
era composta por mais três técnicas, uma chefia e dezesseis guardas-parque, atuando em
diversas frentes: conservação da biodiversidade, educação ambiental, agricultura e saúde. Os
recursos eram provenientes da conversão da dívida externa brasileira em projetos ambientais,
com doadores mediados pela ONG The Nature Conservancy (TNC) e duração de 20 anos
(1993-2013).
As atividades incluíam reuniões comunitárias e visitas domiciliares aos geraizeiros,
população tradicional do Cerrado, entre o norte de Minas Gerais e o oeste da Bahia, área onde
foi criado o Parque, com seus então 83.000 hectares - ampliados para 231.000 em 2004. A
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expansão da fronteira agrícola, por meio de incentivos fiscais nos anos 1970, que permitiram
vastos plantios de soja e eucalipto, levou à região agricultores do sul do Brasil, originando
inclusive o nome da área urbana mais próxima da sede do Parque: o município Chapada
Gaúcha, que na época pertencia ao município de São Francisco e se chamava Vila Gaúcha. Os
geraizeiros seguiam com sua agropecuária de subsistência, aproveitando o regime de águas nas
áreas encharcadas das formações compostas pela palmeira Buriti (Mauritia flexuosa).
Em seguida, continuando a atuar em UCs, como era meu desejo desde a graduação, fui
para o sul da Bahia trabalhar no Parque Estadual Serra do Conduru, num primeiro momento
como prestadora de serviços e a partir de 1998 como servidora pública estadual concursada.
Como o Parque ainda não tinha sede, fixei residência no povoado mais próximo, Serra Grande,
pertencente ao município de Uruçuca. O Parque havia sido recém-criado como contrapartida
do Governo do Estado da Bahia para financiamento do Banco Mundial para a construção de
trecho da rodovia BA-001, ligando os municípios de Ilhéus e Itacaré. Estudos realizados pela
Comissão Executiva da Lavoura Cacaueira (CEPLAC), em conjunto com o Jardim Botânico de
Nova Iorque (NYBG) apontaram a terceira maior diversidade arbórea do planeta em área
contígua ao que posteriormente seria o Parque, subsidiando a criação do mesmo.
Tive oportunidade de vivenciar a implantação de um Parque desde o início,
acompanhando os levantamentos topográficos para conhecimento dos limites físicos da área e
as etapas iniciais dos processos de regularização fundiária. Mas de novo, algo não ia bem. O
Conduru, com 9.000 hectares, era bem menor que o Grande Sertão Veredas, mas apesar de suas
valiosas peculiaridades, os dois Parques dividiam, com centenas de outras unidades de
conservação no país, as mesmas mazelas. Como discípula do conservacionismo difundido pela
disciplina de Manejo de Áreas Silvestres na Escola de Florestas da UFPR, ainda relutava em
aceitar algumas ideias às quais comecei a ter acesso. Com o lançamento do livro de Diegues
(2008)1, o modelo de áreas protegidas que não trazia em sua matriz o componente social, ao
desconsiderar tanto as contribuições das populações tradicionais à manutenção da
biodiversidade quanto o seu próprio direito à vida e relações com o território, passou a ser
amplamente questionado.

1
DIEGUES, Antonio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. 6. ed. São Paulo: Hucitec e Nupaub/USP,
2008. 198 p. Disponível em:
<http://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/O%20mito%20moderno.compressed.pdf>. Acesso em:
29 dez. 2020.
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Ao passo em que conhecia a área do Conduru e seus limites físicos, percebi que a caça,
ao contrário da extração madeireira, era realizada principalmente pelos pequenos agricultores
que moravam na área onde foi criada o Parque. Eram muitos, e ocupavam áreas nem sempre de
relevante cobertura vegetal, enquanto grandes proprietários rurais, com áreas ainda bastante
preservadas, haviam ficado de fora do Decreto de criação da unidade. De posse de tais reflexões,
em conjunto com imagens aéreas e levantamentos botânicos, tive a oportunidade de publicar
alguns trabalhos e participar de alguns eventos para discutir o assunto.
Os levantamentos foram realizados com o financiamento de um projeto de minha
autoria, aprovado pela Fundação o Boticário de Proteção à Natureza (FBPN). O herbário da
CEPLAC participou do projeto, contribuindo sobremaneira para a identificação das espécies
arbóreas. Devo ressaltar que a direção do Departamento de Desenvolvimento Florestal, órgão
gestor do Parque, incentivava minha participação em tais atividades, bem como meu ingresso
no curso de especialização em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional da Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus.
Contudo, prestei outro concurso, e desta vez fui trabalhar em Salvador, no órgão
ambiental do Estado, na época chamado Centro de Recursos Ambientais (CRA). Fui escalada
para o setor de licenciamento ambiental e meu primeiro processo foi a renovação da Licença
de Operação do plantio de 47.000 hectares de eucalipto de uma grande empresa de papel e
celulose, no extremo sul da Bahia. Embora tenha sido meu primeiro processo, englobei vários
aspectos, tentando não me restringir somente às operações florestais.
Se nas UCs havia mais liberdade para parcerias institucionais, elaboração de projetos e
até mesmo certa produção acadêmica, no licenciamento não restava muito espaço para outras
atividades. Entretanto, me parecia que meu trabalho alcançava mais efetividade, já que o
resultado final do meu parecer era publicado no Diário Oficial do Estado sob a forma de
portaria, sendo o empreendedor supostamente compelido a cumprir as condicionantes da
licença, sob pena de multa, interdição ou cassação da licença.
Assim, fui reunindo em cada processo desde normas relativas aos trabalhadores até o
tratamento de efluentes e armazenamento de agrotóxicos, passando sempre pelas autorizações
prévias ao pedido de licença, em especial a supressão de vegetação. Não tardou para eu perceber
que as coisas não eram assim tão simples. A partir da primeira metade dos anos 2000, com a
estruturação tanto do arcabouço jurídico quanto dos órgãos ambientais, evidenciam-se nestes
as pressões para flexibilização dos processos de licenciamento.
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A legislação ambiental construída ao longo de décadas com a participação tanto do


movimento ambientalista quanto dos movimentos sociais, que inseriram a sociodiversidade na
biocêntrica pauta inicial do ambientalismo, estava no início de seu desmonte. Uma série de
licenciamentos autodeclaratórios e anistias à infrações de empreendimentos agrícolas, florestais
e pecuários antecipou a reforma do Código Florestal, mutilando garantias conquistadas.
Além da base florestal das empresas de papel e celulose no extremo sul e litoral norte
do estado, fui responsável também por inúmeros licenciamento de plantios de soja na região
oeste, chegando ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas e seu entorno, desta vez, pelo lado
baiano e não pelo mineiro. Flagrando trabalho análogo à escravidão mais de uma vez, sempre
fui orientada a me ater aos aspectos florestais do processo, o que descumpri sumariamente.
Quanto mais eu adquiria experiência para munir o processo de licenciamento do maior
número de fatores possíveis, observando inclusive sobreposição cartorial de terras, menos meus
pareceres eram publicados na íntegra. Talvez o caso mais emblemático tenha sido o de uma
madeireira para a qual neguei a licença, respaldada por resoluções do Conselho Nacional de
Meio Ambiente (Conama) e pela sua própria interdição pelo Ibama. Mesmo assim, o
licenciamento foi concedido por uma instância superior, o Conselho Estadual de Meio
Ambiente (Cepram).
Num complexo arranjo de estruturas de poder e interesses econômicos, que ao meu ver
pouco varia nas instituições apesar de suas diferentes gestões, permaneci no licenciamento até
2008, quando migrei para a fiscalização ambiental, em particular dos plantios de eucalipto pelas
empresas de celulose.
Em 2013, tive minha aposentadoria concedida e retornei para Curitiba, onde participei
de forma voluntária num projeto encampado pela ONG Sociedade Proteção da Vida Silvestre
e Educação Ambiental (SPVS) contra a reforma do Código Florestal. Afastada da área
ambiental, em 2018 participei do apoio à ocupação do Distrito Sanitário Especial de Saúde
Indígena (DSEI) Litoral Sul, em Curitiba. Lá, tive proximidade e compreensão da causa
indígena como eu jamais havia tido em 20 anos de atuação na área ambiental.
Voltando a estudar, em 2019 iniciei o curso de especialização em Antropologia Cultural
na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com o intuito de me aproximar de
novos olhares aos quais estava tendo acesso e que confrontavam alguns direcionamentos que
eu pensava pertinentes até então. Inicialmente, o Prof. Dr. Leonardo Campoy colocou toda a
turma em contato com as teorias antropológicas, de modo denso e arrebatador. Ao conhecer
Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss, imediatamente fiz analogias com situações que estava
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vivenciando e assim elaborei, para avaliação da disciplina, um ensaio sobre trocas simbólicas
entre punks.
Ainda no rastro das leituras desta primeira disciplina, submeti um artigo2 à XI Semana
de Antropologia da UFPR, ocorrida em setembro daquele ano. A partir de um proposta da Profª
Drª Tiemi Costa para avaliação da disciplina Antropologia do Consumo e das Organizações,
tive a oportunidade de conversar com um trabalhador da segurança patrimonial da PUCPR.
Algumas de suas falas me permitiram pensar de que forma processos intensificados pela
reforma trabalhista, como a terceirização, afetaram dinâmicas simbólicas no ambiente de
trabalho. O texto foi apresentado no Grupo 07 - Migrações, Políticas e Estado, sob a
coordenação da Profª Drª Ciméia Bevilaqua que, assim como a debatedora Profª Drª Juliane
Bazzo e os demais apresentadores do grupo contribuíram imensamente com sugestões para seu
aprimoramento.
Embora a partir desta apresentação eu tenha cogitado direcionar meus estudos aos
processos de precarização do trabalho, pois havia abordado também a atividade dos
entregadores por aplicativo, o campo do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)3 já estava
ocorrendo de forma fluida e se construindo naturalmente como tema. Paralelamente
continuavam as aulas, e a cada disciplina eu tinha a oportunidade de me aproximar do meu
intuito ao iniciar o curso.
Na disciplina de Interculturalidade e Globalização, ministrada pela Profª Drª Léa
Tosold, pude, em conjunto com leituras preliminares que havia feito para o texto da XI Semana
de Antropologia, compreender que muitas das atividades que desempenhei na área ambiental
estavam inseridas num contexto mais amplo que é capaz de promover desigualdades, ao invés
de minimizá-las. Eu já havia percebido a dificuldade de repartição dos benefícios do mercado
de carbono, que certifica empresas em detrimento das populações residentes nas áreas florestais
utilizadas para neutralização de gases geradores do efeito estufa. Da mesma forma, passei a
questionar pertinência da conversão da dívida externa em projeto ambientais, como o do Parque
Grande Sertão Veredas. Agora, estava compreendendo que as cadeias produtivas, aplaudida em
tantos encontros para geração de renda em comunidades de agricultura familiar, eram capazes

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OLIVEIRA, T. Dimensões simbólicas da reforma trabalhista: a perspectiva de um trabalhador da segurança
patrimonial na PUCPR Câmpus Curitiba. In: SEMANA DE ANTROPOLOGIA, 11, 03 – 06 set. 2018, Curitiba.
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OLIVEIRA, T. “Aqui é punk de rua, real, do gueto!”: sentidos, práticas e disputas por legitimidade na cultura
punk. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Antropologia Cultural) – Escola de Educação e
Humanidades, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2020. Disponível em
<https://drive.google.com/file/d/1fK3UUn1EHPrDsgIaIFCaa_Pv_MNb0TSG/view?usp=sharing>.
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de gerar também passivos sociais, ocupacionais, sanitários e ambientais, desconsiderados pelas


políticas públicas.
Neste sentido, a aproximação com a antropologia me permitiu compreender de maneira
mais vasta uma série de questões que estavam apenas esboçadas para mim. Cada disciplina e
professor contribuiu de uma forma e apontou caminhos no que poderia vir a ser a minha futura
área de estudo. Embora pela minha formação e experiência profissional eu pudesse ter mais
desenvoltura ao escolher um tema referente à Etnologia ou à Biodiversidade e
Sociodiversidade, disciplinas ministradas pelo excelente Prof. Dr. Paulo Góes, foi na disciplina
de Antropologia Urbana, ministrada pelo Prof. Dr. Tomás Melo – que também foi meu
orientador, que prossegui meu trabalho.
Minha relação com a cultura punk remonta ao ano de 1982, quando ganhei o primeiro
disco compacto de uma banda punk brasileira, o Lixomania. Desde então, sempre estive
acompanhada pelo punk de alguma forma, embora não necessariamente fazendo parte de
determinada cena. Em 2017 me reaproximei do punk, percebendo que dentre as pessoas que
nele persistiram ao longo dos anos figuravam as distintas às que fizeram parte do meu convívio
e que viveram o punk comigo na década de 1980. A maioria destas últimas se encontra numa
situação privilegiada e, se mantêm alguma relação com o punk, o fazem deste lugar. As pessoas
que passei a observar carregavam o punk consigo em todos os momentos do dia, externando-o
inclusive visualmente, pelas vestimentas e cortes de cabelo, reconhecendo-se e sendo
reconhecidas como punks. São entregadores por aplicativo, catadores de material reciclável,
guardadores de carros ou artesãos – os punks das ruas.
No TCC procurei explorar quais são os sentidos, para estas pessoas, buscados ao ser
punk, as convergências e diferenças internas de tais significados e como se dão as disputas por
legitimidade presentes neste contexto. Apontei ainda os significados de fazer punk em suas
particularidades, indicando as práticas que constroem o punk e as relações de produção material,
trocas simbólicas, obtenção de recursos e trabalho envolvidas neste processo.
Dentre tantas possibilidades para aprofundamento do estudo, me parece que o projeto
ora apresentado sobre a circulação de objetos, pessoas e eventos entre punks das ruas é capaz
de abranger boa parte das questões suscitadas e que a linha de pesquisa Práticas Políticas e
Dinâmicas Institucionais é a mais indicada para abrigá-lo. Meu pleito à vaga na turma de 2021
do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da UFPR apoia-
se na amplitude de entendimentos que cursar Antropologia me proporcionou não apenas como
pesquisadora mas sobretudo como pessoa mais atenta ao que me cerca.

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