Você está na página 1de 440

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

O QUE VALE EM CARAJÁS?


GEOGRAFIAS DE EXCEÇÃO E R-EXISTÊNCIA PELOS
CAMINHOS DO FERRO NA AMAZÔNIA

BRUNO CEZAR PEREIRA MALHEIRO

ORIENTADOR:
VALTER DO CARMO CRUZ

NITERÓI
2019

1
BRUNO CEZAR PEREIRA MALHEIRO

O QUE VALE EM CARAJÁS?


GEOGRAFIAS DE EXCEÇÃO E R-EXISTÊNCIA PELOS CAMINHOS
DO FERRO NA AMAZÔNIA

Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação


em Geografia do Departamento de Geografia
da Universidade Federal Fluminense como
requisito de avaliação para obtenção do grau
de Doutor em Geografia, área de
concentração: ordenamento territorial urbano e
regional.

ORIENTADOR:
VALTER DO CARMO CRUZ

NITERÓI
2019

2
Autorizo a reprodução e a divulgação parcial ou total deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte

Ficha catalográfica automática - SDC/BIG


Gerada com informações fornecidas pelo autor

M249q Malheiro, Bruno Cezar Pereira


O que Vale em Carajás? : Geografias de exceção e r-
existências pelos caminhos do ferro na Amazônia / Bruno
Cezar Pereira Malheiro ; Valter do Carmo Cruz, orientador.
Niterói, 2019.
439 f. : il.

Tese (doutorado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói,


2019.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSGEO.2019.d.80511201249

1. Mineração. 2. Grandes Projetos. 3. Amazônia. 4.


Territorialização de Exceção. 5. Produção intelectual.
I. Cruz, Valter do Carmo, orientador. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Geociências. III. Título.

CDD -

Bibliotecária responsável: Yolle Vacariuc Bittencourt - CRB7/6040


À minha mãe Sônia Malheiro,
por tornar tudo possível

À memória de Paulo Fonteles Filho,


amigo que me despertou à responsabilidade de sonhar

À memória de todas e todos que perderam suas vidas


por conta da ganância da empresa Vale

4
AGRADECIMENTOS
Ser dialético significa ter o vento da história
nas velas. As velas são os conceitos. Porém,
não basta dispor das velas. O decisivo é a
arte de posicioná-las.
Walter Benjamin

Permitam-me começar com uma livre inspiração dessa imagem alegórica de


Benjamin para que o universo afetivo desse trabalho ganhe uma visualização possível
na imaginação de seus leitores. Fazer uma tese, digo de antemão, é como estar em um
barco a vela à deriva. Imaginemos que o rio-mar em volta é a realidade a ser
interpretada, que os ventos são as pessoas, os encontros e os agenciamentos que nos
permitem navegar, e que nossa função é de posicionar velas conduzidos pelo
aprendizado dos encontros que tivemos.
Existem correntes que se oferecem como caminho mais curto, mas percorrem
realidades já pensadas, como ventos lineares que canalizam fluxos. São as tempestades
que nos levam por rotas de destruição sem que consigamos ver o que estamos deixando
de lado ao seguir por elas. Por essas correntes, fazemos da indiferença nosso modo de
percepção. Entretanto, existem outras rotas em que o rio-mar não se oferece como
caminho se não nos molhar e encharcar nossas retinas de suas águas. Rio-Mares calmos
pouco ensinam, pois que conhecer é navegar com a capacidade de se molhar de
realidade.
Mas nem sempre estivemos nessa vela e, por algumas vezes, durante quatro
anos, corremos riscos de naufrágios. Por isso quero agradecer, primeiro, àqueles que me
colocaram nesse barco para que eu tivesse a chance de enfrentar os ventos da história,
segundo, àqueles que me posicionaram na rota que escolhi e, terceiro, àqueles que me
salvaram de possíveis naufrágios.
Uma primeira lembrança, lógico, é de minha mãe, Sônia Malheiro, a quem
dedico esse trabalho. Só por sua insistência tornei-me condutor de minha própria vela.
Foi sua trajetória, de quem recomeçou os estudos aos 42 anos e se formou em filosofia,
de quem fez da venda de salgados o nosso ganha pão, que desbravou minha consciência.
Quando, aos treze anos, eu só queria cantar e tocar pelas noites de Belém, ela me
buscava às cinco da manhã para que eu não perdesse a escola. Ela, também, colocou-me
cedo no caminho do trabalho, o que aparou as arestas dos meus desvios e me fez querer,

5
como nunca, transformar nossos momentos mais difíceis nos músculos do tempo a nos
dotar de asas para alçar novos vôos.
Minha irmã, por sua vez, Virgínia Malheiro, que, por um bom tempo, privou-
se de horas de estudo para trabalhar e garantir que eu continuasse a estudar foi quem,
como historiadora, escolheu o curso de Geografia para mim, quando eu só imaginava
fazer um curso técnico de música. Sua escolha me trouxe à geografia, essa arte de
acordar mundos adormecidos por noites históricas.
Também meu pai, João Carlos Malheiro, do seu jeito, trouxe-me até aqui, pelo
amor dedicado a mim e pela confiança em mim depositada.
Outra pessoa sem a qual seria impensável eu ter a mínima habilidade de me
guiar diante da deriva é Saint-Clair Cordeiro da Trindade Jr. Ele me fez ver a vida
acadêmica como possibilidade, foi seu convite para entrar em um grupo de pesquisa,
feito no Auditório Setorial Básico I da Universidade Federal do Pará, no meu segundo
ano de graduação, que me fez ver esse caminho como perspectiva de futuro.
Minha esposa, amiga e companheira de todas as horas, inclusive de doutorado,
Tatiane Costa, sempre me fez enxergar passagens, onde, por vezes, eu só observava
fortalezas intransponíveis. Ela colocou seu barco próximo ao meu para que as
tempestades não nos fizessem naufragar, ela amanheceu noites de tormenta, pintou de
ternura nosso quadro cotidiano e tornou possível, com sua terna presença, este trabalho.
Mas estar em doutoramento é, também, conviver com prazos e relógios, que,
por vezes, fazem da vida uma coletânea mal arrumada de obrigações frias. Se
deixarmos, perdemos instantes de poesia ao transformá-los em caminhos de uma
maratona, para a qual só interessa o resultado. Por isso, não há tese sem amigos, pois
eles sempre estão ali para mostrar que o mais importante são os momentos que nos
fazem eternidade. E foram esses momentos que, também, tornaram suportável a deriva.
Os amigos Armando Tafner e Girlane inundaram-me de afeto, além de
colocarem a pequena Ana Júlia para florir ainda mais os jardins da minha vida, assim
como também o fazem João Fernando e Ana Bárbara, meus três afilhados, cujas
lembranças e carinhos sempre me preencheram de sorrisos. Os amigos Rogério Rego
Miranda, Rogério Souza Marinho, Hugo Rogério Hage Serra e Marcos Alexandre, de
modos distintos, preencheram de porto seguro minha vontade de retorno. O amigo Aiala
Colares, de quem sinto profundo orgulho pela trajetória, também me despertou alegria
em momentos em que a felicidade parecia adormecida. O amigo Clei de Souza, sempre
trouxe leveza aos meus dias, fazendo sua sensibilidade poética me acompanhar, não só

6
nas músicas que fizemos juntos, mas em seus poemas que embalam algumas páginas a
seguir. O amigo Paulinho Fonteles, a quem também dedico esse trabalho, e que inunda
meu peito de saudade após sua partida repentina, ensinou-me o valor e a
responsabilidade de sonhar, ele, um escultor de horizontes, um despertador de noites
históricas, um cartógrafo de novos mundos, fez-me sorrir diante do impossível e é
presença absoluta nas palavras vindouras. O amigo Fernando Michelotti, que me
recebeu em sua casa, sem mesmo me conhecer, quando cheguei a Marabá em 2009.
Estava com uma pequena mala e um violão nas costas para assumir como professor, e
lembro bem o que ele me disse: ―lá vem mais um doido prá Marabá!‖. Loucos de cara,
fizemos tantas e tantas coisas, juntamente com outro grande amigo e parceiro Haroldo
Souza.
As centelhas do sol de Marabá, onde um caminho possui mil desvios, onde a
doce rebeldia brota das terras mais áridas, esse front entre mundos e horizontes díspares
– a fronteira – reservaram-me outros encontros decisivos, ventos que me tiraram de
lugares cômodos: com Evandro Medeiros, professor cineasta ou cineasta professor que,
com sua chatice habitual, foi e é grande parceiro e amigo. Com Francisco Chagas Filho,
grande jornalista, com quem nutri amizade rara. Com Nilsa Brito, Hildete dos Anjos,
Idelma Santiago, Maura dos Anjos, que, cada uma ao seu modo, tanto me ensinaram.
Com o amigo cantador Clauber Martins quem melhor traduziu a fronteira em canção.
Com os amigos Charles Trocate, Raimundo Gomes, Ayala Ferreira, Maria Raimunda,
Mercedes Zuliani, Marcio Zonta e tantos outros que me banharam com as águas
agitadas do rio-mar do sudeste do Pará e projetaram sentidos ao enfrentamento da
deriva.
Longe de Marabá, mas de importância fundamental para que as tempestades
do progressismo, tão em voga na academia, não me impedissem de conhecer outras
formas de posicionar velas, foi a professora Rosa Acevedo, que esteve em minhas
bancas de trabalho de conclusão de curso e mestrado, e com quem trabalhei, por um
tempo, no projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Foi ela, talvez, a primeira a
despertar em mim a necessidade de retraçar os ângulos do meu olhar. Se ela foi, então,
por seus ensinamentos, quem me trouxe a vontade de enfrentar a deriva, o professor
Ernani Chaves, com sua sapiência, deu-me a coragem necessária para isso, tornando a
filosofia uma corrente de ar suportável à minha pouca habilidade para com as velas.

7
Mas ventos sul sopravam do Rio de Janeiro. Os giros experimentados na
fronteira me fizeram chegar ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal Fluminense.
Foi em mais esse deslocamento que encontrei meu orientador e amigo Valter
do Carmo Cruz, que foi um dos ventos mais importantes que me guiaram esses anos de
pesquisa. Sua impressionante habilidade de tornar claro e preciso o que, por vezes,
apresenta-se como de impossível compreensão, sua perspicácia em ver caminhos que
tentam se esconder de nós e sua clareza política e compromisso epistemológico,
impulsionaram-me a tornar real esse trabalho.
Carlos Walter, com sua generosidade e inteligência, sempre me oferecia uma
reflexão, um texto, um livro, um argumento, um caminho. Cada palestra ouvida - das
mesas redondas aos vários encontros cotidianos, que também se tornavam grandes
conferências, pelo seu modo apaixonado de lidar com as ideias – transformou-se em
verdadeiras ventanias. Minhas mãos nem sempre foram capazes de dispor das velas para
aproveitar ao máximo daqueles ventos, mas o que pude conseguir me levou até aqui.
Rogério Haesbaert, com sua humanidade, simplicidade e inteligência, também
me ofereceu ensinamentos e amizade, que me foram fundamentais. Pelas trilhas
deixadas pelos seus trabalhos, encontrei correntes fortes que tornaram possível a
navegação em águas intranqüilas.
Henri Acselrad também me proporcionou encontros enriquecedores a partir
dos quais ventos sopraram com a força de apontar caminhos, pelos quais segui do modo
como consegui ajustar as velas para melhor aproveitá-los.
Antônio Sales e Rodrigo Muniz deram-me a oportunidade de tornar real,
mapas que, até então, só se apresentavam como ideia. Agradeço aos dois por
materializarem esteticamente em imagem/mapa alguns percursos feitos.
Jorge Luiz Barbosa pelos ensinamentos e apontamentos em uma de minhas
bancas, também sopra como um vento que chegou a mim, como a coragem de seguir
uma rota e não outra. Foi ele que, ao ler meu trabalho, disse para que eu fizesse tudo o
que anunciara, mas não me esquecesse de escutar o território.
E foi escutando o território que encontrei vozes de múltiplas lutas: Padre
Dário, Danilo Chamas, Charles Trocate, Kátia Silene, Zeca Gavião, Concita Sompre,
dona Anacleta Pires, Raimundinho, João Reis e tantas e tantos outros e outras que me
apresentaram novos mundos, alargaram minhas rotas - com a força de me tirar do lugar
- em direção contrária, por vezes, aos ventos que me conduziam. A todas as pessoas que

8
abriram suas casas para que eu pudesse entrar, que me apresentaram seus espaços de
luta, que me contaram suas histórias de vidas, banhando-me de suas águas para que eu
não passasse despercebido pela riqueza de seus cotidianos, agradeço a confiança.
Vocês estão vendo: são muitos os ventos que me conduziram, por isso, minha
deriva é um privilégio. Entretanto, neste momento em que os caminhos não se
apresentam claros e se escondem por entre as correntes de várias direções, parece
necessário não apenas que ventos soprem, nem apenas que consigamos posicionar a
velas, mas, principalmente, que elas se mantenham estáveis o suficiente para não
naufragarmos.
Niterói não foi um lugar fácil mesmo para quem se fez em movimento.
Sempre digo que existem dois critérios objetivos para se definir cidades: o primeiro é a
quantidade de estímulos poéticos que ela carrega por metro quadrado e o segundo é a
distância relativa entre as pessoas no ato de se encontrarem. O número baixo da
primeira combinado ao número alto da segunda tornou o cotidiano um tanto difícil, o
que poderia descambar em um naufrágio, não fosse alguns forasteiros que trouxeram
poesia e abraços à minha passagem por esta cidade.
Não sabem da importância que tiveram Valter do Carmo Cruz, Amélia
Bezerra, Flávia Nascimento, José Marins Júnior e os pequenos Miguel e Joaquim,
dentre outras coisas, para tornar essa jornada mais leve, doce e alegre. Também não
imaginam o significado que tiveram Beatriz Ribeiro, Carlos Henrique (Nico), Luciana
Melo, Haroldo Souza e Estevão Ribeiro pelos momentos compartilhados e por todo
afeto que preencheram tantos vazios.
Aos amigos de turma Auricelio Lima, Magno Silvestre, Thiago Machado,
Rafael Benevides e Luiz Mendes, também agradeço pelos momentos trocados, pelos
aprendizados compartilhados e pela amizade construída. Aos amigos de NETAJ: Michel
Couto, Vanessa Costa, Carolina de Freitas, Gabriel Fortunato, Laura (Garrafa Né),
Thiago Damas e Edu minha profunda gratidão pelos vários encontros nos quais aprendi
tanto. Vocês todos, em algum momento, estiveram ao meu lado, soprando direções,
auxiliando-me a conduzir este trabalho.
A partir daqui o leitor terá a experiência de percorrer os caminhos que se
tornaram possíveis diante da deriva. Tantos ventos, rotas e escolhas se corporificam em
palavras e pluralizam o ato de escrever, pois sempre se escreve em vários, mesmo
quando se está só.

9
Às vezes a gente vai olhar os trilhos né, a gente vai à beira dos
trilhos da Vale, aí a gente vê um trem passando e não se atenta
que tem algo por trás. É que estamos em corredores e aqui tudo
corta!

Anacleta Pires, Liderança Quilombola

10
RESUMO

O ideário de desenvolvimento da Amazônia encontrou nos grandes projetos minerais


um mecanismo capaz de colocar em suspensão toda a complexidade e diversidade
territorial regional, em nome de uma geografia mais ―racional‖. Pensados para uma
região historicamente distante das imaginações geográficas que definiram os ideais de
nação, para desencadear uma atividade econômica historicamente tratada como de
interesse e segurança nacional, a mineração, e por meio de dispositivos políticos, os
grandes projetos, que se realizam, via de regra, por processos de suspensão normativa e
excepcionalidade jurídica, esses grandes empreendimentos expressam uma
racionalidade corporativa de governo do território na Amazônia, que se realiza por
práticas subterrâneas que tornam a política uma guerra e a exceção uma regra. É essa
geografia de exceção que esse trabalho problematiza, expressando suas condições de
emergência e suas lógicas de realização, mas, fundamentalmente, demonstrando as
territorialidades em r-existência a ela. Analisando a expressão paradigmática desse
processo na Amazônia: a dinâmica de exploração do ferro no corredor Carajás-Itaqui
pela empresa Vale S. A., percebemos que a criação de mediações espaciais que
garantem o acesso a recursos e terras à empresa, concretiza-se numa esfera de
indeterminação política, transformando os espaços necessários à realização do
metabolismo social da mineração em territórios administráveis, e os povos e
comunidades que os habitam, em riscos a serem geridos e/ou eliminados. Entretanto, a
diversidade territorial de Carajás emerge como imperativo político e epistêmico a
demonstrar que os caminhos do ferro na Amazônia, também são caminhos indígenas,
quilombolas, pescadores, camponeses... Essas distintas territorialidades, não obstante
suas dinâmicas de antagonismo à mineração são, antes de tudo, lutas pelo
reconhecimento de matrizes de racionalidade distintas, de outros modos de se relacionar
com a terra, com a floresta, com os rios, pois que se fazer existir em sua diferença é o
desafio maior de quem habita a exceção. Nesses termos, geografias em r-existência
afirmam-se denunciando os silêncios históricos da mineração na Amazônia,
expressando territorialidades que preenchem de vida e pluralizam os ritmos de um
espaço pensado, unicamente, para seguir os tempos financeirizados das commodities.

PALAVRAS-CHAVE:
Território, Mineração, Estado de Exceção, R-existências, Carajás.

11
ABSTRACT

The ideology of the Amazon‘s development has found in the big mineral projects a
mechanism able to put in suspension the complexity and diversity of that region on
behalf of a more ―rational‖ geography. The projects were thought for a region
historically away from the geographical imagination that defined the idea of a nation,
and initiated an economic activity historically treated as one of national security and
interest: mining. Using political arrangements, these big projects (usually doneby rules
ofsuspension and juridical exception) express a governmental corporate rationality
about the Amazonianterritory that is done through underground practices which not
only turn the politics into a war, but also make the exception a rule. It is precisely this
geography of exception that this research problematizes, expressing its emergency
conditions and its logic of realization but, fundamentally, demonstrating the territories
in existence (and resistance) to it. Analyzing the paradigmatic expression of this process
in the Amazon: the dynamics of iron exploitation in Carajás-Itaqui by the company Vale
S.A, we notice that the creation of spatial mediations, which guarantee to the company
the access to resources and lands, occurs in a sphere of political indetermination, turning
the spaces needed for the mining social practices into manageable territories, and the
people who live in these places are turned into a risk that need to be managed or even
eliminated. However, the diversity of Carajás‘s territory emerges as a political and
epistemic imperative in order to demonstrate that the path of the iron in the Amazon is
also a path of indigenous people, quilombolas, fishermen, peasants. These distinct
territorialities -regardless of its dynamics of antagonism to the mining- are, first and
foremost, fights for the recognition of matrices of distinct rationalities, of other ways of
relating with the land, the forest, the rivers. To exist in the difference is the biggest
challenge of those who live in the exception. Accordingly, geographies in existence and
resistance affirm themselvesby denouncing the historical silences ofmining in the
Amazon, expressing territorialities that fulfill the life and pluralize the rhythms of a
space thought primarily to follow the financial times of commodities.

KEY-WORDS:

Territory, Mining, State of Exception, Existence/Resistance, Carajás.

12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURAS
FIGURA 01 – COMPOSIÇÃO ACIONÁRIA DA EMPRESA VALE S. A. .......................................... 156
FIGURA 02 – PRESENÇA DA VALE NO MUNDO ........................................................................ 163
FIGURA 03 – VALE E CHINA .................................................................................................... 166
FIGURA 04 – OPERAÇÕES DA VALE NO SUDESTE DO PARÁ .................................................... 167
FIGURA 05 – ESCALA DE RISCO PARA A MINERAÇÃO, SEGUNDO A ERNST & YOUNG .............. 187
FIGURA 06 – MUDANÇA NA LOGOMARCA, DE CVRD À VALE... ............................................. 229
FIGURA 07 – MATRIZ DE MATERIALIDADE, UM MAPEAMENTO DOS TERMOS ........................... 233
FIGURA 08 – LEVANTAMENTO EMPRESARIAL DOS RISCOS SOCIAIS ......................................... 241
FIGURA 09 – IDENTIFICAÇÃO E CRIMINALIZAÇÃO DE LIDERANÇAS ......................................... 241
FIGURA 10 – DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DOS PROCESSOS DA EMPRESA VALE DE

CRIMINALIZAÇÃO DE LIDERANÇAS NO CORREDOR CARAJÁS-ITAQUI ....................................... 244

FIGURA 11 – ENTRADA NA FLORESTA NACIONAL, PARAUAPEBAS ......................................... 257


FIGURA 12 – ENTRADA AO PROJETO FERRO CARAJÁS S11D, CANAÃ DOS CARAJÁS .............. 258
FIGURA 13 – MOSAICA DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO APÓS A CRIAÇÃO DO PARNA
DOS CAMPOS FERRUGINOSOS .................................................................................................. 261

FIGURA 14 – GETAT E A CRIAÇÃO DO PROJETO DE ASSENTAMENTO CARAJÁS ..................... 269


FIGURA 15 – ACAMPAMENTO PLANALTO SERRA DOURADA .................................................. 274
FIGURA 16 – MUROS DE CONTENÇÃO NA ESTRADA DE FERRO CARAJÁS, MARABÁ/PA........... 279
FIGURA 17 – QUANDO BRINCAR É UM RISCO, BAIRRO ARAGUAIA MARABÁ/PA..................... 280
FIGURA 18 – VISTA AÉREA DA COMUNIDADE DO RACHA PLACA ANTES DA REMOÇÃO ........... 283
FIGURA 19 – VILA RACHA PLACA, AGOSTO DE 2012 .............................................................. 285
FIGURA 20 – VILA RACHA PLACA, AGOSTO DE 2012 .............................................................. 285
FIGURA 21 – REMOÇÃO DAS FAMÍLIAS DO ACAMPAMENTO GROTÃO DO MUTUM ................... 290
FIGURA 22 – SIDERÚRGICAS DO PÓLO INDUSTRIAL DE AÇAILÂNDIA,VISTAS DE PIQUIÁ DE
BAIXO ..................................................................................................................................... 291
FIGURA 23 – LOCALIZAÇÃO DO PIER IV DO PORTO DE PONTA DA MADEIRA, SÃO
LUIS/MA ................................................................................................................................. 309
FIGURA 24 – ―NÃO SOMOS INSIGNIFICANTES, SOMOS CENTENAS DE FAMÍLIAS DE

TRABALHADORES‖ ................................................................................................................... 313

FIGURA 25 – PELOS CANTEIROS DE DONA ROSA .................................................................... 315


FIGURA 26 – RESISTÊNCIAS PELOS CAMINHOS DO FERRO ........................................................ 316

13
FIGURA 27 – PROSPECÇÃO MINERAL? ..................................................................................... 317
FIGURA 28 – PELOS SONHOS DE CHICO MENDES .................................................................... 318
FIGURA 29 – UMA CASA E O MAIOR TREM DO MUNDO ............................................................. 347
FIGURA 30 – ―PROIBIDO PASSAR CARRO DA VALE AQUI‖ ....................................................... 392
FIGURA 31 – MULHERES OCUPAM A ESTRADA DE FERRO CARAJÁS ........................................ 393
FIGURA 32 – OCUPAÇÃO DA ENTRADA DA FLORESTA NACIONAL DE CARAJÁS PELO MAM ... 393
FIGURA 33 – QUILOMBOLAS DO MARANHÃO OCUPAM TRILHOS DA VALE .............................. 394
FIGURA 34 – INDÍGENAS GUAJAJARA E AWÁ GUAJÁ OCUPAM ESTRADA DE FERRO
CARAJÁS.................................................................................................................................. 395

QUADROS
QUADRO 1 – SÍNTESE DAS POLÍTICAS NACIONAIS PARA A AMAZÔNIA A PARTIR DA

SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX .......................................................................................... 77


QUADRO 2 – PRINCIPAIS LEGISLAÇÕES E REGIMES DE PROPRIEDADE DOS RECURSOS
MINERAIS NO BRASIL .............................................................................................................. 82
QUADRO 3 – PRINCIPAIS PROJETOS DE MINERAÇÃO NA AMAZÔNIA ........................................ 99
QUADRO 4 – CIDADES-EMPRESA CRIADAS PELA INDÚSTRIA DA MINERAÇÃO NA

AMAZÔNIA ............................................................................................................................. 109


QUADRO 5 – METABOLISMO SOCIAL DO PROJETO S11D ....................................................... 180
QUADRO 6 – METABOLISMO SOCIAL DOS PROJETOS DE EXTRAÇÃO DE FERRO DAS MINAS
NORTE, N4 E N5...................................................................................................................... 181
QUADRO 7 – METABOLISMO SOCIAL DO PROJETO SERRA LESTE ............................................ 181
QUADRO 8 – CONSULTORIAS CONTRATADAS PARA LICENCIAMENTO AMBIENTAL DO

PROJETO S11D ........................................................................................................................ 203


QUADRO 9 – CONSULTORIAS CONTATADAS PARA A ―GESTÃO DO SOCIAL‖ ............................ 208
QUADRO 10 – DOAÇÕES GERAIS DA EMPRESA VALE PARA CANDIDATOS E DIRETÓRIOS ......... 215
QUADRO 11 – DOAÇÕES DE CAMPANHA DA EMPRESA VALE A MEMBROS DA COMISSÃO
ESPECIAL DO NOVO CÓDIGO MINERAL .................................................................................. 223
QUADRO 12 – DOAÇÕES DE CAMPANHA DA VALE A POLÍTICOS ELEITOS NO PARÁ EM 2014 .. 226
QUADRO 13 – PRINCIPAIS EMPRESAS CONTRATADAS PARA O MERCADO DE COMUNICAÇÃO
E SUSTENTABILIDADE ............................................................................................................. 231
QUADRO 14 – JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS E CRIMINALIZAÇÃO DE LIDERANÇAS NO

CORREDOR CARAJÁS-ITAQUI, PROCESSOS NA JUSTIÇA ESTADUAL DO PARÁ E MARANHÃO ... 243

14
QUADRO 15 – PRINCIPAIS EMPRESAS CONTRATADAS NO ÂMBITO DOS PROCESSOS DE

ANTECIPAÇÃO À CRÍTICA ........................................................................................................ 246


QUADRO 16 – PROCESSOS DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE AJUIZADOS PELA VALE EM ÁREAS
DE INTERESSE MINERAL NO PARÁ ........................................................................................... 274
QUADRO 17 – IMPORTÂNCIA DA EXTRAÇÃO DO COCO BABAÇU NO MARANHÃO .................. 322
QUADRO 18 – EXTRAÇÃO DE BABAÇU POR MUNICÍPIO DE INFLUÊNCIA DA EFC .................... 323
QUADRO 19 – NÚMERO DE ACIDENTES GRAVES NA ESTRADA DE FERRO CARAJÁS ENTRE
2006 E 2017 ............................................................................................................................ 350

MAPAS
MAPA 1 – DIVERSIDADE TERRITORIAL DO CORREDOR CARAJÁS-ITAQUI................................. 25
MAPA 2 – DIVISÃO DA SERRA DOS CARAJÁS EM ZONAS POR DIREITOS MINERÁRIOS .............. 179
MAPA 3 – DOAÇÕES DE CAMPANHA DA EMPRESA VALE POR ESTADO NAS ELEIÇÕES DE

2014 ....................................................................................................................................... 222


MAPA 4 – FERROVIA CARAJÁS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO ............................................ 255
MAPA 5 – MAPA GEOLÓGICO DA FLONA DE CARAJÁS ........................................................... 256
MAPA 6 – PLANO DIRETOR DO PROJETO S11D LICENCIADO PELO IBAMA ........................... 260
MAPA 7 – MINERAÇÃO E CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA: A VALE EM CARAJÁS ........................ 263
MAPA 8 – MINERAÇÃO E CONFLITOS AGRÁRIOS.................................................................... 264
MAPA 9 – FERROVIA CARAJÁS E HIDROGRAFIA ..................................................................... 329
MAPA 10 – MINERAÇÃO E TERRAS INDÍGENAS NO CORREDOR CARAJÁS-ITAQUI ................... 369
MAPA 11 – MINERAÇÃO E TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NO CORREDOR CARAJÁS-ITAQUI .... 372
MAPA 12 – TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS RECORTADOS PELOS TRILHOS DA EFC ................... 373
MAPA 13 – MINERAÇÃO E ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA NO CORREDOR

CARAJÁS-ITAQUI ................................................................................................................... 377

GRÁFICOS
GRÁFICO 1 – EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS POR FATOR AGREGADO EM US$ MILHÕES ............ 160
GRÁFICO 2 – DESTINO DAS EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS – PRODUTOS BÁSICOS ..................... 161
GRÁFICO 3 – PRODUÇÃO NACIONAL DE MINÉRIO DE FERRO EM MILHÕES DE TONELADAS .... 162
GRÁFICO 4 – SUBSIDIÁRIAS DA EMPRESA VALE S. A. POR PERCENTUAL DE PARTICIPAÇÃO
ACIONÁRIA, EM 31 DE DEZEMBRO DE 2016, SUBDIVIDIDAS EM EMPRESAS CONTROLADAS,
JOINT VENTURES E COLIGADAS ............................................................................................... 164

15
GRÁFICO 5– VARIAÇÃO DA TAXA DE CRESCIMENTO DO PIB CHINÊS .................................... 169
GRÁFICO 6 – VARIAÇÃO DO PREÇO DE MERCADO DO FERRO EM US$/ TONELADA ................. 170
GRÁFICO 7 – EXTRAÇÃO DE FERRO EM CARAJÁS PELA VALE EM MILHÕES DE TONELADAS .. 171
GRÁFICO 8 – ―DISPÊNDIOS SOCIOAMBIENTAIS‖ DA EMPRESA VALE EM MILHÕES DE US$ .... 193
GRÁFICO 9 – DOAÇÕES DA VALE PARA OS PARTIDOS POLÍTICOS, ATRAVÉS DOS

DIRETÓRIOS PARTIDÁRIOS NAS ELEIÇÕES DE 2014 .................................................................. 216


GRÁFICO 10 – DOAÇÕES DA VALE DIRETAMENTE A CANDIDATOS NAS ELEIÇÕES DE 2014,
VALORES POR PARTIDO ........................................................................................................... 217
GRÁFICO 11 – DOAÇÕES DA VALE PARA PARTIDOS POLÍTICOS, SOMATÓRIA ENTRE

DOAÇÕES DIRETAS A CANDIDATOS E DIRETÓRIOS PARTIDÁRIOS.............................................. 218


GRÁFICO 12 – DOAÇÕES DA VALE PARA DIRETÓRIOS PARTIDÁRIOS, VALORES POR

ESTADO .................................................................................................................................. 219


GRÁFICO 13 – DOAÇÕES DA VALE DIRETAMENTE PARA CANDIDATOS, VALORES POR

ESTADO .................................................................................................................................. 221


GRÁFICO 14 – DOAÇÕES DA VALE A CANDIDATOS E DIRETÓRIOS PARTIDÁRIOS, VALORES
POR ESTADO ........................................................................................................................... 221
GRÁFICO 15 – ÁREA EM HECTARES DAS LAVOURAS TEMPORÁRIAS E PERMANENTES EM

CANAÃ DOS CARAJÁS E ÁREAS DE LAVOURAS DE MILHO, ENTRE 1997 E 2015 ....................... 271
GRÁFICO 16 – ÁREA EM HECTARES DAS LAVOURAS DE FEIJÃO E ARROZ EM CANAÃ DOS
CARAJÁS, ENTRE 1997 E 2015 ................................................................................................ 271
GRÁFICO 17 – ÁREA EM HECTARES DAS LAVOURAS TEMPORÁRIAS E PERMANENTES DE

ABACAXI, CACAU, CAFÉ, COCO, MARACUJÁ E PIMENTA DO REINO EM CANAÃ DOS

CARAJÁS, ENTRE 1997 E 2015 ................................................................................................ 272

16
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 21

O ARQUIVO .......................................................................................................................... 43
CAPÍTULO 1 – COLONIALISMO INTERNO E ESTADO DE EXCEÇÃO: AMAZÔNIA E O

RISCO À SOBERANIA ............................................................................................................... 48


1.1. COLONIALISMO INTERNO: DA NAÇÃO BRASILEIRA À EXCEÇÃO AMAZÔNICA ...................... 50
1.2. A AMAZÔNIA E A SOBERANIA NACIONAL: A EMERGÊNCIA DE UM RISCO ........................... 56
1.3. NORMALIZAÇÕES DO RISCO AMAZÔNICO: A POLÍTICA COMO GUERRA E A EXCEÇÃO

COMO REGRA ............................................................................................................................. 65

1.4. SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO E RIQUEZA: A FORMAÇÃO DO ESTADO NA

AMAZÔNIA ................................................................................................................................ 74

CAPITULO 2 – GRANDES PROJETOS DE MINERAÇÃO NA AMAZÔNIA COMO

PARADIGMAS DO ESTADO DE EXCEÇÃO .................................................................................. 78


2.1. MINERAÇÃO E REGIMES DE EXCEÇÃO NO BRASIL: DA REGULAÇÃO À DESREGULAÇÃO ...... 80
2.2. A MINERAÇÃO NA LÓGICA DOS GRANDES PROJETOS NA AMAZÔNIA: A SUPERPOSIÇÃO
DE RELAÇÕES DE EXCEÇÃO ....................................................................................................... 92
2.3. UMA GEOGRAFIA DE EXCEÇÃO: OS GRANDES PROJETOS DE MINERAÇÃO NA

AMAZÔNIA ............................................................................................................................... 95
2.3.1. A SUBORDINAÇÃO DEPENDENTE COMO INTERESSE NACIONAL ....................................... 97
2.3.2. A SUSPENSÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO .................................................................. 102
2.3.3. A DEFINIÇÃO DOS ESPAÇOS DE INFLUÊNCIA DIRETA...................................................... 106
2.3.4. A ―ADMINISTRAÇÃO‖ DAS POPULAÇÕES DO ENTORNO .................................................. 113

CAPÍTULO 3 – UMA GEOGRAFIA EM RUÍNAS: MINERAÇÃO E TERRITORIALIZAÇÃO DE


EXCEÇÃO ............................................................................................................................... 115
3.1. GRANDES PROJETOS OU PROJETOS MONSTRUOSOS? ........................................................ 117
3.2. UMA GEOGRAFIA EM RUÍNAS: POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E A MINERAÇÃO
NA AMAZÔNIA ........................................................................................................................ 119
3.3. AS RUÍNAS AMAZÔNICAS E OS PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO DE EXCEÇÃO ......... 132

17
CRÔNICAS DE PESQUISA .................................................................................................. 135
ELDORADO OU BURACOS NEGROS? A MINERAÇÃO PELO OLHAR GARIMPEIRO .......................... 135

PAULINHO EM TRÊS ENCONTROS .............................................................................................. 137

QUANDO FUI OUTRO ................................................................................................................. 139

O DIAGRAMA ..................................................................................................................... 141


CAPÍTULO 4 – DA CVRD À VALE: DOS ACORDOS DE WASHINGTON À CRISE DAS

COMMODITIES ....................................................................................................................... 148


4.1. DECISÕES DESDE WASHINGTON: ACORDOS E CONSENSOS ............................................... 149
4.2. DO CONSENSO DE WASHINGTON AO CONSENSO DAS COMMODITIES................................ 157
4.3. DO CONSENSO À CRISE DAS COMMODITIES: A EMERGÊNCIA DO PROJETO S11D .............. 167

CAPÍTULO 5 – EXPANDIR A PRODUÇÃO E GERIR A POPULAÇÃO ........................................ 173


5.1. METABOLISMO SOCIAL DA MINERAÇÃO DE FERRO EM CARAJÁS ..................................... 175
5.2. A REALIZAÇÃO DO METABOLISMO SOCIAL DA MINERAÇÃO E A DEFINIÇÃO DOS RISCOS
SOCIAIS CORPORATIVOS .......................................................................................................... 184
5.3. A EMPRESA VALE S. A. E A ―GESTÃO DO SOCIAL‖ ......................................................... 190

CAPÍTULO 6 – GESTÃO DOS RISCOS SOCIAIS CORPORATIVOS: A DESMOBILIZAÇÃO,

RESIGNIFICAÇÃO E ANTECIPAÇÃO À CRITICA ...................................................................... 198


6.1. A DESMOBILIZAÇÃO DA CRÍTICA..................................................................................... 200
6.1.1. GESTÃO DOS CONHECIMENTOS DE JUSTIFICAÇÃO ........................................................ 201
6.1.2. GESTÃO DOS PROCESSOS DE ADESÃO ........................................................................... 206
6.1.3. GESTÃO DA POLÍTICA INSTITUCIONALIZADA ................................................................ 213
6.2. A RESIGNIFICAÇÃO DA CRÍTICA ...................................................................................... 227
6.3. A ANTECIPAÇÃO À CRÍTICA ............................................................................................. 234

CAPÍTULO 7 – REGIMES DE CONTENÇÃO TERRITORIAL E DESTERRITORIALIZAÇÃO ....... 249


7.1. A CONTENÇÃO DAS MINAS E AS ÁREAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL ................................ 253
7.2. COMPRA DE TERRAS: UMA RACIONALIDADE TERRITORIAL CORPORATIVA ....................... 259
7.3. CANALIZAR FLUXOS E CONTER A MOBILIDADE............................................................... 277
7.4. MINERAÇÃO E DESTERRITORIALIZAÇÃO .......................................................................... 281
7.5. REGIMES DE CONTENÇÃO E DESTERRITORIALIZAÇÃO ..................................................... 292

18
CRÔNICAS DE PESQUISA .................................................................................................. 294
O SIGNO DA AMEAÇA .............................................................................................................. 294
O PROFESSOR CONSTRANGIDO ................................................................................................. 296
ENTREVISTA FRUSTRADA ......................................................................................................... 297
A ESPERA ................................................................................................................................ 299

AS HETEROTOPIAS ........................................................................................................... 301


CAPÍTULO 8 – ESCUTANDO O TERRITÓRIO PARA PENSAR POR OUTRAS (GEO)GRAFIAS ..... 306
8.1. UMA TERRITORIALIDADE ENTRE A PRAIA E O MAR: OS PESCADORES ARTESANAIS DO

BOQUEIRÃO ............................................................................................................................ 308


8.2. DE TERRITORIALIDADES E SOLIDARIEDADES CAMPONESAS: DA TERRA AO TERRITÓRIO ... 312
8.3. POR BABAÇUAIS LIVRES: A TERRITORIALIDADE DAS QUEBRADEIRAS DE COCO
BABAÇU .................................................................................................................................. 320
8.4. O RIO COMANDA A VIDA ................................................................................................. 326
8.5. A TERRITORIALIDADE DO CUIDADO QUILOMBOLA .......................................................... 331
8.6. DO CONSELHO DOS CACIQUES AO TERRITÓRIO-FLORESTA ............................................. 337
8.7. PELA FLORESTA, COM AS TRILHAS, CONTRA OS TRILHOS: A TERRITORIALIDADE DOS

SONS DOS AWÁ-GUAJÁ ........................................................................................................... 343


8.8. O QUINTAL, A CASA, OS TRAJETOS ................................................................................... 345
8.9. PENSAR POR OUTRAS (GEO)GRAFIAS ................................................................................ 353

CAPÍTULO 9 – A GEOGRAFIA DAS LUTAS SOCIAIS EM CARAJÁS: UNIDADES DE

MOBILIZAÇÃO, REPERTÓRIOS DE AÇÃO COLETIVA E POLÍTICAS DE ESCALA ...................... 357


9.1. GEOGRAFIA DAS LUTAS SOCIAIS EM ANTAGONISMO À MINERAÇÃO................................ 359
9.2. AS UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICA........................................................................ 363
9.2.1. UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO ÉTNICA ............................................................................ 367
9.2.2. UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO DEFINIDAS PELO ANTAGONISMO À MINERAÇÃO ............... 374
9.2.3. UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO SINDICAIS ........................................................................ 379
9.2.4. REDES DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICA .............................................................................. 380
9.2.5. POLITIZAÇÃO DE SITUAÇÕES SOCIAIS DEGRADANTES ................................................... 384
9.3. REPERTÓRIOS DE AÇÃO COLETIVA: OCUPAR OS TRILHOS, AS ESTRADAS E A TERRA....... 385
9.4. AS POLÍTICAS DE ESCALA DIANTE DA EXCEÇÃO COMO REGRA......................................... 395

19
CRÔNICAS DE PESQUISA .................................................................................................. 405
OUVI NOVOS MUNDOS .............................................................................................................. 405
UMA GEOGRAFIA DAS VANS ..................................................................................................... 405
TRILHOS DA GUERRA ............................................................................................................... 407

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 409

REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 418

20
INTRODUÇÃO

Uma geração que ainda fora à escola


num bonde puxado por cavalos se
encontrou ao ar livre numa paisagem em
que nada permanecera inalterado,
exceto as nuvens, e debaixo delas, num
campo de forças de torrentes e
explosões, o frágil e minúsculo corpo
humano.

Walter Benjamin

21
I
Eram seis da manhã, a paisagem da janela permanecia em turvo amanhecer. A
poeira encobria a velha camisa e o horizonte, enquanto o calor e a umidade suavam o
corpo cansado. Estrondos de vários timbres compunham o despertar. Os sonhos mais
pareciam lembranças de sorrisos anoitecidos, doces momentos que teimavam em não
acordar na aurora de um novo dia. Cambaleantes, as pernas se entrosavam aos poucos,
frágeis diante da dureza do caminho. E o caminhar lento atravessava gerações...
Escombros compunham o chão. A cada passo, um estilhaço de lembrança se
despertava dos destroços do que um dia fez parte do caminho. A casa e o trabalho,
agora, separavam-se por trilhos, os trilhos de turvar horizonte, como se costuma dizer.
Paredes se contorciam pela trepidação do trem, formando fissuras a desagregar
histórias.
O cantar dos pássaros já não se notava diante do ranger dos vagões, que
apressavam o compasso da existência. Tudo agora era feito entre uma viagem e outra,
como se os dias fossem recordados em intermitências, num inacabamento constante,
fazendo da vida, um simples intervalo.
A idade já provocava os ouvidos. Seriam aqueles sons lembranças, ou ruídos
reais? O barulho do trem não se foi. Continuava cortando o tempo. As mãos meladas de
poeira denunciavam o estreitamento do olhar. O tamanho dos fragmentos a se dispersar
pelo ar aumentava. Naquele dia, em especial, uma fuligem cobria o céu, que nem as
nuvens testemunhavam as paisagens de outrora. Não se podia ver quase nada, como que
o compasso do trem fosse arrancando do caminho as ranhuras e marcas de expressão do
tempo. Um caminhar às escuras, em pleno raiar do Sol, era, então, conduzido pelas
lembranças dos ruídos. Mas eram lembranças? Os sons estavam realmente ali?
A madeira que demarca a passagem pela entrada na estrada de ferro já estava
deteriorada, e a altura das toras, que sempre avisavam do começo de um terreno
perigoso, não mais se esgarçava o suficiente para tocar a sola daqueles sapatos
desgastados. A entrada nos trilhos se fez despercebida, mas não seus sons. A buzina se
fazia notar, como uma música a se repetir na memória, mas era memória? Naquele
instante, o trem interrompeu o direito à dúvida. O estrondo da batida no corpo franzino
se fez notar na vizinhança, logo uma multidão circulava o acontecido. Um clamor ainda
ecoou não se sabe bem de onde, embora alguns digam que lembrava o timbre da fala
daquele velho senhor surdo, que nada escutava, mas tanta história contava. A voz, em
murmúrio, dizia: ―Parecia a Guerra, mas era o trem‖!

22
II
A alegoria esvazia aquilo que diz preenchendo de possibilidades nossa
capacidade de dizer, transforma a perda num impulso, destrava o esquecimento da
destruição e eterniza o que nem era para ser lembrado. Existiriam mil formas para
começar esse trabalho, por isso escolhemos começar por vários fins, por isso trazer o
leitor ao universo alegórico do problema, por isso, enfim, deixar uma imagem como
mote de compreensão ao que ainda vem.
Situamo-nos num cenário de guerra, ou seria a mineração?
Foucault (2008) nos advertiu - invertendo a tese de Clausewitz da guerra como
continuação da política por outros meios - que é a política a continuação da guerra por
outros meios. Falaremos, então, de guerra ou de grandes projetos minerais nesse
trabalho? Talvez não haja distinção, pois a experiência da mineração na Amazônia,
sentida por aqueles que estiveram e ainda estão em seu caminho, indica-nos uma guerra
sem fim, em que a realização dos processos extrativos, encadeados a complexas
operações logísticas, suspende leis em nome da lei, transforma o que se distingue da
racionalidade dos empreendimentos em risco a ser gerido e eliminado, atropelando a
vida, sangrando territorialidades, definindo uma geografia de exceção.

III
O ideário de desenvolvimento da Amazônia encontrou na mineração industrial,
através de megaempreendimentos, um mecanismo capaz de colocar em suspensão, em
termos teóricos e políticos, toda a complexidade e diversidade regional, em nome de
uma geografia mais ―racional‖. Os grandes projetos de mineração, ao se constituírem
pelos signos da modernidade capitalista na região, criaram, e ainda criam, zonas de
indiferença, espaços tornadas não existentes, territórios, portanto, cujas formas de sentir
e pensar, de agir e se relacionar são negligenciadas e apagadas da cartografia funcional
desses grandes empreendimentos.
O sentido central desse trabalho é problematizar essa racionalidade corporativa
de governo do território que cria essa geografia da indiferença pela produção desses
territórios da não existência1, ou seja, é pôr em questão uma geografia de exceção
definida por grandes projetos minerais na Amazônia.

1
Boaventura de Sousa Santos (2008) identifica cinco modos de produção de não existência na
modernidade: a monocultura do saber, que torna a ciência o único modo de conhecimento válido,
tornando inexistente outras formas de saber; a monocultura do tempo linear, que cria ideias de
modernização e torna o diferente atrasado; a monocultura da naturalização das diferenças, que classifica

23
Falamos, logicamente, a partir de um lugar de enunciação específico, ou de
uma Amazônia específica dentre as várias existentes, uma região que, desde a instalação
do Programa Grande Carajás (PGC)2, na década de 1980, é (re)definida pela mineração.
Enfim, falamos de uma região inventada pelo planejamento estatal – mais
particularmente através do decreto de lei n° 1813 de 24 de novembro de 1980, que
instituiu o PCG e criou um regime especial de concessão de incentivos tributários e
financeiros a áreas específicas – e cortada por uma racionalidade corporativa que renova
seu apetite, nos dias atuais, com a criação de um conjunto de grandes projetos
extrativos, em especial o projeto S11D3 da empresa Vale S A.
A mineração realiza-se, portanto, como uma racionalidade corporativa a
redesenhar a geografia dos lugares por onde passa e, através de Grandes Projetos,
redefine a dinâmica territorial amazônica. Das zonas de extração aos portos de
exportação, de Carajás, no sudeste do Pará, ao porto de Ponta da Madeira, em São Luis
no Maranhão, suspende a possibilidade de existência de múltiplas formas de ver e sentir
o espaço, distintas da racionalidade corporativa mineral, que, desse modo, trata tudo
aquilo que lhe escapa como risco a ser gerido, desmobilizado, sanado ou, no fim,
removido. O Mapa 1 nos aproxima dessa dinâmica ao demonstrar a diversidade
territorial que o corredor Carajás-Itaqui corta.

populações em hierarquias e torna ausente e inferior quem não se assemelha ao modelo de sujeito
eurocêntrico; a monocultura de uma escala dominante, que representa o que pode ser universal e o que
será local; e a monocultura das produtividades, que por critérios de produtividade capitalista torna
improdutivos aqueles que não se enquadram nesses critérios. A combinação dessas cinco lógicas está na
dinâmica de produção do que aqui chamamos territórios da não existência.
2
O Programa Grande Carajás (PGC) integrou um conjunto de projetos mínero-metalúrgicos, projetos
agropastoris e de infraestrutura. Implantado entre 1979 e 1986 na mais rica área mineral do planeta,
situada na Amazônia brasileira, estendeu-se por 900 mil km². Fazem parte do programa: o projeto Ferro-
Carajás, Projeto Trombetas, Projetos de produção de alumínio (ALBRÁS, ALUNORTE e ALUMAR) e
Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT).
3
O Projeto S11D ―compreenderá a extração de minério de ferro do Bloco D do Corpo S11 de Serra Sul.
(...) Prevê, durante 39 anos, a lavra a céu aberto de 3,4 bilhões de toneladas de minério e 1,74 bilhões de
toneladas de estéril. Os 90 milhões de toneladas de minério que serão lavrados por ano serão
encaminhados para a usina de beneficiamento, com 66,7% de teor de ferro (...). Os produtos,
denominados ‗Fino Natural‘ e ‗Produto da Britagem Secundária‘, serão transportados pelo novo Ramal
Ferroviário do Sudeste do Pará que será interligado à Estrada de Ferro Carajás – EFC até o Terminal
Portuário de Ponta da Madeira - TPPM, em São Luís - MA. Do porto, o minério seguirá em navio para os
principais mercados consumidores da Ásia, Europa e América do Norte (RIMA, 2009, p 07).

24
Mapa 1 – Diversidade territorial do Corredor Carajás-Itaqui

25
São quatro terras indígenas diretamente afetadas, uma por estar na área de
influência dos projetos de mineração em Carajás, a TI Xikrin do Catete, e outras três
que estão nos caminho do ferro, Mãe Maria, Caru e Rio Pindaré, sem contar as várias
TIs afetadas pela dinâmica regional criada em torno da mineração, o que significa
muitos povos e etnias afetados pela dinâmica mineral. São, pelo menos, 88
comunidades quilombolas atravessadas pela Estrada de Ferro Carajás (EFC), que
tiveram seus igarapés recortados por trilhos e suas dinâmicas de mobilidade subjugadas
aos fluxos de capital. São vários assentamentos de reforma agrária divididos pelos
trilhos e afetados diretamente pelos processos de extração, o que redireciona os
posicionamentos e formas de mobilização de movimentos sociais, que historicamente
lutaram contra o latifúndio e agora, também, precisam lutar para permanecer em seus
territórios afetados pela mineração. São cerca de 100 comunidades que têm sua
dinâmica cotidiana transformada, seja pelas explosões nas minas, pelas instalações dos
projetos de extração, pela trepidação do trem a rachar casas, pela longa espera para
atravessar os trilhos por onde passa o maior trem do mundo mais de 20 vezes ao dia.
Entretanto, também são múltiplos sujeitos políticos constituídos pelo
antagonismo à mineração, que respondem à impossibilidade de existência, através da
emergência de subjetividades políticas, ora marcadas pela reivindicação da memória e
das tradições, ora politizadas por situações sociais, ora afirmando diferenças étnicas, ora
criando categorias de autodeterminação, mas, sobretudo, politizando a vida e abrindo
novos horizontes para visualizarmos outras formas de sentir e pensar o território.
O exercício do poder corporativo no território, através de tecnologias políticas
de exceção, guiado por uma racionalidade empresarial de gestão de riscos sociais, não
se dá sem r-existências. A diversidade territorial4 do corredor Carajás-Itaqui emerge
como imperativo político e epistêmico a demonstrar que não há poder sem resistência,
que os caminhos do ferro na Amazônia, também são caminhos indígenas, quilombolas,
de pescadores, de camponeses a apontar outros horizontes de sentido. É essa tensão
entre racionalidades distintas que aqui terá atenção como tensões territoriais, que define
o sentido de problematização desse trabalho.
Por esses caminhos algumas questões se impõem à pesquisa: quais as
condições de emergência dos grandes projetos minerais como dispositivos de exceção

4
A noção de diversidade territorial é tomada aqui, a partir de Haesbaert (1999), para ler a questão
regional a partir dos processos de diferenciação espacial, ressaltando os processos de produção da
desigualdade, mas também as dinâmicas de marcação de diferenças espaciais, construindo assim, a
possibilidade analítica de ver a diversidade geográfica diante de processos de homogeneização espacial.

26
na Amazônia? De que maneira esses grandes projetos minerais objetivam-se por
tecnologias políticas corporativas de governo do território? Como se dá a emergência de
antagonismos sociais à mineração em um território marcado por relações de exceção?

IV
Há uma tradição crítica importante nos estudos sobre a região do sudeste do
Pará e sudoeste do Maranhão, que constrói uma leitura desses espaços a partir do
conceito de fronteira. Vários são os trabalhos nesse contorno, assim com as
divergências teóricas entre os termos frente de expansão, frente pioneira e fronteira, que
não convém mencionar aqui. Esses trabalhos apontam, em sua maioria, para a
compreensão desses espaços como lugares da alteridade e do conflito, justamente por
expressarem o (des)encontro entre formas de usar o espaço e o tempo distintas. Martins
(1996, p. 27) sintetizaria dizendo:
À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões
são diferentes entre si... Mas o conflito faz com que a fronteira seja
essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e do
desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das
diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses
grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de
temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado
diversamente no tempo da História (MARTINS, 1996, p.27).

A problematização em torno da fronteira, portanto, aponta para três


especificidades de espaços definidos pela sua situação de conflito social, quais sejam: a
descoberta/desencontro do outro, a produção capitalista de relações não capitalistas e a
expressão dos confins do humano (MARTINS, 1996). Não centraremos nossa análise
no desenvolvimento do conceito de fronteira, mas os campos de problematização que
ele abre serão fundamentais para esse trabalho. Por isso, essas três especificidades
apontadas nos fazem encontrar três outros conceitos que serão centrais para a
organização de nossa leitura. Nesses termos, visualizando a descoberta/desencontro do
outro chegamos à leitura dos processos de colonialismo interno e fricção interétnica;
reconhecendo a produção capitalista de relações não capitalistas, chegamos aos
processos de acumulação por espoliação; e pensando na expressão dos confins do
humano chegamos à compreensão de processos de suspensão normativa e do estado de
exceção. Não ignoramos que falamos a partir da fronteira, por isso caminharemos pelos
seus campos de problematização.

27
Entretanto, diferentemente de outros trabalhos que encadeiam os processos de
colonialismo interno e estado de exceção a uma leitura da acumulação por espoliação e
dos trabalhos que, pela leitura do colonialismo interno, discorrem da espoliação e da
exceção, este trabalho centraliza as atenções no exercício do poder de uma
racionalidade corporativa mineral, tomando o campo de problematizações do estado de
exceção como o ponto de partida, sem, lógico, desconsiderar a economia política dos
processos de acumulação por espoliação, nem mesmo a antropologia política dos
processos de colonialismo interno e fricção interétnica.

V
Não somos os primeiros a problematizar os megaempreendimentos da
mineração na Amazônia nem seremos os últimos. Esse trabalho se nutre de um extenso
cabedal de pesquisas, que, de um lado, enfatizaram criticamente os processos de
extração mineral na região de Carajás e, de outro, construíram um extenso acervo para
lermos a diversidade social e territorial dessa região. Não citaremos aqui todos esses
estudos, pois muitos ainda irão constar mais à frente, apenas aqueles que expressem
cinco eixos de reflexão que identificamos.
O primeiro eixo referencia leituras que poderíamos chamar de estadocêntricas,
pois, admitindo uma relação pressuposta entre a mineração e o desenvolvimento,
posicionam a pesquisa como um farol às escolhas do Estado, como assim o faz, por
exemplo, o trabalho de Palheta (2013) por um olhar à mineração a partir dos recortes
político-administrativos dos municípios mineradores. Para esse primeiro eixo, o Estado
é uma mediação simbólica a moldar a representação da realidade, o que confere uma
vontade normativa da análise, de pensar como o Estado.
Um segundo eixo de problematização são os trabalhos que enfocam a
mineração na região de Carajás a partir das relações desiguais no capitalismo
globalizado, com um fundo teórico entre a economia política e a ecologia política. O
trabalho do IBASE (1983), demonstrando a inserção desigual do Brasil na economia
global a partir de Carajás como uma elevação do endividamento e uma hipoteca do
futuro, bem como o trabalho de Bunker (1994) sobre as relações desiguais, em termos
de matéria e energia, entre as economias extrativas e as economias mais complexas, são
bastante expressivos.
O terceiro eixo de problematização segue uma linha de denúncia aportando
teorias e conceitos, notadamente do campo da economia política. Os trabalhos de Cota

28
(1984) ―Carajás: a invasão desarmada‖, de Kowarick (1995) ―Amazônia/Carajás: na
trilha do saque‖, de Valverde (1989) ―Grande Carajás: planejamento da destruição‖ e de
Pinto (1982) ―Carajás: o ataque ao coração da Amazônia‖, além do trabalho de Santos
(2011), representam bem esse sentido da problematização que ganha também um
enfoque de denúncia política.
Um quarto eixo de trabalhos, também num campo construído entre economia
política e ecologia política, pode ser descrito por leituras dos processos de
reestruturação espacial decorrentes das atividades minerais, destacando não apenas
atividades econômicas atreladas à grande mineração, como a siderurgia e o
carvoejamento, a exemplo do trabalho de Monteiro (1996, 2001), mas também
problematizando os entornos dos projetos de extração e da logística da mineração, como
os trabalhos organizados por Coelho e Cota (1997) ―10 anos da Estrada de Ferro de
Carajás‖ e Coelho e Monteiro (2007) ―Mineração e reestruturação espacial da
Amazônia‖.
Um quinto eixo de trabalhos enfatiza a mineração a partir dos conflitos sociais
e territoriais, valendo a menção do clássico trabalho de Almeida (1994) ―Carajás: guerra
dos mapas‖ e a organização de Jean Hébette (1991) de ―O cerco está se fechando‖.
Outros trabalhos seguiram essa linha, como Wanderlei (2008), sem mencionar o grande
número de trabalhos antropológicos sobre diversas etnias indígenas, comunidades
quilombolas, pescadores e quebradeiras de coco babaçu que também problematizaram a
mineração a partir do olhar destes distintos sujeitos políticos, o que fez com que Velho
(2018) definisse a região de Marabá como importante na história da antropologia das
Américas pela densidade de etnografias realizadas sobre os povos que nela vivem.
Em linhas gerais, a maioria dos trabalhos - com exceção feita a alguns estudos
do quinto eixo e das várias etnografias realizadas na região - converge para uma leitura
do que podemos denominar de uma geografia dos processos de reestruturação espacial
provenientes da atividade mineral. Essa leitura dá forte ênfase à dimensão econômica
dos processos pelo exame dos circuitos do capital, do papel dos agentes e da dinâmica
de estruturação desigual do espaço.
Entretanto, situamo-nos num cenário de guerra ou seria a mineração? Essa foi
nossa pergunta inicial não por acaso. O espaço que problematizamos é produzido por
uma razão cínica, pelo exercício do poder de uma geografia de exceção.
Por esse ângulo, e para definir nossa perspectiva, deslocamos a centralidade da
análise da realização dos processos produtivos para a dinâmica do exercício do poder,

29
ou seja, deslocamo-nos do campo de problematização do espaço ao campo de
problematização do território5, de uma geografia da produção e reprodução do espaço a
uma geografia do governo6 do território, o que não se traduz no abandono das bases da
economia política e da ecologia política que balizaram a maioria dos estudos sobre a
região de Carajás, mas de pensá-los a partir das relações de poder e seus processos de
exceção.
VI
Este trabalho problematiza as tensões territoriais em torno de Grandes Projetos
de Mineração na Amazônia. Estamos falando, pois, de uma região historicamente
distante das imaginações geográficas que definiram os ideais de nação, de uma
atividade econômica historicamente tratada como de interesse e segurança nacional e de
dispositivos políticos que se realizam, via de regra, por processos de suspensão
normativa. A equação Mineração e Grandes Projetos na Amazônia, portanto, não pode
ser vista sem a criação de medidas excepcionais, sem processos de suspensão da ordem
jurídica, sem o desenho de uma racionalidade corporativa de governo do território tão
afeita a práticas subterrâneas, legalmente ilegais, para sua realização. O tempo das
urgências, da necessidade e das emergências que expressa a exceção como regra, não se
realiza sem, antes, definir o que é progresso e o que não é, o que importa e o que não
importa, o que deve passar e fluir e o que deve ficar para ser gerido e/ou contido. É em

5
Cruz (2011) sumariza um conjunto de deslocamentos para a construção de uma análise territorial: um
deslocamento da economia política para a política; dos processos de produção do espaço para os
processos de governo/governamentalidade do espaço; da centralidade do conceito de trabalho para os
conceitos de ação política e poder; das relações/práticas de produção para as relações/práticas de força em
termos de estratégia e tática; de uma concepção de poder centralizada e monodimensional para uma
concepção multidimensional e imanente a todas as relações sociais e em todas as escalas; de uma
concepção de conflito restrita para uma concepção mais ampla e mais complexa envolvendo as diferentes
formas, estruturas e escalas de dominações e resistências; de uma concepção de sujeito (classe) para uma
nova concepção de sujeito constituinte, sujeitos constituídos a partir das relações de poder e que podem
ter as mais diversas expressões: classe, raça, gênero, etnia, tribo, comunidade (CRUZ, 2011).
6
É importante lembrar que quando falamos de governo do território estamos atribuindo à palavra governo
o sentido dado por Foucault (1995) como uma ação de estruturação do campo de ação dos outros,
simplesmente, uma ação sobre ações, sentido esse, aliás, que coincide com a própria reformulação do
entendimento do exercício do poder pelo autor, a luz de seus trabalhos sobre biopolítica. Diferente da
soberania, em que o poder se exerce pelo direito do soberano de matar e da disciplina, que produz uma
economia de maximização da utilidade dos corpos em conjunto, a biopolítica opera sobre probabilidades,
antecipando riscos em nome da segurança, fragmentando a sociedade por dados estatísticos e definindo
quem pode viver e quem vai se deixar morrer. Por esses termos que o poder é ―[...] um conjunto de ações
sobre ações possíveis: ele opera sobre o campo de possibilidades aonde se vêm inscrever o
comportamento dos sujeitos atuantes: ele incita, ele induz, ele contorna, ele facilita ou torna mais difícil,
ele alarga ou limita, ele torna mais ou menos provável; no limite ele constrange ou impede
completamente; mas ele é sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos atuantes, enquanto eles
agem ou são susceptíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1995, p. 243).

30
torno dessa geografia de exceção que esse trabalho organiza sua estrutura de conceitos e
categorias.
De pronto, não compreendemos toda essa dinâmica de exceção sem
admitirmos que a dinâmica de territorialização pela via da mineração é, antes de tudo,
uma conexão orgânica, como lembraria Rosa Luxemburgo (1984), entre a acumulação
primitiva e reprodução ampliada do capital. Acumulação primitiva do capital e dinâmica
de reprodução capitalista são processos distintos, não obstante sua integração. Referem-
se a métodos de geração de riqueza diferentes, enquanto o primeiro traduz-se
basicamente na transformação de bens coletivos em mercadoria ou na lógica da
instituição da propriedade privada capitalista e toda a dinâmica de saque, fraude,
violência, privações e desapropriações que isso significa, sempre na lógica de
acumulação de dinheiro, o segundo se refere a um processo de valorização do dinheiro e
transformação dele em capital, através, fundamentalmente, do processo de exploração
do trabalho, que gera um novo valor ou um mais-valor.
Essa constatação será lida a partir de três aproximações teóricas: uma primeira
entre Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt e entre David Harvey e Michel Levien; uma
segunda de Boaventura de Souza Santos com Luc Boltanski e Henri Acselrad; e uma
terceira de Arturo Escobar com Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.
A primeira aproximação teórica entre Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt e
entre David Harvey e Michel Levien nos projeta a um modo particular de leitura dos
processos de acumulação primitiva.
Rosa Luxemburgo, analisando o imperialismo do século XIX, reforça a tese de
que o instituto da propriedade privada capitalista é um motor de processos de
acumulação pela via da violência, afirmando que a cada expansão colonial do
capitalismo há uma ―guerra encarniçada‖ do capital contra outras relações econômico-
sociais de povos nativos, além de uma ―desapropriação violenta de seus meios de
produção e (...) roubo de sua força de trabalho‖. (LUXEMBURGO, 1984, p.33).
Hannah Arendt analisa o mesmo período de Rosa e concorda com ela, quando
mostra que, no imperialismo, a ativação do pecado original do roubo, a acumulação
primitiva, foi repetida ―a fim de evitar que o motor da acumulação parasse de súbito‖
(ARENDT, 2012, p. 220). Entretanto, a autora completa que, contrariamente à estrutura
econômica, a estrutura política não poderia se expandir infinitamente, uma vez que o
Estado-Nação se funda em um consentimento de nação, o que a leva a concluir que ―a
primeira conseqüência da exportação do poder foi esta: os instrumentos de violência do

31
Estado‖ e, assim, ―o dinheiro podia, finalmente, gerar dinheiro porque a força, em
completo desrespeito às leis – econômicas e éticas – poderia apoderar-se de riquezas‖
(ARENDT, 2012, p. 204).
Se, no contexto do imperialismo do século XIX, Rosa Luxemburgo observa a
violência dos processos de acumulação primitiva pela guerra encarniçada contra os
povos nativos inscrita no roubo de suas terras e trabalho, Hannah Arendt (2012) chama
atenção que esse processo é, também, de forjar um Estado imperialista violento que tem
o racismo como arma ideológica e é capaz de suspender a lei e questionar a humanidade
e o direito dos homens e mulheres que não se assemelham ao seu ideal nacional.
O segundo diálogo proposto, no sentido semelhante ao anterior, mas agora
tendo como pano de fundo a dinâmica neoliberal que reativa a acumulação primitiva, é
entre David Harvey e Michel Levien.
Harvey (2004, 2013), investe grande energia teórica para demonstrar o papel
contínuo e a persistência da acumulação primitiva no capitalismo contemporâneo,
substituindo adjetivos dados a esse tipo de acumulação, como primitivo e original, para
a construção do conceito de acumulação por espoliação que, por sua vez, pode ser vista
desde o confisco das aposentadorias, até as expulsões de terra e a conversão de direitos
de propriedade coletiva em direitos exclusivos. Mesmo reconhecendo a importância do
Estado para a promoção desses processos, a teorização de Harvey se encaminha mais
para o entendimento, de longa duração e em escala global, dos ajustes espaciais do
capitalismo diante das constantes crises de sobreacumulação, para a resolução do
problema do capital excedente, sendo que, embora tenha como fundamento uma leitura
dialética entre lógica territorial, do Estado, e lógica capitalista, do capital, a partir de
Arrighi (1995), a preocupação, pela escala de observação dos fenômenos, é mais com os
movimentos do capital do que com as práticas específicas de distintos Estados,
preocupando-se, nos termos da acumulação por espoliação, em compreender os
mecanismos pelos quais o capitalismo se desloca e se apropria do que lhe é exterior, ou
do que lhe é estranho em termos de formas de geração do valor, para superar suas crises.
Levien (2014) reconhece o avanço da análise de Harvey, mas aponta que há
nela uma centralização excessiva nos processos puramente econômicos, advertindo que,
diferente dos processos de exploração do trabalho que pressupõem uma dinâmica de
alienação e coação permanente do trabalhador, a acumulação por espoliação envolve
mudanças traumáticas, processos de desapropriação conflituosos, sendo que é
inimaginável pensar nesses processos, sem compreender que eles são, na maioria das

32
vezes, empreendidos ou possibilitados pelo próprio Estado, como agente portador do
monopólio da violência. A ressalva de Levien (2014, p. 37) também é metodológica,
uma vez que registra a necessidade de pensarmos para além do papel funcional ao
capitalismo da acumulação por espoliação, para pensarmos pelo conjunto de meios e de
arranjos necessários para se efetivar tais relações e práticas, entendidas, desse modo,
como regimes de desapropriação definidos como ―o uso de coerção extraeconômica
para expropriar ativos não relacionados ao trabalho de um grupo para o benefício de
outro‖.
Assim como Arendt acrescentou elementos ao que Luxemburgo havia descrito,
assim o faz também Levien em relação a Harvey. Ângulos de problematização distintos,
pela economia política e pelas relações de poder, mas que se enriquecem mutuamente.
Para nosso estudo, por essa primeira aproximação teórica, chegamos à necessidade de
pensar essa maneira particular de acumulação de capital não apenas como elemento
funcional aos ajustes de um capitalismo em crise, mas como marca histórica dos
processos de expansão capitalista na Amazônia, que são, concomitantemente, expansão
de formas de acumulação brutais e processos de formação de um Estado Nacional ou de
imposição de um ideário de nação à região.
Esse diálogo entre um olhar da economia política e um olhar às relações de
poder, estrutura o primeiro eixo de problematizações desse trabalho que, por sua vez, irá
ser realizado pelo encontro com outros dois autores: Pablo Gonzáles Casanova e
Giorgio Agamben. Esse encontro pretende trazer ao debate o conceito de colonialismo
interno, para dialogar com os processos de formação do Estado brasileiro na Amazônia
e o conceito de estado de exceção, para demonstrar todas as suspensões normativas e
violações de um Estado, que se forja legalmente fora da lei, para fazer funcionar
processos de acumulação pela via da violência.
Entretanto, se Levien (2014) propõe um avanço metodológico importante aos
estudos sobre regimes de desapropriação, para entendê-los a partir dos meios e arranjos
concretos usados para se efetivarem, não apenas como simples ajustes funcionais de um
capitalismo financeirizado – o que nos aproximou dos conceitos de colonialismo interno
e estado de exceção – não há, em sua análise, um aprofundamento do papel, cada vez
mais central, de grandes corporações, ou mesmo das relações entre Estados e grandes
empresas, na condução desses processos.
Como este trabalho problematiza as práticas espaciais e processos de
territorialização de uma empresa em específico, a Vale S. A., chegar, também, à

33
compreensão da racionalidade corporativa que explica determinadas ações territoriais,
que implicam e afetam outras territorialidades nos é fundamental, e daí surge nossa
segunda aproximação teórica entre Boaventura de Souza Santos e Luc Boltanski.
Para nos aproximarmos do significado das formas de governo do território por
uma empresa recorremos, primeiramente, ao conceito de fascismo territorial de
Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 85), que mostra a existência de atores sociais,
com forte capacidade de regulação social, que, por sua vez, retiram do Estado o controle
do território onde atuam, ou mesmo, neutralizam esse controle, seja pela cooptação, seja
pela violência às instituições estatais, exercendo, desse modo, ―a regulação social sobre
os habitantes do território sem a participação destes e contra os seus interesses‖.
Se o conceito de fascismo territorial nos indica a existência de atores sociais
que, neutralizando algumas instituições do Estado, são capazes de controlar o território
exercendo regulação social para efetivarem modos de acumulação violentos, é pela
análise de Luc Boltanski (2013) e dos vários trabalhos de Henri Acselrad (2004, 2010,
2015) que chegamos a ideia de pensar uma empresa a partir da compreensão de sua
racionalidade e seus instrumentos de dominação corporativos, tomando como base a
compreensão de que, no mundo contemporâneo, o aumento da crítica não é
acompanhado pelo aumento do poder da crítica, em muito, pelo fortalecimento e
aperfeiçoamento de ferramentas de gestão desenvolvidas nos quadros das grandes
empresas, no sentido de construir modos de dominação gestionária voltados a desarmar
o poder da crítica, conduzindo a manutenção de assimetrias profundas, por formas de
dominação impessoais, que produzem mais explicações que propriamente justificações.
Pelos caminhos abertos por Boltanski e Henri Acselrad alargamos um campo
de estudos para a compreensão dos modos de dominação corporativa do território, o
que, por sua vez, estrutura o segundo eixo de problematização deste trabalho.
Por fim, após os encontros anteriores que nos dão elemento de compreensão de
uma geografia de exceção, definida por uma racionalidade corporativa, faz-se necessária
outra aproximação teórica, que se revela pelo encontro entre Arturo Escobar com
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, encontro este que nos projeta a escutar o território e
perceber num corredor sitiado por uma empresa, distintos modos de não ser empresa,
distintos modos de não agir como corporação, pontos de vista radicalmente diferentes
do empresariamento da vida.
Pelo o encontro com essas experiências de alteridade, com estas distintas
territorialidades que pluralizam Carajás, é que dialogamos com Escobar (2015) para

34
percebê-las não apenas como modos de pensar distintos, isto é, como distintas
epistemes, mas também como outros modos de ser, por isso pensá-las em sua dimensão
epistemológica, mas também ontológica, uma vez que expressam outros modos de se
relacionar com a terra, com a floresta, com os rios, cuja força de continuar a existir se
nutre da afirmação de outras ontologias. Encontramos, literalmente, outros mundos ao
nos encontrar com estas distintas territorialidades, ou seja, outras cosmopolíticas. Essa
leitura, portanto, constrói uma noção de ontologia onde cabem vários mundos,
superando as leituras coloniais e essencialistas, para pensarmos em uma ontologia
relacional a partir da noção de pluriverso não mais de universo (ESCOBAR, 2012).
Entretanto, essa diversidade territorial que se forja afirmando suas diferenças
também não pode ser pensada distante da normalidade da exceção e, por isso, existir em
sua especificidade e racionalidade é, também, resistir, ou seja, r-existir, pois cada modo
de sentir e pensar o mundo diferente carrega a experiência de habitar a exceção e de
conviver com a destruição, a morte e a ameaça.
Por esses termos, percebemos a existência de um repertório político de
geografias em r-existência, inscrito na diversidade territorial historicamente constituída
por múltiplas territorialidades indígenas, quilombolas, camponesas.... É tendo em vista
os processos de politização dessas distintas experiências de alteridade que encontramos
com Laclau e Mouffe (2015), particularmente com o conceito de antagonismo,
entendido como um modo em que ―a presença do ‗Outro‘ me impede de eu ser
totalmente eu mesmo‖ (LACLAU E MOUFFE, 2015, p. 125). Este conceito nos ajuda a
pensar a dinâmica de objetivação política das distintas territorialidades, ou seja, a
emergência de processos de subjetivação política a partir do antagonismo à mineração,
o que nos permite expressar as experiências sociais em r-existência à dinâmica mineral
por suas unidades de mobilização, seus repertórios de ações coletivas e suas políticas de
escala.
É pelo encontro entre Escobar com Laclau e Mouffe que construímos o terceiro
eixo de problematização deste trabalho que é ler esses modos brutais de acumulação a
partir dos sujeitos políticos em antagonismo a eles, ampliando a leitura por outros
horizontes de sentido, inscritos em diferentes territorialidades em r-existência.

VII
Esses três encontros definem três eixos por onde irão caminhar nossas reflexões.
No primeiro, no plano central, o Estado, lido por suas ações concretas de suspensão

35
normativa e de colonialismo interno na Amazônias. No segundo, uma empresa que já
foi Estado e, por isso, opera no limite da representação que anos de estatal lhe confere,
lida por sua racionalidade instrumental de transformar as áreas dos entornos de um
projeto de mineração em territórios administráveis. No terceiro, distintas unidades de
mobilização se forjam por práticas de r-existência, a partir de modos de organizar,
pertencer, fluir, sentir e definir territórios e territorialidades.
Esses eixos, em termos de método de interpretação, podem ser traduzidos em
três palavras/conceitos, a saber: o arquivo, o diagrama e as heterotopias. Estas três
palavras e os caminhos metodológicos que elas deduzem demonstram a influência
decisiva de Michel Foucault para este trabalho.
Um arquivo não é a memória de um fato, nem um documento que revela um
passado distante. O arquivo é o que define o que se tornará memória e o que irá ser
registrado como passado. É, portanto, o sistema de relações de poder que regula aquilo
que se torna história, o que será lembrando e o que será esquecido, por isso, ele não
busca origens, nem continuidades, pois tira os acontecimentos de sua zona de
acomodação, de seus lugares consagrados para se perguntar sobre as suas condições de
emergência. Pensar a emergência histórica dos grandes projetos de mineração nos
remete a uma escala do tempo e do espaço. Do tempo, pois essa emergência nos remete
a relações de saber e poder de colonialismo interno que possuem uma longa duração.
Do espaço, pois esses projetos não são pensados e materializados em um espaço
qualquer, são pensados para a Amazônia e a dimensão regional é fundamental para
compreendermos os sentidos dos processos de exceção que eles efetuam.
O diagrama, por outro lado, nos ensina que o poder não é uma propriedade nem
um lugar ocupado, mas um exercício, ações sobre ações, que, para ser bem
compreendido, deve ter como parâmetro de análise suas práticas, técnicas, dispositivos e
arranjos concretos. Pelo diagrama chegamos às relações de força que definem uma
racionalidade corporativa de governo do território, investigando a atualidade dos
grandes projetos de mineração por uma microfísica, ou seja, pelas estratégias de
territorialização de uma empresa.
As heterotopias, por sua vez, levam-nos às dobras do poder, aos espaços de
utopias realizadas, irredutíveis, diferentes e heterogêneos, aos outros espaços que
significam desvio em relação à norma instituída. Pensar as heterotopias é deslocar o
lócus de enunciação deste trabalho para que ele faça falar territorialidades em r-

36
existência e encontre a diversidade territorial em um espaço pensado para se guiar pelo
tempo financeirizado das commodities.
Essas três palavras/conceitos assumem agora o sentido de caminhos. Pela
primeira, fazemos uma análise arqueológica/genealógica da emergência da Amazônia
como questão para a política Nacional, para entender o porquê se ativa uma forma de
territorialização e não outra quando se trata dos grandes projetos minerais na Amazônia.
Pela segunda, fazemos uma análise das estratégias concretas de uma empresa para
garantir seus arranjos espaço-temporais e a viabilização de sua produção, construindo
um mapa das relações de força que tornam viável a mineração como um processo de
territorialização na Amazônia. Pela terceira, compreendemos diferentes sujeitos
políticos que se constituem a partir das lutas em antagonismo à mineração, fazendo falar
seus territórios e suas territorialidades.

VIII
Este trabalho tem como recorte empírico a ampla região do corredor Carajás-
Itaqui, por isso algumas explicações são importantes. Registre-se que tal região pode ser
pensada como um recorte espacial de planejamento estatal em vistas a produzir arranjos
de controle territorial em torno de uma pretensa ―vocação mineral‖, o que se expressa
no conjunto de representações cartográficas produzidas em torno do PGC, as quais
sugerem uma complexa coalizão de interesses em torno da mineração, como bem
destaca Almeida (1994).
Referimo-nos, portanto, à produção social de uma escala para o exercício do
poder corporativo ligado à mineração, de um recorte espacial que define usos
prioritários, que programa formas de circulação e fluidez que serão incentivadas,
definindo extensões de área para uma atividade econômica e toda sua cadeia.
Entretanto, não se desenham recortes, usos, circulações e extensões sem, também,
apagar, isolar, imobilizar, silenciar e expulsar territórios e territorialidades outras que
não se encaixem na tal ―vocação mineral‖ da região.
A escolha, portanto, de um corredor de exportações como campo empírico de
análise é, primeiro, para que consigamos compreender o pragmatismo estatal e a
racionalidade corporativa na escala em que são pensados, mas também é para que
consigamos vê-lo e representá-lo não apenas como um corredor de exportações, mas em
sua diversidade territorial. Só por esse recorte, portanto, temos uma leitura de conjunto
do metabolismo social da mineração e, também, temos noção da diversidade de

37
antagonismos e de territorialidades em r-existência aos processos de territorialização
corporativos.
Por esse caminho, nossa unidade de observação da realidade não é apenas a
lógica interna da racionalidade corporativa nem mesmo a constituição específica de
grupos, povos, etnias e/ou comunidades em r-existência a essa racionalidade, é a tensão
entre esses modos distintos de se relacionar, significar, usar e definir territórios e
territorialidades. Nesse sentido, as tensões territoriais tornam-se o terreno
epistemológico de problematização, pois que o território, como resultado e expressão
das relações de poder, objetiva o desencontro entre esses modos de compreensão e
definição do mundo social distintos. É pelo território, portanto, que a nossa geografia
encontra os sujeitos, as ações e as práticas concretas. Ele é a nossa maneira de fazer
falar as práticas. Por isso, este é um trabalho de um geógrafo que, mesmo não
obedecendo a uma rígida posição disciplinar, pode ser lido como geográfico, pois trata
de processos de territorialização, os quais não existem sem sujeitos, ações e práticas
instituintes (PORTO-GONÇALVES, 2001).
A escolha das situações de tensões territoriais a serem analisadas obedeceu a
um critério básico: a recorrência na importância dada pelos próprios movimentos
sociais, redes de mobilização, sindicatos, ativismos sociais e entidades com quem nos
relacionamos durante a pesquisa.

XIX
Tornar um problema da realidade social em um problema de pesquisa não é um
simples exercício heurístico, para este trabalho em específico, envolveu a relação do
autor com a região estudada por quase dez anos. O ingresso na então Universidade
Federal do Pará (hoje Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará), campus de
Marabá, como professor do curso de Licenciatura Plena em Educação do Campo, em
2009, iria nos conduzir a um contato próximo com movimentos sociais, entidades
comunitárias e povos e comunidades tradicionais daquela região, o que nos exigiu, não
apenas a uma maior clareza com nosso compromisso ético e político para com esses
sujeitos, mas a um giro completo em nossas preocupações analíticas.
Por isso, a nossa relação com o campo empírico de análise, a nossa vivência do
problema de pesquisa, melhor dizendo, as experiências que tivemos com a realidade
social que nos forçaram a pensar o problema como tal, trazem para este trabalho, uma
empiria que não pode ser descrita em termos formais. Não apenas o envolvimento com

38
a realidade e com nossos interlocutores nos amplia o seu significado, mas também o
nosso envolvimento reflexivo com a realidade em análises conjunturais construídas, em
processos reflexivos feitos a correr, no calor das lutas e a partir de fontes que tínhamos à
mão. É a partir desse envolvimento, com suas ampliações empíricas e epistemológicas,
mas também com seus limites e ocultações, aliado a uma experiência de distanciamento
construída pelos quatro anos de doutorado vividos em Niterói, que esse trabalho ganha
sentido.
Portanto, essa é uma pesquisa que não pode ser pensada distante das relações
que estabelecemos - bem antes de iniciarmos formalmente esse estudo, mas que se
consolidaram com ele - em Marabá e seus entornos, com a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), com o Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular
(CEPASP), com o Movimento dos Trabalhadores da Mineração (MTM), com lideranças
indígenas dos Kyikatêjê, dos Parkatêjê e dos Akrãtikatêjê e com o Movimento Debate e
Ação. Em Canaã dos Carajás, com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município.
Em Açailândia, com a Rede Justiça nos Trilhos e com o Centro de Defesa da Vida e dos
Direitos Humanos. Além do contato no Pará e no Maranhão, com várias lideranças
quilombolas e indígenas, com o Fórum Carajás, com o Movimento Interestadual das
Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), com o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com o
Movimento Nacional pela Soberania Popular frente à Mineração (MAM).
Fizemos, entre 2009 e 2014, duas viagens (ida e volta) de trem entre
Parauapebas e São Luís e uma viagem de carro, com percurso similar, acompanhando as
comunidades afetadas pelos projetos de extração e pelos trilhos. Foram, também,
diversas as visitas, juntamente a movimentos sociais e entidades, a situações de conflito
social com a mineração, seja no Pará: em Canaã dos Carajás, Parauapebas e Marabá,
seja no Maranhão: em São Pedro da Água Branca, Açailândia, Buriticupu, Alto Alegre
do Pindaré e São Luís. Esse conjunto de experiências nos serviu de pesquisa
exploratória e eixo central para nossa problematização.
Fizemos quatro trabalhos de campo a partir dessas pesquisas exploratórias,
cada um durando entre um e dois meses: o primeiro, em dezembro de 2015, concentrou-
se em um levantamento documental, juntamente a órgãos oficiais, mas também pelos
arquivos das organizações sociais, entidades de mediação e movimentos sociais.
No segundo trabalho de campo, que se deu nos meses de setembro e outubro de
2016, fizemos algumas observações sistemáticas e entrevistas semi-estruturadas nos

39
acampamentos criados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás
no mesmo município, nos bairros Araguaia e Auzira Mutran em Marabá, na
comunidade de Piquiá de Baixo, em Açailândia e em alguns assentamentos e
acampamentos afetados pela mineração ligados ao MST. Ainda neste segundo trabalho,
realizamos entrevistas semi-estruturadas com membros do CIMI, CPT, MST, CEPASP,
Justiça nos Trilhos e MAM. Nesse trabalho fizemos, também, uma visita às instalações
do projeto S11D, além de uma viagem de trem, dessa vez, de Marabá a São Luis e,
ainda, tentamos, pela primeira vez, uma entrevista com a empresa Vale, sem sucesso.
No terceiro trabalho de campo, feito entre novembro e dezembro de 2017,
voltamos aos acampamentos em Canaã dos Carajás, fizemos uma pesquisa mais acurada
dos processos de despejo desses acampamentos no acervo de documentação da CPT
Marabá e também fizemos algumas visitas ao INCRA na tentativa de conseguir
informações atualizadas sobre as áreas em disputa. Nesse trabalho, conseguimos uma
entrevista com um representante da consultoria Sinergia, conversamos informalmente
com membros de outras consultorias ambientais ligadas à empresa Vale e tentamos
novamente contato com a empresa, que, através de uma funcionária, concedeu-nos uma
entrevista, que, por sua vez, não está citada nesse trabalho, por conta de um fato
posterior, quando, pelos contatos indicados pela funcionária, conseguimos outra
entrevista, que foi desmarcada minutos antes da hora estipulada, com a insistente
pergunta sobre quem havia nos indicado aquele contato e se já havíamos falado com
alguém da empresa (ver a crônica ―a entrevista frustrada‖). Nesse terceiro trabalho,
ainda fomos a algumas aldeias dos povos Akrâtikatêjê, Parkatêjê e Kyikatêjê na Reserva
Indígena Mãe Maria no município de Bom Jesus do Tocantins.
No quarto trabalho de campo, realizado entre janeiro e fevereiro de 2018,
conversamos com representantes do CIMI em Imperatriz, visitamos a comunidade
quilombola de Santa Rosa dos Pretos em Itapecuru Mirim e fizemos uma observação
sistemática da área de instalação portuária da empresa Vale em São Luis.
Paralelo aos trabalhos de campo, também fizemos pesquisa e análise
bibliográfica e documental, não só para nos aproximarmos do grande número de
trabalhos sobre a dinâmica territorial em Carajás, mas também para acessarmos o
expressivo número de documentos empresariais, estudos de impacto ambiental e as
inúmeras informações do mundo corporativo disponíveis na internet. Além das
observações sistemáticas, entrevistas semi-estruturadas, registro fotográfico realizadas
no trabalho de campo, a elaboração cartográfica também nos foi importante para

40
expressar as tensões territoriais em torno da mineração. Em relação à aproximação às
territorialidades em r-existência, o extenso número de trabalhos etnográficos sobre elas
nos foi fundamental.
Caminhamos, portanto, entre acessos e restrições em termos de pesquisa.
Acesso, pois o nosso envolvimento com a realidade nos garantiu chegar a dados,
documentos e entrevistas fundamentais a este trabalho. Restrições, pois analisamos uma
realidade em tensão, o que nos reservou não apenas situações tensas em campo, mas
uma grande dificuldade de acesso a algumas informações, uma vez que a ocultação e o
jogo com os dados, particularmente no campo corporativo, é também uma estratégia de
poder.
X
Uma tese pode ser pensada como um romance! A afirmação parece maluca,
mas façamos um exercício de imaginação e pensemos os atributos de um romance para
entender um trabalho acadêmico. Encaremos que o subgênero do texto literário que
agora se apresenta ao leitor, seja descrito como tese. A história a ser desenvolvida - com
suas idas e vindas, segredos, mistérios e revelações - nada mais é que o nosso problema
social tornado aqui problema de pesquisa. A vida de um romance, seus personagens,
também faz parte desse texto, pois pessoas reais falarão, contarão suas lutas, conduzirão
os rumos da história/problema. O espaço literário, tocando no nosso métier geográfico,
são os percursos, o universo empírico da pesquisa, os caminhos percorridos. Também,
como no romance, temos um fio condutor, que, em nosso caso, é um método de
interpretação. E, por fim, temos um roteiro, um encadeamento de ideias que nos fazem
contar uma história e é esse roteiro que agora pretendemos apresentar.
O texto que agora o leitor tem em mãos está dividido em três partes: arquivo,
diagrama e heterotopias e finaliza com algumas considerações finais. Entre cada uma
das partes há uma seção denominada Crônicas de Pesquisa, na qual, em primeira
pessoa, tentamos trazer o leitor para o universo do autor e da pesquisa, contando-lhe
situações suficientemente densas de significado que revisem, ampliem ou ponham em
outros termos as nossas reflexões.
A primeira parte, o arquivo, divide-se em três capítulos. O primeiro
―Colonialismo Interno e Estado de Exceção: Amazônia e o risco à soberania” analisa
as figurações dos dispositivos de nacionalidade brasileira que definiram a Amazônia
como risco à soberania e um vazio de pessoas, política e técnica para o qual se
justificam grandes projetos como dispositivos de exceção. O segundo ―Grandes

41
Projetos de Mineração como paradigmas do Estado de Exceção na Amazônia” analisa
a superposição de relações de exceção entre as suspensões normativas tornadas regra na
dinâmica de regulação da mineração no Brasil e os dispositivos de exceção expressos na
lógica de implantação dos Grandes Projetos de Mineração na Amazônia. No terceiro
capítulo “Uma Geografia em Ruínas: mineração e territorialização de exceção”
pensamos o espaço da memória dos Grandes Projetos Minerais como um território em
disputa para se fazer ver ruínas onde geralmente só se enxergam grandes construções.
A segunda parte, o diagrama, está subdividida em quatro capítulos. No
primeiro, quarto capítulo do trabalho, chamado ―Da CVRD à Vale: dos acordos de
Washington à crise das commodities” analisamos o contexto geopolítico que guia a
trajetória da criação da Companhia Vale do Rio Doce à empresa Vale. No capítulo
cinco ―Expandir a produção ou gerir a população” propomos ler a mineração como um
metabolismo social para compreender a transformação das áreas do entorno dos projetos
em territórios administráveis. No sexto capítulo ―Gestão dos Riscos Sociais
Corporativos: desmobilização, resignificação e antecipação à crítica” fazemos um
exame das estratégias concretas de gestão das populações dos entornos do projeto S11D
pela empresa Vale. No capítulo sete “Regimes de contenção territorial e
desterritorialização” entramos na análise da mineração pelos processos de contenção e
desterritorialização, pela racionalidade territorial corporativa.
A terceira parte, as heterotopias, divide-se em dois capítulos. No capitulo oito
―Escutando o território para pensar por outras (geo)grafias” encontramo-nos com
outros horizontes de sentido e de destino, outras territorialidades que pluralizam os
repertórios geográficos de Carajás. No capítulo nove “A Geografia das Lutas Sociais
em Carajás: unidades de mobilização, repertórios de ação coletiva e políticas de
escala” observamos as experiências de alteridade discutidas no capítulo anterior a partir
de seus processos de politização e antagonismo à mineração, identificando cinco
unidades de mobilização constituídas por distintos sujeitos políticos no corredor
Carajás-Itaqui, os diferentes sentidos dos processos de ocupação e interrupção logística
como repertórios de ação coletiva, além das políticas que escala que reposicionam os
sujeitos diante das hierarquias escalares impostas pela geografia de exceção definida por
uma racionalidade corporativa.
Algumas considerações finais encerram o trabalho não apenas com um balanço
das reflexões construídas, mas com um apontamento de alguns desafios teóricos e
políticos que emergiram com a pesquisa.

42
O ARQUIVO
para não calar

para que não se chame


de conflito à chacina
de paz à polícia
e violência de segurança
e manipulação de imprensa
e falácia de justiça
voltemos ao silêncio

não àquele que é omisso


não àquele com um S
com passos de coturno
e curvas de assassino
pluralizando covas e viúvas

voltemos ao silêncio
para que se ouça
que ter nascido humano
ainda não é ser gente
que ainda não é estar vivo
o apenas ser sobrevivente
que não disparar o tiro
ainda não é ser inocente

voltemos ao silêncio
para dar princípio
ao verbo que se faça ato
dando novos sentidos
aos velhos fatos

que o verbo ensine:


o viver pleno
demanda alimentar com vida a vida
como com pássaros se alimenta o dia
como com estrelas a madrugada
como se alimenta o poema com poesia

Clei de Souza

(...)
Sempre foram nos ensinando
Sobre os grilhões e as virtudes do silêncio
Mal sabiam nossa capacidade de traduzir
Silêncio em Verso
Silêncio em mais silêncio
Preparando a vozearia libertária

Sempre foram nos ensinando


Sobre os perigos das vastas madrugadas
Enquanto empenhávamos todas as forças
Para arrancar das estrelas
A luminosidade dos dias
(...)
Paulo Fonteles Filho

43
A mineração na Amazônia é um projeto que articula múltiplas escalas e
sujeitos, mas que só se tornou realidade prática, enquanto emergência histórica e lógica
de organização do espaço e definição de territórios, quando se associou a uma
perspectiva de desenvolvimento da região, pensada e materializada pelo Estado. Nesses
termos, os grandes projetos vinculados à indústria de extração mineral são respostas
concretas, em termos políticos, de uma verdade e uma razão de Estado ao desafio
amazônico, ou ainda, à emergência de uma região como desafio político à nação. Nesses
termos, não há como construir uma leitura histórica da mineração na Amazônia sem
entender sua vinculação a um projeto de Estado para a região.
Essa hipótese de trabalho nos leva a uma necessidade metodológica: interpelar
a história dos chamados grandes projetos minerais na Amazônia.
A geografia possui uma tradição de pensamento, no que se refere ao tratamento
da história, que pode bem ser delimitada pela palavra formação. A formação, conceito
marxista proveniente do termo formação econômica e social - que nos remete ao
processo de realização do modo de produção em distintos contextos históricos e
geográficos, assumindo a feição de formação sócio-espacial (SANTOS, 1996), ou nos
levando a entender simultaneidade e coexistência de temporalidades no espaço
(LEFEBVRE, 1974) – apresenta-se nos estudos por meio de continuidades,
periodizações, análises de mudanças e permanências, buscando construir uma
consciência histórica e geográfica dos fenômenos, entendendo o trabalho histórico-
geográfico como de revelação de uma verdade oculta, sendo a formação, em última
análise, a criação histórica de uma unidade geográfica.
Este trabalho, no entanto, não ignorando a importância e pertinência da
tradição anterior, trata a história não como formação, mas como invenção. Por trás da
ideia de invenção está o entendimento de que, também, a interpretação da história
produz a história. Por esse prisma, tratam-se os fatos por suas versões, as consciências
históricas por suas condições de emergência, não se busca, portanto, um repertório
complexo, denso e linear de documentos, uma vez que se situa no exame das regras de
aparecimento e desaparecimento dos argumentos, o que faz com que a análise histórica
não se coloque fora dos acontecimentos, entendendo que qualquer interpretação é
interferência e criação. Nesses termos, as evidências não serão mais provas
documentais, serão a compreensão de formas de ver, assim como a interpretação da
história torna-se um modo de interpelação da história.

44
Na esteira desses argumentos, a história é vista por sua descontinuidade,
ruptura e diferença, sendo que o espaço não é tratado apenas como testemunho e
condição para a formação de múltiplas temporalidades, mas como produto de versões da
história, entendendo os discursos, como práticas socioespaciais que carregam esquemas
de percepção marcadamente coloniais, não sendo apenas atos de simular/esconder, mas
máquinas de produzir realidades e verdades e, por conseqüência, espaços.
Por essa maneira de ver a relação espaço e tempo, a Amazônia, como problema
político, não se torna um enunciado por acaso, não há, portanto e, também, um
momento de orígem no qual podemos demarcar sua entrada na esfera dos discursos
políticos oficiais, o que há são regras que definem o que deve e o que não deve ser dito
em dado momento, como se deve e como não se deve dizer, o que há, enfim, é um
sistema que define o aparecimento dos enunciados, ou seja, o que há são arquivos, esses
sistemas de discurso que selecionam o que será feito história e o que não será, que,
assim, transformam enunciados em fatos, esquemas de percepção em políticas. Por isso,
os arquivos de Amazônia, são aquilo que se tornou possível dizer sobre a região e,
assim, demarcou as racionalidades de práticas governamentais.
Essa imbricação entre discurso e Estado, na emergência de uma forma de
exercício do poder na Amazônia, também nos leva a uma compreensão específica
daquilo que estamos chamando Estado.
Também não trataremos o Estado por suas definições prévias, como aparelho
fundamental dos processos de dominação de classe, como estrutura burocrática
autônoma, arena de enfrentamento das forças sociais, dentre várias outras definições. O
Estado será aqui tratado a partir de suas práticas, sua racionalidade e sua verdade serão
lidas a partir de ações concretas, sejam discursivas ou não discursivas, recusando o
enquadramento prévio destas a uma definição estruturante e englobante.
Por esses argumentos
O que eu havia tentado identificar era a emergência de um certo tipo
de racionalidade na prática governamental, um certo tipo de
racionalidade que permitiria regrar a maneira de governar com base
em algo que se chama Estado e, em relação a essa prática
governamental, em relação a esse cálculo da prática governamental,
exerce a um só tempo o papel de um já dado, visto que é verdade que
o que será governado é um Estado que se apresenta como já existente,
que se governará nos marcos de um Estado, mas o Estado será ao
mesmo tempo um objetivo a construir. O Estado é, ao mesmo tempo,
o que existe e o que ainda não existe suficientemente. E a razão de
Estado é precisamente uma prática, ou antes, uma racionalização de
uma prática que vai se situar entre um Estado apresentado como dado

45
e um Estado apresentado como a construir e a edificar (FOUCAULT,
2008, p. 6).

Pensamos, dessa forma, entre um Estado apresentado como dado, através de um


conjunto de discursos que o situam como uma nação, que precisa funcionar como a
verdade, e um Estado a se construir, que nos indica uma racionalidade da prática estatal,
um modo específico de governar, ou seja, de definir uma ação que interfere em outras
ações, em síntese, o Estado é entendido por uma verdade e uma razão, inscritas em
práticas discursivas e não discursivas.
Mas estamos falando, não esqueçamos, de um Estado que, em nome de sua
racionalidade, exclui de sua verdade - a nação - formas de viver que não espelhem seus
padrões coloniais, justificando, assim, para determinadas regiões, que representam risco
à soberania, por se diferenciarem radicalmente de sua verdade, o estado de exceção
como regra.
Poderíamos sintetizar nosso olhar histórico e geográfico por três hipóteses
gerais: as condições de emergência histórica da Amazônia para o Estado português e/ou
brasileiro referenciam-se em ideais de nação, as quais marcam processos de
colonialismo interno; a exclusão da região do imaginário de nação é a força para uma
racionalidade governamental marcada pelo estado de exceção; diante da exceção como
regra de Estado na Amazônia, torna-se necessário pensar pelo ângulo daqueles para os
quais a exceção não é uma necessidade, senão a forma mais vil de violação,
construindo, assim, uma história e geografia a contrapelo.
Dito de outro modo, nosso estado de exceção, tão característico através dos
megaempreendimentos de mineração, nos quais quase tudo é suspendido, de leis e
normas a vidas humanas, tem, em si e para si, uma arqueologia e genealogia histórica
inscrita em camadas discursivas, em intervenções políticas e saberes especializados que
forjaram a exceção como regra, que transformaram uma região em uma área estranha,
vazia de sentido, tornada, então, existente para não existir.
Esses arquivos de Amazônia serão vistos em três capítulos a partir daqui. No
primeiro, pensando entre o colonialismo interno e o estado de exceção, entramos nas
figurações dos dispositivos de nacionalidade brasileira que definiram a Amazônia como
risco à soberania e um completo vazio, para o qual se justifica a política como guerra e a
exceção como regra. No segundo, entraremos na equação entre Mineração e Grandes
Projetos na Amazônia, que se estrutura por uma superposição de relações de exceção,

46
pois articula suspensões normativas tornadas regra na dinâmica de regulação da
mineração no Brasil, e dispositivos de exceção, expressos na lógica de implantação dos
Grandes Projetos na Amazônia. No terceiro, tentaremos pensar o espaço da memória
dos Grandes Projetos Minerais como em um território em disputa, para redimensiona-
los em termos de olhar histórico e geográfico.
Dois são os sentidos, portanto, do arquivo que se pretende consolidar por esses
três capítulos: o primeiro é a construção de um caminho de compreensão das condições
de emergência de práticas de governo do território por dispositivos de exceção, e o
segundo é a definição de um modo estratégico de se posicionar frente ao tempo,
restituindo à compreensão do mundo, fragmentos de histórias e geografias esquecidas,
de modo a contribuir com as lutas do presente.

47
CAPÍTULO 1
COLONIALISMO INTERNO E ESTADO DE EXCEÇÃO:
AMAZÔNIA E O RISCO À SOBERANIA

(...)
Olhando os meus olhos de verde e floresta
Sentindo na pele o que disse o poeta
Eu olho o futuro e pergunto pra insônia
Será que o Brasil nunca viu a Amazônia
E vou dormir com isso
Será que é tão difícil?

Nilson Chaves e Celso Viáfora

(...)
Aqui a gente toma guaraná
quando não tem Coca-Cola
Chega das coisas da terra
que o que é bom, vem lá de fora
Deformados até a alma
Sem cultura e opinião
O nortista só queria
fazer parte da nação

Edmar Rocha e Mosaico de Ravena

48
Os dois trechos de música que dão ritmo às epígrafes desse primeiro capítulo,
oficialmente reconhecidas por premiações musicais, de âmbito nacional e internacional,
na categoria de música regional, cantam, em verso e canção, a total ausência da
Amazônia do imaginário nacional brasileiro. O reclamo musical ganha os timbres de
vozes dissonantes que reverberam, à flor da pele, o significado de estar ausente das
grades de uma interpretação de Brasil.
Na esteira dessa ausência, o romancista amazonense Marcio Souza dá dois
exemplos contundentes no campo científico, em que a Amazônia torna-se um espaço
culturalmente marginal, que aparece num eterno estado de descoberta e primeiro
contato. O primeiro exemplo são os três volumes de Intérpretes do Brasil, coleção
lançada em homenagem aos quinhentos anos do ―descobrimento‖, na qual não há uma
única linha sobre Amazônia e, o segundo, é o volume de Hispanic American Historical
Review com o tema ―começos brasileiros‖, na qual a região também é simplesmente
ignorada (SOUZA, 2015).
Vários foram os pesquisadores que já nos mostraram que a Amazônia é, em
síntese, uma invenção. Uma invenção que já foi lida pela crítica às representação sobre
e não da Amazônia (PORTO-GONÇALVES, 2005), a partir dos cronistas, viajantes e
naturalistas que povoaram e povoam as representações sobre a região ao lhe atribuir
uma imagem por suas descrições (GODIM, 2004; ALMEIDA, 2008; PIZARRO, 2012),
pelos ensaios de José Veríssimo, Euclides da Cunha, Leandro Tocantins e Eidorfe
Moreira (PEREIRA, 2016), pelos discursos feitos circular através meios de
comunicação (DUTRA, 2003).
A Amazônia, ou as Amazônias, para o Estado brasileiro, historicamente
esteve/estiveram fora do Brasil. Parece soar estranha tal afirmação se a entendermos nas
grades de uma noção de espaço apenas como distância física ou recorte de área. Mas se
encaramos que o espaço é também um modo de ver, fazer e dizer, uma palavra, uma
imagem, um símbolo, o esboço de um planejador, a imaginação de um presidente,
começamos a perceber que, aquilo que representamos a partir de um lugar de olhar
específico, muitas das vezes torna o que lhe é estranho, algo não existente, ou existente
a partir de dados parâmetros que, quase sempre, não incluem os olhares, dizeres, fazeres
e a imaginação dos lugares dos quais se fala. As Políticas Nacionais, em suas
maiúsculas intervenções e violações pretenderam tornar o lugar distante e com uma
história colonial distinta da história do Brasil, uma região mais próxima da nação. A
inclusão pela exclusão, figurada na homogeneização de uma diversidade, alisou

49
ranhuras, reduziu milhares de nações a uma só, desumanizou a expressividade de vidas,
transformando-as em almas perdidas, reduzindo qualidades diferenciais a diferenças
abissais, tornando exótico o cotidiano de um espaço, o imaginado como um vazio de
pessoas, de técnica, de ciência e de política.
Esse capítulo pretende percorrer a produção dessa não existência da Amazônia
em relação ao Brasil, pois compreende que ela é a condição de possibilidade, ou seja, é
a força explicativa histórica, para que consigamos ler os grandes projetos minerais nessa
região a contrapelo, ou seja, recusando sua vinculação imediata ao desenvolvimento,
numa leitura estruturante recheada de pré-noções explicativas, para olhá-los como
práticas discursivas e não discursivas portadoras de uma racionalidade, que desenha um
modo de produzir espaços e delimitar territórios por relações de exceção.
Para isso, primeiro, chamamos para a discussão o conceito de colonialismo
interno, de Pablo Gonzáles Casanova, que acreditamos ser uma síntese analítica
fundamental que nos ajuda a entender a verdade e a razão do Estado no desenho das
políticas nacionais para a Amazônia, fazendo-o dialogar com o conceito de estado de
exceção de Giorgio Agamben. Em um segundo momento, interrogando as condições de
emergência da Amazônia como uma região a ser (re)construída pela política nacional,
chegamos às figurações dos dispositivos de nacionalidade brasileira, que definiram a
região a partir da noção de risco à soberania, o que normalizou práticas de exceção e
processos de suspensão normativa, como expressão da racionalidade governamental na
Amazônia.

1.1. COLONIALISMO INTERNO: DA NAÇÃO BRASILEIRA À EXCEÇÃO AMAZÔNICA


A identidade nacional brasileira já é, em si, uma expressão prática das marcas de
colonialidade que vestiram de verde e amarelo uma imagem cujos parâmetros se
definem no contraste com o colonizador, sendo moldada pela sua referência, ou como
adverte Marilena Chauí (2004, p. 27):

A identidade nacional pressupõe a relação com o diferente. No


caso brasileiro, o diferente ou o outro, com relação ao qual a
identidade é definida, são os países capitalistas desenvolvidos,
tomados como se fossem uma unidade e uma totalidade
completamente realizadas. É pela imagem do desenvolvimento
completo do outro que a nossa identidade, definida como
subdesenvolvida, surge lacunar e feita de faltas e privações.

50
Chauí aponta a colonialidade - essa vontade de saber e de poder que nos
reconstrói a imagem e semelhança de um outro que nos violenta, demonstrando que o
colonialismo não acaba com os processos de emancipação política dos Estados
Nacionais - como o elemento central de construção de uma identidade nacional
brasileira. Entretanto, não desconsiderando esses termos da colonialidade, queremos
advertir que a identidade nacional também escolhe, dentro do território nacional,
aqueles que mais se assemelham aos parâmetros eurocêntricos que as define e, assim,
ignora espaços e tempos que não apareçam nesse espelho que é o olhar nacional.
É por esses termos, que as músicas que iniciam esse capítulo ecoam, e também
por eles que encontramos o conceito de colonialismo interno, noção definida por Pablo
Gonzáles Casanova, mas que encontrou grandes rebatimentos na teoria antropológica
brasileira. O conceito se nutre da compreensão de o colonialismo não ―deve apenas
contemplar a escala internacional, [pois] se dá no interior de uma mesma nação, na
medida em que há nela uma heterogeneidade étnica em que se ligam determinadas
etnias com os grupos ou classes dominantes, e outras com os dominados‖ (GONZÁLEZ
CASANOVA, 2006, p. 401).
De modo mais explicativo, o mesmo autor diria que
El colonialismo interno corresponde a una estructura de relaciones
sociales de dominio y explotación entre grupos culturales
heterogéneos, distintos. Si alguna diferencia específica tiene respecto
de otras relaciones de dominio y explotación (ciudadcampo, clases
sociales), es la heterogeneidad cultural que históricamente produce la
conquista de unos pueblos por otros, y que permite hablar no sólo de
diferencias culturales (que existen entre la población urbana y rural y
en las clases sociales), sino de diferencias de civilización
(GONZÁLEZ CASANOVA, 2015, p. 146).

Atribuindo a genealogia de seu conceito a Lênin, Gramsci, Mariátegui e Frantz


Fanon, Casanova, nesse particular, indica, como uma leitura que amplia os sentidos de
colonialismo interno, as interpretações de Antônio Gramsci (2002) sobre as relações
desiguais, violentas ou ―sanguessugas‖, nos termos do autor, entre as regiões norte e sul
da Itália. Nesse sentido, a dinâmica de violação étnica na estruturação de uma nação se
combina com relações desiguais entre regiões, construindo um sistema de domínio
territorial e étnico, alargando estratégias de conquista e controle de regiões,
concomitante ao empreendimento de políticas de controle, tutela e extermínio de povos
que não se encaixam na lógica racial e civilizatória definida para a nação.

51
No Brasil, as discussões em torno do colonialismo interno ganharam várias
expressões. Darcy Ribeiro, entendendo o contato entre os processos de formação do
Estado e da Nação e as populações indígenas, fala de transfiguração étnica. Em seu
clássico livro ―Os índios e a civilização‖, Ribeiro afirmava que
(...) o processo através do qual as populações tribais que se defrontam
com sociedades nacionais preenchem os requisitos necessários à sua
persistência como entidades étnicas, mediante sucessivas alterações
em seu substrato biológico, em sua cultura e em suas formas de
relação com a sociedade envolvente. Esta acepção é, na realidade,
uma aplicação particular e restrita de um processo mais geral que diz
respeito aos modos de formação e transformação das etnias
(RIBEIRO, 1977, p. 13).

Está presente em Darcy Ribeiro, tal qual adverte o argumento cerne do


colonialismo interno, uma perspectiva de interpretação que compreende as sociedades
indígenas, no interior do quadro da sociedade nacional, e que pretende perceber as
relações entre as estruturas econômicas indígenas e a estrutura da economia nacional, a
fim de perceber as conseqüências dessa relação.
Roberto Cardoso de Oliveira, que publica o texto ―Aculturação e Fricção
interétnica‖ no mesmo número da revista América Latina que Gonzáles Casanova
organizou os termos conceituais do colonialismo interno, reivindica que seus trabalhos e
de vários outros antropólogos brasileiros podiam ser pensados a partir do escopo desse
conceito, uma vez que o colonialismo interno constrói um trânsito de escalas, pois,
tributário dos conceitos da sociologia do subdesenvolvimento, ajuda a fazer a mediação
entre análises mais centradas nas particularidades étnicas dos grupos sociais, com os
processos de construção da sociedade nacional, dando destaque aos grupos étnicos por
participarem da condição de existência da pluralidade da sociedade (OLIVEIRA, 1963,
1972). Sua noção de fricção interétnica, definida como uma ―situação de contato entre
duas populações dialeticamente ‗unificadas‘ através de interesses diametralmente
opostos, ainda que interdependentes, por paradoxal que pareça‖ (OLIVEIRA, 1996, p.
47), também foi pensada para entender o contato entre o que se definiu por sociedade
nacional e as populações indígenas.
Nesses termos, tomamos consciência que as violações aos povos e
comunidades tradicionais, ou seja, o extermínio da nossa diversidade social, cultural e
cosmológica, apresenta uma continuidade histórica entre o colonialismo de bandeira
européia e o nascente colonialismo interno, verde e amarelo, atrelado a interesses
transnacionais, impregnado de um nacionalismo marcado por um imaginário que

52
naturaliza a violência aos grupos étnicos e o esquecimento de seus territórios de
referência, bem como das regiões em que se fazem mais presentes, ignorando o que
significa uma diferença em relação ao que se idealiza como Estado e como Nação.
Aquilo que chamamos de nação, embora muitas vezes naturalizemos e
achemos, por isso, que sempre esteve ali, é, mais do que um recorte territorial envolto
de uma pretensão de unidade, uma invenção histórica como tantas e tantas outras. A
unidade nacional, tão apregoada pelos ideólogos nacionalistas, de esquerda e de direita,
nada mais é que uma forma de construção de um imaginário para o exercício do poder
pelo Estado. Brasil é uma palavra subjetivamente potente, pois carrega camadas e mais
camadas históricas de discursos e imagens que, por sua repetição e insistência, acaba
sendo naturalizada. Não sem razão, parte das ciências sociais criou certa obsessão em
estudar a realidade brasileira, logicamente que a geografia se inclui nisso, tomando o
Brasil como pressuposto não necessariamente como um problema, fazendo da ciência
uma espécie de aventura de definição de recortes direcionados por um imaginário
pressuposto de nação, funcionando como instrumento de gestão do Estado.
Interrogando os sentidos da ideia de nação e consciência nacional, Anderson
(2008) adverte que precisamos diferenciar a modernidade objetiva das nações, para qual
devem se voltar os olhares do historiador e do geógrafo, que também tem importância
impar nessa análise, e a antiguidade subjetiva, que nada mais é, que o imaginário
nacionalista. Nesse particular, o mesmo autor ressalta que a nação é fundamentalmente
imaginada, em seus membros, que nunca se conhecerão por completo, em seus limites,
que também dificilmente se saberá ao certo, em sua soberania, que sempre abarcará
pluralidades vivas, e em sua comunidade, que também dificilmente será fraterna e
totalmente coesa (ANDERSON, 2008).
Dois aspectos da nação são de fundamental importância, particularmente para
este trabalho: o primeiro deles é que as nações são camadas discursivas que produzem
realidade e verdade por sua figuração e imaginação; e o segundo é que sua matriz
discursiva se funda na ideia de modernidade. Duas palavras importantes: imaginário e
modernidade que, na verdade, demonstram a emergência do sistema-mundo moderno-
colonial e a da figura do Estado-Nação. Imaginário, como explica Mignolo (2005), é a
forma que uma sociedade define a si mesma. Podemos acrescentar a esta ideia a noção
de que o imaginário não é a imagem de algo em si, pois é fundamentalmente a produção
social e psíquica incessante de figuras, formas e imagens que criam o que conhecemos
por realidade (CASTORIADIS, 1982, p.13).

53
Entretanto, a nação se cria pela instituição de um imaginário, mas
fundamentalmente num contexto de moderno-colonialidade, e é necessário que
compreendamos a modernidade, como ensina Castro-Gomes (2005, p. 169), enquanto
―uma máquina geradora de alteridades que, em nome da razão e do humanismo, exclui
de seu imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambigüidade e a contingência de
formas de vida concretas‖. A modernidade, desta forma entendida, é também
colonialidade, do poder e do saber, sendo que o discurso que institui a nação ―aparece
assim como um produto ideológico construído pelo dispositivo de poder
moderno/colonial‖ (CASTRO GOMES, 2005, p. 179).
É importante que se diga, ainda, que, embora seja na Europa, com a formação
do Estado Nação Moderno-Colonial - pelos seus fronts interno (com o controle da
revolta dos camponeses) e externo (tráfico de escravos, servidão e genocídio indígena
na dinâmica de conquista colonial) (PORTO-GONÇALVES; HAESBAERT, 2006) -
que a ideia de Nação se configura como um imaginário morderno-colonial, esta ideia,
em terras brasileiras, não deixou, com sua definição e difusão, de ser menos violenta.
O ordenamento jurídico que indicia e, posteriormente, cristaliza os Estados
Nacionais, fundam-se, como nos lembra Agamben (2015), nas noções de natividade e
soberania. Nascer no seio de uma nação confere cidadania, estar dentro daquilo que se
define por nação é, enfim, o passaporte para uma vida política, uma vez que os direitos
do homem não são abstratos, porque são direitos de homens de um Estado. Por esses
termos, talvez compreendamos, como também alerta Agamben (2015), os motivos das
cada vez maiores levas de refugiados num planeta em guerra constante, serem tratadas
como questão de organizações humanitárias, nunca como questão de Estado, uma vez
que a figura do refugiado põe em crise a ficção de soberania sobre a qual se erigiu a
noção de vida política no ocidente. Mas se a cidadania, o direito e a própria vida,
existem em função de uma definição nacional, a ideia de nação, assim, não é apenas
uma imagem moderno-colonial que torna concreta uma ficção, é um dispositivo potente
para definir quem está dentro e quem está fora da política. Nascer em um Território
Nacional confere uma natividade que poderia sugerir direitos, entretanto, nascer em um
território nacional não significa nada se não se está incluído nas figurações, discursos,
imagens, recortes e projeções que marcam e demarcam o que significa ser uma nação.
Por esse motivo, particularmente na Amazônia, para onde se projetam tantos e tantos
ideais de Nação, estamos vendo se elevar o número de refugiados, pessoas que
nasceram no país, à beira de uma mina de ferro, de uma hidrelétrica, na estreita relação

54
com a floresta, povos que demarcaram sua existência pelos caminhos do rio, mas que
não cabem na política, pois viram entraves à nação, rostos que não se refletem no
espelho que se convencionou chamar de Brasil.
Refugiados brasileiros no Brasil, brasileiros demais para a estatística,
brasileiros de menos para o direito. A nação e suas figurações são, portanto, formas de
tornar ausente o que está presente, de esconder com o brilho de discursos, imagens e
convicções políticas e científicas, o que não se quer enxergar, o que não cabe no ângulo
de visão, o que não se nota pelo lugar de onde se olha, o que, por tudo isso, é deixado de
lado, jogado para o porão, empurrado para as sobras da catedral do conhecimento
nacional.
É um dispositivo de nacionalidade brasileira, esse ―conjunto de regras
anônimas que passa a reger práticas e discursos (...) e que impunha aos homens a
necessidade de ter uma nação, de superar suas vinculações localistas e se identificarem
com um espaço e um território imaginários‖ (ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 48) que,
assim, define zonas de penumbra, regiões distantes do imaginário nacional e, por isso,
sempre representadas pelo perigo à soberania, para onde tudo parece permitido, para
onde a suspensão da lei é a forma de se colocar legalmente fora da lei.
O colonialismo interno, pelos seus dispositivos de nacionalidade, define zonas
de indiferença, regiões habitadas por sujeitos tornados homo sacer, definidos por
Agamben (2004) como seres viventes que possuem uma vida matável, em que a morte
não é considerada crime nem sacrifício, pois é excluída do mundo do direito e do
mundo divino, do profano e do sagrado, sendo desta figura matável e insacrificável, de
onde emerge o poder soberano, tornando possível a sujeição da vida a um poder de
morte.
E não estamos falando apenas de monarquias absolutistas, pelo contrário, assim
como Agamben alerta, essas práticas de suspensão da ordem jurídica não são apenas
uma técnica de governo, inscrita num ―patamar de indeterminação entre a democracia e
o absolutismo‖ (AGAMBEN, 2004, p.13), mas um paradigma constitutivo de toda
nossa ordem jurídica ou ainda um paradigma de governo dominante na política
contemporânea.
Nesses termos, o estado de exceção como paradigma de governo na política
contemporânea, irá se tornar uma técnica biopolítica de governo dos vivos, ou como diz
Agamben (2004, p. 14) o seu significado biopolítico vem de um direito que ―inclui em
si um vivente por meio de sua própria suspensão‖, o que fica cada vez mais claro na

55
figura contemporânea dos refugiados que - por não se incluírem no par natividade e
nacionalidade, síntese dos sentidos das soberanias nacionais e que constituem o único
passaporte à cidadania - são jogados para fora da política, para fora das obrigações
Estatais (AGAMBEN, 2015). Pelo estado de exceção suspende-se a vida de uns para
que outros vivam, criam-se regiões de penumbra para que a nação signifique o brilho
mortal do progresso.
Por isso, achamos importante relacionar o colonialismo interno e estado de
exceção, não para aproximar as realidades a partir das quais cada conceito se forjou,
nem mesmo como uma tentativa de ecletismo metodológica de relacionar dois conceitos
de campos metodológicos distintos, apenas para dar a expressão que os processos de
formação nacionais carregam as marcas biopolíticas do estado de exceção,
principalmente nas regiões que não cabem no imaginário nacional difundido.

1.2. A AMAZÔNIA E A SOBERANIA “NACIONAL”: A EMERGÊNCIA DE UM RISCO


Frequentemente, as interpretações sobre a parte brasileira da
Amazônia não dão a devida importância a um fato primordial. É que a
América Portuguesa não estava constituída por uma única, e sim por
duas colônias distintas: a do Brasil, cuja sede permaneceu em
Salvador por mais de dois séculos, abrangendo da capitania de São
Vicente (São Paulo) ao Ceará, incorporando o litoral, a Mata
Atlântica, e se desdobrando para os sertões do rio São francisco; e a
do Mato Grosso e Grão-Pará, cuja sede foi a cidade de Belém,
próximo à embocadura do rio Amazonas, tendo como sua hinterlândia
toda a região configurada pelo enorme vale deste rio e de seus
numerosos afluentes. Não se trata de um detalhe da vida política-
administrativa portuguesa, mas a instituição de dois modelos de
colonização, com estratégias bastante diferentes de incorporação das
populações autóctones e de utilização dos recursos naturais, o que
repercutiu no estabelecimento de unidades sociais com modos de
organização e modalidades de autorrepresentação diferentes.
(OLIVEIRA, 2016, p. 161).

A tese de João Pacheco de Oliveira é potente e importante. Na Amazônia, o


extrativismo das chamadas drogas do sertão, com força de trabalho indígena,
arregimentada por meio da catequeze erigiram uma dinâmica colonial própria e distinta
da então usada no ―Brasil‖. Essa hipótese de dois regimes de colonização distintos
constitui-se em questão concreta se percebermos que em 1621, sob ordens de Filipe III
de Espanha, no período da união ibérica entre Portugal e Espanha, a América
Portuguesa foi dividida em duas unidades administrativas plenamente autônomas: a
primeira, o Estado do Maranhão, que seria a América Portuguesa setentrional, com

56
capital em São Luís, e a segunda, o Estado do Brasil, a parte sul dos domínios ibéricos
na América, cuja capital era Salvador.
As particularidades desses processos coloniais conferem aos padres das
missões, entre os séculos XVII e XVIII, uma grande centralidade, uma vez que estes
possuíam o monopólio de quase todas as operações que geravam valor: das operações
de produção e coleta das drogas do sertão, ao transporte e venda dos bens
comercializáveis. Essa particularidade, entretanto, irá se configurar na condição de
emergência de uma forma de ver e dizer a região, justamente quando a importância dos
missionários soar como uma ameaça à soberania.
Marquez de Pombal, em Instrução Régia enviada em 1751 a Mendonça
Furtado - seu primo que fora indicado à presidência da Província do Maranhão e Grão
Pará (que depois seria chamada de Grão Pará e Maranhão) - já constatava que ―como à
minha real notícia tem chegado o excessivo poder que têm nesse Estado os
Eclesiásticos‖. Na mesma Instrução, torna-se bem mais claro seu receio com os padres:
Pois que, ignorando os miseráveis índios que havia na terra poder que
fosse superior ao poder dos Padres, criam que esses eram soberanos
despóticos dos seus corpos e almas; ignorando que tinham um rei a
quem obedecer (...) ignorando enfim que haveria leis que não fossem
as da vontade dos seus Santos Padres (assim os denominavam) (...).
Recomendo-vos muito que procureis atentamente os meios de segurar
o Estado, como também os de fazer florescer o comércio7.

A violenta leitura colonial e eurocêntrica das populações autóctones agrega-se


a um problema concreto para a soberania do Estado português, qual seja: a enorme
legitimidade das ordens religiosas faz com que o Estado não seja uma realidade objetiva
para as populações amazônicas. Em carta a Pombal em 1755, Mendonça Furtado diz:
Terão boa fé em nós e tomarão amor à nação quando vêem que
fazemos as honras e os interesses comuns, finalmente tratando-os
totalmente ao contrário do que até agora tem feito, e cujos fatos
abomináveis nos tem posto no último ódio, com todas estas imensas
desgraçadas gentes8.

O outro indígena, que é representado como desgraçadas gentes, torna-se um


problema para a administração imperial não só pela sua diferença traduzida como
inferioridade, por uma maneira de ver colonial, mas porque se subordinam às ordens

7
MELO, Sebastião José de Carvalho e. República jesuítica ultramarina. Gravataí: SMEC; Porto Alegre:
Martins Livreiro; Santo Ângelo: Centro de Cultura Missioneira/FUNDAMES, 1989, p. 8.
8
Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo. Mariuá, 12 de
outubro de 1755‖. In: MENDONÇA, M. C. Amazônia na Era Pombalina. Volume 3. Rio de Janeiro:
RIHGB, 1963, p. 942.

57
religiosas e deixam de se subordinar ao Estado. Por isso, a estratégia deve ser dirigida à
construção do amor à nação, colocando em questão é, novamente, a soberania.
A preocupação com a soberania da parte setentrional da América Portuguesa se
fez aguçar com a política pombalina9 que, inclusive, muda para Belém a capital do
Estado do Maranhão e Grão-Pará, que também muda de nome em 1751, passando a se
chamar Grão-Pará e Maranhão.
No início do século XIX10, após a contraditória declaração da independência do
Brasil - que preservou o sistema político português, tendo como líder o herdeiro da
Coroa lusitana que sustentou a escravidão e a mesma elite política e econômica - mais
especificamente durante o período do segundo reinado de Dom Pedro II, João Antônio
de Miranda, presidente da Província do Pará no ano de 1840 – província que acabara de
passar por uma das maiores revoltas populares da história, a Cabanagem, movimento
violentamente massacrado e que em 1840 já passara a se constituir em poucos focos de
resistência após a ofensiva do Império – afirma em seu discurso à assembléia
Legislativa Provincial:
Tenho toda a esperança, senhores, que uma inspiração patriótica
chamará em torno dos interesses próprios, dos interesses da província
(...) As circunstâncias são mui prósperas, o futuro mui risonho, e a
11
Província do Pará (...) exige sacrifícios, constância e Brasileirismo .

O tom otimista, nutrido do sangue derramado de cabanos pelo Império


Brasileiro, faz retomar novamente a necessidade de pensar a administração dessa porção
do território agora chamado de nacional, a partir de sacrifícios e fundamentalmente de
brasileirismo.

9
É importante notar que mesmo antes do reinado de Dom José em Portugal, a partir de 1750, e a
nomeação de Marquês de Pombal para Secretário de Negócios Estrangeiros e de Guerra, a coroa
portuguesa já expressava preocupações com a definição de suas fronteiras, expressas em tratados
assinados, como o Tratado de Utrecht (1715), firmado entre França e Portugal, no qual ficou reconhecido
a soberania de Portugal da margem esquerda do Rio Amazonas e a da França das terras próximas ao Rio
Oiapoque, hoje Guiana Francesa, e o Tratado de Madri (1750), em que a Espanha reconheceu o domínio
de Portugal sobre as terras ocupadas pelos luso-brasileiros. Entretanto, é Pombal, com sua política de
demarcação de fronteiras, que vai tornar central a segurança e definição de fronteiras, com especial
destaque à Amazônia, vista, como largamente discutimos aqui, como risco à soberania portuguesa.
10
Durante o Império brasileiro, mais especificamente na Constituição de 1824, aos herdeiros do império,
apenas três títulos de nobreza foram criados, o de príncipe, príncipe imperial e príncipe do Grão-Pará. A
distância e a vulnerabilidade da, então, maior província, motivou a criação do título nobiliário para
simbolizar a integridade do império Brasileiro. A única província a ser citada na constituição, por meio do
título aos herdeiros do trono, é a província do Grão-Pará.
11 Discurso recitado por João Antonio de Miranda, presidente da província do Pará na abertura da
Assembléia Legislativa Provincial, no dia 15 de agosto de 1840.

58
Alguns anos mais tarde o já presidente da província do Amazonas, antiga
comarca do Rio Negro, João Dias Vieira, reclamava dos abusos que cometem os
missionários religiosos em relação às populações indígenas, o que os distancia da
autoridade do Estado. Diz ele:
São além disto por mais exíguas as somas voltadas anualmente para
esta verba, de modo que não é possível emprehender-se com
probabilidade de sucesso qualquer ensaio de organização de aldêas
nos pontos mais salientes, como os das fronteiras com os paizes
limitrophes estrangeiros, para cujas brenhas se estranhão tribus nossas
ao menor desgosto, proveniente quasi sempre dos abuzos, que
comettem, em nome do Governo e sob o pretexto de serviço publico –
os diversos Encarregados d‘ellas, tornando assim entre os Indios
odioza a ideia de autoridade, que alias se lhes deve infundir como é –
benéfica e protectora12.

As nações indígenas, logicamente com outros referenciais para definição de


seus territórios (o que é solenemente negligenciado), são vistas como vulneráveis aos
abusos dos encarregados por elas, geralmente missionários, de modo que isso, em
situações de fronteiras nacionais, representa um risco à soberania.
No século XIX, é bom que se diga, após a expulsão dos jesuítas ainda no
século XVIII e a criação, pela administração pombalina, do Diretório dos Índios em
1758 e sua extinção em 1798, é só em 1845, com o Regulamento das Missões, que o
Império institui, inspirado no Diretório, uma política indigenista ligada ao Estado, na
qual se propõe uma administração leiga dos indígenas com diretores do Estado
juntamente com missionários sendo nomeados às aldeias (CUNHA, 2012). A função da
igreja, particularmente na Amazônia é um tanto ambígua nesse contexto, uma vez que
embora no regulamento apareça que os missionários devam ser apenas assistentes
religiosos e educacionais do administrador, o que ocorre é que ―talvez pela carência de
diretores de índios (...) é freqüentíssima a situação de missionários que exercem
cumulativamente os cargos de diretores de índios‖ (CUNHA, 2012, p. 69).
É particularmente referenciando o perigo que significa os diretores dos índios -
que são missionários, em sua maioria - em não fortalecer a autoridade do Estado, que o
presidente da província do Amazonas, em 1864, Manoel Clementino Carneiro, exclama:
O trabalho da catechese é dedicado, exige despezas, sacrifícios e
muito esforço. Por simples honras militares ninguém deixará seus
commodos e interesses, e os de sua família para internar-se por sertões
desertos, residir entre os gentios e cuidar da diffícil e enfadonha
questão de sua civilização. Esperar tanto é supor o inexeqüível e

12
Exposição feita pelo Presidente da Província do Amazonas João Dias Vieira à Manuel Gomes Corrêa
de Miranda por ocasião da passagem da administração provincial em 26 de fevereiro de 1857, p. 20.

59
desconhecer as condições da vida prática. A experiência de todos os
dias confirma este pensamento. Os directores parciaes não
correspondem ás vistas da lei, e são poucos os que não convertem em
utilidade própria o cargo estabelecido para beneficio publico13.

A imagem do indígena como selvagem, encarnada na palavra gentio,


permanece com a força destrutiva e violenta de se justificar uma missão ―civilizatória‖.
Entretanto, a representação da região como um sertão deserto e a enfadonha tarefa de se
relacionar com os índios, são colocados como elementos explicativos da mudança do
sentido de autoridade estabelecida pelos diretores de índios. Se as ordens religiosas
representavam um Estado dentro do Estado ainda no século XVIII, cem anos depois, os
diretores de índios significarão o mesmo problema.
A república foi proclamada em 1889, entretanto, sua parte setentrional continua
representando risco. Se os presidentes da província do Pará, reivindicavam
brasileirismo, os agora governadores do Estado, também se apóiam nessa formação
discursiva, como expressa o discurso de José Paes de Carvalho ao Congresso do Estado
do Pará em 7 de abril de 1898:

O erro capital dos jesuitas foi querer sequestrar os indigenas nos seus
respectivos aldeiamentos e prival-os assim do contacto com os
agricultores; era fatal que semelhante organização, que obedecia quase
exclusivamente a sentimentos religiosos, ser indiferente á existencia
de um Estado no Estado. Não cometteremos as mesmas faltas14.

O discurso de Paes de Carvalho em muito se assemelha a preocupação de


Marquês de Pombal e Mendonça Furtado, pelo menos 145 anos atrás dele. O erro dos
jesuítas é a marcação de um problema histórico, de uma região indiferente à existência
de um Estado. A soberania do Rei, do Imperador, do Presidente da Província ou mesmo
do Governador do Estado, sempre foi uma questão. A necessidade de se fazer ver o
Estado do Pará no Estado Brasileiro e toda lógica nascente de uma República federativa,
vira o sentido maior da política para uma região cujo risco à soberania amarra os olhares
por onde ela é vista.
Um pouco tempo depois desse discurso de Paes de Carvalho, um ato simbólico
registrava a definitiva necessidade de se demonstrar que este recanto do nascente país
era uma região conquistada por definitivo. O governador do Pará, Augusto Montenegro,

13
Relatório de Manoel Clementino Carneiro da Cunha, presidente da província do Amazonas à
Assembléia Legislativa Provincial em 1864, p. 16.
14
Mensagem de José Paes de Carvalho ao Congresso do Estado do Pará ao Congresso do Estado do Pará
em 7 de abril de 1898, p. 28.

60
em mensagem ao Congresso Legislativo do Estado do Pará, em 7 de setembro de 1905,
falando da decoração do palácio de governo, informa aos presentes que:
Para a parede do fundo deste salão encomendei ao consagrado pintor
brasileiro Antonio Parreiras, uma grande tela de 8 metros sobre 4,
denominada a Conquista do Amazonas. Este quadro representará o
acto de Pedro Teixeira tomando conta das terras da Amazonia para a
corôa de Portugal15.

Não era apenas um quadro senão uma representação das obrigações do


governo. A conquista só é uma questão em uma região em que a soberania é uma
questão. Portanto, a decoração com o quadro de Antônio Parreiras é a síntese dessa
formação discursiva, desse arquivo em que a Amazônia é um problema à política
nacional.
Questões de soberania nacional na Amazônia rondaram boa parte dos primeiros
anos do século XX. Apenas em 1903 que o que hoje conhecemos como Acre foi
definitivamente incorporado ao Brasil e em 1904, o presidente Rodrigues Alves editava
o decreto-lei nº 5.188, que construía uma figura jurídica nova, transformando o Acre em
Território Federal, cujos governadores e prefeitos seriam nomeados e subordinados à
presidência. O risco à soberania nacional foi respondido, então, com a criação de uma
entidade jurídica que vincula toda segurança e administração local ao poder central do
Estado Brasileiro.
Não muito distante em termos de linearidade histórica, mas extremamente
próximo em termos de formação discursiva, um conjunto de outros discursos,
basicamente circunscritos historicamente na nova república do Brasil na década de
1930, novamente envolvem a Amazônia por sua distância e relativa ausência de
soberania ao poder central do Brasil.
No famoso Discurso do Amazonas, proferido em 1940 no Teatro Amazonas
em Manaus, Getúlio Vargas pronuncia que ―(...) é natural que uma imagem tão forte e
dramática da natureza brasileira seduza o povo e as imaginações moças prolongando-se
em duradouras ressonâncias pela existência em fora‖ (VARGAS, 1940 apud SUDAM,
1968, p. 9).
A Amazônia no discurso é vista como a natureza brasileira, ou seja, como uma
exterioridade à humanidade brasileira, ou ainda, como uma região situada enquanto
natural em uma linha civilizatória imaginária em que a natureza representa a

15
Mensagem de Algusto Montenegro ao Congresso Legislativo do Estado do Pará em 7 de setembro de
1905, p. 64.

61
imaturidade e inferioridade e a sociedade representa o progresso histórico. Entretanto,
todas essas concepções que compõe o espaço correlato de uma formação discursiva,
associam-se a um problema de fundo, a saber, a possibilidade de visualização desta
porção do território como um fora, isto é, a potência que sua dramática imagem natural
possui de ressoar uma existência fora do Brasil.
Por isso, continua Vargas
Nada nos deterá nessa arrancada que é, no século XX, a mais alta
tarefa do homem civilizado: conquistar e dominar os vales das grandes
torrentes equatoriais, transformando sua força cega e a sua fertilidade
extraordinária em energia disciplinada (VARGAS, 1940 apud
SUDAM, 1968, p. 10 e 11).16

Uma resposta clara a existência fora do que se representa como nação é a


conquista e dominação. Todo o ideal civilizatório atrelado a uma ficção nacionalista
que representa a Amazônia como uma força cega de fertilidade extraordinária, na
verdade se traduz na necessidade premente, que, inclusive, nada pode deter, de
conquistar e dominar para a nação essa porção das grandes torrentes equatoriais da
porção setentrional do que vai se chamar de Brasil.
A tarefa civilizatória para forjar uma nação e o que significa isso em uma
região representada pela sua riqueza potencial revela-se nos trechos finais do mesmo
discurso:
Ao homem moderno está interdita a contemplação, o esforço sem
finalidade. E a nós, povo jovem, impõe-se a enorme responsabilidade
de civilizar e povoar milhões de quilômetros quadrados. Aqui, na
extremidade setentrional do território pátrio, sentindo essa riqueza
potencial imensa que atrai cobiças e desperta apetites de absolvição,
cresce a impressão dessa responsabilidade, a que não é possível fugir,
nem iludir. Sois brasileiros e aos brasileiros cumpre ter consciência de
seus deveres, nessa hora que vai definir os nossos destinos de Nação
(VARGAS, 1940 apud SUDAM, 1968, p. 11).

O moderno da energia disciplinada, que civiliza e povoa não existiria se não


fosse pela invenção deste fora absoluto dos ideias de nacionalidade. O jogo de
polarizações e dicotomias é a ferramenta encontrada para controlar os perigos de
absolvição e a cobiça dos estranhos. A nação vira o remendo entre a garantia de
soberania e os sentidos de autoridade de uma comunidade imaginada por uma imagem,

16
SUDAM. Operação Amazônia: Discursos. Belém: SUDAM, Serviço de Documentação e Divulgação,
1968.

62
na qual não cabem os mundos, visões, figuras, línguas, espaços, territórios, existências
dessa chamada torrente equatorial.
Uma marca expressiva desse regime de verdade foi, em 1943, a instituição, por
Vargas, por meio do decreto nº 5.812, dos territórios federais do Amapá, Rio Branco
(que passou em 1962 a se chamar Território Federal do Roraima), do Guaporé (que em
1956 passa a ser chamado Rondônia), além de Ponta Porã e Iguassú. Dos cinco
Territórios Federais criados, três estão na Amazônia que concretamente, principalmente
suas fronteiras, representavam um risco à soberania. Vale lembrar que também por esse
decreto criou-se a guarda territorial que visava manter a ordem interna.
As palavras de ordem da criação da Superintendência de Valorização
Econômica na Amazônia (SPVEA) em 1953 eram a ocupação e a valorização. Duas
imagens se juntam para consolidar uma ideia, uma região desocupada e sem nenhum
valor. A imagem de um fora irredutível da região, leva a uma urgência na política.
Com objetivos de assegurar à ocupação da Amazônia um sentido
brasileiro, construir na Amazônia uma sociedade economicamente
estável e progressiva capaz de, com seus próprios recursos, prover a
execução de suas tarefas sociais e desenvolver a Amazônia num
sentido paralelo e completar ao da economia brasileira...
(SPVEA,1954).

É necessário assegurar à ocupação da Amazônia um sentido brasileiro, não se


trata, portanto, apenas de ocupar, mas de desenvolver os sentidos do Brasil nesta região.
Desta urgência sugerida na política, o primeiro plano regional de desenvolvimento
erigido pela SPVEA chamou-se plano de emergência.
Ao problema da Amazônia fora do Brasil, associam-se discursos correlatos
que, definidos a partir de um lócus de enunciação distante da região, embora assumidos
por muitas políticas definidas a partir da região, demarcam o vazio como elemento
definidor desta parte setentrional da América portuguesa, ou como afirma DUTRA
(2003, p.73),
A negação da existência de seres humanos supõe a afirmação da
existência de um vazio humano que está aí para ser preenchido; um
vazio de resto instituído antes mesmo da descoberta, pelos acordos
entre o papado e as coroas espanhola e portuguesa, tornando
propriedade dos conquistadores tudo que vissem e tocar pudessem.
(DUTRA, 2003, p. 73).

Esse esvaziamento de sentido das existências amazônicas ganhou notoriedade


científica por um conjunto de concepções de Amazônia como vazio demográfico. A

63
imagem de região despovoada pode ser bem expressada pela afirmação de Eidorfe
Moreira
O que mais nos fere a atenção e sobremodo confrange quando
observamos a paisagem amazônica de baixo de um ponto de vista ou
consideração humana, é a reduzida significação que o homem assume
nela (...). Realmente a mais extensa das regiões do país é também a
mais carenciada sob o ponto de vista demográfico (MOREIRA, 1958,
p 67).

O historiador Artur César Ferreira Reis que foi governador do Amazonas após
o golpe civil-militar de 1964 e, assim como Eidorfe Moreira, trabalhou na SPVEA na
década de 1950, também chega a afirmar que
A Amazônia é um estranho mundo de floresta contínua e de rede
hidrográfica sem símile. Sua economia é ainda, fundamentalmente, a
que resulta do extrativismo. Sua posição no quadro demográfico vale
como uma das áreas desérticas da terra sobre que o homem pretende
exercer sua ação criadora (REIS, 1983, p. 67).

Nesses termos, a ciência legitima uma imagem regional a qual se efetiva e


desenha contornos reais em políticas que, também, por seu turno, serão celebradas por
intelectuais, como o faz outro geógrafo bastante influente, Lúcio de Castro Soares
(1963, p. 187):
Obra política, pela qual a nação procura desenvolver economicamente
os espaços inaproveitados do território brasileiro, a valorização
econômica da Amazônia é um empreendimento de vulto, cujos
objetivos maiores podem ser definidos como um esforço nacional
para: a) assegurar a ocupação da Amazônia em sentido brasileiro; b)
construir na Amazônia uma sociedade economicamente estável (...); c)
desenvolver a Amazônia num sentido paralelo e complementar ao da
economia brasileira.

Tal formação discursiva não se restringe aos intelectuais que ajudaram a


construir, em dado contexto, os sentidos do planejamento regional para a Amazônia. Ela
se espraia e se irradia para vários campos do conhecimento. Uma expressão um tanto
óbvia dessa maneira de ver está em alguns intelectuais da escola superior de Guerra do
Brasil. Gilberto Paim, que foi professor dessa escola, em seu livro ―Amazônia
ameaçada: da Amazônia de Pombal à soberania ameaçada‖, publicado pelas edições do
Senado Federal em 2009 também afirma que ―É legítima a posse brasileira de toda essa
terra. No inconsciente brasileiro está arraigada a crença de que é merecida a posse da
região infinita inexplorada, um imenso vazio demográfico‖ (PAIM, 2009, p. 28).
Não sem razão Almeida (2008), analisando o que definiu como antropologia
dos archivos da Amazônia, lendo o conjunto de pré-noções que constroem uma imagem

64
da região, chega a definir esses arquivos por seu biologismo e por seus dualismos, mas
também por seu geografismo. Dicotomias como natureza-cultura, racional-irracional,
cheios-vazios alimentaram noções como ―vazio demográfico‖, ―povoamento‖,
―desenvolvimento‖ e, assim,
Este conjunto de oposições marca, por assim dizer, todo um conjunto de
planos e programas oficiais para a Amazônia e em particular sobre a
―natureza‖ na Amazônia (...). Deste prisma é que tudo se explicaria [por]
uma noção de ―sujeitos biologizados‖ eufemizada pela classificação de
―tipos antropogeográficos‖ (ALMEIDA, 2008, p. 32).

Esses geografismos e biologismos marcam modos de olhar que se transformam


em modos de conduzir a política, por isso, ao vazio não se responderá apenas povoando,
por uma visão que desumaniza as populações amazônicas ao desconsiderar suas
existências, mas também se responderá pela ideia de integração, de uma região vista
como distante das referencias a partir das quais se inventam a nação, e de
desenvolvimento, pois o vazio também é civilizatório, numa leitura que inventa
colonialmente uma linha divisória entre as regiões. Boaventura de Souza Santos (2008)
demonstrou bem que a colonialidade das ―descobertas‖ imperiais, inclui a representação
da natureza como o lugar da exterioridade e do selvagem, como o lugar da inferioridade.
A Amazônia, entre esses dois sentidos, torna-se definitivamente um risco, não apenas
por representar a exterioridade irracional da natureza, mas também a inferioridade
abissal de suas populações. A Amazônia como risco, quando entra na política, entra
para estar fora, pois faz ver algo absolutamente distinto das relações que se estabelecem
como coroa, império ou república.

1.3. NORMALIZAÇÕES DO RISCO AMAZÔNICO: A POLÍTICA COMO GUERRA E A

EXCEÇÃO COMO REGRA

Os governos militares no Brasil consolidam este esboço de integrar, ocupar e


desenvolver o território da Amazônia17 - claro desde as primeiras décadas do século XX
e consolidado pela constituição de 1946 e pela SPVEA – incorporando a ele a doutrina
de segurança nacional. Como síntese desse esboço a chamada ―Operação Amazônica‖,

17
Os ideais de integrar, ocupar e desenvolver a região amazônica, materializaram-se em ações concretas
que, desde a criação da SPVEA em 1953, da abertura da Br-010 (Belém- Brasília), em 1958 e da Br-364
(Cuiabá-Porto Velho) em 1960, materializam-se em um conjunto integrado de ações e implementações de
um novo sistema técnico no território amazônico, o que se alarga com os governos militares pela criação
da SUDAM em 1966 e SUFRAMA em 1967 e através do Plano de Integração Nacional de 1970 e dos
três Planos de Desenvolvimento da Amazônia (o primeiro entre 1972-1974, o segundo 1975-1979 e o
terceiro entre 1980-1985), não esquecendo do Programa que talvez sintetize o conjunto das pretensões e
estratégias dos governos militares para a Amazônia, que foi o Programa Grande Carajás (PGC).

65
um conjunto de leis federais, decretos, isenções fiscais, grandes obras de infraestrutura,
consolida de vez a Amazônia como questão Nacional de um Estado, que em nome da
segurança, torna práticas de exceção a regra da política.
O discurso do primeiro superintendente da SUDAM, General Mário Barros
Cavalcanti, recuperando a formação discursiva da Amazônia como risco à soberania e
região inóspita e vazia, transforma esse modo de ver em justificativa de um modo
específico de exercício do poder que exige sacrifícios.
A história das grandes nações tem suas passagens mais belas no
capítulo dos sacrifícios (...). Os povos que nada sofreram não possuem
histórias para contar. Nessa ordem de raciocínio situamos a Amazônia
no processo de construção e transformação do Brasil. Os séculos de
luta da gente lusitana para conquistar terra inóspita; a dedicação
missionária para conquistar o selvagem arredio e, mais tarde, o
esforço brasileiro de conservá-la conosco, eis algumas passagens de
bravura e sacrifício que fizeram da Amazônia nosso capítulo de
sofrimento (...). De um lado, na parte sul, aquele pais desenvolvido
cujos padrões de progresso nos colocam em pé de igualdade com os
centros mais avançados do mundo. De outro, todavia, no extremo
norte o que vemos é a chaga terrível do subdesenvolvimento (...). Por
isso, concebeu e lançou as bases da Operação Amazônia, para se
situar à frente dos mais graves problemas do nosso tempo que
consiste, exatamente, na conquista e conseqüentemente
aproveitamento dos grandes espaços vazios, utilizando-os em
benefício do homem. Somente assim, povoando, desenvolvendo e
conquistando de modo efetivo a Amazônia, estaremos fazendo uma
guerra pela paz, desarmando os espíritos e convidando todos os
homens para um trabalho conjunto (CAVALCANTI, 1966 apud
SUDAM, 1968, p. 73-74).

Dicotomias como desenvolvimento e subdesenvolvimento, cheio e vazio, sul e


norte, terra próspera e terra inóspita são manejadas para construir uma fila histórica em
que a Amazônia é o extremo oposto do que se quer como nação, para, assim, justificar
um modo específico de fazer política como guerra.
Nessa construção, três são os conquistadores: os missionários, os lusitanos e o
Estado Brasileiro, o que expressa que é a chegada de gente de fora que define a
existência de um espaço, uma vez que aos povos de dentro só lhes é reservada a
caricatura do selvagem arredio de espíritos armados. Nesses termos, a representação
feita a partir de um lugar ao sul pretensamente mais próximo das referências identitárias
à nação, transforma a região amazônica em um espaço de sacrifícios, tão terrível que
precisa ser ocupado a qualquer custo, o que discursivamente transforma a violenta
chegada do estranho numa bravura histórica de um projeto nacional. Essa imagem exige
ações enérgicas, de ocupar, conquistar, desenvolver, ações vistas como uma guerra pela

66
paz para desarmar os espíritos. A guerra não é só uma metáfora, é a expressão clara de
um lugar indistinto, onde tudo pode ocorrer para se chegar ao sentido de
desenvolvimento inventado. A política como guerra é a determinação de que se pode
suspender as leis em nome da lei, é o passaporte para uma esfera de indeterminação
política.
É a política como guerra que fará emergir a ideia de segurança nacional, que se
institui na era Vargas, através da lei nº 38 de abril de 1935, que define os crimes contra
a ordem política e social, mas ganha espaço após o golpe civil-militar de 1964,
principalmente através das construções teóricas de geopolíticos brasileiros, no interior
da Escola Superior de Guerra, como o General Golbery do Couto e Silva (1955, p. 22),
que chega afirmar que
(...) no amplo quadro da Política Nacional, o Desenvolvimento e a
Segurança intimamente se entrosam, reciprocamente se condicionam e
acentuadamente se interdependem, chegando mesmo, por vezes, a se
confundir numa faixa de recobrimento.

A geopolítica de Golbery (1967, p. 47) que também tinha a intenção de


―inundar de civilização a Hiléia amazônica‖, se expressa claramente nas palavras de
Castelo Branco, durante sua aula inaugural do ano letivo de 1967 na Escola Superior de
Guerra. Diz o primeiro presidente após o golpe:
O conceito tradicional de defesa nacional coloca mais ênfase sobre os
aspectos militares da segurança e, correlatamente, sobre os problemas
de agressão externa. A noção de segurança é mais abrangente.
Compreende, por assim dizer, a defesa global das instituições,
incorporando, por isso, os aspectos psicossociais, a preservação do
desenvolvimento e da estabilidade política interna; além disso, o
conceito de segurança, muito mais explicitamente que o de defesa,
toma em linha de conta a agressão interna, corporificada na infiltração
e subversão ideológica (...)18.

Esses elementos teóricos irão se materializar no Decreto-Lei n.° 314/67, no Ato


Institucional n°5, de dezembro de 1968, bem como na emenda constitucional de 1969 e
no decreto-Lei n°510/69, todos regulamentam o primeiro decreto de 1967 e,
fundamentalmente, constroem as diretrizes do que significará Segurança Nacional.
Todos os horrores da repressão ganham fôlego e legitimidade jurídica.
Há, então, uma união estável entre segurança e desenvolvimento, também
poderíamos dizer ―ordem e progresso‖, que norteará as principais políticas para a
Amazônia. A segurança, entendida preliminarmente como defesa, em muito se refere à

18
Escola Superior de Guerra. Manual Básico. Rio de Janeiro: ESG, 1983, p. 204.

67
política externa e defesa de fronteiras físicas, mas agregar a esta ideia à noção de
agressão interna, de perigo interno, amplia os sentidos de segurança, atrelando-a a uma
particular ideia de desenvolvimento. A formação discursiva que tornou a Amazônia um
risco à soberania, ganha forma político-jurídica em uma noção de segurança que
também responde aos riscos internos à soberania.
Um conjunto de políticas ligadas ao Conselho de Segurança Nacional (CSN),
nesse contexto, promoveu um processo de militarização do espaço regional amazônico
na trilha de um desenvolvimento com ―segurança‖. São dignos de nota: a federalização
das áreas às margens das rodovias; a criação, em 1980, do Grupo Executivo de Terras
do Baixo Amazonas (GEBAM) e do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins
(GETAT), federalizando a questão da propriedade da terra e militarizando os conflitos,
destituindo o poder do INCRA na resolução dos conflitos (ALMEIDA, 1981); além de
toda a estrutura militar criada para o combate à Guerrilha do Araguaia em meados da
década de 1970, que perdurou no controle do garimpo de Serra Pelada pela década de
1980; a criação do Projeto Calha Norte (PCN) em 1985 e do Sistema de Vigilância da
Amazônia (SIVAM), hoje Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), que revelam a
preocupação militar do controle das ameaças internas e das fronteiras internacionais.
A própria criação da SUDAM em substituição à SPVEA já sinalizava a
centralização das decisões em torno do que seria feito na Amazônia. Nestes termos,
A transformação da SPVEA em SUDAM, em 1967, teve assim como
pressuposto, a urgência de colocar em prática um modelo racional,
burocrático, que fosse capaz de assegurar uma outra composição de
forças. Fica bem visível na própria estrutura da SUDAM,
particularmente em seu Conselho Deliberativo, o esvaziamento das
representações de Estados, territórios e municípios da região. Em
contrapartida, estes estão sendo substituídos por representantes de
órgãos do poder central vinculados aos Ministérios. Deliberação que
foi decisiva na estratégia de afastamento das esferas de poder que
poderiam reivindicar espaços no processo de tomada de decisão
(CASTRO; ACEVEDO MARÍN, 1986/1987, p. 9)

Pelo espectro da política de segurança, a urgência política torna-se justificativa


básica para afirmar a necessidade de suspender as regras em nome de um pretenso
objetivo maior e, assim, a centralização das decisões vai tornando a obediência aos
poderes instituídos e às leis vigentes uma opção passível de não ser cumprida em nome
da segurança.
Mas para conduzir essas políticas de exceção ou a política como guerra, fazia-
se necessário a construção de tecnologias políticas capazes de enfrentar o desafio

68
amazônico erguido discursivamente pelo risco e o vazio. Era necessário construir obras
que significassem uma ideia de um Brasil Grande, Grandes Projetos que
impressionassem e servissem de símbolo ou como afirma o último presidente brasileiro
no contexto ditatorial, João Figueiredo, em um discurso proferido em Belém em 27 de
outubro de 1982:
Grandes projetos, de magnitude que impressiona a brasileiros e
estrangeiros, mas reflete apenas a escala amazônica, desenvolvem-se
no Pará: Carajás, Tucuruí, Trombetas, são hoje nomes conhecidos no
Mundo inteiro. O seu impacto sobre a economia paraense será
imensamente favorável19.

À escala Amazônica, apenas Grandes Projetos podem trazer desenvolvimento.


Mas não são quaisquer projetos, pois possuem magnitude e expressão para impressionar
a brasileiros e estrangeiros, tornam-se mais que projetos, tornam-se nomes conhecidos,
cujo impacto é sempre favorável.
Nestes marcos políticos, se os geógrafos e demógrafos terão um papel decisivo
na definição de uma imagem de Amazônia como um vazio marcado por seus atributos
naturais, os economistas e engenheiros é que darão sustentação científica e técnica para
a condução de políticas de desenvolvimento por Grandes Projetos.
É a economia regional, em seu sentido normativo, que irá consolidar um saber
técnico para embasar o que irá se chamar de planejamento regional. A teoria dos pólos
de crescimento de François Perroux delineará esses caminhos ao pensar a
industrialização como o fator responsável para as variações da estrutura econômica
nacional, tomando uma indústria motriz, como processo indutor de crescimento
(PERROUX, 1967), ou, em termos mais esquemáticos:
Um dos esquemas característicos da operação é o seguinte: um centro
de extração de matéria-prima está combinado com um centro de
produção de energia e, por vias de comunicação, com centros
intermediários ou de transformação. (...) O pólo complexo exige novas
criações, abala regiões e altera a estrutura do meio que anima.
(PERROUX, 1975, p. 100-101)

A ideia de desenvolvimento via industrialização, expressa a partir do II PDA,


através, por exemplo, da formulação do POLAMAZÔNIA que demarcará a criação de
15 pólos de desenvolvimento regional, pode ser considerada um protótipo das ideias de
Perroux, protótipo este que irá lançar para a Amazônia uma série de projetos que
mudarão violentamente a geografia e a história da região. A indústria escolhida, pelos
19
FIGUEIREDO, J. Presidente do Brasil, Discursos. V.4. Tomo II. Brasília: Presidência da República,
1982, p. 584.

69
recursos minerais existentes, foi a extrativa mineral. A energia, também pela imagem
dos recursos hídricos infinitos, será produzida por meio das usinas hidrelétricas. E as
atividades de transformação industrial serão aquelas de maior consumo de energia,
como a produção do alumínio, que demanda imensa quantidade de energia elétrica, ou a
siderurgia, que demanda imensa quantidade de carvão vegetal e/ou mineral. Assim,
desenharam-se pólos que tentaram interligar processos de extração mineral, produção
energética e processos de transformação, através, por exemplo, da interligação entre a
extração de bauxita no vale do Trombetas em Oriximiná, a produção de energia elétrica
por meio da Hidrelétrica de Tucuruí e a produção de alumina e alumínio pelas empresas
ALBRAS e ALUNORTE em Barcarena.
Mas se a economia regional sugeriu o desenvolvimento via criação de pólos, a
engenharia precisou tornar viável tal processo, e aqui entra em cena Eliezer Batista, que
não foi chamado pelo presidente militar João Figueiredo, em 1979, de volta à
Presidência da CVRD, cargo que já havia ocupado no início dos anos 1960, por motivo
qualquer. Ele representava a figura que poderia tornar possível uma logística viável para
o desafio colocado pelos pólos de desenvolvimento. Sua atuação no Projeto Ferro
Carajás, articulando com os japoneses para possibilitar a criação de demanda e a
aquisição de recursos ao projeto, bem como o desenho de uma ferrovia, de Carajás no
Pará a São Luis no Maranhão, a sangrar a Amazônia, articulada a um porto que escoasse
o minério de forma racional, transformaram um pólo de desenvolvimento em um eixo
regional de exportações20.
Se os pólos tentam disciplinar os espaços a partir de uma matriz industrial,
pensando a articulação de distintas áreas produtivas como caminho de desenvolvimento,
os eixos criam caminhos para responder aos problemas de distribuição/circulação e,
assim, alargam seus espaços de interferência, viabilizando fluxos de matéria e energia
ao passo que afetam territórios e territorialidades, distintas de sua racionalidade, por
onde passam.

20
Sobre essas estratégias de ―modernização‖ regional, Coelho et alli (2005, p. 74) afirmam existir ―dois
grupos de estratégias de modernização regional marcaram e marcam a história recente da Amazônia.
Enquanto um deles consistiu nas tentativas de estabelecimento de pólos de crescimento econômico e de
complexos industriais motrizes, o outro diz respeito aos esforços para estimular eixos estruturadores de
desenvolvimento regional. Ambos se baseiam em postulados teóricos distintos. No primeiro grupo de
estratégias, julga-se ser necessária a participação estatal para contraarrestar dinâmicas produzidas pelo
mercado, considerando-se que a modernização de certas regiões não ocorreria sem a ação do Estado. Já o
segundo grupo integra estratégias de desenvolvimento regional baseadas no suposto da eficácia das
dinâmicas de mercado‖

70
A ideia do Brasil Grande21, que na Amazônia se expressa na lógica de criação
de Grandes Projetos, consolida a tecnologia política dos eixos de exportação, que
passará a ser a feição ―moderna‖ de nossas plantations, uma vez que a lógica de
acumulação rentista pelo o alargamento da apropriação de terras, de recursos naturais e
de toda sorte de bens públicos e coletivos, encontrará um novo modo de drenar matéria
e energia, que continuará como consenso de Estado no Brasil, atravessando distintas
forças políticas, de direita e de esquerda.
Políticas como o ―Brasil em Ação‖ e ―Avança Brasil" dos governos de
Fernando Henrique Cardoso (FHC), nos anos 1990, visando o acesso competitivo aos
mercados internacionais das commodities brasileiras, consolidaram o esboço de Eliezer
Batista. Em discurso de balanço de seus anos na presidência, FHC em 2002, afirma:
Daí a definição do Avança Brasil primeiro, o Brasil em Ação, depois
(...).Ao invés de pensarmos na concentração numa certa área ou numa
certa atividade para daí, em círculos progressivos, haver o crescimento
de todos, achamos que seria melhor organizar as nossas idéias em
função de certos eixos de desenvolvimento. Aí estão os eixos
fundamentais de desenvolvimento nacionais, de integração e
desenvolvimento22.

A necessidade de maior fluidez do capital transforma a lógica de integração e


desenvolvimento, historicamente presentes como respostas ao risco e vazio amazônicos,
no estabelecimento de eixos de desenvolvimento, o que transforma toda a complexidade
e diversidade regional no caminho do gado, do ferro, da soja, do milho, das águas...
Luiz Inácio Lula da Silva - também colocando a roda do capitalismo à
brasileira para girar pelo rentismo da expansão das commodities e pelos ganhos
estratosféricos do sistema bancário-financeiro23 - em discurso, durante a cerimônia de

21
Eliezer Batista em resposta a muitas críticas feitas ao projeto Carajás recupera a noção de Brasil Grande
para justificar Grandes projetos dizendo: ―Só posso atribuir a campanha contra Carajás ao fermento da
ignorância, que faz muitas vezes confundirmos o interesse individual como prioritário em detrimento do
bem maior. O projeto consolidou o Brasil como um player global no setor de mineração em uma época
em que ninguém falava de empresa ou economia globalizadas. Conquistamos o mercado internacional por
méritos próprios, batendo de frente com concorrentes e países muito mais desenvolvidos e em melhores
condições financeiras. Carajás foi à vitória de um Brasil grande sobre um Brasil que insiste em ser
minúsculo‖ (FARO; POUSA; FERNANDEZ, 2005, p. 135).
22
Discurso do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, na reunião ministerial – Programa
de Trabalho para 2002. 7 de Fevereiro de 2002. Acessado em: http://www.psdb.org.br/pe/discurso-do-
presidente-da-republica-fernando-henrique-cardoso-na-reuniao-ministerial-programa-de-trabalho-para-
2002/
23
O boom do preço das commodities no início do século XXI impulsionou distintos governos na América
Latina, dentre eles o Brasil, a conduzir a política econômica pela exportação de produtos agrícolas e
minerais como o caminho absoluto para a conquista do superávit primário.

71
inauguração do projeto de exploração de cobre ―Sossego‖, em Canaã dos Carajás, em
2004, define a importância da exportação de commodities para a economia brasileira:
Aqui em Carajás, debaixo deste solo, existem riquezas imensas que
têm contribuído muito para o desenvolvimento e o progresso social do
nosso querido Brasil. A produção daqui e, em breve, das outras minas
que integram o projeto, vai levar o Brasil à auto-suficiência em cobre
e ampliará, mais ainda, a nossa capacidade exportadora no setor
mineral (...). A alavanca exportadora, uma das mais destacadas
prioridades do nosso governo, tem alcançado objetivos extraordinários
(...). Os pólos exportadores que dependem de boas estradas, portos
profundos e muita energia, entre outros fatores, são fortes indutores de
desenvolvimento infra-estrutural24.

A alavanca exportadora se traduz em pólos exportadores que dependem de


grandes obras de infraestrutura para funcionar. Na Amazônia, o Programa de
Aceleração do Crescimento e os investimentos diretos do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), consolidaram políticas voltadas à
construção de grandes obras de infraestrutura na lógica de criação e reforço de eixos de
exportação.
Entretanto, se a exportação de commodities por meio dos eixos de exportação
atravessou as políticas nacionais pensadas para a Amazônia de distintos governos e
bandeiras partidárias no Brasil, será que a centralização das decisões características
dessas políticas, que, por sua vez, normaliza a suspensão das leis - criando uma esfera
de indeterminação, forjada pela definição da política como guerra encarnada no binômio
segurança-desenvolvimento - permanece inalterada como uma prática comum mesmo
em regimes democráticos?
Se nos governos militares as lógicas autoritárias de se realizar a política se
justificavam pela ideia de segurança nacional encarnada pela formação discursiva da
Amazônia como risco e vazio, agora a força da ideia de interesse nacional, alimentada
por uma imagem de nação herdeira da mesma formação discursiva anterior, irá conferir
tons de normalidade a práticas de exceção. Por isso, o planejamento de Grandes
Projetos para a Amazônia, é, historicamente, a abertura da excepcionalidade para a
política, pela delimitação de uma zona de indiferença para qual tudo se justifica,
tornando a diversidade social e territorial da região um detalhe diante da magnitude e
opulência dos projetos.

24
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de inauguração da mina
de cobre do Sossego Canaã dos Carajás-PA, 02 de julho de 2004. In: Presidência da República, Secretaria
de Imprensa e Divulgação, 2004.

72
Ainda na década de 1990, Lux Vidal (1991, p.68) afirmara, a partir de seu
trabalho com os povos indígenas nas influências do projeto Carajás que ―os processos
decisórios que têm levado à implementação de projetos como o PGC se fizeram à
revelia da sociedade brasileira. Os debates supostamente democráticos são sempre feitos
após os fatos consumados‖ (VIDAL, 1991, p. 68).
Mas há um caso exemplar que atravessa governos e racionalidades políticas e
marca a exceção como regra política para a Amazônia. Estamos falando da proposta de
criação do complexo Hidrelétrico de Altamira, ainda na década de 1980, que seria
chamado de Kararaô. Viveiros de Castro e Andrade (1988, p.7) definem bem a
condução desse primeiro processo:
Desde que, numa perversão característica do discurso dos
planejadores governamentais, os índios são um ‗problema ambiental‘,
para as grandes obras de engenharia, não é surpreendente constatar
que nenhum dos povos mencionados foi consultado a respeito de
decisões que afetam as bases de sua sobrevivência. Consultados, seria
talvez pedir demais, já que ninguém o foi; porém, desde 1975, estuda-
se e planeja-se o aproveitamento hidrelétrico do Xingu e, até hoje, às
vésperas do início das obras do complexo de Altamira, estes povos
não foram sequer avisados do que se lhes prepara.

A hidrelétrica de Kararaô foi barrada por movimentos indígenas e problemas


técnicos para a execução do projeto, tendo a imagem da Índia Tuíra, com um terçado no
rosto do então diretor de engenharia da Eletronorte José Antônio Muniz Lopes, como
um símbolo da resistência indígena. Entretanto, mesmo depois de anos do fim da
ditadura militar, a hidrelétrica ressurgia batizada de Belo Monte para ser mais uma
expressão da lógica de exceção a marcar os projetos na Amazônia. Depois que o diretor
de Licenciamento Ambiental do Ibama, Sebastião Pires, e o Coordenador Geral de
Infraestrutura Elétrica, Leozildo Benjamin, pediram demissão, após serem pressionados
pelo governo federal para liberarem a licença ambiental da hidrelétrica, após um Estudo
de Impacto Ambiental de mais de 35 mil páginas e de algumas suspensões da licença de
operação da obra, Belo Monte continuou a ser executada sem respeitar algumas
condicionantes exigidas.
O depoimento da procuradora da república Thais Santi à jornalista Eliane
Brum é bastante significativo para se entender uma operação de exceção:
Existem duas compreensões de Belo Monte. De um lado você tem
uma opção governamental, uma opção política do governo por
construir grandes empreendimentos, enormes, brutais, na Amazônia
(...) Mas é uma opção que se sustenta na legitimidade do governo (...).
Agora, uma vez adotada essa política, feita essa escolha

73
governamental, o respeito à Lei não é mais uma opção do governo. O
que aconteceu e está acontecendo em Belo Monte é que, feita a
escolha governamental, que já é questionável, o caminho para se
implementar essa opção é trilhado pelo governo como se também
fosse uma escolha, como se o governo pudesse optar entre respeitar ou
não as regras do licenciamento. Isso é brutal (SANTI apud BRUM,
2014, n/p).

Thais Santi, de maneira precisa e bastante contundente, faz uma diferenciação


fundamental entre uma escolha política e a observância das leis e demonstra que, em
Belo Monte, foi feita uma escolha política, mas que transformou o respeito às regras
também em uma vontade política. Tal operação tão característica na Amazônia, é, em
síntese, a marca do modos operandi dos ditos Grandes Projetos na região.
O fato é que foi mais confortável nesse ―Brasil‖ setentrional criar mecanismos
de governo diretamente ligados ao Estado Central, dispositivos de exceção que, em
nome da excepcionalidade que a região pretensamente exigiria, dá carta branca a
qualquer ação ou vontade política. Se a estrutura topológica do estado de exceção,
segundo Agamben (2004, p.57) é interiorizar o que está fora, ou ainda, é um ―estar fora
e, ao mesmo tempo, pertencer‖, essas zonas de indiferença criadas por esses
dispositivos de exceção criam um espaço vazio de direito, em que a própria distinção
entre público e privado está desativada, um conjunto de ficções, nas quais o direito
inclui, em si, sua própria ausência, enfim, criam um não lugar absoluto, onde se
estrutura o impensável na ordem jurídica, instituindo a política como guerra.

1.4. SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO E RIQUEZA: O ESTADO DE EXCEÇÃO NA


AMAZÔNIA
As cartas mandadas por Mendonça Furtado, Presidente da Província do Grão
Pará e Maranhão ao então ministro do império português Marquez de Pombal sobre os
riscos que representava a província à unidade do Estado Português, as quais foram
ratificadas em cartas e instruções régias de Pombal, que expressam o poder exercido
pelas ordens religiosas sobre as populações indígenas, como um risco sério à soberania
portuguesa ainda no século XVIII na Amazônia, delimitam a necessidade de uma nova
arte de governar a província para assegurar a soberania e fazer florescer o comércio. Tal
modo de compreender marca a emergência, de um lado, de uma razão do Estado
absolutamente distinta do pastorado das ordens religiosas, ao passo que constrói um a
priori histórico que conduzirá o modo de ver e dizer sobre essa parte setentrional da
América Portuguesa, que hoje chamamos de Amazônia.

74
A criação do diretório dos índios; a elevação dos aldeamentos indígenas, até
então sob o domínio das ordens religiosas, à condição de vilas e cidades administradas
pelo Estado; a construção de políticas de definição e proteção das fronteiras; o incentivo
à prática da agricultura e pecuária, a adoção da força de trabalho escrava, definirão uma
razão de Estado, bifurcada entre a necessidade de assegurar seus próprios domínios e os
povoar, fazendo funcionar a engrenagem econômica instalada. População, riqueza,
segurança e território serão as matrizes dessa razão, o que vai representar, emprestando
os termos de Foucault (2008), uma desgovernamentalização do cosmo para uma
governamentalização do Estado.
Esse quadrinômio população-riqueza-segurança-território que será enunciado,
de distintos modos, como a razão de Estado para a Amazônia por Pombal e Mendonça
Furtado e, também, pelos presidentes da província do Grão Pará e Maranhão durante o
império brasileiro, pelos governadores após a proclamação da república e por
presidentes e representantes políticos regionais na nova república, notadamente durante
o regime militar, mas também após a redemocratização, só será possível de ser assim
enunciado, pela compreensão de que essa região significava um risco à soberania,
notadamente porque sua fisionomia natural e sua diversidade étnica e lingüística
representavam uma exterioridade ao que vai se definir como a nação. Foucault (2008,
p.479), enfatizando a autoridade de verdade que o Estado pode produzir, diria que
O Estado como detentor da verdade (...): a própria Nação, em sua
totalidade, deve ser capaz, num momento dado, de deter exatamente,
em cada um dos seus pontos bem como em sua massa, a verdade sobre
o que ela é, o que ela quer e o que ela deve fazer.

A diversidade social, cultural, étnica e lingüística da Amazônia, portanto, não


estará representada na verdade do Estado, seja este português, ou brasileiro, pelo
contrário, sempre irá significar o seu fora, o que não cabe e, portanto, de alguma forma,
não existe.
Mas é esse estado de não existência que anima a existência do Estado, aí de
exceção. Não se pode ver uma coisa sem a outra: só se consolida uma Nação, por uma
figuração que inclui uns e exclui outros de seu imaginário, assim como só se consolida a
razão do Estado - povoar, integrar, desenvolver, seja por pólos ou por eixos - a partir de
uma verdade de Estado pressuposta.
Assim, emerge um arquivo que delimita discursos políticos de várias épocas,
textos científicos e até mesmo formas jurídicas e institucionais, que, representando a
região como um risco à soberania, a partir de discursos correlatos que a definem por um

75
vazio, por uma imaturidade ou como um estado de natureza, irão tornar possível que as
políticas nacionais pensadas para a região encarnem processos decisórios centralizados
de suspensão normativa, de criação de legislações especiais, ou seja, encarnem a
exceção como regra.
Esse modo de ver estrutura um diagrama de poder: ao risco do vazio e imaturo
espaço natural, ergue-se um desafio amazônico, que só pode ser respondido pela Razão
do Estado, através de pólos de desenvolvimento ou eixos de desenvolvimento, que
precisam significar, em grandeza, o tamanho do desafio amazônico. Nesses termos, em
nome da inclusão deste fora absoluto, a Amazônia, a ficção nacionalista se vestirá de
políticas de valorização (riqueza) da natureza insólita, de povoamento (população) do
vazio demográfico e racional, de defesa (território) da nação frente à imaturidade dos
gentios, e de garantia da soberania nacional (segurança) frente ao risco amazônico.
Assim, pelas marcas do colonialismo interno, o estado de exceção torna-se uma regra e
a política um ato de guerra.

76
Quadro 1 - Síntese das políticas nacionais pensadas para a Amazônia a partir da segunda metade do Século XX
Constituição de 1946 e Operação II PDA III PDA Brasil em Ação
Planos Plano de Metas I PDA PAC 1 e 2
SPVEA Amazônia POLAMAZÔNIA PGC Avança Brasil
1980-1985 1996-1999 2007-2010
Período 1946-1955 1956-1961 1966-1970 1969-1974 1974-1979
1980-1989 2000-2003 2011-2014
Política de Valorização Política de Política regional Plano Pólos de crescimento Pólos de Planejamento de Eixos Planejamento de
econômica da Amazônia Integração pensada pela ideia Regional de econômico Crescimento e de desenvolvimento grandes obras para
Política
Nacional de Segurança Desenvolvime industrialização viabilizar eixos de
Nacional nto pela Mineração desenvolvimento
Garantir 3% do Continuação da Criação da Definição de Incentivos fiscais a 15 Incentivos fiscais Definição de eixos, Definição de eixos de
orçamento público para a SPVEA, criação SUDAM e latifúndios por pólos, dentre eles a a pólos de como a hidrovia desenvolvimento
Amazônia e Valorização do Plano de definição de meio do produção da bauxita em desenvolvimento, Madeira-Amazonas e seguindo a produção
Econômica da Amazônia Desenvolvimento incentivos fiscais PROTERRA e Oriximiná, do Caulim no Albras/Alunorte Araguaia-Tocantins, agrícola e mineral,
através da criação de da Amazônia em para a Amazônia, abertura de Amapá, início da em Barcarena, além do asfaltamento além de criação vários
Sentido
Infraestrutura, 1955, construção criação da Zona rodovias como construção da UHE de Alumar em São de rodovias para a grandes projetos de
Geral
Transportes, de Estradas como Franca de Manaus transamazônic Tucuruí. Permanece a Luis, exploração fluidez dos grãos e da aproveitamento
telecomunicações e a Belém- Brasília e do Banco da a e Cuiabá- preocupação com a das minas de mineração. hidrelétrico.
produção de alimentos Amazônia Santarém soberania com o projeto Carajás e abertura Preocupação com a
Calha Norte da EFC. soberania por meio do
SIVAM
Amazônia como um vazio Amazônia como Amazônia como Amazônia Amazônia como um Amazônia como Amazônia como Amazônia como
a ser incluído na política um vazio a ser risco à soberania como fronteira vazio demográfico a ser fronteira mineral fronteira agrícola, fronteira agrícola,
nacional e valorizado. integrado ao Nacional e vazio a de expansão preenchido por pólos de a ser desenvolvida mineral a ser integrada mineral e de geração
Discurso
território ser ocupado agrícola a ser desenvolvimento e por grandes ao Brasil por grandes de hidroeletricidade a
nacional integrada e grandes projetos. projetos. projetos. ser desenvolvida por
assegurada Grandes Projetos
Fonte: Organização Bruno Malheiro, 2018.

77
CAPÍTULO 2

OS GRANDES PROJETOS DE MINERAÇÃO COMO


PARADIGMAS DO ESTADO DE EXCEÇÃO NA

AMAZÔNIA

A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção"


em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos
construir um conceito de história que corresponda a essa
verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é
originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa
posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se
beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam
em nome do progresso, considerado como uma norma histórica.
O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no
séculos XX "ainda" sejam possíveis, não é um assombro
filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o
conhecimento de que a concepção de história da qual emana
semelhante assombro é insustentável.

Walter Benjamin

78
A tese de história de Walter Benjamin (1993) que rabisca de imaginação a
página anterior não está lá por acaso. Por ela, sabemos que, para entender de que
maneira o estado de exceção que vivemos virou regra, precisamos construir um conceito
de história que consiga ver as ruínas do que foi concebido como grandes construções,
que consiga, portanto, ver práticas de exceção onde até então só se viu progresso e
desenvolvimento.
Para pensar o Estado de Exceção, assim como já havia feito Hannah Arendt
para compreender o totalitarismo, Agamben (2002, 2004) identifica os campos de
concentração como principais paradigmas biopolíticos. A lógica do campo, essa
disposição espacial permanentemente fora do ordenamento, torna-se uma expressão
territorial do estado de exceção, de modo que, mesmo guardando uma radicalidade
absoluta, inscrita no contexto do nazismo na Europa, pode ser compreendido como
paradigma, o que significa entender que os processos aos quais ele se refere e a partir
dos quais ele se realiza iluminam a compreensão de várias outras situações políticas na
contemporaneidade.
Achile Mbembe (2014, 2016) em outro lugar do planeta, a África, conduz a
análise do que chama de necropolítica - esse processo de naturalização da morte e da
degradação e desintegração social - centralizando a atenção nas experiências coloniais,
sendo que, por uma crítica da razão negra, entende que foi a junção denegada entre
humanismo e racismo que constituiu o subsolo do projeto moderno, de modo que, por
esse percurso, são as Plantations coloniais os primeiros paradigmas do estado de
exceção, antes mesmo dos campos de concentração.
Aceitando a ideia de que o estudo de certos processos, por sua importância,
representatividade e capacidade de iluminação da realidade, pode nos conduzir a chegar
a realidades mais amplas, como pensa Agamben (2006) sobre a ideia de paradigma, nós
acreditamos ser os grandes projetos minerais paradigmas fundamentais na compreensão
do Estado de Exceção na Amazônia, uma vez que estamos falando de processos
capitalistas que se realizam suspendendo vidas, estruturando uma maneira específica de
governo do território, interligando discursos, instituições e disposições espaciais fora do
ordenamento jurídico em que a suspensão da lei torna-se a própria lei.
A equação entre Grandes Projetos e Mineração envolve, de um lado, todas
essas lógicas de exceção construídas em nome da integração amazônica à nação
brasileira pelo binômio segurança-desenvolvimento ou ordem e progresso que se
materializa na ideia da política como guerra, mas também envolvem um setor da

79
economia, a mineração, que se realiza por sobre territórios aos quais também se
desenham lógicas especiais de regulação e controle, marcadas pela excepcionalidade e
justificadas por um pretenso interesse nacional.
Os grandes projetos de mineração tornam-se, portanto, paradigmas do estado
de exceção na Amazônia, pois são dispositivos moderno-coloniais que atualizam o
sentido das plantations ou realizam a lógica do campo, não apenas por desempenharem
a drenagem de matéria e energia por meio do saque neocolonial e reproduzirem a
dependência como mote de integração global, mas por tornarem possível o uso da
violência como processo de acumulação de um capitalismo financeirizado, por tornarem
possível a expropriação das condições de existência e energias vitais de povos e
comunidades tradicionais como lógica legitimada de desenvolvimento, tornando o
sacrifício, a destruição e a morte os caminhos naturalizados do que se institui
colonialmente como progresso.
Para pensar os grandes projetos minerais como dispositivos do estado de
exceção na Amazônia, esse capítulo se divide em duas partes: na primeira falaremos dos
processos de regulação da mineração no Brasil para demonstrar que a identificação da
mineração a uma ideia de segurança e interesse nacional, tornou seus modos de
regulação expressão clara de processos de exceção. No segundo momento, entraremos
na análise dos Grandes Projetos de Mineração na Amazônia como dispositivos de
exceção.

2.1. MINERAÇÃO E REGIMES DE EXCEÇÃO NO BRASIL: DA REGULAÇÃO ESPECIAL À

DESREGULAÇÃO

Antes de observarmos os modos de exercício do poder dos


megaempreendimentos minerais na Amazônia, faz-se necessário esclarecer, em linhas
gerais, o que significou e ainda significa o setor mineral no campo normativo brasileiro,
melhor dizendo, de que maneira as normas ou o próprio direito instituído, inscrito no
contexto de uma economia agro-mínero-exportadora, transformou-se na retórica
justificadora de violentos processos de espoliação e superexploração do trabalho e da
natureza.
Mattei e Nader (2013, p.1), demonstrando de que maneira o Estado de Direito
justifica a ilegalidade da pilhagem em escala mundial, não apenas em contexto colonial
e imperial, mas na lógica neoliberal, no início da introdução de seu instigante livro,
chegam a afirmar que o ―direito tem sido usado para justificar, administrar e sancionar a

80
conquista e a pilhagem ocidentais‖, incluindo no terreno da legalidade: o roubo, a
guerra e o saque. Essa tese definitivamente encontra respaldo na experiência amazônica,
que, inclusive, amplia seu escopo, uma vez que o envolvimento da mineração ao projeto
de constituição da nação no Brasil abriu um espaço de indiferença ou uma justificativa
de necessidade de não apenas construir sistemas normativos especiais, mas de
desobedecer às leis em nome da lei.
Nesses termos, a mineração foi e ainda é atividade central para os projetos de
domínio/controle e desenvolvimento pensados e executados pelo Estado. No Brasil,
desde a colônia há normas e leis que regem a atividade e várias foram as legislações
criadas que estabeleceram distintas regras e regimes de propriedade para os minérios e
jazidas. Em linhas gerais, durante o período colonial, vigorou o regime Regaliano de
propriedade, no qual o minério era propriedade direta do soberano, cabendo a ele
estabelecer suas regras. Durante o Império, o regime Dominial entra em vigor, passando
as minas à propriedade do Estado. Na primeira constituição da república, em 1891,
entretanto, entra em vigor o regime fundiário, no qual o proprietário do solo também
possui a propriedade do sob solo, o que logo na constituição de 1934 é extinto, passando
as minas a serem regidas pelo sentido de propriedade do Res Nullius, ou seja, passam a
ser terra de ninguém, enquanto o Estado nacional não oferecesse a sua concessão a
alguém. Esse quadro só mudaria na constituição de 1988, quando os minerais tornam-se
bens da união. O quadro 2 abaixo tenta sintetizar, em linhas gerais, esse conjunto de
normas e os regimes de propriedades por elas instituídos.

81
Quadro 2 - Principais legislações e regimes de propriedade dos recursos minerais no Brasil
Legislação Sentido Geral Regime de propriedade
Ordenações Manuelinas Estabelece que é direito real e poder do Príncipe as minas Regaliano – propriedade dos minérios diretamente
(1512) do soberano
Admite a livre exploração, mas estabelece um tributo de um quinto do ouro Regaliano – propriedade dos minérios diretamente
Carta Régia (1603)
explorado para a Coroa Portuguesa do soberano
Regimento do Superintendente, Cobrança do quinto, criação do intendente de minas responsável, sistema de Regaliano – propriedade dos minérios diretamente
Guarda Mores e Oficiais para distribuição de terras de acordo com o número de escravos do soberano
as Minas de Ouro (1702)
Separa a propriedade do solo e subsolo sem estabelecer regras claras Dominial - Propriedade do minério e das Jazidas do
Constituição de 1824
Estado
Confere ao proprietário do solo o domínio sobre o subsolo Fundiário – confere ao proprietário da terra a posse
Constituição de 1891
dos bens minerais
Estabelece que as minas e jazidas constituíam propriedade distinta da propriedade Concessão – estabelece as minas, antes da
Constituição de 1934 do solo. Criação do Departamento Nacional da Produção Mineral – DNPM. Institui concessão como res nullius, ou seja, coisa de
o Res nullius como lógica de propriedade das minas ninguém
Garante o domínio da União ou dos Estados sobre as minas e jazidas desconhecidas, Concessão – estabelece as minas, antes da
Constituição de 1937 além de nacionalizar as empresas que se dedicavam à atividade mineral exigir concessão como res nullius, ou seja, coisa de
nacionalidade brasileira para os acionistas de empresas de mineração. ninguém
Estabelece a obrigatoriedade da nacionalidade brasileira para os sócios das Concessão – estabelece as minas, antes da
Código de Minas de 1940 empresas de mineração e a necessidade de autorização do governo federal para o concessão como res nullius, ou seja, coisa de
início de qualquer pesquisa mineral ninguém
Institui que os minérios podem ser extraídos por brasileiros ou por sociedades Concessão – estabelece as minas, antes da
Constituição de 1946 organizadas no pais concessão como res nullius, ou seja, coisa de
ninguém
Manteve o entendimento das cartas constitucionais de 1934 e 1946 de que a Concessão – estabelece as minas, antes da
Código de Minas de 1967 propriedade do solo era distinta da do sobsolo e Institui que são necessárias leis concessão como res nullius, ou seja, coisa de
especiais para a exploração de minérios ninguém
Estabelece os minérios e jazidas como bens da união Estabelece as minas como propriedades da União
Constituição de 1988
com uso a ser concedido
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de informações de Barbosa (1994), Scliar (1996) e Guedes (2015).

82
Independentemente do período ou do regime político que vigorou a mineração
sempre foi tratada como assunto de interesse nacional, seja a questão nacional referida
pela Coroa Portuguesa, pelo Império brasileiro ou pela República. Nesse particular, a
propriedade das minas sempre foi tratada como elemento que envolve diretamente a
ação do Soberano, entendido como Estado em suas múltiplas expressões políticas
(colonial, imperial ou republicano), sendo muita das vezes tratada como questão de
segurança nacional ou mesmo envolvendo o interesse nacional, tratamento, aliás, que
não se circunscreve ao marco regulatório brasileiro. Mesmo quando o regime de
propriedade em vigor era o fundiário, em que propriedade do solo e do subsolo
coincidiam, um conjunto de leis, como a Lei Pandiá Calógeras (1915) e a Lei Simões
Lopes (1921), procuraram minimizar o poder que tinham os proprietários de terra,
estabelecendo regras para uma maior regulação das minas e jazidas por parte do Estado.
Podemos dizer que o regime regaliano em muito se associa a uma forma de
exercício do poder soberano, como descrito por Foucault (2008), que ganha sentido com
a emergência das monarquias soberanas e que constrói uma visibilidade ao corpo do
Rei. As riquezas minerais, como adornos da riqueza do Rei, sintetizam uma modalidade
do poder em que o que está em jogo é claramente a visibilidade do soberano, que
representa e encarna, em seu corpo, um poder que torna o direito de matar a essência do
direito de viver. A cobrança do quinto reforça o sentido de centralização e visibilidade
do Rei, criando uma autoridade administrativa da Coroa em relação às atividades de
mineração existentes.
A constituição de 1824 e a emergência do regime dominial, em que a
propriedade das minas passa a ser do Estado não mais do Rei, recria o sentido de
soberania, uma vez que não é mais o Rei que encarna o poder, mas uma entidade
burocratizada e centralizada, racionalmente definida como Estado, que ainda
representará o exercício de um poder soberano, uma vez que não serão estabelecidas
regras claras para regular, disciplinar e controlar a apropriação do subsolo, ficando a
cargo da vontade do Estado a prerrogativa de permitir ou não determinada exploração.
A prerrogativa da soberania nacional, sempre em questão quando se trata de
regulamentação da mineração, será claramente exercida pelo Estado pela incorporação
da noção de res nulluis. Criada em 1934 e tendo vigor até a constituição de 1988, essa
noção estabeleceu que as jazidas conhecidas antes de 1934 fossem de propriedade dos
proprietários do solo, entretanto, as descobertas a partir de 1934 seriam terras de
ninguém. Por esta ideia, é bom que se diga, estabelecem-se as jazidas e áreas de

83
mineração como terras sem dono até que sejam concedidas para alguém pelo Estado.
Isso pode parecer comum, pois o mesmo princípio é aplicado em oceanos e mares.
Entretanto, quando falamos de mineração estamos falando de espaços geográficos
complexos, muitas vezes estamos falando de territórios indígenas, quilombolas,
ribeirinhos que, por um mecanismo jurídico (se nesses territórios for descoberta uma
jazida) tornam-se terra de ninguém. A teoria do res nulluis foi criada visando defender
os oceanos de reivindicações de soberanias por parte dos Estados-Nacionais, tendo,
portanto, como espaço fundamental de inscrição, o alto-mar, que seria, por sua vez, um
espaço vazio de regulamentações jurídicas. Tal noção também se vincula à teoria da
ocupação que vislumbra o direito de propriedade a partir da ocupação das coisas, ou
seja, coisas que não pertencem a ninguém, vazias de regulação, pertenceriam a alguém,
após a ocupação, pela inexistência de qualquer direito opositor.
Esse mecanismo esvazia de direitos os espaços de mineração, cria zonas de
indiferença e, assim, territórios preenchidos de simbolismo, vida e cultura são,
simplesmente, transformados em espaços nulos, desprovidos de qualquer regra, vazios
de direito, espaços para os quais a possibilidade econômica da exploração apaga sua
história e geografia. A adoção dessas regras torna os espaços da mineração, territórios
onde se age legalmente fora da lei, em que a validade da lei é sua suspensão.
Se a constituição de 1934 cria a ideia de res nullius, o código de minas de 1967
a institui de maneira mais clara, quando estabeleceu que as jazidas minerais tivessem de
ser regidas por leis especiais. Toda a legislação consolidada desde 1512, portanto, não
teria validade nenhuma, pois as legislações seriam criadas de acordo com cada caso e de
acordo com os interesses em jogo. As terras de ninguém se tornam oficialmente espaços
vazios de regulamentação para os quais tudo pode se projetar, tudo pode se fazer, onde a
vontade do Estado passa por cima de qualquer norma ou regulamentação do próprio
Estado. Assim, então, institui-se a exceção através do artigo 10 do código de minas de
1967:
Art. 10 Reger-se-ão por Leis especiais:
I - as jazidas de substâncias minerais que constituem monopólio
estatal;
II - as substâncias minerais ou fósseis de interesse arqueológico;
III - os espécimes minerais ou fósseis, destinados a Museus,
Estabelecimentos de Ensino e outros fins científicos;
IV - as águas minerais em fase de lavra; e
V - as jazidas de águas subterrâneas (BRASIL, 1967).

84
Entretanto, o código de 1967 não para por aí, ainda institui instrumentos claros
para colocar a atividade de pesquisa mineral e lavra, acima de qualquer processo
judicial que, por ventura, os responsáveis pela exploração das jazidas possam sofrer.
Assim estabelece o código:
Art. 57. No curso de qualquer medida judicial não poderá haver
embargo ou seqüestro que resulte em interrupção dos trabalhos de
lavra. Art. 87. Não se impedirá por ação judicial de quem quer que
seja, o prosseguimento da pesquisa ou lavra‖ (BRASIL, 1967).

Mais uma vez, suspende-se o funcionamento do sistema judicial em nome da


continuidade dos processos minerais. Esse conjunto complexo de instrumentos legais
claramente institui os territórios da mineração como territórios de exceção. Agamben,
teorizando acerca do estado de exceção, embora tratando de uma realidade radicalmente
distinta da nossa, ajuda-nos a entender melhor esse processo demonstrando que:
Diante de um excesso, o sistema interioriza através de uma interdição
aquilo que o excede (...). O particular vigor da lei consiste nessa
capacidade de manter-se em relação com uma exterioridade.
Chamemos relação de exceção a esta forma extrema da relação que
inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão
(AGAMBEN, 2002, p.26).

Quando as leis em vigor não são suficientes para reger as jazidas minerais, é
necessário instituir a necessidade de criação de leis especiais para regê-las, que nada
mais são que uma forma de interdição, de tornar as jazidas incluídas no ordenamento
jurídico pela necessidade de serem regidas por leis especiais, ou seja, pela sua exclusão
ao mesmo marco regulatório. Nesse sentido, a exceção ―é aquilo que não pode ser
incluído no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde
sempre incluído‖ (AGAMBEN, 2002, p. 32).
A regulação da mineração, em tempos de Estado autoritário no Brasil, em
realidade parece ter se guiado por uma contradição fundamental, qual seja, a ausência
completa de regras concomitante ao excesso exagerado de regras. Em outras palavras,
as zonas de mineração, precisavam se tornar livres de qualquer regulamentação para que
o Estado tivesse a prerrogativa de exercer formas de regulação especial de acordo com
os contextos e interesses em jogo para cada situação. Existe claramente uma lógica
econômica nisso tudo, que é a de construir regimes especiais de exploração a partir de
termos e normas também especiais, de modo a garantir lucros extraordinários às
empresas exploradoras.

85
Essa maneira de regular a atividade mineral está totalmente em consonância
com a dinâmica econômica pensadas pelo regime autoritário no Brasil baseada, segundo
Oliveira (2003), em uma homogeneização monopolística, ou seja, em uma estratégia de
proteção de mercados e monopolização de setores da economia, considerados
estratégicos, ainda não sujeitos às práticas monopolistas, garantindo um lucro
exponencial a determinadas empresas que, além de não se preocuparem muito com
concorrência, também são altamente subsidiadas pelo Estado, seja através de incentivos,
seja através de um sistema normativo especial.
O Estado opera, portanto, como disciplinador dos processos de exploração
mineral, possuindo o direito de dizer sim ou não aos processos de exploração e de
estabelecer as regras para tal processo, também possuindo a prerrogativa de escolher
agentes econômicos para, em situações especiais, explorar as reservas tidas como bens
públicos. A exceção se desenha pelo esvaziamento normativo dos espaços de mineração
e pela autoridade do Estado de construir regimes especiais,
Se, por um lado, o exercício do poder em um Estado autoritário, realiza-se por
meio do poder soberano, principalmente pela mineração sempre ser colocada como
questão nacional e, por isso, abrir a possibilidade de uso de mecanismos de exceção que
nada mais são que a força da lei soberana, por outro lado, os mecanismos jurídico-legais
criados para normatizar as práticas de mineração, inscritos em múltiplos códigos, regras
e legislações e, principalmente, na criação de órgãos de controle, como o Departamento
Nacional da Produção Mineral, também demonstram que o exercício do poder se dá por
meio da disciplina, por uma necessidade de controle racional dos processos minerais a
fim de maximizar a utilidade das reservas minerais brasileiras.
Entretanto, a articulação entre os interesses privados de grandes mineradoras e
os sentidos de interesse nacional legitimados pelo Estado brasileiro não cessam com o
fim da ditadura civil-militar. O Projeto Calha Norte (PCN), criado em 1985, acaba
sendo um embrião para o atrelamento concreto entre os interesses de grandes
mineradoras e as políticas e sistemas normativos do Estado no contexto da nova
república. O PCN, inserido ainda na lógica das políticas do Conselho de Segurança
Nacional, tinha como objetivos centrais o aumento da presença militar nas fronteiras, a
demarcação de fronteiras, o incremento de relações bilaterais e a construção de uma
política indigenista ―apropriada‖. Em seus diagnósticos chega a encarar os territórios
indígenas nas fronteiras amazônicas, como riscos à soberania pelo perigo à emergência
de outras nacionalidades, noção que vai gradualmente ganhando a forma de

86
compreensão das terras indígenas como problemas centrais à exploração mineral em
áreas ricas em minérios, como o estado de Roraima, de modo que o projeto que surge
como sigiloso e impactante, vai desenhando uma nova política indigenista atrelada a
interesses empresariais da mineração, o que se efetiva na Portaria 01/87 da
FUNAI/DNPM que permite, em casos excepcionais, a empresas privadas nacionais e
estatais, a mineração em terras indígenas (OLIVEIRA, 1991).
No contexto da constituinte, a mineração continua ganhando terreno e se
efetivando pelo argumento de interesse nacional, argumento este que tornou aqueles que
trabalhavam com indígenas na Amazônia e não estivessem integrados aos quadros da
FUNAI, particularmente nas áreas de atuação do PCN, efetivos inimigos do país, por
serem, então, contrários aos chamados "interesses nacionais" (OLIVEIRA, 1990).
Baines (1993, p. 212), que também foi expulso da área dos Waimiri Atroari por
complexas relações levadas a cabo pela administração indigenista, relata melhor alguns
fatos desse contexto:
Em 1987, o antropólogo Márcio Silva, da Unicamp, foi sumariamente
expulso da área Waimiri-Atroari sem a apresentação, por parte da
FUNAI, de qualquer justificativa convincente. Os pesquisadores
Bruce Albert (Orstom/UnB) e Alcida Ramos (UnB) tiveram suas
autorizações para realizar pesquisas com os Yanomami suspensas
durante longo período, como aconteceu também com Dominique
Buchillet (Orstom/UnB) no alto rio Negro. A autorização de Gilio
Brunelli (Universidade de Montreal) não foi renovada para voltar aos
Zoró.

Mesmo depois de aprovada a constituição de 1988 e outras legislações


posteriores que construíram garantias democráticas e alguns avanços - como o que está
no artigo 18 da lei nº 7.805 de 1989, que prevê a suspensão temporária ou definitiva dos
trabalhos de pesquisa e lavra mineral que causarem danos ambientais de acordo com
parecer do órgão competente - ainda assim, a dinâmica de expansão dos processos
minerais continuou a funcionar por regimes de exceção.
A ideia de interesse nacional para o setor mineral persiste na constituição de
1988, principalmente em seu artigo 17625, e em nome de tal interesse, deixa-se de
reconhecer que a atividade de mineração é eminentemente privada e envolve no Brasil
(também por conta de, desde a Constituição de 1946, ser permitido o investimento do

25
A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput
deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse
nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e
administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades
se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas (Brasil, 1988, Art. 176 § 1º)

87
capital estrangeiro nesse setor), o interesse claro do capital de grandes transnacionais
estrangeiras e brasileiras. O setor, portanto, funciona pela lógica do lucro das grandes
corporações, de modo que o interesse nacional se transforma em uma narrativa
institucional e juridicamente legitimada, que garante um tratamento diferencial em
termos de regulação.
Na verdade, o que percebemos é que a abertura ao capital estrangeiro, que se
consolidará com as políticas neoliberais da década de 1990, particularmente no setor
mineral, já havia sido efetivada há algum tempo através da estratégia de
homogeneização monopolística do regime autoritário. Dados de 1987 do Instituto
Brasileiro de Mineração (IBRAM) demonstram que, já neste ano, existia uma
participação majoritária das empresas de capital estrangeiro nos processos minerários no
Brasil, totalizando, entre pedidos de pesquisa e concessões de lavra, 14.208 reservas
minerais nas mãos de empresas estrangeiras. Das 50 maiores empresas, 25 já eram
estrangeiras e entre as cinco maiores exploradoras nesse período, depois da Companhia
Vale do Rio Doce (CVRD), nesse momento estatal, vinham as empresas Brascan,
British-Petroleum, Anglo American e UTHA.
O interesse nacional, colocado em termos literais na Constituição de 1988 para
as reservas minerais, contrastava com a força econômica e política de grandes
corporações transnacionais, cujos interesses cada vez mais guiavam o sentido das
políticas e formas de regulação estatal.
Embora haja uma continuidade, em termos de interesse econômico, para com
grandes corporações transnacionais da mineração, há uma mudança significativa no
tratamento da regulação da mineração, em fins da década de 1980 e início da década de
1990, mudança que se consolida a partir de 2003, pela crescente demanda por minérios
da China e por uma política mais agressiva de exportação de commodities.
O Estado começa a deixar de ser o gestor disciplinar das minas e jazidas
minerais para se tornar o principal agente responsável por atrair investimentos na
mineração no Brasil. Em termos mais concretos, cria-se uma separação discursiva entre
Estado e Mercado ou entre Política e Economia, que garantirá ao mercado funcionar
quase que como uma externalidade autônoma ao Estado, apenas lhe solicitando
demandas específicas, o que expõe, em termos mais bem acabados, uma forma de
exercício do poder que diz sim aos fluxos de mercado e capitais, sacrificando boa parte
da população como custo irreversível. Digamos de outro modo, a livre iniciativa do
mercado será referendada por um Estado que deixará de ser quem, por meio de

88
legislações especiais, deliberadamente escolhe o agente privado a devassar os bens
públicos, para ser o agente responsável pela atração de investimentos, refém do
mercado, o que se fará através, por exemplo, do desmonte de direitos sociais, de bens
públicos, da permissão do assenhoramento privado de bens coletivos, única e
exclusivamente para garantir a possibilidade de novos investimentos privados, para
tornar o país atraente a investidores.
Encontramos aí claramente uma forma de exercício do poder inscrito no que
Foucault (2008) chama de biopoder, que ganha sentido a partir da emergência dos
princípios de liberdade do comércio – no qual o Estado começa a enfrentar os
problemas de distribuição, circulação e deslocamento dos capitais, no sentido em que a
questão fundamental não era mais como dizer não ao indivíduo, mas como dizer sim – e
não age apenas punindo ou corrigindo, mas enfrentando antecipadamente o que não se
conhece com exatidão, ou seja, o biopoder ou a dinâmica de exercício do poder que
torna a segurança elemento central age pela lógica de minimizar o risco, não atuando,
portanto, apenas sobre o corpo, mas sobre a população, conceito que carrega em seu
seio, divisões fundamentais da sociedade, que definirão quem está incluído e quem não
estará incluído na política, por quem se luta pela vida e quem vai se deixar morrer.
A livre iniciativa do mercado se institucionaliza principalmente no poder
legislativo, responsável pelas regras do jogo na mineração, particularmente por meio do
lobby das grandes mineradores, através de vultosos financiamentos de campanha, o que,
no fim das contas, garante uma lógica do desmonte de regras que atrapalham o mercado
da mineração, melhor dizendo, garantindo um ataque feroz aos direitos territoriais de
povos e comunidades tradicionais e um devassamento das legislações ambientais.
Dois anos depois de aprovada a Constituição Federal de 1988, em 1990, já
temos a primeira tentativa de definição, através de Projeto de Lei Complementar (PLP),
do que vem a ser o interesse público da União expresso no parágrafo 6 do artigo 231
(que reconhece os direitos territoriais indígenas) da Constituição, no qual se definem
como nulos ―os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a
que se refere este artigo (indígenas), ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos
rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União (...)"
(BRASIL, 1988). O PLP nº260 de 1990, nesses termos, dentre outros critérios,
estabelece que ―a necessidade de exploração de riquezas naturais imprescindíveis à
soberania ou ao desenvolvimento nacional‖ (BRASIL, 1990), enquadrar-se-ia entre os
elementos definidores do que seria o interesse da União.

89
A proposta, claramente de permissão de ações empresariais em terras
indígenas, continuou a ser perseguida através de outros Projetos de Lei
Complementares, como a PLP 227/2012 e a PLP 316/2013, todas no sentido de revisar
o sentido de interesse da União inscrito no parágrafo 6 do artigo 231 da Constituição.
Na esteira de uma desregulação de direitos conquistados e inscritos na
Constituição de 1988, para viabilização da expansão da indústria mineral em terras
indígenas, seis anos após a PLP 260, o senador Romero Jucá (PMDB-RR) - que era
presidente da FUNAI quando da assinatura Portaria 01/87 da FUNAI/DNPM que
permite, em casos excepcionais, a empresas privadas nacionais e estatais, a mineração
em terras indígenas e, também, já foi denunciado por construir um esquema de
corrupção e beneficiamento com a empresa Vale S. A. e a empresa Diagonal (STF,
2013)26 - apresenta o Projeto de lei 1610/1996 que dispõe sobre a exploração e o
aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas.
O mesmo senador que em 1996 propõe a autorização de mineração em terra
indígena, em 2015 também constrói o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 654/2015 que
cria o chamado ―licenciamento ambiental especial‖, um procedimento administrativo
específico destinado a licenciar empreendimentos estratégicos, sendo que esses
empreendimentos estratégicos são definidos pelo setor de transporte e logística, pelo
setor de energia e construção de barragens, de telecomunicações, no que tange a
construção de linhas de transmissão, e de exploração de recursos naturais, notadamente
a mineração.
Se, por um lado, o sentido é atacar os direitos territoriais que ainda são
garantidos pela Constituição para viabilizar a expansão da mineração, por outro lado, o
sentido é criar mecanismos flexíveis de licenciamento ambiental para facilitar a
operação e funcionamento dos grandes empreendimentos minerais.
Os ataques sistemáticos aos direitos territoriais de povos e comunidades
tradicionais, expressos nas propostas analisadas anteriormente e numa infinidade de
outras que continuam a surgir, tornar-se-ão uma das principais pautas do legislativo
brasileiro, com transbordamentos ao poder executivo e judiciário, tanto que Almeida
(2010) descreve estas estratégias concretas vinculadas aos interesses do agronegócio, da
mineração e outros negócios, com o fim de expansão dos seus domínios sobre amplas
extensões de terras no Brasil, como agroestratégias, ou seja, iniciativas voltadas para

26
O processo não prosseguiu por falta de provas. Ver em:
www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDecisao.asp?numDj=169

90
―remover os obstáculos jurídico-formais à expansão do cultivo de grãos e para
incorporar novas extensões de terras aos interesses industriais, numa quadra de elevação
do preço das commodities agrícolas e metálicas‖ (ALMEIDA, 2010, p. 102).
A lógica do Estado passa a ser retirar as barreiras à expansão da atividade
mineral, sendo que aquilo que se torna barreira, na verdade, são direitos territoriais e
legislações ambientais garantidos constitucionalmente a partir de longos processos de
luta e organização da sociedade. O mercado começa a exigir a suspensão de regras e
direitos constituídos.
Talvez a expressão mais nítida do mantra neoliberal no que tange às políticas
de mineração, seja a publicação do Departamento Nacional de Pesquisa Mineral
(DNPM) chamada ―o Mineralnegócio: guia do investidor no Brasil‖ (DNPM, 2006). A
publicação - bilíngüe, em inglês e português - começa demonstrando a diversidade e o
potencial mineral brasileiro, parta depois demonstrar os avanços da pesquisa e
prospecção mineral, o desempenho da economia mineral no país, a expansão logística
incentivada pelo Estado, finalizando com a demonstração de todo marco regulatório
nacional acerca da mineração, em especial as regulamentações sobre o capital
estrangeiro, ressaltando, ainda, os incentivos governamentais em âmbito federal, a
isenção do imposto de renda, bem como alguns incentivos de governos estaduais. Em
síntese, um mapa das minas do Brasil ao investidor internacional.
A discussão de um novo marco regulatório para a mineração ganha claramente
esse contorno de um Estado que quer atrair investimentos, mesmo que isso signifique
desregular territórios. O novo Código de Mineração que teve partes de seu documento
oficial redigido em computadores do escritório de advocacia Pinheiro Neto, que tem
como clientes as mineradoras Vale e BHP Billiton (BBC, 2015), demonstra claramente
as relações de poder que demarcam as regras do nosso sistema normativo.
Ainda nesse particular é interessante também perceber como as discussões do
setor empresarial da mineração são absorvidas, quase como demandas, para os novos
marcos regulatórios. Durante o encontro International Councilon Mining and Metals
(ICMM) realizado no ano de 2012, em Londres (encontro que ocorre de dois em dois
anos e reúne os dirigentes das maiores mineradoras do mundo e executivos de 31
associações de commodities, bem como várias outras entidades ligadas ao setor) dentre
vários fatores de risco à atividade mineral, o principal escolhido por todo o setor foi o
chamado "nacionalismo de recursos" (FOLHA DE SÃO PAULO 11/04/2012), ou seja,

91
os movimentos de reestatização de empresas e interferência do Estado nos processos de
exploração.
Não sem razão, entre as medidas inscritas no novo código mineral está a
ampliação do limite de participação do capital estrangeiro, que hoje é de 49% e passaria
para até 100% no âmbito da indústria mineral. Mais uma vez as mudanças legais
acompanham as imposições do mercado.
Talvez Agamben (2002, p. 145), ao tratar das diferenciações entre o poder
disciplinar e o poder inscrito nas sociedades de segurança ou biopolíticas, ajude-nos a
demonstrar essas distintas formas do Estado de regular a mineração.
Enquanto o poder disciplinar isola e encerra territórios, medidas de
segurança conduzem a uma abertura e à globalização; enquanto a lei
tem por objetivo prevenir e ordenar, segurança quer intervir nos
processos em curso para dirigi-los. Em suma, disciplina visa produzir
ordem, segurança almeja governar a desordem. Como medidas de
segurança só podem funcionar inseridas em um contexto de liberdade
de tráfego, comércio e iniciativa individual, Foucault demonstrou que
desenvolvimento da segurança e desenvolvimento do liberalismo
coincidem (AGAMBEN, 2002, p. 145).

Nesses termos, se a disciplina isola e encerra territórios, ordena e regula, as


medidas de segurança governam a desordem e se inscrevem no seio do liberalismo, ou
para sermos precisos em relação ao Estado que estamos falando, no seio do
neoliberalismo. Em síntese, o Estado que dizia sim e não, mas no fim das contas,
arranjava condições especiais, por meio de regimes de exceção, para a mineração, agora
só diz sim, e esse sim à mineração, que suspende legislações, muda regras ou cria
procedimentos especiais, ainda sob a égide de um regime de exceção, traduz-se em
deixar morrer aqueles que se encontram no caminho da exploração mineral.

2.2. A MINERAÇÃO NA LÓGICA DOS GRANDES PROJETOS: SUPERPOSIÇÃO DE

RELAÇÕES DE EXCEÇÃO

A dinâmica da expansão da mineração no Brasil se dá pela definição de regras


especiais para a exploração e pela desregulação e ataque aos direitos territoriais e
legislações ambientais. Entretanto, a equação Mineração e Grandes Projetos na
Amazônia parece ser a síntese, ou uma superposição de relações de exceção, pois
articula suspensões normativas tornadas regra na dinâmica de regulação da mineração
no Brasil e uma tecnologia política particular que são os Grandes Projetos. Essa

92
superposição, portanto, expressa um modo específico de exercício do poder através de
dispositivos de exceção.
Abramos um rápido parêntese para pensar o conceito de dispositivo, pois isso
irá acrescentar várias linhas de raciocínio para nossa análise.
Foucault (1979, p. 244), em passagem bastante famosa, afirma que o
dispositivo é
(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer
entre estes elementos.

Em outra passagem, Foucault (1979, p. 246) afirma que o dispositivo é criado


para responder a uma urgência e que tem uma função de natureza estratégica por se
tratar de ―uma certa manipulação de relações de força, de uma intervenção racional e
combinada das relações de força, seja para orientá-las em certa direção, seja para
bloqueá-las ou para fixá-las e utilizá-las, portanto, aparece como uma rede a interligar‖
Dois elementos nos são fundamentais na análise de Foucault, o primeiro é a
ideia do dispositivo como uma maneira de manipulação nas relações de força, como
uma forma de governar, entendendo governo enquanto um modo de agir sobre a
possibilidade de ação dos outros. E o segundo que diz respeito ao dispositivo como uma
rede a interligar discursos, instituições, organizações arquitetônicas, regulamentações,
leis, enunciados científicos, dentre outros elementos.
Os Grandes Projetos de Mineração na Amazônia, como já dito aqui,
constituem-se como uma maneira particular e racional de manipulação das relações de
força, pois demonstram uma maneira específica de governar, estruturando a ação de
quem quer que seja a partir de sua racionalidade, olhando toda uma região a partir de
parâmetros específicos de uma lógica de expansão capitalista que define todas as
oposições a ela como irracionais. Essa maneira de manipular as relações de poder
interliga um conjunto de discursos (o que dizer do Brasil Grande de Eliezer Batista, de
Figueiredo e tantos outros); de instituições (como não ver toda a institucionalidade
construída, da SPVEA à SUDAM para dar sustentação às grandes obras); de
organizações arquitetônicas marcadas pelo gigantismo e por uma força simbólica da
opulência da técnica; de leis que são criadas ou burladas em nome da execução de tais
projetos (não podemos esquecer as (des)regulações associadas à mineração); de

93
enunciados científicos expressos em tantos argumentos da economia regional, da
demografia, da geografia, da engenharia e tantas outras disciplinas.
Mas os Grandes Projetos Minerais não são apenas dispositivos, são
dispositivos de exceção, pois são colocados sempre pelo signo da segurança ou interesse
nacional e, mesmo que em discordância aos marcos legais vigentes, são tomados como
necessários. Quando não existia marco legal a desobedecer, criaram-se decretos em
cima de decretos para federalizar e centralizar as decisões, construindo ingerências em
relação a poderes constituídos, criando mecanismos de excepcionalidade jurídica,
tornando a Amazônia uma zona de indistinção.
Essa técnica de governo contemporânea logicamente se relaciona a relações de
poder que se estruturam a partir de alguns problemas fundamentais. Se as relações
capitalistas, como bem ilustra Foucault (2010), em contexto de expansão industrial,
fazem emergir formas de exercício do poder disciplinar, voltadas para maximização da
utilidade dos corpos em conjunto, numa anatomopolítica que garante a docilidade dos
indivíduos por meio de um controle individual e da combinação de suas forças, quando
essas relações encontrarem os problemas de distribuição e circulação dos bens, serviços,
capitais e pessoas, bem como encontrarem, em termos práticos, as premissas básicas do
liberalismo ou do neoliberalismo, irão redesenhar as relações de força. Desse modo, é
para responder a esses problemas que as relações de poder não mais irão se voltar
apenas ao indivíduo, mas à massa, não mais encontrarão só o homem-corpo, mas o
homem-espécie, tornando a vida elemento não mais definido pela morte, mas pela
própria política, como biopolítica, que fragmenta a sociedade a partir de dados
estatísticos, definindo quem se inclui e quem não se inclui, para quem irá se governar e
fazer viver e quem vai se deixar morrer.
Não esqueçamos que falar de Grandes Projetos Minerais na Amazônia é falar
de drenagem de matéria e energia por eixos de exportação, pois o que está em questão
não é apenas a extração, mas a circulação e exportação dos minérios, o que não exige
apenas disciplinar as áreas produtivas, no sentido de sanar os riscos produtivos, mas
garantir toda a engrenagem dos processos de exportação, tornando os espaços
necessários para a realização da drenagem de matéria e energia, e as populações que
neles habitam, em riscos a serem geridos e sanados.
Por essas premissas os Grandes Projetos de Mineração na Amazônia, por meio
de um modo particular de governo do território por processos de suspensões normativas,
definem territorialmente os incluídos e os excluídos da política.

94
2.3. UMA GEOGRAFIA DE EXCEÇÃO: OS GRANDES PROJETOS DE MINERAÇÃO NA

AMAZÔNIA
A mineração industrial torna-se política central do Estado apenas a partir do II
Plano de Desenvolvimento da Amazônia (1974-1979), particularmente através do
Polamazônia, em que a grande maioria dos pólos de desenvolvimento planejados para a
região, girava em torno de indústrias da mineração, e posteriormente com o III PDA e o
Programa Grande Carajás, que consolidou a mineração industrial como via principal do
planejamento do desenvolvimento regional. Entretanto, apesar da experiência de
mineração industrial se reproduzir em grande monta apenas a partir da década de 1970,
já na década de 1950 temos a estruturação de Grandes Projetos de Mineração na região.
Dessa forma, a primeira experiência, que foi a exploração do manganês na
Serra do Navio no Amapá, já pode ser considerada bastante emblemática por sua
exemplaridade, uma vez que a maneira em que a mesma foi gestada e implantada,
expressa vários processos vistos em outras experiências posteriores. Sua breve
descrição, portanto, será uma espécie de indicativo de categorias gerais de compreensão.
A exploração do manganês na Serra do Navio insere-se, particularmente, no
contexto após a segunda guerra mundial, em que grande parte das reservas de manganês
estava sob controle soviético, o que dava importância geopolítica estratégica às reservas
do Amapá. Nesses termos, em1947, as pesquisas e a exploração foram destinadas à
iniciativa privada por meio de concorrência pública vencida pela Indústria e Comércio
de Minérios S.A (ICOMI), que, em 1950, alegando necessidade de recursos financeiros
e apoio técnico, associa-se a Bethlehem Steel Corp, uma das principais empresas norte-
americanas de produção do aço. O peso estratégico da jazida e o discurso da segurança e
soberania nacional fizeram com que o então presidente Gaspar Dutra, por meio do
decreto-lei nº 9.858 de 13 de setembro de 1946, tornasse as jazidas de manganês reserva
nacional.
O Governo Federal, então, concedeu uma licença de exploração de 50 anos à
empresa que, para garantir as condições objetivas de exploração, construiu instalações
industriais para a extração, circulação e beneficiamento do manganês, articulando a
extração em Serra do Navio ao Porto, localizado no município de Santana, através da
Estrada de Ferro do Amapá. Para abrigar os funcionários, garantindo sua permanência e
dedicação permanente na dinâmica de exploração e exportação do manganês, a empresa
construiu duas vilas residenciais a partir do ano de 1957, uma localizada próximo à
mina, a Vila de Serra do Navio, e outra localizada nas proximidades do Porto de

95
Santana, denominada de Vila Amazonas. As cidades-empresa construídas foram
planejadas pelo arquiteto Oswaldo Arthur Bratke para abrigar os funcionários da
empresa com a tipologia de casas obedecendo à hierarquia de funções.
Essa experiência aponta pelo menos quatro processos que estarão na maior
parte da dinâmica de implantação de grandes projetos minerais na região amazônica, a
saber:
1) A dinâmica de exploração mineral foi profundamente estimulada pela
demanda internacional e com grande investimento de capital estrangeiro,
mesmo o projeto sendo colocado como de interesse nacional;
2) A viabilização da exploração se deu por meio de regulação especial, pela
criação do decreto que cria uma reserva nacional, um espaço resguardado
ao uso mineral por 50 anos;
3) O projeto precisou criar territórios com regras e ordenamento definidos
e/ou influenciados pela racionalidade do projeto, nesse caso, através de um
processo de urbanização dirigido pelos interesses empresariais;
4) O desenho de um eixo de exportação do minério ampliou as áreas
necessárias para a realização dos processos produtivos, transformando os
espaços necessários para a realização da drenagem de matéria e energia, e
as populações que neles habitam, em riscos a serem geridos e sanados.
Embora muitos projetos de mineração industrial, principalmente os mais
recentes, não mais criem seus espaços urbanos próprios, o que não apaga a importância
de tal processo, largamente utilizado em megaempreendimentos minerais até a década
de 1980 na Amazônia, essas marcas descritas acima estarão bastante presente na grande
maioria dos processos de mineração industrial até os dias de hoje na Amazônia.
Para tornar as marcas descritas a partir da experiência da ICOMI
analiticamente mais precisas, propomos defini-las da seguinte forma:
1) As decisões em torno da mineração industrial na Amazônia, não obstante o
discurso de interesse e soberania nacional, refletem alinhamentos
geopolíticos e escolhas econômicas atreladas ao interesse de empresas
transnacionais;
2) A viabilização da exploração mineral na Amazônia passa pela suspensão de
ordenamentos jurídicos;

96
3) Os grandes projetos de Mineração na Amazônia definem territórios
exclusivos, com regras e ordenamento construídos ou influenciados pelas
empresas;
4) Transformação dos espaços necessários para as atividades e fluxos do
minério em territórios administráveis, definindo as populações que neles
habitam em termos de risco a ser gerido e sanado.
Os quatro processos integrados vão desenhando, de maneira mais concreta, as
relações de exceção pelas quais tais projetos são implantados. Passemos, então, à leitura
mais detida de cada um deles.

2.3.1 A SUBORDINAÇÃO DEPENDENTE COMO INTERESSE NACIONAL


A exploração mineral na Amazônia historicamente foi empreendida como uma
necessidade e uma urgência de Estado para a realização da segurança ou do interesse
nacional. Entretanto, os motores econômicos e políticos dessa dinâmica são marcados
por processos de acumulação subordinados à acumulação capitalista externa, na velha
formula colonial em que a demanda internacional, bem como seus capitais de
investimento, definem nosso papel econômico dependente na roda da economia
globalizada. Portanto, as distintas experiências de exploração mineral na Amazônia
expressam a inserção subordinada do Brasil na economia internacional, como uma
escolha da classe dominante para não perder privilégios e empreender processos de
acumulação marcados pela violência, de modo a levar a cabo seus interesses a qualquer
custo, chamando sua subordinação de interesse nacional.
Esse atrelamento das decisões em torno da mineração industrial ao interesse de
empresas transnacionais está presente em dois momentos distintos do Estado brasileiro,
um primeiro, que remonta o Estado autoritário que, por sua vez, garante condições
especiais de exploração e de competitividade a empresas brasileiras, geralmente
atreladas a grandes investimentos de empresas estrangeiras transnacionais, sendo que as
decisões em torno da exploração ou não das jazidas são demarcadas pelos alinhamentos
geopolíticos e pelas demandas concretas de exportação, sem a preocupação do
encadeamento produtivo no Brasil; e um segundo momento que expressa um Estado
que atrai os investimentos do mercado e, nesse sentido, reorganiza seu sistema de
normas, garante condições infraestruturais, além de conceder incentivos fiscais para que
os investimentos se efetivem no território, atrelando as decisões, em termos de política

97
mineral, diretamente aos interesses, demandas e exigências das gigantes transnacionais
do setor.
O quadro abaixo mostra os principais projetos de mineração industrial na
Amazônia, em seqüência, de acordo com os anos de início dos processos de exploração,
ressaltando a origem do capital e as mudanças na composição desse capital na
atualidade, demonstrando, ainda, a presença do capital estrangeiro na exploração de
diversos tipos de minérios na Amazônia, o que torna mais expressivo o atrelamento das
decisões em torno da mineração industrial para a região aos interesses de empresas
transnacionais.

98
Quadro 3 – Principais Projetos de Mineração na Amazônia
Projeto de Mineração Origem do Capital Estrutura atual do capital Minério(s) Localização Início da
Operação
Exploração da Serra do Navio ICOMI (Brasil), Bethlehem Steel Corp (EUA) Mina desativada em 1997 Manganês Serra do Navio (AP) 1953
Exploração da Cassiterita Mineração Taboca/ Grupo Paranapanema Cassiterita Ariquemes (RO) 1970
(Brasil)
Exploração da Cassiterita Mineração Jacundá/ Mineração Oriente Novo Sem informação Cassiterita Monte Negro (RO), 1970
Ariquemes (RO)
Projeto Estanho em Rondônia CESBRA/Grupo BRASCAN (Brasil) Companhia Siderúrgica Nacional (Brasil) Cassiterita/Estanho Itapuã do Oeste e 1974
Ariquemes (RO)
Produção de Caulim no Projeto Jari - Daniel Ludwig (EUA)/ Caulim da Vale (Brasil) Caulim Vitória do Jarí (AP) 1977
Amapá Amazônia – CADAM
Produção de Alumina e CVRD (Brasil) e Nippon Amazon Aluminum Norsk Hydro (Noruega), Vale (Brasil) Alumina e Alumínio Barcarena (PA) 1978
alumínio Corporation (Japão)
ALBRAS/ALUNORTE
Exploração da bauxita na Mineração Rio do Norte /CVRD (Brasil), Vale (Brasil), ALCOA (EUA), BHP Bauxita Oriximiná (PA) 1979
região do rio Trombetas Canadá (ALCAN) Billinton/South32 (Reino Unido e
Austrália), Rio Tinto/Alcan (Canadá e
Autrália), CBA Votorantin (Barsil),
Norsk Hydro (Noruega)
Serra Pelada CVRD (Brasil) Colossus (Canadá) e Vale (Brasil) Ouro Serra Pelada/ Curionópolis 1980
(PA)
Exploração do Estanho no Mineração Taboca (Brasil) Grupo Misur (Peru) Estanho, Nióbio, Presidente Figueiredo 1982
Amazonas – Mina de Pitinga Tântalo (AM)
Mineração de Ouro no Norte Mineração Novo Astro, Grupo EBX e Aranha Encerrou as atividades em 1995 Ouro Pedra Branca do 1984
do Amapá Monteiro (Brasil) Amapari(AP)
Projeto Mina do Azul CVRD (Brasil) Vale (Brasil) Manganês Parauapebas (PA) 1984
Projeto Ferro Carajás CVRD (Brasil) Vale (Brasil) Ferro Parauapebas (PA) 1984
Exploração de Cromo e Ferro Mineração Vila Nova / ICOMI (Brasil) Grupo Fasa (Brasil) Cromo e ferro Mazagão (AP) 1988
no Amapá
Projeto Estanho em Rondônia Coopersanta dentre outras Cooperativas (Brasil) Cooperativas e Meridian Mining Cassiterita/Estanho Ariquemes (RO) 1988
– Mina Bom Futuro (Canadá)
Projeto Dow Corning Silício Dow Corning (EUA) Dow Corning (EUA) Silício Breu Branco (PA) 1988
do Brasil
Projeto Igarapé Bahia CVRD (Brasil) Vale (Brasil) Ouro e Cobre Parauapebas (PA) 1990

99
Projeto Caulim Pará CVRD (Brasil) Imerys Rio Capim Caulim S.A. Caulim Ipixuna do Pará (PA) 1996
Pigmentos (França)/Vale (Brasil)
Projeto Rio Capim Caulim Mendes Júnior (Brasil) Imerys Rio Capim Caulim S.A. (França) Caulim Ipixuna do Pará (PA) 1996
Mineração Buritirama no Pará Mineração Buritirama (Brasil) Bonsucex Holding (Brasil) Manganês Marabá (PA) 2002
Projeto Sossego Vale (Brasil) Vale (Brasil) Cobre Canaã dos Carajás (PA) 2004
Exploração da Bauxita em ALCOA (EUA) ALCOA (EUA) Bauxita Juruti (PA) 2005
Juruti (PA)
Mineração de Ouro no Amapá Alglo Gold (África do Sul), Grupo EBX NewGold (Canadá) Ouro Pedra Branca do 2005
(Brasil), Gold Corp (Canadá) Amapari(AP)
Exploração Ferro Amapá MMX Grupo EBX (Brasil), Anglo American Zamin (Índia), InternoviaNatural Ferro Pedra Branca do 2006
(Reino Unido) Resources (Emirados Árabes Unidos) Amapari(AP)

Projeto Bauxita Paragominas VALE (Brasil) NorskHydro (Noruega) Bauxita Paragominas (PA) 2007
Projeto Andorinhas Pará Reinarda Mineração (Autrália) Reinarda Mineração (Autrália) Ouro Floresta Do Araguaia e 2007
Rio Maria (PA)
Mineração Floresta do SIDEPAR (Brasil) SIDEPAR (Brasil) Ferro Floresta do Araguaia (PA) 2007
Araguaia
Mineração em Vila Nova no Eldorado Gold (Canadá) Eldorado Gold (Canadá) Ferro, Ouro Pedra Branca do 2011
Amapá Amapari(AP)
Projeto Onça Puma, Serra do Canico (Canadá) Vale (Brasil) Ferro, Níquel Ourilândia do Norte, 2011
Onça e Serra do Puma Parauapebas, Tucumã e
São Félix do Xingu (PA)
Mina do Tucano - Amapá Beadell (Austrália) Beadell (Austrália) Ouro Pedra Branca do 2012
Amapari(AP)
Projeto Salobo Vale (Brasil) Vale (Brasil) Cobre Marabá (PA) 2012
Exploração de Ouro no Serabi Mineração (Reino Unido) Serabi Mineração (Reino Unido) Ouro, Prata Altamira (PA) 2013
Tapajós
Projeto Serra Leste Vale (Brasil) Vale (Brasil) Ferro Curionópolis (PA) 2014
Projeto S11D Vale (Brasil) Vale (Brasil) Ferro Canaã dos Carajás (PA) 2016
Projeto Jacaré Anglo American (Reino Unido) Anglo American (Reino Unido) Níquel São Félix do Xingu(PA) Em Projeto
Projeto Nova Esperança Mineração Caraíba (Brasil) Eros Resources (Canadá) Cobre Tucumã (PA) Em
implantação
Projeto Volta Grande do Belo Sun (Canadá) Belo Sun (Canadá) Ouro Senador José Porfílho Em
Xingu (PA) implantação
Bauxita em Monte Dourado Mineração Santa Lucrécia (Brasil) Imerys (França) Bauxita, Alumina Monte Dourado (PA) Em projeto

100
Projeto de Ferro de Trairão e Talon Metals Corp (Canadá) Talon Metals Corp (Canadá) Ferro Bannach (PA) Em projeto
Inajá (PA)
Projeto Rio Verde e Pedra AvancoResources (Austrália) Avanco Resources (Austrália) Cobre Curionópolis e Água Azul Em projeto
Branca do Norte (PA)
Projetos Cobre Cristalino, Vale (Brasil) Vale (Brasil) Cobre Curionópolis, Canaã dos Em
118, Alemão Carajás,Parauapebas (PA) implantação
Alumina Rodon Votorantin Metais (Brasil) Votorantin Metais (Brasil) Bauxita Rondon do Pará (PA) Em
implantação
Projeto Rio Minas e Rio Claro MSP Fundo de Investimento em Participações MSP Fundo de Investimento em Ferro Parauapebas e Em Projeto
(Brasil) Participações (Brasil) Curionópolis (PA)
Projeto Irajá MSP Fundo de Investimento em Participações MSP Fundo de Investimento em Manganês, Ferro Redenção , Santana do Em Projeto
(Brasil) Participações (Brasil) Araguaia e Santa Maria
das Barreiras (PA)
Projeto Araguaia Horizonte Minerals (Brasil) Horizonte Minerals (Brasil) Níquel Redenção (PA) Em Projeto
Projeto Big Mac Horizonte Minerals (Brasil) Horizonte Minerals (Brasil) Ferro Floresta do Araguaia (PA) Em Projeto
Projeto Lontra Horizonte Minerals (Brasil) Horizonte Minerals Ferro São Félix do Xingu (PA) Em projeto
Projeto Tancredo e Lindoeste Codelco (Brasil) Codelco (Brasil) Ferro e Cobre São Félix do Xingu (PA) Em Projeto
Projeto Bacabal MBAGEO MBAGEO Ferro São Félix do Xingu (PA) Em Projeto
Projeto Vertical Grupo Leolar (Brasil) Grupo Leolar (Brasil) Ferro Curionópolis (PA) Em Projeto
Fontes: Elaborado a partir de DNPM (2017) e MILANEZ, B.; MALERBA, J.; WANDERLEY, L. J. (2012). Organização Bruno Malheiro, 2018.

101
O quadro deixa clara a importância do capital das grandes corporações na
implantação dos projetos de mineração na Amazônia, mas também ressalta o
alargamento exponencial da presença desse capital nas operações minerais nos últimos
20 anos. Se analisarmos a composição atual do capital nos projetos de exploração - com
a exceção da CVRD, que foi privatizada em 1997 virando Vale S. A. e hoje tem um
capital acionário ligado a grandes bancos e fundos de pensão, e outras empresas de
mineração de menor porte - grande parte dos projetos estão sendo executados por
grandes empresas estrangeiras de mineração, algumas, inclusive, dignas de nota, uma
vez que alargam suas estratégias de expansão para a Amazônia: como é o caso da
francesa Imerys, que controla a exploração de Caulim no nordeste paraense e expande
seus negócios para a bauxita pelo oeste do Pará; a norueguesa Norsk Hydro que controla
boa parte da cadeia do alumínio, tendo participação na produção de bauxita no
Trombetas, explorando uma mina de bauxita em Paragominas no nordeste paraense,
além de ter participação decisiva na produção da alumina e alumínio por meio da
Albrás/Alunorte em Barcarena. Nesse mesmo mercado do alumínio, também vale
salientar a entrada efetiva da norte-americana Alcoa, com decisiva participação na
exploração de bauxita no oeste do Pará, seja em Oriximiná, seja através de sua jazida
em Juruti. Outro mercado altamente controlado é o do ouro, principalmente por várias
empresas canadenses, como Eldorado Gold, a NewGold e a Belo Sun (imersa em
múltiplas irregularidades ambientais e violação de direitos de povos tradicionais em
projeto de exploração nas proximidades da UHE de Belo Monte) e pelas australianas
Reinarda Mineração e Beadell. Também digno de nota é o controle da norte-americana
Dow Corning (EUA) das jazidas de silício.
Esse controle internacional das jazidas e, inclusive, de alguns processos de
beneficiamento mineral que observamos claramente na Amazônia, não se realiza sem a
participação/favorecimento do Estado. A realização dessa pilhagem neocolonial exige
uma subordinação do Estado de Direito à racionalidade econômica da pilhagem, o que
significa que é só através de lógicas excepcionais de ordenamento que se justifica a
espoliação e se garante formas de superacumulação.

2.3.2 A SUSPENSÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO


A lógica subordinada de acumulação dependente que expressa os projetos de
exploração mineral na Amazônia precisa de artifícios jurídicos de exceção para se tornar
realidade prática. Esse processo de a viabilização da exploração mineral na Amazônia

102
pela suspensão de ordenamentos jurídicos será analisado, aqui, a partir da estratégia de
criar um arcabouço de legislações especiais para viabilizar os megaempreendimentos
minerais na Amazônia.
A criação de reservas nacionais, como da Reserva Nacional do Manganês na
Serra do Navio criada em 1946 por decreto-lei, que literalmente efetivou legalmente
uma área para a livre iniciativa exploratória da empresa ICOMI aliada à norte-
americana Bethlehem Steel Corp, estruturou-se como prática jurídico-política comum
para viabilização de empreendimentos minerais na Amazônia.
A criação da Reserva Nacional de Cobre e associados (RENCA) por meio do
decreto nº 89.404 de 24 de fevereiro de 1984 é exemplar para marcar os sentidos dados
à mineração na Amazônia em termos de criação de regulamentações especiais. O
decreto demarca uma área de cerca de 4,6 milhões de hectares entre os estados do Pará e
o então Território Federal do Amapá, construindo um conjunto de condicionantes para a
realização de pesquisa e exploração da área. No interior desse território demarcado, por
decreto, de interesse mineral - por conta de pesquisas anteriores ressaltarem o potencial
mineral da área em ouro, tântalo, manganês e ferro - também existiam e ainda existem
várias comunidades indígenas, como as etnias Aparai, Wayana, Tiriyó, Katxuyana e
Waiãpi, que, há época da criação da reserva, já amargavam anos de luta para
demarcação de suas terras. Entretanto, a escolha do governo foi, naquele contexto, criar
a reserva em detrimento de demarcar suas terras.
Após a criação da reserva, as lutas dos indígenas resultaram na criação das
Terras Indígenas Waiãpi (1991) e a Rio Paru d`Este (1997), além de várias unidades de
conservação terem sido também criadas em território da reserva, como o Parque
Nacional Montanhas do Tumucumaque, as Florestas Estaduais do Paru e do Amapá, a
Reserva Biológica de Maicuru, a Estação Ecológica do Jari, a Reserva Extrativista Rio
Cajarie a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru.
Entretanto, desde a década de 1990 há uma pressão grande de alguns deputados
e senadores no congresso nacional para a extinção da RENCA. A área de interesse
nacional criada por sobre múltiplos territórios de povos e comunidades tradicionais,
tornou-se, em certa medida, freio aos inúmeros requerimentos de processos minerários
existentes para a região - pelo menos 42 requerimentos de pesquisa na TI Waiãpi e 139
na TI Rio Paru d`Este (ISA,2005) - pelas condicionantes e exigências que criou para a
permissão de pesquisa e exploração mineral.

103
Se o ato de criação desconsiderou a diversidade de outros territórios e
territorialidades, criando uma zona de indistinção para o interesse nacional, anos depois,
após o reconhecimento pelo Estado desses múltiplos territórios e territorialidades, antes
desconsiderados, o ato de extinção da reserva, já sinalizado através da Portaria nº 128 de
30 de março de 2017 do Ministério de Minas e Energia (BRASIL, 2017), também se
expressa como mecanismo de exceção, pois desregulamenta para viabilizar a entrada da
mineração nas terras dos povos e comunidades tradicionais.
Outra expressão concreta dessas relações de exceção é a dinâmica de
exploração do estanho e cassiterita no estado de Rondônia extremamente marcada,
desde a década de 1950, por garimpos e empresas formadas por antigos seringalistas da
região. O Estado, através da Portaria Ministerial nº 195 de 15 de abril de 1970 do
Ministério de Minas e Energia, simplesmente passou a proibir a garimpagem manual na
Província Estanífera de Rondônia, com o claro objetivo de conter outras formas de
mineração no território que não a mineração industrial. Nestes termos, a ―legislação foi
alterada para que a garimpagem manual fosse encerrada e tecnologia fosse utilizada
para o processo da lavra industrial‖ (SANTOS, 2014, p. 65).
Mas o Grande Projeto que melhor sintetiza a necessidade suspensão normativa
ou criação de normas especiais para a implantação da mineração industrial na Amazônia
é, sem dúvida, o Programa Grande Carajás, que já foi apresentado em linhas gerais, mas
que a partir daqui será apresentado em mais detalhes até porque a dinâmica de
exploração mineral que iremos estudar mais detidamente nos capítulos posteriores,
começa através do PGC.
O PGC é um programa que integra vários projetos e institui a leitura de
desenvolvimento, como pólos de crescimento a partir de uma indústria motriz, pensada
pelo POLAMAZÔNIA em fins da década de 1970 e início da década seguinte. O
programa, portanto, se espalha territorialmente em vários pólos, particularmente no
Pará, a partir de projetos específicos, como o Projeto Ferro Carajás, que, além da
exploração de ferro das minas norte da serra dos Carajás, também construiu a Ferrovia
Carajás-Itaqui, com 892 Km, e as instalações do Porto de Ponta da Madeira em Itaqui
no Maranhão; o projeto de incentivo à instalação de siderúrgicas para a produção de
ferro-gusa, particularmente nos municípios de Marabá (PA) e Açailândia (MA), foram
22 ao todo; o projeto Trombetas de exploração da bauxita em Oriximiná (PA); o projeto
de transformação da bauxita em alumínio, através das empresas Albras/Alunorte em
Barcarena (PA) e Alumar em São Luis (MA); além da construção da Hidrelétrica de

104
Tucuruí que até hoje fornece energia subsidiada às empresas que industrializam do
alumínio.
Um conjunto de estruturas institucionais e regimes normativos especiais foram
desenhados para garantir a implantação do conjunto de projetos que estava presente no
Programa Grande Carajás. O primeiro decreto-lei criado especificamente ao Programa é
o de nº 1.813 de 24 de novembro de 1980, que, por sua vez, institui um regime especial
de incentivos aos empreendimentos integrantes do PGC, além de criar uma estrutura
institucional especial para geri-lo, qual seja, o Conselho Interministerial do Programa
Grande Carajás, ligado diretamente à secretaria de planejamento da presidência da
república, entidade política que poderia ―exercer as atribuições de outros órgãos e
entidades da administração federal, diretamente ou através de órgão executivo próprio‖
(BRASIL, 1980a).
No mesmo dia é também lançado o Decreto-lei 85.387, que já define a
composição e atribuição do Conselho Interministerial criado, concedendo um
tratamento especial e preferencial a um conjunto de medidas na região de abrangência
do PGC. São 12 itens, valendo destacar a ―concessão, arrendamento e titulação de terras
públicas‖, o estabelecimento de ―contratos para o fornecimento de energia elétrica‖ e a
―autorização para o funcionamento de empresas de mineração‖ (BRASIL, 1980b, n/p).
Num mesmo dia, portanto, dois decretos criam um regime especial de
incentivos e uma estrutura política de exceção, suspendendo as relações institucionais
na região, além criar garantias de tratamento diferenciado à questão fundiária,
energética e de concessão e autorização de lavra dos minérios.
A preocupação particular com a questão fundiária, é bom que se alerte, não
vem apenas da vontade de apropriação dos espaços minerais, estamos falando, nesse
particular, principalmente ao que se refere ao Projeto Ferro Carajás, do sudeste do Pará,
uma região altamente marcada por conflitos agrários, na qual, ainda no início da década
de 1970, pelos caminhos do rio Araguaia, um movimento organizado pelo Partido
Comunista do Brasil (PC do B) contra o regime militar brasileiro eclodiu entre os
estados do Pará, Maranhão e Tocantins (na época Goiás) e foi violentamente reprimido
por um aparato militar de repressão que se instalou na região, comandado pelo major do
exército Sebastião Curió, que, após vários assassinatos e o aniquilamento das lideranças
da Guerrilha do Araguaia, também montou um cerco repressor de controle no garimpo
de Serra Pelada, uma concentração humana surgida no início da década de 1980, que

105
figurava ao Estado brasileiro como um perigo, após emergência do movimento
guerrilheiro na região27.
Vale ainda ressaltar que em fevereiro do mesmo ano do lançamento do PGC,
1980, o decreto-lei n° 1.767 de 1° de fevereiro de 1980, cria o Grupo Executivo de
Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT), para estabelecer um regime especial de
regularização fundiária no sudeste do Pará, norte de Goiás (hoje Tocantins) e oeste do
Maranhão. Esse grupo, em realidade, ratifica o decreto n° 1.523, de 3 de fevereiro de
1977, que já criava uma coordenadoria especial do Instituto de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) na região em questão, considerada ―indispensável à segurança e ao
desenvolvimento nacional, ouvida a secretaria geral do Conselho de Segurança
Nacional‖ (BRASIL, 1977).
O GETAT também estava subordinado ao Conselho de Segurança Nacional e
atuava particularmente no espaço abrangido pelo Projeto Ferro Carajás, com destaque
especial aos locais de concentração das jazidas minerais na Serra dos Carajás.
Nestes termos, o PGC se estrutura não só pela suspensão normativa e
institucional, pela criação do Conselho Interministerial e pelo regime especial de
incentivos fiscais, mas se sustenta, também, por sobre formas autoritárias de
regularização fundiária completamente vinculadas ao Conselho de Segurança Nacional.

2.3.3 A DEFINIÇÃO DE ESPAÇOS DE INFLUÊNCIA DIRETA


O terceiro processo identificado na dinâmica de implantação dos Grandes
Projetos de Mineração na Amazônia é a definição de espaços com regras e ordenamento
construídos e/ou influenciados pelas empresas. Esse processo será lido a partir de duas

27
O garimpo de Serra Pelada, descoberto em 1979, já no ano de 1980 atraiu, pelo menos, 30 mil
garimpeiros, de modo que tal aglomeração humana, seis anos após o aniquilamento violento da Guerrilha
do Araguaia, foi tratada como questão de Estado e Segurança Nacional. O garimpo é, nesse sentido,
talvez a maior expressão de todas as suspensões normativas em áreas de mineração na Amazônia.
Sebastião Curió chega à Serra Pelada para fechar o garimpo sob ordens federais, mas a operação de
fechamento foi frustrada, apesar de ter criado um aparato de vigilância, controle e punição comandado
por Curió no local. São vários os relatos de chacinas, impedimento para a organização de cooperativas e
de mortes envolvendo o aparato de repressão, com a intenção de deixar o clima cada vez mais tenso, que
caminhasse ao fechamento do garimpo. Não podemos esquecer o massacre de São Bonifácio que ocorreu
em Marabá na ponte sobre o rio Tocantins, em 29 de dezembro de 1987, quando garimpeiros de Serra
Pelada protestavam contra o fechamento do garimpo, e a Polícia Militar do Pará, com o auxílio do
Exército Brasileiro, alvejou a multidão resultando em 69 garimpeiros desaparecidos. O controle estatal de
Serra pelada, erguido sobre repressão e morte, rendeu à Caixa Econômica Federal, segundo o Banco
Central, mais de 900 quilos de ouro, sendo que garimpeiros até hoje cobram do banco um montante de R$
400 milhões.

106
estratégias: a primeira a criação de Company Towns28, ou seja, cidades econômica e
politicamente geridas pelas empresas; e pela criação de unidades de conservação em
áreas de mineração na Amazônia com influências das mineradoras. Dois processos
distintos, mas que podem ser lidos de forma integrada. O primeiro como a produção de
espaços urbanos altamente segregados de seu entorno, com grande densidade técnica,
que garantem o controle do trabalho na dinâmica de gestão dos processos de extração,
circulação e exportação mineral e o segundo como uma estratégia, no âmbito da
legislação ambiental, de resguardar os recursos e construir barreiras ambientais a outros
usos do território.
Coelho et al (2002) define muito bem a geografia entre os territórios das
empresas exploradoras de minérios na Amazônia e sua periferia, como uma geografia
desigual. As cidades-empresa, nesse sentido, talvez sejam a expressão mais nítida dessa
desigualdade, uma vez que nascem, única e exclusivamente, para suprir as necessidades
de organização da força de trabalho das empresas. Nesse sentido, são espaços
amplamente conectados às redes transnacionais de mercado das empresas, mas
construindo uma dinâmica espacial de autosegregação, sendo que seus serviços e
infraestrutura contrastam de forma abissal em relação ao seu entorno, onde, geralmente,
crescem processos de ocupação espontânea precários por parte da população atraída
pelos projetos.
Rocha (1998) caracteriza muito bem essas cidades por quatro processos
integrados, quais sejam: representam uma extensão da linha de produção dos
empreendimentos; são planejadas e já nascem com equipamentos urbanos, o que lhes
afasta dos padrões de urbanização regional; possuem relativa autonomia econômica e
política centralizando decisões; e expressam uma concepção urbanística fechada, em
forma de enclave, que assegura a funcionalidade das atividades da empresa.

28
As Company Towns ou Cidades-Empresa não se apresentam como espaços urbanos planejados
especificamente no contexto de projetos da Indústria Mineral na Amazônia. O primeiro empreendimento
nesse contorno na região foi através de um mega projeto agroindustrial de Henry Ford que, em 1927,
pretendendo sair do monopólio dos seringais do sudeste asiático controlados pelos britânicos, constrói
uma plantation de seringueiras às margens do rio Tapajós numa área concedia pelo Governo do Estado de
14.568 km², construindo, também uma cidade para abrigar os trabalhadores e todo setor administrativo do
novo negócio. A cidade de Fordlândia foi erguida, mas o empreendimento não obteve sucesso pelo
aparecimento de pragas nas seringueiras plantadas muito próximas umas das outras. Em 1945, Ford ainda
tentou realocar as plantações para Belterra, construindo uma outra cidade, mas o projeto também foi
abandonado.Após Fordlândia e Belterra, varias outras cidades-empresas foram criadas na Amazônia em
projetos agroindustriais, como Monte Dourado (projeto Jari Celulose), projetos de mineração, como
demonstra o quadro, além de Usinas Hidrelétricas, como a Vila Permanente construída no contexto de
edificação da UHE de Tucuruí.

107
É preciso apenas fazer uma ponderação em relação à noção de enclave,
altamente difundida na análise dessas cidades e também dos Grandes Projetos na
Amazônia. Compreendemos que a noção de enclave só vale se apenas enxergamos essas
cidades ou os projetos a partir deles próprios sem considerar que participam de uma
dinâmica de atração populacional e mobilização da força de trabalho que alteram,
sobremaneira, as dinâmicas de produção do espaço e as relações de força e controle do
território nas regiões onde se instalam. Nesse sentido, ―insistir então no conceito de
enclave significaria continuar sem saber qual é a relevância de tais projetos em termos
de mudanças nas formas produtivas preexistentes e nas relações político-sociais e
espaciais até então vigentes‖ (COELHO et alli, 2005, p. 74).
São várias as experiências de Company Towns relacionadas a projetos de
mineração na Amazônia, a implantação desses projetos envolta num sem número de
suspensões normativas, criam seus próprios espaços urbanos exclusivos marcando a
distinção com seu entorno, sendo a paisagem mais nítida das relações de exceção
construídas pelos projetos. Essas cidades-empresa ao criar suas próprias normas de
segurança, controle e organização, consolidam territórios em ―suspensão‖, inseridos nas
configurações administrativas e relações de poder estatal existentes nos espaços que se
instalam, sem necessariamente participar dessas configurações, uma vez que obedecem
aos seus próprios ditames normativos.
O quadro abaixo demonstra não apenas essas experiências urbanas, em
contextos de mineração, em uma seqüência temporal na Amazônia, mas também
destaca quais relações (projetos, empresas, situação política) que sustentam tais
empreendimentos, bem como a complexidade e diversidade territorial do entorno dessas
realidades urbanas exclusivas.

108
Quadro 4 – Cidades-Empresa criadas pela Indústria da Mineração na Amazônia
Município População*
Cidades- Grande Empresa Área
de Fundação Situação Política Distâncias Diversidade Territorial do Entorno
Empresa Projeto Fundadora Ocupada Ano Hab
inserção
Macapá/ a Exploração Administrado pela Cerca de 200 km da Comunidades do Cachaço do Amapari,
partir de do Prefeitura de Serra do 220 ha capital Arrependido do Amapari, Água Branca, 1980 1.739
Serra do 1992 Serra Manganês Navio a partir de Macapá Sucurijú, Capivara, Centro Novo. Hoje é 1990 1.564
1959 ICOMI
Navio do Navio na Serra do 1992 um município emancipado nas 2000 3.294
Navio proximidades da Flona do Amapá e 2010 4.380
RESEX Beija-Flor Brilho de Fogo.
Macapá/ a Exploração Administrado pela Cerca de 92 20 Km da Vila Eslebão, comunidades quilombolas de
partir de do Prefeitura de Santana ha Capital Curiau , Conceição do Macacoari, Ambé,
1987 Manganês do Amapá a partir de Macapá São Pedro dos Bois, Mel da Pedreira,
1980 1.414
Santana do na Serra do Comunidade do Rosa, São José do Mata
Vila 1990 1.285
Amapá 1962 Navio ICOMI Fome, Ilha Redenda, Engenho do Matapi,
Amazonas 2000 -----
São Raimundo do Pirativa, Cinco Chagas
2010 -----
do Matapi e Lagoa dos Índios. Hoje
tornou-se o bairro Vila Amazonas da
cidade de Santana do Amapá
Ariquemes Projeto Administrado pela Sem 130 km de Foi construída em uma região de antigos
1980 800
(RO) Exploração Empresa até sua informações Ariquemes seringais, muitos garimpos e nas
Vila de Mineração 1990 -----
1970 da desativação e 210km proximidades de projetos de colonização
Cachoeirinha Oriente Novo 2000 -----
Cassiterita de Porto dirigida. Também nas proximidades das
2010 -----
Velho terras indígenas dos Tenharins.
Monte Projeto Administrado pela Sem 50 Km de Foi construída em região de antigos
1980 1000
Negro Exploração Mineração Empresa, passando a informações Ariquemes seringais, muitos garimpos e nas
Vila de 1990 -----
(RO) 1979 da Taboca / Grupo ser vila de Monte e a 280 de proximidades de projetos de colonização
Massangana 2000 -----
Cassiterita Paranapanema Negro em 1992 Porto dirigida. Também em suas proximidades
2010 -----
Velho está a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
Oriximiná Exploração Distrito de Oriximiná 500 ha 70km da Comunidades quilombolas de Boa Vista,
(PA) da Bauxita administrado pela Sede de Água Fria, Trombetas, Erepecuru, Alto -----
1980
- Projeto Empresa MRN Oriximiná trombetas 1 e 2, Ariramba, Cachoeira -----
Porto Mineração Rio 1990
1979 Trombetas e cerca de Porteira, dentre outras e da terra indígena 2.422
Trombetas do Norte 2000
800km da Kaxuyana-Tunayana. Também é cercada
2010 2.951
capital pela Reserva Biológica do Trombetas e
Belém pela Floresta Nacional Saracá- Taquera.
Presidente Projeto Mineração Administrado pela Sem 248km de Vila construída no interior da Terra 1980 -----
Vila de Pitinga Figueiredo 1982 Exploração Taboca / Grupo Empresa, Hoje informações Manaus Indígena dos WaimiriAtroarí. 1990 2.500
(AM) da Paranapanema MINSUR 2000 -----

109
Cassiterita 2010 2.500
Marabá e a Projeto Administrado pela 308 ha 28km da A vila fica no interior da FLONA de
partir de Ferro Empresa Vale S. A. sede de Carajás, nas proximidades da TI Xikrin do
1988 Carajás Parauapeb Catete, da FlonaTapirape-Aquiri e da APA
1980 ------
Parauapeb as e 879km do Igarapé gelado, próxima a norte das
1991 5.068
Carajás as 1985 CVRD da Capital vilas Paulo Fonteles e Sansão, a leste dos
2000 4.240
Belém assentamentos Dina Teixeira, Analício
2010 3.959
Barros, Palmares I e II, e à Sul das vilas
Planalto e Bom Jesus e assentamento Sol
Nascente.
Barcarena Projeto Após a privatização Cerca de 72 30 km da Vila do Conde, Caripy, São Francisco,
(PA) Albras/Alu da CVRD (1997) a ha Capital Itupanema e Cafezal, além de comunidades
norte administração Belém quilombolas e indígenas dos sítios São 1980 -----
Vila dos municipal foi sendo João, Cupuaçu, Conceição, São Lourenço e 1990 7.489
1985/86 Albras/Alunorte
Cabanos gradualmente São Sebastião de Burajuba. 2000 7.600
transferida à 2010 7.000
Prefeitura de
Barcarena
Fonte: Elaborado a partir de Rodrigues (2007), com adaptações e inclusões a partir de dados do IBGE e das empresas, organizado por Bruno Malheiro, 2018.

110
Uma rápida análise do quadro nos mostra que as Company Towns se espalham
em múltiplos projetos de mineração na Amazônia Oriental, mas também na Amazônia
Ocidental. A instalação de tais cidades não revela apenas relações de desigualdade com
realidades urbanas de seu entorno, como no Caso do Núcleo Urbano de Carajás e a
cidade de Parauapebas, ou mesmo a Vila dos Cabanos e a realidade urbana de
Barcarena, também revelam relações de diferença pelo privilégio dado à mineração em
relação aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais, uma vez que
existem cidades implantadas em terras indígenas, como o caso da Vila de Pitinga no
Amazonas instalada no território de vida dos Waimiri Atroarí, e o caso de Porto
Trombetas, instalada sem considerar as várias comunidades quilombolas do Trombetas.
A realidade do entorno das cidades-empresa apresenta uma complexidade e diversidade
territorial que não só não aparece em tais realidades urbanas, estruturadas num padrão
urbanístico fechado, como também são negadas por tais cidades, seja por processos de
apropriação territorial, seja ainda por toda estrutura de vigilância, segurança e controle,
que cuidam para que essa diversidade permaneça, apesar de perto, distante.
Ainda sobre a definição de territórios com regras e ordenamento construídos
e/ou influenciados pelas empresas, o segundo processo identificado é a criação de
unidades de conservação que são influenciadas por mineradoras, o que é digno de nota
quando percebemos que são 6.163 processos de mineração registrados em unidades de
conservação federais e estaduais na Amazônia Legal (RICARDO; ROLLA, 2006).
Vários são os exemplos que podemos dar, como a Reserva Biológica do Trombetas
(1979) e a Floresta Nacional Saracá-Taquera (1989), criadas no contexto de exploração
da bauxita no oeste do Pará, com forte influência da Mineração Rio do Norte; as
distintas unidades de conservação para resguardar as jazidas de Carajás extremamente
influenciadas pela empresa Vale, como a Floresta Nacional de Carajás (1998), a
Reserva Biológica do Tapirapé (1989), a Floresta Nacional do Tapirapé-Aquiri (1989) e
a APA do Igarapé Gelado (1989) (WANDERLEY, 2008). A criação da Floresta
Nacional do Jamari pelo Decreto nº 90.224 de 25 setembro de 1984, com uma área de
223 mil hectares no estado de Rondônia, também se coloca como uma forma de
resguardar a cassiterita e o estanho descobertos e explorados, com influências da
empresa canadense BRASCAN.
O caso particular da criação da Floresta Nacional de Carajás, que será mais
bem analisado em momento posterior nesse trabalho, é emblemático para verificarmos
como a exploração mineral, particularmente na Amazônia, legitima-se por regimes de

111
exceção, uma vez que a referida FLONA foi criada por manobras governamentais para
garantir a exploração mineral da Companhia Vale do Rio Doce da serra de Carajás
mesmo depois de sua privatização em 1997.
Outro caso exemplar que demonstra a pressão de interesses mineradores na
definição de unidades de conservação é a criação de uma Floresta Nacional e vários
Parques Nacionais no interior da Terra Indígena Yanomami. Diferente da maioria dos
casos demonstrados até aqui as unidades de conservação não foram criadas no sentido
de resguardar os recursos, mas de permitir possíveis incursões mineralógicas nas terras
indígenas. Vale lembrar que esse processo já se dá na nova república num claro manejo
das políticas ambientais para viabilizar interesses empresariais minerais.
Albert (1991) chega a afirmar que a definição da Terra indígena Yanomami se
transformou na imposição de uma superposição de figuras jurídicas indigenistas e
ambientalistas incompatíveis, criando um arranjo territorial ambíguo para escamotear,
diante da opinião pública internacional, um real ataque aos direitos territoriais dos
indígenas.
A criação da Floresta Nacional do Amazonas, em particular, permitiu a
regulamentação de atividades garimpeiras na terra indígena que hoje, na região do
interflúvio Orinoco-Amazonas, possui 228 comunidades indígenas e pelo menos 648
processos minerários em seu território, além de sofrer com altos índices de
contaminação de mercúrio (RICARDO; ROLLA, 2013).
Três processos se integram na construção de relações que vão definindo
processos de territorializações de exceção através dos Grandes Projetos de mineração na
Amazônia. A vinculação das decisões políticas em torno da mineração aos interesses de
empresas transnacionais marca o conjunto de relações de força em que se inserem os
megaempreendimentos minerais, sendo que a suspensão normativa, que se torna regra
de implementação dos projetos, garante os regimes especiais, seja em termos de
incentivos e isenções fiscais, seja em termos de flexibilização da legislação, condição
necessária para o estabelecimento das condições objetivas para a exploração, que, a
partir daí, serão conduzidas pelo planejamento de espaços urbanos exclusivos,
marcando uma distinção em relação à diversidade social e territorial do entorno que é
deixada longe dos empreendimentos, não apenas pelo controle das cidades-empresas,
mas pelas barreiras ambientais criadas através de várias unidades de conservação.
Nesses termos, são construídas mediações espaciais capazes de barrar outras
formas de uso e controle do território, estratégias espaciais capazes de resguardar os

112
recursos e evitar o direito de povos e comunidades de exercerem suas formas de
territorialidade.

2.3.4 A “ADMINISTRAÇÃO” DAS POPULAÇÕES DO ENTORNO


A necessidade de fluidez dos minérios explorados na Amazônia, desde a
ICOMI, já delineara a necessidade de uma infraestrutura logística para além dos
territórios de extração que viabilizasse a exportação, uma vez que é a demanda e
interesses internacionais que justificam os investimentos extrativos.
A consolidação dos eixos de desenvolvimento ou eixos de integração como
tecnologias políticas a viabilizar Grandes Projetos Minerais na Amazônia tornou a
preocupação com as áreas necessárias para a realização da dinâmica de exportação,
elemento central na organização do Estado e das empresas de mineração.
O Convênio assinado em 1982, entre a então estatal Companhia Vale do Rio
Doce (CVRD) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para a elaboração de estudos
técnicos dos territórios indígenas afetados direta e indiretamente pelo Programa Grande
Carajás, talvez tenha sido o balão de ensaio de uma preocupação da racionalidade
corporativa, nesse momento estatal, em gerir as populações que podem significar risco
às instalações industriais e logísticas. Foram cerca de 90 aldeias e 24 postos indígenas
incluídos no convênio, o que soma uma população indígena de cerca de 12.500 índios,
entre os estados do Maranhão, Pará e Tocantins (VIDAL, 1986).
A pressão de organismos internacionais para a assinatura do convênio,
particularmente através do Banco Mundial, delineia que essa ―administração‖ de
populações afetadas por megaempreendimentos minerais, passa a ser uma tônica na
lógica de governo do território, em se tratando de Grandes Projetos Minerais, o que
expressa uma ampliação do foco e da escala de preocupações da racionalidade produtiva
de exportação ligada à mineração.
Na segunda parte desse trabalho, ―o Diagrama‖, essas marcas de uma geografia
de exceção por meio de Grandes Projetos de Mineração, particularmente esta última,
serão largamente debatidas a partir da racionalidade de um projeto em específico. Mas
essas quatro bases de leitura, por agora, já nos permitem reconstruir os olhares acerca da
mineração na Amazônia, que, vista dessa forma, não é parte de uma equação prévia de
desenvolvimento, nem uma dinâmica econômica inserida em um espaço vazio, ou uma
estratégia de crescimento econômico frustrada. Não é mais um enclave, ou uma ilha de
prosperidade em meio a um mar de desigualdade que, visto assim, guardaria o germe de

113
mudanças prósperas. Não, a mineração industrial na Amazônia não combina
definitivamente com o seu discurso de progresso que tanto se difundiu em políticas
públicas, estratégias empresariais e trabalhos acadêmicos.
Os Grandes Projetos Minerais deixam de ser um farol a partir do qual guiamos
os sentidos das nossas problematizações, deixam de ser um objeto que nos envolve em
sua racionalidade, não nos permitindo o estranhamento fundamental ao processo de
construção do conhecimento, deixam, enfim, de ser o centro de sentido de nossas
análises a normalizar os olhares para a região, passando a serem compreendidos a partir
das relações de poder-saber que os tornam possíveis: como arquivos que incluem a
Amazônia na política nacional por sua exclusão, moldando projetos ―grandes‖ do
tamanho do distanciamento da região ao ideário de nação; como dispositivos que
materializam ações que suspendem regulamentos e criam mecanismos especiais
configurando territorializações que interditam a vida em nome do progresso.
Desse modo, são as vidas interditadas por esses projetos que nos contam que o
estado de exceção que eles produzem na região é a regra. É falando a partir das ruínas
desses megaempreendimentos minerais que escapamos de sua racionalidade no plano
analítico. Por isso, essa primeira parte do trabalho, ―o Arquivo‖, finaliza tentando tornar
o grito de múltiplos povos e comunidades tradicionais sangrados pela mineração, o
modo de recolocar o mapa os silêncios da história.

114
CAPÍTULO 3

UMA GEOGRAFIA EM RUÍNAS: MINERAÇÃO E


TERRITORIALIZAÇÃO DE EXCEÇÃO

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus.


Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que
ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca
dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse
aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do
paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não
pode mais fechá- las. Essa tempestade o impele irresistivelmente
para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado
de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
progresso.
Walter Benjamin

Nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer


Walter Benjamin

115
Se até aqui fomos guiados pela tese de Benjamin (1993) de que a tradição dos
oprimidos nos mostra que o estado de exceção que vivemos é regra, a partir daqui, outra
de suas teses de história nos move. O anjo da história que, ―onde nós vemos uma cadeia
de acontecimentos, [...] vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína‖ (BENJAMIN, 1993, p. 226), começa a nos guiar.
É bom dizer que Benjamin, entre o romantismo alemão, o messianismo judeu e
o materialismo histórico, como assim bem destaca Lovy (2005) acerca de suas
influências, denuncia a pobreza de experiência que produz a modernidade e a difusão e
reprodução da técnica, critica o continuísmo histórico do progresso e interroga filosofias
da história burguesas, reposicionando o olhar contra a empatia aos vencedores e contra
as metanarrativas lineares. Isso tudo para abandonar o elemento épico da história e,
assim, demonstrar as catástrofes resultantes da racionalidade instrumental da vida
moderna, bem como as violências que o fascismo foi capaz de tornar possível. É por
esse reposicionamento do olhar historio que as ruínas tornam-se fragmentos
significativos de uma história descontínua, estilhaços resultantes da barbárie do
progressismo, o que nos faz ver a história a contrapelo, história, aliás, que, por esse
olhar, torna-se um ato de reorganizar fragmentos, de modo que o passado não se deixa
mais fixar, pois é uma imagem estratégica para as lutas do presente (BENJAMIN, 1993,
2016).
Dessa forma, a tempestade do progresso que impele o anjo da história de
Benjamin, para as interpretações sobre os Grandes Projetos minerais na Amazônia,
assume a alcunha de desenvolvimento, que mais poderia ser chamado de
(des)envolvimento, como bem lembra Porto-Gonçalves (2003), por tirar do
envolvimento comunitário ou cortar as formas de envolvimento com a natureza de
povos e comunidades tradicionais. Por suas grades, as análises se escondem da
realidade para fazer falar projeções e a preocupação com o futuro, o que vai tirando do
caminho aquilo que destoa dos padrões de racionalidade que forjam o nosso pensar.
As trilhas do desenvolvimento abertas no coração da Amazônia por meio de
projetos de mineração, não obstante sua luminosidade discursiva que as colocam num
caminho de acertos, transformaram vidas humanas em objeto, povos e comunidades em
extensões de uma natureza a ser dominada, mundos de vida em perigo e risco. Assim,
essas trilhas são feitas de escombros, fragmentos de mundos despedaçados. Se a casa
grande preenchia a vida de uns de funcionalidade, conforto e elegância por sobre o
trabalho forçado, o extermínio e a morte de muitos de pele negra, os projetos grandes na

116
Amazônia ampliam os processos de acumulação de empresas transnacionais e seus
investidores no mercado de ações, ao passo que retiram as condições de existência de
povos e comunidades tradicionais.
Tendo em conta que ―a crítica da violência é a filosofia de sua história‖
(BENJAMIN, 2013, p. 155), a tarefa aqui, portanto, é transformar o espaço da memória
dos Grandes Projetos Minerais em um território em disputa, para se fazer ver ruínas
onde só se enxergam grandes construções, uma vez que ―articular historicamente o
passado não significa conhecê-lo ‗como ele de fato foi‘, significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.‖ (BENJAMIN, 1993,
p. 224). Nesses termos, esse capítulo se divide em três partes, na primeira
questionaremos o sentido epistemológico dado pela ideia de Grande Projeto, na segunda
iremos nos centrar nas ruínas produzidas por esses megaempreendimentos e, na terceira,
faremos uma tentativa de síntese desta primeira parte do trabalho.

3.1. GRANDES PROJETOS OU PROJETOS MONSTRUOSOS?


Bourdieu (2001) nos alerta para o fato de que as categorias que tornam possível
o mundo social são, também, o que está em jogo na luta política. Por isso, a análise que
fizemos acerca dos grandes projetos de mineração na Amazônia e os processos de
territorialização de exceção, não poderia aceitar de bom grado a categoria Grandes
Projetos sem, pelo menos, identificar outras vozes que a redefinem, uma vez que a luta
por conservar ou transformar o mundo é também a luta pela conservação ou
transformação das categorias de percepção deste mundo, o que nos dá, nesse momento,
segurança para fazer falar, como mecanismo de ativação da potência crítica de nossas
análises, as definições construídas por uma mulher, cuja casa sempre foi o ponto de
encontro para múltiplas mobilizações, o lugar de alento para famílias expulsas da volta
grande do Xingu e das baixadas de Altamira e que, também, teve sua morada destruída
e seus sonhos, plantados naquele chão, estilhaçados pela ganância de um
empreendimento. Estamos falando de Antônia Melo, uma das principais lideranças do
movimento Xingu Vivo contra Belo Monte. Pelos meandros de sua trajetória, Antônia
alarga nossas maneiras de ver dizendo:
Quando se fala dos Grandes Projetos na Amazônia, não tem nada de
grande, porque grande pra nós é o que enobrece, é o que dá alegria, é
o que promove a vida, o meio ambiente, é, enfim, o que dá felicidade
e dá vida. Esses projetos não são grandes, são monstruosos, são
monstros que são jogados na Amazônia pra detonar, pra acabar, pra

117
matar tudo (Antônia MELO, registro durante o seminário ―Agendas
em disputa na Mineração‖ realizado pelo IBASE em 2016).

Antônia, em poucas palavras, retraça os ângulos, reconstrói o olhar, desfaz


mitos e alerta para os sentidos escondidos em tantas e tantas análises sobre a região
Amazônica feitas sempre com a referência dos ―grandes‖ empreendimentos. É fato que
os ditos grandes projetos, agora em letra minúscula, foram o motor de expansão dos
processos capitalistas na Amazônia. Entretanto, também se tornaram um conceito-visão
de mundo, um estreitador de horizontes, ou melhor, tornaram-se o centro difusor das
formas de compreensão regional. Dos livros didáticos aos teóricos de maior destaque, o
mundo amazônico vai se agregando ao centro de sentido que é um grande projeto. Toda
a complexidade regional - os outros que não se assemelham ao que os projetos
introduzem - é lida pelo que lhe falta, nunca pela sua riqueza e diversidade. Só
conseguimos perceber os processos de territorialização de exceção se tivermos a
coragem de olhar de eles também são dispositivos epistemológicos que produzem a não
existência da diversidade territorial regional.
Os grandes projetos na Amazônia, portanto, não são apenas um plano
geopolítico para a modernidade através da expansão de uma malha de controle técnico e
político (BECKER, 2001), nem apenas grandes objetos, expressão do meio técnico-
científico-informacional na Amazônia (SANTOS, 1995), são, antes de tudo, um modo
de compreensão, uma referência de análise, um dispositivo epistemológico e ontológico.
A maneira de ver pela grandeza de projetos encadeia relações, leituras de mundo a partir
de um centro de onde parte o olhar: os processos de modernização capitalistas, que são
também de colonialidade, do poder (QUIJANO, 2009), do saber (LANDER, 2009), do
ser (MALDONADO-TORRES, 2007), e da natureza (WASH, 2009, 2012)29.
Enrique Dussel (1986) nos fala que a leitura colonial do mundo pode ser posta
numa expressão da dialética da totalidade, ou numa ontologia da totalidade, na qual há
um ser em si originário, ao qual tudo se refere. O outro, portanto, não é um modo de
compreensão, mas de incompreensão, pois é exterioridade: a Amazônia como risco à
soberania, um fora absoluto do Estado e da Nação em criação. É necessário, portanto, a

29
Para Caterine Wash (2009, 2012) a razão neoliberal se manifesta a partir de quatro formas distintas e
integradas de colonialidade. A colonialidade do poder que estabelece um sistema de classificação social
hierárquico em termos de raça e gênero; a colonialidade do saber que impõe o eurocentrismo como a
perspectiva única de conhecimento, descartando a existência e viabilidade de outras racionalidades
epistêmicas; a colonialidade do ser que se exerce por meio da inferiorização, des-humanização e
fetichização do ser humano; e a colonialidade da mãe natureza ou que, ao dissociar razão, cultura,
sociedade e natureza, impõe uma lógica de ver, sentir e pensar o mundo, tendo o humano como
dissociado da mãe natureza (WASH, 2009, 2012).

118
produção de uma dialética que possibilite uma abertura da totalidade à provocação da
exterioridade.
Dessa maneira, o alerta de Antônia Melo reclama a existência de sentidos
distintos, horizontes de destino, pontos de vista, lógicas de realização do viver
diferentes. Situar-se a partir daí significa alterar sobremaneira as categorias de
observação e análise da realidade, uma vez que os sentidos de grandeza, antes
impregnados da imagem das grandes obras, começam a mudar de direção e contemplar
a vida, as condições necessárias para a realização da existência. Nesses termos, o que
significava grandeza começa a ganhar contornos de destruição, pois é justo o que
arranca e mata a possibilidade da vida. Um giro epistemológico se processa quando
saímos da tempestade do progresso às ruínas produzidas por ela, ou quando saímos dos
tais grandes projetos às suas territorializações de exceção. Entretanto, mais um giro se
faz quando aquilo que se ataca pela monstruosidade de projetos, não é visto e pensado
apenas como escombro, mas como a possibilidade da vida.
Talvez Benjamin tenha nos trazido até aqui para que nos encontrássemos com
Antônia Melo.

3.2. UMA GEOGRAFIA EM RUÍNAS: POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E A

MINERAÇÃO NA AMAZÔNIA

Estradas, grandes empresas de mineração, fronteira agrícola, latifúndios,


cidades e mais cidades surgidas à beira de estradas: essa é a gramática de entendimento
do que se convencionou chamar de desenvolvimento na Amazônia. Entretanto, essa
maneira de ver cria suas zonas de indiferença materializadas em política, cria, portanto,
verdadeiras zonas de extermínio, expressas não apenas na aceleração das mortes no
campo, pela elevação de conflitos fundiários, mas notadamente no massacre de povos
indígenas e outros povos e comunidades tradicionais.
Roberto Esposito, tratando dos significados do genocídio para melhor
compreensão da biopolítica, adverte que ―dado que o sujeito do genocídio é o Estado e
que cada Estado é criador do próprio direito, dificilmente o que o cometer fornecerá
uma definição jurídica do crime perpetrado por ele mesmo‖ (ESPOSITO, 2017, p. 173).
Por isso, caminhar pelas ruínas de uma história contada pelas grandes construções passa
a ser a maneira de tornar mais claro o estado de exceção em toda sua maneira de exercer
o poder de morte.

119
Nesse particular, Foucault (2008, 2010), quando demonstra que, para o
exercício da razão do Estado, torna-se necessário o ajustamento das populações aos
movimentos econômicos, pergunta-se de que maneira a tecnologia do poder emergente,
que é centrada na administração da vida, poderia exercer o poder de morte.
O racismo é a resposta dada por Foucault, uma vez que por ele pode-se dividir
a população a ser regulamentada, pode-se criar condições de aceitabilidade do poder de
morte, ou ainda, pode-se garantir que a morte regulada de alguns, signifique a vida
regulada de outros. Nesse sentido, ―já não se trata de pôr a morte em ação no campo da
soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade (FOUCAULT,
1988, p.135).
Talvez devêssemos mesmo, concordando com Achille Mbembe (2016), pensar
que o próprio conceito de biopolítica é insuficiente para tratar desses processos de
exercício do poder postos em prática em dinâmicas marcadas pela colonialidade, em
que há subjugação da vida ao poder de morte, associados a processos eminentemente
contemporâneos e moderno-coloniais, daí falar, então, também em necropolítica.
Podemos mesmo iniciar nosso caminho de análise com a afirmação de que a
história da mineração industrial na Amazônia, como uma geografia de exceção se
expressa por ruínas, numa dinâmica expropriatória de longa duração, ou como definiria
Machado Aráoz acerca dos processos de violência colonial (2013, p. 24):
Esa dinámica expropiatoria implica el ejercicio sistemático y de larga
duración de una violencia productiva, inseparablemente semiótica,
económica, jurídico-política y militar; una violencia a través de la cual
tiene lugar la correlativa producción colonial de ‗subjetividades‘,
‗naturalezas‘ y ‗territorialidades‘ adaptadas y sujetas a las reglas
coloniales de la acumulación sin fin, de la acumulación como fin-en-sí
mismo.

Não obstante ser encenada em uma retórica do desenvolvimento adaptada às


regras coloniais da acumulação sem fim, essa geografia em ruínas, na verdade, tem suas
marcas no exercício sistemático de violações a partir da expansão de territorialidades
hegemônicas, empresarialmente inscritas em um arranjo de relações de poder, que inclui
os negócios do agro, da água, da terra e do subsolo, os quais não apenas redesenharam
os mapas de múltiplas territorialidades amazônicas, como tentam retirá-las do
imaginário nacional para justificar seu violento desaparecimento.
Alguns fragmentos de histórias não contadas ou que foram impedidas de serem
expostas serão nossa maneira de fazer falar a diversidade geográfica desperdiçada e
despedaçada por grandes empreendimentos de mineração. Comecemos pelas violações

120
aos direitos territoriais indígenas sem obedecer a uma seqüência linear, apenas
produzindo um sentido político e estratégico a partir dos fatos enfocados.
Em 1981 o presidente militar João Figueiredo assinava o decreto nº 86.630 de
23 de novembro de 1981 que interditava uma área no interior do território dos indígenas
Waimiri Atroari para fins de pacificação e atração dos indígenas. A mesma área de
536.800 hectares seria cedida à Mineração Taboca do Grupo Paranapanema para a
exploração da mina do Pitinga, maior reserva de estanho do Brasil. Por trás do decreto,
uma história de violações.
Os Waimiri Atroari, população indígena da família lingüística Caribe, habitam
uma parte do norte do Estado do Amazonas e sul de Roraima, nas bacias dos rios
Alalaú, Camanaú, Curiuaú e do igarapé Santo Antônio do Abonari, desde ao século
XVII e, mais profundamente nas primeiras décadas do século XX, sofrem, de forma
sistemática, várias tentativas de exploração de suas áreas. Frentes econômicas ligadas à
castanha, à borracha, à madeira e à mineração chegaram através de expedições,
empresas, jagunços e sempre encontraram profunda resistência dos povos.
Os Waimirí-Atroarí não aceitaram os papéis de canoeiros, remeiros,
mão-de-obra da construção civil (destino da maioría dos índios
destríbalizados, 'descidos'), de seringueiros, de caucheiros, de
balateiros. A essa condição social proposta pelos governos colonial,
provincial, estadual e federal os Waimirí- Atroarí responderam com a
permanente atitude de guerra (MONTE, 1992, p. 152)

Já na década de 1970, a edificação da BR 174, que liga Manaus a Boa Vista,


construída para dar acesso às minas de Pitinga e ocupar o ―vazio demográfico‖ do
extremo norte brasileiro, ficou a cargo do Exército Brasileiro, devido à resistência dos
indígenas à construção da rodovia, o que foi respondido com força bruta. Vários relatos
apontam a ocorrência de chacinas em território indígena para a construção da estrada,
como o relato do missionário do Centro Indigenista Missionário (CIMI) Egydio
Schuwade, que alerta para o desaparecimento de 2.000 indígenas entre 1972-1975 sem o
registro de um único atestado de óbito (DIÁRIO DO AMAZONAS 11/07/1987).
Com todo o aparato repressivo montado, a entrada da Mineração Taboca nas
minas de Pitinga, após concessão do governo, foi através de aviões búfalo e tropas do
exército para expulsar garimpeiros e indígenas das áreas das minas. A violência da
entrada se estabeleceu pela contratação, por parte da Mineração Taboca (Grupo
Paranapanema), dos serviços da empresa Sacopã, comandada por dois ex-oficiais do
exército e um da ativa, que prestavam serviço a mineradora e fazendeiros da região

121
para, como um dos próprios funcionários, Tadeu Abraão Fernandes, falou à revista Veja
em 1985, ―limpeza‖ das áreas em questão. Um dos fundadores do Grupo Paranapanema,
Octávio Cavalcanti Lacombe, chegou a defender a criação de uma polícia mineral (A
CRÍTICA 23/08/1987).
Nove aldeias dos Waimiri Atroari simplesmente desapareceram após a entrada
da mineradora e do exército. Os indígenas chegaram a fazer expedições em busca das
aldeias, denominadas de Tikiriya, mas sem sucesso. Frases do tipo ―Taboca chegou,
Tikiriya sumiu, por quê?‖ e ―A casa toda furada, Parede caiu. Taboca foi no lugar onde
Tikiriya morava‖ foram escritas pelos indígenas sobreviventes em trabalho de
alfabetização do missionário Egydio Schuwade nas aldeias (CEV, 2012). Entretanto,
não apenas a estrada e a mineração afetaram os Atroari, em 1987 foi inaugurada a
Hidrelétrica de Balbina que desalojou mais duas aldeias para a formação do lago.
A mineração de cassiterita e estanho não apenas se desenvolveu nas reservas
do Pitinga com larga violação aos territórios indígenas, várias outras regiões foram
mineradas em Rondônia, no sul do Amazonas e norte do Mato Grosso. Os Tenharins
que já haviam sido mortalmente atingidos pela abertura da transamazônica, existindo,
inclusive, denúncias de Margarida Tenharim à Comissão Nacional da Verdade de
centenas de indígenas mortos em conseqüência da estrada (CNV, 2014), também,
particularmente os Tenharim do Igarapé Preto, tiveram seus territórios violados por
garimpeiros e pela mesma empresa presente no massacre aos Waimiri Atroari, empresa
Paranapenema, além da Mineração Brasileira Estanho Ltda, através de várias frentes de
exploração do estanho nas terras indígenas (LEONEL, 1995).
Os processos de mineração industrial na Amazônia, com exceção das jazidas
que exigem um alto investimento tecnológico para a extração mineral, ou vieram nas
trilhas de garimpos ou mesmo trouxeram demandas de garimpeiros para a região. Nesse
particular, os atentados às terras indígenas são incontáveis e muitos deles ainda
desconhecidos. Entre os casos conhecidos temos o massacre de mais de 5 mil Cinta
Larga no noroeste do Mato Grosso e Sudeste de Rondônia pela expansão dos processos
de colonização e empresas de mineração em seus territórios (CNV, 2014). O relatório
Figueiredo, produzido em 1967 a pedido do Ministério do Interior para verificar
violências praticadas aos povos indígenas pelas frentes econômicas e funcionários do
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), chega a descrever os ataques aos Cinta Larga,
citando aviões jogando dinamite nas aldeias, mateiros caçando indígenas com
metralhadoras e cortando as cabeças dos sobreviventes. Entre os casos de brutalidade, é

122
preciso que se cite o chamado Massacre do Paralelo 11 em outubro de 1963, ocorrido
durante uma expedição planejada por Francisco Amorim de Brito, pela empresa Arruda,
Junqueira e Cia. Ltda para verificar a existência de minerais preciosos na região do rio
Juruena. A expedição terminou com, pelo menos 7 indígenas mortos com requintes de
crueldade (DAL POZ, 1991). A mineração de pedras preciosas continuou nos territórios
indígenas dos Cinta Larga chegando a reunir, em 2004, cerca de 5 mil garimpeiros em
seus territórios.
Além dos Cinta Larga, a expansão de garimpos também afetou de forma
dramática os Yanomami, que tiveram suas terras recortadas por interesses minerários,
com total conivência do Estado, por pelo menos 40 mil garimpeiros. Dentre as violações
que provocaram 354 mortes entre os indígenas, segundo o relatório da CNV (2014), é
válido lembrar o Massacre de Haximu em 1993 nas proximidades do rio Demini,
quando 16 indígenas foram assassinados por garimpeiros. Na esteira da lógica do
garimpo, os Munduruku no Pará ainda hoje convivem em seu território com pelo menos
20 mil garimpeiros em busca de ouro.
Voltando à mineração industrial, o primeiro megaempreendimento mineral na
Amazônia na Serra do Navio no Amapá, também deixou rastros de destruição em terras
indígenas. Através da expansão das pesquisas por parte da empresa ICOMI, os
indígenas Waiãpi foram contatados na década de 1970, sendo que algumas descobertas
de ouro em seus territórios desencadearam a entrada de garimpeiros, o que provocou um
surto de sarampo, que matou pelo menos 50 indígenas. Em 1973 a FUNAI criou uma
frente de atração para possibilitar a expansão da rodovia Perimetral Norte por sobre o
Território Waiãpi, de modo que, enquanto os indígenas se agrupavam próximos à
FUNAI, os garimpeiros entravam e seu território era cortado ao meio por 30
quilômetros de estrada (GALLOIS, 2011). Vale ressaltar que a mineração industrial de
ouro e ferro no município de Pedra Branca do Amaparí também promove processos de
intrusão no território dos Waiãpi. Essa dinâmica mineral que já envolveu a empresa
MMX de Eike Batista, acusada, pela Polícia Federal, de irregularidades no
licenciamento ambiental da Estrada de Ferro do Amapá (construída pela ICOMI em
1957 e assumida pelo grupo em 2006); também já envolveu, em relação ao minério de
ferro, as empresas Anglo American (Reino Unido) e, mais recentemente, a Zamin (Índia)
e a Internovia Natural Resources (Emirados Árabes Unidos), sendo que, na mineração
de ouro, empresas como Alglo Gold (África do Sul), que teve projeto recentemente
assumido pela Gold Corp (Canadá), atuam na região. Portanto, processos territoriais

123
transnacionais rodeiam o território indígena e reorganizam a dinâmica econômica de seu
entorno produzindo vários tipos de pressão.
Tantas violações fizeram com que os Waiãpi fossem alterando suas próprias
formas de compreensão e projeção de sentidos ao território, de uma maneira de pensar o
espaço sem a ideia de limite e a partir dos processos de sociabilidade, com as insistentes
e violentas intrusões, a auto-representação étnica do ―nós Waiãpi‖ torna-se um modo
claro de enfrentamento ao ser alheio, o que culmina num processo de auto-demarcação
do território e na demanda por seu reconhecimento (GALLOIS, 1989).
Também não poderíamos deixar de mencionar, em termos de violações aos
territórios indígenas, o Projeto Ferro Carajás. Vários povos indígenas ficaram no
caminho ou nas bordas de um projeto que não apenas explorava ferro da serra de
Carajás e o transportava por ferrovia ao Porto de Itaqui em São Luis do Maranhão, mas
alterava decisivamente a dinâmica econômica e social regional, atraindo uma migração
desenfreada, a entrada de madeireiros, a expansão de monocultivos, redesenhando as
formas e os conteúdos geográficos regionais. Por conta do projeto foi assinado em 1982,
como falamos anteriormente, um convênio entre a CVRD e a FUNAI para a elaboração
de estudos técnicos de cerca de 90 aldeias, 24 postos indígenas totalizando uma
população de 12.500 índios, entre o Maranhão, Pará e Tocantins (VIDAL, 1986).
Não obstante a assinatura do convênio, já em seu segundo ano de vigência,
1983, concomitante aos estudos antropológicos realizados e algumas demarcações feitas
―o poder executivo foi autor de vários projetos de lei, decretos e regulamentos, que
reduziram os direitos patrimoniais indígenas (VIDAL, 1991, p. 69).
Os Apinaye, da família lingüística Jê, hoje localizados no estado do Tocantins,
mesmo incluídos no convênio CVRD/FUNAI, só tiveram parte de suas terras
reconhecidas quando, em fevereiro de 1985, interromperam o tráfego da
Transamazônica, após terem iniciado, por conta própria, em parceria com os
Krahô, Xerente, Xavante e alguns Kayapó, a demarcação de seu território, que, por sua
vez, quando concretizada, retirou áreas importantes para a reprodução da vida dos
indígenas, alterando completamente o sentido e o tamanho do território indígena
(LADEIRA; AZANHA, 2003).
Os Gavião, cujo povo Akrâtikatêjê já havia sido deslocado de seu território
tradicional por conta da construção da UHE de Tucuruí, sendo concentrados, junto aos
povos Parkatêjê e Kyikatêjê, no interior da Terra Indígena Mãe Maria (FERRAZ, 1984),
continuaram a sofrer violações, seja pela construção de estradas, como a PA-70 e a PA-

124
150, que provocam o alargamento de frentes econômicas em direção aos indígenas, seja
ainda, pela construção de uma linha de transmissão da Eletronorte, que atravessa a terra
indígena, e pela ferrovia Carajás-Itaqui que, também, corta o território indígena. As
tensões agrárias regionais acirradas pelo Projeto Ferro Carajás, chegaram a incluir um
processo de militarização das margens da ferrovia, o que provocou uma ―crescente onda
de violência desencadeada a partir da intervenção policial na faixa de fronteira da
ferrovia no interior do território tribal‖ (FERRAZ, 1985, p. 3).
Outro povo a sofrer diretamente com o projeto Ferro Carajás, foram os
Aikewara que, por sua vez, já conviviam com intrusões violentas em seu território por
parte de fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e castanheiros e que, também, passaram
por momentos de terror durante as operações militares que ocorreram na região entre
1972 e 1974 para o desmantelamento da Guerrilha do Araguaia, quando a aldeia foi
transformada em um verdadeiro campo de prisioneiros, sendo que os homens adultos
foram forçados a guiar militares em busca de guerrilheiros, enquanto mulheres e
crianças eram mantidas reféns (CNV, 2014). Esse povo, que já havia sofrido profundas
violações físicas e psicológicas também estava no convênio CVRD/FUNAI, mas foi
profundamente confinado na definição de seus territórios, não incluindo nos processos
de demarcação antigas aldeias, castanhais, lugares de caça e jazidas de argila para a
fabricação de panelas (FERRAZ; CALHEIROS, 2014). Os Aikewara, pelas constantes
intrusões, também reconstruíram suas formas de viver em meio à necessidade de lutar
pela existência, como nos fala Tupiakaw Suruí em relato a Dias dos Santos (2014, p.
33): ―(...) a gente já brigou muito, os antigos contam que nós somos guerreiros mesmo.
Porque quando ficávamos só nós aqui era mais calmo, sem guerra (...). Mas foi
chegando gente, gente pra tudo, atrás de ouro, atrás de castanha, de madeira, de terra, e
a gente foi ficando sem espaço‖.
Se os Aikewara foram confinados no processo de demarcação de seu território
e, também, pela expansão de distintas frentes econômicas, outro povo diretamente
afetado pelo Projeto Ferro Carajás, os Xikrín do Cateté, também tiveram 3.125 ha de
seu território subtraído pelo GETAT no sentido de criar faixas e isolar as áreas de lavra
de minério de ferro (RICARDO, 1985). Os Xikrin, do subgrupo Kaiapó (Mebengokrê)
também possuem uma história de violações, principalmente pela entrada de caucheiros,
castanheiros, madeireiros e fazendeiros em seu território. Entretanto, após o Convênio
453/89 que cria o ―Programa Xikrín‖ exigido pela resolução 331 do Senado Federal,
como contrapartida pela Concessão de Lavra à Companhia Vale do Rio Doce na Serra

125
dos Carajás, que os indígenas construíram uma relação direta com a empresa, relação
tensionada por vários momentos, por pressões indígenas para alargar os repasses de
recursos do convênio e por respostas da empresa, que chegou a suspender o repasse dos
recursos em 2006 em represália à ocupação de guerreiros Xikrin nas minas de Carajás
(RIBEIRO DOS SANTOS, 2009).
Mas os Xikrin, que sempre construíram uma dinâmica interna de distintividade
baseada na captura de objetos exteriores, utilizados em rituais, que garantiam beleza e
autenticidade diferenciais, com o acesso permanente às mercadorias, os objetos externos
que, antes, eram resultantes de verdadeiras jornadas, foram se tornando comuns, sendo
usados, primeiramente, como riquezas rituais, mas, ao se tornarem corriqueiros,
perderam sua característica de distintividade, perdendo o seu sentido de organização e
hierarquia interna (GORDON, 2006). As violações produzidas pela expansão mineral na
Amazônia, e o caso Xikrin demonstra claramente isso, é, também, o estabelecimento de
um contato desigual e profundamente violento entre maneiras distintas de significar o
mundo.
Mas a dinâmica de exploração e transporte do ferro, ligada ao Projeto Ferro
Carajás, também atravessou o mundo de vida dos Guajajara, Krikatí, Ka‘apor e Awá-
Guajá no Maranhão. A dinâmica econômica que se estabeleceu com a abertura da
Ferrovia Carajás-Itaqui, produziu inúmeras intrusões nas terras desses povos,
principalmente de madeireiros e fazendeiros. São várias territorialidades expostas às
violações da mineração. Na terra indígena do Caru no Maranhão e em suas imediações,
uma expressão clara disso são os Awá-Guajá, um dos últimos povos exclusivamente
caçadores e coletores do Brasil, que foram confinados pela ferrovia que passa a cerca de
500 metros de sua área de perambulação, intrusão, vale dizer, que os indígenas já
haviam experimentado desde a década de 1970, quando atividades econômicas
começaram a pressionar os seus espaços de caça e quando, também, em 1975, criou-se a
frente de atração Guajá da Funai, de modo que tal contato provocou, seja por doença,
seja por assassinatos (a FUNAI confirma 5 assassinatos de indígenas por posseiros), a
morte de mais de 60 indígenas (GOMES,1991).
Vários outros povos tiveram seus territórios recortados pela mineração ou
definidos a partir da racionalidade do Projeto Ferro Carajás, como os Parakanã, que já
haviam sido removidos por conta da construção da Transamazônica e por conta da
construção da UHE de Tucuruí, foram cinco remoções entre 1971 e 1977 (CNV, 2014),
e com o convênio CVRD-FUNAI e as relações com a ELETRONORTE passaram a

126
conviver com novas modalidades de políticas de intervenção indigenistas. Entretanto,
muitos povos afetados pela dinâmica regional gerada pelo projeto nem foram incluídos
no convênio CVRD/FUNAI que demarcou arbitrariamente um perímetro de influência
de 100 km de cada lado da ferrovia. Povos como os Arawaeté do Igarapé Ipixuna, os
Karajá da terra indígena Xambioá, os Krahô da TI Kraolândia, os Xerente e os També
simplesmente tornaram-se inexistentes à racionalidade do projeto (VIDAL, 1991;
HALL, 1991).
As violações que a dinâmica de expansão mineral na Amazônia provoca não
param de ameaçar os povos amazônicos, os indígenas do Xingu, extremamente afetados
com a construção de Belo Monte, ainda estão mais ameaçados com o projeto de
extração de ouro da volta grande do Xingu da empresa canadense Belo Sun que prevê,
durante 12 anos de exploração, a retirada de 600 toneladas de ouro, produzindo 504
milhões de toneladas de estéril, ocupando 346 hectares, afetando diretamente os povos
indígenas que ficam na TI Paquiçamba, Arara da Volta Grande do Xingu, Ituna/Itatá e
Trincheira Bacajá. A recente discussão e extinção da Reserva Nacional de Cobre e
Associados (RENCA) também poderá legitimar processos violentos de mineração nas
terras indígenas Waiãpi, Uaçá, Galibi, Juminã, Parque indígena Tumucumaque e Rio
Paru d`Este.
Entretanto, em relação aos povos indígenas não se pode pensar todas essas
intrusões e violações da indústria mineral e do garimpo em seus territórios, articuladas a
toda gama de relações que a política de ocupação e integração nacional produziram,
apenas representando os indígenas como vítimas de um processo que os destrói.
Definitivamente não entendemos assim, pois se o fizéssemos, estaríamos a contrariar a
própria lógica dos acontecimentos históricos. Os indígenas foram e são atores políticos
de suas histórias. Os Waimiri Atroari não aceitavam o papel que a sociedade nacional os
impunha, tratavam como guerra as intrusões em seus territórios, por outro lado, todos os
contatos amistosos com os Cinta Larga, ocorreram por iniciativa dos indígenas, como
estratégias para ―pacificação‖ dos brancos (DAL POZ, 1991). A voz dos Yanomami
contra a mineração ainda ecoa pelo pensar de David Kopenawa na luta pela Terra-
Floresta e por uma visão de solo e subsolo como unidade existencial diante de tantos
interesses minerários em seus territórios. Os Waiãpi foram alterando sua percepção
territorial sem limites para politizar sua condição étnica e lutar pelo território, fazendo
emergir uma identidade territorial pelo contraste ao outro que lhe impunha condições
degradantes de vida (GALLOIS, 2011). Os Apinaye, não esperando pelo

127
reconhecimento do Estado e como forma de pressão para tal, empreenderam um
processo autônomo de demarcação de seus territórios com alianças de outros povos,
marcando no espaço sua geografia diferencial. Os Gavião já fecharam algumas vezes a
Estrada de Ferro Carajás para exigir seus direitos, participam de organizações e
entidades de representação indígenas para fazer valer seus direitos territoriais, assim
como também o fizeram os Guajajara, Krikatí, Ka‘apor e Awá-Guajá. Os Xikrin, por
sua vez, ocuparam as minas da mineradora Vale impedindo os funcionários de entrar e
os projetos de funcionar, como forma de pressão, não apenas pelas intrusões da empresa
em seus territórios, mas para abrir novos canais de negociação. Os Parakanã30, diante
das marcas que a sociedade nacional deixou em seus corpos, vidas e território,
atribuíram as mortes e a doença, continuamente sofridas, à feitiçaria dos pacificadores,
mantendo uma atitude de defesa, distância e prudência aos estrangeiros (FAUSTO
2014).
As intrusões das mineradoras em territórios indígenas na Amazônia se
avolumam a cada novo empreendimento monstruoso e, algumas vezes são, até mesmo,
registradas nos Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) realizados, sob
o comando das empresas, por consultorias ambientais, ainda que o reconhecimento dos
povos indígenas seja feito por necessidade burocrática e signifique o atestado, única e
exclusivamente, da presença física de tais povos, não das suas formas de realização e
compreensão da existência e de organização da vida e do trabalho.
Entretanto, quando tratamos de comunidades quilombolas não há nem mesmo,
na maioria dos casos, o reconhecimento físico da existência de tais comunidades. Essa
leitura com forte recorte racial que desconsidera os territórios quilombolas na Amazônia
é recorrente desde o contexto de escravidão negra na região, que se inicia em meados do
século XVIII com a política pombalina, sendo que, a reinvenção da liberdade por meio
da organização dos quilombos foi tornada estrategicamente inexistente, uma vez que
A organização social alternativa do quilombo, reunindo índios,
escravos, foros, nasce com uma visibilidade negativa por representar
limites e afrontas à sociedade escravista. O quilombo foi
positivamente o limite de propriedade e de produção escravista, como
também, do domínio social e político articulado a essa formação
social. Nesse sentido, atinge profundamente a ordem escravista, tendo
como resposta a repressão e a estigmatização por parte dos senhores e
das autoridades (...) Não cabia a essa sociedade entender aspirações de
30
Carlos Fausto identifica uma cisão entre dois blocos de indígenas Parakanã, orientais e ocidentais.
Falamos aqui dos Orientais que se fixaram em seu território após várias remoções provocadas pela
Transamazônica e pela UHE de Tucuruí, mas que lutaram pela demarcação numa perspectiva de se
defender das intrusões (FAUSTO, 2014).

128
liberdade, muito menos valorizar outro sistema de vida e de trabalho
gerado na contradição de sua existência (ACEVEDO MARIN;
CASTRO, 1998, p.67)

Continua não cabendo na racionalidade da lógica capitalista contemporânea na


Amazônia, movida, dentre outros negócios, pelos grandes empreendimentos de
mineração, as aspirações de liberdade quilombola, muito menos seus sistemas próprios
de vida e de trabalho. A organização social do quilombo, em contradição à sociedade
escravista e oligarca, também entrará em contradição aos dispositivos de exceção
implantados forçosamente na Amazônia. Essa lógica particular de organização social e
territorial também tem uma história de articulações, solidariedades e resistências, basta
pensarmos nos quilombos de Macapá, no Amapá e do Trombetas, no Pará, que tiveram
contatos com a Guiana Francesa e Holandesa, hoje Suriname, num processo de trocas
culturais e políticas importantes para o fortalecimento dos grupos (ACEVEDO MARIN,
1998).
Várias são as ruínas produzidas pelos projetos de mineração em territórios
quilombolas. O projeto de extração do manganês na Serra do Navio, no Amapá, que
também criou uma infraestrutura para a circulação e exportação do minério, como a
Estrada de Ferro do Amapá e o Porto de Santana, além das cidades-empresa de Serra do
Navio e Vila Amazonas, alterou o cotidiano de múltiplas comunidades quilombolas,
principalmente aquelas localizadas nas proximidades ou no interior dos municípios de
Santana do Amapá e Macapá, como a comunidade Curiaú, Conceição do Macacoari,
Ambé, São Pedro dos Bois, Mel da Pedreira, Comunidade do Rosa, São José do Mata
Fome, Ilha Redenda, Engenho do Matapi, São Raimundo do Pirativa, Cinco Chagas do
Matapi e Lagoa dos Índios.
É importante ressaltar que o manganês, submetido a elevadas temperaturas,
libera uma substância tóxica, a arsênio, que, inclusive contaminou comunidades e
moradores de Santana do Amapá, com particular destaque à vila Eslebão, uma vez que
no igarapé Eslebão foi encontrada a maior concentração de arsênio. Pelas trilhas do
manganês, o encanto das águas que sempre proporcionou um cotidiano ligado ao rio aos
moradores, foi consumido pelo óleo queimado das caldeiras, pela fumaça, pelo mau
cheiro, por um pó a cobrir as palafitas e pelos casos de câncer, malária e problemas nos
rins, cada vez mais comuns. Na esteira da contaminação, também estavam os territórios
quilombolas, particularmente a comunidade de Curiaú, para onde a empresa ICOMI
planejou jogar seu lixo tóxico, verdadeira montanha de pedras trituradas a liberar

129
substâncias tóxicas. Entretanto, com a resistência dos moradores, que queimaram e
destruíram as instalações, a empresa teve de mudar de ideia (CETEM, 2014).
Saindo do Amapá para as margens do rio Trombetas, oeste do Pará,
encontramos grupos remanescentes de quilombolas - que construíram laços de
cumplicidade com a natureza ao reconstruírem o sentido de sua liberdade por ela -
serem ameaçados, desde 1967, pela criação da Mineração Rio do Norte (MRN) para a
exploração de Bauxita. Os quilombos do Trombetas eram destinos freqüentes dos
escravos fugidos de fazendas, seja da região do entorno (Óbidos, Santarém, Alenquer...)
ou até mesmo de Belém. Entretanto, outras formas de ver a natureza se instalam,
negando as lógicas territoriais de existência dos remanescentes de quilombolas
(ACEVEDO MARIN; CASTRO, 1998).
Ainda na década de 1970, várias famílias foram expulsas da comunidade Mãe
Cué por conta das instalações do projeto da Mineração Santa Patrícia/Grupo Ludwig
/JARI. Os quilombolas foram para a outra margem do rio Trombetas, mas novamente
em 1979, com a criação da Reserva Biológica do Trombetas, precisaram voltar para
suas antigas áreas abandonadas pela Mineração Santa Patrícia. Ao voltarem para suas
terras, permaneceram ameaçados, pois as instalações da antiga empresa foram
compradas pela ALCOA em 1981 e só em 1991 o projeto foi abandonado (ACEVEDO
MARIN; CASTRO, 1998; WANDERLEY, 2008). As violações, entretanto, continuam
por parte da MRN, tanto que em 2013 comunidades quilombolas denunciaram o
licenciamento de áreas de exploração por parte da empresa sem indenização e consulta
das comunidades, além de supressão florestal em territórios quilombolas.
Grande parte da bauxita produzida no Trombetas abastece as indústrias de
fabricação do alumínio ALBRAS/ALUNORTE localizadas em Barcarena no Pará.
Entretanto, a bauxita que as abastece não provêm apenas das reservas do Trombetas,
pois a partir de 2007 começa a entrar em operação a Mina de Bauxita Paragominas. A
empresa Vale que detinha o controle da mina, de parte significativa da MRN e das
empresas ALBRAS/ALUNORTE, em acordo com a Norsk Hydro, faz dessa empresa
norueguesa, a principal investidora na cadeia do alumínio na Amazônia31.

31
Em 2010, uma parceria com a VALE, que detinha o controle das minas de Paragominas e das indústrias
de transformação do alumínio em Barcarena, faz da Norsk Hydro detentora do controle da jazida de
bauxita, além de participar com 91% de participação na Alunorte e 51% na Albras, sendo que a parte da
VALE na parceria foi se tornar controladora de 22% das ações da empresa norueguesa. Disponível em
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,vale-vende-controle-dos-negocios-de-aluminio-imp-
,546031.

130
Entretanto, os caminhos do minério novamente são desenhados
desconsiderando povos e comunidades tradicionais. Quinze comunidades quilombolas
de Jambuaçu no município de Moju no nordeste do Pará (São Bernardino, Vila Nova,
Nossa Senhora das Graças, Bom Jesus do Centro Ouro, Santa Luzia do Traquateua,
Santa Maria do Traquateua, São Sebastião, Santo Cristo, Santana do Baixo, Conceição
do Mirindeua, Santa Maria do Mirindeua, São Manoel, Jacundaí, Ribeira do Jambuaçu e
Santa Luzia do Poacê) - que já haviam sido recortadas por dois minerodutos de
transporte de caulim, das minas em Ipixuna do Pará a Barcarena, das empresas Pará
Pigmentos e Rio Capim Caulim que pertenciam à Vale e hoje estão sob o domínio da
francesa Imerys – também tem a intrusão em seu território de, pelo menos, 15 km do
mineroduto de Bauxita, que possui 248 km e liga a mina em Paragominas às empresas
ALBRAS/ALUNORTE em Barcarena, além de uma linha de transmissão de energia
elétrica. As condições de existência das comunidades quilombolas são colocadas em
xeque, uma vez que ―experimentam a perda de terras cultivadas e aráveis, a destruição
de recursos florestais (inúmeras castanheiras, entre as espécies mais valorizadas) e a
poluição de recursos hídricos‖ (ACEVEDO MARIN, 2010, p. 50).
Na ponta desse processo - a indústria de transformação do alumínio
ALBRAS/ALUNORTE que construiu sua Company Town com a denominação, um
tanto cínica, de Vila dos Cabanos - também precisou, para sua instalação e de sua
cidade, desalojar comunidades ribeirinhas inteiras. A empresa quebrou as profundas
relações com o rio e a floresta das comunidades dos sítios São João, Cupuaçu,
Conceição, São Lourenço e São Sebastião de Burajuba, dentre outras. Os contínuos
processos de degradação ambiental do rio Murucupi por conta das instalações
industriais e a perda das condições de existência das comunidades, fez florescer
múltiplos processos de luta e resistência, sendo que ―no presente as unidades sociais (...)
se autodefinem como ‗quilombolas indígenas‘, igualmente, redefinem o sentido de
comunidade, enquanto forma política‖ (MAIA; ACEVEDO MARIN, 2014, p.4).
As ruínas deixadas como rastros de processos de territorializações de exceção
na Amazônia carregam outro olhar para a história e para a geografia, ou mesmo,
carregam várias histórias e geografias. Os sinos e badalos nas torres das igrejas,
imponentes objetos nas paisagens amazônicas, começam a soar os gritos de distintas
etnias indígenas confinadas em flagelo; as edificações públicas e seus traçados
arquitetônicos racionais começam a confessar o policiamento de almas e os extermínios
tornados necessários para se fazer aparecer o Estado; as estradas construídas deixam de

131
ser uma ligação de dois pontos, para ser um caminho a cortar e sagrar vidas; as
máquinas e a logística de grandes obras e grandes indústrias extrativas relativizam sua
opulência com o gigantismo da floresta ainda preservada, grande construção indígena,
quilombola, ribeirinha... Enfim, a tempestade que nos impele irresistivelmente ao
futuro, ainda nos molha, assim como deixou as asas abertas do anjo da história de
Benjamin, mas, também - como ele - conseguimos virar as costas a ela e, mesmo
banhados em suas águas, questionamos os sentidos violentos de seus ventos fortes.

3.3. AS RUÍNAS AMAZÔNICAS E OS PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO DE EXCEÇÃO


Olhar a história e a geografia pelas ruínas não significa ver os processos
unicamente pelo signo da destruição. As ruínas querem demonstrar mais o que ficou e
continua a existir, para que a memória do que se destruiu ou não teve o direito de se
falar por história, por geografia, ative as lutas do presente. Não há como negar as
violências, os extermínios, essa biopolítica e necropolítica, mas mostrá-las assume o
sentido, não de asseverar uma imagem de poder aos seus processos instituintes, mas de
reconstruir sua definição pelos olhares esquecidos, tornados ausentes para, assim, se
construir uma história e uma geografia a contrapelo.
O espólio ao território dos Waimiri Atroari, Cinta Larga, Yanomami, Waiãpi,
Aikewara, Guajajara, Awá-Guajá, ao território dos quilombolas do Trombetas e do
Jambuaçu e aos territórios de tantos outros povos e comunidades tradicionais na
Amazônia, define uma distribuição das populações em distintos domínios de valor e
utilidade por meio de Grandes Projetos de Mineração. A biopolítica e a necropolítica
tornam-se prática de governo, comportando ações que agem para controlar as ações de
outros, regulamentando um sistema hierárquico de controle sobre as populações
amazônicas.
A tradução geográfica desse percurso arqueológico-genealógico, que pretendeu
dar consistência histórica para a análise das tensões territoriais em torno dos Grandes
Projetos de Mineração na Amazônia, talvez seja a noção de territorialização de exceção,
já apontada por Haesbaert (2014) a partir de uma leitura geográfica das compreensões
do campo como paradigma político em Agamben.
Os termos de uma territorialização de exceção, poderíamos assim dizer para
este trabalho, advêm do percurso feito até aqui, o que sugere para nós, pelo menos, três
acepções gerais que particularizam um processo de territorialização em contexto em que
o estado de exceção torna-se regra.

132
Em primeiro lugar, entendendo que se territorializar significa, como nos fala
Haesbaert (2004, p. 92) ―criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo
‗poder‘ sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais‖, um aspecto a se ressaltar é
que a criação de mediações espaciais, nos processos de territorialização de exceção,
passam por dinâmicas de suspensão normativa, seja através da criação de regimes
jurídicos especiais, por rearranjos institucionais, pela projeção de um sentido privado a
instrumentos jurídicos pretensamente criados para um sentido coletivo, seja, ainda, pela
desregulação dos sistemas normativos vigentes, o que permite que o exercício do poder
e a dinâmica de territorialização se realize legalmente fora da lei. Nesses termos, os
processos de territorialização de exceção criam mediações espaciais de exceção, cujo
principal atributo é a realização, a qualquer custo, da verdade e razão do Estado.
Em segundo lugar, as relações de poder que definem os processos de
apropriação/dominação do espaço (HAESBAERT, 2004) poderiam ser melhor
descritas, nos processos de territorialização de exceção, como dinâmicas de
governamentalização do espaço, ou seja, são práticas espaciais agindo sobre a
possibilidade de existência de outras práticas espaciais, ou ainda, são ações que agem
sobre a possibilidade da ação de outros, uma forma de estruturação/definição/interdição
do campo de ação dos outros (FOUCAULT, 1995). Isso se traduz como a estruturação
de um conjunto de instituições, procedimentos, discursos e cálculos estatísticos de
exercício do poder, tendo como alvo a população, ou os cortes populacionais, ou em
termos mais geográficos, processos territoriais que interditam a possibilidade de
existência de outros territórios e territorialidades. Por essas vias, os processos de
territorialização de exceção são, também, processos de interdição da possibilidade de
existência de outras territorialidades.
Em terceiro lugar, essa lógica relacional do poder, que organiza uma arte de
governar que atrela segurança, território, população e riqueza, ou seja, que constrói um
recorte racial e étnico aos processos de territorialização de exceção, desse modo, podem
ser descritos como uma campanha de desterritorialização, nos termos definidos por
Almeida (2009), ou seja, os processos de territorialização de exceção podem ser lidos
como um ataque sistemático e organizado aos direitos territoriais de povos e
comunidades tradicionais.
Nesses termos, chegamos a termos mais precisos, entendendo a
territorialização de exceção como processos em que a criação de mediações espaciais,
que proporcionem acesso a recursos e/ou domínio de terras, passam por dinâmicas de

133
suspensão normativa, criando dispositivos, com claros recortes raciais e étnicos, de
gestão de populações, numa lógica de ação que estrutura/define/interdita o campo de
ação e a possibilidade de criação de mediações espaciais de outros grupos sociais, os
quais, definidos por um menor valor, tornam-se politicamente matáveis e
territorialmente invisíveis e dispensáveis.
Os percursos arqueológico-genealógicos de análise de arquivos e dispositivos
nos levaram a compreensão que os grandes projetos de mineração na Amazônia, que, a
partir de agora, serão tratados a partir de um caso em específico, definem processos de
territorialização de exceção e é a partir desses processos que podemos melhor
compreendê-los.
A partir daqui, no entanto, tendo a territorialização de exceção como
pressuposto analítico, exploraremos, através da análise do projeto S11D da empresa
Vale, dois processos não tão claros até aqui no trabalho, a saber: as formas específicas
de acumulação capitalista empreendidas por Grandes projetos Minerais e sua dinâmica
metabólica de superexploração da natureza, ou seja, as marcas de economia política e
ecologia política, logicamente lidas no espectro geral de um diagrama de poder que faz
funcionar processos de territorialização de exceção.

134
CRÔNICAS DE PESQUISA
ELDORADO OU BURACOS NEGROS? A MINERAÇÃO PELO OLHAR GARIMPEIRO
A palavra Eldorado vem do espanhol El dorado (o dourado) nome
dado pelos exploradores espanhóis para denominar lugares de grande
riqueza na América. Em seu sentido literal significa lugar de vida
fácil e luxuosa. Mas o que se precisa fazer para conquistar o
Eldorado? O que realmente encontraram aqueles que um dia sonharam com
fortuna?
O sudeste do Pará, de onde falo agora, paradoxalmente à
violência tão expressiva, sempre foi visto, para os que chegam, como
um lugar para se ganhar dinheiro, foi assim com Serra Pelada e pelos
vários garimpos da região, foi assim com a construção da Usina
Hidrelétrica de Tucuruí, foi assim quando da descoberta das minas da
serra dos Carajás: um Eldorado que deu até nome de batismo a município
criado.
Entretanto, quero contar aqui uma situação vivenciada, que
talvez demonstre o que se precisa para se construir o Eldorado.
Antes de ir de vez à Niterói para fixar residência na cidade,
organizei, com outros professores, um trabalho de campo com os
educandos de um curso de especialização, sendo uma das paradas: Serra
Pelada, o garimpo que povoou o imaginário de muitos brasileiros que
queriam enriquecer fácil na difícil década de 1980. Um formigueiro
humano formado logo após o fim da Guerrilha do Araguaia, com muito
ouro debaixo da terra e que, logicamente, não despertaria o interesse
só dos aventureiros. Em plena Ditadura Militar, a aglomeração humana
representava um perigo.
Entre o sonho de riqueza e a dura realidade do garimpo,
passaram-se mais de 30 anos. E foi ali, em um acampamento organizado
pelo Movimento dos Trabalhadores da Mineração (MTM) em frente à sede
da empresa Colossus, que conheci vários garimpeiros, quase todos com
mais de 60 anos, lutando por uma fração do ouro extraído. Foi nesse
cenário, entre as várias caminhonetes de escoltas armadas que
circulavam o lugar, com a polícia militar em frente ao portão central
da empresa, visualizando vários seguranças privados guardando os
outros portões e uma semana depois de um confronto entre militantes e
polícia que deixou vários feridos, que fui abordado por um senhor que
me convidou para uma rápida conversa.
Há 32 anos vivendo em Serra Pelada, aquele homem de 64 anos,
com expressão cansada, olhos fundos, semblante sofrido, me disse:

135
- “Meu filho, eu já morri faz tempo. Eles querem até me matar
aqui, mas se matarem vão acabar só com um pedaço de corpo. Eu enterrei
meu pai, meu filho e minha mulher aqui. Eles me tomaram tudo!”
Tudo o que para ele fazia sentido se desfez, a vida que se
grudava na possibilidade de enriquecer foi confiscada por uma empresa,
os parentes próximos, por quem o trabalho diário ganhava sentido se
foram, os parentes distantes há tempos não mandavam notícias, os
companheiros de trabalho, alguns foram embora, outros morreram e os
poucos que continuavam ali, pareciam ter a mesma forma de ver sua
existência... O Eldorado capturou dele a vida em vida.
Quando do meu encontro com este senhor, um duplo sentimento
aflorou nele: o primeiro, uma gratidão singela, simplesmente pelo fato
de eu estar ali; o segundo, uma vontade desmedida de que as histórias
daquele lugar saíssem dali.
Foi então que um outro senhor ao lado, que ouvira aquele
depoimento tocante, olhou pra mim e disse:
- “Aqui tudo começa e tudo termina, é um buraco negro que só o
que importa é o que tem embaixo”.
Buraco negro para a física é uma região do espaço que possui
massa concentrada em uma quantidade tão elevada que a força de
gravidade gerada não deixa nada escapar de sua atração, nem mesmo a
luz. Portanto, nenhuma partícula pode sair, incluindo a luz. Alguns
físicos quânticos afirmam que é possível que o buraco negro transporte
a outra dimensão, a um universo paralelo.
Que me desculpem os físicos, mas um lugar de massa concentrada
em grande quantidade (minérios no subsolo, ou ilhas de sintropia, como
mesmo a física explica), com uma força tremenda de atração de pessoas,
mas onde tudo pode ser feito sem que ninguém veja, onde se mata sem
cometer assassinato, este é um lugar que existe na terra. Os
territórios da mineração são buracos negros por definição garimpeira.
O lugar de vida fácil e luxuosa, o Eldorado, para se consolidar
precisa criar seus “buracos negros”, lugares onde a humanidade é
roubada. O Eldorado, na verdade, é uma realidade de poucos, feita pelo
sacrifício de muitos.
Bruno Malheiro, Marabá, novembro de 2014.

136
PAULINHO EM TRÊS ENCONTROS
Conheci Paulo Fonteles Filho, a quem esse trabalho é dedicado,
em um encontro que organizamos em Marabá sobre os trabalhos da
Comissão Nacional da Verdade na região sudeste do Pará,
particularmente sobre a operação de busca dos mortos e desaparecidos
políticos da Guerrilha do Araguaia.
Já conhecia a sua história e de seu pai, advogado do mato, como
ele gostava de definir, militante do Partido Comunista Brasileiro
assassinado a mando do latifúndio naquela cidade em fins da década de
1980.
Eu estava em uma mesa no evento junto a Paulinho, como todos o
conheciam, quando, pela primeira vez, ouvi sua história narrada pela
sua própria voz. O bebê, que nasceu em uma prisão da ditadura militar
em Brasília pelo ventre de Hecilda, cortada e costurada sem anestesia
e com 37 quilos, logo foi seqüestrado por não haver algemas que
coubessem em seus pulsos infantis. Essa mesma criança, que aos quinze
anos teve o pai assassinado pelo latifúndio. Entretanto, as memórias
de dor e sofrimento transformavam-se, pela força de Paulinho, em uma
impressionante vitalidade, energia e clareza histórica que já o faziam
personagem central daquela região, seja pelos seus esforços de criação
de uma Comissão Estadual da Verdade, da qual ele foi presidente, seja
pela insistência na criação de uma comissão específica para tratar das
violações aos Aikewara durante à ditadura, ou de fazer ver as vozes
camponesas, muitas vezes esquecidas, quando se fala em Guerrilha do
Araguaia. Paulinho já era, desculpem o neologismo, um amanhecedor de
noites históricas, um sol forte a raiar pelas bandas do rio Araguaia e
Tocantins.
Uma grande empatia cobriu nosso primeiro encontro de uma
amizade serena que, a partir dali, nutria-se de encontros esporádicos,
quando de suas visitas à Marabá, principalmente nos esforços
coletivos, encabeçados por ele, de transformar a Casa Azul, o
principal local de tortura do regime militar na região, em um centro
de memória da então criada Universidade Federal do Sul e Sudeste do
Pará.
Anos se passaram e eu, já no doutorado, tive o segundo encontro
com Paulo. Esse, entretanto, não seria um encontro presencial. Mas
pelo caminhar de meu trabalho, encontrara, no site do Instituto Paulo
Fonteles, do qual ele era presidente, simplesmente o maior e mais
completo acervo de documentos digitalizados, principalmente dos
períodos de chumbo, mas não se restringindo a ele, do Pará. Por lá
tomei coragem e vi que seria possível fazer a pesquisa histórica que

137
me propunha a fazer, pelo impressionante trabalho do instituto em
digitalização de documentos.
A pesquisa histórica encontrava-se quase finalizada quando
recebo uma mensagem de Paulinho no celular.
Alguns dias antes, mais uma chacina havia se processado no
Pará, em Pau D’Arco a polícia assassinava 10 trabalhadores rurais no
cumprimento de uma ação de despejo na fazenda Santa Lúcia. Lógico que
um amanhecedor de noites históricas não iria deixar à surdina o
ocorrido, e não demorou muito para que a luta de Paulinho para a
investigação - por meio da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa do Estado do Pará - dos policiais que assassinaram os
camponeses, se transformasse em ameaça de morte.
Paulinho já estava peregrinando pela casa de amigos em São
Paulo, quando resolveu passar um tempo em Niterói. Eu ainda não sabia,
mas aquela mensagem ao celular o traria de vez à minha vida. Por mais
de uma semana em casa, com noites embaladas por cerveja e regidas por
Vitor Ramil, ele já havia me convidado a alugar um avião para lançar
livros e panfletos nas favelas, como queria o amigo “Joquim”, já havia
devorado um livro que o emprestei, escrito vários poemas e me
convidado a digitalizar mais de dez mil páginas de arquivos sobre a
mineração na Amazônia. Aquela admirável figura de luta e resistência,
cada vez mais se tornava o amigo que usava o abraço como arma
política, a afeição como empatia revolucionária, o amor como linha de
expressão mais marcante, a ternura, de um coração impaciente, como
modo de acordar os sonhos e, acima de tudo, a memória como um caminho
de liberdade.
Paulinho ainda ficaria mais um mês em Niterói com a família em
um apartamento que alugamos depois de muito procurar. Quando a poeira
baixou, eles voltaram à Belém onde um problema no coração fulminante
encantaria Paulinho uns três meses depois.
A última frase que me lembro dele dizer antes de partir à Belém
foi “eu estou construindo um amigo para a vida toda”. E lembro, sempre
com lágrimas nos olhos, de dizer que já éramos amigos para a vida
toda, faltava só a gente descobrir isso. Ainda o agradeci por me
ensinar tanto no pouco tempo que passou por perto.
Qualquer possível virtude que meu trabalho tenha em termos de
uma leitura a contrapelo deve ser creditada a Paulinho, qualquer
inconsistência é apenas o resultado das minhas limitações em
aproveitar esses encontros decisivos.
Cada um dos encontros descritos aqui foi apenas uma maneira de
converter lágrimas em palavras, de transformar em força a dor da

138
perda, como ele sempre o fez, de aceitar o desafio que a eterna
presença de Paulinho inspira.

Bruno Malheiro, Niterói, 12 de junho de 2018.

QUANDO FUI OUTRO


Dia de domingo: sol e calor na feira de São Cristóvão, Rio de
Janeiro. Lugar de cores e vida, onde cada percurso é descoberta e
despertar. A primeira parte desse trabalho já ganhava seu primeiro
esboço, quando o que era para ser mais um dia de encontros com amigos
e amigos de amigos, tornou-se um momento denso, necessário de ser aqui
descrito.
Nunca havia me sentido desconfortável naquele lugar até aquele
almoço programado de domingo. Tudo por conta de uma frase ouvida em
meio a uma miríade de conversas. A frase dita que, aqui, merece o
destaque de um travessão, foi:
- “Engraçado aqui. Na verdade, daqui pra baixo é sul né? Até
tem Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul. Mas, gente, da Bahia
pra cima é tudo igual, vamos convir!”
A mesa era grande, muitas pessoas eu via pela primeira vez, mas
de alguma forma, mesmo distante da pessoa que enunciou a tal frase,
escutei-a com uma clareza cortante. Não pude deixar de ouvi-la e de
guardar cada palavra dita e o tom em que foram enunciadas, assim como
as expressões no rosto de quem a proferiu após a conjunção adversativa
“mas”: um sorriso complementado com um olhar panorâmico ao seu redor.
Confesso que não foi a primeira vez que ouço algo do tipo no
Rio de Janeiro, mas ouvir isso logo ali, o recanto de encontros em que
as cores, os ritmos, o artesanato, os sotaques, os rumos das prosas
marcam tantas diferenças. Logo ali onde a diversidade salta aos olhos,
alguém conseguia reduzir tudo a nada.
O pensamento voou longe, pensei em dar uma resposta de pronto,
mas ponderei, pois, um contraponto naquele momento, além de
monopolizar o sentido de uma conversa tão amistosa, poderia produzir
um desconforto em pessoas tão queridas que estavam ali também.
A frase em si nos conta muito: o raciocínio parte de uma imagem
de Brasil que possui um centro a partir do qual todo o resto é
dividido em uma parte debaixo e outra de cima. Vendo a partir deste
centro, arroga-se o direito de dizer, afinal de contas, o que existe
deste resto. A parte de baixo até existe, num “até” que, na verdade
significa: eles são mais parecidos comigo, por isso consigo vê-los.

139
Mas a parte de cima, com a licença da ironia, é inexistente para a
impressionante inteligência imaginativa deste pensamento, e a melhor
forma de negligenciar a existência do outro que não sou eu é torná-lo
genérico, tal como fizeram os colonizadores ao inventarem identidades
fixas como as de índios e negros para desprezar a diversidade que eles
encontravam. Aglutinar toda a diversidade de povos, regiões em um nada
vazio de sentido é a melhor forma de inferiorizar e colonizar.
Aquela frase carrega em seu enunciar muito do que esse trabalho
tentou dizer nos capítulos até aqui. Ela não está só nos almoços de
domingo, pois povoa o sentido de leitura de mundo de boa parte da
sociedade brasileira.
O que está em jogo é uma forma de ver o mundo que possui um
centro de sentido a partir do qual tudo é espelhado. O outro, assim, é
reflexo daquele que o define como outro, não podendo existir por suas
próprias explicações. Achar que os de cima são todos iguais, pois não
refletem características do centro a partir do qual se vê o Brasil
(Rio de Janeiro) é uma arrogância nutrida de uma preguiça cognitiva.
Quando fui outro, percebi que,quando se é chamado à existência
para não existir, a indiferença daquele que chama pode se transformar
em qualquer coisa. Ver o mundo como espelhos, pode ser violento e
perigoso, pois ninguém sente falta do que não vê.

Bruno Malheiro, Niterói, 22 de novembro de 2015.

140
O DIAGRAMA
(...)
Nome tem o objeto
Estranho
Sua superfície reluz ócio
Serpenteiam a estratégia
Inibem com serões
A pluma dos dias
Numa espécie de aço
Curvam jardim em hectares
Tolos!
Essa é uma passagem
Sem vírgula
O que se aflora palatável
Vértebra de coisas fáceis
Seres avisados do risco
A se ater do que sobra
(...)
Charles Trocate

A amiga sorrindo:
- “Marabá chegou ao mar!
Com duas pernas de ferro de 900 km,
E isso dá poesia!”
(Há uma alegre ironia
Nadando em seu olhar)
Sorrimo-nos em pânico:
- “É verdade, gente, chegamos ao mar!”
e ficamos alegres e orgulhosos
da estrada-de-ferro
da Nossa Senhora Vale do Rio Doce
Bem verdade que Ela nos leva
a entranha ferruginosa da serra
e, na ida, entre o céu e a terra,
deixa-nos ao menos isso
E só isso
uma sacudida na ponte
um apito maroto
como afago de gigolô
(...)
Ademir Braz

O curumim
que assistia o beija-flor
beijar as flores da estação
Agora vê
fotografia em preto-e-branco
entre as fornalhas de carvão
E presencia
a dança tosca de um trem
por entre as linhas de transmissão
É duro amanhecer sem cheiro e sem sabor
Não Vale estilhaçar o coração do cantador
Clauber Martins

141
Os três fragmentos poéticos que abrem essa segunda parte do trabalho são
nossos passaportes de entrada a essa passagem sem vírgula, do apito maroto, em dança
tosca. É nossa forma poética de chegar junto com as vozes daqueles que nos trouxeram
até aqui.
A mineração foi vista na primeira parte deste trabalho a partir da sua
emergência como processo de territorialização de exceção na Amazônia, tomando como
elemento central da análise, o Estado capitalista. Por esse caminho, o risco
historicamente representado pela Amazônia ao Brasil foi respondido pela imposição de
processos territoriais violentos, suspendendo qualquer normatividade jurídica, tornando
a vida dos povos e comunidades tradicionais elemento descartável no tabuleiro do
planejamento regional. Olhar pela lógica da exceção é ver o espaço a contrapelo, não
como acúmulo progressivo de estruturas e relações novas, mas como ruínas, libertando
a geografia do messianismo de análises que, apesar da boa pretensão, esmagam vidas
por não enxergá-las.
Entretanto, se em termos de arqueologia histórica não podemos entender a
mineração na Amazônia sem entender o próprio processo de formação do Estado
Nacional nessa região, em termos de genealogia, queremos compreender a racionalidade
corporativa de governo do território por meio de uma empresa, a Vale S. A. que já foi
Estado e, hoje, combina a força simbólica de antiga estatal com a força política e
econômica de ser uma das maiores empresas privadas de mineração do mundo.
Em termos metodológicos, essa segunda parte, o diagrama, pretende construir
uma analítica do poder corporativo, ou seja, entender o funcionamento das relações de
força que definem tecnologias específicas de exercício do poder por uma empresa.
Queremos entender, a partir das premissas de Foucault (1990)32, certo número de
práticas, de tecnologias políticas acionadas por uma racionalidade corporativa de
governo do território.

32
Foucault (1990) adverte para algumas precauções metodológicas para uma analítica do poder, quais
sejam: primeiramente não devemos tratar o poder pelo seu centro e sim pelas suas extremidades, ou seja,
mostrar onde ele se torna capilar, o que significa mostrar como o mesmo se exerce; uma segunda
precaução é a de que não devemos tratá-lo pelo seu lado interno, ou seja, perguntar quem tem ou deixa de
ter poder, mas entendê-lo em sua face externa, onde se exerce e produz efeitos reais; um terceiro elemento
é que não podemos tratar o poder como fenômeno homogêneo, uma vez que ele não se aplica aos
indivíduos, passa por eles; uma quarta consideração nos mostra que é preciso, ainda, fazer uma análise
ascendente do poder, ou seja, partir das técnicas, do seu exercício, para posteriormente chegar ao seu
conjunto, o que significa partir de uma análise de seu funcionamento, dos dispositivos criados para seu
exercício e não interrogar sobre suas grandes motivações.

142
Algumas são as tentativas de compreensão da racionalidade espacial de
grandes empresas no campo da geografia. Roberto Lobato Corrêa (1991), por exemplo,
já havia alertado sobre as características espaciais de uma grande corporação
demonstrando que as mesmas possuem ampla escala de operações, atuam a partir de
uma multifuncionalidade, em uma segmentação organizada dos negócios, além de
possuírem a possibilidade de estar em distintas localizações e, assim, terem um grande
poder de pressão político e econômico.
Silveira (2007), por sua vez, chega mesmo a construir o conceito de territórios
corporativos para sintetizar esses processos nos quais grandes empresas são capazes de
influenciar nas decisões de governos nacionais por seu grande poder financeiro, sua
capacidade de mover-se procurando as melhores condições espaciais, sem nenhuma
relação mais próxima com os lugares, por conta da lógica do lucro guiar suas formas de
uso do território. Tomando como referência o conceito de território usado para pensar a
noção de territórios corporativos, a autora continua demonstrando que as grandes
empresas criam circuitos espaciais de produção, coerentemente feitos funcionar por uma
solidariedade organizacional que, por sua vez, privatiza os territórios nacionais e
interferem diretamente em solidariedades orgânicas e territórios abrigo (SILVEIRA,
2007, 2011).
Os trabalhos de Corrêa (1991) e Silveira (2007, 2011) ampliam as categorias
de observação para pensarmos as expressões de uma racionalidade corporativa no
espaço. Entretanto, é também necessário especificar que falamos, neste trabalho, de
grandes empresas de mineração, o que confere uma singularidade no que tange às
formas de definição de territórios pelas corporações.
Três trabalhos clássicos sobre a região de Carajás podem ampliar a nossa
compreensão sobre a dinâmica territorial das grandes empresas de mineração, são eles:
a) o livro ―Carajás: o Brasil Hipoteca seu futuro‖ realizado pelo recém fundado (à
época) IBASE, entre 1981 e 1982, mas publicado em 1982; b) o trabalho clássico de
Orlando Valverde ―Grande Carajás: planejamento da destruição‖, encomendado pela
própria CVRD à época e publicado em 1989; c) o conjunto de trabalhos de Maria Célia
Nunes Coelho sobre as reestruturações espaciais provocadas pela mineração na
Amazônia, o que foi desenvolvido em artigos e em organização de livros, como ―10
anos da Estrada de Ferro Carajás‖ em parceria com Raimundo Cota e ―Mineração e
Reestruturação espacial da Amazônia‖, em parceria com Maurílio Monteiro.

143
O primeiro trabalho, produzido pelo IBASE, trás a influência analítica de boa
parte dos estudos sobre mineração, que se traduz num modo particular de apropriação
da teoria da dependência, particularmente da ideia de deterioração dos termos de troca,
que traduziria a exponencial diferença entre o volume e valor financeiro proveniente das
exportações de commodities e o volume e valor gastos para a importação de produtos
industrializados, ou nos termos do estudo em questão:
Em grande parte, o objetivo final desses programas é o fortalecimento
de matérias-primas (minérios, produtos agrícolas, insumos básicos)
que irão abastecer as indústrias e/ou mercados dos países
desenvolvidos. Tais produtos, como se sabe, além de possuir um
reduzido valor agregado, não têm sobre a economia nacional os
efeitos multiplicadores que os produtos mais elaborados permitem. De
fato, os dados mostram que a evolução dos preços das matérias –
primas (...) não vem acompanhando a evolução dos preços dos
produtos mais elaborados dos países desenvolvidos (IBASE, 1982, p.
19).

A partir desse diagnóstico de dependência se constrói a tese de uma hipoteca


do futuro por meio do Programa Grande Carajás (PGC), o que está assentado em, pelo
menos, três bases: a contínua perda de poder de decisão do Estado brasileiro em relação
à extensão de áreas apropriadas por capitais estrangeiros; a crescente
transnacionalização da economia brasileira pela entrada decisiva de grandes
corporações ligadas às commodities agrícolas e minerais; e o elevado nível de
endividamento externo pelo grande investimento e volume de empréstimos que o PGC
necessita, o que coloca o Brasil em uma posição desfavorável no cenário geopolítico
internacional.
Entretanto, a mineração não se explica apenas no trânsito de escalas, entre
políticas estatais e estratégias de empresas transnacionais, também se realiza em um
circuito espacial bastante específico e a definição de uma geografia econômica do setor
mineral também se torna importante. Não sem razão, o estudo de Valverde (1989), além
do mérito crítico e propositivo, apesar do financiamento empresarial que o gerou, parte
da compreensão dessa geografia dos pólos industriais que ele então define da seguinte
forma:
A escolha dos pólos industriais deve resultar, enfim, de um
compromisso geográfico, em que entram em jogo fatores, tais como:
preço, classe do produto, raridade, volume da demanda, fretes etc.
Essa escolha dá origem a um sistema de locais qualificados para a
implantação industrial. (...) Os fatores para se auferir justeza da
escolha de um determinado local para a instalação de um pólo desse
tipo são: 1) a proximidade da matéria-prima; 2) disponibilidade de
energia abundante e barata; 3) o especialmente de água abundante; 4)

144
acesso fácil aos mercados (problema dos transportes); 5)
disponibilidade de mão-de-obra (VALVERDE, 1989, p. 3-4).

O estudo mostra, portanto, os sistemas espaciais criados pela atividade mineral


e toda a dinâmica de localização e posicionamento que define uma economia espacial
de um setor. O alerta de Valverde (1989) nos transporta para um circuito espacial
definido entre as zonas de extração e os portos de exportação e todas as condições
necessárias para a realização de uma atividade. O olhar aqui é um olhar estrategista, que
pensa a materialidade do espaço e suas relações a partir das necessidades específicas da
atividade industrial da mineração, o que demonstra que o espaço é elemento decisivo da
produção industrial, mas também o é para a compreensão da racionalidade empresarial
expressa pela atividade mineral.
O terceiro estudo, que se apresenta nos trabalhos de Maria Célia Nunes Coelho,
transporta-nos a outro espectro espacial da mineração, mas com direta relação ao que a
problematização de Valverde nos indica. A sensibilidade da autora para reconhecer a
mineração a partir das regiões de seu entorno, negando o conceito de enclave, que se
restringiria aos circuitos econômicos e esqueceria toda a onda de processos regionais
desencadeados por projetos minerais, parece ampliar o escopo da análise. Em seus
termos:
As áreas externas aos municípios-sede de projetos infraestruturais ou
nas quais se implantaram empresas de extração e transformação
mineral são inevitavelmente afetadas pelas mudanças físicas e
socioespaciais por eles suscitadas, por corresponderem ao espaço de
destino da migração, da mobilidade e da mobilização das populações
por eles atraídas. Insistir então no conceito de enclave significaria
continuar sem saber qual é a relevância de tais projetos em termos de
mudanças nas formas produtivas preexistentes e nas relações político-
sociais e espaciais até então vigentes. Não é, todavia, nosso interesse
neste artigo delimitar o alcance espacial da influência exercida por
esses projetos, mas reconhecer que eles redirecionam trajetórias
históricas dos territórios preexistentes e examinar os elementos
geradores de diferenciações e desigualdades sociais e espaciais
resultantes das políticas estratégicas regionais de desenvolvimento
expressas nos sucessivos planos nacionais, regionais e estaduais
(COELHO et alli, 2005, p. 74).

Do conjunto de trabalhos apresentados podemos pensar a racionalidade das


grandes empresas de mineração a partir de duas entradas possíveis que sintetizam uma
geograficidade da mineração, que chamaremos aqui de regimes geográficos
corporativos, lembrando que a palavra regime nos sugere o vocábulo reger, ou seja,

145
uma arte de governar espaços ou definir territórios, no sentido de governo de Foucault,
como uma ação sobre outras ações.
O primeiro regime geográfico corporativo se define pelo poder de influência
político e econômico das grandes empresas e seu trânsito de escalas e relações com o
Estado. Esse primeiro regime demonstra que, para entender o sentido das estratégias
empresariais é, primeiramente, necessário compreender o contexto geopolítico em
termos de valorização das commodities minerais, seja na dinâmica de preços do
mercado internacional, seja por programas estatais direcionados ao favorecimento das
exportações de bens primários. Como os circuitos espaciais da mineração são globais,
atravessam múltiplos governos e escalas, e as ações estratégicas das empresas nos
territórios obedecem à lógica extremamente financeirizada do setor mineral, não há
como pensar a racionalidade das grandes corporações minerais sem uma
contextualização geopolítica.
O segundo regime geográfico corporativo se refere às estratégias empresariais
de gerir o espaço e definir territórios a partir das necessidades imediatas da produção
mineral. Em si é uma mudança na maneira de observar o fenômeno. Consideramos os
circuitos internos, a economia espacial da mineração, mas para entender o seu
transbordamento ao entorno, ou a transformação do entorno necessário para a realização
dessa economia espacial, em um território administrável para a empresa. Esse segundo
regime nos encaminha para a compreensão da mineração não apenas como atividade
que desenha circuitos espaciais ou racionaliza o espaço como parte de sua cadeia
produtiva, nem apenas como setor altamente influenciado pela dinâmica de preços e
posturas geopolíticas e estratégicas de Estados e de empresas, mas como ação territorial
que gera tensão, como processos de territorialização que criam tensões territoriais.
É a análise desses dois regimes geográficos da mineração que definirá esse
segundo eixo do trabalho a partir de uma focalização específica na produção do ferro
em Carajás, com especial destaque ao projeto S11D. O contexto geopolítico, o modo em
que o espaço é elemento estratégico para a definição das atividades e circuitos minerais,
bem como as tensões territoriais que a mineração cria, serão elementos de análise a
partir daqui, tomando como base o projeto acima mencionado.
A tarefa analítica não mais se circunscreve ao arquivo, pois pretende se
direcionar ao diagrama, para as estratégias concretas de uma empresa para garantir seus
arranjos espaço-temporais e a viabilização de sua produção, melhor dizendo, queremos

146
construir um mapa das relações de força que tornam viável a mineração, como uma
prática espacial, ou como um processo de territorialização na Amazônia.
Se a exceção foi até agora vista pelas suas condições de possibilidade, agora
será vista por sua lógica de funcionamento a partir de uma racionalidade corporativa. Se
a ideia de risco se grudou até aqui a uma leitura de região, agora veremos a produção
das concepções de riscos corporativos, que também deságuam em práticas espaciais de
exceção.
Essa segunda parte, portanto, se divide em quatro capítulos, no primeiro, o
capítulo 4, centraremos a análise no primeiro regime geográfico da mineração, o
contexto geopolítico que guia a trajetória da criação da Companhia Vale do Rio Doce à
empresa Vale. No capítulo 5, já analisando o segundo regime geográfico anteriormente
definido, propomos ler a economia espacial da mineração como um metabolismo social
para, então, compreender de que maneira o controle dos processos produtivos
transforma as áreas do entorno dos projetos de mineração em territórios administráveis à
empresa. No sexto capítulo, entraremos nas estratégias concretas de gestão das
populações dos entornos dos projetos minerais, a saber: desmobilização, resignificação
e antecipação à crítica. No capítulo 7, os mecanismos de gestão das populações do
entorno serão lidos como processos territoriais de contenção e desterritorialização.

147
CAPÍTULO 4

DA CVRD À VALE: DOS ACORDOS DE


WASHINGTON À CRISE DAS COMMODITIES

A Vale é um mostro, uma destruição, é uma empresa que pode


ser que traga benefícios, mas para quem tem condição, para os
pobres ela destrói, ela passa por cima, ela acaba os sonhos, ela
destrói a vida dos moradores, ela destrói a natureza, ela destrói
tudo e o final é que ela vai tirar toda a riqueza do nosso Pará e
deixar o buraco. Vale pra mim é Vale nada! Vale pra mim é
Vale nada!! A Vale é um mostro, é um dragão de ferro que
passa aí destruindo o sossego, a paz e o sonho. Então eu fiquei
feliz que eu viajei no primeiro trem de passageiros e hoje
quando eu me lembro... me dá vontade de chorar da desgraceira
que é essa empresa

Sr. João Reis

148
Era o fim de uma tarde de sábado, o céu já se pintava com as cores
características de um sol se pondo, quando João Reis, olhando o trem passar a menos de
100 metros de sua casa, falou aquilo que viraria epígrafe desse capítulo. Não é sem
razão ou apenas por uma escolha de estilo de escrita que ela se encontra nesse início, é
apenas para introduzir o significado que pode assumir uma empresa para sujeitos que
vivem literalmente às suas margens. Toda a leitura histórica que iremos resgatar aqui,
particularmente para entender o contexto de criação da Companhia Vale do Rio Doce e
os regimes geográficos desenhados pelos contextos geopolíticos distintos pelos quais a
empresa passou e a partir dos quais ações e formas de organização empresariais irão
emergir, não podem prescindir das pessoas a quem escolhas econômicas, inscritas em
escalas globais, podem significar perda das condições materiais da existência.
Entender a empresa que destruiu os sonhos, a paz e o sossego de seu João Reis,
o dragão de ferro que fez com que ele gritasse próximo aos nossos ouvidos para ser
escutado, entender essa empresa que, para ele não vale nada, é uma tarefa analítica
necessária para que consigamos ler o primeiro regime geográfico da mineração.
Entretanto, tantos valores serão ditos, cifras e números irão se acumular por entre as
linhas, que pedimos que cada um desses valores, seja visto, também, pela perspectiva de
seu João, para que tantas solicitações de mercado não automatizem nosso olhar.
Fizemos a opção, nesse capítulo, de relacionar os contextos geopolíticos, que
nos mostram esse regime geográfico global a definir os rumos dos projetos minerais, a
partir da trajetória da CVRD para que tenhamos um foco e maior precisão na análise.
Nesse sentido, dividimos os argumentos em três partes, assim dispostas: na primeira,
falaremos dos acordos de Washington para entender as condições de possibilidade para
a emergência da CVRD, mas também das solicitações neoliberais aos países latino-
americanos, conhecidas como consenso de Washington, para entender as linhas gerais
do processo de privatização da empresa. Em um segundo momento, Washington é
substituída por Beijing como eixo geopolítico estruturante das demandas da mineração.
Por fim, falaremos da crise das commodities e os sentidos de emergência, como criação,
mas como necessidade, do projeto S11D da empresa Vale.

4.1. DECISÕES DESDE WASHINGTON: ACORDOS E CONSENSOS


Os ataques à base americana de Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941 pela
marinha imperial japonesa, forçaram uma movimentação intensa das forças
diplomáticas norte-americanas no recrutamento de aliados para o enfrentamento da

149
Segunda Guerra Mundial. Esse clima bélico e de revanche, guia, então, a convocatória
da III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas
Americanas, que irá acontecer entre 15 e 28 de janeiro do ano subseqüente, no Palácio
Tiradentes no Rio de Janeiro (OEA, 1942). Dentre os assuntos mais debatidos, além,
lógico, da pressão nos países latino-americanos de se juntarem aos esforços de guerra
dos EUA e romperem de imediato as relações diplomáticas e comerciais com os países
do Eixo (com destaque a Alemanha, Itália e Japão), estava a exploração das jazidas de
minério de ferro de Minas Gerais e a necessidade de um esforço de guerra que
garantisse e firmasse a possibilidade de exportação desse minério auxiliar na dinâmica
da guerra.
Em 3 de março daquele ano eram assinados, em Washington, acordos que
definiram uma estreita ligação entre Brasil, EUA e Reino Unido no caminho do
fornecimento, por parte do Brasil, de matérias-primas estratégicas naquele contexto de
guerra, como minério de ferro e borracha, em troca de uma facilitação nos
financiamentos a serem concedidos ao país. Estavam selados os acordos, conhecidos
como ―acordos de Washington‖33.
É desse esforço de guerra que o Decreto-Lei 4.352 de 1° de junho de 1942 é
concebido pelo, então, presidente Getúlio Vargas, como ato de criação da Companhia
Vale do Rio Doce (CVRD) que, pelo mesmo decreto, incorporaria a Companhia
Brasileira de Mineração e Siderurgia S. A., a Itabira Iron Ore Company, empresa
inglesa que cedeu suas minas no acordo, além da Estrada de Ferro Vitória-Minas. O
governo norte-americano ainda cederia US$ 14 milhões pelo Eximbank para a empresa
comprar máquinas e equipamentos em troca do comprometimento de, por três anos,
exportar toda a produção de minério de ferro (cerca de 1,5 milhões de toneladas por
ano) a um preço abaixo do mercado e exclusivamente para os EUA e o Reino Unido
(COELHO, 2015).
A CVRD, embora tenha sido propagada aos quatro ventos, desde o
nacionalismo varguista, como uma marca nacional, em realidade se consolidou como

33
Na geografia histórica da Amazônia esses acordos sempre são lembrados, uma vez que foi a partir deles
que a região novamente retomou a produção de borracha, em crise após a entrada no mercado da goma
elástica produzida em larga escala no sudeste asiático, mas que foi realimentada pela demanda de guerra e
por conta das áreas de produção na Ásia estarem sob o domínio das tropas do Eixo. Daí se estruturaria a
política de incentivo à migração à região, chamando os migrantes de Soldados da Borracha, e, também,
viria a ser criado Banco da Borracha depois transformado em Banco da Amazônia. Mas o registro que se
quer fazer aqui é outro como seguem os parágrafos posteriores.

150
ideia, depois como corporação, a partir de relações geopolíticas extremamente
desfavoráveis ao Brasil em relação aos EUA no contexto de Segunda Guerra Mundial.
A extrema dependência e submissão expressas no contexto de criação daquela
que se consolidaria como maior empresa de mineração do Brasil contrastava com as
distintas ações do governo Vargas, já descritas na primeira parte deste trabalho, de
nacionalização das jazidas minerais e criação de empresas nacionais de controle dos
recursos naturais. Entretanto, a CVRD seria a expressão máxima de uma empresa
nacional condicionada por pressões estrangeiras, abastecida de capital estrangeiro e
dependente da demanda estrangeira, com, inclusive, administração com a presença
estrangeira. A redundância e repetição de palavras são justificáveis quando entendemos
que, diante da importância estratégica das minas de Itabira no contexto de guerra, até
mesmo a organização das diretoriais da empresa foi afetada:
A CVRD seria constituída como uma sociedade anônima, de
economia mista, com capital inicial de 200 mil contos de réis. Sua
diretoria seria composta por cinco membros: um presidente e dois
diretores de nacionalidade brasileira e mais dois diretores norte-
americanos. A Companhia seria organizada em dois departamentos
básicos: o da Estrada de Ferro Vitória a Minas, a ser administrado por
diretores brasileiros, e o das Minas de Itabira, dirigido conjuntamente
por brasileiros e norte-americanos (VALE, 2012, p.56).

Os anos do pós-guerra seriam difíceis para a indústria mineral, pela redução


mundial de consumo de ferro e aço, de modo que a saída aos norte-americanos salvaria
mais uma vez a busca por demanda, não sem razão os EUA, em 1950, representavam o
principal parceiro, com 81,48% do total das exportações da empresa. Nesse momento, a
CVRD, que representava 11,2% da produção de minério de ferro no Brasil em 1942, já
respondia pela produção de 81,8% da produção total do país em 1950, de modo que,
com a entrada de novos mercados produtores de minério de ferro, a empresa também
precisou, nas décadas posteriores, diversificar os destinos das exportações,
consolidando o Japão, o Canadá e a Alemanha Ocidental, também como países
importantes na criação das demandas (VALE, 2012).
Se os mercados se expandiam, os circuitos da mineração e toda a logística para
a facilitação das exportações ainda não era uma realidade. O problema da logística,
como modo de definição das possibilidades de exportação do minério de ferro, só seria
totalmente solucionado em 1966, com a inauguração, em Vitória, do Porto de Tubarão,
ponto final da Estrada de Ferro Vitória-Minas. A figura de Eliezer Batista, nesse
particular, ministro das minas e energia de João Goulart e presidente da CVRD no início

151
da década de 1960, antes do golpe civil-militar de 1964, foi de fundamental
importância, uma vez que foi ele quem construiu o projeto do terminal portuário quatro
anos antes de sua inauguração.
O golpe civil-militar ampliou a possibilidade de entrada do capital estrangeiro
nos empreendimentos mineradores e o Código de Minas de 1967, ao estabelecer que a
exploração das jazidas minerais fosse normatizada por legislações espaciais, construiu a
possibilidade de que os processos de exploração tivessem tratamento diferencial, de
acordo com a característica e raridade do minério, localização da jazida e conjuntura
internacional. Em tempos de destruição das instituições democráticas e nenhuma
mediação nos processos políticos, cada vez mais as empresas nacionais ampliarão seus
investimentos à custa do capital estrangeiro, e o alinhamento geopolítico escolhido, já
em contexto de Guerra Fria, fará de algumas empresas nacionais uma expressão do
imperialismo norte-americano na América Latina, que, logicamente, não se restringia às
relações econômicas, por também interferir de forma direta nos assuntos político-
sociais, sustentando regimes autoritários.
O ano de 1967 daria mais um exemplo da importância do capital de empresas
norte-americanas na mineração no Brasil. A frase construída pelo Geólogo Breno
Augusto dos Santos para definir sua ―descoberta‖ das minas de ferro e manganês de
Carajás ―a última descoberta romântica da geologia‖, esconde um fato importante: a
chegada de uma equipe de geólogos naquela região só foi possível pela busca incessante
de manganês pela gigante siderúrgica norte-americana US Steel. Breno era funcionário
da Companhia Meridional de Mineração, braço brasileiro da US Steel, e o uso da aldeia
dos Xikrin do Cateté como base de apoio e até, no princípio, pista de pouso, bem como
o rápido telegrama enviado ao geólogo americano Gene Tolbert, professor da USP,
entre 1957 e 1961, e chefe do escritório brasileiro da US Steel à época, dizendo que
poderia mandar soro antiofídico (código criado para driblar a espionagem entre as
mineradoras que devassavam de pesquisas o Norte do Brasil) (VALE, 2012), parecem
retirar a possibilidade de definição da ―descoberta‖ como obra romântica.
O regime civil-militar criou as possibilidades para que as minas de Carajás
fossem incorporadas ao portfólio empresarial da CVRD. O Programa Grande Carajás,
abrangendo a construção da Hidrelétrica de Tucuruí, a exploração da bauxita em
Oriximiná pela Mineração Rio do Norte, além da criação das empresas de
transformação da bauxita em alumina e alumínio em Barcarena, Albras e Alunorte,
consolidou a exploração de ferro em Carajás pelo projeto Ferro Carajás. A dívida

152
externa se alargava, mesmo assim em 1979 a CVRD consegue empréstimos junto ao
Banco Mundial (VALE, 2012), para construir as condições objetivas para a exploração
das minas Norte de Carajás, o que significava maquinário e a construção da Estrada de
Ferro Carajás.
Novamente a logística era a mola mestra para o sucesso econômico do
empreendimento e é por estes termos que o último presidente da ditadura civil militar
João Figueiredo chama para a presidência da CVRD aquele que foi ministro das Minas
e Energia do último governo anterior ao golpe de 1964, estamos falando de Eliezer
Batista, que prontamente aceitou o convite de pensar a logística do Projeto Grande
Carajás, sendo presidente da companhia, novamente entre 1979 e 1986.
Carajás já expressava processos mais automatizados de exploração mineral34,
de modo que a organização empresarial, seguindo as linhas mestras daquilo que Harvey
(2002) define por acumulação flexível35, além de se centrar no forte investimento em
possibilidades tecnológicas de aceleração da extração e do transporte, definia uma larga
reestruturação do trabalho por uma política agressiva de terceirizações, sendo que
demissões ocorreram por alegações disciplinares, um plano de demissão voluntária foi
criado e funcionários demitidos foram contratados como terceirizados por um terço do
valor do salário anterior, unicamente para reduzir os custos do trabalho nessa dinâmica
de reestruturação produtiva (MINAYO, 2004, COELHO, 2015).
Vale ressaltar, que estamos ainda falando de uma empresa estatal, que era um
conglomerado de 30 empresas - entre coligadas e controladas - em 1994 (VALE, 2012),
mas que terá faturamento de US$ 304 milhões em 1994, US$ 721 milhões em 1995 e
US$ 558 milhões em 1996, desarmando qualquer discurso de que a empresa estava com
as contas deficitárias nos anos anteriores à sua privatização (COELHO, 2015).
Porém, a lógica neoliberal já havia se estabelecido enquanto política do Estado
brasileiro entre o final da década de 1980 e inicio da década de 1990, e as privatizações

34
Minayo (2004) chega a dividir os processos de extração pela CVRD em quatro fases, uma primeira em
que a extração é mais manual, uma segunda em que é introduzido processos de mecanização, uma terceira
marcada por inovações tecnológicas e mudanças grandes em termos de gerenciamento, e uma quarta, na
qual se insere a exploração em Carajás, de aprofundamento da automação e crescente flexibilização das
relações de trabalho.
35
Harvey (1992) define a acumulação flexível a partir do contraste com a rigidez de um modo fordista de
produzir, identificando, a partir das influências da escola da regulação, um processo de flexibilização dos
contratos e processos de trabalho - o que significa terceirização, multifuncionalidade do trabalhador e
menor segurança no trabalho - de flexibilização da produção (com inovações tecnológicas, operacionais e
comerciais), que passa a ser em lotes produzindo economias de escopo, além de processos de
flexibilização do padrão ouro-dólar com predomínio do capital fictício, do próprio consumo, mais
individualizado e fugaz, situando essa dinâmica no contexto de um Estado Neoliberal que apenas gere
ambientes propícios à reprodução dos mercados.

153
já eram uma realidade, pelo menos uma possibilidade, desde a criação, em 1979, do
Plano Nacional de Desburocratização e da Secretaria Especial de Controle das
Empresas Estatais, que já introduziram limites à expansão do setor público, criando
condições para a transferência do controle das empresas estatais para a iniciativa
privada. Mas as formulações básicas que dariam suporte a uma política econômica
neoliberal só foram consolidadas durante um seminário realizado em 1989, pelo
Instituto Internacional de Economia, voltado para discutir reformas de abertura ao
mercado para os países latino-americanos, sendo neste seminário que o economista
estadunidense John Williamson formula os 10 pontos de uma agenda de políticas
públicas que ficaria mundialmente conhecida como ―Consenso de Washington‖
(ALMEIDA, 2010). Dentre as ações propostas na agenda, a reforma fiscal, com
profundas alterações no sistema tributário, diminuindo tributos para grandes empresas; a
abertura comercial, proporcionando a elevação de importações e reduzindo as tarifas
alfandegárias para elevar exportações; e a redução da participação do Estado na
Economia, seja pela privatização de empresas estatais, seja pelo estímulo à
reestruturação produtiva com aumento das terceirizações e diminuição do valor real dos
salários, foram elementos estruturadores de uma nova/velha agenda política que seria
adotada no Brasil.
O conjunto de privatizações realizadas, ainda em 1987 pelo Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a criação do Programa Federal de
Desestatização, em 1988, pelo governo Sarney e as reformulações no programa e
criação do Plano Nacional de Desestatização, em 1990, pelo governo Collor - que
selecionou empresas que representavam a base da estrutura industrial, do setor
siderúrgico, de fertilizantes e petroquímicos - colocaram as privatização como
centralidade da política econômica do Estado brasileiro.
A eleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) não mudaria a importância do
Consenso de Washington para a definição da agenda econômica do governo, pelo
contrário, FHC ampliou o PND e, em seu governo, além das empresas da base industrial
brasileira, também houve uma aceleração da privatização dos serviços públicos básicos
(ALMEIDA, 2010). O discurso de diminuição da dívida pública e de maior eficiência
das empresas nas mãos do mercado levaria o governo a diminuir de forma grosseira o
valor de mercado das empresas que seriam privatizadas e é nessa manobra entre

154
discursos e valores que 41,73% da CVRD foi vendida ao Consórcio Brasil36 por R$
3,338 bilhões, sendo o valor da companhia estimado naquele momento em cerca de R$
100 bilhões. As irregularidades do processo se amontoam: a corretora contratada para o
leilão pelo governo federal Merril Lynch possuía ligação comprovada com uma das
concorrentes na transação, a empresa Anglo América, além de criar uma metodologia de
avaliação de patrimônio que, por exemplo, desconsiderava o valor potencial das grandes
reservas minerais ainda a serem exploradas; essas reservas, inclusive, no caso do
minério de ferro, que foram informadas à entidade fiscalizadora do mercado acionário
norte-americano, a Securities and Exchange Comission, em 1995, como sendo de 7.918
bilhões de toneladas, em Minas Gerais e 4,97 bilhões em Carajás, no Edital de
privatização apareceram com 1,4 bilhão e 1,8 bilhão de toneladas respectivamente; sem
falar que em 1996 a CVRD já era a maior produtora de alumínio e ouro da América
Latina, tinha a maior frota de navios graneleiros do mundo, possuía 1.800 quilômetros
de ferrovias, além das enormes reservas de ferro, cobre, bauxita, manganês, níquel,
potássio, zinco, caulim, dentre vários outros minerais.
O arranjo do consórcio vencedor constituiria as relações que viriam a se
consolidar, em uma empresa de capital aberto, no desenho da composição acionária da
mineradora que, embora com várias entradas de outras empresas – inclusive do
consórcio perdedor, como a Mitsui - e uma participação maior do capital estrangeiro,
até hoje alguns agentes econômicos do consórcio vencedor permanecem com
centralidade, como os Fundos de Pensão do Branco do Brasil (Previ), da Petrobrás
(Petros) e da Caixa Econômica Federal (Funcef), além da participação do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), através do BNDESPar. A
figura abaixo demonstra a composição acionária da empresa em junho de 2016, com
destaque aos 46,7% da participação de investidores estrangeiros na composição total do
capital, além da participação em 32,7% da Valepar, a qual, por sua vez, é composta por
49% de participação da Litel (que se subdivide entre Previ, com 78,4%, Funcef, com

36
O Consorcio era formado pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), o Previ (fundo de pensão do
Banco do Brasil), o Petros (fundo de pensão da Petrobrás), o Funcef (fundo de pensão da Caixa
Econômica Federal), o Funcesp (fundo de pensão dos empregados da Cesp), o banco Opportunity de
Daniel Dantas, proprietário de terras na região de Carajás e o Nations Bank (fundo). A concorrência ao
Consórcio Brasil era do Consórcio Vale com, liderado pelo Grupo Votorantim, de Antônio Ermírio de
Moraes, que contava com a participação da Anglo American, do Centrus (fundo de pensão do Banco
Central), do Sistel (fundo de pensão da Telebrás), da Caemi-Mitsui e da Japão-Brasil Participação
(formado por 12 corporações). Vale lembrar, que o governo FHC interveio no processo, impedindo
fundos de pensão de outras estatais de entrarem no consórcio Valecom para entrar no Consórcio Brasil.
Ver mais informações em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u32146.shtml

155
12,8 e Petros, com 7,7%), 21,2% de participação da Bradespar, 18,2% da Mitsui e
11,5% da BNDESpar.

FIGURA 1 – Composição Acionária da empresa Vale S. A.

Fonte: VALE, 2016

Os fundos de pensão37 e o próprio BNDES serão agentes-chave para os


processos de privatização no contexto de políticas neoliberais dos governos FHC, só
lembrar que o Previ, central nos processos de privatização da Vale, com 15% de
participação, também estará em processos de privatização do setor elétrico, com 22,2%
da Neoenergia e 8,4% da CPFL, além de estar em outras empresas do setor mineral,
como o Sistema Usiminas, com 10,5%, e da Paranapanema, com 24%, sem falar no
setor ferroviário, com participação em 4% da ALL Logística (ROCHA, 2013).
Entre a consolidação do Consenso de Washington em políticas econômicas
pelo governo brasileiro e as inúmeras irregularidades de um leilão de privatização, a
CVRD passou a ter o controle acionário nas mãos da iniciativa privada, embora o

37
Os fundos de pensão que se apresentam como agentes econômicos cujo fim é o benefício da
aposentadoria ao trabalhador, assumem, também, o papel de valorizar o dinheiro recebido, o que os
transforma em agentes financeiros que, com a couraça de instituições sem fins lucrativos, convertem as
contribuições diretas de assalariados em renda que faz girar os processos de exploração e espoliação do
trabalho e da natureza, chegando mesmo a serem definidos por Sauviat (2005, p. 126), como ―uma
máquina de disciplinar os assalariados‖.

156
Presidente da Companhia ainda seja nomeado pelo governo, o que também já está
sofrendo ataques, como o desferido por Michel Temer ao pressionar os fundos de
pensão que controlam a empresa a transformarem suas ações preferenciais em ações
ordinárias, tudo isso no contexto de medidas que retomam o velho programa de
desestatização para passar à iniciativa privada as empresas restantes, com destaque
especial à Petrobrás.
A empresa vendida por pouco mais de R$ 3 bilhões gerou, contabilizados em
Reais, entre 1997 e 2013, gerou US$ 37.286 bilhões, contabilizados em Dólar, de lucro
direto aos seus acionistas (COELHO, 2015). Washington parece mesmo ter tido um
papel decisivo no trajeto da CVRD, seja pela pressão de guerra que estimulou a
fundação da corporação, seja pelo receituário neoliberal que permitiu sua privatização.

4.2. DO CONSENSO DE WASHINGTON AO CONSENSO DAS COMMODITIES


A emergência de governos progressistas na América Latina no início do século
XXI, longe de significar uma maior complexidade nas pautas de exportação desses
países, com destaque a produtos com maior valor agregado, em realidade, expressou,
quase que de forma uníssona, a escolha das exportações de commodities agrícolas e
minerais como o caminho absoluto para a conquista do superávit primário e para o
crescimento econômico. O esforço analítico e teórico que acumulou a esquerda no
continente, que sugeriam um caminho de desenvolvimento via industrialização e
redução da condição periférica dos países como exportadores de matéria-prima, foram,
literalmente, dragadas pelo contexto de aceleração dos preços das commodities no
mercado mundial.
Nesse particular, no contexto que se seguiria entre 2003 e 2013, independente
de qual fosse a inclinação ideológica do governo na América Latina, a exportação da
natureza transformada em commoditie figurava como caminho de crescimento
econômico, o que se alargou com a crise global do capitalismo a partir de 2008. Do
Brasil à Colômbia, da Argentina à Bolívia, os governos guiaram seus projetos nacionais
na superexploração dos recursos naturais expandindo as frentes do capital e agravando
os conflitos ambientais, aprofundando os processos de espoliação de camponeses e
comunidades tradicionais, o que foi bem definido por Svampa (2013) como um uma
transição do Consenso de Washington a um Consenso das Commodities ou um
consenso de Beijing, em alusão à China, principal destino das exportações minerais e
agrícolas. Os Estados-Nacionais até promoveram programas sociais e de combate à

157
pobreza, mas alicerçados a um projeto de desenvolvimento ―de grande impacto social e
ambiental que, novamente, acabam remetendo à dependência dos circuitos econômicos
globais‖ (GUDYNAS, 2012, p. 303).
A CVRD, tornada apenas Vale em 2007 e que, mesmo dez anos após sua
privatização, tornou-se uma marca verde e amarela a partir de uma campanha
publicitária, que pode mesmo ser tratada como ironia histórica, nesses anos de
Consenso de Commodities, consolida a China como sua principal parceira comercial,
sendo, já em 2006, a maior fornecedora de minério de ferro ao país asiático (VALE,
2012).
Muitas interpretações foram construídas para a compreensão mais clara do que
ocorreu em termos econômicos e políticos na América Latina neste início do século
XXI. O conceito de neoextrativismo surge como uma alternativa explicativa para a
compreensão desse contexto, tendo como escopo de definição um modelo de
desenvolvimento, com mínima diversificação produtiva e uma inserção internacional
subordinada, voltado para o crescimento econômico por meio da apropriação, em larga
escala, dos recursos naturais direcionados à exportação, tendo o Estado um papel
definitivo, não só por criar as condições dos processos de exploração, mas por usar parte
da renda gerada pelas exportações em programas sociais, buscando assim, uma
legitimação social, reivindicando a alcunha de progressista (GUDYNAS, 2012).
Apesar de reconhecer a precisão do conceito de neoextrativismo em termos de
compreensão do comportamento político e econômico dos governos na América Latina
nesse contexto de aceleração dos preços das commodities, ainda temos restrições quanto
uso do termo extrativismo que, se em outros países da América Latina, sempre esteve
associado às atividades agro-exportadoras, aos mecanismos de saque e apropriação
colonial, no Brasil, as ações de vários movimentos, emprestaram ao termo uma
vitalidade política e uma expressão territorial de resistência. Não podemos esquecer
toda a potencialidade política e estratégica que assumiu o conceito de extrativismo,
como nos lembra Porto-Gonçalves (2003), na criação, a partir dos seringueiros
organizados na Amazônia e articulados internacionalmente, das reservas extrativistas
como uma tradução normativa da defesa da territorialidade seringueira.
Não se trata de um preciosismo por palavras é apenas um adendo a um
conceito cunhado em uma realidade distinta do lócus epistêmico dessa pesquisa, no qual
a autodenominação de extrativista significa luta contra a expansão da extração ilegal de
madeira, luta contra a expansão dos grãos e significa, acima de tudo, a coragem de

158
assumir uma condição de risco diante do cerco violento a lideranças sociais, que
vitimou Chico Mendes, mas também Maria do Espírito Santo e José Cláudio, que
defendiam a floresta em pé no assentamento agroextrativista Praia Alta Piranheira em
Nova Ipixuna no Pará, nas cercanias de Carajás.
É por esses termos que neste trabalho preferimos chamar essa escolha pela
exportação de commodities como neocolonialismo contemporâneo ou geometabolismo
do capital, ―um regime de relações sociais que fagocita as energias vitais como meio
para a acumulação pretensamente infinita do valor abstrato‖ (MACHADO ARÁOZ,
2016, p. 461), ou ainda, como um relativo Consenso de Commodities, como define
Maristela Svampa (2013), que, por sua vez, traduz-se, em termos políticos, por um
progressismo que alarga investimentos sociais, ao passo que aprofunda a
superexploração dos recursos naturais multiplicando conflitos ambientais e reforçando,
segundo Acosta (2010), a mentalidade rentista das classes dominantes inscritas em
práticas clientelistas e patrimonialistas. Na verdade, seja pela renda da terra, seja pela
renda dos bancos, o alargamento da apropriação dos recursos naturais como projeto de
desenvolvimento econômico, reforça processos de acumulação relacionados às nossas
velhas oligarquias que, no Brasil, tão bem foram analisadas por Raymundo Faoro em
seu estudo sobre a formação do patronato político brasileiro, chegando este a afirmar
que ―a realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura
patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase
progressiva, da experiência capitalista‖ (FAORO, 2001, p. 869).
Uma expressão clara da persistência histórica dessa estrutura patrimonial e do
reforço que ela teve no contexto do Consenso das Commodities pode ser dada pela
Frente Parlamentar da Agropecuária, que na legislatura de 2010 a 2014 tinha 120
deputados, e na legislatura 2014-2018 passou a possuir 207 dos 513 deputados
existentes, além de, também, ter 24 senadores e lançar quase que diariamente, através de
orientações publicadas em seu site, como cada parlamentar deve se posicionar na pauta
legislativa, numa clara campanha de flexibilização das legislações ambientais e ataque
aos direitos territoriais de indígenas, quilombolas e camponeses. Na ponta desse
processo, lógico, grandes latifundiários, blindados pela impunidade e com a
cumplicidade da polícia, sentem-se autorizados a matar, de modo que as mãos que
desfazem as leis autorizam a morte; ternos e fardas, movidos pela ordem da propriedade
privada, jorram sangue.

159
Se o agronegócio terá expressão clara nessa conjuntura, com a mineração não
será diferente. No Brasil, a expansão da mineração, além de se ligar à crescente
demanda da China por commodities agrícolas e minerais, também está associada a
escolhas política de inserção do país no sistema-mundo. Essas escolhas, segundo
Zibechi (2012), estruturam-se, primeiro, pela criação de garantias financeiras para essas
empresas ligadas a exploração e exportação de commodities crescerem, através dos
financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
e dos investimentos dos grandes fundos de pensão38 nas ações destas empresas (não
esqueçamos o novo quadro acionário da CVRD após sua privatização). Para que os
recursos naturais ficassem disponíveis, também foi necessário um reordenamento do
marco regulatório, flexibilizando leis ambientais, vide os exemplos do atualíssimo
código florestal e das propostas do novo código da mineração.
Números e gráficos não faltam para expressar essa escolha política brasileira.
Basta percebermos a aceleração das exportações de produtos básicos superando as de
produtos semimanufaturados e manufaturados (ver gráfico 1), exportação essa em muito
direcionada ao mercado chinês (ver gráfico 2).

GRÁFICO 1 – Exportação brasileira por fator valor agregado em US$ milhões

Fonte: MDIC / SECEX, 2016. Elaborado por Fernando Michelotti e Bruno Malheiro, 2016.

38
É importante acrescentar a mudança de papel que assumem os fundos de pensão com os Governos do
PT em relação aos governos de FHC. Se no último os fundos foram centrais para financiar os processos
de privatização, com os governos Lula e Dilma, eles assumem papel central nos projetos de
desenvolvimento do Estado, numa estratégia de ampliar a participação acionária de tais fundos nas ditas
empresas brasileiras, na lógica de criação das gigantes nacionais.

160
Vale destacar que é a partir, decisivamente, de 2002 que a exportação dos
produtos básicos assume um ritmo de crescimento mais acelerado, mas é após 2008, em
muito por conta da crise global e da entrada definitiva do mercado chinês como
principal destino das exportações, que observamos os produtos básicos ultrapassando os
produtos manufaturados na pauta de exportação brasileira.
Entretanto, o destino das exportações destes produtos básicos, que no meio do
século XX era, em grande parte, os EUA, muda radicalmente no início do século XXI,
com uma posição destacada para a União Européia, mas principalmente da China, que
irá ultrapassar, em volume e valor das exportações, os tradicionais parceiros comerciais
do Brasil, tornando-se a principal demanda para as commodities produzidas no Brasil.

GRÁFICO 2 – Destino das Exportações Brasileiras – Produtos Básicos

Fonte: MDIC / SECEX, 2016. Elaborado por Fernando Michelotti e Bruno Malheiro, 2016.

Em termos de mineração, mais especificamente de ferro, em 2014 esse minério


já representava 12,6% da pauta de exportações brasileiras e manteve um ritmo de
crescimento entre 2000 e 2015 como demonstra o gráfico 3.

161
GRÁFICO 3 – Produção Nacional de Minério de Ferro em Milhões de Toneladas

Fonte: WORLD STEEL, Bradesco (2017).

Configura-se um sistema de exportações minerais em franco crescimento


totalmente vinculado à demanda chinesa, não sem razão a participação de clientes
chineses nas receitas da empresa Vale que, em 2003, era de 10,5%, passou para 38% em
2009, fechando 2015 com 35,5% (VALE, 2003, 2013, 2015).
Vale ressaltar que a empresa Vale, principalmente após sua privatização,
ampliou suas ações internacionais, de modo que sua produção mineral não pode ser
apenas entendida pelas minas nacionais, uma vez que a empresa que já esteve presente
em 38 países, hoje, segundo o relatório de sustentabilidade de 2017, está presente
diretamente em 25 países, seja com escritórios, joint ventures, processos de extração
mineral e outras operações, como demonstra a figura 2.

162
FIGURA 2 – Presença da Vale S. A. no Mundo

Fonte: VALE (2017, p. 20).

Percebe-se que a empresa expressa claramente um circuito espacial global de


produção, exportação e negócios de mineração, com presença em todos os continentes,
seja com processos de exploração, seja com parcerias com outras mineradoras, seja
ainda com escritórios de negócios.
O gráfico 4 sintetiza bem o conjunto de empresas subsidiárias da Vale com
operações em vários lugares do planeta, algumas empresas são completamente
controladas, uma vez que o percentual de ações permite controle completo das finanças,
estratégias e operações, outras são Joint Ventures, que podem ser definidas como
alianças estratégicas com alguns negócios nacionais e internacionais, e ainda existem as
empresas coligadas, que são aquelas nas quais a participação acionária é maior que
20%, mas que, mesmo assim, a Vale tem influência decisiva nas decisões financeiras e
operacionais.

163
GRÁFICO 4 – Subsidiárias da empresa Vale S. A por percentual de participação
acionária em 31 de dezembro de 2016, subdivididas em empresas controladas,
Joint Ventures e Coligadas

Fonte: Demonstrações Financeiras em 31 de dezembro de 2016 (VALE, 2016, p.38).

Particularmente na Amazônia a Vale possuía, ainda em 2010, uma participação


significativa em várias outras empresas minerais, além das que constam no gráfico
(Mineração Rio do Norte, Aços Laminados do Pará, Biopalma, Aliança Norte Energia e
Participações), entretanto reorganizou seus investimentos, priorizando determinados
minérios e questões logísticas. Nesses termos, à norueguesa Norsk Hydro, a mineradora
vendeu a mina de bauxita no município de Paragominas no Pará, além dos ativos da
refinaria de alumina Alunorte e de fundição de alumínio ALBRAS, ambas no município
de Barcarena, também no Pará, sendo que a empresa norueguesa ficou com 57% de
participação na primeira empresa e 51% na segunda. À francesa Imerys a Vale vendeu a
empresa Pará Pigmentos de exploração de Caulim às margens do rio Capim em Ipixuna
do Pará, sendo que, com a aquisição, a mineradora francesa passou a responder por 71%
da produção de caulim brasileira.
Entretanto, é importante notar a coerência estruturada dos investimentos da
mineradora em termos de mineração e logística. Mais à frente apresentaremos, em
linhas gerais, os projetos extrativos da empresa no sudeste do Pará, mas algumas
empresas que não estão necessariamente próximas dos processos extrativos encadeiam-

164
se a estes, com especial atenção à empresa de biocombustíveis Biopalma, presente na
região nordeste paraense, mas que tem o sentido logístico de substituir, em pelo menos
20%, os combustíveis utilizados pelos trens na Estrada de Ferro Carajás, sem esquecer o
investimento em energia, fundamental para as plantas extrativas como veremos à frente,
– que já foi maior e recuou com a associação da imagem da empresa à Belo Monte, uma
vez que participou do consorcio vencedor – e se expressa na Aliança Norte Energia
Participações.
Pelo conjunto de empresas mencionadas e suas inter-relações temos uma exata
expressão daquilo que Corrêa (1991) define como as características especiais de uma
grande corporação: uma ampla escala de operações, múltifuncionalidade, certa
segmentação dos negócios, distintas localizações e grande poder de pressão político e
econômico. Em termos de escalas, claramente os processos de extração mineral, bem
como outros negócios realizam-se no trânsito multiescalar; no que se refere à
multifuncionalidade, basta percebermos as incorporações de outras empresas que
ampliam as especializações funcionais, que não se restringem à mineração, mas também
estão na logística, biocombustíveis, energia, operações portuárias, dentre outras, o que,
por sua vez, já demonstra a terceira característica, a saber, uma segmentação da
companhia de modo a criar uma divisão do trabalho interna à corporação. A figura 2 da
distribuição espacial desses negócios pelos 25 países de atuação da Vale, também
expressa bem a abrangência e internacionalização da empresa e suas distintas
localizações. Sobre a última característica - grande pressão política e econômica -
acreditamos que os caminhos percorridos até aqui demonstram bem, embora os
caminhos analíticos que ainda vamos percorrer contem com detalhes e marcas
indeléveis esse processo.
Essa ampla expansão das operações nacionais e internacionais em muito se liga
ao fator de demanda que representou a China na primeira década do século XXI. Uma
figura (figura 3) retirada do site da mineradora no ano de 2015 expressa mais que
qualquer argumento ou gráfico o nível de dependência da demanda chinesa, mostremos
para que relações econômicas ganhem expressões estéticas...

165
FIGURA 3 – Vale e China

Fonte: www.vale.com.br

Para contextualizarmos esse conjunto de operações da empresa na Amazônia, é


preciso demonstrar que, só no sudeste do Pará, particularmente na região de Carajás,
temos múltiplos processos de exploração de ferro, cobre, níquel, manganês e ouro. Para
fazer uma síntese geral dos projetos e entender melhor a atuação da empresa na região
devemos citar o projeto de extração de manganês através da mina do Azul
(Parauapebas); o chamado ―ciclo do cobre‖, com os projetos Sossego e 118 (em Canaã
dos Carajás), Alemão (em Parauapebas), Salobo, Cristalino (Curionópolis); a produção
de Ouro no Igarapé Bahia (Parauapebas); a extração de Níquel, através da Jazida
Vermelho (Canaã dos Carajás), além do Onça Puma e todas as jazidas também de
Níquel interligadas a ele, como Jaguar, Jaguar Norte, Puma W, Puma, Guepardo, Onça
e Mundial (Ourilândia do Norte, São Felix do Xingu e Parauapebas); além da produção
de ferro, através das explorações das minas N4 e N5, minas norte da serra dos Carajás
(Parauapebas), o projeto Serra Leste (Curionópolis) e o projeto S11D que vai duplicar a
produção do ferro de Carajás, a EFC além da capacidade de embarque do porto de Ponta
da Madeira. A figura 4 deixa mais evidente a distribuição geográfica desses projetos,
bem como os sistemas logísticos, como estradas e ferrovias auxiliares a eles.

166
FIGURA 4 – Operações da Vale no Sudeste do Pará

Fonte: A Vale em Parauapebas (VALE, 2014).

Se o Consenso de Washington foi elemento decisivo na trilha de políticas


neoliberais que culminariam na contestada privatização da CVRD, o início do século
XXI reservaria uma mudança nos eixos geopolíticos que regulavam até então as
parcerias comerciais brasileiras. A intensa urbanização e industrialização chinesa
alargariam a demanda por metais metálicos e outras commodities, de modo que a
empresa Vale, altamente beneficiada por políticas estatais diretamente direcionadas à
expansão dos processos de apropriação privada dos recursos naturais, remodelou seus
destino prioritário de exportação, cultivando uma ―amizade‖ lucrativa com seus
parceiros chineses, amizade esta que seria abalada nos anos posteriores quando o
crescimento chinês demonstraria sinais de estabilização a um nível bem menor que
daqueles anos iniciais do século XXI.

4.3. DO CONSENSO À CRISE DAS COMMODITIES: A EMERGÊNCIA DO PROJETO S11D


Era 29 de agosto de 2016, quando Dilma Rousseff, que já havia sofrido o
impedimento pela Câmara dos Deputados, em sua defesa no Senado, recorria a um
conjunto de gráficos para demonstrar que a crise brasileira era resultado da diminuição
dos preços das commodities. Petróleo, ferro, soja, cada gráfico mostrado, expressava a
―queda‖ - essa foi a palavra usada por ela - para, então, demonstrar o desmonte de toda
a engrenagem econômica que sustentava um modo de governar. Entretanto, o

167
esgotamento do chamado boom das commodities mostraria que as coisas ainda
poderiam piorar e, no momento em que parte da esquerda amadurecia uma crítica severa
ao que significou o progressismo e suas conseqüências nefastas - o autor deste trabalho,
a partir da Amazônia, que o diga - eis que uma nova onda mais conservadora se instala.
As contradições de um governo - a grande redistribuição de renda e combate à pobreza,
sustentada com recursos do superávit primário advindo da exportação de commodities,
estas através de violações aos direitos de povos tradicionais e sérios conflitos
ambientais - seriam substituídas por outro governo em que a roda das exportações de
produtos básicos continuaria a girar, mas sem nenhuma preocupação com políticas
redistributivas, e o pior, com um desproporcional ataque aos direitos sociais
historicamente conquistados.
Ao primeiro sinal de abalo do eixo econômico que havia sustentado ganhos,
em 17 de abril de 2016- exatamente 20 anos após o massacre de Eldorado dos Carajás -
os parlamentares brasileiros, expressando, em sua grande maioria, o patronato estudado
por Raimundo Faoro, transformaram um instrumento contábil amplamente utilizado por
vários governos anteriores e não previsto como crime de responsabilidade na
Constituição Federal, em motivo para pedir o impedimento de uma presidente, tudo
isso, sob a liderança de Eduardo Cunha, réu no Supremo Tribunal Federal e envolvido
em vários escândalos de corrupção. A Câmara, então, acataria o processo de
impedimento com ampla maioria levando-o ao Senado, num espetáculo midiático sem
precedentes na história nacional e que demonstraria ou consolidaria uma estrutura de
golpes de um novo tipo na América Latina, construídos sob a insígnia da legalidade, sob
a tutela do judiciário, da polícia federal, das casas parlamentares e da mídia, o que
demonstrava a enorme fragilidade das instituições democráticas construídas nos últimos
trinta anos.
Entrementes, as forças conservadoras que protagonizaram aquele Brasil de
2016, que a cada dia se revela em novas faces mais vis, já haviam mostrado sua
expressão em diversos países da América Latina, como na Venezuela, no Haiti, Bolívia,
Honduras, Equador e Paraguai39.

39
Na Venezuela em 2002, após dias de cobertura da rede de televisão RCTV, as manifestações anti-
Chávez culminam em confrontos violentos entre grupos pró e contra o governo, sendo que estes últimos,
com apoio militar e sustentação midiática, entram no Palácio Miraflores e seqüestram Chávez, fazendo
com que as Forças Armadas anunciassem Pedro Carmona, presidente da principal federação patronal do
país, como presidente, dissolvendo a Assembléia Nacional e o Supremo Tribunal e anulando a
Constituição de 1999. Chávez conseguiria mandar uma mensagem de que não havia renunciado e retoma
seu posto; no Haiti, em 2004, não fora diferente, grupos contrários ao governo conseguem tomar a cidade

168
Esse abalo econômico na base de sustentação dos governos progressistas fica
um pouco mais evidente se percebermos que o crescimento chinês, sustentáculo das
maiores taxas de lucro da mineração e das pautas das exportações brasileiras, não
duraria para sempre em níveis super elevados, como queria a empresa Vale, para
sustentar aquela amizade interessada. A desaceleração do crescimento do PIB da China
(ver gráfico 4) que ainda em 2015 recebeu 55,8 % das exportações do minério de ferro
do Brasil, provocou uma queda acachapante do valor da commoditie do ferro que
chegou a ser comercializada a 152 dólares a tonelada em 2008 chegando a 39 em 2015
(ver gráfico 5), voltando a variar entre 54 e 56 dólares a tonelada em 2016 (MDIC,
2016; IBGE, 2014).

GRÁFICO 5 – Variação da Taxa de Crescimento do PIB Chinês

Fonte: FMI, 2016. Elaboração Bruno Malheiro, 2016.

de Gonaïves, depois Cap-Haïtien, e, por fim, a capital Port-Au-Prince e com o discurso de pôr fim à crise
econômica e à corrupção, o presidente Jean-Bertrand Aristide é seqüestrado por fuzileiros navais norte-
americanos, ficando mais de 20 horas num avião, o que fez com que as forças da ONU produzem uma
intervenção militar no país em nome do restabelecimento da ―ordem democrática‖; na Bolívia, em 2008,
por vários dias grupos opositores amplamente apoiados pela mídia, liderados por prefeitos da região da
Media Luna, chegaram a organizar referendos para aprovar uma espécie de declaração de independência,
em muito por conta da nacionalização dos recursos naturais e pela aprovação da nova Constituição que
desagradava às oligarquias; em Honduras, em 2009, uma proposta de um plebiscito que permitiria a
reeleição de Manuel Zelaya, então presidente, gerou uma invasão por grupos militares, a pedido do
Supremo Tribunal, da casa presidencial para o seqüestro do presidente, o que culminou em uma manobra
do presidente do Congresso, Roberto Micheletti, que consegue colocar a si mesmo na presidência; no
Equador, em 2010, após uma greve da polícia, o presidente Rafael Correa vai até o principal quartel
negociar com os grevistas, que realizam um ataque à comitiva presidencial, de modo que há uma
intervenção do Exército enquanto o presidente era mantido cercado em um hospital militar, conseguindo
sair de lá com vida e retomando o cargo; no Paraguai, em 2012, após a desocupação de uma fazenda, na
localidade de Curuguaty, que provocou um confronto entre policiais e camponeses sem-terra com
dezessete mortes (onze camponeses e seis policiais), parlamentares paraguaios aprovam a abertura do
processo de impeachment, acusando o presidente Fernando Lugo de mau desempenho de suas funções,
por facilitar ocupações de terra e ser inoperante em relação à violência. Lugo, que foi o primeiro
presidente paraguaio em mais de 60 anos a não pertencer ao Partido Colorado, perderia na Câmara e veria
o Senado aprovar seu impedimento.

169
GRÁFICO 6 – Variação do Preço de Mercado do Ferro em US$/ Tonelada

Fonte: MDIC / SECEX, 2016. Elaborado por Fernando Michelotti e Bruno Malheiro, 2016.

Analisando com mais detalhes os termos dessa variação do valor monetário do


ferro em face à financeirização das commodities, Milanez (2017) demonstra que, se
entre 2004 e 2011 o preço cresceu 20,86%, entre 2012 e 2015, esse mesmo preço caiu
21,17%. Em três anos se diluiu todos os aumentos dos últimos oito anos.
Diante da queda dos preços, o projeto S11D que, a partir daqui terá uma maior
atenção neste trabalho, destaca-se pela sua magnitude e importância programática para a
Vale S. A. Em seus balanços trimestrais e relatórios anuais, a empresa demonstra qual é
a estratégia para continuar a gerar lucros mesmo diante do cenário anteriormente
apresentado:
A receita bruta totalizou US$ 26,047 bilhões em 2015, significando
uma redução de US$ 12,189 bilhões em comparação com 2014, em
função de menores preços de finos de minério de ferro (...). A redução
na receita em função da queda nos preços foi parcialmente mitigada
por maiores volumes de venda (VALE, 2013, p.3).

Nestes termos, a aceleração da produção se coloca como motor de saída da


crise gerada pela queda dos preços. Em Carajás de 2013 a 2015, a produção cresceu
23,5%, passando de 104.885 Mt para 129.554 Mt, sendo que com o projeto S11D essa
produção saltará para 230 Mt (ver gráfico 5). Em relação ao S11D, vale destacar o alto
teor de pureza da jazida, 66,7%40 e que a operação de extração é barateada, uma vez que
não precisa lavagem do minério nem, portanto, da construção de barragens de rejeitos.
Por outro lado, um conjunto de investimentos no transporte tenta diminuir o tempo das
operações (VALE, 2009).

40
Para se ter ideia da importância da jazida do S11D, a média de pureza do minério de ferro extraído em
Minas Gerais é de 46,3%, sendo a média nacional do Brasil de 52,2% (BRADESCO, 2016).

170
GRÁFICO 7 – Extração de Ferro em Carajás pela Vale S. A em milhões de
Toneladas

Fonte: VALE (2002 a 2015). Elaboração Bruno Malheiro. *Projeção da Vale S. A.

Se alargarmos a compreensão para o setor da mineração, perceberemos que a


queda dos preços que gera uma corrida do ferro para a empresa Vale, tem outros
rebatimentos em empresas menores41.
O preço baixo e a elevação da produção das grandes mineradoras
acabam por pressionar as pequenas e médias empresas do setor que,
sem competitividade, fecham seus projetos, como fizeram as empresas
Votorantim e Mirabela com a unidade de níquel em Niquelândia - GO
e em Itagiba - BA, respectivamente, e a Mineração Caraíba, com
minas de cobre em Nova Xavantina - MT e Jaguarari - BA. No médio
prazo, o que se prevê é uma nova rodada de concentrações de capital
na mineração, com o fortalecimento dos grandes grupos, que
controlarão de maneira oligopolizada o mercado de cada minério
(WANDERLEY, 2017, p. 4).

A crise, portanto, retroalimenta a necessidade de alargamento da exploração


pelas grandes empresas de mineração, com destaque para a Vale que, em se tratando de
minério de ferro, em 2014, já representava 79,9% da produção total do minério no
Brasil (BRADESCO, 2017). Se de Washington vem o receituário para a privatização da
CVRD, da China, sem esquecer o governo brasileiro que tanto ajudou, veio a
sustentação de ganhos, durante a primeira década do século XXI, para os acionistas que
abocanharam as ações da empresa pós-leilão. Entretanto, quando a bolha das

41
Seria necessária aqui uma larga discussão acerca da renda mineral, com espelho na renda da terra, para
uma melhor compreensão do comportamento das empresas frente aos preços das commodities. Apenas a
titulo de informação explicativa, podemos afirmar que a renda mineral é composta por uma renda
absoluta, derivada da apropriação privada dos recursos e do monopólio destes, além de outras duas rendas
diferenciais, uma em que os ganhos são variáveis de acordo com a produtividade, na qual interfere a
qualidade do minério, em termos de teor de pureza (o que explica a expansão pelo S11D), além de sua
localização e a intensidade com que está sendo explorado, além de uma renda proveniente dos
investimentos tecnológicos e logísticos que, de acordo com sua intensidade, produzem expansão dos
ganhos das empresas.

171
commodities estourou, a aceleração das explorações - num contexto político ainda mais
avesso aos direitos sociais e de povos e comunidades tradicionais – irá intensificar os
processos de espoliação. O regime geográfico da mineração visto pelo prisma
geopolítico, de Washington a Beijing, de governos progressistas a conservadores, anima
processos de espoliação demonstrando que a produção do valor da indústria mineral na
Amazônia, expõe a relação do capitalismo com o que lhe é exterior, ou ainda, pressupõe
a negação violenta daquilo que não se pode mercantilizar.

172
CAPÍTULO 5
EXPANDIR A EXPLORAÇÃO E GERIR A POPULAÇÃO

Tudo é tão estupidamente previsível nestas máquinas que se


torna surpreendente; é o grande espanto do século, a grande
surpresa: conseguimos fazer acontecer exatamente o que
queremos que aconteça. Tornamos redundante o futuro, e aqui
reside o perigo.
Se a felicidade individual depende destes mecanismos e se torna
também previsível, a existência será redundante e
desnecessária: não haverá expectativas, luta ou
pressentimentos.
Fala-se em máquinas de guerra, mas nenhuma máquina é
pacífica

Gonzalo M. Tavares

Para se compreender o que se passa com a região de Carajás é


necessário observar a ótica dos empresários e acompanhar o
seu clássico raciocínio de viabilidade econômica e técnica (...).
Tudo é computável no balanço das viabilidades, menos os
custos ambientais ou os impactos sociais negativos
Aziz Ab Saber

(...) somos bem menos gregos que pensamos.


Não estamos nem na arquibancada, nem no palco,
mas na máquina panóptica

Michel Foucault

173
A mineração, mais que um setor econômico, produz e expressa distintos
regimes geográficos, como já dissemos. Se a transescalaridade das relações econômicas
e da divisão do trabalho, inserem a mineração num trânsito escalar constante entre o
lugar, a região e o planeta, entre Carajás e a China, entre os EUA e o Brasil e, assim,
não há como entender a intensificação ou arrefecimento dos processos extrativos sem
colocá-los nessa engrenagem macropolítica, também não podemos ignorar que a
mineração é um modo de exercício do poder microfísico, que, espacialmente, traduz-se
em um metabolismo social que, para se realizar, precisa da imobilização de largas áreas,
seja em zonas de extração, seja pelos eixos de transporte e logística, o que gera uma
necessidade, para as empresas, de transformarem o espaço necessário para as atividades
e fluxos, em territórios administráveis. Nesses termos, as populações são manejadas,
administradas, calculadas em termos de risco, transformando o espaço em território e
elemento central para os processos de geração do valor e para a definição das estratégias
de controle dos riscos corporativos.
É essa passagem do espaço ao território no âmbito das estratégias
coorporativas que iremos nos debruçar aqui e que traduz o segundo regime geográfico
da mineração, tomando como referência de análise, a produção de ferro em Carajás,
com destaque ao projeto que tem seu sentido e expressão dados pelo contexto
geopolítico de crise das commodities, o projeto S11D.
Entretanto, para dar sentido a essa passagem precisamos, num primeiro
momento, compreender bem o que significa pensar a mineração como um metabolismo
social e que metabolismo é esse quando falamos da mineração de ferro em Carajás. Essa
compreensão é basilar para que tenhamos em mente os porquês da transformação dos
espaços necessários à extração, transporte e exportação em territórios administráveis,
uma vez que é só compreendendo sua lógica interna de funcionamento, que podemos
inferir que uma área, fora dos processos diretos de extração, está inserida nos fatores
necessários de produção de uma empresa.
Entretanto, embora tratemos nesse capítulo a leitura do metabolismo social em
um sentido mais pragmático, para entender melhor as estratégias corporativas em torno
da economia espacial da indústria mineral, a drenagem de matéria e energia pela
mineração não é uma via de mão única, sendo, portanto e acima de tudo, um processo
de expropriação das condições de existência de múltiplos povos e comunidades, ou
ainda, uma necroeconomia de fronteira, um processo de expropriação ecobiopolítico
(MACHADO ARÁOZ, 2013, 2016), uma vez que

174
Es así expropiación geográfica: enajenación del propio espacio de
vida; expropiación ecológica: enajenación de las fuentes proveedoras
de nutrientes; expropiación económica: extrañamiento de los medios
de trabajo y de sustento; expropiación política: secuestro de derechos
y de la condición de ‗ciudadanos‘. Es finalmente expropiación cultural
y expropiación histórica: produce poblaciones que no son ‗dueñas‘ de
nombrarse; que no son ‗dueñas‘ de su tiempo: ni de su pasado, ni de
su futuro (MACHADO ARÁOZ, 2010, p. 27).

Essas várias dimensões dos processos de expropriação ligadas à mineração


serão vistas, a partir daqui, por suas lógicas de realização a partir de uma racionalidade
corporativa. Nesses termos, pensamos esse capítulo em três partes: na primeira,
apresentamos em linhas gerais o metabolismo social da mineração de ferro em Carajás,
demonstrando o sentido que cada etapa produtiva espacialmente definida possui, bem
como o volume de matéria e energia que está em jogo. Esse exercício é para entender o
que, do ponto de vista político, é necessário para a apropriação física e logística do
espaço quando se fala em mineração, ou seja, de que maneira a dinâmica de
superexploração da natureza é, também, de gestão dos espaços necessários à mineração
e, portanto, gestão de populações do entorno. Esses processos de gestão serão tratados
na segunda parte do capítulo a partir das estratégias empresariais construídas frente ao
que irá se definir como riscos corporativos. Na terceira parte faremos uma análise das
estratégias da empresa Vale em termos de ―gestão do social‖.

5.1. METABOLISMO SOCIAL DA MINERAÇÃO DE FERRO EM CARAJÁS


O conceito de metabolismo social talvez seja aquele que mais povoou as
análises que pretenderam incluir as relações de matéria e energia nas reflexões sobre o
capitalismo. Usado por Marx e um conjunto de outros marxistas e não marxistas, esse
conceito ganha fôlego maior quando as ciências sociais começam a ler, de modo
particular, a segunda lei da termodinâmica e a considerar que os fluxos econômicos
desiguais no capitalismo, também são fluxos de matéria e energia.
A segunda lei da termodinâmica demonstra que as transferências energéticas
entre dois corpos são irreversíveis, provocam, portanto, entropia, ou seja, uma desordem
molecular, uma desorganização dos sistemas. Nesse sentido, os sistemas organizados de
alta concentração de matéria e energia, chamados de ilhas de sintopia, no momento em
que são afetados e transformados, produzem entropia, essa desordem sistemática que as
transferências energéticas provocam.

175
Um dos principais teóricos que colocaram as relações entre matéria e energia
no âmbito desigual das relações capitalistas, construiu suas teses fundamentais a partir
do mesmo lócus de enunciação deste trabalho, a região de Carajás. Estamos falando de
Stephen Bunker, que, por sua vez, observa que o fluxo de energia e matéria das
economias extrativas às economias produtivas reduz a complexidade econômico-
produtiva e o poder das primeiras, enquanto alarga a complexidade e o poder das
segundas, o que demonstra que a desestabilização das regiões extrativas é condição para
a organização das regiões produtivas, reconstruindo, assim, os sentidos clássicos da
teoria da dependência, mas agora sob as bases dos fluxos de matéria e energia
(BUNKER, 1985).
Monteiro (1998), também analisando a região de Carajás, mais especificamente
as relações entre a siderurgia e o carvoejamento, também aponta a drenagem energética
que opera a indústria siderúrgica, particularmente na Amazônia, demonstrando que a
necessidade de carvão vegetal para a produção do ferro-gusa, indica intensos processos
de desmatamento que, por sua vez, são apoiados em relações sociais marcadas pelo
latifúndio e relações de trabalho altamente precarizadas, fazendo com que a expansão
siderúrgica signifique, além de uma drenagem energética da floresta, o alargamento da
pauperização regional.
Elmar Altvater (1993, 1995), por sua vez, chega a afirmar que os processos de
industrialização são oligárquicos por não serem acessíveis a todo o planeta, uma vez que
se dão a partir de relações energéticas extremamente injustas, pois a baixa entropia das
sociedades industriais só é possível pela exploração das ilhas de sintropia de várias
partes do mundo, de modo que para manter a ordem de baixa entropia as sociedades
industrializadas precisam dissipar entropia em várias partes do planeta.
Não pretendemos aqui reconstruir o percurso teórico entre economia e
ecologia, nem buscar internalizar elementos historicamente tratados como
externalidades nas leituras econômicas, muito menos recorrer ao cabedal de propostas
de estabelecimento de preços às injustiças ecológicos, até porque, sem ignorar a
importância de algumas destas propostas, nosso objetivo aqui é usar das leituras de
metabolismo social para entender melhor os regimes geográficos de uma empresa.
Nesse particular, recorremos às análises precisas realizadas por Victor Toledo
(2013) que ampliam o conceito de metabolismo social, considerando-o para além, mas
não aquém, dos fluxos de entrada (processos de apropriação) e saída (processos de
excreção) de matéria e energia, que até então eram os fluxos considerados pelas leituras

176
que tentaram analisar as relações capitalistas nos termos ecológicos. Bunker (1985) e
Altvater (1993, 1995), também por pensarem as escalas globais dos fluxos de matéria e
energia, situam o processo metabólico do capitalismo nesses dois fluxos. O que Toledo
adverte é a existência de fluxos internos de matéria e energia, alargando a análise para
processos metabólicos mais específicos. Nestes termos, o autor identifica cinco
fenômenos relacionados aos fluxos de matéria e energia que só existem em combinação,
mas podem ser individualmente percebidos, quais sejam: a apropriação, a
transformação, a circulação, o consumo e a excreção, sendo a apropriação a forma
primária de intercâmbio entre a sociedade e a natureza; a transformação, um modo de
produzir a partir de extrações naturais; a circulação, que inaugura o intercâmbio
econômico e coloca o volume de matéria e energia extraídas, em um circuito ligando
distintos territórios; o consumo, que não representa apenas a realização das
necessidades, mas condiciona ou pressiona os processos extrativos no momento em que
se transforma em um fator de demanda; e a excreção, que representa todos os
excrementos provenientes das ações de apropriação, transformação, circulação e
consumo, tudo o que se expele, desde os resíduos e rejeitos, aos subprodutos não
aproveitados (TOLEDO, 2013).
A mineração como um metabolismo social, vista a partir desses cinco
elementos combinados, parece expandir nossa compreensão dos espaços realmente
necessários para a dinâmica de produção, além, lógico, de continuar a nos dar a noção
da drenagem energética e eliminação de energias vitais que a atividade provoca.
Entretanto, aos cinco elementos apontados por Toledo (2013), tomamos a
liberdade aqui de incluir mais um elemento que acreditamos não está contemplado pelos
processos descritos acima, a saber, estamos falando de processos de descarte. De
imediato, pode parecer que o descarte tem a ver com as excreções, mas o descarte não
significa algo que se expele, mas algo que simplesmente não se quer mais, melhor
dizendo, algo que, em algum momento do processo metabólico, torna-se dispensável,
como a diferença do número de trabalhadores dos processos de implantação e operação
de minas, que representa trabalhadores literalmente descartáveis pelo metabolismo
social da mineração.
Essa leitura nos ajuda a entender a mineração enquanto um metabolismo social
que possui uma lógica de funcionamento em vários momentos metabólicos que, se
observados, ajudam-nos a ter melhor clareza da drenagem energética que representa o
setor mineral, dos processos de apropriação e transformação às entropias que gera em

177
termos de excreção e descarte, mas também nos auxilia a compreender melhor esse
regime geográfico microfísico da mineração, melhor dizendo, essa necessidade de
inclusão de largas áreas na racionalidade corporativas da produção, para viabilizar os
momentos metabólicos da exploração de ferro.
Raffestin (1993, p. 239), demonstrando os atores e suas estratégias diante do
controle dos recursos, em sua discussão de território, lembra-nos sobre a enorme
importância das matérias, recursos e técnicas, além da localização e das distâncias para
a definição de estratégias territoriais:
A matéria, renovável ou não, está ligada a um território no qual foi
assinalada, tornada acessível ou simplesmente encontrada. É a coerção
da localização: a extração, lato sensu, se realiza num local 1, isto é, o
ator que a controla não pode, de início, modificar a posição absoluta,
pois transferi-la significa consentir primeiro no trabalho para a
extração e, em seguida, no trabalho para o transporte. Toda matéria é,
portanto, submetida a uma coerção espacial que pesa também para o
ator que quer utilizá-la. Daí o enorme papel desempenhado pela
localização e pela distância.
A própria empresa em questão para a nossa análise, a Vale S. A, divide sua
produção de Ferro no Brasil em sistemas divididos regionalmente. Cada sistema é
definido não só pelas minas, mas por todo aparelho logístico que integra as minas aos
mercados externos, de modo que, a partir disso, são definidos quatro sistemas: o sistema
Norte, o sistema Sudeste, o sistema Sul e o sistema Centro-Oeste. O sistema Norte
compreende a produção de Carajás com expressão de três projetos de extração, as minas
do setor norte da serra dos Carajás, com os projetos de exploração das minas N4 e N5, a
mina explorada do setor leste, pelo projeto Serra Leste, e a mina explorada do setor sul,
S11D (ver mapa 2); o sistema Sudeste compreende as minas de Itabira, Minas Centrais
e Mariana; o sistema Sul compreende as minas de Paraopeba, Vargem Grande e Minas
Itabirito; e o sistema Centro-Oeste compreende as minas de Urucum e Corumbá
(VALE, 2017). Cada sistema possui uma logística de escoamento, compondo, portanto,
quatro unidades metabólicas para a empresa.

178
MAPA 2 – Divisão da Serra dos Carajás em zonas por Direitos Minerários

Fonte: VALE, 2014.

A ideia de sistema já introduz uma complexidade de elementos que só podem


funcionar articulados e, nestes termos, o Sistema Norte, que mais nos interessa nesse
trabalho, além das minas citadas e localizadas no mapa acima, também é composto da
Estrada de Ferro Carajás, já incluindo sua extensão até Canaã dos Carajás ao projeto
S11D, além do Terminal de Ponta da Madeira em São Luis com suas quatro
megaestruturas (Píer) de carga e descarga.
Para nos aproximarmos ao sistema Norte, construímos alguns quadros para
entender o metabolismo social de cada mina do sistema. São, portanto, três quadros, de
modo que nas primeiras linhas indicam-se os projetos, e nas segundas, os tempos
estipulados de exploração para cada corpo mineral. Da terceira linha em diante,
construímos sete categorias, expressando os cinco elementos metabólicos explicados
por Toledo (2013) - de modo que dividimos o item apropriação em duas linhas para
demonstrar, na primeira, a apropriação como controle de áreas e, na segunda, a
apropriação como extração – além do item descarte que sugerimos como alargamento
da proposta de Vitor Toledo. Dessa forma, chegamos a sete componentes, quais sejam:
apropriação, apropriação (extração), transformação, circulação, consumo, excreção e
descarte. A primeira coluna expressa esses elementos metabólicos, a segunda expressa
seus componentes básicos, ou seja, o que, na especificidade da exploração do ferro,

179
significa cada momento metabólico; e a terceira, demonstra o volume e dimensão, em
valores, de matéria e energia.
Chegamos, portanto, a três quadros referentes aos três projetos de extração que
definem o sistema Norte.

QUADRO 5 – Metabolismo Social do Projeto S11D


Metabolismo Social Projeto S11D
Tempo estimado do Projeto – 22 anos a partir de 2016

Áreas de Instalação (cavas, pilhas de


estéril, usinas de beneficiamento, 2.745,72 ha
Apropriação acessos e estruturas de apoio)

Domínio da Ferrovia e Ramal 8.919,71 ha


TOTAL 11.665,43 hectares apropriados
3.419 bilhões de toneladas de
Apropriação (Extração) Volume Total
Ferro
Implantação 2.900KW/mês
Energia
Operação 74.300MW/mês
Transformação
Água 1.503.360 m³/ano
Madeira 525.698 m³
Ferrovia 230 milhões de toneladas/ano
Circulação
Ramal 138 milhões de toneladas/ano
Fator de Demanda China - 1,1 bilhão de toneladas em
Consumo
2016
Implantação 3.055.556,00 ton/mês de Estéril
Operação 5.028.030,00 ton/mês de Estéril
Excreção
TOTAL 1.734 bilhões de toneladas de
Estéril
Áreas desmatadas 1.491,89 hectares
Área de Cava 731, 73 hectares
Descarte Áreas de Pilhas de Estéril e Canga 815,77 hectares
Trabalhadores 3.262 trabalhadores descartados
entre a implantação e o início dos
processos de extração
Fontes: Soluções e Tecnologia Ambiental (SETE)/VALE. Plano Básico Ambiental. Canaã dos Carajás:
SETE/VALE, 2012. Elaboração Bruno Malheiro, 2018.

180
QUADRO 6 – Metabolismo Social dos Projetos de Extração de Ferro das Minas
Norte, N4 e N5
Metabolismo Projeto Carajás Minas Norte – N4 e N5
Tempo médio das minas Norte – 18 anos a partir de 2013
Minas e
Estruturas 4.741,84 ha
Áreas de Instalação
Existentes
(Cavas, Pilhas de estéril,
Projeto de
barragens, usinas de
Ampliação 3.264,91 ha (-áreas coincidentes)
Apropriação beneficiamento, acessos e
elaborado
estruturas de apoio)
em 2010
TOTAL 6.362,68 há
Domínio da Ferrovia sem Ramal 8.089 hectares
TOTAL 14.451,68 hectares
Apropriação
TOTAL 2,96 bilhões de toneladas de ferro
(Extração)

22 subestações – proporção
Energia
0,550kWh/t
Transformação
Água 1.326 m³/h - aproximadamente
11.456.640 m³/ano
Circulação Ferrovia 230 milhões de toneladas/ano
Consumo Fator de Demanda China - 1,1 bilhão de toneladas em
2016
Excreção TOTAL 2,71 bilhões de toneladas de Estéril
Desmatamento 2.351,40 ha de área desmatada
Área de Cava 1.306,22 (existentes) mais 1.388,81
(ampliação), totalizando 2.695,03 ha
Descarte Pilhas de Estéril 1.051,94 há (existentes) mais 832,03
(ampliação) – Total de 1.883,97 ha
Trabalhadores Remanejamento de Trabalhadores entre
Minas
Fonte: AMPLO. AMPLO. Estudo de Impacto Ambiental. PROJETO FERRO SERRA NORTE – MINA
N4 E N5ESTUDO GLOBAL DAS AMPLIAÇÕES. Belo Horizonte: AMPLO/VALE, s/a. Elaboração
Bruno Malheiro, 2018.

QUADRO 7 – Metabolismo Social do Projeto Serra Leste


Metabolismo Projeto Serra Leste
Tempo médio das minas Norte – 12 anos a partir de 2016

Áreas de Instalação
(Cavas, Pilhas de estéril, barragens,
Apropriação 979,23 ha
usinas de beneficiamento, acessos e
estruturas de apoio)

181
107,1 Milhões de Toneladas de
Apropriação (Extração) TOTAL
Ferro

Energia Sem informações


Transformação
Água 55.800 m³ mês
Circulação Rodovia/Ferrovia 10 milhões de toneladas/ano
Consumo Fator de Demanda China - 1,1 bilhão de toneladas
em 2016
TOTAL 121,8 Milhões de Toneladas de
Excreção
Estéril
Desmatamento 267,57 há
Área de Cava 217, 97 há
Descarte Pilhas de Estéril 268,7 há
Trabalhadores 1.363 trabalhadores usados na
implantação a serem
desmobilizados ao final
Fonte: AMPLO. Estudo de Impacto Ambiental. Projeto Serra Leste 10Mtpa. Belo Horizonte:
AMPLO/VALE, 2016. Elaboração Bruno Malheiro, 2018.

Os quadros nos dão conta que estamos falando que nos próximos 22 anos irá se
explorar 6,486 bilhões de toneladas de ferro só das minas de Carajás e pelos
prognósticos técnicos realizados e situados tecnologicamente no final da primeira
década do século XXI. O primeiro bilhão de tonelada de ferro extraído de Carajás gerou
festas e homenagens. Ele se realizou em 2007, 23 anos depois do inicio dos processos
de extração, em 1985, diminuindo radicalmente a previsão do projeto inicial, que era
extrair esse volume de ferro até 2025. O que estamos falando agora é que seis bilhões
quatrocentos e oitenta e seis milhões de toneladas serão extraídas em 22 anos, do
mesmo lugar que um dia se planejou que o primeiro bilhão chegaria em 40 anos. A
proporção de 1 bilhão para 23 anos alcançada é simplesmente multiplicada para 6,486
bilhões para 22 anos. Não é só de tempo que estamos falando, não é só do
aligeiramento do ritmo de extração, estamos falando de matéria e energia, de drenagem
energética, estamos falando de saque, de pilhagem, enfim, de espaço e território!
Mas se os próximos 22 anos nos reservam a drenagem de quase 6,5 bilhões de
toneladas de ferro para China ou qualquer outro país que, na geopolítica internacional,
desponte como fator de demanda, essa drenagem deixará em nossos territórios 4,565
bilhões de toneladas de estéril. Os nomes são dados às coisas sempre por algum motivo.
Se estéril significa o rejeito da mineração, as camadas de sedimentos depositadas sobre
a rocha, que, por sua vez, não possuem utilidade, nem aplicação econômica, ele também

182
pode ser definido, emprestando do dicionário uma interpretação mais precisa, como
algo que não dá frutos, algo que torna improdutivo, infértil, infecundo. Drenamos ferros
para depositar em nossos territórios infertilidade, retiramos riquezas, produzindo
enormes crateras, para deixar montanhas e mais montanhas de rejeito. Para sermos mais
precisos, são 3.644,73 hectares de áreas de cava, quase quatro mil campos de futebol de
buracos da mineração de ferro, aos quais irão se associar os 2.136,41 hectares de pilhas
de rejeitos, ou seja, enormes áreas de montanhas de rejeito como expressão clara da
entropia generalizada, capaz de interferir na geomorfologia e em toda dinâmica da
natureza, ainda mais se percebermos, que maiores que as áreas de cava e das pilhas de
rejeitos, serão as áreas desmatadas, totalizando, pelos três projetos, 4.110,86 hectares.
Quando percebemos a dinâmica hidrográfica, também começamos a perceber
que a escolha pela mineração é, também, uma escolha contra a diversidade e
importância das bacias hidrográficas do entorno, isso não apenas nos faz lembrar o Rio
Doce e todo o crime cometido com esse rio e seus afluentes, mas nos faz perceber que,
em Carajás, são usados 13.629.600 metros cúbicos de água por ano, são mais de 13
milhões e quinhentos mil metros cúbicos de água, são três áreas de extração
consumindo o que uma cidade de cerca de 170 mil habitantes consumiria em um ano.
Em termos de apropriação de áreas para a execução e funcionamentos dos
processos extrativos, tomando apenas as áreas necessárias para as instalações e o
transporte da mineração do ferro no sistema norte, teríamos a imobilização de uma área
aproximada de 19.007,34 hectares. Se considerarmos que essa área se espraia entre as
minas e o terminal de ponta da madeira em São Luís (cuja área de interferência não está
incluída nos 19 mil hectares), começamos a entender melhor o que efetivamente
significa o metabolismo social da mineração do ferro em Carajás em termos, nesse
momento, de espaço absoluto.
Entretanto, o que queremos com todos esses dados e informações não é
construir uma análise mais detalhada dos fluxos energéticos, nem mesmo construir
propostas no âmbito da economia ecológica, é, na verdade, compreender que as
especificidades do metabolismo social da mineração, particularmente em Carajás, fazem
com que os espaços de interferência desses megaempreendimentos sejam incluídos na
lógica de pensar a produção. Áreas e distâncias, pilhas e hectares, cavas e desmatamento
parecem, até agora, pensados a partir do interior dos momentos metabólicos da
mineração. Entretanto, na ótica da racionalidade corporativa, cada momento metabólico
precisa ser resguardado de qualquer interferência externa, ou seja, cada espaço

183
funcional a atividade mineral torna-se parte das preocupações empresariais e, desse
modo, tão importante como o alargamento da extração de uma mina é a garantia que o
minério chegue ao porto para ser exportado, é a garantia que nenhum momento
metabólico seja interrompido. Isso, então, define uma engrenagem empresarial em torno
da ideia de risco corporativo.

5.2. A REALIZAÇÃO DO METABOLISMO SOCIAL DA MINERAÇÃO E A DEFINIÇÃO DOS

RISCOS SOCIAIS CORPORATIVOS

O metabolismo social, ao passo que torna mais clara a drenagem energética e


material que processos de extração mineral produzem, complexificando as análises
simplificadas de cadeias produtivas, também é um conceito preciso para a compreensão
do que realmente importa para grandes corporações em se tratando de apropriação de
bens naturais. A junção dos corpos, os movimentos coordenados das linhas de
montagem na fábrica, racionalizadas ao extremo para a elevação da produção, assumem
outra escala quando tratamos de metabolismo social da mineração, o que torna espaços
de extração, corredores de exportação, portos e todos os espaços funcionais na dinâmica
de produção mineral, decisivamente, parte importante no desenho arquitetural do
exercício do poder corporativo.
O modo de inclusão dos momentos metabólicos na racionalidade empresarial
pode ser bem sintetizado pela categoria de risco, o que nos fala que a realização
metabólica é garantida por uma teorização e construção de marcos definidores da ideia
de riscos corporativos.
A noção de risco é sempre uma perspectiva de se posicionar frente ao tempo,
uma vez que é fruto de uma probabilidade crítica, da possibilidade de realização de algo
que ainda não se realizou, mas pode se realizar e trazer prejuízos. O risco gera, nesses
termos, a definição de tudo aquilo que pode se tornar uma potência crítica, sendo uma
forma de ver o presente a partir de um futuro de incerteza. Entretanto, neste trabalho,
estamos falando de fluxos e momentos metabólicos, de espaços acomodados numa
lógica de funcionalidade corporativa de uma empresa, lógica esta que não pode ser
quebrada. Portanto, se o risco é uma forma de posicionamento frente ao tempo, o ato de
gerir e minimizar suas incertezas é eminentemente espacial, melhor dizendo, territorial,
por se traduzir na transformação de espaços funcionalizados por uma atividade
econômica em territórios administráveis, envolvendo, portanto, a gestão das populações.

184
Já vimos nesse trabalho que a noção de risco associada à ideia de soberania, ou
o risco à soberania, sempre foi usual para o Estado delimitar políticas para a Amazônia
que, em nome de ameaças, devassaram vidas tornando a exceção a regra do jogo
político na região. Entretanto, o risco, até então pensado a partir das ações
prioritariamente do Estado, assume importância definitiva na definição de ações
empresariais no caso da mineração, por isso, delimitar, em linhas gerais, o escopo dessa
discussão parece uma primeira necessidade.
Para sermos coerentes com os arquivos da mineração na Amazônia que nos
mostram que a dinâmica de expansão da mineração na região se dá por processos de
territorialização de exceção, precisamos introduzir a discussão dos riscos sociais
corporativos em uma leitura mais clara de exercício do poder, uma vez que quando
falamos que os processos de gestão de riscos de uma empresa transbordam dos espaços
específicos da produção para se preocuparem com os fluxos, os deslocamentos, a lógica
de distribuição, estamos falando dos mesmos problemas que fizeram emergir o que
Foucault (1988, 2007) chama de biopoder, uma vez que, nesses termos, o controle da
população vira objeto de saber e demarca formas de exercício do poder, pois o que está
em jogo é a antecipação a fenômenos aleatórios, o que exige a criação de séries
estatísticas, previsões para que a dinâmica de acumulação aconteça em estados de
equilíbrio.
Nas ciências sociais, a ideia de sociedade de risco é uma das perspectivas de
trazer a discussão da generalização de ameaças de muitas ordens e da produção
massificada do medo para o centro do debate sobre o mundo contemporâneo. Em vistas
dos limites da natureza frente aos intensos processos industriais, chega-se à constatação
de que a produção de riqueza é, também, a produção do risco, uma vez que o
alargamento da acumulação é, também, a produção em massa de desastres e de
incertezas de toda ordem, das relacionadas ao mundo do trabalho às incertezas
ambientais e políticas (BECK, 1997, 2011).
Essa leitura é fundamental e amplia a compreensão acerca das conseqüências
de uma sociedade industrial que mercantiliza até mesmo os riscos ecológicos que
produz, entretanto, o que estamos tentando referenciar aqui é a operação lógica de
transformação de populações inteiras, vidas humanas, sujeitos políticos que
historicamente produziram os espaços, funcionalizados pelo metabolismo social das
atividades extrativas minerais, em riscos corporativos.

185
Acselrad e Giffone (2009) empreendem uma análise mais detalhada acerca do
que significaria a categoria de risco social, chegando, então, a uma dupla interpretação
do emprego da mesma nos ambientes políticos e de gestão empresarial: a primeira
interpretação construída por agências multilaterais, com destaque ao Banco Mundial, na
qual a noção de risco social apresenta uma situação social de pobreza de determinadas
populações, situações estas que precisariam ser geridas por políticas governamentais
compensatórias; e a segunda interpretação, que mais nos interessa aqui, é a construção
da categoria de riscos sociais corporativos por grandes empresas que associam a noção
de risco às possibilidades de conflitos, buscando com sua identificação, obter segurança
aos seus empreendimentos a partir de um conjunto de estratégias que passam sempre
por programas de relacionamento com as comunidades.
Nesses mesmos termos, Acselrad (2014) ainda adverte para a transformação
desses espaços funcionalizados pela lógica produtiva de atividades econômicas
referenciadas em processos de acumulação por espoliação, em espaços não-mercantis,
ou seja, espaços não diretamente associados à atividade produtiva, mas fundamentais
para que ela ocorra, e, para os quais, criam-se departamentos no interior das empresas
para minimizar a possibilidade de conflitualidade e até mesmo prevenir a eclosão de
conflitos.
Esse reconhecimento dos modos em que empresas racionalizam as críticas a
elas próprias a partir da noção de riscos corporativos parece vir da abertura analítica
proporcionada por Boltanski e Chiapello (2009) que, além de ampliarem o escopo de
análise, ao incorporarem a literatura empresarial como fonte de informação fundamental
para as ciências sociais, alertam para o fato de que historicamente o espírito do
capitalismo é construído por modos de assimilação das críticas anticapitalistas, de modo
que as transformações capitalistas não podem ser entendidas sem o processo de
desarmamento da crítica, envolto na necessidade de justificação social.
Aproximando-nos do campo corporativo vários são os autores, geralmente
vinculados às consultorias empresariais ou mesmo a determinadas empresas, que irão
criar as bases da ideia de risco social no mundo empresarial. Kytle e Ruggie (2005) - a
primeira vice-presidente da JP Morgan Securities e o segundo professor de Harvard e
representante especial de direitos humanos e companhias transnacionais da ONU
(GIFFONE, 2015) – definem os riscos sociais como a pressão de ordem social,
ambiental e trabalhista, que as empresas sofrem, tratando os sujeitos dessa pressão
como stakeholders, que, por sua vez, ampliaram suas pressões e articulações globais

186
aumentando a vulnerabilidade empresarial e a imagem corporativa. Os autores ainda
demonstram que, quanto maiores forem às interações da cadeia produtiva, maior será a
vulnerabilidade das empresas, defendendo que os riscos sociais possam ser tratados com
o mesmo grau de importância dos riscos econômicos, tecnológicos e políticos (KYTLE;
RUGGIE, 2005).
A tradução da noção de risco social corporativo para a linguagem empresarial
está na noção de ―licença social para operar‖ ou simplesmente LSOP em alusão ao
termo em inglês social license to operate, que foi forjada para delimitar com maior
objetividade o risco relacionado às pressões sociais e o nível de aceitação social de uma
empresa ou de um projeto específico ligado a uma corporação com as populações
diretamente envolvidas.
A Ernst & Young (EY), uma das maiores empresas do mundo de prestação de
serviços corporativos, que, no Brasil, adquiriu as empresas de consultoria Terco e Axia
Value Chain e conta com escritórios em várias cidades, lança regularmente relatórios de
riscos de negócios voltados para a mineração. Nesses relatórios são identificados os
principais riscos aos negócios minerais, como pode ser expresso na figura 5:

Figura 5 – Escala de Risco para a Mineração, segundo a Ernst & Young

Fonte: EY, 2013.

187
Pelo radar dos riscos, a licença social para operar, para os anos de 2013 e 2014,
só perdem, em termos de grau de importância, para três tipos de risco, a saber: a
alocação e acesso aos capitais, que referencia a possibilidade real de investimentos
diante da volatilidade do mercado; a proteção de margem e melhoria de produtividade,
que ganha importância diante das dificuldades de obter ganhos com os preços dos
minerais em queda e os altos custos de produção; e o nacionalismo dos recursos
possibilidade colocada em alguns governos progressistas na América Latina, bem como
por movimentos sociais, fator definitivo para as operações minerais. Em quarto lugar no
ranking construído, subindo de importância diante do relatório do ano anterior, 2012, a
licença social para operar aparece como elemento determinante relacionado ao aumento
do ativismo que eleva a vulnerabilidade do setor.
As definições do relatório são bastante expressivas para compreendermos o que
está em questão quando se fala em SLTO
As partes interessadas estão ficando mais espertas, enquanto que o
sentimento antimineração continua a proliferar em um contexto de
comunidade e de preocupações com as alterações climáticas.
Enquanto isso, os reguladores estão cada vez mais buscando preencher
a lacuna entre as expectativas da comunidade e as leis existentes com
o aumento da regulação. Conseguir uma SLTO é um desafio, manter é
outro (EY, 2013, p. 7).

Os problemas ao setor mineral começam quando os atores diretamente


impactados pela mineração se tornam mais espertos. O adjetivo usado para definir as
partes interessadas, não muito usuais aos relatórios de consultorias, mais parece um ato
falho a demonstrar que o nível de perspicácia e clareza das comunidades em relação aos
projetos minerais é diretamente proporcional ao nível de risco que essas comunidades
representam às empresas. O sentimento antimineração, as preocupações com as
alterações climáticas e a dificuldade, não apenas de conseguir, mas de manter a licença
social para operar, apesar de demonstrarem o conjunto de tensões que a mineração
provoca, são lidas, pela racionalidade corporativa, não por seus motivos, apenas como
expressões de risco às empresas.
O desarmamento da crítica e a justificação social dos empreendimentos são,
portanto, lembrando Boltanski e Chiapello (2009), o sentido para a definição dos riscos
sociais corporativos que, por sua vez, na literatura empresarial são respondidos pela
noção de Responsabilidade Social Corporativa, ideia que, sob a inspiração das

188
discussões sobre capital social42, largamente difundidas no cenário corporativo, integra
um conjunto de interesses supostamente compartilhados entre as empresas e seus
stakeholders, de modo a fomentar desenvolvimento nas esferas social, econômica e
ambiental. Essa definição, do instituto Ethos (principal organização no Brasil a discutir
a responsabilidade social empresarial), também atrela a RSC à ideia de desempenho
empresarial em relação às pessoas (ETHOS, 2006).
Temos, portanto, que as definições no campo corporativo acerca dos riscos
sociais e responsabilidade social, na verdade, constroem suas bases de sustentação
argumentativas em conceitos, que mais servem para guiar práticas, que compreender a
realidade, funcionando, desse modo, como princípios abstratos e imprecisos. Dessa
forma, há um esvaziamento reflexivo diretamente proporcional ao alargamento dos
sentidos normativos das noções construídas que, nesses termos, mais se colocam como
modos de legitimação, do que de compreensão, consubstanciando certa ética dos
negócios, que nada mais é do que um modo de construir argumentos capazes de reduzir
a sociedade à lógica de funcionamento das empresas, ou em outras palavras, de
instrumentalizar a ética, tornando-a um negócio rentável para as empresas.
Dessa abordagem, mesmo que rápida, da literatura empresarial43 sobre os
riscos sociais corporativos, bem como por alguns estudos críticos a esta literatura,
percebemos que a construção da noção de risco social corporativo possui três pilares
epistemológicos importantes de serem destacados, quais sejam: o primeiro é o
encapsulamento de toda a complexidade social à racionalidade empresarial, o que se
opera pela definição da lógica dos negócios como o centro problematizador das análises
ou quando ―a garantia dos direitos é contabilizada como custo; a possível conquista de

42
A noção de capital social é, certamente, a base de sustentação da RSC. Assim como a noção de
desenvolvimento sustentável, também parte de uma critica superficial dos problemas que pretende
enfrentar e de uma aceitação das estruturas fundamentais do sistema capitalista. Nesses termos, Putnam
(2002) a partir de um estudo na Itália, cria algumas categorias gerais que definiriam o capital social, quais
sejam: a participação cívica (participação da população nos negócios, interesse particular decidido no
contexto dos interesses públicos); a igualdade política (direitos e deveres iguais, cooperação,
reciprocidade e participação); a solidariedade, confiança e tolerância (sujeitos prestativos, confiantes,
respeitosos uns com os outros). Na confluência destes argumentos alguns comportamentos e adjetivos são
dignos de nota: associativismo, acompanhamento do cotidiano da comunidade, envolvimento nos
negócios, obediência à lei e ao outro, igualdade como elemento central nas decisões, redes sociais
horizontais e solidariedade, engajamento, honestidade e liberdade (PUTNAM, 2002). Desse modo, mais
que um conceito, o capital social assume um sentido normativo de indicador de comportamentos sociais,
quase como um princípio moral ou moralizante, por isso sua grande adesão na leitura empresarial mais
preocupada em sugerir soluções que reconhecer problemas.
43
Vale lembrar a ressalva de González Casanova (2006, p. 181-182) de que ―como lógica de pensar e de
atuar, as ‗novas ciências‘ estão presentes nas estruturações do capitalismo contemporâneo. Também estão
presentes como lógica de crer (...), [como] necessidade de impor o equilíbrio para a continuidade dos
subsistemas abertos dominantes e do sistema capitalista‖.

189
direitos, antes negados, é calculada como risco, e a consideração ou tentativa de
negociação desses direitos é convertida em prestação de serviço‖ (GIFFONE, 2015, p.
205); o segundo é a funcionalização dos espaços de interferência das atividades
corporativas, transformando espaços relacionais em espaços absolutos, reduzindo a
complexidade de usos, modos de pertencimento e formas organização espaciais às
funções que cada localização exerce na lógica metabólica empresarial; e o terceiro,
resultante dos dois primeiros, é a transformação da ciência em uma tecnologia de poder
corporativo, exercendo a função de construir argumentos socialmente aceitáveis para
atividades socialmente degradantes e largamente questionadas.

5.3. A EMPRESA VALE S. A. E A “GESTÃO DO SOCIAL”


A empresa Vale apresenta pelo menos três momentos distintos no âmbito de
suas relações com as comunidades internas e externas à empresa. Cada momento
representa um modo particular e contextualizado de enfrentamento de demandas sociais
por parte da corporação.
O primeiro momento pode ser contextualizado por uma CVRD ainda estatal,
cujo sentido primordial da ação social corporativa será o controle do ambiente interno
das relações na empresa. Em 1968 é criada a Fundação Vale do Rio Doce de Habitação
e Desenvolvimento Social para viabilizar a instalação de habitações aos empregados da
empresa (VALE, 2012) em vistas, dentre outros objetivos, de viabilizar e acelerar o
contato entre as minas exploradas e os locais de moradia dos trabalhadores. Nestes
termos, temos a criação de uma estrutura organizacional especificamente voltada para a
demanda da casa própria de alguns empregados, configurando, assim, um movimento
de investimentos nas relações internas à empresa, de modo a favorecer o melhor
funcionamento dos negócios.
Essa preocupação com o ambiente interno das relações assume centralidade
maior após uma greve dos funcionários em 1989, primeira greve desde 1945, na qual o
sindicato Metabase, protagonista na mobilização, exigia reajustes salariais em vistas do
aumento no lucro líquido da empresa no ano anterior (MINAYO, 2004). A greve
aceleraria grandes processos de reestruturação produtiva: diminuição gradativa de
salários, programas de demissão voluntários e a promoção da casa própria seria
gradualmente substituída, no contexto de emergência de políticas neoliberais, por um
caminho de automação e flexibilização do trabalho, com redução drástica do quadro

190
funcional e uma política agressiva de terceirização da força de trabalho, não sem razão
entre 1990 e 1997, os postos de trabalho caíram de 4.189 para 2.112 (MINAYO, 2014).
A privatização em 1997 completaria a estratégia de controle do ambiente
interno da empresa pela cada vez maior flexibilização do trabalho e redução do poder de
negociação do trabalhador. Entretanto, se o ambiente interno e as relações com os
trabalhadores da mineração foram estabilizados - entenda-se como a quebra de qualquer
força política por parte dos trabalhadores, o que se desenhou com reestruturações
produtivas e terceirização da força de trabalho - eram cada vez maiores as interferências
externas à empresa de comunidades diretamente afetadas por algum momento do
processo metabólico da mineração.
A Fundação Vale do Rio Doce de Habitação e Desenvolvimento Social torna-
se, então, em 1998, apenas Fundação Vale do Rio Doce (FVRD), que mudou de nome e
de direcionamento na sua lógica operativa
Em 1998, a Fundação deixa de dedicar-se apenas à habitação e passa a
focar-se no desenvolvimento social de forma integrada. Torna-se,
então, a Fundação Vale do Rio Doce. O princípio da FVRD é apoiar
as comunidades das quais a Companhia faz parte com ações em
educação, saúde, infraestrutura (com financiamento para construção
de casas, por exemplo), proteção à infância e à juventude, cultura,
esporte e meio ambiente (VALE, 2012, p. 263).

Após a privatização, portanto, a empresa passa efetivamente a gerir as


populações do entorno de seus projetos de modo a antecipar e assegurar o
funcionamento de todos os momentos do metabolismo social da mineração. Os riscos
que eram internos à empresa, que foram sufocados por processos de reestruturação
produtiva e flexibilização do trabalho, tornando os trabalhadores ―homens de ferro e
flexíveis‖, como adverte o título do livro de Maria Cecília de Souza Minayo (2004),
passam a se expressar no ambiente externo à empresa, basicamente nas mobilizações
sociais das comunidades diretamente afetadas pela mineração.
A Fundação Vale adquire centralidade no trato das tensões sociais criadas
pelos projetos minerais, assumindo, num primeiro momento, a execução de
investimentos em alguns programas sociais, principalmente no campo da educação,
como a Escola que Vale, um programa voltado para formação continuada de professores
e aplicado em escolas municipais do Pará, Maranhão, Espírito Santo e Minas Gerais; o
Vale Informática, voltado para alunos e professores da rede pública de Itabira,
Governador Valadares e Cocais, em Minas Gerais, Vitória e Serra, no Espírito Santo e
em São Luís do Maranhão; além do Trem da Cidadania, que visava oferecer serviços de

191
expedição de documentos, consultas dentárias, vacinação, dentre outros, para as
populações ao longo das ferrovias administradas pela empresa (VALE, 2002).
É importante lembrar que a criação da Fundação Vale também se insere no
momento de aprofundamento dos processos de concorrência de um capitalismo cada
vez mais globalizado que exige, como um dos elementos de competitividade das
empresas, o atrelamento de suas marcas a imagens positivas em relação à sociedade e à
natureza. É nesse contexto, vale lembrar, que surgem duas instituições centrais que
disseminam a lógica empresarial do investimento social privado, a saber, o GIFE,
associação entre diversos institutos e fundações de empresas consolidado em 1995 e o
Instituto Ethos, formado por um grupo de empresários e executivos para prestar
assessoria de ações de responsabilidade corporativa, criado em 1998.
Nesse sentido, o caminho ao terceiro setor terá essa dupla função, conter as
possibilidades de conflitos sociais com as comunidades do entorno dos projetos e,
assim, melhorar a imagem da empresa aos seus acionistas, fornecedores, imprensa e,
principalmente, clientes. Entretanto, no caso da empresa Vale, essa compreensão das
comunidades afetadas pela mineração como risco potencial aos negócios, consolida-se,
também, através de mudanças no gerenciamento corporativo, as quais darão importância
significativa para o setor de relacionamento com comunidades e ao departamento de
segurança corporativa, bem como aos setores de marketing e à diretoria jurídica.
O boom das commodities já descrito aqui acelera, de forma sem precedentes na
história, não apenas o ritmo de produção da empresa Vale, como também alarga o
número de projetos de exploração e os países de atuação da empresa. Também se
multiplica as comunidades diretamente afetadas pela mineradora, o que produz uma
mudança de enfoque na lógica de tratamento do que se convencionou no campo
empresarial chamar de ―investimento social privado‖.
Se, num primeiro momento, a preocupação era interna com as relações de
trabalho e no segundo essas preocupações ultrapassam os muros da empresa
transformando comunidades do entorno em riscos sociais a serem enfrentados, o
terceiro momento, que coincide com a multiplicação de processos de exploração e
profunda internacionalização da empresa, a preocupação continuará extramuros,
entretanto, a empresa começa paulatinamente a diminuir a aplicação de recursos em
projetos sociais para produzir parcerias com o Estado e a sociedade civil, de modo
fomentar relações pretensamente direcionadas a solução de problemas sociais. Uma boa
síntese dessa desoneração do que a empresa chama em seus relatórios de ―dispêndios

192
socioambientais‖ é a afirmação feita pelo, então, presidente da Vale no contexto em que
a afirmação foi feita, em 2010, Roger Agneli:
Uma nova lógica de investimento social privado está nascendo. Uma
lógica em que o papel da empresa sai da aplicação de recursos em
projetos sociais e segue para a integração com poder público e
sociedade civil organizada em favor do desenvolvimento territorial
sustentável. A ideia é que todos trabalhem juntos para estimular
vocações locais e solucionar problemas através de ações estruturantes
(AGNELI, 2010).

Os investimentos diretos da corporação, por meio de sua fundação, serão,


nesses termos, gradativamente substituídos por parcerias. O gráfico 8 demonstra
claramente a queda naquilo que a empresa denomina de ―dispêndio socioambiental‖
entre 2011 e 2017. Os recursos que chegaram a ser de R$1.487,60 bilhão de reais em
2011, com alocação de R$ 457,2 milhões em ações sociais, chegaram ao total de R$
612,8 milhões em 2017, com apenas R$ 125,5 milhões investidos. Se os recursos totais
reduziram cerca de 58,8% de 2011 a 2017, os recursos direcionados a ações sociais,
caracterizados pela empresa como ações pontuais em comunidades, ações pontuais
institucionais, gestão de impactos e investimentos sociais (VALE, 2017), reduziram em
72,55% no mesmo período, demonstrando claramente que a nova estratégia de ―gestão
do social‖ passa por uma desobrigação financeira da empresa para com as comunidades.

Gráfico 8 – “Dispêndios Socioambientais” da empresa Vale em milhões de US$

Fonte: Vale, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017. Elaboração Bruno Malheiro, 2018.

193
Contraditoriamente, no momento de alargamento dos conflitos com múltiplas
comunidades espalhadas pelo mundo diretamente afetadas pelos projetos de mineração
da Vale - o que pode ser exemplificado com a constatação em seu relatório de
sustentabilidade de 2017, da existência de 266 ameaças de interdição só da EFC e a
verificação de 447 conflitos diretos com comunidades (VALE, 2017) – a empresa
diminui os valores reais alocados, por meio dos processos de gestão dos seus impactos,
redefinindo seus métodos de atuação a partir de transferências de responsabilidades.
Nesses termos,
Como iniciativa privada, a Vale quer colaborar com aporte de
conhecimento, tecnologia e capacidade de gestão. A expectativa é de
que mais empresas, governos e organizações da sociedade civil se
unam no desafio de construir este tipo de parceria pelo Brasil
(AGNELI, 2010).

Pela ideia de parceria, colaboração, aporte de conhecimento, a empresa começa


a transferir, principalmente para o Estado, a responsabilidade de gestão de problemas
sociais e ambientais gerados pelas atividades de mineração. A noção de
desenvolvimento territorial, como uma relação de sinergia entre empresa, sociedade e
Estado para viabilizar a exploração das chamadas vocações locais e, assim, resolver
problemas estruturais, em realidade, constitui-se em mais uma panacéia criada pela
literatura empresarial para que o discurso de responsabilidade ganhe outros modos de
criação de adesão menos custosos para a empresa, de modo que os problemas tornem-se
mais suportáveis diante de relações e parcerias estimuladas.
Se ainda considerarmos que apenas uma pequena parte dos recursos alocados
aos chamados ―investimentos sociais‖ que se incluem na menor fatia dos ―dispêndios
socioambientais‖ são direcionados à Fundação Vale - 11%, para ser mais exato, em
2017 (VALE, 2017) - começamos a perceber que a maioria dos recursos será utilizada
na contratação de consultorias, que, por seu turno, irão atuar nas localidades, em
conjunto com o setor de relacionamento com comunidades, o que demonstra, também,
uma terceirização mais generalizada da gestão das populações do entorno, com o
protagonismo de empresas de consultorias especializadas e com expertise em garantir a
viabilização de projetos por meio da relação com comunidades diretamente afetadas
pelos mesmos.
Quando questionada pela plataforma de Direitos Humanos, Econômicos,
Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA Brasil) acerca das demandas de
reassentamento de uma comunidade historicamente afetada pela mineração e recortada

194
pelos trilhos, Piquiá de Baixo em Açailândia no Maranhão, a empresa, em resposta,
deixa claro os sentidos de gestão do social na lógica do estímulo de parcerias:
(...) motivada por sua política de desenvolvimento sustentável, a Vale,
somente nos anos de 2011 e 2012, contribuiu com 22 ações sociais
estritamente voltadas à região de Açailândia e, especificamente para
esta comunidade, ofereceu à Associação Comunitária dos Moradores
do Piquiá de Baixo, a pedido dos moradores e sob anuência das
autoridades locais, o custeio para a contratação e confecção de um
projeto básico habitacional a ser utilizado pela comunidade na
obtenção de financiamento junto ao Programa Minha Casa Minha
Vida, providência que garantiria aos moradores importante avanço em
seu pleito de realocação para um novo bairro da região. Em que pese
não ter recebido retorno sobre a proposta apresentada, expirada no
exercício de 2012, a empresa continua a privilegiar o diálogo com a
comunidade e demais atores envolvidos (VALE apud FAUSTINO;
FURTADO, 2013, p. 93).

A comunidade que sofre cotidianamente com a poeira proveniente de


siderúrgicas, mas também com o atravessamento da linha do trem, recebe da empresa,
então, assessoria para confeccionar um plano de habitação para ser instrumento de
demanda para o Estado. A responsabilidade social corporativa, nesses termos, ganha
outra configuração, torna-se um modo de criação de demandas para o Estado, fazendo
com que a empresa dialogue com comunidades, menos por programas diretos e mais
por projetos de assessoramento comunitário.
A resposta dada pela empresa à mesma plataforma, acerca do problema crônico
de trabalho infantil ao longo da EFC, por conta da venda de alimentos por crianças nas
paradas do trem de passageiros, é, também, bastante expressiva desse modos operandi
Entendemos o problema, queremos resolver, mas sozinhos não vamos
conseguir. A Vale vem assumindo o papel dela. Contratamos
engenheiro ferroviário para ver o que é possível fazer em termos de
segurança, para permitir melhorias. A Vale contribui, não foge.
Entendemos que a questão é muito maior. O conselho não pode fugir
da responsabilidade. Se a gente assumisse tudo, iam dizer que a Vale
está assumindo o papel do Estado. Quem manda os meninos para a
casa não é a Vale. É junto com o Conselho. Por mais que a Vale possa
ter um papel – vigilância – o problema não existe porque tem a
ferrovia. Ela é um instrumento de escape para um problema maior que
a criança vai continuar sofrendo (VALE apud FAUSTINO;
FURTADO, 2013, p.).

A realização de parcerias com outras entidades, nesse caso, principalmente os


conselhos tutelares, bem como a fiscalização e a construção de casas de passagem são o
modo da empresa se posicionar frente a um problema social mais amplo. A
argumentação ressalta os limites da responsabilidade da empresa, entretanto, os próprios

195
conselheiros de municípios onde o problema é grave, como em Buriticupu, no
Maranhão, argumentam que a Vale simplesmente transfere a responsabilidade aos
conselhos tutelares sem assumir reais responsabilidades sobre as crianças (FAUSTINO;
FURTADO, 2013).
A palavra responsabilidade, presente nos discursos da empresa e nas demandas
das comunidades, definitivamente não possui o mesmo sentido. O que verificamos para
melhor compreendermos esse terceiro momento de tratamento dos riscos sociais
corporativos é uma retirada progressiva da responsabilidade da empresa para com
problemas criados ou aprofundados pelos seus projetos e a transferência dessa
responsabilidade para outros sujeitos políticos, seja o Estado, seja a própria
comunidade, tudo isso pelo discurso de parceria, colaboração e desenvolvimento
territorial.
Entretanto, a empresa para dar sentido aos recursos alocados para gestão de
conflitos também precisa construir uma leitura própria do que significa risco social. Na
sua caracterização geral dos riscos corporativos, dividida em quatro elementos: riscos de
mercado, de crédito, de projeto e operacionais, percebemos que neste último se inclui a
noção de risco social corporativo, por considerar acontecimentos externos que podem
afetar as operações e a reputação da empresa. Entretanto, é pela adesão da noção de
Licença Social para Operar que a empresa deixa mais clara a importância da
legitimação e aceitação dos seus projetos nas comunidades diretamente afetadas por eles
A atuação da Vale considera três eixos determinantes para a obtenção
da Licença para Operar: gestão de riscos e impactos, gestão do
relacionamento com as partes interessadas e definição de
investimentos sociais para geração de benefícios e legado positivo nos
territórios em que a Vale atua. A Licença para Operar é uma
metodologia que busca legitimação e aceitação da empresa pela
sociedade, em especial pelas comunidades locais, sendo indispensável
para permitir a instalação de novos projetos e a continuidade das
operações, uma vez que apenas a conformidade legal não é suficiente
para se obter a legitimação social. O conceito de Licença para Operar
é aplicado na Vale considerando as dimensões das Licenças Global,
Formal (legal) e Social. Por tratar-se de um ativo intangível e, por ser
dinâmica, a Licença para Operar deve ser gerenciada e monitorada.
Nesse contexto, a Vale trata também das condicionantes
socioeconômicas, vinculadas aos processos de licenciamento
ambiental, e do relacionamento com comunidades. Essas
condicionantes são um compromisso legal vinculado às licenças
ambientais dos empreendimentos da Vale (VALE, 2017, p. 122).

Gestão dos riscos, promoção de um relacionamento e dotação de investimentos


sintetizam as ações da empresa para garantir a licença social para operar. A nitidez das

196
palavras empregadas deixa anunciado que o objetivo da definição dos riscos, bem como
das ações para minimizá-los, é a legitimação e aceitação dos projetos, considerando o
dinamismo que significa conseguir isso. Efetivamente as populações dos entornos
transformam-se em fatores de risco a serem constantemente monitorados e, para as
quais, constituir-se-á um modo de gestão para a garantia do funcionamento de todos os
momentos metabólicos de distintos projetos de mineração da empresa.
O capitulo que se segue irá se debruçar sobre as estratégias específicas da
empresa Vale no que se refere ao Projeto S11D.

197
CAPÍTULO 6

GESTÃO DOS RISCOS SOCIAIS COORPORATIVOS: A


DESMOBILIZAÇÃO, RESIGNIFICAÇÃO E

ANTECIPAÇÃO À CRÍTICA

Por milênios o homem permaneceu o que era para Aristóteles:


um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o
homem moderno é um animal em cuja política está em questão a
sua vida de ser vivente.

Michel Foucault

198
A conquista da Licença Social para Operar, termo criado para dar tons
empresariais à adesão de comunidades a projetos que as afetam, não se efetiva sem
estratégias, como já advertiam Boltanski e Chiapello (2009), de desarmamento da
crítica para a justificação social dos empreendimentos. A empresa, nesse sentido,
constrói modos de dominação gestionária, nos quais, o que está em questão não é a
realização ou não de um projeto, mas o modo como as comunidades irão aderir diante
da inevitabilidade do mesmo. Nesses termos,
Em um sistema desse tipo, não é solicitado aos atores e, especialmente
aos mais dominados entre eles, se renderem à ilusão, porque não se
pede a eles para aderirem à ordem estabelecida de forma
entusiasmada. Pede-se a eles que sejam realistas. Ser realista, quer
dizer, aceitar as restrições, notadamente econômicas, tais como elas
são, não porque sejam boas ou justas "em si", mas porque não podem
ser diferentes do que são (BOLTANSKI, 2013, p. 450).

É cada vez mais claro que, quando não se garante a produção do consenso para
legitimar projetos, opera-se pela produção da resignação, a preocupação se desloca da
produção de idéias socialmente aceitas à inevitabilidade de idéias, dos caminhos
socialmente aceitáveis aos caminhos socialmente inevitáveis. Não mais se tem o direito
de dizer não, pois estrutura-se um conjunto de estratégias para garantir a resignação, ou
seja, para se garantir modos possíveis de dizer sim. O papel das empresas passa a ser
gerir o sentimento de insatisfação diante da falta de alternativas, sentimento este que irá
ser traduzido, pela racionalidade empresarial, como risco social. Esse papel, é
importante ressalvar, advêm do fato de que ―as empresas ganham força para constranger
os poderes locais e os atores sociais menos móveis, como sindicatos e entidades
associativas localizadas‖ (ACSELRAD, 2013, p. 107), de modo a garantir o
consentimento mediante as alternativas infernais que definem para as comunidades onde
atuam.
Neste capítulo falaremos de três estratégias distintas da empresa Vale para a
gestão dos riscos sociais corporativos, notadamente usadas através do projeto S11D, a
saber: a desmobilização da crítica, a resignificação da crítica e a antecipação à critica.
Queremos entender melhor o posicionamento e os modos de enfrentamento criados pela
empresa em relação às críticas sociais, entendendo como crítica social todos os
antagonismos que a mineração gera a partir de seu metabolismo social. A análise se
centrará nos relatórios de sustentabilidade da empresa, nos documentos produzidos
pelos licenciamentos ambientais, mas também em entrevistas, registro fotográfico e

199
produção cartográfica. A escrita se divide em três momentos, um para a compreensão de
cada estratégia em específico.

6.1. A DESMOBILIZAÇÃO DA CRÍTICA


A primeira estratégia, que estamos chamando de desmobilização da crítica, é
operada por diversos mecanismos de gestão do, então, chamado risco social corporativo,
pela empresa Vale. Em síntese, trata-se de uma maneira de desarmar potenciais entraves
à dinâmica metabólica da empresa e definir caminhos para a justificação social dos
projetos, além de formas de interação social com as comunidades afetadas nos
territórios da mineração, no sentido de controlar as probabilidades de conflito, criar
séries para equacionar os riscos, estabelecer parâmetros a partir de dados materiais para
maximizar a eficiência das dinâmicas produtivas que se quer instalar, minimizando
possíveis entraves.
A desmobilização da crítica, para se realizar, precisa de consultorias
especializadas em definir os caminhos de justificação social para a corporação. É
interessante notar que o mercado das chamadas ―consultorias ambientais‖ só ganhou
proporções e importância no Brasil em meados da década de 1990 basicamente por três
linhas de atuação centrais, a saber: a arbitragem de conflitos internos e externos às
empresas, de modo a estabelecer legitimidade às ações corporativas; a criação e difusão
de conceitos para o mundo empresarial; e a efetivação de mudanças organizacionais
(DONADONE; SZNELWAR, 2004).
As consultorias que se encaixam na primeira linha de atuação, particularmente
a arbitragem de conflitos externos aos muros das empresas, serão o foco de análise para
a compreensão dos processos de desmobilização da crítica. Sem esquecer que mesmo
nesse ramo em específico, notamos o oferecimento de dois serviços completamente
distintos que também levarão a caminhos e estratégias corporativas distintas, a saber: as
consultorias voltadas ao atendimento das normas legais particularmente da resolução
número 1 do CONAMA de 23 de janeiro de 1986 que, em seu artigo 2, prevê a
obrigatoriedade da elaboração dos estudos de impacto ambiental e seu respectivo
relatório, submetidos à aprovação do órgão estadual competente e do IBAMA, para
atividades modificadoras do meio ambiente (BRASIL, 1986); além de consultorias
voltadas para a viabilização de projetos diante de conflitos sociais com as comunidades,
as quais oferecem inúmeros serviços, tais como gestão e execução de programas e
projetos de socioeconomia, reestruturação e desenvolvimento econômico e produtivo,

200
relacionamento e comunicação com comunidades, educação e capacitação, só para ficar
em alguns serviços oferecidos pela consultoria Synergia, com atuação direta no projeto
S11D.
Em linhas gerais, identificamos três caminhos para a efetivação desta primeira
estratégia de desmobilização da crítica: o primeiro caminho, que aqui chamaremos de
gestão de conhecimentos de justificação, refere-se à produção do conhecimento, pela
contratação das consultorias ambientais, que constroem uma couraça científica
legitimadora aos projetos, particularmente através da construção dos Estudos de
Impacto Ambiental que, mais que instrumentos técnicos de cumprimento de
normatizações ambientais, transformam-se em instrumentos políticos de definição e
justificação de práticas espaciais corporativas; o segundo caminho, que aqui
chamaremos de gestão dos processos de adesão, também se relaciona à contratação de
consultorias ambientais (e a própria atuação da Fundação Vale), entretanto, para operar
diretamente com as comunidades, através de metodologias e tecnologias voltadas para a
criação de consenso, o que produz processos de desmobilização social; e o terceiro
caminho, que aqui será denominado gestão da política institucionalizada, é direcionado
à esfera dos poderes políticos constituídos e se expressa nos financiamentos de
campanha generalizados entre partidos, feitos pela empresa para construir representação
significativa nas casas legislativas, além de conquistar boa aderência dos comandos
executivos e, assim, ao passo de conseguir abertura política de interferência em leis e
códigos, também desmobiliza a possibilidade de entraves normativos que possam vir de
ações concretas do campo político legislativo, ou até mesmo do executivo44.

6.1.1. Gestão dos conhecimentos de justificação


A lógica de existência das consultorias ambientais introduz a ciência em geral,
mas também as ciências sociais em específico, em um processo mercadológico de
produção de um conhecimento interessado. A partir desses modos operandi, a ciência é

44
A palavra gestão empregada aqui na definição de vários processos não é usada sem razão, além de ser
largamente difundida no campo empresarial, enquanto conceito nos aproxima de processos de
administração mais imediatos, de gerência de possibilidades do presente, processos de resposta a
necessidades mais imediatas, sejam estas decorrentes de necessidades legais, sejam estas decorrentes de
conjunturas específicas apresentadas por comunidades. Logicamente que cada processo de gestão está
ancorado em perspectivas de longo prazo, em previsões (que estariam mais bem definidas pelo conceito
de planejamento) dadas pelas formas de pensar os riscos sociais corporativos, vistas no capítulo anterior.
Essa lembrança é importante, pois cada movimento de gestão, em toda sua especificidade e
complexidade, tem por finalidade a eliminação de entraves imediatos, mas sempre tendo em vista a
eliminação dos riscos, sendo, portanto, uma tecnologia de poder que administra os problemas presentes
tendo em vista sua transformação em riscos sociais para a corporação.

201
transformada em tecnologia política de gestão do risco, de modo que processos de
análise também se transformam, ou se formatam, em serviços oferecidos a grandes
corporações. As consultorias ambientais transformam-se, portanto, na blindagem
técnica e científica da empresa, uma vez que, sempre sob encomenda, realizam um
número incontável de estudos de projeções de risco, de vulnerabilidade ambiental,
atravessados pela necessidade de viabilidade do projeto. Operam, portanto, por uma
sociologia da desmobilização, como alerta Acselrad (2015), que visa otimizar lucros e
silenciar danos ambientais.
O que aqui chamamos de gestão de conhecimentos de justificação, é preciso
deixar claro, não é apenas a produção de um conhecimento a partir de uma finalidade de
viabilização de projetos, é, também, o modo como se administra a produção desse
conhecimento, como a empresa constrói modos específicos de elaboração e organização
dos estudos, de modo que informações pretensamente técnicas funcionem como
ferramentas políticas, cumprindo o papel de fazer ver ou fazer desaparecer.
Em relação ao Projeto S11D, três foram os estudos45 realizados, uma vez que o
projeto foi dividido em quatro partes, sendo, em três dessas, realizados estudos
ambientais. O projeto, já descrito neste trabalho, vale lembrar, integra a duplicação da
produção de ferro em Carajás, pela exploração das minas do sul da serra,
especificamente a mina S11D; a construção de um ramal ferroviário entre as novas
minas e a Estrada de Ferro Carajás; a duplicação de trechos (501km dos 892km da
ferrovia) da EFC; bem como a ampliação da capacidade de carga do Porto de Ponta da
Madeira em São Luís. Três, também, foram as empresas contratadas para a realização
dos relatórios exigidos legalmente para a expedição da licença ambiental do
empreendimento, a saber: Arcadis / Tetraplan, Golder Associados e Amplo Engenharia,
as quais são melhor descritas no quadro 8.

45
A Estrutura dos estudos é bem semelhante e segue não apenas o marco legal, mas uma estrutura de
trabalho e organização das consultorias. Todos começam com a apresentação da metodologia, bem como
uma descrição detalhada do empreendimento e de suas operações em termos locacionais. O nível de
detalhamento e a quantidade de informações, nessa parte, não são uniformes, uma vez que cada parte do
projeto exige a apresentação de elementos em específico, tendo maior importância, em alguns casos, a
apresentação da legislação aplicada, e em outros, por exemplo, a contextualização regional. Depois dessa
apresentação do empreendimento, que envolve, por vezes, a apresentação do empreendedor, passa-se para
a delimitação das áreas de influência direta e indireta para, então, traçar-se o diagnóstico ambiental,
geralmente dividido em meio físico, meio biótico e meio socioeconômico. Após a descrição e
apresentação dos meios, procede-se uma análise mais integrada, que encaminha para a identificação dos
impactos e para as ações de controle, mitigação e compensação ambiental. Um destaque especial deve ser
feita ao trabalho referente à duplicação da ferrovia que, por sua vez, não é um estudo de Impacto
Ambiental, mas apenas um Plano Básico Ambiental.

202
QUADRO 8 – Consultorias Contratadas para Licenciamento ambiental do Projeto
S11D
Empresa Projeto Breve Trajetória Principais Serviços oferecidos
Arcadis / Ramal A Arcadis foi criada na Holanda, em 1888. Em Consultorias de negócios,
Tetraplan Ferroviário 2014, adquiriu a Hyder Consulting, de modo que gerenciamento de construção e
por esta e outras aquisições tornou-se uma das supervisão de obras, soluções
maiores empresas de consultoria para ambientes ambientais, Consultoria
naturais e construídos do mundo. No Brasil, a ambiental estratégica, entre
atual Arcadis comprou a Logos Engenharia, a outros.
Enerconsult, a ETEP, a Tetraplan e a Interplan.
Golder Projeto de A Golder é uma empresa canadense criada em Soluções ambientais para
Associados Extração de 1960, focada em engenharia terrestre. Já na administração global,
Ferro S11D década de 1970 estabeleceu operações no Canadá, engenharia integrada e soluções
nos Estados Unidos, no Reino Unido e na ambientais para melhor
Austrália. A partir de 1996 começa a operar na desempenho da mineração,
América Latina. A empresa hoje conta com 165 garantia dos requisitos exigidos
escritórios em seis continentes, oferecendo para certificações e
serviços de planejamento ambiental, design e regulamentações, dentre outros.
engenharia terrestre. No Brasil possui três
escritórios, em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo
Horizonte.
Amplo Duplicação A Amplo Engenharia e Gestão de Projetos Ltda. Estudos ambientais,
Engenharia da Estrada Foi criada em 2001 em Minas Gerais e se implantação de projetos,
de Ferro especializou em consultoria, assessoria, Recursos hídricos e
Carajás treinamento, instrução nas áreas de Meio descomissionamento e Cursos e
Ambiente, Engenharia Mineral, Planejamento e treinamentos.
Gestão Sociocultural e Educação. A localização
de seus escritórios, em Belo Horizonte, em São
Luis e em Parauapebas demonstra a forte ligação
com a empresa Vale.
Fonte: Sítios de internet das três consultorias. Organização Bruno Malheiro, 2018.

De imediato, percebemos que a primeira estratégia de gestão dos


conhecimentos de justificação, antes mesmo da contratação das consultorias ambientais
para a elaboração dos estudos de impacto ambiental, é a fragmentação do projeto em
várias etapas ou partes, o que também, por seu turno, fragmenta os estudos,
impossibilitando qualquer visão mais integradora do projeto, que entenda o conjunto
dos conflitos que provoca. Até mesmo as consultorias não possuem essa leitura geral,
uma vez que, para cada parte do projeto, foi contratada uma consultoria diferente,
resultando em estudos separados, a saber: um sobre o projeto de extração da mina
S11D; um segundo que versa sobre a construção do ramal ferroviário que estende a
EFC até as proximidades da mina S11D em Canaã dos Carajás; e um terceiro sobre a
duplicação da Estrada de Ferro Carajás.
A prática do fracionamento dos processos de licenciamento ambiental em
grandes obras de infraestrutura ou mesmo em mega-projetos empresariais não é
incomum, na verdade já se tornou, observando outros casos, um modo recorrente de
desmobilização da crítica, assim se procedeu no Complexo Petroquímico do Estado do

203
Rio de Janeiro (Comperj) (CHACHÉ, 2014), no conjunto de ações de reconstrução da
Hidrovia Paraguai-Paraná (SILVA, 2015), bem como em diversos outros projetos.
Pelo menos dois argumentos são importantes de serem anotados, diante dessa
prática de fracionamento: o primeiro deles refere-se à falta de transparência dos estudos,
por sua fragmentação e não vinculação, o que produz uma desinformação generalizada
em relação ao projeto como um todo; o segundo argumento ressalta que a fragmentação
produz uma avaliação parcial do conjunto de impactos, diminuindo sua abrangência,
enfim, subdimensionamento-os.
Uma segunda estratégia de gestão dos conhecimentos de justificação é
claramente a simplificação dos processos de licenciamento. Os estudos são realizados,
entretanto, além de serem de forma fragmentada, também são aprovados com ritos
simplificados, particularmente no que concerne à realização de audiências públicas e a
consulta de indagação sobre o consentimento prévio em relação aos povos e
comunidades tradicionais.
No caso específico da duplicação da Estrada de Ferro Carajás, uma decisão do
IBAMA46 permitiu à empresa Vale realizar apenas um Plano Básico Ambiental para a
realização das obras, não se exigindo, portanto, a realização do Estudo de Impacto
Ambiental e seu respectivo relatório (RIMA). Tal simplificação, aliada à fragmentação
já mencionada, geraram algumas contestações na justiça. Nesse particular, o processo de
duplicação da Ferrovia chegou a ser suspenso, através de embargo judicial, por 45 dias
em 2012, por conta de uma ação civil pública47 constituída pela Sociedade Maranhense
de Direitos Humanos, pelo Conselho Indigenista Missionário e pelo Centro da Cultura
Negra do Maranhão, na qual foi questionado o licenciamento ambiental do projeto por
conta de sua fragmentação e simplificação, principalmente em relação aos povos
tradicionais. A Vale retomou os trabalhos com uma decisão do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, que considerou que, apesar da ilegalidade, as obras deveriam
continuar, pois sua suspensão causava lesão à ordem e economia públicas (AIAV,
2015).
A licença ambiental da obra ainda seria cassada em 2015 após ação do
Ministério Público Federal alegando irregularidade no processo de licenciamento que
provocavam graves danos, especialmente ao modo de vida dos indígenas Awá Guajá,
mas a cassação foi também revertida pelo setor jurídico da empresa.

46
Processo nº 02001.007241/2004-37.
47
Processo nº 26295-47.2012.4.01.3700 - 8ª Vara da Justiça Federal no Maranhão.

204
Todo processo de Licenciamento Ambiental que envolva Povos Indígenas, há a
exigência legal de que sejam realizados diagnósticos específicos, bem como Plano
Básico Ambiental voltado aos povos. A cada comunidade tradicional seria, então,
necessário o tratamento especial tanto dos estudos, quanto das ações de mitigação de
impactos.
O elemento mais significativo, portanto, da estratégia de simplificação dos
estudos é, sem dúvida, o aligeiramento da elaboração dos Planos Básicos Ambientais
nas comunidades tradicionais. E, tendo em vista que a adesão ao estudo é, também, uma
adesão aos projetos, muitas comunidades, além de denunciarem sua simplificação, não
aceitam a realização de tais estudos em seus territórios.
Dona Anacleta Pires da comunidade quilombola de Santa Rosa dos Pretos em
Itapecuru Mirim no Maranhão reclama dos sentidos dados ao Plano Básico Ambiental
para o caso dos quilombolas.
Aqui no território era pra ter 19 PBA, porque nós somos diferentes,
porque vamos pensar na questão cultural da matriz africana... Então
como vai fazer um PBA pra todo mundo se somos diferentes? Mas
eles fizeram. Tudo deles era resgatar. Eu acho que o resgate que tinha
que fazer era territorial, o primeiro resgate que eles tinham que fazer,
pra fazer a coisa certa, era resgatar as nossas terras, era tirar essas
mazelas deles daqui levar (Anacleta Pires, liderança quilombola,
entrevista realizada em janeiro de 2018).

Pela fala de Anacleta, fica claro que a realização do PBA se deu de forma
unificada desconsiderando a diversidade de quilombos e a especificidade de
organização e vida das distintas comunidades. O hiato entre o que é burocraticamente
reconhecido enquanto território quilombola e os processos de autodenominação de
diferentes grupos causam um descompasso nítido. Por fim, ela ainda ressignifica a
palavra resgate ao demonstrar que o único resgate a ser feito em relação aos
quilombolas é de seus territórios das mazelas provocadas pela mineração.
Se há resistência ao modo de realização do Plano Básico Ambiental com os
quilombolas, não é diferente em relação aos indígenas. Kátia Silene (Tônkyre
Akrãtikatêjê), Cacique de uma aldeia dos indígenas Gavião Akrãtikatêjê, na Reserva
Indígena Mãe Maria, recortada pelos trilhos da Vale, no Pará afirma:
É um jogo político que tá tendo nessa terra, que só Deus sabe o que
nós tá passando (...). Se a Vale quiser passar, que ela passe de avião,
ou que ela passe de navio. Isso aqui enche da Vale, aí eles trazem
som, filmagem (...) mas eu brigo e digo que não aceito duplicação,
não aceito PBA, não aceito PBA não aceito duplicação, não aceito não
(Kátia Silene, liderança Akrãtikatêjê, entrevista realizada janeiro de
2018).

205
A negação de Kátia nem foi considerada no momento anterior à elaboração do
projeto de duplicação. Não houve o direito de escuta para um consentimento prévio
acerca do projeto, simplesmente a empresa quando chega à aldeia, chega com o fato
consumado, daí a revolta dos indígenas que já possuem a experiência dos trilhos
cortando seus territórios desde 1985, quando inaugurada a EFC.
De modo geral, a gestão dos conhecimentos de justificação, por um lado, opta
pela fragmentação dos estudos e a conseqüente perda de leitura integrada do projeto,
como um modo de gerar desinformação e subdimensionamento dos problemas e
conflitos que o projeto provoca e, por outro lado, opera uma simplificação desses
estudos, sobretudo, nos aspectos mais polêmicos e potencialmente críticos, no que se
refere aos povos e comunidades tradicionais, para também simplificar a representação
dos povos no estudo, o que também reduz e invisibiliza suas demandas.

6.1.2. Gestão dos processos de adesão


A empresa é muito ambígua, muito hipócrita e, ao mesmo tempo, é
muito estratégico ter essa dúplice atitude né? Um dia você é um
bonzinho, no dia seguinte você é o cara que bate. Então eles acabam
incentivando isso: beneficio a ela, mas não a você. E aí ao utilizar
esses mecanismos seletivos, por mérito, que não são individuais, mas
sim o quanto cada comunidade pode ser hostil à empresa, eles acabam
tendo uma forma de controle do território. A própria atividade de
sempre renegociar é um instrumento. Se eu sou uma comunidade que
faço um acordo de cinco anos, no segundo ano eu me sinto mais livre
para protestar, mas se eu sei que o acordo é a cada ano, aí eu tenho
que ficar boazinha pelos cinco anos (Dário Bossi, Padre Coboniano,
entrevista realizada em setembro de 2016).

Padre Dário é bastante preciso ao identificar que um modos operandi da


empresa Vale nas relações com as comunidades dos entornos de seus projetos. A
ambigüidade no tratamento para com as pessoas cria mecanismos seletivos de
benefícios, diretamente ligados ao grau de hostilidade da comunidade em relação à
empresa, sendo que os próprios processos constantes de negociação e renegociação,
também se configuram em medidas de controle do território das populações, que se
vêem amarradas em relações sem a possibilidade de protestar.
Entramos pelos significados da fala de padre Dário no segundo processo de
desmobilização da crítica, a lógica de gestão dos processos de adesão.
O que está em jogo, assim como na gestão dos conhecimentos de justificação, é
a continuidade e funcionamento de todos os momentos metabólicos dos
empreendimentos minerais. Entretanto, a realização da desmobilização se constrói por

206
elementos um tanto distintos. A adesão aos projetos é um elemento definitivo e prévio a
qualquer ação da empresa, ou seja, lembrando Boltanski (2013), não está em questão se
o projeto vai ou não acontecer, mas o modo como as pessoas irão aderir a ele. Nesse
sentido,
Tecnologias de formação de consenso são então formuladas de modo
a caracterizar todo litígio como problema a ser eliminado. E todo
conflito remanescente tenderá, por sua vez, a ser visto como resultante
da carência de capacitação para o consenso, e não como expressão de
diferenças reais entre atores e projetos sociais, a serem trabalhadas no
espaço público (ACSELRAD, 2015, p. 31).

O consenso e a adesão, portanto, são os elementos definidores da relação da


empresa com as comunidades, de modo que todo conflito será tratado pelos motivos da
empresa - pelo olhar empresarial que representa o conflito como incapacidade social de
consenso e adesão - nunca pelos motivos dos sujeitos políticos que, por ventura,
antagonizem-se com a mineradora.
Já falamos aqui que para responder aos conflitos gerados fora dos muros da
empresa, a Vale cria uma estratégia de, primeiro, definir os riscos corporativos para,
então, direcionar um conjunto de práticas para a busca da denominada licença social
para operar (LSPO), que nada mais é que o consenso e adesão que aqui mostramos
como os elementos prévios da relação empresa-comunidade. Entretanto, essa busca da
LSPO, particularmente no projeto S11D, envolve o trabalho de algumas empresas de
consultoria contratadas e da própria Fundação Vale, além, lógico, da equipe ligada ao
quadro de funcionários da empresa, responsável pela relação com comunidades.
Primeiramente é importante destacar que os serviços contratados junto às
consultorias são totalmente distintos daqueles relacionados aos Estudos Ambientais que
falamos anteriormente, uma vez que a atuação, nesse particular, visa a gestão do social,
conceito definido por uma das empresas contratadas como ―o gerenciamento e execução
de trabalho técnico social que envolve ações de relacionamento e diálogo social com as
comunidades, de apoio socioassistencial e socioeducativo às famílias e de
desenvolvimento socioeconômico e ambiental dos territórios‖ (DIAGONAL, 2018,
n/p).
Esse gerenciamento do relacionamento e do diálogo com as comunidades terá
atenção por parte de duas empresas e um instituto. Do mesmo modo que a contratação
das consultorias ambientais para a elaboração dos EIA/RIMA são realizadas a partir de
exigências legais, a contratação de consultorias para a gestão social não será diferente.

207
Nas áreas mais próximas ao processo de extração do projeto S11D, a Ecology Brasil
auxilia o cumprimento de uma das condicionantes do IBAMA48, de criação de um
Programa de educação Ambiental nas comunidades afetadas pelo empreendimento. Por
outro lado, algumas populações diretamente afetadas pelos processos de extração e pela
logística do empreendimento entrarão na grade de preocupações das empresas Synergia
e Diagonal, transformação de Territórios, que também são contratadas para construírem
modos de relacionamento com comunidades. Os indígenas, particularmente dos povos
do Maranhão, passarão a ter relação direta com o Instituto Sociedade, População e
Natureza (ISPN) que irá implementar alguns Planos Básicos Ambientais, também
exigidos legalmente, em territórios indígenas diretamente afetados pelo projeto S11D.

QUADRO 9 – Consultorias Contratadas para a gestão do Social


Empresa Breve Trajetória Principais Serviços oferecidos
Gestão e execução de programas e projetos de
Fundada em 2007, a SYNERGIA se especializa
socioeconomia, Reestruturação e
no oferecimento de serviços e soluções
desenvolvimento econômico e produtivo,
socioambientais para empresas privadas, públicas
Relacionamento e comunicação com
Synergia e de economia mista. Hoje opera em mais de 150
comunidades, Educação e capacitação,
municípios brasileiros e na África. Tem sede em
Reassentamentos, Laudos e avaliação
São Paulo, filial no Rio de Janeiro e sucursal em
imobiliária e patrimonial, Negociação e
Moçambique.
regularização fundiária, dentre outros.
A empresa é criada por Kátia Mello e Álvaro Jucá
em 1990. Inicia com trabalhos de regularização
Gestão Social Integrada, Sustentabilidade e
fundiária, habitação e saneamento ambiental, para
Responsabilidade Social
então, criar expertise em gestão social integrada.
Diagonal, Regularização Fundiária, Habitação e
Nesse sentido, tem por pilar metodológico
Transformação Saneamento
conhecer, dialogar, planejar e transformar. A
de Territórios Gestão de Cidades e
Diagonal também é sócia da CONDOMINIUM -
Inovação & Tecnologia
Empreendimentos Ambientais Ltda., empresa
fundada em 1993 com sede na cidade de Recife,
no estado de Pernambuco.
A Ecology Brasil é filial da Ecology and
Envionment, empresa fundada em 1975 nos
Estados Unidos. O primeiro grande trabalho foi a Suporte ao Licenciamento e Gestão
supervisão da construção do oleoduto Ambiental; Ações de interface com as
―Transalaska‖. O primeiro trabalho internacional comunidades; Transparência entre o
Ecology Brasil
aconteceu na Bolívia em 1979, sendo que o empreendedor e as comunidades; Gestão
escritório brasileiro foi inaugurado em 1997, em institucional do processo de licenciamento
São Paulo, transferido em 2004 para o Rio de ambienta.
Janeiro. Em 2010 foi inaugurado o escritório em
Belo Horizonte.
O ISPN é um centro de pesquisa e documentação
sem fins lucrativos, sediado em Brasília que
Instituto
possui o objetivo de contribuir para a viabilização Consultoria para a produção e implantação do
Sociedade,
do desenvolvimento sustentável, através da Plano Básico Ambiental para algumas etnias
População e
articulação política em diversos níveis e setores indígenas.
Natureza
do campo ecossocial, atuando, assim, na
implementação e avaliação de políticas públicas.
Fonte: Sítios de internet das consultorias. Organização Bruno Malheiro, 2018.

48
A Licença de Instalação do projeto S11D é a de nº 947/2013 do IBAMA e inclui 20 condicionantes
específicas.

208
A consideração do ISPN como uma consultoria no processo de gestão dos
processos de adesão decorre do fato que a construção de um Plano Básico Ambiental
indígena envolver modos de relação e entrada nas comunidades que foram facilitados
pela experiência do Instituto no tratamento com comunidades tradicionais. Parece-nos,
portanto, estratégico para a empresa Vale, conduzir uma relação com indígenas por
meio de um instituto, nutrido dos avanços históricos constituídos no campo da
antropologia, ou como nos relata Gil, do CIMI em Imperatriz no Maranhão:
A empresa terceirizou a implementação dos recursos pelo ISPN, a
empresa praticamente não se relaciona com os indígenas. Nesse
processo da duplicação sempre foi assim. Houve alguns antropólogos
contratados pela Vale, mas era para o relatório de Impacto no mais o
ISPN faz os processos para incentivar a criação das associações e tudo
mais (Gilderlan, indigenista do CIMI/MA, entrevista realizada em
janeiro de 2018).

Em relação à empresa Ecology Brasil, a implementação de um Programa de


educação ambiental em algumas comunidades afetadas pelo Projeto S11D, demarca as
técnicas e modos de relacionamento que são construídos com as comunidades.
Identificamos, anteriormente, pelo menos três momentos de gestão dos riscos
corporativos pela Vale, e o trabalho desenvolvido pela Ecology, bem como por outras
consultorias, deixa mais nítido o terceiro momento identificado, no qual a ação é
direcionada para o estabelecimento de parcerias como mote de resolução dos problemas.
Nesses termos, tomemos a fala de um dos funcionários da Ecology Brasil sobre
o Programa de educação Ambiental – um dos poucos que nos recebeu para uma
conversa e não será identificado aqui por acordo mútuo - para melhor compreender esse
o modo de gestão do social em que a empresa se aproxima da comunidade para produzir
um distanciamento de responsabilidade:
O que o programa promove: os espaços para discussão dos temas que
a comunidade acha importantes de debater, eventualmente pode
articular medidas pra implementar alguma ação, mas o programa não
implementa. Ele não tem condições de implementar. Uma comunidade
sentiu a necessidade de, sei lá, construir uma escola, o programa não
vai ter condições de propor recursos e tal para isso, mas ele pode criar
articulações pra aquela comunidade ser atendida, com o poder público
e outras alternativas (Funcionário da Ecology Brasil, entrevista
realizada em janeiro de 2018).

O programa, portanto, é uma forma de envolver a comunidade em outras


relações e parcerias para a solução de problemas. Por não ser voltado à implementação,

209
os procedimentos se voltam mais para a capacitação do que ao atendimento concreto de
demandas, como um modo de mediação na resolução de problemas.
Prestando consultoria a 17 projetos ligados à mineradora Vale49, com destaque
à Implantação do Corredor Logístico Norte, que compreende os estudos
socioeconômicos de avaliação de imóveis urbanos e rurais das áreas impactados pela
logística da duplicação da EFC e da construção do ramal ferroviário até o projeto S11D,
a empresa Synergia também compõe as estratégias de gestão do social empreendidas
pela Vale. Além do estudo citado, a construção de uma metodologia única para a
realização de estudos socioambientais para a empresa, em vistas à padronização desses
estudos, bem como o conjunto de monitoramentos e formas de relação com as
comunidades diretamente afetadas por projetos da Vale, dão à consultoria importância,
principalmente no que tange a processos de remoção, sendo, também, uma espécie de
escudo da empresa em processos mais críticos. Nos próprios termos da consultoria:
O Projeto Ferro Carajás S11D, que está sendo implantado pela Vale
em Canaã dos Carajás, demandará a duplicação da Estrada de Ferro
Carajás. Para viabilizar tal duplicação, a SYNERGIA implementa e
monitora o plano de atendimento para a remoção de famílias e
benfeitorias presentes na faixa de domínio da Estrada de Ferro Carajás
(EFC), no município de Marabá (PA). A medida permitirá a realização
das obras de expansão da ferrovia, garantindo a segurança operacional
do transporte ferroviário e das comunidades diretamente afetadas
(SYNERGIA, 2018, n/p).

A ordem de apresentação dos argumentos no texto acima diz muito sobre o


modo de gestão dos processos de adesão por parte da Synergia. Primeiro viabiliza-se a
implantação do projeto, garantindo a expansão da obra e a segurança operacional,

49
Dos trabalhos em torno dos processos de exploração mineral em Carajás, temos o Plano de atendimento
à famílias no projeto Onça Puma; o levantamento sobre transporte público em Canaã dos Carajás; o
programa de monitoramento socioeconômico de Canaã dos Carajás; o gerenciamento para realocação de
famílias no Projeto S11D; a realização de estudos socioeconômicos para implantação do corredor
logístico norte correspondente à duplicação da Estrada de Ferro Carajás; avaliação patrimonial em
Curionópolis para construção de corredor logístico para tráfego de caminhos fora de estrada; mapeamento
do trabalho infantil no Pará e no maranhão; diagnóstico fundiário de áreas de interesse da Vale;
monitoramento de Condicionantes do Projeto Salobo Metais; diagnóstico socioeconômico para plano de
urbanização das margens da Estrada de Ferro Carajás na cidade de Marabá; diagnóstico de percepção em
relação à educação sexual em Canaã dos Carajás; além da recuperação de Áreas Degradadas relativo às
obras de ampliação do Terminal Portuário de Ponta da Madeira (TPPM) e do Terminal Ferroviário de
Ponta da Madeira (TFPM) e à obra de construção do píer IV. Fora do eixo de Carajás, temos ainda o
diagnóstico socioeconômico de famílias na Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM); diagnóstico
urbanístico e Fundiário da EFVM; análise de travessias na EFVM; criação de um método para
padronização dos estudos socioeconômicos ara a Vale; levantamento socioeconômico das famílias da área
para onde está sendo pensada a Barragem Fazenda Velha (SYNERGIA, 2018. Acessado em
http://www.synergiaconsultoria.com.br/todos-projetos/).

210
depois, garante-se a segurança das comunidades diretamente afetadas que, nesse
particular, traduz-se em sua remoção.
Entretanto, mesmo a Synergia assumindo centralidade na definição
metodológica da gestão dos processos de adesão, outra empresa também figura com
importância nessa dinâmica. Estamos falando da Diagonal, transformação de territórios.
A relação com essa consultoria, no caso específico da Vale S. A, é longa e duradoura e
envolve, para além dos trabalhos de assessoria, também alguns entraves jurídicos dignos
de nota, como a acusação de um esquema de beneficiamento mutuo entre o senador
Romero Jucá (PMDB/RR), a empresa Vale e a Diagonal, inscrita no inquérito número
2996SP encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF, 2013). Nessa teia de
interesses em que os estudos são realizados, salientemos que um dos diretores
executivos da Diagonal é o irmão do senador supramencionado, trata-se de Álvaro Jucá.
A própria empresa fez doações à direção estadual do PMDB de Roraima que, só em
2010, somaram R$ 1.500.000 e R$ 700.000 em 2014 (TSE, 2010, 2014), sendo que este
estado não consta na centralidade do portfólio de ações das duas empresas, mas esse é
um assunto que trataremos de forma mais aprofundada mais à frente.
Em linhas gerais, além do escudo representado pelas consultorias ambientais, a
empresa Vale possui duas linhas mestras no tratamento para com as comunidades, que
estão, a partir de outros termos, na fala de padre Dário, a saber: a tentativa de
individualização das negociações, sempre na perspectiva de desmobilização social; e o
estímulo ao afloramento de contradições internas nas comunidades.
Em relação ao primeiro processo, a fala de Zeca Gavião, Cacique de uma
aldeia dos Kyikatêjê, na reserva Indígena Mãe Maria, é bastante representativa:
A Vale não discute cultura, não discute o bem estar da comunidade
não, o problema deles é minério! Eles não querem saber se o índio tá
bem se o índio tá mal, tanto é o que ta acontecendo lá com o Rio
Doce. Se hoje aqui tem problema é em função da Vale do Rio Doce. A
Vale do Rio Doce acha melhor conversar com um de cada vez, com
cada comunidade do que conversar com todo mundo (Zeca Gavião,
liderança Kyikatêjê, entrevista realizada em janeiro de 2018).

Conversar com cada comunidade e não com todo mundo significa possibilitar
desagregação. Assim é, também, nos processos de compra de terras pela empresa - aos
quais dedicaremos um capítulo inteiro à frente – que são feitos, como verificamos em
análises anteriores sobre o projeto de Cobre do Sossego, vizinho ao projeto S11D,
através da negociação individual dos lotes de agricultores que, não apenas vendem suas

211
terras à empresa, mas também são informados a manterem o sigilo dos detalhes da
venda (CRUZ; MALHEIRO, 2016).
Essa individualização é o caminho para o segundo processo que é o estímulo
ao afloramento de contradições internas nas comunidades. Novamente ouvir Kátia
Silene, Cacique de uma aldeia dos indígenas Gavião Akrãtikatêjê, é de fundamental
importância para demonstrar essa prática de desagregação estimulada pela empresa:
Porque ela mesma joga confusão entre índio. E, enquanto os índios
ficam se matando, a Vale tá ali aplaudindo, ela ta na platéia e nós ali.
Não se damo conta que é isso que ela quer, enfraquecer nós! Ela
negocia com as comunidades, por exemplo, a Vale vem aqui e negocia
comigo, aí ela vai lá no outro e diz: ―Mas olha a Kátia aceitou, diz que
vai assinar lá pra aceitar a duplicação‖. Aí o outro me liga: ―Vem cá tu
aceitou?‖ Aí eu digo: ―É mentira‖. Aí um liga pro outro, aí ninguém
aceitou isso é mentira (Kátia Silene, liderança Akrãtikatêjê, entrevista
realizada janeiro de 2018).
Além do tratamento diferenciado e de informações desencontradas, Kátia
demonstra que os processos de negociação envolvendo dinheiro também são usados no
sentido de estímulo às contradições entre os indígenas
Ela mudou a vida de muita gente. Pra mim eu vejo como propina. No
ano retrasado o que a Vale fez, ela deu 70 mil pra uma indígena e
disse pra não falar pra ninguém. A menina foi lá, porque tudo é
parente né... e falou: ―olha a Vale foi lá e deu 70 mil‖. Aí estourou!
Moço até hoje nós briga por causa desses 70 mil. Isso gerou uma
confusão muito grande (Kátia Silene, liderança Akrãtikatêjê,
entrevista realizada janeiro de 2018).

O estímulo às contradições internas nas comunidades e o jogo de informações


desencontradas não é uma exclusividade usada para com os indígenas. Uma liderança
do MST chega a afirmar que
(...) a Vale financia dentro das nossas áreas uma contradição e coloca
ali um sistema de como se briga dentro do espaço. Se você vai às
áreas onde é perto das localidades onde a Vale tá, ela tanto atua no
imaginário, como também vai tentando colocar políticas públicas
miseráveis, que não compensa nem um terço das necessidades básicas
da básica do assentamento, ou da área que tá perto. Mas também faz o
processo de dizer que é a liderança que é o corrupto que não quer o
desenvolvimento. A Vale chega no espaço, a gente diz não, então
imediatamente também tu sente uma repressão sobre o espaço, tu
sente que tem por fora ali uma força política tentando desconstruir o
espaço (Militante do MST/PA, entrevista realizada em fevereiro de
2016).

A instalação de contradições no interior dos espaços, os tratamentos


diferenciados, concorrem para o que o dirigente do MST chama de ―desconstrução do
espaço‖ que, nos temos de um camponês significa a quebra de longos processos de

212
construção de unidades políticas que, de repente, pelas relações construídas com a
empresa Vale, transformam-se em conflitos internos.
Como já alertara padre Dário na epígrafe dessa seção, outro modo de estimular
contradições internas nas comunidades é o constante oferecimento de acordos e ou,
também, constante descumprimento dos mesmos. A lógica da relação por acordos
constante é um artifício para a redução das possibilidades de conflitualidade e geração
de antagonismos para com a empresa. Seu Valdir Gonçalves conta-nos que:
Quando veio a duplicação eles marcaram uma audiência pública, que
não foi audiência nenhuma foi uma reunião pública lá no casarão para
apresentar o projeto da duplicação. E eles iam remover as pessoas.
Fizeram um convênio com a prefeitura para tirar 158 famílias que
moravam no entorno da ferrovia. Andaram nas casas, fizeram
cadastro, removeram, negociaram com pessoas e não cumpriram. Hoje
a maioria das pessoas está com ação judicial com auxilio da
defensoria pública. Conseguiram tutela antecipada naquelas casas
muito próximas à ferrovia que não havia condições das pessoas
morarem lá. Mas a mineradora sempre se recusa a cumprir acordos
que ela fizera. Já fizemos a denúncia em todas as esferas que nós
poderíamos fazer. Você ouve aí esse problema é constante. O grande
problema foi o não cumprimento dos acordos (Valdir Gonçalves,
morador do bairro Auzira Mutran, Marabá, entrevista realizada em
setembro de 2016).

Seu Valdir, com quem conversamos bastante e cuja voz ainda será bastante
ouvida nesse trabalho, demonstra, com a força de uma experiência concreta, a maneira
de construção e descumprimento de acordos por parte da empresa. O artifício do acordo,
nesses termos, vale para manter a expectativa da comunidade, diminuir qualquer
possibilidade de antagonismos mais amplos e levar para o campo jurídico os termos das
relações com as pessoas, campo no qual cumprir ou não cumprir um acordo tornar-se-á
questão interpretativa como veremos mais à frente.

6.1.3. Gestão da política institucionalizada


Outra esfera importante que se apresenta nos cálculos de riscos da empresa
Vale, sem dúvida, é a esfera da política institucionalizada. Os poderes constituídos, seja
o executivo, seja o legislativo, seja ainda o judiciário podem provocar constrangimentos
reais às operações da empresa, seja em termos de regulação tributária, ambiental, social
ou mesmo em termos de decisões políticas que, por exemplo, desprestigiem a
exportação das commodities minerais como elemento central da política econômica dos
governos.

213
Nesses termos, uma das estratégias usadas para gerir esses riscos da política
institucionalizada, ou pelo menos a estratégia que podemos, através de um exame
cuidadoso de dados, chegar a conclusões lógicas e consistentes, é o financiamento de
campanhas eleitorais.
Aqui tomaremos a eleição de 2014 como referência para entender essa
estratégia, por três motivos: o primeiro, pela disponibilidade mais completa dos dados, o
segundo, pela inflexão histórica em termos de participação da Vale nas doações,
passando de R$ 29.960.000,00 em 2010 para R$ R$ 79.537.910,86 em 2014, e o
terceiro por ser a eleição mais próxima, em termos temporais, na qual há um interesse
mais direto da mineradora no financiamento (TSE, 2010, 2014).
É necessário dizer que tratamos aqui partidos, candidatos e empresa doadora,
como sujeitos políticos racionais que buscam interferir nas campanhas eleitorais e nos
resultados das eleições, ou seja, cada um ao seu modo possui algum tipo de expectativa
de ganhos. Como o que nos interessa aqui é entender o modo de gestão da política
institucionalizada, centraremos a análise na leitura da racionalidade da empresa Vale
para com as eleições, a qual será lida por três entradas, a primeira pelas escolhas
partidárias feitas nas doações, a segunda, pela distribuição espacial dos recursos
destinados às eleições e a terceira pela relação direta entre o financiamento de
campanha e os deputados federais membros da comissão especial do novo código da
mineração.
Na busca pelas informações encontramos sete empresas diretamente ligadas à
mineradora que fizeram doações diretas a candidatos ou a diretórios partidários em
2014, são elas: Vale Manganês, Vale Mina do Azul, Salobo Metais, Minerações
Brasileiras Reunidas, Mineração Corumbaense Reunida, Biopalma e Vale Energia.
Todas essas empresas, umas mais, outras menos, registraram doações de campanha no
Tribunal Superior Eleitoral.
O quadro abaixo demonstra uma síntese geral das doações de campanha feitas
pelas empresas ligadas à Vale S. A, diretamente a candidatos e, também, aos diretórios
partidários, sem, ainda, especificar estados, candidatos ou partidos. O universo de
recursos, num crescimento de mais de 62% em comparação com as eleições de 2010
comprova, preliminarmente, a extrema preocupação da grande mineradora com as
eleições.

214
QUADRO 10 – Doações Gerais da empresa Vale S. A. para candidatos e diretórios
partidários nas eleições de 2014
Empresas ligadas
Doações diretas para Candidatos Doações para Diretórios Partidários
à Vale S. A
Vale Manganês R$ 2.000.000,00 R$ 6.650.000,00
Vale Mina do Azul R$ 930.238,00 R$ 8.000.000,00
Salobo Metais R$ 7.057.504,86 R$ 8.720.000,00
Minerações
Brasileiras R$ 5.980.000,00 R$ 6.100.000,00
Reunidas
Mineração
Corumbaense R$ 8.820.000,00 R$ 9.100.000,00
Reunida
Biopalma ------------ R$ 200.000,00
Vale Energia R$ 5.700.168,00 R$ 10.280.000,00
R$ 12.000.000,00 R$ 22.230.000,00
(presidência) (diretórios nacionais)
Total R$ 30.487.910,86 R$ 49.050.000,00
R$18.487.910,86 (demais R$ 26.820.000,00
candidatos) (diretórios estaduais)
Total Geral R$ 79.537.910,86
Fonte: TSE, 2014. Elaboração Bruno Malheiro, 2018.

Do quadro acima percebemos duas possibilidades de destino dos recursos do


financiamento de campanha, uma com doações diretamente aos candidatos, que se
expressa no financiamento de campanha dos presidenciáveis e dos demais candidatos,
que inclui governadores, deputados federais e deputados estaduais. E uma segunda que
se refere ao repasse aos diretórios dos partidos políticos, repasses estes que podem ser
destinados aos diretórios estaduais ou aos diretórios nacionais.
Dos dados brutos apresentados no quadro, vamos desagregando para esmiuçar
uma lógica das doações. O primeiro elemento a se considerar é a doação realizada aos
partidos políticos por meio de seus diretórios. Considerando apenas essa doação direta
aos partidos, temos a construção de uma relação empresa e partido político sem a
mediação dos candidatos. Nesses termos, é impressionante a vantagem do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) em relação aos outros partidos, como
demonstra o gráfico 9. São, portanto, R$ 23.100.000,00 investidos nos diretórios, o que
pode ser lido como a construção de uma relação sólida entre o partido e a empresa. Se
considerarmos que, na lógica do presidencialismo de coalizão que vigora no Brasil
desde a redemocratização, o PMDB foi o partido que, historicamente, melhor se
posicionou em termos de centralidade política nos governos sucessivos, e se
considerarmos ainda, a sua centralidade nas coalizões políticas regionais e locais, sendo
o partido com maior número de prefeituras - eram 1.024 em 2012 passando para 1.026

215
em 2016 (TSE, 2016) - temos a exata noção da escolha pela doação direta aos diretórios
do partido.
GRÁFICO 9 – Doações Vale S. A para os Partidos Políticos, através dos diretórios
partidários nas eleições de 2014

Fonte: TSE, 2014. Organização, sistematização e consolidação dos dados Bruno Malheiro, 2018.

Não podemos esquecer o montante de recursos investidos, particularmente, no


Partido dos Trabalhadores (PT) e no Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB),
nesses casos, também em função da centralidade dos partidos nas casas legislativas, mas
também por estarem envolvidos em muitas disputas ao executivo, com centralidade às
eleições presidenciais, as quais nas últimas seis eleições, os partidos têm centralidade na
disputa.
Entretanto, quando percebemos o montante de recursos destinados pela
empresa Vale diretamente aos candidatos, percebemos uma mudança no quadro, o PT
assume, neste tipo de doação, a centralidade absoluta dos recursos recebidos, como
demonstra o gráfico 10.

216
GRÁFICO 10 – Doações Vale S. A diretamente a candidatos nas eleições de 2014, valores
por partidos

Fonte: TSE, 2014. Organização, sistematização e consolidação dos dados Bruno Malheiro, 2018.

Dos mais de 17 milhões de reais destinados aos candidatos do PT, é importante


destacar, 12 milhões foram diretamente para Dilma Rousseff, o que demonstra a estreita
relação entre a política econômica adotada pelo governo da candidata à reeleição e os
interesses da empresa. Entretanto, mesmo retirando os 12 milhões, o PT continua sendo
o partido com maior volume de recursos recebidos, R$ 5.240.000,00, o que configura
uma relação da empresa mais diretamente com os candidatos com potenciais de vitória,
principalmente à câmara federal. Na lógica do financiamento aos outros partidos, a
preocupação com a bancada dos deputados federais também é central, seja nas doações
ao PSDB, ao PP, dentre outros.
Na somatória dos dados de financiamento diretamente aos candidatos e aos
diretórios dos partidos percebemos um volume semelhante de recursos destinado aos
partidos centrais da coalizão presidencial PT-PMDB, com vantagem ao PT e grandes
recursos também repassados ao PSDB, PSB e PP. O interessante notar é que, dos 32
partidos que disputaram as eleições de 2014, a mineradora Vale financiou 24, ou seja,
75% dos partidos políticos tiveram recursos diretos da empresa.
O gráfico 11 é o resultado da somatória dos outros dois gráficos apresentados e
revela, em termos partidários, o montante geral de recursos, os R$ 79.537.910,86
investidos nas eleições de 2014 pela Vale, seja através de candidatos, seja através de
diretórios.

217
GRÁFICO 11 – Doações Vale S. A para os Partidos Políticos, somatória entre doações
diretas a candidatos e aos diretórios partidários

Fonte: TSE, 2014. Organização, sistematização e consolidação dos dados Bruno Malheiro, 2018.

Porém, para além de uma análise partidária, para entender a distribuição desse
montante de recursos como um processo de gestão da política institucionalizada,
fazendo uma relação direta com os interesses corporativos da empresa Vale, faremos
agora uma distribuição espacial desses dados.
Nesses termos, dos R$ 49.050.000,00 investidos nos diretórios partidários, R$
22.230.000,00 foram aos diretórios nacionais, mas R$ 26.820.000,00 foram aos
diretórios estaduais dos partidos. Organizamos a distribuição desses mais de 26 milhões
de reais por Estado, como demonstra o gráfico 12, e percebemos uma centralização
desses recursos nos dois estados centrais para as operações da empresa no Brasil: Minas
Gerais e Pará.

218
GRÁFICO 12 – Doações Vale S. A para diretórios partidários, valores por
Estado

Fonte: TSE, 2014. Organização, sistematização e consolidação dos dados Bruno Malheiro.

Além desses recursos direcionados aos dois principais estados onde estão os
projetos mineradores centrais da empresa, parece estranho os R$ 2.600.000,00
direcionados ao Rio Grande do Norte, única e exclusivamente ao PMDB desse estado,
por meio da Vale Manganês (R$ 700.000,00), das Minerações Brasileiras Reunidas (R$
500.000,00), da Vale Energia (R$ 500.000,00), da Salobo Metais (R$ 500.000,00) e da
Vale Mina do Azul (R$ 100.000,00) (TSE, 2014). Entrementes, se considerarmos que
Henrique Eduardo Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte - preso por corrupção e
lavagem de dinheiro por conta da construção do Estádio Arena das Dunas em Natal/RN
em junho de 2017 - foi o presidente da Câmara dos Deputados entre 2013 e 2015,
começamos a entender o volume de recursos destinados ao PMDB do estado pela
empresa Vale. Não estando o Rio Grande do Norte entre os espaços centrais de
investimentos da empresa, o volume de doações se explica pelo alargamento da
influência da mineradora num dos cargos mais importantes do legislativo brasileiro.
A lista de investimentos continua com a doação de R$ 2.500.000,00 ao
Maranhão, também, única e exclusivamente ao PMDB desse estado. Só o fato de duas
estruturas logísticas centrais da empresa Vale em Carajás estarem ou passarem pelo
Estado, a Estrada de Ferro Carajás e o Terminal de Ponta da Madeira no Porto de Itaqui,
justificaria os altos valores repassados ao PMDB do Estado. Entretanto, um interesse
específico ficou mais claro, analisando a atividade legislativa de políticos do PMDB

219
maranhense, nos anos posteriores às eleições de 2014: a federalização do Porto de
Itaqui50 que, por sua vez, encaminha a privatização do porto.
Os recursos significativos aos estados do Espírito Santo e Mato Grosso do Sul
se explicam pela atuação direta da empresa nesses estados, no primeiro com usinas de
pelotização e todo o complexo do porto de Tubarão, de onde se exporta o minério
extraído, em grande maioria, em Minas Gerais, e o segundo por ser onde está sediada
uma de suas subsidiárias, a Mineração Corumbaense Reunida.
No Tocantins, com 70% das doações da Vale ao PMDB, a eleição de três
deputados federais do partido para as oito cadeiras do estado, além da eleição de Kátia
Abreu ao Senado (que recebeu recursos das Minerações Brasileiras Reunidas) e
Marcelo Miranda ao Governo do Estado (recebendo recursos da Vale Energia e
Minerações Brasileiras Reunidas), ambos também PMDB, demonstra a força estratégica
do Estado em termos de representação política no congresso.
Com relação aos recursos destinados a Roraima, todo ao PMBD, não podemos
esquecer-nos da relação entre a empresa de consultoria Diagonal e a Vale, já citada
anteriormente, consultoria esta que tem como um dos executivos, Álvaro Jucá, irmão de
Romero Jucá (PMDB), sem esquecer a importância estratégica de Romero para a
mineradora, uma vez que historicamente assume pautas, como a permissão de
mineração em terras indígenas, dentre outras, próximas aos interesses da corporação.
Quando tomamos por base os recursos destinados aos candidatos (gráfico 13),
continuamos vendo um protagonismo de Minas Gerais, mas agora Espírito Santo,
Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo aparecem também com altos volumes
de recursos repassados. Entretanto, essa conta será melhor compreendida quando
observarmos o financiamento direto da mineradora aos deputados que serão membros
da comissão sobre o código da mineração, na qual estarão vários deputados mineiros,
capixabas, baianos, dentre outros.

50
Entre os anos 1973 e 2001, o Porto do Itaqui, no Maranhão, foi administrado pela Companhia Docas do
Maranhão (Codomar), ligada diretamente ao governo federal, mas em 2001 foi assinado um convênio
entre o Ministério dos Transportes e o Governo do Estado do Maranhão, de modo que o porto passou a
ser gerenciado pela Empresa Maranhense de Administração Portuária (EMAP), situação que políticos
ligados ao PMDB maranhense querem reverter. Informação acessada em:
http://gilbertoleda.com.br/2016/05/17/edinho-lobao-admite-que-trabalha-pela-federalizacao-do-porto-do-
itaqui

220
GRÁFICO 13 – Doações Vale S. A diretamente para candidatos, valores por Estado

Fonte: TSE, 2014. Organização, sistematização e consolidação dos dados Bruno Malheiro.

Da mesma forma como fizemos com os partidos, também somamos os recursos


repassados a partidos e candidatos e construímos sua distribuição espacial geral nos
estados brasileiros. Assim como 75% dos partidos foram financiados, os recursos da
mineradora chegaram a 22 estados brasileiros dos 26 existentes mais o Distrito federal,
o que significa que 81,48% dos estados brasileiros receberam recursos diretos da
mineradora, o que demonstra uma preocupação geral com a constituição das bancadas
legislativas eleitas, bem como com a eleição presidencial e aos governos dos estados, ou
seja, uma preocupação com a organização do sistema político brasileiro como um todo.

GRÁFICO 14– Doações Vale para candidatos e diretórios partidários, valores por Estado

Fonte: TSE, 2014. Organização, sistematização e consolidação dos dados Bruno Malheiro.

Esses dados podem ser melhor compreendidos no mapa 3.

221
MAPA 3 – Doações de Campanha da empresa Vale por estado nas eleições de
2014

222
A leitura do gráfico 14, juntamente ao mapa 3, só será suficientemente
interessante se analisarmos diretamente um aspecto da conjuntura política que também
definiu a racionalidade das doações de campanha: a formação da comissão que discute o
novo código de mineração. Construímos um quadro analítico para sintetizar melhor a
participação decisiva da mineradora Vale no financiamento de campanha dos membros
dessa comissão. O quadro 11 foi elaborado com base nos dados do TSE e no importante
trabalho que Clarissa Reis de Oliveira realizou pelo IBASE51.
O processo de gestão da política institucionalizada descrito até aqui pelo
financiamento direto da empresa Vale a Partidos e Candidatos, com a discussão do
Novo Código Mineral, ganha maior expressividade e mais precisão no percurso entre o
ato de financiar uma campanha e os ganhos reais advindos desse financiamento. Dos 52
deputados participantes da comissão, identificamos 20 que receberam recursos da
mineradora Vale, ou por meio de doação direta, ou através dos diretórios partidários.
Deixemos, então, o quadro melhor expressar tudo isso.

QUADRO 11 – Doações de Campanha pela empresa Vale S. A a membros da


Comissão Especial do Novo Código de Mineração
Total da
Cargo na Empresas ligadas Valores das
Deputado Partido Estado Arrecadação Observações Importantes
Comissão à Vale S. A Doações
de Campanha
Do total arrecadado, cerca de 20% foi
doado por empresas ligadas à
mineração. Considerar que apesar do
recurso pequeno na doação a Valem
através das Minerações Brasileiras
Gabriel Reunidas (R$ 900.000,00), da Vale
Minas
Presidente Guimarães De PT Vale Energia S/A R$12.156,53 R$ 2.389.317,92 Energia (R$ 400.000,00), da Mineração
Gerais Corumbaense Reunída (R$400.000,00),
Andrade
da Vale Manganês (R$ 600.000,00) e
da Salobo Metais (R$ 300.000,00)
repassou um total de R$2.600.000,00
ao Diretório Estadual do PT de Minas
Gerais.
Vale Energia S.A R$ 168,00
Vale Energia S.A R$ 613,47
Marcos Minerações Mais de 28% do total arrecadado foi
1° Vice- Minas Brasileiras R$ 500.000,00 R$ 3.180.491,28 doado por empresas ligadas à
Montes PSD mineração, 22% só de subsidiárias da
Presidente Gerais Reunidas S/A
Cordeiro empresa Vale S. A
Vale Energia S.A R$ 200.000,00
Total doado pela
R$ 700.781,47
Vale
Leonardo Do total arrecadado pelo candidato,
Minas Vale Mina Do
Relator Lemos Barros PMDB R$ 700.000,00 R$ 4.953.956,40 quase 42% foi proveniente de empresas
Gerais Azul S.A ligadas à mineração.
Quintão

51
Para uma melhor compreensão das articulações, via financiamento privado de campanha e outros
meios, das empresas mineradoras e o Congresso Nacional Brasileiro, pelo estudo das articulações e
condução do novo Código da Mineração, ver Oliveira, C. R. Quem é quem nas discussões do Novo
Código da Mineração. Rio de Janeiro:IBASE,2014.

223
Vale Energia S.A R$ 464,75
Vale Energia S.A R$ 500.000,00
Vale Manganês
Luiz R$ 200.000,00 Do total arrecadado pelo candidato,
Minas S.A
Membro Fernando PP Minerações R$ 4.342.467,35 cerca de 22% foi proveniente de
Gerais empresas ligadas à mineração.
Ramos Faria Brasileiras R$ 100.000,00
Reunidas S/A
Total doado pela
R$ 800.464,75
Vale
Salobo Metais Sa R$ 100.000,00 Do total arrecadado pelo candidato,
cerca de 26% foi proveniente de
Minerações empresas ligadas à mineração.
Brasileiras R$ 200.000,00 Considerar que a Vale, por meio da
Paulo Abi- Minas
Membro PSDB Reunidas Sa R$ 4.205.979,45 Vale Energia (R$ 900.000,00), da Vale
Ackel Gerais Mina do Azul (R$ 400.000,00) e das
Vale Manganês R$ 100.000,00 Minerações Brasileiras Reunidas,
Total doado pela repassou R$ 1.800.000,00 ao Diretório
R$ 400.000,00 Estadual do PSDB de Minas Gerais.
Vale
Vale Energia S.A. R$ 200.000,00 Do total arrecadado pelo candidato,
cerca de 16% foi proveniente de
Mineracoes empresas ligadas à mineração.
Brasileiras R$ 12.156,53 Considerar que a Vale, através da
Reunidas S A Mbr Minerações Brasileiras Reunidas (R$
Weliton 900.000,00), da Vale Energia (R$
Minas
Membro Fernandes PT R$ 1.997.252,86 400.000,00), da Mineração
Gerais Corumbaense Reunída (R$400.000,00),
Prado
Total doado pela da Vale Manganês (R$ 600.000,00) e
R$ 212.156,53 da Salobo Metais (R$ 300.000,00)
Vale
repassou um total de R$2.600.000,00
ao Diretório Estadual do PT de Minas
Gerais.
Vale Manganes Do total arrecadado pelo candidato,
R$ 50.000,00 cerca de 35% foi proveniente de
S/A
empresas ligadas à mineração.
Salobo Metais S.A R$ 10.800,00 Considerar que a Vale, por meio da
Salobo Metais (R$ 1.100.000,00), da
José Benito Salobo Metais S.A R$ 1.200,00 Mineração Corumbaense Reuida (R$
Membro PMDB Pará R$ 462.650,00 1.000.000,00), da Vale Mina do Azul
Priante Junior Salobo Metais S.A R$ 1.200,00
(R$ 850.000,00), da Vale Energia (R$
R$ 800.000,00) e da Vale Manganês
Total doado pela (R$ 50.000,00), repassou R$
R$ 63.200,00
Vale 3.800.000,00 ao Diretório Estadual do
PMDB do Pará.
Biopalma Ref.
R$ 50.000,00
Ind. e Comércio
Do total arrecadado pelo candidato,
Salobo Metais S/A R$ 200.000,00 cerca de 44% foi proveniente de
Salobo Metais S/A R$ 1.200,00 empresas ligadas à mineração.
Considerar que a Vale por meio da
Jose Roberto Salobo Metais S/A R$ 2.400,00 Salobo Metais (R$ 700.000,00), da
Vale Manganês (R$ 400.000,00), da
Membro Oliveira Faro PT Pará Salobo Metais S/A R$ 202,43 R$ 599.572,43 Vale Mina do Azul (R$ 250.000,00) e
(Beto Faro) Salobo Metais S/A R$ 220,00 da Biopalma (R$200.000,00) repassou
R$ 1.550.000,00 ao Diretório Estadual
Salobo Metais S/A R$ 250,00 do PT no Pará
Salobo Metais S/A R$ 10.800,00
Total doado pela
R$ 265.072,43
Vale
Do total arrecadado pelo candidato,
Joaquim cerca de 30% foi proveniente de
empresas ligadas à mineração.
Passarinho
Membro PSD Pará Vale Manganes Sa R$ 100.000,00 R$ 341.088,66 Considerar que a Vale por meio da
Pinto de Mineração Corumbaense Reunida
Souza Porto repassou R$ 50.0000,00 ao Diretório
Estadual do PSD do Pará
Mineração Do total arrecadado pelo candidato, 7%
Benito Da
Membro PTB Bahia Corumbaense R$ 99.986,00 R$ 5.979.284,14 foi proveniente de empresas ligadas à
Gama Santos mineração.
Reunida

224
Minerações
Claudio Do total arrecadado pelo candidato,
Brasileiras
Membro Cajado DEM Bahia R$ 200.000,00 R$ 1.901.580,00 15% foi proveniente de empresas liga-
Reunidas S/A - das à mineração.
Sampaio
Mbr
Salobo Metais S/A R$ 100.000,00
João Carlos Vale Energia S/A R$ 100.000,00
Do total arrecadado pelo candidato,
Membro Paolilo PR Bahia Vale Manganes
R$ 200.000,00 R$ 1.878.332,48 cerca de 16% foi proveniente de
Bacelar Filho S/A empresas ligadas à mineração.
Total doado pela
R$ 400.000,00
Vale
Vale Manganês
R$ 100.000,00
S.A
Minerações Do total arrecadado pelo candidato,
Paulo Roberto Espírito
Membro PSB Brasileiras R$ 100.000,00 R$ 623.126,62 cerca de 42% foi proveniente de
Foletto Santo empresas ligadas à mineração.
Reunidas S.A Mbr
Total doado pela
R$ 200.000,00
Vale
Antonio Minerações Do total arrecadado pelo candidato,
Espírito
Membro Sergio Alves PDT Brasileiras R$ 200.000,00 R$ 1.312.637,41 cerca de 22% foi proveniente de
Santo empresas ligadas à mineração.
Vidigal Reunidas Sa Mbr
Cleber Verde
Do total arrecadado pelo candidato,
3° Vice- Cordeiro Vale Mina Do
PRB Maranhão R$ 100.000,00 R$ 554.600,00 18% foi proveniente de empresas liga-
Presidente Mendes Prb- Azul S/A das à mineração.
Ma
Vale Energia S.A. R$ 150.000,00 Do total arrecadado pelo candidato,
cerca de 10% foi proveniente de
Vale Manganes empresas ligadas à mineração.
Edio Vieira R$ 200.000,00
Membro PMDB Roraima S.A. R$ 2.410.463,23
Considerar que a Vale por meio da
Lopes Vale Energia repassou R$ 700.0000,00
Total doado pela ao Diretório Estadual do PMDB de
R$ 350.000,00 Roraima.
Vale
Vale Energia S.A. R$ 50.000,00
Guilherme Vale Mina Do Do total arrecadado pelo candidato,
Membro Mussi PP São Paulo R$ 200.000,00 R$ 4.070.049,00 quase 77% foi proveniente de empresas
Azul S.A.
Ferreira ligadas à mineração.
Total doado pela
R$ 250.000,00
Vale
José Do total arrecadado pelo candidato,
Membro Wellington PR Paraíba Salobo Metais S/A R$ 100.000,00 R$ 2.246.134,00 cerca de 5% foi proveniente de
Roberto empresas ligadas à mineração
Do total arrecadado pelo candidato,
cerca de 6% foi proveniente de
empresas ligadas à mineração.
Considerar que, apesar dos recursos
Vander Luiz Mato Mineração mínimos repassados diretamente, a
Vale, através da Mineração
Membro Dos Santos PT Grosso Corumbaense R$ 5.780,00 R$ 2.995.057,44 Corumbaense Reunida (R$700.000,00),
Loubet Do Sul Reunida S/A da Vale Mina do Azul (R$ 500.000,00)
e das Minerações Brasileiras Reunidas
(R$ 300.000,00) repassou um total de
R$1.500.000,00 ao Diretório Estadual
do PT no Mato Grosso do Sul.
O Recurso repassado parece irrisório,
entretanto é importante considerar que
Andre Luis a Vale, através da Salobo Metais,
Salobo Metais S. repassou R$ 500.000,00 para a
Membro Dantas PSC Sergipe R$ 275,00 R$ 688.428,70 campanha de Eduardo Alves do
A.
Ferreira Amorim à Governador de Sergipe, que
é do PSC mesmo partido de André Luis
Dantas Ferreira.
Total Geral de doações diretas da empresa Vale S. A R$ 5.159.872,71
Fonte: MALERBA, 2012; TSE, 2014.

225
As doações diretas ao presidente, ao primeiro vice-presidente e ao relator da
comissão já, por si só, demonstrariam o envolvimento direto da empresa nos assuntos
legislativos fundamentais para a regulação da mineração, mas os outros 17 financiados
escancaram um cenário em que normas públicas são definidas e decididas claramente
influenciadas por interesses privados.
Nesses termos, seja por meio da construção de relações fortes com partidos,
como o PMDB, PT e PSDB, ou com distintos candidatos dos 24 partidos financiados,
ou mesmo pela escolha de estados de investimento estratégico prioritário, apesar do
cercamento das possibilidades políticas com o rapasse para 22 estados, bem como pela
relação direta, via doações, com parlamentares protagonistas nas discussões que
envolvem a mineração, a empresa Vale define sua estratégia de gestão da política
institucionalizada.
Desse modo, voltando ao Pará, onde a lógica do investimento privado da
empresa só cresce, principalmente por conta do projeto S11D, o conjunto de estratégias
de gestão da política institucionalizada resultará nas eleições de 2014, no fato de que
35% dos deputados federais eleitos no estado tiveram financiamento direto da
mineradora, assim como o senador eleito, sendo que, na grande maioria dos casos, a
Vale representou o principal recurso de campanha, como sintetiza o quadro 12.

QUADRO 12 – Doações de Campanha da Vale S A a políticos eleitos no Pará em


2014
Arrecadação de
Casa
Político Partido Empresas VALE S. A Valores campanha
Legislativa
R$ 322.355,00
Salobo Metais
R$ 270.000,00
Vale Manganês
R$ 3.301.712,24
Paulo Rocha Senado PT
Vale Mina Do Azul
R$ 20.000,00
Biopalma R$ 108.000,00
Total R$ 720.355,00
Biopalma R$ 50.000,00
Câmara R$ 599.572,43
Beto Faro PT Salobo Metais R$ 215.072,43
Federal
Total R$ 265.072,43
Câmara R$ 840.231,71
Nilson Pinto PSDB Vale Mina Do Azul R$ 200.000,00
Federal
Joaquim Câmara R$ 341.088,66
PSD Vale Manganês R$100.000,00
Passarinho Federal
Simone Câmara R$ 571.730,81
PMDB Vale Energia R$ 100.000,00
Morgado Federal
Vale Mina Do Azul R$ 99.500,00
Câmara R$ 766.819,99
Zé Geraldo PT Salobo Metais R$ 2.200,00
Federal
Total R$ 101.700,00

226
Vale Mina Do Azul R$ 114.923,33
Câmara R$ 443.475,55
Lúcio Vale PR
Federal
Salobo Metais R$ 91.849,00
Fonte: TSE, 2014.

A desmobilização da crítica, portanto, pelas vias da gestão dos conhecimentos


de justificação, da gestão dos processos de adesão e pela gestão da política
institucionalizada, completa-se não apenas na escala dos empreendimentos, pela
couraça técnica e científica e a gestão do social realizada pela empresa e pelas
consultorias ambientais, mas se consolida no atrelamento à política institucional por
meio dos financiamentos de campanha. À crítica, como a possibilidade de efetivação de
riscos sociais corporativos, são desenhados processos de gestão concretos e
operacionais no sentido de desmobilizá-la.

6.2. A RESIGNIFICAÇÃO DA CRÍTICA


A segunda prática de desarmamento da crítica, que denominamos de
resignificação da crítica, opera particularmente através de práticas discursivas em torno
do enunciado da sustentabilidade, que, contraditoriamente, marcam cada vez mais as
empresas que mais produzem danos ambientais. Um esvaziamento de conceitos para
encaixá-los na lógica argumentativa da mineradora e em suas campanhas publicitárias
faz com que termos como território, vida, comunidade, direitos, tornem-se enunciados
que, mais do que reconhecer a realidade, querem regulamentá-la, uma vez que, como
alerta Acselrad (1999, p. 86) ―a enunciação conceitual é, portanto, também produtora de
ordenamento, divisão e classificação no interior do mundo social‖.
Se a desmobilização da crítica se constitui pela necessidade corporativa de
lidar com riscos sociais, não é diferente quando falamos de resignificação da crítica,
pois a perspectiva de controle, nesse caso, direciona-se ao domínio da aleatoriedade das
percepções sociais sobre a empresa, o que, no jargão empresarial, chama-se de imagem
corporativa, ou mesmo identidade e/ou reputação corporativa. Nesses termos,
ressignificar é uma prática social de projeção de um signo para pautar uma lógica de
percepção, ou ainda, uma difusão de enunciados como ato político e material de
interferência nas opiniões, de modo a construir um campo de significações, no qual
termos, que, porventura, projetem ideias potencialmente desestruturadoras do campo de
significações construído, sejam ―domesticados‖, isto é, enquadrem-se na lógica de
percepção direcionada pelos releases publicitários empresariais.

227
Mas não há como falar desse campo de significações sem mencionar que a
preocupação com a imagem empresarial, que figura como tema central nas leituras
sobre os riscos sociais corporativos e na ideia de Licença Social para Operar, já
discutidos aqui, é codificada por uma leitura particular de ecologismo que tomou conta
da racionalidade empresarial notadamente na década de 1990, principalmente após a
realização da Eco-9252.
Essa leitura de ecologismo que define procedimentos publicitários preocupados
com as imagens das empresas pode ser mais bem entendida a partir da classificação
sobre as correntes do ambientalismo feita por Joan Martínez Alier (2017, p. 28)53, como
um evangelho da ecoeficiência, ou seja, como uma ―ecologia que se converte em uma
ciência gerencial para limpar ou remediar a degradação causada pela industrialização‖,
sendo assim, um modo de construção da crença que desenvolvimento sustentável é
possível, assim como a ―boa utilização‖ dos recursos.
Analisando a publicidade da mineradora Vale, com o corpus de pesquisa
definido pelas campanhas publicitárias da empresa, particularmente no estado do

52
É importante acrescentar que a percepção sobre os problemas ambientais decorrentes do crescimento
econômico começa a ganhar o cenário público, com maior ênfase, ainda na década de 1970. Este debate
se materializou na reunião de Founex, preparatória para a Conferência das nações Unidas sobre Meio
Ambiente Humano de 1972. Já estava aí projetada a relação entre desenvolvimento e meio ambiente, o
que foi reiterado com a declaração de Estocolmo de 1972 e com a Declaração de Cocoyoc de 1974
(SACHS, 1993). Visava-se, nestes termos, programar estratégias de desenvolvimento ambientalmente
adequadas, para promover um desenvolvimento sócio-econômico eqüitativo ou um ecodesenvolvimento,
forjava-se, também, uma narrativa capaz de associar crescimento econômico, justiça social e proteção
ambiental numa perspectiva ampla o suficiente para ganhar adesão do meio industrial. Várias outras
reuniões aconteceram reiterando esta idéia e a percepção dos problemas ambientais foi se avolumando até
culminar na publicação do Relatório final da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CMMAD), o qual ficou conhecido como Relatório Brundland ou o Nosso Futuro
Comum. Novamente se mostrava a noção de insustentabilidade do padrão de desenvolvimento econômico
capitalista e, nesse sentido, propõe-se ―crescimento através da maior produtividade dos recursos,
concomitante ao uso dos resultados do crescimento para reduzir o volume de materiais processados pela
economia, consertar o meio ambiente e redistribuir renda‖ (SACHS, 1993, p. 35). Este relatório também
popularizou o termo desenvolvimento sustentável que, por sua vez, foi lido como uma forma de
desenvolvimento que atende às necessidades básicas do presente sem comprometer a possibilidade das
futuras gerações atenderem suas necessidades. Este conceito prescindiu de operacionalização para se
tornar mais palatável aos agentes econômicos, o que foi discutido mais tarde durante a Conferência sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992 (Eco-92).
53
Alier (2017) define três correntes ambientalistas, a primeira chamada de ―culto à vida silvestre‖ que se
assemelha à lógica preservacionista que sacraliza a natureza, numa concepção de que a solução aos
problemas ambientais vem da pura e simples preservação de uma natureza intocada e idílica; a segunda
corrente é o evangelho da ecoeficiência, que advoga a possibilidade de práticas sustentáveis a partir de
uma racionalidade empresarial de modernização ecológica, em que a eficiência e tecnologia, bem como a
crença na possibilidade de um desenvolvimento em harmonia com a natureza, desativam uma critica real
às causas dos problemas enfatizando apenas as soluções técnicas e gerenciais após a manifestação dos
problemas; a última corrente é denominada de ecologismo dos pobres que conversa para as lutas sociais
em torno da justiça ambiental, enfatizando as causas dos problemas ambientais, bem como a lógica
desigual da distribuição dos mesmos e o entendimento da questão ambiental pelo desencontro entre
linguagens de valorização da natureza, enfim, pelos conflitos ambientais que abrem espaço para outros
modos de relação com a natureza para além da racionalidade industrial.

228
Maranhão, entre 1999 e 2011, Filipe Aquino (2015), que trabalhou diretamente na
elaboração de materiais publicitários para a Vale, chega a interessantes conclusões que
aproximam publicidade e sustentabilidade por meio de práticas discursivas. Nesses
termos, se nas primeiras campanhas analisadas, o verde se destaca como um imperativo,
por imagens de animais ou representações do organograma da empresa em forma de
árvore, gradualmente as campanhas começam a ter rosto e a centralidade da publicidade
vai para a associação da empresa e seus ―programas sociais‖, seja através da Fundação
Vale, seja pelos financiamentos a eventos culturais. A centralidade às pessoas comuns
nas campanhas publicitárias vai transformando a noção de sustentabilidade traduzida no
cuidado da natureza, para o cuidado com as pessoas, o que se materializa nas
campanhas de 2005, 2006 e 2007, a primeira com o slogan ―Vale o Encontro‖ - em
materiais que afirmavam ―vale o encontro da consciência com a história‖, ―vale o
encontro do incentivo com o talento‖, ―vale o encontro de gente que dá as mãos para
crescer‖, ―vale o encontro da capacidade com a oportunidade‖ e ―vale o encontro da
terra com o mar‖ – a segunda pelo slogan ―do seu lado‖, através de imagens de pessoas
pretensamente beneficiadas com a empresa, e a terceira em que os materiais começavam
com o questionamento ―é possível‖ para demonstrar que a empresa poderia crescer e
gerar desenvolvimento pelos lugares por onde passa (AQUINO, 2015).
Essa mudança de sentido dos anúncios foi acompanhada por uma mudança do
logotipo e do próprio nome da empresa, que em 2007 deixa de ser Vale do Rio Doce
para ser simplesmente Vale. O logotipo em menção à bandeira nacional completamente
na cor preta é substituído por um ―V‖ em alusão ao nome da empresa, em cores verde,
para externar a preocupação ambiental da empresa e marcar uma cor da bandeira
nacional, e amarelo para novamente fazer alusão à bandeira nacional e afirmar o
significado de riquezas minerais, com um formato final a lembrar o símbolo universal
de um coração e ondulações que pretendem lembrar o símbolo do infinito (AQUINO,
2015).
FIGURA 6 – Mudança na Logomarca, de CVRD à Vale

Fonte: www.vale.com.br

A partir dessa mudança a publicidade passa a se associar aos significados


projetados pelo verde e o amarelo, como formas de desarmar as constantes demandas

229
sociais por reestatização da empresa54 e reafirmar a ela uma nacionalidade brasileira,
bem como para expressar seu compromisso social e ambiental esteticamente traduzido
pela cor verde. As campanhas publicitárias, a partir dessa mudança, vão seguir a linha
da definição das boas práticas sociais e ambientais, com cores e formas estéticas a
lembrar sempre a logomarca.
Mas se pelas campanhas publicitárias ―as práticas discursivas, sob total
controle do enunciador, asseveram: quanto maior a Vale se torna, maior o seu
compromisso socioambiental‖ sem considerar que ―quanto maior é a mineradora, maior
é a extração mineral, maior é a necessidade de ampliação logística‖, sendo mais
significativos seus impactos e os conflitos que gera (AQUINO, 2015, p. 265), a
definição de uma boa imagem corporativa também se dá pela construção dos relatórios
de sustentabilidade que, acompanhando essa mudança no ano de 2007, começam a ser
elaborados também nesse ano.
Após o tema ambiental ser incorporado nos salões nobres empresariais como
necessário na condução a uma boa imagem dos negócios, um conjunto de entidades
surgiu para chancelar internacionalmente e estabelecer padrões mundiais para ações de
sustentabilidade, na perspectiva de criar certificações ambientais, transformando,
decisivamente o conceito de sustentabilidade em uma prática discursiva de nomeação,
ou seja, em critério objetivo a definir as boas práticas empresariais.
Recorremos a esse aspecto para dizer que a ideia de construção de relatórios de
sustentabilidade também se insere nessa dinâmica, particularmente através da criação da
entidade Global Reporting Iniciative (GRI), criada em 1997 para auxiliar na definição
de padrões de relatórios e sustentabilidade para que as empresas e o próprio Estado
pudessem melhor comunicar os impactos que provocam. Além da GRI, que atesta a
validade e pertinência dos relatórios de sustentabilidade da empresa Vale, há também os
critérios definidos pelo Pacto Global criados pela Organização das Nações Unidas
(ONU), que se refere aos 10 princípios relacionados a direitos humanos, relações de
trabalho, meio ambiente e corrupção, que também funcionam no sentido de dar respaldo
aos relatórios, sem esquecer da International Council on Mining & Metals, organização
criada pela própria indústria da mineração para o pretenso fortalecimento do
desempenho ambiental das empresas, a qual a Vale aderiu em 2017 e, também, funciona
como um validador de seus relatórios.

54
Não podemos esquecer que em 2007, 10 anos após a privatização da empresa, sindicatos e outras
entidades organizaram um plebiscito nacional pela reestatização da, então, Companhia Vale do Rio Doce.

230
O atestado de validade, como relações de poder instituídas pelo mundo
empresarial para produzir efeitos de verdade através de instrumentos pragmáticos,
também é buscado pela contratação de algumas auditorias para analisar os relatórios de
sustentabilidade, como a KPMG, uma rede de firmas que presta serviço de auditoria
para assuntos de sustentabilidade, ou a Bureau Veritas, empresa central na avaliação de
conformidades ambientais e certificações.
Percebemos, portanto, uma engrenagem para transformar os discursos de
sustentabilidade em critérios objetivos de verdade. Se anteriormente demonstramos a
definição de um mercado de consultorias ambientais voltado para a construção de
estudos de viabilidade e gestão das populações dos entornos dos projetos, falamos agora
de um mercado construído em torno da produção e validação dos discursos de
sustentabilidade. Nesse particular, várias são as empresas contratadas para fazer circular
os modos de olhar da empresa, ou mesmo para operacionalizar seus relatórios de
sustentabilidade, demonstrando um conjunto de serviços de comunicação, auditoria,
consultoria e gerenciamento voltados especificamente à sustentabilidade.
O quadro 13 abaixo sintetiza o conjunto dessas empresas diretamente
relacionadas à Vale, demonstrando a especialização de serviços que transformam a
sustentabilidade em um modo de comunicação e produção de verdades corporativas.

QUADRO 13 - Principais empresas contratadas para o mercado de


comunicação e sustentabilidade
Empresa Serviço oferecido Descrição Geral
Criada em 1987 como uma empresa global de serviços de
Auditoria dos
auditoria e consultoriam, no Brasil compõe uma rede de
KPMG relatórios de
firmas com escritórios localizados em 22 cidades de 13 Estados
sustentabilidade
brasileiros e Distrito Federal.
A empresa foi fundada na Antuérpia, Bélgica, em 1828, como
Agência de Informações para Seguradoras Marítimas.
Expandiu seu mercado, com a Revolução Industrial, para o
Auditoria dos
controle de materiais da indústria, controle de certificados de
Bureau Veritas relatórios de
confiabilidade da aviação civil, sendo que hoje atua nos setores
sustentabilidade
das commodities, industrial, construção civil e de certificações,
oferecendo serviços de garantia de segurança e desempenho de
ativos.
Consultoria e
Possuindo escritórios em São Paulo e no Rio de Janeiro, a
adequação aos
empresa nasceu como agência de comunicação, há 15 anos,
critérios GRI,
Report passando a oferecer serviços de consultoria especializados na
diagramação e
Sustentabilidade integração da sustentabilidade ao mundo dos negócios, sendo
produção gráfica
especialista em analise de relatórios de sustentabilidade a partir
dos relatórios de
dos critérios estabelecidos pela Global Reporting Iniciative.
sustentabilidade
Apoio técnico na Criada em 1989 pela fusão de duas empresas a EY tornou-se
Ernst & Young elaboração de uma gigante global em prestação de serviços corporativos, que,
(EY) relatório de no Brasil, adquiriu as empresas de consultoria Terco e Axia
sustentabilidade Value Chain e conta com escritórios em várias cidades,

231
lançando regularmente relatórios de riscos de negócios voltados
para a mineração.
Empresa com foco em gestão de tecnologia nas áreas de
Apoio operacional gerenciamento e automação de infraestrutura, gestão de
CSC Brasil nos relatórios de serviços, Business Intelligence e Analytics. Oferece soluções
sustentabilidade em inteligência e gerenciamento e serviços de gestão
corporativa de relatórios.
ERM – Apoio técnico na Empresa com mais de 160 escritórios em mais de 40
Environmental elaboração de países voltada a prestação de serviços de consultoria ambiental,
Resources Relatório de segurança, e gestão de riscos. Tem a sustentabilidade como
Management Sustentabilidade eixo estruturador dos serviços oferecidos
Coordenação Agência de inteligência e engajamento, auto-definida, como de
editorial, criação de valor. Criada em 1991 oferece serviços de
diagramação e mapeamento de stakeholders, projetos customizados para
The Median Group
produção gráfica de empresas, comunicação interna, sites e publicações
Relatório de institucionais, peças de comunicação dirigida, com destaque
Sustentabilidade para a especialização em consultoria de sustentabilidade
Serviços de
VCR Comunicação Empresa sediada em São Luis que oferece serviços de
Marketing
e Marketingh Marketing empresarial.
empresarial
Criada em Belém e já com uma filial em Parauapebas a
Produção de
empresa tem como slogan ―comunicação com a alma da
materiais de
Amazônia e visão mundial‖ oferecendo serviços de propaganda
EKO Agência divulgação e
e sustentabilidade, relacionamento com comunidades,
marketing
gerenciamento de crises, apoio em audiências públicas,
empresarial
customização ambiental, dentre outros.
Fonte: sítios eletrônicos das empresas. Organização Bruno Malheiro, 2018.

Toda essa maneira de lidar com a imagem corporativa envolvem pesquisas


diretas nas comunidades para a apreciação do que significa a empresa para as pessoas e
quais são os principais temas relacionados à mineração que surgem espontaneamente a
partir dos lugares diretamente afetados pela atividade. É por esse caminho que a
empresa constrói o que a literatura empresarial chama de matriz de materialidade, ou
seja, um mapeamento das expectativas das populações em relação aos empreendimentos
e seus impactos, que se transforma em um conjunto de termos, distribuídos por graus de
relevância, que precisam ser enfocados nas estratégias de comunicação empresariais.

232
FIGURA 7 – Matriz de Materialidade, um mapeamento dos termos

Fonte: Relatório de Sustentabilidade (VALE, 2011, p. 9)

A figura acima foi retirada do relatório de sustentabilidade de 2011, mas a


leitura sobre a matriz de materialidade permeia todos os relatórios da empresa. Pela
figura percebemos dois eixos, um que enfoca a relevância para as partes interessadas, as
comunidades afetadas pela mineração, principalmente, e outro que enfoca a relevância
para os negócios da empresa. A matriz desenha as linhas gerais do discurso, em que as
palavras que expressariam os problemas centrais enfocados pelas comunidades teriam
relevância central para os negócios da empresa. Entretanto, a maioria dos termos da
matriz ganhará nos relatórios um sentido próprio a partir de uma leitura corporativa,
operando a resignificação dos termos que emergem como problemas para as
comunidades, mas nos relatórios aparecem por suas soluções de sustentabilidade.
O termo território, que hoje é amplamente politizado por movimentos sociais,
entidades, povos e comunidades tradicionais, na literatura empresarial, transforma-se
em uma noção abstrata de construção de uma relação sinérgica entre empresa e
comunidade gerando desenvolvimento, ou ainda, ―território: exercer a gestão integrada

233
(...) buscando a geração de impacto líquido positivo e compartilhamento de valor com
as regiões onde atuamos‖ (VALE, 2013, p. 16).
Os outros termos mapeados com importância significativa para as comunidades
como comunidade, pessoas, água, saúde e segurança e mudanças climáticas, entrarão
em seções dos relatórios de sustentabilidade e nas campanhas publicitárias corporativas,
sempre no sentido de reverter seus aspectos negativos, criando uma imagem positiva da
empresa a partir dessas referências.
É particularmente nesses termos que os processos de resignificação da crítica
se efetivam, notadamente a partir do envolvimento direto da empresa com o mercado da
sustentabilidade que, em termos concretos, nada mais é do que a transformação de
problemas e conflitos ambientais sérios em soluções inventivas discursivamente
preparadas para garantir adesão social dos empreendimentos de altíssimo impacto.
Nesse sentido, sustentabilidade torna-se uma prática discursiva de nomeação, um jogo
no qual quem consegue construir critérios de verdade para definir suas práticas como
ambientalmente corretas, assim o faz, aproveitando da ampla aderência do discurso
ambiental que toca em premissas morais de comportamento individual. Entretanto, é
também preciso referenciar que, se o sentido dessa prática discursiva é definir quais os
bons atos, aqueles que podem continuar e garantir um futuro, isso, invariavelmente,
significa eliminar a possibilidade de futuro para muitos, o que torna todo esse mercado e
seu discurso correlato, antes de tudo, uma prática discursiva de um empreendimento
biopolítico, um modo cínico de tornar a vida uma equação contornável para a
continuidade da mineração.

6.3. A ANTECIPAÇÃO À CRÍTICA


A gente percebeu que tinha uma coisa muito organizada dentro da
empresa, quase que institucional. Uma questão que beira ser definida
como crime organizado, porque é invasão de privacidade, ameaça a
organização social e não como uma célula enlouquecida, mas sim
como um sistema, com salário, folha de pagamento, enfim, com
princípios bem estruturados (Dário Bossi, Padre Coboniano, entrevista
realizada em setembro de 2016).

Começamos novamente com o diagnóstico de Padre Dário para entrar na


terceira estratégia empresarial de desarmamento da crítica que aqui chamamos de
antecipação à crítica. A constatação de que, na empresa Vale, existe um sistema
organizado de vigilância e controle das comunidades, de invasão e espionagem, não

234
como algo desestruturado e pontual, mas como contínuo e estruturado, revela todo um
aparato de segurança corporativa estruturando práticas de antecipação aos riscos que as
comunidades apresentam para a racionalidade empresarial. Tais práticas serão lidas aqui
por dois vetores centrais que as organizam: o primeiro pela espionagem corporativa,
práticas de infiltração em movimentos e organizações para compreender a lógica de
suas ações antagônicas à empresa; o segundo pela judicialização dos conflitos,
conjuntamente com a criminalização das lideranças, que também emerge como prática
de imobilizar sujeitos políticos.
Ainda em 2004, uma denúncia de espionagem já havia sido feita à Vale. Nesse
fato, a empresa foi acusada de seguir os passos de indígenas da etnia Parkatejê e os
próprios Procuradores da República de Marabá55. Entretanto, só em 2013 a prática da
espionagem corporativa foi escancarada. Falamos da realização da Audiência Pública na
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, no dia 24
de outubro de 2013, quando o ex-funcionário do Departamento de Segurança
Empresarial da empresa, André Luís Costa de Almeida, entrou com uma representação
no Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) contra a Vale S. A. Na
denúncia o ex-funcionário não apenas aponta documentos comprobatórios das práticas
de espionagem, como constrói uma periodização desses processos na empresa. Esse
modo de lidar com as comunidades dos entornos dos projetos de mineração pela
espionagem, inicia-se, segundo o ex-funcionário, ainda na década de 1980 quando ex-
integrantes das forças armadas são contratados pela Vale para o setor de segurança
patrimonial da empresa. Na década de 1990, a Vale constrói relações com órgãos de
segurança pública e cria a Coordenação de Serviços Especiais Corporativos. Já nos anos
2000 é assinado o primeiro contrato específico para a execução dos serviços de
espionagem e obtenção de informações sigilosas. Em 2004, começam as ações para
centralização da segurança Empresarial, sendo que em 2007 a segurança ganha o status
de Departamento. Dentre os métodos usados estão: escutas telefônicas, invasão de
computadores, câmeras ocultas, acesso a dados sigilosos, infiltrações em comunidades e
movimentos, elaboração de dossiês, dentre outros (ALMEIDA, A. RIBEIRO, R. J,
2013).
Na seção passada percebemos que boa parte das estratégias de interação com as
comunidades afetadas pela mineração, por parte da empresa, são conduzidas por

55
Ver em O Liberal, Belém-PA, 13 de fevereiro, 2004.

235
pesquisas diretas nestas comunidades. Entretanto, quando falamos de espionagem
estamos em outra esfera de relações, não é uma pesquisa que se pergunta e se sabe de
sua existência, é, também, uma pesquisa, mas que se faz à surdina, quebrando qualquer
formalidade que, porventura, construa uma mediação legal nos termos da relação entre
comunidades e empresa. O sentido não é eliminar os sujeitos políticos, mas se antecipar
às suas práticas, minar as possibilidades de insatisfações transformarem-se em
antagonismo.
Como afirma Acselrad (2014, p. 36):
A diferença entre a espionagem da ditadura e a de uma grande
corporação é que, no primeiro caso, visavam-se os agentes da crítica e
da oposição, com o intuito de desmantelar a rede da resistência; no
segundo, o objetivo é o público em geral que se quer ―proteger‖ dos
efeitos da crítica.
Em seus próprios relatórios anuais a Vale S. A demonstra preocupação com
manifestações e interrupções de operações, enquadrando as comunidades diretamente
atingidas na seção ―Fatores de Risco‖ de seus relatórios, demonstrando, inclusive, a
preocupação com a inibição de futuras manifestações.
Manifestantes agiram para interromper nossas operações e projetos, e
podem continuar a fazê-lo no futuro. Apesar de nos envolvermos em
diálogos ativos com todas as partes interessadas e de nos defendermos
vigorosamente contra atos ilegais, tentativas futuras de manifestantes
para prejudicar nossas operações podem afetar negativamente nossos
negócios (VALE, 2013, p.3).

Denúncias de espionagem são recorrentes, dos lugares de exploração aos


lugares atravessados pela ferrovia. Das comunidades indígenas às quilombolas, dos
camponeses que hoje ocupam terras da mineradora em Canaã dos Carajás às lideranças
de bairros urbanos onde a ferrovia atravessa.
Novamente é importante ouvir Kátia Silene, uma vez que ela chega a afirmar:
A gente não pode falar no celular, porque nós pode ta grampeado (...).
Nós tem que comprar um chip pra nós negociar e depois jogar fora,
comprar outro e jogar fora. É verdade mesmo, porque tudo o que você
falava a Vale já sabia lá, tudo que você ia negociar, ela já sabia lá. Ela
sempre tá estudando uma estratégia pra vir pra cima de nós! (Kátia
Silene, liderança Akrãtikatêjê, entrevista realizada janeiro de 2018).

Na conversa com Kátia o reforço à ideia de que a mineradora sempre sabia de


tudo o que a comunidade decidia antes da realização oficial das reuniões, é lembrada
constante e veementemente, sendo que a preocupação para com a troca de chips de
celular foi aprendida, segundo ela, em um curso que buscou para se proteger de
espionagem. A normalidade com que ela fala das formas de espionagem da empresa

236
impressiona, não porque ela naturalize tudo - pelo contrário, a busca pela defesa frente a
esse inimigo oculto, demonstra justo o oposto - mas pela recorrência dessas práticas na
vida dos indígenas, como marca indelével de uma relação imposta por uma empresa.
A aldeia Akrãtikatêjê, onde Kátia é Cacique, fica a cerca de 30km de Marabá.
A situação vivenciada por ela, seu povo e outros povos não é muito diferente do que
acontece na própria cidade de Marabá, particularmente nos bairros atravessados pela
EFC. Valdir Gonçalves também descreve a presença da empresa no cotidiano em
práticas de coleta constante de informações:
A gente é espionado 24 horas! A gente olha as pessoas aqui! Os
fotógrafos da empresa é fotografando todos os lotes que eles
removeram e fotografando as pessoas. Mas o grande problema é que
estamos de mãos atadas. Nós temos uma justiça lenta, temos uma
imprensa totalmente contra a sociedade, uma imprensa-empresa, as
autoridades em si, que deveriam ajudar a resolver o problema, até
agora não tem (Valdir Gonçalves, morador do bairro Auzira Mutran,
Marabá, entrevista realizada em setembro de 2016).

As marcas de um cotidiano vigiado foram claramente demonstradas para nós


um dia antes da entrevista que fizemos com seu Valdir. Estávamos no bairro com uma
máquina fotográfica em mãos e, quando passamos em frente a uma casa com uma
grande rachadura na fachada, decorrente da trepidação do trem que passa a menos de 30
metros dali, um morador saiu da casa dizendo: ―Já chega! Vocês são da empresa? Não
vão tirar foto de nada!‖. Ainda não havíamos nos preparado para tirar fotos e iríamos
pedir permissão para fazê-lo, mas a recusa momentânea e espontânea do senhor, disse-
nos mais do que qualquer registro visual. O mesmo senhor, depois de saber que não
éramos da empresa, ofereceu-nos um café e mostrou-nos cada uma das rachaduras
internas de sua casa e a tensão inicial se transformou em um caloroso abraço de
despedida.
A tensão paira e é rotina aos moradores dos bairros atravessados pela ferrovia,
pois a presença constante da mineradora e de consultorias ambientais contratadas por
ela desfaz qualquer possibilidade de realização das atividades corriqueiras, sem o
constrangimento da presença de estranhos, ou como fala seu João Reis, também
morador do bairro: ―aqui quando não vem a Vale, vem a Diagonal, vem Sinergia...‖
(João REIS, morador do bairro Auzira Mutran, Marabá, entrevista realizada em
setembro de 2016). Não bastasse o barulho do trem e todos os constrangimentos de sua
passagem, que pretendemos descrever com mais elementos nos capítulos posteriores

237
desse trabalho, a sensação de constante vigília da empresa para com os moradores
transforma completamente o cotidiano do bairro.
Se as comunidades dos entornos da ferrovia reclamam de processos de
espionagem, na ponta da cadeia metabólica da empresa, os entornos dos processos de
extração - onde vários acampamentos, ligados ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Canaã dos Carajás, surgiram em áreas compradas pela mineradora, em processo a ser
mais bem explicado posteriormente - vários são os relatos de infiltração de pessoas
ligadas à empresa nos movimentos e de outras práticas de espionagem. Cristóvão
Botelho com quem conversamos chega a dizer: ―(...) fica ela (Vale) aí. Bota gente aqui
dentro de bicicleta para tá espionando nós, todo final de semana passa gente aí de moto
andando querendo prejudicar a gente‖ (Cristóvão Botelho, agricultor em Canaã dos
Carajás, entrevista realizada em outubro de 2016). Seu Osmar, outro agricultor, também
afirma que:
Eles não querem ninguém perto da área de mineração deles. Fica
dando ameaça, intimando a gente, fazendo coisa que não deve falar
pra gente, pra gente pensar que aquilo é pressão. Sai pressionando as
pessoas, botando espião aqui dentro pra intimidar a gente. Isso é coisa
que não pode acontecer. Nós somos pequeno (...) Todo mundo que tá
aqui dentro tem credibilidade (Osmar, agricultor em Canaã dos
Carajás, entrevista realizada em outubro de 2016).

Se o cotidiano de um bairro urbano é marcado por tensões com a mineradora,


em um acampamento erigido no interior de áreas compradas pela empresa, que
movimentos, sindicatos e entidades apontam como terra pública, a tensão é marca
constante. Alguns minutos antes de nossa chegada em uma área do maior dos
acampamentos formados, denominado de Planalto Serra Dourada - cerca de 30, segundo
uma senhora que nos recebeu – houvera a entrada de guardas florestais da mineradora
no acampamento, em tons de intimidação. Quando fomos recebidos, o desespero
tomava conta da expressão de mulheres, crianças e homens que presenciaram o
acontecido56.
Entretanto, mesmo quando, diante das estratégias anteriores, há resistências à
mineradora, uma enorme equipe jurídica opera para a criminalização de protestos,
lideranças e intelectuais. Várias são as lideranças de movimentos que respondem

56
Estivemos pela primeira vez na área em outubro de 2016, em março de 2017, uma equipe de
reportagem do El Pais, com quem também conversamos sobre a situação em Canaã dos Carajás, registrara
um conflito sério, quando camponeses foram espancados por seguranças da empresa. Ver:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/02/politica/1488486809_921148.html

238
processo, aliás boa parte das pessoas com quem conversamos, interlocutoras nesse
texto, ainda hoje respondem processo.
Em termos gerais, os dispositivos usados são as premissas do artigo 932 da Lei
n. 5.869 de 1973, que institui o Código de Processo Civil:
O possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado
na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho
iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu
determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito (BRASIL,
1973, n/p).

O artigo definidor do Interdito proibitório é suficientemente claro ao instituir


uma prática jurídica em nome de um risco, ou seja, ao assumir um caráter preventivo,
fundando-se na ideia de ameaça implícita ou explicita, nitidamente como uma prática
para fazer o direito suspender o direito. Pelo jogo jurídico, abre-se um imenso espaço de
indefinição acerca do que efetivamente significa risco e o que efetivamente precisa ser
resguardado em nome do risco. Enfim, institui-se uma prática de exceção.
Mas se o Interdito Proibitório é utilizado no âmbito dos processos civis, há
também a utilização e o enquadramento de lideranças e intelectuais no código penal
através do artigo 345 que versa sobre o exercício arbitrário de suas próprias razões:
―fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo
quando a lei o permite‖ (BRASIL, 1940, n/p). Nesse contorno, estamos falando de
processos criminais, e a última ação nessa direção foi a abertura de uma queixa crime
contra um professor universitário da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará,
Evandro Medeiros, enquadrando-o no artigo 345 acima mencionado, após a participação
do referido professor em um ato que prestou solidariedade aos atingidos pelo
rompimento da barragem de rejeitos do Fundão da Samarco/Vale em Mariana.
Um caso emblemático que relaciona processos de espionagem e judicialização
e criminalização de lideranças é o direcionado ao presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás, seu José de Ribamar, mais conhecido como
Pixilinga, fala-nos
Assim, por último, vem a Vale e entra com uma ação contra nós. E no
processo dela vai dizendo que nós não somos nem réus, nós somos é
terroristas. Foram 10 trabalhadores que foram indiciados pela Vale.
Eu não tenho nada contra a mineradora, o que nós somos contra é às
irregularidades, é à forma em que ela faz as coisas aqui em Canaã, ela
maltratar os trabalhadores, ela maltratar qualquer uma das pessoas.
Ela nunca limpa um pé de cerca, ela diz que refloresta, refloresta o
que? Ela acaba com a floresta. Ela pegou nossas terras aí, passou 10
anos com elas em mãos sem produzir um pé de quiabo. Agora a gente

239
percebe o quanto a Vale é governo, enquanto nós tem três advogados
que defende essa causa, eles têm milhões (José de Ribamar, Pixilinga,
liderança sindical em Canaã dos Carajás, entrevista realizada em
outubro de 2016).

Analisando os arquivos da CPT em Marabá, onde estão os poucos advogados


que assumem as causas em defesa dos camponeses processados pela Vale, encontramos,
na íntegra o processo descrito pelo senhor Pixilinga. Esse processo de n°0001141-
14.2016.8.14.0136 de esbulho possessório da mineradora Vale contra 10 camponeses,
acolhido pela comarca de Canaã dos Carajás, através de sua Vara Penal, estava nas
gavetas da CPT com todos os documentos anexados pela empresa para caracterizar a
ação de camponeses como crime. A página 27 do processo é o início de um documento
anexado pela mineradora denominado ―levantamento dos principais líderes das invasões
da fazenda São Luís‖. Nesse documento, há um levantamento das informações
detalhado dos 10 camponeses indiciados pela mineradora. Fotos pretensamente
suspeitas, informações pessoais, como a caracterização do veículo utilizado pelas
pessoas, além de seus endereços completos são apresentados como provas de
envolvimento no suposto crime. A página 28 é reservada para seu Pixininga.
O processo, portanto, não mostra apenas a tentativa de criminalização da
empresa de lideranças camponesas, escancara um sistema de vigilância e controle
constante de informações sobre essas lideranças, espionagem que não opera como célula
enlouquecida, como nos diz Padre Dário Bossi na epígrafe dessa seção, mas como um
sistema bem estruturado e efetivamente direcionado a todos aqueles que representem
pretensamente um risco às operações ou a qualquer momento metabólico dos processos
de mineração desenvolvidos pela empresa Vale.
As figuras abaixo são as fotografias que conseguimos tirar das páginas 27 e 28
do processo n°0001141-14.2016.8.14.0136, a primeira expressa a abertura do
documento anexado com informações, que supostamente incriminariam os camponeses
processados, e a segunda é a página reservada ao presidente do Sindicato, na qual, além
das informações e fotos, há uma anotação à lápis de um dos advogados da CPT dizendo
―as fotografias juntadas não demonstram a prática de crime algum‖.

240
FIGURA 8 – Levantamento empresarial dos riscos sociais

Fonte: TJ/PA Processo n°0001141-14.2016.8.14.0136

FIGURA 9 – Identificação e Criminalização de Lideranças

Fonte: TJ/PA Processo n°0001141-14.2016.8.14.0136

A situação pela qual passam os camponeses de Canaã dos Carajás se repete em


outros lugares atravessados, de algum modo, pela empresa.
Dona Anacleta Pires, também processada pela Vale, em Itapecuru Mirim no
Maranhão, falando a partir da comunidade quilombola de Santa Rosa dos Pretos,

241
reclama do cinismo do tratamento da mineradora para com as comunidades diretamente
afetadas pelos seus empreendimentos, diz ela:
O pior é como eles tratam as coisas, de forma tão cínica e
irresponsável. Eles desfazem daquilo e ainda mais, eles tentam inibir a
gente, como, por exemplo, eu sou processada pela Vale, agora o que
eu muito eu tenho nojo, porque eles fazem as coisas de forma cínica,
porque eu, por acaso, nem sabia que estava processada. Como é que
um juiz vai me processar que ele não sabe nem quem eu sou? Aí eles
lá da Vale têm todo o corpo jurídico, formata todo o processo, eles
sabem quem são as lideranças, aí eles pegam o nome dessas pessoas,
botam num processo. Como é que a gente não vai pisar dentro do que
é da gente? (Anacleta Pires, liderança quilombola, entrevista realizada
em janeiro de 2018).

Dona Anacleta e seu Pixilinga apontam para o corpo jurídico da empresa capaz
de criminalizar lideranças em série. Caroline Santos, uma das advogadas da rede Justiça
nos trilhos identifica, também, o modos operandi de criminalização de lideranças.
Ela (Vale) não consegue nomear todo mundo, então ela identifica as
lideranças, às vezes as pessoas nem estão lá, mas são as lideranças,
quem é conhecido por todo mundo, então são esses que ela coloca no
processo e lá eles entraram não só com ação inibitória, mas também
com exercício arbitrário de suas próprias razões, com ação penal
(Caroline Santos, Advogada da Rede Justiça nos Trilhos, entrevista
realizada em setembro de 2016).

Qualquer interferência possível às atividades e aos interesses da mineradora é


prontamente respondida por ações judiciais, como forma de antecipar a crítica. Gil, do
CIMI do Maranhão, relata como a pastoral religiosa também entrou na mira dos
processos da mineradora:
Houve uma Reunião em Santa Inez sobre o PBA e o CIMI
participou a convite dos indígenas, os Awa. Então houve umas
tensões, que foram questionadas coisas que não estavam claras e os
indígenas precisariam entender, e, a técnica da Vale que estava
presente nessa reunião, entendeu como ameaça e entraram com uma
ação contra o CIMI inclusive pedindo retirada de área para a
FUNAI. Ai a Vale acusa de incitação dos índios contra a empresa,
veja! Eles querem mostrar que qualquer pessoa vai responder se
enfrentar o poderio da empresa (Gilderlan, indigenista do CIMI/MA,
entrevista realizada em janeiro de 2018).

Após essa reunião, duas técnicas do CIMI foram processadas pela Vale através
de ação inibitória ou interdito proibitório. Essa judicialização de toda e qualquer
oposição e a, conseqüente, criminalização de lideranças, participantes de entidades,
intelectuais que, por algum motivo, represente qualquer ameaça à empresa, foi bem
sintetizada por seu Valdir Reis pela frase ―(...) aqui é o seguinte: todo mundo foi

242
intimidado! Se reivindicar vai pegar processo!‖ (Valdir REIS, morador do bairro Auzira
Mutran, Marabá, entrevista realizada em setembro de 2016).
Fizemos um levantamento, entre 2013 e 2017, dos processos da Vale, em nome
da segurança coorporativa, na Justiça Estadual do estado do Pará e do Maranhão, tanto
no âmbito civil, quanto penal, e identificamos 25 processos de interdito proibitório,
além de 5 processos penais. Além desses processos na justiça estadual, encontramos na
Justiça Federal mais 12 processos civis de Interdito Proibitório da empresa Vale contra
lideranças da região, sendo um no Pará e onze no Maranhão.

QUADRO 14 – Judicialização dos Conflitos e Criminalização de Lideranças no


Corredor Carajás-Itaqui, processos na Justiça Estadual do Pará e Maranhão
Processos Penais
Processos Civis
Municípios (Comarcas) Exercício Arbitrário e/ou
Interditos Proibitórios
Esbulho
Canaã dos Carajás (PA) 1 1
Parauapebas (PA) 1 1
Curionópolis (PA) 1 0
Marabá (PA) 1 2
Açailândia (MA) 1 0
Buriticupu (MA) 6 0
Santa Luzia (MA) 3 0
Pindaré-Mirim (MA) 4 0
Monção (MA) 1 0
Arari (MA) 4 0
Anajatuba (MA) 1 0
Santa Rita (MA) 1 0
Alto Alegre do Pindaré (MA) 0 1
Total 25 5
Fonte: TJ-PA e TJ-MA. Organização dos dados Justiça nos Trilhos e Bruno Malheiro, 2017.

A figura abaixo sintetiza a distribuição espacial dos processos e, por ela,


identificamos que, se no Pará o número de processos de interdito proibitório é menor
em relação ao Maranhão, por outro lado, o número de processos penais é bem maior que
no estado vizinho. Os conflitos a partir dos quais os processos são gerados são distintos
e, por essa razão, os instrumentos utilizados também se configuram como distintos. No
Pará, nesses termos, a ocupação de terras da empresa, as quais entidades e movimentos
afirmam serem públicas, geram processos penais, assim como algumas ocupações dos
trilhos realizadas por movimentos sociais específicos, na qual a identificação de
lideranças é mais direta, também provocam uma resposta penal do corpo jurídico
empresarial. Por outro lado, as possibilidades de ocupação dos trilhos geram a maioria
dos processos de interdito proibitório e como a Estrada de Ferro Carajás atravessa bem

243
mais comunidades no Maranhão do que no Pará, as ações civis, nesse sentido, serão
mais comuns e numerosas nesse estado.

FIGURA 10 – Distribuição Espacial dos processos da empresa Vale de


criminalização de lideranças no corredor Carajás-Itaqui

Fonte: TJ-PA e TJ-MA. Organização dos dados Justiça nos Trilhos e Bruno Malheiro, 2017.

Entretanto, se os processos de desmobilização e resignificação da crítica


realizam-se por meio de serviços especializados de consultorias ambientais, o processo
de antecipação à crítica, também não será diferente. Entretanto, não falamos aqui
necessariamente de consultorias ambientais, mas de escritórios de advocacia e empresas
especializadas em segurança corporativa. Dois serviços são prestados, os dois bem
distintos, o primeiro consistindo no auxílio jurídico para implantação de projetos e o
segundo consistindo em gerar informações e relatórios do que pode significar um risco à

244
segurança empresarial. Porém, ambos podem ser descritos pela estratégia de
antecipação à crítica.
Na análise do amontoado de processos gerados pela empresa contra lideranças
de organizações e entidades, identificamos a ―Silveira Athias, Soriano de Mello,
Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados‖ como o escritório de advocacia presente em
praticamente todos os processos analisados.
No site do escritório - principal apoio jurídico da empresa - identificamos que,
dentre as áreas de atuação descritas, a primeira delas atende pelo nome ―Assessoria para
implantação de projetos na Amazônia‖. Na descrição das atividades do escritório, desta
linha específica de atuação, temos o seguinte texto:
O escritório tem larga experiência na assessoria e na implementação
de projetos econômicos, sociais e ambientais, além do conhecimento
das peculiaridades da Região. Sua equipe multidisciplinar atua em
diversos ramos do Direito e tem como objetivo atender o interesse do
empreendedor, dentro de parâmetros de desenvolvimento sustentável e
de responsabilidade sócio-ambiental (SILVEIRA ATHIAS,
SORIANO DE MELLO, GUIMARÃES, PINHEIRO & SCAFF
ADVOGADOS, 2018, n/p).

Também no campo do direito, especialidades se criam para atender ao mercado


dos megaempreendimentos minerais e suas demandas específicas que se materializam,
dentre outros aspectos, nos processos de judicialização das lutas sociais e criminalização
das lideranças de movimentos sociais em antagonismo à mineração.
Entretanto, se a mineradora cria esse nicho de mercado aos profissionais do
direito, também cria demanda para atividades de segurança corporativa57. Nesse
particular a empresa Network Inteligência Corporativa58, citada na denúncia feita pelo
ex-funcionário André Almeida (ALMEIDA, A. RIBEIRO, R. J, 2013), já mencionada
aqui, que em seu site define a metodologia da segurança corporativa da seguinte
maneira:
Freqüentemente, a própria estrutura interna voltada para a obtenção do
conhecimento falha em distinguir entre as atividades de Coleta e de
Busca. A primeira consiste na obtenção de dados disponíveis em bases
de uso público e da própria organização. São informes com baixa e

57
É importante ainda acrescentar que, segundo notícia publicada pelo jornal O Globo on line, a
mineradora Vale contratou, ainda em 2016, uma empresa ligada ao ex-secretário de segurança pública do
estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, para auxiliar na construir um plano diretor de segurança
corporativo para todas as regiões em que a empresa possui operações. Ver em
https://oglobo.globo.com/rio/vale-contrata-empresa-de-beltrame-para-prestar-consultoria-na-area-de-
seguranca-20529540
58
Não só na denúncia feita ao Senado Federal já aqui referenciada, mas o site da empresa de inteligência,
mais especificamente na apresentação de um de seus consultores, também há a menção à relação da
empresa com a mineradora Vale. Ver em http://www.networkic.com.br/consultores_oscaralves.htm

245
média proteção, que podem ser formatados para atender às
necessidades de informação do cliente. A Busca é uma atividade de
Inteligência que emprega técnicas especiais para a obtenção do
conhecimento exigido, tanto de imediato, quanto a médio e longo
prazos. A combinação das duas atividades é a essência da metodologia
denominada Inteligência Corporativa (NETWORK INTELIGÊNCIA
CORPORATIVA, 2004, n/p).

A definição deixa em aberto o que efetivamente seriam as técnicas definidas


como ―busca‖. Mas o emprego do adjetivo especial e a necessária distinção lógica entre
busca e coleta, além da definição das bases de dados das atividades de coleta, como as
bases de uso público e da própria organização, referenciam concretamente a atividade
de busca como ação de inteligência cuja base de dados é, no mínino, restrita.
O quadro abaixo sintetiza os principais serviços de segurança corporativa
contratados pela empresa.
QUADRO 15 – Principais empresas contratadas no âmbito dos processos
de Antecipação à Crítica
Empresas Serviços Oferecidos Breve Trajetória
Silveira Athias, Soriano de Assessoria para implantação de Fundado em 1981 em Belém e
Mello, Guimarães, Pinheiro & projetos na Amazônia abrindo, em 2008, uma filial em
Scaff Advogados Parauapebas e outra em Marabá
- áreas de atuação da empresa
Vale - atua na advocacia
empresarial a partir das linhas de
atuação Assessoria para
implantação de projetos na
Amazônia, Direito Ambiental,
Fundiário e Minerário, Civil,
Comercial e do Consumidor,
Trabalhista e Sindical,
Tributário, Penal Empresarial e
Ações de Massa e Juizados
Especiais Cíveis
Network Inteligência Serviços de Inteligência Empresa criada pelo Coronel do
Corporativa Corporativa Exército Reformado Marcelo
Augusto de Moura Romeiro da
Roza, direcionada a serviços de
segurança corporativa, como
avaliação de riscos, a construção
de planos de segurança
empresarial, gerenciamento de
crises, dentre outros.
Fonte: sitos eletrônicos das empresas. Elaboração Bruno Malheiro, 2018.

Em linhas gerais, a antecipação à critica, seja pelas práticas de espionagem


empresarial, seja pela judicialização e criminalização de lideranças, pode ser melhor
compreendida se a encararmos como um mecanismo concreto de exercício do poder
pela empresa, assim como são as práticas de desmobilização e resignificação da crítica.
O que está em questão quando se pretende à antecipação aos riscos é a segurança, que,

246
por sua vez, é um campo que se abre ao completo imprevisto, imprevisto esse que se
pretende controlar.
Nesse sentido,
É a gestão dessas séries abertas, que, por conseguinte, só podem ser
controladas por uma estimativa de probabilidades, é isso, a meu ver,
que caracteriza essencialmente o mecanismo de segurança. (…) A
segurança vai procurar criar um ambiente em função de
acontecimentos ou de séries de acontecimentos ou de elementos
possíveis, séries que vai ser preciso regularizar num contexto
multivalente e transformável. O espaço próprio da segurança remete,
portanto, a uma série de acontecimentos possíveis, remete ao temporal
e ao aleatório, um temporal e um aleatório que vai ser necessário
inscrever num espaço dado (FOUCAULT, 2008, p. 27).

A regulamentação do aleatório está inscrita em lei e é operada pelos


profissionais do direito, tornados consultorias de advocacia empresarial. Os artigos do
código civil e penal, usados pelas consultorias contratadas pela empresa, nos processos
que entra contra lideranças, demonstram isso: interdito proibitório é, em si, controle
prévio do que não se conhece muito bem, mas se define, por algum motivo e critério,
como risco. Mas também essa regulamentação abre espaço para a montagem de um
sistema de segurança empresarial focado em conter os riscos, sistema que lida com
séries de acontecimentos possíveis, que projeta deduções a partir de dados materiais que
consegue por meio de ―técnicas especiais‖.
Mas todos esses mecanismos que atuam com dados materiais, previsões
estatísticas, circulação de discursos e espionagem para a segurança corporativa, bem
como os processos de desmobilização e resignificação da crítica, também se realizam
pensando na funcionalidade dos espaços construídos, na forma de controle dos fluxos,
nas estratégias de contenção dos espaços, ou seja, também, por essa lógica,
definem/marcam/dominam territórios.

247
248
CAPÍTULO 7

MINERAÇÃO: CONTENÇÃO TERRITORIAL E


DESTERRITORIALIZAÇÃO

Desde Heráclito até von Clausewitz ou Kissinger, “a guerra é a


origem de tudo”, se por tudo se entende a ordem ou o sistema
que o dominador do mundo, no exercício da razão cínica,
controla desde o poder e com os exércitos. Estamos em guerra e
por isso o uso da razão estratégica. Guerra fria para os que a
fazem; guerra quente para os que as sofrem (...) O espaço como
campo de batalha, como geografia estudada para vencer
estratégica ou taticamente o inimigo (...) Essa ontologia
eurocêntrica não surge do nada. Surge da experiência prática
da dominação sobre outros povos (...). Nosso caminho é outro
porque temos sido e somos a outra face da modernidade...
Enrique Dussel

Eu venho de uma comunidade chamada Racha Placa. Pelo que


a Mineradora Vale diz lá não tinha comunidade, mas estou aqui
pra provar que existia sim uma comunidade lá, eu fazia parte
dela. Com a chegada da mineradora vêm os impactos. Se antes
a gente produzia arroz, hoje não temos mais terras para
produzir. Com a aceleração da retirada do minério. A gente vê
que eles estão acelerando essa retirada e isso só aumenta os
impactos na nossa região. Ela teve a cara de pau de dizer que
esse projeto significa desenvolvimento!
Cristiane Jardim

249
Conhecemos Cristiane Jardim ainda em 2012, quando, na comunidade de
Racha Placa, ainda se plantava arroz, antes do S11D chegar. A comunidade de
Cristiane, que foi chamada, primeiramente, de vila de Mozartinópolis - devido ao nome
do Sr. Mozart, funcionário da Vale que, ainda na década de 80, prestava favores à
comunidade – tornou-se Racha Placa em homenagem a um morador que destruiu uma
placa de proibição de caça, pesca e extração de madeira colocada pela empresa Vale. A
placa rachou, mas os interesses da empresa não cessaram. Hoje, Cristiane precisa
lembrar a todos que ali existiu uma comunidade de cerca de 90 famílias, que plantavam
seus sonhos naquele chão.
Talvez quem melhor defina o que vamos falar nesse capítulo seja o senhor
Antônio Gustavo. Ele chegou à vila do Racha Placa em 1979 e, desde então, tudo o que
fez tem marca em cada canto daquele lugar. Em longa conversa no pátio de sua casa,
quando a vila ainda era vila, ele apresentava, naquele momento, o que ainda restava.
Casas já tinham sido destruídas, algumas totalmente desfeitas, de outras só restavam
paredes, algumas colunas, uma espécie de lembrança. O sentimento de quem chegava
foi prontamente traduzido por seu Antônio, que descreveu aquilo tudo como um grande
terremoto. E que nos perdoem os sismólogos, mas foi literalmente o que aconteceu ali.
Terremoto vem das palavras latinas terra e movere, significa a terra que se move, que se
desloca de um lado para outro. Percebemos ali um claro deslocamento do sentido do
território, a vida que plantava alimentos e sonhos estava sendo deslocada dali, pois era
preciso se desfazer do solo, escavar até chegar ao que realmente interessa. Um
terremoto de causas humanas, definição lógica de um camponês, processava-se ali.
Até aqui falamos bastante de riscos sociais corporativos, de estratégias de
segurança empresarial, mas o terremoto que seu Antônio identifica, mostra-nos que um
elemento fundamental a todos os mecanismos de minimização dos riscos corporativos
até então descritos: uma sistemática estratégia de controle da terra.
Ainda falamos de uma empresa que possui uma dinâmica metabólica que
precisa controlar. Isso inclui as áreas de extração, os circuitos logísticos de transporte e
as áreas portuárias. Entretanto, pensar essa estratégia de controle da terra é, também,
combiná-la ao funcionamento metabólico da mineração, afinal a terra é um dos
elementos a ser apropriado no fluxo de matéria e energia que a mineração significa.
Dizer isso é compreender o controle da terra como mecanismo, o mais
fundamental de todos, de segurança corporativa, uma vez que, sem acesso aos recursos
e aos sistemas logísticos, ou seja, sem o controle da terra, não há mineração. Entretanto,

250
controlar é, em si, uma relação de poder, uma vez que não se controla sem retirar o
controle do outro, por isso não falamos em terra em si, mas em território, pois o que está
em questão é, sempre, uma relação.
Nesse quadro de referência, a realização do metabolismo social da mineração
precisa, em termos espaciais, de dois elementos básicos que garantem um estado de
relações normalizado para a segurança corporativa: a garantia do uso do território como
recurso e o controle dos fluxos de seus sistemas logísticos.
Entretanto, o lugar de enunciação desse trabalho não nos permite ver as coisas
apenas pelo lado da empresa, todos os processos vistos até aqui não prescindem do
olhar de quem tem a vida i-mobilizada para a mineração se processar e passar. A ideia é
descortinar a racionalidade empresarial, não lhe fazer uma leitura apologética. Por isso,
os conceitos que definem o campo hegemônico capitalista devem ter significado
mobilizador para quem sofre os efeitos dos processos de sua definição.
Dessa forma, as práticas de desmobilização, resignificação e antecipação à
crítica, podem ser lidas, em sua tessitura espacial, como processos de contenção
territorial, ou seja, como o desenho de estratégias espaciais para resguardar os usos dos
recursos - contendo a possibilidade de realização de outras formas de uso e evitando o
direito de comunidades exercerem suas territorialidades - bem como por estratégia de
canalização dos fluxos minerais, refreando a possibilidade de outras formas de fluxo e
mobilidade, próprias dos movimentos cotidianos das comunidades.
Segundo Rogério Haesbaert (2014, p. 216, 217), em relação aos processos de
contenção territorial: ―trata-se de conter os fluxos daqueles que, não sendo passíveis de
inserção mais diretamente regulada na sociedade de exceção, tornam-se homini sacri
politicamente irrelevantes (...) [significa] conter enquanto barrar, deixar do lado de
fora‖.
O conceito de contenção territorial59 de Rogério Haesbaert - tributário da
leitura de Foucault da emergência de uma sociedade normalizadora (sociedade de
segurança e biopolítica), que não mais se centra apenas na disciplina, no adestramento e

59
―Uma das características do termo contenção, e que justifica sua aplicabilidade, hoje, é que ele dá
conta, justamente, do caráter sempre parcial, provisório e paliativo do fechamento, ou melhor, do efeito-
barragem que cria através das tentativas de contenção dos fluxos – que, contidos por um lado, acabam por
encontrar outro ―vertedouro‖ por onde possam fluir. ―Conter‖ tem também a vantagem de significar,
através desse efeito-represa, ao mesmo tempo a obstrução de um caminho – ou, pelo menos, a abreviação
e/ou o desvio de uma dinâmica, e o impedimento ou a restrição a sua expansão, a sua proliferação‖
(HAESBAERT, 2014b, p. 32).

251
no fechamento, mas no controle dos fluxos, dos fenômenos de demografia e de
distribuição - a partir da análise espacial das políticas de segurança pública da cidade do
Rio de Janeiro, revela dois processos distintos: o primeiro, chamado de construção de
muros-duto, que referencia a dinâmica de canalização de fluxos evitando outras formas
de circulação de acontecer, e o segundo, chamado de construção de muros-barragem,
que evitaria a expansão de áreas de favela em nome da ―segurança‖ (HAESBAERT,
2014).
Em termos gerais, o conceito, embora sugira que a contenção é também de
formas de uso do espaço, pela ideia de muros-barragem, centraliza-se na contenção
como controle de fluxos ou fenômenos aleatórios, que significariam fatores de risco à
noção de segurança difundida em biopolíticas urbanas.
Em vista dos processos aqui analisados, controles de usos e de fluxos assumem
igual importância estratégica nos processos de contenção territorial. Nesses termos, essa
ressalva, mais do que ampliar o escopo de análise teórica desse trabalho, tem a
finalidade específica de introduzir ao conceito de contenção territorial, além do controle
dos fluxos, também a dinâmica de controle dos usos do território, como um ajustamento
de usos e fluxos econômicos à dinâmica dos processos de espoliação mineral.
Esse processo deve ser visto por dois ângulos complementares. Primeiro, pelo
prisma da economia política, o controle de usos e fluxos demonstra claramente que a
contenção territorial é a generalização do instituto da propriedade privada da terra aos
espaços necessários para o desenvolvimento das atividades minerais, sendo, portanto,
um processo de mercantilização de valores de uso e de privação do acesso aos recursos
naturais. Por outro lado, entendido como tecnologia política de exercício do poder e
governo do território, a contenção territorial, ao estabelecer os usos e fluxos necessários
à mineração, também define fluxos e usos que serão considerados risco ao
estabelecimento dessa atividade econômica. Por isso, as ações corporativas irão
interferir nas condições de existência de outras ações sociais, por isso, enfim, abre-se
um espaço de indistinção política em que a racionalidade mineral cria critérios de valor
para definir o é e o que não é possível de existir nos espaços necessários à realização do
metabolismo social da mineração.
Diante disso, outra ressalva deve ser feita aqui: falar de contenção territorial é,
também, falar de processos de desterritorialização, particularizando as marcas
biopolíticas desse processo, uma vez que, se criar mediações espaciais, que
proporcionem ‗poder‘ sobre a reprodução de grupos sociais, significa territorializar-se

252
(HAESBAERT, 2004), os processos de contenção territorial claramente se revelam
como territorializações que implicam processos de desterritorialização.
Feito as ressalvas de cunho mais teórico, vale ressaltar que os processos de
contenção territorial e desterritorialização - lidos como uma só maneira de exercício do
poder e governo do território - serão aqui pensados a partir de duas dinâmicas distintas,
logicamente integradas, a saber: a garantia do uso do território como recurso e o
controle dos fluxos de seus sistemas logísticos, ou seja, afirmando uma territorialidade
corporativa.
Novamente tomando como referência analítica o projeto S11D, percebemos
que os processos de territorialização corporativos serão efetivados por duas estratégias
distintas: a primeira pela criação de unidades de conservação para assegurar o uso
mineral e restringir outros usos; e a segunda pela compra direta de terras pela empresa,
para garantir o uso futuro de áreas com potencial mineral e, ao mesmo tempo, restringir,
também, a possibilidade de outros usos.
Em se tratando do controle dos fluxos dos sistemas logísticos da mineração,
outra estratégia se efetiva: a construção de muros nas margens dos trechos da Estrada de
Ferro Carajás com maior circulação de pessoas para permitir os fluxos de minério e
conter a mobilidade cotidiana das comunidades.
Esse capítulo, portanto, segue essas três estratégias distintas de contenção
territorial e desterritorialização.

7.1. A CONTENÇÃO DAS MINAS E AS ÁREAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL


A primeira estratégia de contenção territorial é claramente nas zonas de
extração, através de processos de contenção das minas, ou seja, além de garantir a
concessão da exploração, é necessário construir um mecanismo para conter e frear a
possibilidade de existência de outros usos do território, de modo que isso geralmente é
feito pela criação de unidades de conservação60. Como os projetos de mineração na
Amazônia sempre foram responsáveis por um fluxo populacional para a região sem
igual61, é preciso, portanto, resguardar os recursos de possíveis processos de

60
A Lei 9.985/00 institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, de modo que dois
são os grupos centrais destas unidades, a saber: as de Proteção Integral, como as Estações Ecológicas, as
reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestre; e as
de Uso Sustentável, tais como Áreas de Proteção Ambiental, Áreas de Relevante Interesse Ecológico,
Florestas Nacionais, Reservas Extrativistas, Reservas de Fauna, Reservas de Desenvolvimento
Sustentável e Reservas Particulares do Patrimônio Natural (BRASIL, 2000).
61
Para termos uma noção do crescimento populacional das cidades próximas aos projetos minerais,
Canaã dos Carajás, onde se localiza a mina de cobre e outros minerais do projeto Sossego da empresa

253
crescimento das cidades em direção às jazidas, mas também desobstruir o caminho para
a exploração.
O caso particular da Flona de Carajás é emblemático para entendermos a
contenção territorial. Ainda em 1986, a resolução nº 331 do Senado concedia, a então
estatal, Companhia Vale do Rio Doce, o direito real de uso de 411.948 hectares no
perímetro das minas do Projeto Ferro Carajás. A cessão da área tinha várias
condicionantes, da proteção e conservação ambiental à produção de alimentos às
populações envolvidas com amparo particular aos indígenas. Entretanto, quando da
privatização da companhia em 1997, surgiu o questionamento de parlamentares que esta
concessão para uma empresa, agora privada, só poderia ser feita pelo Congresso
Nacional, o que foi acatado pelo STF em abri de 1997 que, por sua vez, barrou um
decreto presidencial de Fernando Henrique Cardoso de concessão de direito real de uso
para a empresa privatizada em março de 1997. Em 3 de fevereiro de 1998, o Presidente,
então, cria a Flona de Carajás com os mesmos 411.948 hectares da área concedida
anteriormente, como uma ―solução encontrada para a derrubada pelo STF do decreto
presidencial (...). Com a criação da Flona o governo afastou o risco de ter de submeter à
votação no congresso a concessão da área de Carajás‖ (RICARDO; ROLLA, 2006).
A Flona se transforma, então, definitivamente numa estratégia clara de
resguardar todo o potencial mineral descoberto no interior dos 411 mil hectares,
inibindo não apenas o crescimento urbano para essas áreas, mas também criando um
sistema de regulação do uso, barrando qualquer atividade indesejada à mineração.
É preciso dizer que, embora a FLONA de Carajás, seja a principal área de
proteção em que se proliferam usos minerais por parte da empresa Vale, várias outras
Unidades de Conservação (Mapa 4) foram criadas, além, logicamente, da Reserva
Indígena dos Xikrin do Cateté que também faz divisa com a FLONA de Carajás. As
outras áreas são a Reserva Biológica do Tapirapé, a Floresta Nacional do Tapirapé-
Aquiri, a Floresta Nacional do Itacaiúnas e a APA do Igarapé Gelado que forma, então,
um mosaico de unidades de conservação compondo a ―biossegurança‖ da empresa,
contendo a possibilidade do avanço de outros usos e servindo de justificativa ambiental
para os projetos de mineração.

Vale e onde se localiza a jazida de ferro do projeto S11D da mesma empresa, segundo o IBGE, em 2000
tinha uma população 10.992 passando para 33.632 nas estimativas para 2015. Entretanto, esses dados são
altamente questionados pela prefeitura, uma vez que os cadastramentos feitos pela Secretaria Municipal
de Saúde contabilizaram, ainda em 2014, uma população de 52.862, sendo que a prefeitura afirma que
esse número em 2016 já superou os 62.000 (CANAÃ DOS CARAJÁS, 2016).

254
MAPA 4 – Ferrovia Carajás e Unidades de Conservação

255
Entretanto, a Flona de Carajás, por seus depósitos impressionantes de ferro,
jazidas importantes de Ouro, Manganês e Cobre, bem como a presença de outros
minerais economicamente viáveis à exploração, fazem desses 411 mil hectares,
território estratégico a curto, médio e longo prazo à mineradora Vale. Não há, portanto,
o desenho de uma unidade de conservação sem que essas linhas não sejam escritas
claramente por interesses econômicos. A experiência da mineração da empresa Vale em
Minas Gerais, onde processos de urbanização transformaram alguns entornos das
jazidas, foi prontamente tomada como elemento de fundo para, na Amazônia, a
realização de outra estratégia. O afloramento de minérios em uma região de floresta
articulará, nesse sentido, o discurso preservacionista, mais ligado ao que Alier (2007)
chama de ―culto à vida silvestre‖, aos interesses econômicos da empresa de resguardar o
território para seu uso enquanto recurso.
O potencial mineral da Flona de Carajás é claro quando visualizamos, a partir
das formações geológicas da área, o conjunto diverso de jazidas minerais passíveis de
exploração em seu interior, como nos demonstra o mapa 5.

MAPA 5 – Mapa Geológico da Flona de Carajás

Fonte: STCP Engenharia de Projetos Ltda. (2011). In: ICMBIO, 2016.

As áreas em coloração magenta identificam os depósitos minerais de ferro no


interior da FLONA, sendo centrais: as minas nortes, identificadas no mapa pelas cavas
256
N4 e N5, e as minas ao sul, identificadas no mapa como serra sul, onde está o projeto
S11D. Para resguardar a realização dos usos econômicos do espaço, modos de
segurança do território se efetivam por sistemas de controle e vigilância.
A foto abaixo (figura 11) demonstra a guarita de entrada à Floresta Nacional de
Carajás por Parauapebas, a partir da qual se chegam às minas situadas ao norte da serra.
A quantidade de câmeras de vigilância na entrada, a necessidade de identificação
completa de todas as pessoas que entram na FLONA, bem como as contínuas rondas
florestais que circulam pela unidade de conservação, sintetizam bem a maneira em que a
um território pretensamente ligado ao Estado, sob administração do Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), em realidade, funciona como
uma barreira legal a outros processos de uso e ocupação. A sensação da entrada é de se
passar por um grande pedágio, no qual não se deixa dinheiro para garantir a passagem,
apenas as informações possíveis que identifiquem, não apenas quem entra, mas por
quais razões pretende entrar. O valor que se exige, portanto, não é monetário, mas o
informacional, de modo que o monitoramento dos fluxos de entrada e saída sugere um
controle que inibe qualquer possibilidade mais permanente de outros usos do espaço da
Floresta Nacional.
FIGURA 11 - Entrada na Floresta Nacional de Carajás, Parauapebas (PA)

Fonte: Bruno Malheiro, 2013.

A entrada ao Sul da FLONA não será diferente de sua entrada ao Norte. Assim
como o acesso aos projetos de extração de ferro das minas norte, a entrada do maior

257
projeto de extração de ferro do mundo, S11D, também envolve controle minucioso da
entrada e saída e rígida vigilância da empresa. A foto abaixo (figura 12) foi tirada em
outubro de 2016, quando o projeto ainda não havia sido inaugurado, por isso, nela
identificamos, ao lado esquerdo, o início de construção de uma guarita de entrada, já
tendo um pequeno espaço à beira da rodovia reservado para isso. Entretanto, ao lado
direito da foto, também identificamos uma barricada de controle de entrada e saída nas
áreas do projeto.
FIGURA 12 - Entrada ao Projeto Ferro Carajás S11D, Canaã dos Carajás

Fonte: Bruno Malheiro, 2016.

A contenção territorial aqui se expressa pelo completo controle dos fluxos e


dos usos no interior da Floresta Nacional de Carajás, demonstrando que esta unidade de
conservação significa um fechamento ou um modo de aproveitamento econômico de
411 mil hectares, de alto potencial mineral, por uma empresa privada. Entretanto, esse
fechamento não pode ser definido como clausura, pois que, pela normalização que o
Estado dá a uma FLONA, podemos até mesmo dizer que se permite a entrada,
logicamente sobre regras de controle de permanência. Fecha-se, portanto, para se abrir
de maneira controlada. Fecha-se o uso para uns para se abrir a possibilidade de uso dos
recursos pela empresa, controla-se o fluxo de alguns para permitir o livre fluir da
mineração e, assim, a floresta cumpre o papel de proteção de uma atividade que lhe
afeta diretamente.

258
7.2. COMPRA DE TERRAS: UMA RACIONALIDADE TERRITORIAL CORPORATIVA
O mosaico de unidades de conservação na serra dos Carajás, com destaque à
Floresta Nacional de Carajás, como um cinturão institucional de contenção territorial
para a empresa Vale, não resguardam, em seu interior, todas as jazidas minerais
importantes para os interesses corporativos. O mapa 5 demonstra, com maior nitidez,
que o potencial mineral identificado, não se restringe aos 411 mil hectares da FLONA
de Carajás, uma vez que importantes reservas minerais estão fora de seus limites, como
as reservas de cobre e ouro do projeto Sossego, além das reservas de níquel do projeto
Vermelho.
Além disso, as mudanças na estrutura do projeto S11D, após as condicionantes
ambientais exigidas pelo IBAMA62, também levaram para fora da FLONA a localização
da pilha de estéril (no primeiro projeto foram previstas três pilhas de estéril no interior
da unidade de conservação), onde se depositarão os rejeitos do projeto, bem como a
usina de beneficiamento que, no entanto, desde o primeiro projeto foi pensada fora dos
limites da unidade de conservação, particularmente no espaço que Cristiane Jardim, que
protagoniza a epígrafe desse capítulo, exige que se chame de comunidade e a partir de
onde seu Antônio chamou toda essa dinâmica de expansão mineral de terremoto.
Estamos falando da vila de Racha Placa.
O mapa 6 , retirado do documento elaborado pela Diretoria de Planejamento e
Desenvolvimento de Ferrosos, Gerência de Meio Ambiente, Mina, Ferrovia e Porto da
Vale, como resposta às condicionantes ambientais exigidas pelo IBAMA, mostra, com
nitidez, através das áreas marcadas em vermelho, a Usina de beneficiamento do projeto
S11D, nas cercanias da comunidade de Cristiane Jardim, as áreas de cava, onde será o
processo de extração propriamente dito, localizada no interior da unidade de
conservação, e a grande pilha de estéril, prevista também para fora da FLONA de
Carajás. No mapa 6 também é importante, logicamente, identificar a linha amarela, que
aparece na parte inferior, pois ela demarca os limites da unidade de conservação em
questão aqui.

62
O trâmite do licenciamento ambiental do Projeto S11D inicia-se com a emissão da Licença Prévia (LP),
ainda em junho de 2012 e, um ano depois, com a emissão da Licença de Instalação (LI). A Licença de
Operação de nº 1361/2016 foi assinada pela, então presidente do IBAMA, Suely Araújo, em 9 de
dezembro de 2016. Nesta última foram exigidas da empresa 16 condições especiais.

259
MAPA 6 - Plano Diretor do Projeto S11D licenciado pelo IBAMA

Fonte: VALE, 2012.

Outra condicionante ambiental do IBAMA ao S11D, que altera a dinâmica do


entorno da FLONA de Carajás, alterando, inclusive, a configuração desta unidade de
conservação, é a criação do Parque Nacional dos Campos Ferruginosos, uma
condicionante, cujo sentido, para o órgão ambiental, é a proteção do ecossistema de
vegetação de canga, associado ao afloramento rochoso da hematita, principal mineral
constituinte do minério de ferro. Constando nas condições específicas para a validade da
Licença de Operação n° 1361/2016 do Projeto Carajás S11D, o parque, inicialmente
pensado com 81.560,03 hectares foi instituído, por decreto presidencial, em 5 de junho
de 2017, com 79.086,04 hectares, boa parte dessa área sendo cedida pela FLONA de
Carajás. A figura 13 demonstra como fica o mosaico de unidades de conservação em
Carajás após a criação do PARNA, que é identificado pela área marcada pela hachura
em amarelo ouro.

260
FIGURA 13 - Mosaico de Unidades de Conservação após criação do Parna dos
Campos Ferruginosos

Fonte: ICMBIO, 2016.

Essa combinação entre interesses minerários em áreas fora das unidades de


conservação e a necessidade de se garantir acesso às minas, juntamente com o
cumprimento de condicionantes ambientais para a operacionalização do projeto S11D,
além, logicamente, de todas as instalações logísticas, como estradas, acampamentos de
funcionários, usinas de beneficiamento, pilhas de estéril e a própria ferrovia, que
também transbordam às áreas protegidas, produzem uma verdadeira corrida pela terra
por parte da empresa Vale, notadamente nos entornos da Flona de Carajás e nas novas
áreas do Parque Nacional dos Campos Ferruginosos e suas bordas, mas também ao
longo dos 892km da Estrada de Ferro Carajás e os 101 km de sua extensão até o projeto
S11D.
O Mapa 7 (Mineração e concentração fundiária: a Vale em Carajás) sobrepõe,
na escala dos empreendimentos da mineradora Vale em Carajás, as áreas indicadas pela
empresa, como de sua propriedade, no Cadastro Ambiental Rural (CAR) da Secretaria
de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará, as áreas de interesse minerário
da empresa e, também, seus títulos minerários e as áreas de servidão minerária definidas
em seu nome. Essa sobreposição também identifica áreas de assentamentos e alguns
acampamentos.

261
O Mapa 8 (Mineração e Conflitos Agrários em Carajás), por sua vez, sobrepõe
apenas as áreas compradas pela empresa com registro no CAR, as áreas de servidão
minerária ligadas à empresa, além de demonstrar os projetos de assentamento e alguns
acampamentos, indicando, inclusive, uma sobreposição de uma área comprada pela
empresa, a qual é identificada pela folha cartográfica 102/2016 do INCRA como terra
pública, elemento que mobiliza as várias ocupações de terras, particularmente no
município de Canaã dos Carajás pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais do mesmo
município.
É importante notar que os dois mapas consideram como áreas de propriedade
da empresa aquelas encontradas, através dos números de Cadastro Nacional de Pessoa
Jurídica (CNPJ) da empresa Vale e de seus projetos, no Cadastro Ambiental Rural
(CAR) da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ainda
consideramos como títulos minerários os processos que, no Departamento Nacional de
Produção Mineral, hoje Agência Nacional de Mineração, estão em fase de ―Autorização
de Pesquisa‖, ―Concessões de Lavra‖, ―Requerimento de Lavra‖, ―Lavras Garimpeiras‖
e os ―Licenciamentos‖, sendo que os interesses minerários foram considerados os
processos de ―Requerimento de Pesquisa‖, ―Requerimento de Lavra Garimpeira‖,
―Requerimento de Licenciamento‖, além dos que estão em ―Disponibilidade‖. As áreas
de servidão minerária são direitos adquiridos em favor de um título minerário, que o
Estado reconhece como de interesse público, podendo ser sobre a área do título, mas
abrangendo áreas adjacentes necessárias ao desenvolvimento da atividade.

262
MAPA 7 – Mineração e Concentração Fundiária: a Vale em Carajás

263
MAPA 8 – Mineração e Conflitos Agrários em Carajás

264
Se o mapa 7 demonstra que se sobrepormos propriedades da empresa Vale,
seus títulos minerários e áreas de interesse minerário, além de suas áreas de servidão
minerária, temos claramente uma dinâmica de apropriação do território ampliada. São
poucas, portanto, as áreas que não são rabiscadas pelo uso ou interesse mineral da
empresa.
O mapa 8, por sua vez, mostra que essa corrida pela terra nem sempre se dá
sem conflitos, pelo contrário. A identificação de sobreposição entre áreas indicadas
como propriedades da empresa no CAR e identificadas como terras públicas pelo
INCRA é apenas uma constatação por dados daquilo que múltiplos sujeitos políticos em
antagonismo à mineração afirmam como elemento motivador de suas lutas.
Entretanto, para além dos territórios de extração, se pensarmos na apropriação
de terras pelas margens da Estrada de Ferro Carajás (EFC), ampliamos o escopo do
problema fundiário colocado. O Plano Básico Ambiental, elaborado para o processo de
duplicação da EFC, identifica 2.005.773 metros quadrados de áreas adquiridas para a
duplicação, 39.367,19 metros quadrados de áreas adquiridas para implantação das
remodelações, além de 86.977,19 metros quadrados de áreas adquiridas para
implantação de desvios ferroviários, num total de 2.132.117,38 metros quadrados de
áreas adiquiridas pela empresa apenas para garantir os fluxos de ferro (AMPLO, 2011).
Se incluirmos no aspecto logístico de Carajás, a utilização do biodiesel
proveniente da Biopalma, uma empresa comprada pela Vale para fornecer 20% dos
combustíveis usados pelos trens na Estrada de Ferro Carajás, incluiremos cerca de 56
mil hectares de terra de plantação da palma do dendê que, hoje, segundo a própria
empresa, está sob seu controle63.
A compra de terras pela empresa, nesses termos, amplia radicalmente seus
territórios de influência direta e define a mineradora como vetor fundamental de
concentração fundiária na região.
A leitura de Joaquim Pereira Neto, camponês acampado em um dos
acampamentos criados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás,
em entrevista concedida ao documentário ―Terra é Vida‖ produzido pelo Projeto Nova
Cartografia Social da Amazônia, é bastante preciso ao dizer:
Ela (a Vale) quer a área não é só o minério (...). Já veio mandado de
desocupação (...). Então com certeza que é pra eles cumprir o mês que
vem (...). Com certeza eles vão atingir nós aqui. Porque eles tem, a
Vale não tem fronteiras, a Vale comanda em todos os lados até onde

63
Ver em http://www.biopalma.com.br/

265
vai o projeto dela. Não vai dizer aqui é o município de Canaã, o
município de Curionópolis que vai ficar não. Ela quer tirar todos!
(Joaquim Pereira Neto, agricultor em Canaã dos Carajás, entrevista ao
Documentário Terra é Vida)64.

Seu Joaquim dá uma definição precisa: ―ela quer a área não só o minério‖.
Pelos meandros de sua fala temos a exata noção do ―comando‖ da empresa em relação a
múltiplos territórios até onde vão seus projetos. E falamos em território, uma vez que a
corrida por terras significa, fundamentalmente, tirar pessoas do lugar, tirar todos como
afirma seu Joaquim.
De imediato, podemos sintetizar que a demanda por terras por parte da
mineradora se explica por alguns fatores imediatos relacionados, quais sejam: a garantia
de acesso irrestrito às jazidas minerais, o que significa o controle dos territórios que
apresentam as ―ilhas de sintropia‖; a garantia de acesso e controle de áreas para as
instalações dos sistemas logísticos e das estruturas associadas ao processo de
exploração; a garantia de proteção às áreas de mina e de logística, o que significa a
apropriação, não apenas de áreas de extração e para onde estão pensadas infra-
estruturas, mas também de seus entornos; a produção de bicombustível para abastecer
os trens da empresa, o que revela uma larga atividade fundiária na região do nordeste
paraense (nos municípios de Concórdia do Pará, Moju, Acará, Tomé-Açu, Bujaru e
Abaetetuba); e uma atividade fundiária motivada pela demanda criada por
condicionantes ambientais.
Esse conjunto de fatores imediatos relaciona-se a dois elementos estruturantes
que explicam o que efetivamente significa uma mineradora se transformar em vetor de
concentração fundiária. O primeiro é a transformação da terra em ativo fixo de uma
empresa de capital aberto e o segundo é a sobreposição de formas de propriedade da
terra que se expressa quando o que está em jogo é a exploração mineral.
Saskia Sassen (2016), em seu importante livro ―Expulsões‖, faz uma análise
minuciosa do contexto de emergência de um novo mercado mundial de terras,
principalmente após 2006, já na iminência de uma crise global. A autora observa que a
terra, em cenários de crise financeira, assume atrativo impar para investimentos de
capitais, por dois fatores básicos: sua materialidade e por ser meio de acesso a uma
variedade de mercadorias, pontuando dentre as mercadorias fundamentais: os
biocombustíveis, os cultivos alimentares, a silvicultura, a indústria, a extração de

64
Ver em https://www.youtube.com/watch?v=Qma9yVWY5Dc

266
minérios, os cultivos não alimentares e até mesmo o turismo. A engenharia financeira
estruturada a partir desse mercado, passa pelo enfraquecimento e empobrecimento dos
Estados, mas também pela emergência de vários grupos financeiros e uma infraestrutura
de serviços especializados em compra de terras (SASSEN, 2016), no qual, é bom
novamente lembrar, o capital de diversos fundos de pensão, em escala planetária, será
central.
Embora a abrangência dos estudos de Sassen (2016) indique um
enfraquecimento dos Estados, creditando o fenômeno de compra de terras às
engrenagens globais do capitalismo financeiro, sem, portanto, identificar o papel ativo
dos Estados Nacionais nesses processos – o que os primeiros capítulos desse trabalho
tentam demonstrar - de seu estudo podemos tomar dois argumentos importantes de
serem ressaltados aqui: o primeiro é que o acesso aos minérios é um vetor fundamental
à emergência do mercado de terras mundial, de modo que a corrida às terras de Carajás
pela empresa Vale, não pode ser vista distante desse contexto. Outro elemento de
significado singular em seu trabalho é o detalhamento da engrenagem de finanças a qual
é vinculada a terra nesse contexto, que, assim, transforma-se em capital fixo ou ativo
central para a estabilidade das operações corporativas, sendo, portanto, fator de
valorização acionária, por significar a garantia do acesso aos recursos.
Dessa forma, a terra, que será apropriada pela corporação a partir dos fatores
imediatos que descrevemos anteriormente, podendo apresentar forma contigua ou não, a
depender dos interesses em questão, irá ser administrada, como estoque territorial de
recursos, pelos sistemas técnicos e organizacionais da empresa, ganhando sentido num
emaranhado de relações financeiras que envolvem os múltiplos agentes participantes do
capital da mineradora, complexificando de tal forma as relações, que é possível sugerir
que o valor investido em uma aposentadoria privada por um trabalhador assalariado de
qualquer lugar do Brasil, por meio do Banco do Brasil, através do Previ, integrante
majoritário do capital acionário da empresa, transforme-se em valor investido na
compra de terras em Canaã dos Carajás, capitalizando a renda da terra pela lógica
capitalista de funcionamento dos processos de extração mineral.
Além desse sentido de ativo fixo no marco das relações financeirizadas das
commodities minerais, a segunda marca do processo de aquisição de terras pela
mineração é o que estamos chamando de sobreposição de formas de propriedade. Essa
sobreposição na verdade significa que a propriedade do subsolo tem uma preferência em
relação à propriedade da terra, entendida legalmente como solo. Em outras palavras,

267
estamos falando da criação de instrumentos legais para garantir às empresas
mineradoras o acesso às jazidas, conseqüentemente à terra, tendo, portanto, prioridade
em relação a qualquer outra forma de uso do espaço. O instrumento central para a
realização dessa sobreposição é a servidão mineraria - largamente utilizada na garantia
de acesso às jazidas em Carajás – prevista no Código de Mineração, em seus artigos 59
e 60, que, por sua vez, viabiliza a atividade mineral, materializando a ―utilidade
pública‖ que o ordenamento jurídico brasileiro atribui à mineração, sendo que, por este
instrumento, nenhum interesse patrimonial poderá sobrepor-se à atividade mineraria,
valendo a lembrança que o instrumento abrange não apenas as minas, mas todas as
atividades e logísticas necessárias para a viabilização da exploração.
Temos, portanto, que a aquisição de terras pela mineração tem a salvaguarda
do Estado de ser uma aquisição a partir, pretensamente, de um interesse público, o que
destrava qualquer irregularidade dos processos de aquisição de terras, tornando a
concentração fundiária em torno de uma grande mineradora, contraditoriamente, um
exercício de utilidade pública.
Esses dois aspectos que conferem uma particularidade aos modos de aquisição
de terras pela mineração, entretanto, referenciam uma estratégia mais geral corporativa
de contenção territorial, ou seja, o significado da compra de terras é de assegurar um
uso econômico específico do espaço, mas também de conter outros usos e outros fluxos.
Nesse particular, a terra também significa uma barreira material e simbólica,
por meio de suas cercas, a outros usos e fluxos no território transformado recurso pela
mineração. Nesses termos, as cercas da mineração podem ser tão violentas quanto às
cercas ligadas aos latifúndios tradicionais, como documentou a reportagem de El País
em Canaã dos Carajás, quando camponeses que ajustavam uma cerca foram espancados
por seguranças da mineradora. A resposta dada pela empresa à equipe de reportagem
esclarece bem o que estamos falando "eles tentavam construir cerca a mais de um
quilômetro além do limite da fazenda, ou seja, invadindo área de propriedade privada"
(EL PAIS, 02/03/2017, n/p).
A violenta defesa da propriedade privada que tanto a região do sudeste do Pará
conhece, torna-se um modos operandi não apenas das tradicionais oligarquias e
proprietários fundiários, mas também de uma das maiores mineradoras do mundo.
Entretanto, toda essa dinâmica de compra de terras pela mineração precisa ser
contextualizada a partir da situação específica em questão, ou seja, dando historicidade
à terra que está sendo apropriada pela empresa.

268
Em realidade, essas áreas onde, a partir de 1994, foi criado o município de
Canaã dos Carajás, onde se concentram as aquisições de terras da empresa Vale,
possuem uma história ligada ao processo de federalização das terras estaduais por meio
do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT) ainda na década de
1980. Essas áreas foram, portanto, direcionadas ao Governo Federal que desenvolveu, a
partir de 1980, um grande Projeto de Assentamento na região, chamado de Carajás,
dividido em três núcleos de Centro de Desenvolvimento Regional (CEDERE I, II e III).
A imagem abaixo, digitalização de um mapa construído pelo GETAT entre
1983 e 1987, demonstra, pelos círculos em vermelho, que boa parte das áreas externas à
Flona de Carajás - referenciada no mapa como ―Área objeto da concessão de direito real
de uso à CVRD‖, uma vez que a Flona só seria criada em 1998 – na verdade compunha
um grande projeto de assentamento, criado pelo órgão executivo federal, visível pelo
tamanho, quantidade e formato dos lotes.
FIGURA 14 – GETAT e a criação do Projeto de Assentamento Carajás

Fonte: PLANO DIRETOR DE CANAÃ DOS CARAJÁS, 2007.

269
Pelo decreto-lei n° 2.328 de 5 de maio de 1987, o Estado Brasileiro extinguia o
GETAT atribuindo ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) sua
sucessão, assumindo este instituto, portanto, as funções do antigo órgão executivo,
tornando, nesses termos, as áreas do Projeto de Assentamento Carajás também de sua
responsabilidade (BRASIL, 1987). Entretanto, na primeira década do século XX, com a
descoberta, pela empresa Vale, de grandes jazidas de Níquel e Cobre, verifica-se, como
já demonstramos aqui, uma extensa apropriação de áreas por meio de títulos minerários
ou mesmo por meio de compra de terras por parte da empresa, o que aquece os conflitos
fundiários no entrecruzamento contraditório entre mineração, agropecuária e agricultura
familiar.
A face mais contundente da mineradora como vetor de concentração fundiária
particularmente na realidade de Canaã dos Carajás, pode ser observada pelos dados
acerca da área de lavoura temporária e permanente no município. Antes dessa atividade
fundiária ligada à mineração, em fins da década de 1990 e início da década de 2000,
temos uma variedade de produtos, ligados à agricultura familiar, compondo o total de
áreas de lavoura no município. Entretanto, a partir particularmente de 2006, há uma
queda drástica nas áreas totais de lavoura, sendo que a recuperação delas nos anos
posteriores não mais se dá por uma diversificação da produção, mas pelo crescimento
das áreas de lavoura de milho.
O gráfico 15 demonstra que, se em 1997, as lavouras de milho representavam
cerca de 46% do total das lavouras temporárias e permanentes do município, em 2015,
chegam a representar mais de 75%. Entretanto, esse crescimento da participação das
lavouras de milho, no total do município, não decorre de um grande crescimento destas
(elas saem de 2.450 hectares em 1997 para 3.000 hectares em 2015), decorrem
fundamentalmente do decréscimo de outras lavouras, notadamente aquelas ligadas à
agricultura familiar.

270
GRÁFICO 15 - Área em Hectares das Lavouras Temporárias e Permanentes em
Canaã dos Carajás e áreas de lavoura de Milho, entre 1997 e 2015

Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal, Canaã dos Carajás, Séries Históricas 1997-2015.

Para demonstrar a queda da área de outras lavouras, o grafico 16 demonstra o


quase desaparecimento das lavouras de feijão e arroz em Canaã dos Carajás, de modo
que as lavouras de feijão, que representavam quase 30% do total das lavouras
municipais em 1997, representam irrisórios 0,17% em 2015 e as de arroz que chegaram
a representar 10% do total, em 2015 passaram a representar 0,12%.

GRÁFICO 16 – Área em Hectares das Lavouras de Feijão e Arroz em Canaã dos


Carajás, entre 1997 e 2015

Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal, Canaã dos Carajás, Séries Históricas 1997-2015.
Quando tomamos como referência a área de lavoura de outros produtos, como
abacaxi, cacau, café, coco, maracujá e pimenta do reino, também percebemos uma

271
queda brusca nas lavouras permanentes e temporárias destes produtos, com destaque
para as áreas de lavoura de coco que chegam a 150 hectares em 2001, mas desaparecem
em 2015, além das lavouras de café, cacau e pimenta do reino que tiveram algum tipo
de expressão em meados dos anos 2000, mas que também desaparecem das áreas totais
de lavoura municipal no ano de 2015 (gráfico 17).

GRÁFICO 17 – Área em Hectares das Lavouras Temporárias e Permanentes de


Abacaxi, Cacau, Café, Coco, Maracujá e Pimenta do Reino em Canaã dos Carajás,
entre 1997 e 2015

Fonte: IBGE, Produção Agrícola Municipal, Canaã dos Carajás, Séries Históricas 1997-2015.

É nesse cenário de desestruturação da produção familiar na agricultura que o


Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás ocupa hoje algumas áreas da
mineradora, pautado no argumento de que um conjunto de terras compradas pela
empresa estar em áreas do antigo Projeto de Assentamento Carajás, de responsabilidade
do INCRA, após a extinção do GETAT, sendo, por esse motivo, terras públicas.
Contextualizando melhor, não apenas os impactos na dinâmica fundiária de
Canaã dos Carajás e a desestruturação da renda dos trabalhadores rurais diante da
compra de terras pela mineradora, mas também o argumento de que a empresa está
comprando terras públicas, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do
município afirma:
A mineradora entendeu que aquela área ela poderia precisar e aí
começou a perturbação, pesquisando, furando, entrando (...). Então
depois disso aí, ela chegou a comprar mais de 50% do município e
onde as melhores terras ela chegou a desapropriar. As fazendas que
davam renda pros trabalhadores aqui, inclusive para os que foram
assentados. E aí foi ficando mais difícil. Então a gente entendeu que
essa área que ela comprou, tem um percentual muito grande por ela
ser área pública, inclusive nos lotes dos colonos, não deu tempo nem

272
do INCRA expedir o título para aquela pessoa, ainda hoje é de
ocupação, é terra pública mesmo e as pessoas venderam para a
mineradora (José de Ribamar, Pixilinga, liderança sindical em Canaã
dos Carajás, entrevista realizada em setembro de 2016).

Esse é o contexto em que surge um conjunto de acampamentos articulado por


camponeses, como forma de resistência aos processos de apropriação de terras pela
mineradora. Particularmente em 2015 são criados o acampamento Grotão do Mutum,
criado em junho, com 192 famílias, o acampamento Planalto Serra Dourada, criado no
mesmo mês, com 350 famílias, o acampamento Alto da Serra, criado em dezembro,
com 98 famílias e o acampamento Rio do Sossego, também criado em dezembro, com
48 famílias.
Toda dinâmica de produção camponesa desmobilizada pela aceleração dos
processos de compra de terra pela mineradora Vale, tentará se reerguer por meio dos
múltiplos acampamentos que serão, não apenas formas de resistência, mas,
fundamentalmente, um modo de acessar a terra para viver dela. Múltiplas trajetórias
camponesas se encontram em territórios densos de relações, abrigo e morada de quem
luta para transformar os entornos dos megaempreendimentos minerais em territórios de
vida e trabalho.
Os sentidos de resistência e sobrevivência, bem como o significado da terra
para esse conjunto de famílias é bem sintetizado pelo depoimento de uma camponesa do
acampamento Planalto Serra Dourada:
A gente veio desde o começo pra cá, e aí nós tamo aqui trabalhando e
criando, produzindo pra gente sobreviver, porque de emprego não,
porque emprego não tem. Nós não tem renda nenhuma! Até de bolsa
escola que eu tinha foi cortado. E aí a nossa renda é essa aqui. Nós
produz a farinha, a mandioca, vende e com ele nós tamo sobrevivendo
e tamo produzindo de novo. E a terra pra nós é muito importante,
porque nós não tem emprego, se vir o despejo, nós tamo todo mundo
rodado, porque em Canaã nem ponte tem pra gente ir pra debaixo!
(Liderança camponesa em Canaã dos Carajás, entrevista concedida ao
documentário Terra é Vida).

Na entrada deste acampamento em específico, algumas placas indicam e


representam sua expressividade. Na fotografia abaixo, no lado direito identificamos uma
placa direcionando para espaços de horta e venda de hortaliças, ao lado esquerdo, além
da faixa de identificação do acampamento, uma placa de proibição de entrada de
bebidas alcoólicas, drogas e pessoas não autorizadas, demonstrando a tensão que se vive
em seu interior.

273
FIGURA 15 - Acampamento Planalto Serra Dourada

Fonte: Bruno Malheiro, Outubro 2016.

Entretanto, em resposta à mobilização social das famílias acampadas, a


empresa Vale entrou na justiça municipal de Canaã dos Carajás, Curionópolis e
Parauapebas, municípios onde existem acampamentos em áreas compradas pela
mineradora, com várias liminares de reintegração de posse das áreas ocupadas, as quais
são sistematizadas no quadro 16.
QUADRO 16 – Processos de Reintegração de Posse ajuizados pela VALE em áreas
de interesse Mineral no Pará
Município (Comarca) Processos de Reintegração de Posse
Canaã dos Carajás 39
Parauapebas 3
Curionópolis 3
Fonte: Tribunal de Justiça do Estado do Pará, 2016. Organização Bruno Malheiro

Analisando os processos listados no quadro acima, os quais a Comissão


Pastoral da Terra (CPT) de Marabá acompanha, percebemos que, na grande maioria dos
casos, o documento comprobatório de posse da terra pela empresa é um Instrumento
Particular de Promessa de Compra e Venda, Cessão e Transferência de Direitos. A
empresa, portanto, em vários casos, compra a possibilidade de compra, paga ao
proprietário da terra um valor, mas este, continua na terra até o momento em que a
empresa manifestar o interesse de transformar o instrumento de promessa em

274
instrumento de compra e venda. Enquanto isso, as áreas continuam sendo usadas pelos
seus donos antigos. Geralmente há prazos bem estabelecidos, mas, na grande maioria
dos casos, os prazos são bem longos.
Dos 45 processos identificados foram protocolados na justiça entre 2015 e
2016, nem todos que encontramos registrados no site da Justiça Estadual do Pará, estão
nos arquivos da CPT. Dos processos que compõe os arquivos, identificamos, em 18
deles, o contrato de promessa de compra e venda como instrumento de comprovação da
propriedade do imóvel, sendo que em todos os casos o documento foi assinado, entre as
partes interessadas, entre os anos de 2005 e 2008. A cláusula sexta dos contratos,
estipula o prazo de entrega dos imóveis que, nesse caso, varia entre 1 e 15 meses, sendo
a cláusula quinta direcionada para as obrigações do vendedor de repassar ao comprador
todos os documentos necessários para a transmissão dos direitos de propriedade.
O que é interessante de se observar é que, processos protocolados em 2015 na
justiça, usarem contratos assinados, no máximo, em 2008 com prazo máximo de entrega
dos imóveis máxima de 15 meses, o que deixa um hiato de pelo menos 6 anos entre o
fim da validade dos contratos de promessa de compra e venda e a reivindicação de
reintegração de posse de áreas que a empresa alega na justiça a propriedade.
Na verdade, entre múltiplos contratos e processos se desenha outra estratégia
de contenção territorial da mineração, a saber, o relacionamento com médios e grandes
proprietários rurais por meio de estratégias jurídicas que permitem que a mineradora
garanta a propriedade da terra, mas também garanta a existência de mediadores nas
relações mais tensas com os camponeses. Dessa forma, os agricultores ocupam a áreas
da empresa, que responde criminalizando judicialmente as lideranças, entretanto, além
da criminalização, os conflitos mais violentos e as ameaças relatadas por vários
agricultores vêm dos ―antigos‖ proprietários das terras, fazendeiros da região que
também têm seus interesses diretamente atacados pelos processos de ocupação de terras
da empresa.
Com bastante precisão e clareza, Volnei, uma liderança camponesa da região,
sintetiza essa estratégia de contenção territorial por parte da mineradora:
São várias ocupações que têm em áreas que foram concentradas pela
Vale, que a mineradora tem comprado aqui. Então hoje a estratégia
dela está sendo essa, ela tem tentado desmobilizar os movimentos, no
caso despejar as áreas de acampamento e ocupação e hoje ela tá
passando para fazendeiros, ou seja, tá tirando de quem produz, de
quem planta, de quem trabalha com a terra e passando essas terras
para grandes empresários daqui da região (...). A gente entende que

275
isso nada mais é que uma grande estratégia para tirar as ocupações das
áreas que são agricultáveis hoje no município de Canaã (Valnei,
liderança camponesa em Canaã dos Carajás, entrevista realizada em
novembro de 2017).

Nesses termos, consolida-se uma relação entre mineração e agropecuária com


vistas à contenção dos territórios da mineração. Se a compra direta de terras pela
mineradora significa uma estratégia de segurança corporativa e acesso às áreas para a
realização dos momentos metabólicos da mineração, as relações estabelecidas com
frações de uma oligarquia agrária, através de alianças estratégicas, não apenas, como
adverte Volnei, desmobiliza pequenos agricultores, mas encaminha o tratamento dos
antagonismos à mineração por uma gramática da violência, da truculência e da ameaça,
tão característica nos tradicionais conflitos fundiários. Há, portanto, o estabelecimento
de relações para neutralização de oposições à mineração. A mineradora sai de cena para
outras estratégias se consolidarem.
Ouçamos, nesse momento, novamente seu José de Ribamar que, ainda em
2016, relatava-nos as constantes ameaças que recebia e continua recebendo. Diz ele:
Quando surgiram essas ocupações ai, eu recebi uma visita aqui em
casa meio estranha. De um fazendeiro com uma patrulha de policiais
(...) Aí eles me deram uma pressão danada aí, entraram na minha casa
procurando arma e aí eu fiquei assim meio constrangido, de uma
forma que eu até debati com o fazendeiro, cheguei a falar com ele:
―não te conheço, não sei de onde você vem, não sei quem você é,
como é que você se desloca lá do inferno da pedra pra chegar aqui na
minha casa, no meu quintal pra querer me intimidar, trazer polícia
aqui, eu não devo!‖ Então tivemos aquele debate (...) Aí ele me
ameaçou. E aí, já que você ta me ameaçando eu vou ter que tomar
minhas providências né (...). Depois disso aí eu fiz um Boletim de
Ocorrência, tivemos com os direitos humanos em Brasília (...). Por eu
ter sofrido essas ameaças eu não sou muito assim de ficar em aberto,
ficar saindo qualquer hora do dia e da noite. Quando vai leva um
parceiro. E assim eu não fico muito a vontade. Às vezes chegam
alguém ali, eu preciso saber quem é. Telefone toca, eu preciso
verificar quem é (José de Ribamar, Pixilinga, liderança sindical em
Canaã dos Carajás, entrevista realizada em setembro de 2016).

As ocupações a que seu Pixilinga relata são todas em áreas da mineradora


Vale. Entrementes, ele recebe uma visita ameaçadora, em sua casa, de um fazendeiro
acompanhado da polícia. As conclusões são um tanto óbvias, entretanto, todas as linhas
que aqui foram e ainda serão escritas, não conseguirão descrever um fato objetivo
dessas conclusões: a tensão absoluta por parte dos camponeses que hoje estão nos
acampamentos diante, primeiro, da ameaças de despejo por meio das liminares de

276
reintegração de posse acatadas pela justiça do município - mesmo as organizações
defendendo que os casos fossem transferidos para a vara agrária - e as ameaças
constantes de morte que várias lideranças hoje convivem.
Quando a crítica não pode ser contida, nem mesmo criminalizada, a gramática
do desmonte dos antagonismos à mineração assume a face conhecida da violência no
campo, fazendo a contenção territorial ganhar os frios contornos do medo, a segurança
se transformar em clima de ameaça generalizado e o território se expressar como uma
trincheira agromineral.
Mas se a contenção territorial torna-se estratégia central de controle da
possibilidade de outros usos não desejáveis aos projetos minerais, estimulando usos que
também contenham os processos de apropriação que signifiquem riscos à mineração,
também se precisam controlar fluxos, uma vez que o metabolismo social dos processos
minerais exige a realização veloz da circulação de mercadoria para que se realizem os
lucros extraordinários. É pelos meandros de um trem que outros modos de conter se
realizam.

7.3. CANALIZAR OS FLUXOS E CONTER A MOBILIDADE


Se o uso econômico do território como recurso ativa estratégias de contenção
territorial, os fluxos de minérios também farão com que a corporação mineradora
construa formas específicas para garantir a circulação e exportação dos minérios
extraídos, constrangendo a mobilidade cotidiana de múltiplas comunidades.
Nesse sentido, uma estratégia de contenção territorial se articula ao transporte
ferroviário que, nesse sentido, cria um circuito territorial através da ferrovia que recorta
territórios e reestrutura o cotidiano e a vida de grupos inteiros. Os 892 km da estrada de
ferro que está sendo duplicada, além dos 101 Km de extensão do ramal ferroviário até
Canaã dos Carajás, não apenas passam por outros territórios, definem um eixo de
circulação, ou melhor, criam um duto para a canalização do minério de ferro que, em si,
impede a realização de outros fluxos65. Crianças deixam de ir à escola enquanto o trem
passa, pessoas são atropeladas na travessia da estrada de ferro, comunidades são
recortadas e o tempo do trem redefine os ritmos cotidianos. Nada pode impedir o trem
de passar, qualquer outro tipo de fluxo distinto deve ser contido. Há, portanto, uma

65
Haesbaert (2014, p. 227) alerta para a forma de contenção territorial com efeito de barragem
demonstrando a mobilidade diferencial que cria, uma vez que ―o espaço é composto por arenas e dutos
seguros, integrando múltiplos territórios em redes de alcance planetário, para outros o espaço é uma
sucessão de constrangimentos‖.

277
desigualdade de condições que posiciona de forma diferente os atores sociais diante dos
fluxos, ou seja, as geometrias do poder, no sentido expressado por Massey (2008), são
distintas entre a empresa Vale e quem mora nos lugares cruzados pela ferrovia, uma vez
que a fluidez do ferro é a imobilidade de muitos.
Assumimos aqui uma contradição básica para referenciar e tornar mais preciso
esse processo de contenção territorial. Falamos da diferenciação entre fluxos
econômicos, que se definem por uma racionalidade corporativa, fortemente econômica,
como um modo de realização da circulação de mercadorias e a mobilidade cotidiana,
que aqui não é compreendida apenas como o deslocamento de pessoas, mas como uma
ação social de produzir espaços, significar lugares, definir territórios a partir de
movimentos cotidianos necessários para a realização da vida, uma vez que, como
lembra Bonnemaison (1981) a territorialização sempre engloba processos de
enraizamento e mobilidade, ou seja, é um conjunto de itinerários e de lugares. Essa
distinção que não carece de aprofundamento conceitual é apenas para dar expressão às
geometrias de poder para o caso específico que referencia esse trabalho, quando para
que um trem passe vidas inteiras sejam i-mobilizadas.
A circulação dos trens é de tal importância que as ações mais duras de
criminalização de lideranças de movimentos sociais ocorrem quando a ferrovia é, de
algum modo, obstruída. Já vimos aqui que boa parte do conteúdo das estratégias de
desmobilização, resignificação e antecipação à crítica, referem-se à gestão das
populações dos entornos da ferrovia para minimizar a possibilidade de processos de
interrupção dos fluxos minerais. A maioria dos sujeitos políticos hoje processados pela
Vale, o são, por conta de representarem, para a empresa, um risco relacionado à
ferrovia, uma vez que todos os interditos proibitórios, instrumento jurídico amplamente
usado, bastante detalhado em capítulos anteriores, sempre controlam a posição dos
sujeitos em relação à estrada de ferro, impedindo-os de se aproximar do trem.
Essa forma de contenção é tão essencial para as estratégias da empresa que
muros e cercas estão sendo construídas às margens dos trilhos, notadamente nos lugares
com maior densidade demográfica, ao longo das mais de 100 comunidades por onde ele
passa. O Plano Básico Ambiental construído para os processos de duplicação da
ferrovia denomina essa ação de ―vedação da faixa de domínio‖ e assim descreve as
intervenções nesse contorno:
Tratam-se de dispositivos que demarcam a faixa de domínio da Vale e
que garantam a segurança operacional ao longo da ferrovia. Para a

278
vedação da faixa de domínio ao longo do empreendimento, calcula-se
a instalação de 1.338 km de cerca, com quatro fios de arame liso (16
BWG) e mourões de concreto triangulares com altura de 1,60 m. Em
alguns trechos da ferrovia optou-se pela vedação com muros de blocos
de concreto, num total de 38.707 metros (AMPLO, 2011, p. 191).

Vedar a faixa de domínio é uma sub-seção do Plano Básico Ambiental, da


Seção ―Obras de Contenção‖, demonstrando a preocupação estrutural em conter outros
fluxos e usos para as áreas que se definiram como faixas de domínio, ou seja, que
demarcam o circuito territorial da mineração. Como demonstra a figura 16 tirada do
cruzamento da Estrada de Ferro Carajás com a rodovia Transamazônica em Marabá. De
cima do viaduto dá para observar não apenas o trajeto do trem, mas os muros de
contenção construídos em ambos os lados da ferrovia. Ao lado direito, já quase coberto
pela vegetação, é possível observar a contenção, que, por sua vez, é mais nítida no lado
esquerdo da foto, onde o muro construído se destaca na paisagem contornando a
ferrovia.
FIGURA 16 – Muros de Contenção na Estrada de Ferro Carajás em Marabá/PA

Fonte: Bruno Malheiro, Janeiro 2018.

A figura 17, em outra escala, revela bem mais que a primeira. Nela um menino
literalmente em cima dos trilhos, brinca com uma pipa azul. Pela falta de vento ele
precisa de um caminho a percorrer correndo para que sua pipa alcance o céu. A correria,
entretanto, por conta de uma linha de transmissão que passa por sobre sua casa e pelo
espaço reduzido entre as casas só pode ser realizada no espaço da ferrovia. Mas o muro
construído, ao qual ele está de costas, demonstra claramente que sua presença ali se quer
evitada. Mais que isso, sua brincadeira nos trilhos do maior trem do mundo, torna-se um

279
risco de vida, pois sua corrida ao encontro da alegria e realização não pode ser realizada
para que outros fluxos passem, para que os minérios cheguem ao seu destino final, a
brincadeira tem de ser interrompida para que o capital se realize. O risco, categoria tão
comum no vocabulário empresarial, visto pelo ângulo das comunidades em relação à
empresa, geralmente assume os contornos da própria vida, a mineração, nesses termos,
realiza-se como um risco à vida das pessoas.
Figura 17 – Quando brincar é um risco, Bairro Araguaia, Marabá/PA

Fonte: Alexandra Duarte, Julho de 2016.


A mobilidade espacial ao longo dos 892 km da ferrovia duplicada mais os 101
km de sua extensão, até o projeto S11D, não significará a mesma coisa para as mais de
100 comunidades que são atravessadas por esse fluxo econômico. A estrada de ferro
significa, portanto, i-mobilidade de distintos modos e o não poder se deslocar também
assume múltiplos sentidos, que serão mais bem explorados nos capítulos posteriores
desse trabalho. Da brincadeira das crianças do bairro Araguaia em Marabá aos
caminhos na floresta para os indígenas Gavião na reserva Mãe Maria, do contato entre
quilombos em Itapecuru-Mirim no Maranhão ao ir e vir de alunos nas múltiplas
comunidades à beira dos trilhos, dos caminhos de caça e silêncio dos Awá-Guajá aos
simples caminhar até a casa de um conhecido, os fluxos do minério representarão um
modo de interrupção, de espera, de imposição de um ritmo, de suspensão do cotidiano,
de ampliação do medo e dos riscos à vida, enfim, de i-mobilização de povos e
comunidades inteiras.

280
7.4. MINERAÇÃO E DESTERRITORIALIZAÇÃO
Os processos de geração de valor por meio da mineração que esse trabalho
enfoca não se realizam sem mudanças drásticas nos territórios aos quais eles se inserem.
Não estamos dissertando, desse modo, sobre processos em que a finalidade da
acumulação se justifica por meio da alienação do trabalho ou mesmo pela difusão de
uma ideologia de desenvolvimento e progresso. A empresa não pergunta diretamente às
pessoas se elas querem ou não a mineração em seus territórios, os projetos
simplesmente se efetivam, daí a preocupação das corporações não se direcionar, como
já descrito aqui, à decisão dos povos e comunidades em relação aos
megaempreendimentos minerais, mas à gestão destes para se fazer valer os
megaprojetos que se quer levar a cabo. A lógica da espoliação pela via da mineração,
nesses termos, exige métodos abruptos, nada idílicos como lembraria Marx, uma vez
que só se realiza pela i-mobilização de largas áreas para a realização de seus momentos
metabólicos.
Não há mineração sem processos de territorialização, sem controle das terras e
dos recursos, sem a criação de circuitos territoriais por sistemas logísticos, sem o
constrangimento concreto a múltiplos territórios outros. Não há mineração, ainda, sem a
expropriação de bens, recursos, acessos e caminhos, sem, portanto, desapropriações,
expulsões, desapossamentos, enfim, desterritorializações.
Desterritorialização aqui assume o sentido, em tons mais gerais, inspirado em
Haesbaert (2004), de quebra das mediações espaciais que garantem o exercício da vida
em suas várias feições em um dado espaço socialmente produzido. Isso pode significar
encurtar, barrar, canalizar e remover caminhos, itinerários e mobilidades; pode
significar expulsar, desapropriar, espoliar e retirar do lugar; e também pode significar
fragilizar, minar e desmobilizar as condições objetivas de reprodução social dos grupos
em dado espaço.
Pensamos como Haesbaert (2004, 2014) que todo processo de
desterritorialização pressupõe um processo de reterritorialização, daí falarmos de des-re-
territorialização. Entretanto, assumimos aqui a perspectiva de demonstrar os processos
hegemônicos a partir da expressão de suas violências e violações, para que as categorias
também assumam um sentido politizador, por isso, enfatizar a desterritorialização é,
também, marcar politicamente um processo de violação que, por vezes, é elemento
fundante para a politização e construção de antagonismos à mineração, como
enfatizaremos nos capítulos subseqüentes a esse. Marcar a desterritorialização não é

281
esconder a reterritorialização, é destacar a violação sem esquecer-se da capacidade de
reconstrução e redefinição dos povos.
Encontramos três meios gerais de realização desses processos de
desterritorialização, basicamente tomando como pano de fundo as relações estabelecidas
a partir do projeto S11D, a saber: desapropriações por meio de acordos diretos com a
empresa, envolvendo indenizações ou compra direta da terra; expulsões por meio do
cumprimento de processos judiciais de reintegração de posse, envolvendo a força
policial; e a fragilização das condições objetivas de vida de povos e comunidades dos
entornos da mineração, através da proliferação de processos de poluição industrial ou
mesmo por meio de passivos ambientais que afetam diretamente as condições de
reprodução das comunidades.
O primeiro processo refere-se a desapropriações diretas realizadas pela
empresa Vale, ou seja, a retirada física de comunidades e povos de seus territórios. Esse
processo pode ser percebido na dinâmica de desapropriações realizadas pela empresa de
comunidades nas zonas de extração, no corredor da estrada de ferro e, também, nas
zonas de expansão portuárias. Tomaremos aqui alguns casos exemplares para
demonstrar essas desapropriações: o caso da vila de Racha Placa e do Projeto de
Assentamento Cosme e Damião, no município de Canaã dos Carajás; a dinâmica de
negociação com comunidades afetadas pela ferrovia no bairro Araguaia em Marabá e a
desapropriação de moradores da vila de Boqueirão em São Luis por conta da construção
do Pier IV ligado ao terminal de Ponta da Madeira.
Os dois primeiro casos, a vila de Racha Placa e o Projeto de Assentamento
Cosme e Damião, ressaltam as desapropriações por conta das zonas de extração e
beneficiamento do minério. As duas vilas estão localizadas no mapa 5, com interessante
destaque para a identificação da vila de Racha Placa como Mozartinópolis, nome
oficialmente reconhecido para apagar o registro e significado que o primeiro representa.
Vale lembrar, antes de tudo, que a atividade de compra de terras pela empresa
nos entornos das duas vilas mencionadas já havia retirado algumas relações
fundamentais para a sobrevivência das comunidades, uma vez que, seja pela prestação
de serviço em fazendas, seja por relações em termos de produção, comercialização e
transporte de produtos agrícolas, os entornos rurais e as relações com pequenos e
médios proprietários eram estruturantes para a dinâmica de trabalho, dinâmica esta
interditada pela força de concentração fundiária da empresa que, nesses termos, já pode
ser considerada uma primeira forma de desterritorialização dos sujeitos.

282
Para a efetivação do projeto S11D a empresa Vale encontrou no caminho para
onde foram planejadas as estruturas de beneficiamento do minério, a vila de Cristiane
Jardim que nos apresenta, com um depoimento emblemático, esse capítulo. Já
mostramos anteriormente a passagem de vila Mozartinópolis, como constam nos mapas
da empresa à vila Racha Placa, entretanto, mesmo tendo uma história de resistência aos
processos de regulação do uso do território pela mineradora, pela magnitude do projeto
S11D e suas forças de constrangimento territorial, já em 2008 começam os processos de
desestruturação social, cultural e econômicos da vila. A dinâmica de individualização
das negociações e as incursões para promover desentendimentos internos, já expostos
nesse trabalho com os processos de desmobilização da crítica, foram bastante
contundentes na vila, com alguns destaques que merecem uma menção.
Antes, porém, mostramos uma imagem da vila antes de sua total remoção.
Figura 18 – Vista Aérea da Comunidade Racha Placa antes da remoção

Fonte: REIS (2014).

A força desterritorializadora da empresa e a falta de escolha frente ao projeto


que se anunciava foram o mote para a definição das formas de desapropriação
utilizadas. Falamos isso, pois ao fechar acordos individuais, a empresa não destruía por
completo as casas e os terrenos partes do acordo, desestruturava as construções internas,
mas deixava marcas estruturais externas, sobravam, portanto, algumas paredes, algumas
formas a lembrar que das ruínas restantes, um dia existira uma casa. As conversas que

283
tivemos, nesse momento na vila, destacavam o ―terror psicológico‖ nos vizinhos como
causa central daquela curiosa desestruturação das construções, além de constantes
ameaças vindas de funcionários da empresa Diagonal, já apresentada com detalhes em
momentos anteriores, quase sempre em torno da vinda de vários homens ao projeto o
que poderia acarretar aumento da prostituição e pelas constantes ameaças de levar os
acordos ao campo judicial.
Realmente conviver com ruínas, estar ao lado de construções desmobilizadas,
ver vizinhos saindo e suas casas virando destroços e entulho definitivamente não é um
convite para ficar, senão uma pressão para também sair depressa.
As duas fotografias a seguir denunciam esse exato momento de desapropriação
por acordos diretos com a empresa. Nesse caso, embora pareçam dinâmicas tranqüilas,
por serem acordos diretos, sem a mediação judicial, o caso da vila do Racha Placa,
demonstra que não se trata de um acordo real, pois apenas uma das partes define e
decide o rumo das coisas. Quando não se tem o direito de ficar, o que parece um acordo
é, em realidade, um modo de imposição e retirada, uma desapropriação com caráter
claramente espoliatório, pois o sentido da desterritorialização é a conquista do acesso
aos territórios de um empreendimento econômico que um dia giraram em torno de outra
racionalidade, de outras formas de uso e pertencimento.
De fato, nossa visita à vila, junto com a Comissão Pastoral da Terra, em agosto
de 2012, antes mesmo desse trabalho tornar-se um projeto mais bem acabado, na
verdade, acabou se constituindo em um registro histórico da comunidade.

284
FIGURA 19 – Vila de Racha Placa, Agosto de 2012

Fonte: Bruno Malheiro, 2012.

FIGURA 20 – Vila de Racha Placa, Agosto de 2012

Fonte: Bruno Malheiro, 2012.

Na primeira fotografia as cercas que demarcam o terreno se mantêm, além das


paredes externas da casa, sendo que todas as divisões interiores e o próprio telhado que
denotaria alguma completude à casa, foram desfeitos. Na segunda fotografia o

285
interessante de se notar, além do estado em escombros que a casa apresenta, com
fragmentos de paredes a lembrar sua existência, é a casa ao lado que, naquele momento,
ainda não tinha entrado no rol das negociações da empresa. A existência de uma
vizinhança que persistia em manter relações com o lugar talvez explique o estado da
casa negociada, demonstrando com a força estética da paisagem todos os significados
que possam adquirir o conceito de terremoto, emitido, como um mote de compreensão
daquelas relações, por seu Antônio Gustavo, que já lembramos aqui, bem nas
proximidades da casa da segunda foto.
As negociações culminaram na construção de um Projeto de Assentamento
Américo Santana a partir de um acordo entre a empresa e o INCRA para onde algumas
famílias foram remanejadas em acordo que envolveu, além da entrega de lotes de cinco
alqueires e a construção de casas em padrões do INCRA e um salário mínimo mensal
durante o um tempo de adaptação ao novo local (DIAGONAL, 2012).
Se o Racha Placa tornou-se um projeto de assentamento em uma particular
relação entre Vale e INCRA, o caso da vila Sol Nascente, que já era um assentamento
rural chamado Cosme e Damião é bastante expressivo também para termos a exata
noção dos meandros dos processos de remoção.
Nesse caso, a empresa utilizou-se do instrumento particular de servidão, bem
como outros pactos realizados com o INCRA para transferir uma área pública, um
projeto de assentamento inteiro, para a propriedade privada da mineradora,
demonstrando claramente que, em termos de mineração, quase sempre, formas
inimagináveis, em termos legais, de apropriação de terras se efetivam sob a salvaguarda,
ainda, do interesse público, expressando que a sobreposição de sentidos de propriedade
em áreas de interesse minerário, mesmo que estas sejam vinculadas à logística do
empreendimento, garantem o acesso à terra às empresas mineradoras. Como a própria
empresa relata:
Com isso, foi assinado Instrumento Particular de Instituição de
Servidão e outros Pactos entre Vale e o INCRA na data de
17/07/2012, onde estão definidas as obrigações e responsabilidade da
Vale e do INCRA para o processo de realocação da Comunidade
Cosme e Damião. Também por meio deste o INCRA transmite o
direito de posse das propriedades da área Sol Nascente para a Vale. A
partir de então, a empresa inicia o processo de realocação das famílias
do PA Cosme e Damião para Fazenda Santa Marta (Vale, 2016, p. 5)

O acordo de remanejamento a partir da compra de uma nova fazenda que,


então, tornar-se-ia um novo projeto de assentamento, demonstra o grau de influência

286
fundiária da mineradora como elemento a expressar sua força desterritorializadora, daí
trazermos para esse debate o caso específico da vila Sol Nascente.
Entretanto, ainda se tratando de acordos entre a empresa e as comunidades para
remoções, esse processo não ocorre apenas nas áreas de extração e beneficiamento de
minério, também precisa ocorrer no corredor dos fluxos minerais, principalmente com a
duplicação da Estrada de Ferro Carajás.
Assim como aconteceu nas vilas Sol Nascente e Racha Placa, as consultorias
ambientais contratadas pela empresa, no caso anterior a Diagonal, no caso de algumas
comunidades às margens dos trilhos a empresa Synergia, encaminham, juntamente
como o departamento de Relações com Comunidades da mineradora, os processos de
negociação e remoção das famílias.
O Plano Básico Ambiental das obras de duplicação da ferrovia, na seção de
análise e avaliação das alternativas locacionais ao empreendimento, define alguns
critérios de relevância para essa avaliação66, de modo que a remoção de pessoas se
enquadra no critério ―quantitativo de desapropriação/deslocamento populações‖, que,
por sua vez, é caracterizado pelo plano como não relevante (ao lado de critérios como,
por exemplo, interferências em terras indígenas, assentamentos, comunidades
quilombolas e comunidades tradicionais), a ponto de mudanças em termos operacionais
(AMPLO, 2011).
É nesse particular olhar a um corredor em que povos e comunidades, bem
como os moradores de seu entorno assumem papel irrelevante diante de uma obra, que
todas as remoções são calculadas pelo mesmo Plano Básico Ambiental por metros
cúbicos de concreto a serem demolidos, ou nos termos do Plano:
São previstas remoções ou realocações de edificações e outras
benfeitorias existentes na área de intervenção do empreendimento.
Dessa forma, para a duplicação dos 47 trechos de linha singela está
prevista a demolição de 4.232 m3 de concreto armado, 10.592 m3 de
concreto simples, com a remoção de 359.054 m de cerca de mourão de
madeira e arame liso e 26.398m de cerca de concreto e arame liso
(AMPLO, 2011, p. 171).
Entretanto, se observarmos o Estudo de Impacto Ambiental do ramal
ferroviário, percebemos, na verdade, a existência de um programa de negociação e
66
Os critérios são supressão vegetal, interferência em Área de Preservação Permanente, Interferência em
corredores ecológicos, Volume de material movimentado em terraplanagem, escavação/desmonte de
rochas, Intercepção/proximidade de Unidades de Conservação, Intercepção em Áreas Prioritárias para a
Conservação da Biodiversidade, Quantitativo de desapropriação/deslocamento populações, Intercepção
em terras Indígenas, assentamentos, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais,
Aproveitamento/Intercepção em infraestrutura existente, Custo financeiro das obras, Sensibilidade aos
processos e riscos morfodinâmicos.

287
aquisição de terras pela empresa. Não podemos esquecer os 2.132.117,38 metros
quadrados de áreas adiquiridas para a duplicação (AMPLO, 2011) e que a negociação
geralmente se processa pela compra do imóvel.
O Programa de Aquisição e Negociação de Terras tem como
finalidade a desocupação de áreas que serão necessárias para a
construção do RFSP [Ramal Ferroviário Sudeste do Pará]. Tendo em
vista atender a essa necessidade e como compromisso minimizar as
interferências sobre as vidas das famílias no entorno do
empreendimento, este Programa foi concebido em duas frentes: uma
trata da aquisição e indenização das famílias presentes na faixa de
domínio. Outra frente é voltada para o tratamento das questões sociais
daí emergentes, envolvendo, quando necessário, ações relativas à
execução do projeto de desapropriação, cadastramento da população
diretamente afetada e outras que possam subsidiar o processo de
negociação e desapropriação (ARCADIS TETRAPLAN, 2011, p.
1207).

Em linhas gerais, seja pela duplicação, seja pela construção do ramal


ferroviário, há a necessidade por parte da empresa de construir acordos para deslocar
pessoas. Temos, portanto, pela linha férrea um vetor de desterritorialização pela
definição do circuito territorial de escoamento do minério.
Logicamente que, como vimos anteriormente nas estratégias de desmobilização
da crítica, acordos servem mais como instrumento de desmobilização do que
propriamente uma cooperação de confiança mútua por parte da empresa, não será
diferente pelos caminhos da estrada de ferro, como nos lembra seu Valdir Gonçalves,
morador do Bairro Araguaia, um dos bairros diretamente afetados pela duplicação no
município de Marabá:
Quando veio a duplicação eles marcaram uma audiência pública, que
não foi audiência nenhuma, foi uma reunião pública lá no casarão para
apresentar o projeto da duplicação. E eles iam remover as pessoas (...).
Fizeram um convênio com a prefeitura para tirar 158 famílias que
moravam entorno da ferrovia. Andaram nas casas, fizeram cadastro,
removeram, negociaram com pessoas e não cumpriram. Hoje a
maioria das pessoas está com ação judicial com auxilio da defensoria
pública. Conseguiram tutela antecipada naquelas casas muito
próximas à ferrovia que não havia condições das pessoas morarem lá.
Mas a mineradora sempre se recusa a cumprir acordos que ela fizera
com o município de Marabá. Já fizemos a denúncia em todas as
esferas que nós poderíamos fazer, mas você ouve aí esse problema é
constante (Valdir GONÇALVES, morador do bairro Auzira Mutran,
Marabá, entrevista realizada em setembro de 2016).

Entre descumprimento de acordos e intensas contradições e negociações, os


processos de remoção ocorrem de um modo ou de outro como ressalta Valdir Gonçalves

288
em seu depoimento, demonstrando a lógica desterritorializadora da empresa pelo
circuito territorial da linha férrea.
Mas para se completar os momentos metabólicos do empreendimento,
particularmente o projeto S11D que está no centro da análise, também é preciso ampliar
as instalações portuárias e isso, em si, também expressa-se como modo de
desapropriação.
A construção do Pier IV no Terminal de Ponta da Madeira em São Luis no
Maranhão, também assume força desterritorializadora para a comunidade de pescadores
artesanais do Boqueirão, que já havia sofrido os impactos da construção do Porto de
Itaqui entre 1972 e 1976 e do terminal Marítimo de Ponta da Madeira em 1986, sendo,
inclusive remanejada por conta desses projetos, mas voltando aos seus territórios entre a
praia e o mar. Entrementes, o Pier IV construído para navios de até 394 mil toneladas
novamente assume papel de retirada dos moradores da comunidade que, inclusive,
chegam a receber um valor financeiro da empresa para aprenderem outra profissão
(MOLLER, 2011).
Até aqui, entretanto, falamos de processos que envolveram acordos e
programas da própria empresa em termos de desestruturação de outros territórios, mas é
preciso também demonstrar uma segunda estratégia que é a judicialização dos processos
de remoção.
Assim como várias lideranças são criminalizadas em termos de processos civis
e penais, como descrevemos nas estratégias e empresariais de antecipação à crítica,
também territórios diretamente ligados à empresa quando ocupados de alguma forma,
usa-se das vias judiciais para a sua desocupação.
Poderíamos falar das variadas vezes em que a polícia militar foi acionada para
desobstruir a ferrovia por conta de processos de ocupação no cumprimento de mandatos
de reintegração de posse, mas o que aconteceu em 03 de fevereiro do ano de 2016, no
acampamento Grotão do Mutum em Canaã dos Carajás, expressa bem essa combinação
entre empresa, justiça e polícia para a desterritorialização de comunidades.
O despejo é resultado de um conjunto de relações. Ele é, primeiro, a
judicialização de um conflito em que uma das partes criminaliza a outra por suas ações,
nesse caso, a criminalização dos processos de ocupações de terras da empresa Vale por
parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás, onde se consolidou,
ainda na década de 1980, o projeto de assentamento Carajás pelo GETAT. Mas o
despejo também é a forma em que a justiça acata os pedidos de reintegração de posse,

289
nesse caso, através de uma Comarca Municipal de Canaã dos Carajás - sem qualquer
preocupação de tratamento do caso como conflito agrário, o que o encaminharia à vara
agrária – acatando os argumentos e documentos do denunciante quanto à comprovação
de propriedade e emitindo a ordem de despejo. Mas ainda assim, o despejo é operado
pelas forças de segurança do Estado, nesse caso a Tropa de Choque de Missões
Especiais da Polícia Militar do Pará67. Nessa imbricação entre empresa, justiça e polícia,
todas as famílias do acampamento Grotão do Mutum foram expulsas (figura 21), tendo
de se abrigar em um campo de futebol a cerca de dois quilômetros do antigo
acampamento, todas as plantações existentes foram destruídas.
FIGURA 21 – Remoção das Famílias do acampamento Grotão do Mutum

Fonte: JUSTIÇA NOS TRILHOS, 2016.


Essa forma brusca de desterritorialização não é menos violenta que o terceiro
processo gerador de outra dinâmica desterritorializadora, a proliferação de processos de
poluição industrial e passivos ambientais que afetam diretamente as condições de
reprodução das comunidades.
Expressão precisa deste terceiro modo de desterritorialização é a fumaça,
poeira e poluição que assolaram as condições mínimas de permanência dos moradores

67
Um fato decisivo acerca da atuação da polícia no tratamento de questões agrárias no sudeste do Pará é a
implementação neste ano de 2018, a qual já estava planejada desde 2014,em Marabá, da a 1ª Companhia
de Missões Especiais (Cime), no sentido de descentralizar as tropas que se concentravam em Belém.
Prevista para contar com 110 policiais, a tropa irá operar em conflitos agrários e policiamento bancário de
alto risco. Ver em http://www.pm.pa.gov.br/index.php/artigos-menu/383-companhia-de-missoes-
especiais-sera-instalada-em-maraba.html

290
da comunidade do Piquiá de Baixo, localizada há 12 km da cidade de Açailândia no
Maranhão desde meados da década de 1980 e que hoje luta pelo seu reassentamento.
A comunidade cortada pela Estrada de ferro Carajás e vizinha do parque
industrial de Açailândia, tem larga trajetória de resistência com as guseiras e com a
empresa Vale que fornece o ferro para as siderúrgicas. Os moradores de Piquiá de Baixo
vivem de portas e janelas fechadas para que o pó de ferro, proveniente das várias
guseiras no seu entorno, não provoque mais problemas respiratórios. As casas, cobertas
de uma névoa avermelhada, perdem a cor, não há nada que escape à poluição, que não
apenas cobre muros e fachadas, mas as possibilidades de um cotidiano colorido de vida.
Não há brincadeira de criança que não seja interrompida por uma tosse, não há roupa
estendida no varal, que não tenha as marcas do ferro, não há música no rádio que não
seja atravessada pelo barulho do trem. O vento que era para trazer refresco a um lugar
tão quente, traz todas as impurezas de rejeitos industriais para dentro de casa. A vida
vira agonia.
FIGURA 22 – Siderúrgicas do Pólo Industrial de Açailândia vistas de Piquiá de
Baixo

Fonte: Bruno Malheiro, setembro 2016.


A fotografia acima (figura 22) demonstra bem do que estamos falando. Ao
fundo o conjunto de siderúrgicas e toda sorte de fumaça e poeira que emitem na vizinha
comunidade de Piquiá de Baixo. Ao centro da imagem três caminhões de carvão
denunciam um modo particular de transformação do ferro em ferro-gusa, por meio da

291
utilização do calor do carvão que, nesse caso, vêm das extensas plantações de eucalipto,
que hoje tomam boa parte do Maranhão, além, logicamente, de áreas de
desmatamento68.
As siderúrgicas, ao se implantarem, retiraram as condições básicas de vida
daquelas pessoas. E a conquista da saída do território, a luta pelo reassentamento,
embora possa soar estranho, não o é, pois se torna o único modo de continuar a existir.
E é por esses passivos ambientais que uma comunidade luta pela sua reterritorialização
em um lugar em que a vida seja possível.
Entre a extração, o transporte e a exportação, cada momento metabólico da
mineração para se realizar também quebra outros metabolismos sociais, outras formas
de relação com a natureza, territórios outros, então, precisam ser des-locados por uma
empresa que os torna dispensáveis.

7.5. REGIMES DE CONTENÇÃO E DESTERRITORIALIZAÇÃO


Toda a dinâmica de exploração mineral apresentada aqui foi lida pelas práticas
de exercício do poder por parte de uma grande corporação. Dois regimes geográficos
definiram ângulos privilegiados de análise. Um primeiro que nos levou ao
atravessamento de escalas de realização dos processos minerais, entre solicitações de
mercado e do Estado, entre cenários geopolíticos e capacidade de interferência político
e econômico de uma mega corporação, entre circuitos globais de um capitalismo
financeirizado e estratégias territoriais corporativas. Um segundo que nos levou à escala
de realização da acumulação, à racionalidade corporativa de gerir territórios, populações
para fazer fluir riqueza.
Os regimes geográficos corporativos lidos são, em si, a geograficidade de
processos de acumulação por espoliação.
Geralmente as leituras, principalmente no campo da geografia agrária, quando
se indagam em relação a fenômenos que se inscrevem nos processos de acumulação por
espoliação, giram em torno de dois campos de problematização: o primeiro é a
transformação da terra em mercadoria e o segundo é a transformação do campesinato
em proletariado. O primeiro refere-se à transição dos regimes de propriedade comunais,

68
O minério extraído em Carajás, transformado em Açailândia produz uma cadeia de relações perversas
relacionadas à siderurgia, que, por sua vez, desterritorializa através de dois processos combinados, pelos
passivos ambientais que deixam as siderúrgicas nas comunidades de entorno e pelas estratégias de
apropriação do carvão, seja através do plantio de eucalipto, seja pelo desmatamento, seja pela apropriação
do coco inteiro da palmeira do coco babaçu.

292
da terra de trabalho, para a propriedade privada, a terra de negócios, e o segundo
demonstra o rearranjo de classe que os processos de acumulação primitiva
desencadeiam, ressaltando a expropriação dos meios de existência do campesinato
como uma maneira de criar condições para a existência de um tipo de sujeito que,
desprovido dos meios de produção e consumo, precisam vender sua força de trabalho
em troca de um salário para sobreviver.
Sem ignorar a validade destas leituras fizemos um caminho um tanto diferente
para tentar olhar a terra e o sujeito numa única maneira de pensar o território, tomando
como referência as práticas, como ações sociais que interferem em outras ações, pelas
quais chegamos à compreensão dos processos de acumulação por espoliação como
processos de territorialização.
Ter como partida a racionalidade empresarial de pensar o espaço nos levou a
um conjunto de relações, estratégias e dispositivos que desenharam processos de
territorialização corporativa guiados por uma lógica de gestão de riscos imediatos ao
funcionamento de todos os momentos metabólicos necessários para a realização dos
processos de acumulação. Dessa forma, desmobilizar, ressignificar, antecipar, são
verbos que começam a traduzir modos de gestão, encaminhando ações de conter usos e
fluxos, assim como de desapropriar, quando assim necessário. Desse modo, podemos,
então, ler esses processos simplesmente como regimes de contenção territorial e
desterritorialização.
Os regimes de contenção territorial e desterritorialização são tecnologias
políticas que tornam possível os processos de acumulação por espoliação, demonstrando
o capitalismo como máquina geradora de tensões e conflitos territoriais. Nesse
particular, são meios e técnicas de exercício do poder, constituídas por relações
complexas entre corporações privadas, o Estado, além de vários outros agentes do
mercado financeiro, voltadas para a garantia do uso do território como recurso e para o
controle dos fluxos de realização das atividades econômicas, através da expropriação de
bens coletivos e, conseqüente, da desestruturação das mediações espaciais que garantem
a reprodução de outros grupos sociais. Envolvem, portanto, ações de encurtar, barrar,
canalizar e remover caminhos, itinerários e mobilidades, mas, também, de expulsar e
desapropriar, ou ainda, fragilizar, minar e desmobilizar as condições objetivas de
reprodução social, o que provoca a suspensão de direitos fundamentais, a
impossibilidade de realização de territorialidades outras, para geração de riqueza
privada.

293
CRÔNICAS DE PESQUISA
O SIGNO DA AMEAÇA
A primeira vez que fui a Canaã dos Carajás, cheguei bem
perdido, como habitual, mas fui logo encontrado por amigos de amigos.
Minha pesquisa já estava em andamento quando o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais do município disse que poderia me receber e me
apresentar à realidade das ocupações, que o mesmo sindicato realizou
em áreas compradas pela mineradora Vale. Uma moto buzinando na
rodoviária era a porta de entrada às ocupações pelos olhares de quem
ocupa.
A recepção foi bem calorosa. O sindicato designou um de seus
membros para me acompanhar nas áreas, além de um carro para nos
locomover. Entretanto, o senhor - que não irei identificar por motivos
lógicos, de uma lógica perversa que irei explicar à frente - só sabia
dirigir motos. Duas horas depois de minha chegada, eu já sabia sair de
segunda marcha, devido a problemas com a partida de primeira marcha, e
guiar o carro tão generosamente cedido.
Conhecemos praticamente todas as áreas ocupadas e fizemos uma
grande reunião com os acampados em uma das áreas, onde ouvimos suas
trajetórias, demandas, críticas em relação à mineradora Vale, bem como
os constrangimentos pelos quais os mesmos passavam, seja por conta dos
guardas florestais da empresa, que vez ou outra usavam de violência,
seja por conta de pessoas infiltradas no movimento para a
desmobilização, segundo os próprios acampados.
Foi entre uma área e outra ocupada que o senhor que me
acompanhava recebeu a primeira ligação. Ele atendeu ao meu lado e
ninguém falou nada do outro lado. Eu rapidamente disse que poderia ser
problema de sinal, afinal estávamos em uma área distante do núcleo
urbano. Com um sorriso tímido no rosto ele vira para mim e diz: “Nada
meu filho é ameaça mesmo. Se eu pudesse contar quantas vezes me ligam
pra me intimidar e fazer com que eu desista dessas terras e pare de
lutar... Ah... Foram muitas”.
Estávamos indo para a terceira e última área programada para
visitar no dia, mas aquela afirmação simplesmente mudou completamente
o modo como eu até então, não apenas condizia o carro, como também
conduzia a pesquisa. Sabia dos conflitos, estava ali para entender a
natureza e os sentidos projetados pelos acampados naquele território,
entretanto, de repente, estar em uma estrada sem mais nenhum carro, ao
lado de um senhor com semblante tão sofrido, com uma clareza de
contexto de impressionar, com uma capacidade de elaboração e

294
compreensão regional invejável, mas ameaçado justamente pela sua
militância e compreensão da realidade, representava, naquele momento,
a expressão concreta que nessa região pensar é bastante perigoso.
Seguimos a viagem sem interrupções e entre uma entrada de uma
vicinal e outra perguntei a ele quem estava o ameaçando, se era a
Vale. Ele olhou para mim, esperou alguns segundos para dizer: “São
fazendeiros daqui, a Vale só compra as áreas, mas quem ameaça é
fazendeiro”. Numa frase a síntese da complexa relação entre o
agronegócio e a mineração nessa região se descortinava aos meus olhos
e ouvidos, num ambiente prenhe de tensões.
Após a última visita, eu deixei o carro na casa do senhor que
me acompanhava que fez questão de me deixar no hotel com sua moto.
A programação ainda previa a visita de duas áreas na manhã
posterior. Por isso, ele se despediu dizendo “até amanhã”.
Logo que cheguei ao hotel tomei um banho e desci para comer
algo. Não fui muito longe, jantei em uma lanchonete bem ao lado de
onde estava. Ao fim do jantar avistei uma sorveteria do outro lado da
rua. O calor me exigia aquela caminhada.
Entretanto, a cada passo que dava parecia que todos na rua me
olhavam. Depois de atravessar, dois carros pararam para estacionar bem
ao meu lado e em tudo que via, rondava uma ameaça. Tomei o sorvete e
na mesa da frente dois homens pareciam me observar.
Talvez ninguém realmente tivesse, ao menos, lançado olhares
para mim, mas o signo da ameaça havia marcado meu corpo, que não
conseguia mais disfarçar. Voltei ao hotel e naquela noite o sono nem
sequer chegou próximo de mim. Os olhos arregalados imaginando
situações mil aguardavam o celular tocar avisando do horário de
acordar quem não conseguira dormir.
Cumprimos nossa programação na manhã seguinte e o abraço final
com aquele senhor que me acompanhara aqueles dois dias, não teve a
marca do alívio de ir embora, pelo contrário, teve o peso do medo de
quem iria ficar.
Tentei com afinco fazer com que aquela situação se tornasse
pública e circulasse. Algumas matérias, pela articulação conjunta de
intelectuais, jornalistas e entidades, saíram em jornais de circulação
nacional e até mesmo internacional, tocando no assunto e denunciando
tal situação. Entretanto, nenhuma palavra escrita, seja em jornal ou
mesmo nesse trabalho, que agora o leitor tem em mãos, conseguirá
traduzir, ou mesmo retribuir tamanha humanidade contida em uma
recepção tão doce e calorosa por um senhor (que nem mesmo posso dizer

295
o nome), com sorriso sempre estampado no rosto, apesar de viver sob o
signo da ameaça.
Bruno Malheiro, Marabá, 23 de setembro de 2016.

O PROFESSOR CONSTRANGIDO
Em meio a uma das minhas caminhadas rumo ao pequeno hotel que
estava instalado, após a finalização de mais um dia de pesquisa em
Canaã dos Carajás, entro numa bonita panificadora que adota o sistema
self servisse. Não muito acostumado com os petiscos oferecidos, passei
um bom tempo a escolher o que comer, rodeando a mesa por diversas
vezes, deixando clara minha indecisão tão característica.
Em uma das voltas que dei, percebi que um rapaz me olhava com
certa insistência, sentado ao lado direito da mesa. O clima de
espionagem que rodeia a atmosfera de quem se aproxima de qualquer
compreensão sobre a mineração nessa região, já me acompanhava antes
dessa identificação, após isso, esse clima já se expressava em meu
corpo, pelo meu andar desconfortável e pelo meu semblante enrijecido.
Sentei no lugar mais escondido que consegui encontrar para que
nenhum olhar me encontrasse e eu pudesse comer com mais tranqüilidade,
afinal, nesse momento, após longas caminhadas pela cidade (já era um
final de tarde) a fome já embaraçava minhas ideias.
Consegui tomar um suco e comer o que escolhi com dificuldade em
um tempo recorde. Após a última empada engolida, levantei da cadeira
rumo à fila do caixa, que nesse momento, era bastante grande, para
aumentar a angústia. Alguns segundos, após minha chegada, percebo que
o rapaz que me olhava estava em minha frente na fila.
Nem deu tempo de pensar nada quando ele vira para mim e diz:
- Eu te conheço, você é o Bruno Malheiro!
Entre eu escutar aquela exclamação e pensar nas palavras que
seriam por mim pronunciadas após ela, tensão já era meu sobrenome.
Sem conseguir dizer nada eu apenas ri, foi quando ele completou
sua exclamação explicando com detalhes de onde me conhecia, que
compartilhava de minha mesma profissão e disciplina de formação,
deixando claro que se tratava mais de uma coincidência nosso encontro,
que propriamente uma conspiração.
Só após alguns segundos consegui trocar algumas palavras e
informações atualizadas sobre a minha vida e perguntar algumas coisas
a ele. Embora eu não lembrasse, eu o conhecia e, como sou péssimo com
nomes e fisionomias, fiquei bem tranqüilo e relaxado enquanto a fila
ia diminuindo e a gente ia conversando.

296
Quando ele já estava pagando sua conta veio a pergunta:
- Mas me diz o que você faz por essas bandas?
Eu respondi que estava fazendo pesquisa sobre a mineração e os
conflitos ambientais na região.
A tensão que me acompanhava desde a minha entrada na padaria
foi claramente transferida a ele. Antes que eu pudesse lhe dar um
abraço de despedida, ele me interrompeu dizendo:
- Eita rapaz, vou partir. Não podem me ver contigo! Sabe como é
não se pode falar mal do empregador!
A palavra “empregador” já foi pronunciada na porta de saída, e
os seus passos acelerados demonstravam que aquela atmosfera de
aflição, que senti com mais intensidade alguns minutos antes, em
realidade, circula naquela cidade, como uma sombra a cobrir de medo
quem, de algum modo, depende da engrenagem movimentada pela mineração
para viver.
Bruno Malheiro, Canaã dos Carajás, 10 de fevereiro de 2017.

A ENTREVISTA FRUSTRADA
Após estreitar relações com profissionais ligados a empresas
terceirizadas pela mineradora Vale, cheguei a alguns contatos
telefônicos de funcionários, particularmente do setor de
Relacionamento com Comunidades, também conhecido no interior do meio
empresarial pela abreviação R. C.
Entrei em contato primeiramente com uma funcionária mais nova
no setor, que foi bastante solícita e extremamente gentil. Não pôde
conversar comigo, devido a uma demanda de trabalho que a
impossibilitaria, mas chegou a afirmar que não teria problema nenhum
em contribuir com minha pesquisa em outro momento, inclusive,
prontificou-se a ajudar quando eu necessitasse, além de me fornecer
outros contatos para que eu pudesse conversar com outras pessoas do
mesmo setor.
Entrei em contato com um dos funcionários indicados que, de
início, também não construiu nenhuma objeção em me conceder uma
entrevista. Mandei uma mensagem de celular pela manhã bem cedo e logo
obtive resposta e não foi qualquer resposta, foi uma mensagem objetiva
marcando uma entrevista para as 14 horas num local especificado. A
velocidade e disponibilidade me impressionaram bastante e prontamente
organizei meu roteiro. A manhã foi de preparação.
Vinte minutos antes da entrevista eu estava na universidade e
peguei o carro para me deslocar até o local marcado. Ao sair da

297
universidade, sinto meu celular vibrar no bolso. Como estava
dirigindo, não vi o que era. Novamente o celular vibra e eu paro o
carro para ver. Na tela uma ligação perdida e uma mensagem de quem
havia marcado a entrevista comigo, dizendo: “Bruno, me ligue por
favor”. Tentei realizar a primeira ligação, mas sem muito sucesso.
Liguei o alerta, estacionei o carro e fiz novamente a ligação, nesse
momento com sucesso.
Comecei logo a falar ao telefone dizendo que estava chegando e
ainda havia alguns minutos para o momento que tínhamos marcado.
Entretanto, a resposta foi bastante prática me dizendo que, após uma
conversa com um superior, a entrevista deveria ser cancelada, uma vez
que a empresa teria uma política de confidencialidade e, como
informação é algo extremamente importante hoje, não poderia conceder
qualquer tipo de entrevista, justificando por problemas com
jornalistas, que deturparam informações concedidas anteriormente,
afirmando, ainda, que, como a empresa é muito grande, ela precisa se
preocupar com uma política de informações. Retruquei de imediato
dizendo que havíamos marcado e eu estava a caminho, sem grande
sensibilização de meu interlocutor, que novamente afirmou não está
autorizado a realizar a entrevista.
Durante nossa curta conversa duas preocupações eram evidentes
por parte do funcionário, que agora vestia em sua linguagem as
inquietações de seu superior. A primeira se manifestava na necessidade
de afirmar e reafirmar que nada daquilo era pessoal, sendo apenas um
procedimento padrão da empresa, tão padrão que haviam marcado comigo
sem grandes problemas algumas horas atrás e, de uma hora para outra,
não apenas estavam desmarcando a entrevista, como dizendo que nenhum
funcionário da empresa poderia me conceder qualquer entrevista, que
eu, então, alimentasse-me de informações nos fatídicos relatórios de
sustentabilidade. Uma segunda preocupação também foi bem evidente: a
apreensão de eu já ter falado com alguém da empresa. Assim como a
afirmação que não era nada pessoal, essa pergunta foi repetida em
nossa conversa por pelo menos três ocasiões.
Entre a minha sanção para com qualquer entrevista com membros
da empresa, acontecida de uma hora para outra por ordens de um
“superior” e a preocupação de, em algum lugar, o silêncio (carapuça de
quem devassa vidas alheias, mas esconde o umbigo) ter se quebrado, fez
de uma entrevista desmarcada, talvez a maior expressão de que a
necessidade de esconder, em realidade, seja a forma mais contundente
de se revelar.
Bruno Malheiro, Marabá, 14 de janeiro de 2018.

298
A ESPERA
Eram nove da manhã do último dia do terceiro trabalho de campo
em Canaã dos Carajás. Antes de ir de volta à Marabá, a última visita
programada da pesquisa era ao cartório de registro de imóveis da
cidade. Nesse momento, por meio de dados do Cadastro Ambiental Rural,
eu já possuía em mãos uma relação grande de propriedades que a própria
empresa Vale declarava como de sua posse. Uma dessas áreas,
entretanto, superpunha-se a uma área pública identificada por um
documento recém emitido pelo o Instituto de Colonização e Reforma
Agrária.
Minha primeira intenção era de conseguir a matrícula da relação
de imóveis que tinha em mãos para, depois, tentar entender a
dominialidade das terras adquiridas pela empresa, o que logo
descartei, não por falta de necessidade, mas por outras questões que
serão mais bem compreendidas a seguir.
Assim que cheguei ao cartório - era o terceiro na fila de
atendimento - percebi, como não poderia deixar de ser em uma cidade
pequena, que todos que chegavam eram tratados pelo nome e eu era,
então, o único estranho ou “de fora”. O senhor em minha frente,
tratado com intimidade pelos funcionários, queria agilidade na
elaboração de uma certidão. Entretanto, a funcionária disse que ele
teria de preencher um formulário com alguns dados, quando, mesmo
irrequieto, ele disse que respondia se ela escrevesse. A pergunta
sobre a profissão recebeu como resposta uma risada complementada pela
frase “eu compro, vendo, compro, vendo terras. Como se chama isso?”.
Quando chegou minha vez de ser atendido, os outros clientes
já haviam resolvido seus problemas e ninguém mais esperava na fila
atrás de mim, estávamos apenas eu e os funcionários. Assim que mostrei
a relação de imóveis e perguntei a possibilidade de conseguir a
matrícula deles uma funcionária prontamente perguntou: “Para quê mesmo
você quer isso?”. Logo respondi que era professor, mostrei uma carta
sobre minha pesquisa e um documento solicitando as informações via
universidade para, então, um funcionário que não estava me atendendo
dizer: “Mas pra quê a universidade quer isso?”
Após a pergunta, antes de consegui responder, a funcionária que
me atendia, identificando um dos imóveis como de propriedade da
mineradora Vale, disse para eu assinar uma solicitação no modelo do
cartório, identificar todos os meus documentos e meu nome completo, e
que esperasse o dono do cartório chegar para que eu resolvesse com ele
a solicitação.

299
Nessa hora todos os funcionários já me olhavam com um ar de
desconfiança. Peguei o formulário e sentei em uma das cadeiras de
espera. Fiquei lá por uma hora e quarenta e dois minutos. Lembrei das
ameaças recebidas por muitas pessoas com quem conversei. Percebi o
tamanho da exposição a que estava sujeito.
A espera foi decisiva. Por ela as ideias se acalmaram, o
pensamento se situou, os olhos conseguiam observar a tensão que minha
presença criara. As pessoas continuavam a ser recebidas por seus nomes
próprios. Naquele banco uma escolha foi feita: esse trabalho não iria
destrinchar, por aquelas vias, o quebra-cabeça conflituoso da recente
dinâmica fundiária naquele município.

Bruno Malheiro, entre Canaã dos Carajás e Parauapebas, 17 de Janeiro


de 2018.

300
AS HETEROTOPIAS
Escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico

Sangro norte
em coração do sul

Na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo

Hei-de
começar mais tarde

Por ora
sou a pegada
do passo por acontecer...

Mia Couto

Contra a ontologia clássica do centro, de Hegel a Marcuse,


para nomear os mais lúcidos da Europa, surge uma filosofia da
libertação da periferia, do oprimido, da sombra que a luz do Ser
não foi capaz de iluminar. Do não-ser, o nada, o outro, a
exterioridade, o mistério do não-senso, nosso pensamento
começará.
Enrique Dussel

Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em


qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que
são delineados na própria instituição da sociedade, e que são
espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias
efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais,
todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar
no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados,
contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de
todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis.
Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os
posicionamentos que eles remetem e dos quais eles falam, eu os
chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias

Michel Foucault

301
O conjunto de práticas e tecnologias de governo corporativo do território que
lemos até aqui, nada mais são que formas racionais encontradas por uma corporação,
ora estatal, ora privada, de correr atrás de relações sociais que ela não pode controlar, de
tentar frear a força social de existências que não se encaixam nas amarras do Estado e
do mercado, de conter experiências espaciais que não se circunscrevem nos desenhos
arquiteturais de um grande projeto.
É preciso, agora, alterar o ângulo para que, no lugar do corredor do ferro,
encontremos uma diversidade territorial.
Chamamos essa última parte de heterotopia, pois objetivamos tomar como ponto
de partida de nossa análise, esses espaços outros, de utopias realizadas, que guardam
experiências sociais distintas da racionalidade instrumental de grandes projetos de
mineração e as epígrafes que iniciam essa terceira parte do trabalho já nos transportam
para esses outros mundos que nos apontam outros repertórios sociais e novos horizontes
de sentido.
A noção de heterotopia em Foucault (2001) expõe as dobras do poder, os
espaços de ordenação fluida que existem como realidade prática em um lugar fora de
todos os lugares. Lefebvre (1974), também se referindo às heterotopias, dá um sentido
semelhante ao de Foucault, por considerar esses espaços como lugares interditos, de
delírio e potência conjurados, que guardam certa exterioridade aos espaços de
homogeneização, ou ainda, como espaço diferencial que carrega a particularidade de ser
o outro lugar e o lugar do outro (LEFEBVRE, 1999).
Soja (1993) dialogando com a noção de heterotopia também alerta para o fato de
que esses espaços outros não podem ser vistos como unidades espaciais estáveis,
fechadas, mas por seus processos, formas, comportamentos e significados constituintes.
Um ponto em comum das leituras sobre a heterotopia é a definição de sua
condição de exterioridade frente aos espaços de dominação e homogeneização da ordem
capitalista. Essa condição de exterioridade, não obstante sua potência crítica de apontar
novos horizontes de sentido no presente, é bom que se diga, decorre de uma invenção
histórica marcada pela colonialidade, pois, se nos situarmos numa história de longa
duração, aquilo que é exterior hoje, um dia, pode não ter sido. Por isso, para pensar
esses espaços de exterioridade é necessário, primeiro, repensar nossos sentidos de
totalidade, pois como mostra Dussel (1973, 1986), a leitura colonial do mundo, como
uma dialética de totalidade, transformou o outro em um modo de incompreensão, não
de compreensão, por uma vontade de poder e de saber que ―ao deixar de especificar os

302
limites de seu próprio campo de enunciação e eficácia, passa a individualizar a
alteridade como a descoberta de suas próprias pressuposições‖ (BHABHA 2003, p.
110).
Vimos nesse trabalho que a condição de exterioridade da Amazônia em relação
ao Brasil justificou mecanismos de exceção política, assim como vimos que para conter
a externalidade - em relação à racionalidade corporativa - das distintas territorialidades
indígenas, quilombolas, camponesas, desenham-se dispositivos de exceção para o
governo corporativo do território.
Há, portanto, como alerta Souza Santos (2014) uma razão abissal que divide a
realidade social em dois lados: o lado existente e o lado inexistente, sendo que esse lado
inexistente é definido como irrelevante e dispensável por representar uma exterioridade
de uma razão que não admite a co-presença dos dois lados que cria, pois apenas admite
aquele que reflete sua lógica interior.
Essa dialética da totalidade, ou razão abissal que demarca a condição de
exterioridade aos espaços outros, tem um sentido político e econômico bastante claro,
pois que estamos, justamente, falando de um contexto específico do capitalismo
mundial em crise que transforma o alargamento da apropriação de terras, de recursos
naturais e de toda sorte de bens públicos e coletivos como projeto de acumulação, ou de
acumulação por espoliação. Estamos falando, então, de um modo de acumulação que se
alimenta da exterioridade ao sistema, como uma máquina de transformar bens comuns
em mercadoria, ou um cerco aos territórios terras indígenas, quilombolas, camponesas e
de outros povos e comunidades tradicionais, o que, aliás, sempre foi marca do
capitalismo na América Latina69.
Falamos tudo isso para expressar a violência histórica inscrita na condição de
exterioridade das heterotopias, uma vez que, por um lado, essa condição, herdeira de
uma razão abissal, ativa mecanismos violentos de exceção aos espaços outros e, por

69
Para Quijano (2009), no processo de colonização da América Latina, por meio da colonialidade do
poder, criaram-se identidades sociais novas, como índios, negros e mestiços para, deliberadamente, e de
forma violenta, unificar a diversidade cultural e epistêmica desta região e, a partir da ideia de raça,
legitimar relações de dominação marcadas por critérios de superioridade/inferioridade entre os
dominantes e os dominados, definindo uma divisão racial do trabalho, mas fundamentalmente
estabelecendo o controle europeu de todas as formas de subjetividade, cultura e produção do
conhecimento até então estabelecidos. Esse modo específico do capitalismo funcionar articulando
experiências históricas distintas, Quijano chamou de heterogeneidade histórico-estrutural, afirmando que
[...] o que é realmente notável de toda a estrutura societal é que elementos, experiências historicamente
descontínuos, distantes e heterogêneos possam articular-se juntos, não obstante suas incongruências e os
seus conflitos (QUIJANO, 2009, p. 91).

303
outro lado, para um capitalismo sedento em transformar bens coletivos em mercadoria,
representa possibilidades de novos lucros, o que também se traduz em violações.
Eis que o capitalismo, ativando mecanismos de espoliação, como grandes
projetos de mineração, reserva às heterotopias uma geografia de exceção. Mas a
invenção de sua exterioridade por uma razão abissal de interesse espoliatório, só assim
se realiza por conta desses espaços outros apontarem para uma força social irrefreável
amalgamada em formas distintas de relação com o tempo, o espaço e a memória, em
modos distintos de sentir e pensar com o mundo, que nos mostram outro repertório de
práticas políticas, outras referências cosmológicas, outros modos de relação e
compreensão com a natureza.
Stavrides (2016) analisando o papel das heterotopias - ou o que chama de
espacialidades de emancipação - para a transformação social, reconhece, como aqui o
fizemos, que estas experiências da alteridade estão inseridas em uma ordem espacial
dominante que se dissemina e se realiza transformando a exceção em regra, tanto por
normas excepcionais de controle de usos, como em políticas de cerco e de destruição
massivas, o que expressa que essa capacidade de ser diferente é também a capacidade
de habitar a exceção. Se, como defende o mesmo autor, habitar significa uma
experiência de familiaridade permanente como o mundo circundante, começamos a
pensar que as heterotopias, mesmo convivendo com a destruição e as ruínas, ainda
assim, e também por r-existirem à exceção como regra, apontam para um arsenal de
experiências sociais formativo de práticas sociais inscritas em outros horizontes de
sentido emancipatório.
Nesses termos, as heterotopias, inseridas em uma ordem espacial de exceção,
não existem se não r-existirem às distintas práticas de exercício do poder biopolítico ou
necropolítico, que deixam morrer ou normalizam a morte. Entretanto, como modos de
experiência da alteridade, essa resistência não se configura apenas como uma resposta
oposta à violência sofrida, pois que se faz r-existência, uma vez que responder é,
também, afirmar outros modos de existir e outros horizontes de sentido para a vida.
Vale ressaltar ainda, que as heterotopias assumem aqui, para além desse
sentido teórico, também um sentido metodológico de abertura da totalidade à
provocação da exterioridade, o que significa relançar a totalidade a um novo
fundamento aberto à alteridade, que Dussel (1986) chama de fundamento
transontológico. Ou seja, as heterotopias nos provocam a fazer uma crítica
epistemológica e ontológica da geografia de exceção dos grandes projetos minerais,

304
pois, a partir delas, como nos lembra Escobar (2016), comprometemos o conhecimento
com a vida, revisitando a atenção a múltiplos saberes que historicamente sustentaram
experiências sociais distintas, mas descartadas pelo pensamento eurocêntrico, o que nos
alerta para o fato de que o mundo se compõe de muitos mundos, múltiplas ontologias, e
que não mais podemos falar em universo, mas pluriverso, tornando, então, o que
historicamente foi produzido como exterioridade ou inexistente, uma alternativa válida
ao que existe.
Entretanto, o que faz com que este trabalho encontre as heterotopias não é
apenas o seu sentido teórico de experiência de alteridade a marcar territórios outros,
nem mesmo o seu sentido metodológico de provocação da totalidade pela exterioridade,
esses sentidos são apenas possibilidades analíticas encontradas para expressar o
encontro com distintas pessoas ao longo de nossos trabalhos de campo, os quais
reconduziram nossos olhares e nos fizeram deslocar o lócus de enunciação deste
trabalho para que ele não apenas compreendesse a lógica de funcionamento dos
processos de territorialização corporativos pelas ruínas que este produz, mas também
para que pudesse fazer falar outras racionalidades que, não obstante conviver com
violações constantes, denunciam silêncios históricos ao expressar territorialidades que
preenchem de vida e pluralizam os ritmos de um espaço pensado para seguir os tempos
financeirizados das commodities.
Por essas premissas, essa terceira parte do trabalho está dividida em dois
capítulos. No capitulo oito queremos caminhar pelas heterotopias, ouvir os territórios e
as territorialidades, pois que se fazer existir em sua diferença é o desafio maior de quem
habita a exceção, para, então, retraçar o corredor Carajás-Itaqui no contra-fluxo do trem,
e nos aproximar da diversidade territorial de uma região desenhada para ser homogênea,
mas que é prenhe de experiências de alteridade que a pluralizam como heterogeneidade.
No capítulo nove entraremos nos antagonismo à mineração que emergem a partir dessa
diversidade de territorialidades para, então, expressar os processos de mobilização
construídos, os múltiplos repertórios de ação política acionados, bem como as políticas
de escala que reposicionam, ampliam e amplificam o reconhecimento dos múltiplos
sujeitos políticos.

305
CAPÍTULO 8

ESCUTANDO O TERRITÓRIO PARA PENSAR POR


OUTRAS (GEO)GRAFIAS

Nós não somos filhos do veado; nós não somos filhos de jabuti;
nós não somos filhos de peixe; nós não somos filhos de jacaré;
nós não somos filhos de tatu; nós não somos filhos de paca.
Não! Nós somos filhos da comunidade, somos filhos, parece, do
quati, porco. Só porco. Vocês podem entender assim, porque
nos somos grupo segurando tudo junto. Um de vocês está
morando, está morando longe, mas, no outro ano volta. Índio
quer morar tudo junto, parece quati, quando cresce, pode
partir, mas está junto com a mãe, pai. Porco também cresce,
mas fica também junto com mãe, pai. Isso nós somos, nossos
tipos: ou quati, ou porco. Só esses tipos somos nós, Parkatêjê!

Krôhôkrenhum Jõpaipaire

Do além das montanhas


Do além do luar
Vêm formas estranhas,
São gêmeas do vento
São só pensamento
Mudam as entranhas
De as ouvir passar

Fernando Pessoa

306
A vida perdeu seu valor / transformou-se
em cifrões / Minha terra é dividida
/carregada em vagões / A vida perdeu seu
valor/ transformou-se em cifrões / agora o
que Vale é nada carregado em vagões!
(Ninguém)

O poema lido em um dos vídeos produzidos pela Rede Justiça nos Trilhos é
assinado por ‗ninguém‘, talvez como denúncia de uma vida que não mais Vale, para
quem consegue definir hierarquias sociais e definir o que Vale, talvez porque essa voz
não caiba em uma só pessoa, talvez as duas coisas juntas. Há um percurso a transformar
pessoas em ninguém, e esse percurso, que divide a terra, é percorrido por um trem. O
poema é a flor da pele da linguagem, por ele uma imagem desenha percursos, que agora
serão percorridos entre a crueza da indignação e a vontade de viver.
Essa produção de ninguéns por uma empresa nos lembra o alerta de Frantz
Fanon (1979) de que os processos de colonização negam a realização do ser do
colonizado, pois são, acima de tudo, uma tormenta onírica maniqueísta, processos de
inferiorização, de afirmação violenta de uma singularidade absoluta a partir da qual tudo
se espelha. Nestes termos, o mundo é dividido em dois, é fraturado em duas regiões:
uma perfeitamente definível, pois se vê nos termos do progresso histórico colonizador, e
uma segunda que tem a própria existência como uma impossibilidade, pois seus corpos,
sua magia, seus ritmos e seus modos de compreensão não são vistos no grande espelho
que se convencionou chamar de verdade e conhecimento.
A partir daqui, portanto, tentaremos ensaiar uma geografia a partir dessas
regiões do não ser, reintroduzindo valor à vida e dignidade aos muitos sujeitos tornados
ninguéns. Faremos um percurso por territórios, tornados inexistentes das imaginações
geográficas de uma empresa e, por vezes, das nossas próprias. A atitude de escutar o
território significa aproximação para falarmos deles a partir das vozes de quem os
desenha suas marcas de expressão. Queremos pensar, muito inspirados por Viveiros de
Castro70 e Latour (1994), em uma relação de simetria entre as posições epistemológicas,
considerando os atores sociais também como autores.

70
O que estou sugerindo, em poucas palavras, é a incompatibilidade entre duas concepções da
antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado, temos uma imagem do conhecimento
antropológico como resultando da aplicação de conceitos extrínsecos ao objeto (...). De outro (e este é o
jogo aqui proposto), está uma ideia do conhecimento antropológico como envolvendo a pressuposição
fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigação são conceitualmente da mesma
ordem que os procedimentos investigados (...). Pois, se a primeira concepção de antropologia imagina
cada cultura ou sociedade como encarnando uma solução específica de um problema genérico (...), a
segunda, ao contrário, suspeita que os problemas eles mesmos são radicalmente diversos; sobretudo, ela

307
Os caminhos que iremos trilhar, portanto, tentam ir pela contramão, ou no
contra-fluxo do trem! Portanto, começamos por territorialidades inscritas entre o mar e a
praia, depois, entraremos nas relações com a terra tornada território, continuaremos
pelos caminhos dos babaçuais, para, então, adentrarmos pelos meandros dos rios e
desaguarmos num território-floresta de distintos povos indígenas e quilombolas.
Finalizaremos nossa jornada pelos quintais, casas e caminhos que demarcam a vida às
margens dos trilhos.

8.1 UMA TERRITORIALIDADE ENTRE A PRAIA E O MAR: OS PESCADORES ARTESANAIS


DO BOQUEIRÃO

Na imaginação ocidental, a razão pertenceu por muito tempo à terra


firme. Ilha ou continente, ela repele a água com uma obstinação
maciça: ela só lhe concede sua areia. A desrazão, ela, foi aquática,
desde o fundo dos tempos e até uma data bastante próxima. E, mais
precisamente oceânica: espaço infinito, incerto: figuras moventes,
logo apagadas, não deixam atrás senão uma esteira delgada e uma
espuma.
Michel Foucault

A praia do Boqueirão, localizada na cidade de São Luis no Maranhão, abriga


uma comunidade que tradicionalmente vive da pesca, muito antes das primeiras
construções portuárias interferirem nos usos dessa comunidade que vive em
contato/dependência do mar e da praia. Entre 1972 e 1976 foi construído o Porto de
Itaqui e em 1986 iniciaram-se as operações do Terminal Marítimo de Ponta da Madeira
diretamente ligado à exportação do minério de ferro pela, então, Companhia Vale do
Rio Doce e, por conta dessas construções portuárias, muitos pescadores foram retirados
da praia do Boqueirão, sendo que, muitos destes, voltaram à praia para viver da pesca.
Entretanto, a construção do Píer IV do Terminal Marítimo de Ponta da madeira
- para receber navios de até 394 mil toneladas, que só atracavam no Píer I com
profundidade até 25 metros – novamente colocou em risco a vida e o trabalho dos
pescadores artesanais do Boqueirão. A figura 23 ilustra a localização das várias
construções portuárias da empresa Vale em São Luís, demonstrando o gigantismo das
obras que também aludem às enormes transformações na dinâmica de vida e trabalho de
comunidades que dependem da pesca artesanal.

parte do princípio de que o antropólogo não sabe de antemão quais são eles (VIVEIROS DE CASTRO,
2002, p.116,117).

308
FIGURA 23 – Localização do Píer IV do Porto de Ponta da Madeira, São Luís

Fonte: VALE, 2016.

Frente a frente dois modos de olhar a praia e o mar. O cotidiano da pesca,


regido pelos tempos da maré, acomodados pelas estações lunares, vivenciados num
barco, elo entre a praia e o mar, agora é constrangido pelo tráfego dos maiores navios do
mundo, por construções gigantescas que alteram os regimes de maré pondo o
ecossistema marinho à prova para o minério passar.
Das palavras de um pescador, o senhor Hugo, a vida ganha seus contornos de
praia e mar:
Quando a Vale chegou aqui eu era criança, mas já tinha aprendido a
pescar, ai fui morar no bairro (...). Quando virei moleque crescido
ainda vinha pescar aqui com meu pai, mas aí quiseram me levar pra
trabalhar como pedreiro, pintor... mas, não deu certo não. Voltei logo
pra cá. Daqui deitado na rede eu olho pra maré e já sei como vai ser o
dia... se não me sinto bem, não trabalho fico na rede... quando tu és
empregado tem que trabalhar mesmo doente (...) isso eu não quero
mais. (SR. HUGO apud MOLER, 2011, p. 63)

A voz de Hugo explode em significados. Uma frase absorve em imagem os


sentidos que aquele lugar possui a quem nele sempre morou e pescou: ―daqui deitado na
rede eu olho pra maré e já sei como vai ser o dia‖. Não se trata apenas de opor tempos
tão distintos, entre o pescar na praia, de rede em rede, e o trabalhar na cidade, trata-se,
também, de uma conversa com a maré. O olhar de Hugo capta as falas do mar e são elas

309
que ditam como serão os dias, são elas que dão sentido e ritmo à vida. Entender as falas
do mar é um aprendizado de gerações - do pai, que sempre o levou para pescar, ao filho,
que precisa disso para viver - é, enfim, um modo de conversar com o lugar, de sentir a
natureza e pensar a partir disso.
Outro pescador, o senhor Dinho, amplia essa conversa com o Boqueirão:
A gente aqui no Boqueirão vivia tudo pelado que nem índio, ninguém
ia pra escola não, a gente ia era pescar... Aqui ninguém tomava
remédio, a gente se curava com as plantas, com as ervas do
Boqueirão, por que foi assim que os nossos pais faziam. A pessoa só
morria se tinha que mesmo que morrer, porque naquela época a gente
vivia bem, era fartura, tinha muito peixe, muita fruta por aqui (SR.
DINHO apud MOLER, 2011, p. 53)

A pesca sempre foi a escola da comunidade, ela ensinava tudo o que se


necessita saber para viver. A cura também vinha das plantas e ervas através de um
conhecimento ancestral, no qual o significado de valor, passa pela riqueza do mar e da
praia, em peixes, em frutas. A voz do Sr. Dinho expressa o Boqueirão como uma síntese
entre praia e mar, na qual a conversa com a natureza torna possível a vida.
Também a organização espacial da praia assume um papel decisivo no
cotidiano da pesca na comunidade, uma vez que
Não posso dizer à Vale que pesco num lugar se pesco em outro, aqui
na praia já ta tudo certo, cada um tem sua área e todo mundo respeita,
aprendemos assim e não vamos mudar agora (SR. JUCA apud
MOLER, 2011, p. 75)

A praia pode até parecer um espaço liso, mas na verdade é prenhe de


significados e de uma lógica organizacional comunitária da pesca, na qual os espaços
são definidos e respeitados por relações em que o bem comum é construído e definido
por uma definição coletiva de dividir áreas de pesca.
O amálgama dessas relações permeadas por um respeito mútuo parece mesmo
ser a família, melhor dizendo, a transformação da comunidade em um sentido particular
de família
Aqui todo mundo conhece a gente, cresceu todo mundo junto, parece
até que era tudo da mesma família (...) por que a gente vivia mesmo
como uma grande família, a gente se conhecia tudinho (SR. DANIEL
apud MOLER, 2011, p. 60).

Entrementes, as pressões de um empreendimento chegam à comunidade por


todos os lados. A Vale chegou a pagar uma quantia em dinheiro para alguns pescadores
da comunidade realizarem cursos para aprenderem outras profissões. Não bastasse a

310
escassez de peixe, também se tratou a pesca como profissão, como que ela fosse
aprendida na escola e os pescadores, como alunos de uma empresa.
O presidente da Colônia de Pescadores Z10 (São Luís), Jonas Albuquerque,
chega a ressaltar:
Que vantagem o pescador terá, aceitando esse dinheiro temporário, se
a Vale se beneficiará do empreendimento por décadas e décadas?
Depois de dois anos e sete meses, essas famílias ficarão sem o seu
‗ganha pão‘, e a mineradora continuará ganhando rios e rios de
dinheiro (JONAS ALBUQUERQUE acessado em
http://imirante.com/oestadoma/online/07022013/pdf/P10.PDF)

Se a praia se torna terreno minado pela empresa, a solução dramática e


emocionada dada pelo Sr, Gigante, expressa, por um lado, o desespero de sair do
Boqueirão e, por outro, o único destino possível dessa saída:
Agora que isso está acontecendo aqui. Eu queria um barco pra viver
em alto mar, se eu tivesse um barco... Aí eu viveria bem com meus
três cachorros. Levaria eles comigo! Eu não sei viver longe daqui!
Minha vida é pescar no Boqueirão, sempre foi isso (SR. GIGANTE
apud MOLER, 2011, p. 80)

O barco transporta seu Gigante ao mundo do mar, único que ele domina todos
os signos, único capaz de abrigá-lo, com seus três cachorros, único capaz de lhe dar paz,
em tempos de tormenta. Em seu desespero, todo o sentimento de uma comunidade a um
lugar é expresso, assim como se desnuda a violência mortal de uma empresa que ignora
territórios por onde deixa suas marcas, como que eles pudessem se encaixar em sua
forma de ver mundo.
Entre o mar e a praia uma territorialidade se desenha nas linhas de expressão
do mar, tão bem compreendidos pelos pescadores, nos modos de organizar a praia em
relações densas de compromisso, e no sentimento de pertencimento ao Boqueirão. Essa
territorialidade politiza sua diferença em antagonismo à mineração, uma vez que um
modo de sentir e compreender a natureza é posto à prova e precisa mostrar que existe,
que r-existe. E é através da Colônia de Pescadores que cerca de 70 pescadores ajuizaram
ação de indenização por danos materiais e morais contra a Vale em 2009, sendo em
2013 a empresa condenada a pagar um valor mensal aos pescadores.
Porém, as batalhas judiciais com a empresa persistem e o Píer IV é autorizado
a operar também em 2013.

311
8.2 DE TERRITORIALIDADES E SOLIDARIEDADES CAMPONESAS: DA TERRA AO

TERRITÓRIO
Os processos de territorialização pela via da mineração envolvem múltiplas
formas de intrusão em dinâmicas de agricultura camponesa. A compra de terras pela
mineradora, mas também o atravessamento dos trilhos em comunidades camponesas,
são modos de demonstração de que a mineração, definitivamente, é um processo
territorial, que não se restringe a exploração do subsolo, pois se realiza também por
circuitos que, assim, afetam decisivamente vidas cuja terra é um abrigo.
Dos trilhos que atravessam outros territórios, queremos voltar aos espaços de
extração, mas especificamente à Canaã dos Carajás, esse município que, na década de
1980, na verdade, era um mosaico de assentamentos de reforma agrárias definidos pelo,
então, Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins (GETAT). De lá, onde a
produção agrícola despencou após a atuação da Vale em vários projetos de mineração, e
onde processos de ocupação de terras da mineradora, pelo Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, efetivam-se, como já vimos em capítulos anteriores, vozes ecoam desses
acampamentos, onde vidas se constroem num contato-dependência da terra.
A figura 24 é extremamente representativa para definir bem quem são os que
lutam pela terra contra a mineração. Na faixa de entrada do principal espaço de
acolhimento e reunião do acampamento Planalto Serra Dourada a frase ―não somos
insignificantes, somos centenas de famílias de trabalhadores‖ remete diretamente ao
tratamento dado, seja pela empresa, seja pela justiça, seja ainda, pela própria polícia, aos
acampados.
A afirmação da existência e a marcação do trabalho como elemento definidor
do grupo ganha expressão.

312
FIGURA 24 – “Não somos insignificantes, somos centenas de famílias de
trabalhadores”

Fonte: Bruno Malheiro, outubro 2016

Mas, logicamente, como é de praxe, as respostas corporativas a estas


ocupações chegam pela via judicial, no amontoado de processos de reintegração de
posse, num caminho lógico entre corporação, judiciário e polícia. É de um desses
processos de desocupação, do acampamento grotão do Mutum, que vamos continuar
nossa caminhada.
Chegamos ainda na hora do almoço no local para onde foram deslocados os
acampados do Grotão do Mutum, bem próximo à entrada do projeto S11D, depois de
serem expulsos do lugar onde estavam por conta de uma liminar de reintegração de
posse expedida pela comarca de Canaã dos Carajás. Dona Rosa, uma simpática senhora,
ainda mexia nas panelas embaixo de uma lona azul, com o sol a desmontar qualquer
possibilidade de não se abrigar embaixo de algo. Nesse momento já havíamos
almoçado, mesmo assim ela nos ofereceu o que preparava na panela. Ao perceber que já
havíamos vindo de um almoço em outro acampamento, ela foi para fora da lona para
contar sua história sem a interferência de qualquer conversa paralela. Foi depois de
algumas palavras trocadas que, já com os olhos molhados, ela nos olhou e disse:

313
Quando eles chegaram lá em casa, gente eu digo do coração, eu não
me esqueço deles nunca um dia da minha vida. Eu chorando e ele
disse assim: ―Dona Rosa não chore não. Você sai hoje amanhã você
entra, você sai amanhã, você entra depois‖. E eu chorando com tanta
coisa boa que eu tinha. Só de pé de tomate eu tinha 380 pés de tomate,
tudo botando: couve, alface, jiló. Tudo isso eu tinha: um canteiro de
alface, de cheiro verde, era a coisa mais linda que eu tinha na minha
vida. Pimenta, tanto a de cheiro, como ardenosa... Foi uma tristeza
muito grande. Só eu, mais meu velho, seis linhas de roça que nós
botemo, só eu mais meu velho tiramo os capim grande, tiremo,
capinemos todinhos de enxada e ajuntemo e joguemo fora. Não
paguemo uma diária. Se você visse, a coisa mais linda do mundo, a
coisa mais linda do mundo que era pra acontecer... E hoje em dia eu to
sofrendo, eu não tô morrendo de fome porque tem meus filhos e tem
meus amigos que trás a comida pra mim e o pão. Essas são minhas
palavras! (Dona Rosa, camponesa acampada em Canaã dos Carajás,
entrevista realizada em outubro de 2016).

A roça de Dona Rosa era tudo o que ela, seu marido e filhos conseguiram
construir na terra. Isso não é pouco. Cada um dos 380 pés de tomate tinha uma história,
cada canteiro de alface e de cheiro verde guardava horas de trabalho. Só ela e seu velho,
sem pagar nenhuma diária, construíram a possibilidade de uma vida da terra,
construíram a coisa mais linda do mundo, expressão que, por três vezes, ela repete.
Alguns tipos de pimenta, couve, jiló, tanta coisa boa ela tinha. A tristeza de ouvir de um
policial, que destrói parte essencial de sua vida e ainda minimiza a importância do lugar
que você está, é do tamanho da dor da impossibilidade de se alimentar por suas próprias
mãos.
Mesmo diante da perda de todas as suas referências Dona Rosa nos leva ao seu
novo canteiro, onde se plantam novos sonhos no novo território que se encontra o
acampamento. A foto a seguir (figura 25) demonstra os primeiros pés de cebolinha já se
esgarçando pela terra preta.

314
FIGURA 25 – Pelos Canteiros de Dona Rosa

Fonte: Bruno Malheiro, outubro 2016

Mas logo depois que Dona Rosa voltou a mexer em suas panelas -
continuávamos fora da lona, agora com uma nuvem a nos blindar do sol - Francisco
chega próximo para também nos contar o que aconteceu com ele no mesmo dia que os
pés de tomate de Dona Rosa foram destruídos. Ele ouvira nossa conversa anterior e
prontamente se colocou a falar:
Hoje pra mim não tá sendo fácil, não tá fácil (...) muitas coisas
precisam ser esclarecidas. Porque hoje, sou pai de três filhos, tenho a
minha família, como pai de família vivendo de favor pelos meus
colegas, porque eu não tenho condições de sustentar minha família,
desde que eu saí daquele lugar em que tiraram nós com aquela
covardia, eu acho pra mim covardia, como pai de família, porque lá é
onde tinha esperança com meus filhos, eles iam crescer comigo, viver
comigo, lá é onde eu precisava tirar o sustento dos meus filhos, meus
filhos precisavam ser sustentados pelas minhas mãos (...) mas o que
aconteceu lá foi uma coisa brutal, foi um momento muito difícil (...)A
Vale não é a empresa respeitada como todo mundo pensa não é, pois
hoje muitas pessoas têm medo até de falar que nós protesta contra a
Vale, tem muitas pessoas que têm medo disso. Mas eu creio que a
gente não quer tirar a Vale, quer mudar o sistema da Vale com o ser
humano, o que a Vale fez com a gente não é coisa pra ser humano
(Francisco, camponês acampado em Canaã dos Carajás, entrevista
realizada em outubro de 2016).

315
A Vale tirou Francisco do lugar onde existia esperança, onde seus filhos iriam
crescer junto a ele, sendo sustentados por suas mãos no trabalho com a terra. Covardia,
revolta e medo, são sentimentos que brotam após a saída de uma terra que tanto se lutou
e trabalhou para não só conquistar, como para fazê-la brotar esperança.
Francisco e Dona Rosa que passaram por um processo que não foi feito para
ser humano, hoje se reconstroem pela ajuda de outros acampamentos, numa rede de
solidariedade entre que, ao passo que enfrenta dramas absolutamente desumanos, faz da
união a maior força para que todos e todas continuem a viver com dignidade.
Depois de conversar com Francisco e Dona Rosa, seguimos, à tarde, a outra
área do Acampamento Planalto Serra Dourada, onde, não sabíamos, acontecia uma
reunião sobre a situação do acampamento. Menos de duas horas antes, um vigilante
florestal de uma empresa terceirizada da mineradora havia ameaçado os moradores de
lhe retirarem à força do local que estavam acampados. Uma senhora desesperada pedia
a atenção de todos e afirmava: ―eles querem nos tirar daqui na marra!‖ O clima de
tensão gerou a necessidade de um encontro para se debater a situação, encontro que, por
certa coincidência, participamos.
FIGURA 26 – Resistências pelos caminhos de Ferro

Fonte: Bruno Malheiro, outubro 2016.


Agora debaixo de uma lona azul, entre o barulho da cigarra e as vozes das
pessoas, o estrondo de dois helicópteros interrompia qualquer possibilidade de
entendimento do que se falava. Um deles passou por duas vezes no local em uma

316
velocidade relativamente grande e o outro, usando o método eletromagnético de
prospecção mineral (figura 27) passou de forma mais lenta. Independente dos objetivos
reais de tantas aeronaves a sobrevoar aquele espaço, o sentimento de medo, ansiedade e
impotência daquele momento, foi prontamente traduzido por seu Osmar que, olhando
pra cima, disse: ―Eles sabem de tudo, querem saber de tudo‖.
FIGURA 27 – Prospecção Mineral?

Fonte: Bruno Malheiro, outubro, 2016.


Foi nessa mesma reunião que o mesmo senhor Osmar também, com orgulho,
chegou a nos dizer:
Eu tô aqui na luta dessa terrinha aqui, já tem um ano e quatro meses
que estou nessa área aqui (...) fiz uma rocinha o ano passado, fiz uma
outra agora. Tô com milho, o milho já tá com um metro e tanto de
altura e umas galinhazinha, um barraquinho e essa Vale fica aí
prejudicando a gente e a gente doido pra fazer alguma coisa, pra criar
os filhos (...) (Osmar, camponês acampado em Canaã dos Carajás,
entrevista realizada em outubro de 2016).

Osmar pediu pra que conhecêssemos sua rocinha, queria demonstrar o que um
ano e quatro meses de luta e trabalho produziram e, também, tudo o que foi destruído
por incursões de pessoas desconhecidas em suas roças, que já chegaram a colocar fogo
em parte das suas plantações. A noite já se avizinhava e não pudemos conhecer o
orgulho de seu Osmar.

317
Antes de retornarmos neste mesmo dia, uma última parada foi feita em mais
uma área do acampamento Planalto Serra Dourada. A parada rápida ainda capturou uma
imagem bem representativa daquele dia. Em uma mercearia, acima de uma placa com
os dizeres ―não me fale em fiado‖ e ao lado de um adesivo de um candidato, estávamos
em vésperas de uma eleição municipal, um cartaz de Chico Mendes enfeitava a
improvisada porta de alumínio fincada entre as madeiras de uma construção
improvisada.
FIGURA 28 – Pelos sonhos de Chico Mendes

Fonte: Bruno Malheiro, outubro 2016.


As galinhas de seu Osmar, os tomates de Dona Rosa, a esperança de Francisco,
bem como a capacidade de permanecerem juntos uns aos outros em um contexto que
transforma a solidariedade em via para a sobrevivência, parece expressar bem o que
Miranda (2017), estudando os arranjos geográfico-políticos entre assentamentos e
acampamentos e as perspectivas de aliança entre distintos movimentos sociais no
sudeste do Pará, chama de rede geográfica solidária camponesa.
Essas redes de solidariedade construídas em antagonismo à mineração não se
expressam apenas nas zonas de extração, onde a mineradora interfere no desenho
fundiário regional por meio da compra de terras, também estão colocados nos espaços
de produção familiar atravessados pelo trem. Alaíde de Abreu do Fórum de Políticas
públicas do município de Buriticupu sintetiza a preocupação e as formas de continuar a
viver da terra de várias comunidades rurais no Maranhão:

318
Ao longo de toda a estrada de ferro essas comunidades todo dia se
deparam com grande quantidade de minério sendo transportado pela
Vale e as proposta de emprego que não chegam. Enquanto isso as
comunidades buscam uma alternativa (...) com uma pedagogia da
solidariedade, trabalhos em mutirão, resgatando as sementes que aqui
têm. Enriquecendo a terra de uma forma sustentável sem poluição,
sem químicos, a gente trabalha as substâncias orgânicas, o adubo
orgânico pra produzir com mais qualidade. Então a gente contrapõe a
maneira de produzir do capitalismo, que devora, que devasta, que
escraviza, que desumaniza. E o nosso mecanismo é a solidariedade, é
a união, são os mutirões é a comunidade em si discutindo seus
problemas e buscando as alternativas juntas (Alaíde de Abreu,
depoimento ao documentário mutirão da vida, 2014)71.

O modo de lidar com a terra presente em Vila Labote, Centro dos Farias, Vila
União, Vila Concórdia, Centro do Meio, comunidades rurais de Buriticupu-MA
organizadas pelo projeto de produção agroecológica, também têm a solidariedade como
medida de tornar possível a vida.
As múltiplas experiências agrícolas em acampamentos e assentamentos e/ou
comunidades rurais afetadas pela mineração no Pará e Maranhão, sempre trazem para a
cena uma memória camponesa, trajetórias geográficas percorridas por múltiplos sujeitos
que, por gerações, conviveram e ainda convivem, de um lado, com o trabalho na terra e,
de outro, com violentas expulsões da terra, em percursos vividos e sentidos, quase
nunca analisados pelo prisma de quem os faz, apenas de quem os provoca. Mas a
mobilização para o trabalho na terra é, também, a mobilização de uma memória, assim o
faz Dona Rosa e Francisco de uma memória recente, assim o faz também um
trabalhador rural de uma das comunidades do projeto de produção agroecológica em
Buriticupu:
Quando a gente começou a fazer as hortas e as roças ecológicas, isso
tudo vem trazendo mais incentivo pra gente (...) É bom porque a gente
que já vem de origem dos trabalhadores mais antigos, do velho meu
avô, meu pai. Ensinou a gente a trabalhar desde pequeno e a gente
sempre tem o contato com... com esse movimento mesmo de trabalho
na terra (Antônio Farias, Camponês do Centro dos Farias, Maranhão,
depoimento ao documentário Mutirão pela Vida, 2014)72

As pessoas têm histórias e, por que não dizer, geografias históricas. Por elas se
dá sentido ao que se faz. Por elas Antônio vê na horta uma lembrança do pai, do avô.
Por elas, ele vê nas roças suas origens de trabalho com a terra. As memórias do trabalho
71
Acessado em http://justicanostrilhos.org/2014/09/02/mutirao-da-vida-agroecologia-como-alternativa-
ao-saque-da-mineracao/.
72
Acessado em http://justicanostrilhos.org/2014/09/02/mutirao-da-vida-agroecologia-como-alternativa-
ao-saque-da-mineracao/

319
na terra ou da expulsão da terra marcam uma necessidade coletiva de tornar a terra um
território. A força de estar junto não vem apenas da necessidade de se contrapor à
mineração, na verdade, a necessidade de se contrapor é apenas uma maneira de
continuar a existir na terra, maneira esta que, ao passo que expressa a força de
concentração fundiária de uma empresa de mineração, ganha sentido de r-existência na
lida diária de produzir e se reproduzir na terra, entre memórias de trabalho e violência,
como família, como comunidade, como movimento... Solidariedade, nestes termos, é
um desenho territorial, um modo de relação espacial, uma maneira de dar sentido
coletivo à vida, de garantir a sobrevivência de Dona Rosa e Francisco, expulsos
brutalmente, ou é o religar-se à terra de Antônio para que o trem não carregue, pelas
promessas de emprego - que nunca chegam - também a vontade coletiva de continuar a
trabalhar e r-existir na e pela terra, tornada território.

8.3 POR BABAÇUAIS LIVRES: A TERRITORIALIDADE DAS QUEBRADEIRAS DE COCO


BABAÇU
Não devaste os palmeirais, deixe o coco dar raiz
Eu vivo quebrando coco, do coco que eu sou feliz
Eu vivo quebrando coco, do coco eu sou feliz.

Se você é fazendeiro ou algum industrial,


segure suas cabroeiras, que eu não sou sua rival,
mas deixe nossas palmeiras, botar coco em seu quintal.
Eu conheço essa história, não sei quando terá fim
Eu só quero quebrar coco, eu não quero seu o capim,
Já não basta o mal da seca, vem a cerca contra mim.
Você é dono do gado, do açude e do curral,
Mas não é dono do coco, nem também do coqueiral,
Você corta boi de corte, mas não corte o palmeiral.
Música: Não devaste os Palmeirais.
In: Canto e Encanto nos Babaçuais, 2014.

Em 2014, recebemos um convite da Alternativa para a Pequena Agricultura no


Tocantins (APA-TO) para apresentar a conjuntura regional na abertura do seminário da
entidade naquele ano. No caminho a Augustinópolis no Tocantins, onde seria o evento,
saindo de Marabá-PA, apenas um pensamento povoava a cabeça: a história de Josimo
Tavares, padre que nasceu em Marabá, mas tanto cultivou, pela teologia da libertação, a
organização e luta camponesa na região do Bico do Papagaio, com particular atuação
naquele lugar para onde nos direcionávamos. Percorrendo seus caminhos de evangelho
e militância, lembrávamos do atentado que ele sofrera bem próximo de Augustinópolis,
em abril de 1986, e de seu covarde assassinato anunciado, ocorrido no dia das mães
daquele ano nas escadas da Mitra Diocesana da cidade de Imperatriz no Maranhão.
320
Após a finalização dos debates em torno da fala que fizemos, um grupo de
mulheres quebradeiras de coco e mais alguns camponeses, levaram-nos para conhecer a
cidade. A primeira parada foi a entrada da rua Tocantins, quase no cruzamento com a
rua Planalto, onde foi inaugurado o Santuário Diocesano Santa Rita de Cássia.
Entretanto, não era o santuário que se queria mostrar, mas uma pequena igreja em sua
frente, único lugar que, durante os duros anos das décadas de 1970 e 1980, podiam-se
fazer as reuniões do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, sob a permissão e participação,
em muitas delas, de padre Josimo. Mas estávamos ali para constatar um fato: a nova
igreja, maior e imponente, segundo os camponeses, foi construída para apagar a história
que se fez na pequena igreja da frente. O Sol, em horários estratégicos, projeta sombras
no templo das reuniões históricas, como um ato de silenciar novamente padre Josimo e
os camponeses. Naquele caminho, uma canção era cantada pelas mulheres, a canção que
inicia essa seção. As memórias de resistências, que se tentou silenciar, estavam mais
vivas do que nunca naqueles acordes. Mulheres que, inclusive, muitas delas, perderam
seus maridos na luta pela terra, reinventavam o sentido de resistência. Pelas vozes
afinadas, percebíamos que os cantos das quebradeiras eram uma de suas principais
expressões de luta e reflexão, um convite à entrada naquele mundo feminino preenchido
pelas experiências de décadas de resistência.
O encontro com a música é um encontro com um modo distinto de pensar,
organizar, usar e sentir o espaço. Os babaçuais não se circunscrevem aos limites da
propriedade privada, estão em fazendas, em reservas, em áreas atravessadas pelos
trilhos, espalham-se sem obedecer a nenhum dono. As quebradeiras só precisam do
livre acesso aos babaçuais, mas sabem que, a cada dia, cercas as impedem, empresas as
constrangem, monocultivos devastam os palmeirais. O grito, em forma de canção, é
pelo babaçual livre para o uso coletivo de mulheres, que caminham largas distâncias
ecoando seu mundo por canções.
Entretanto, novas ameaças se definem com a expansão da mineração. Os
trilhos, como já demonstramos neste trabalho, trouxeram consigo várias siderúrgicas
instaladas, sobretudo em Marabá-PA e Açailândia-MA. E a transformação do ferro em
ferro-gusa, feito pela siderurgia, tem como elemento central, o calor proveniente do
carvão. Nestes termos, seja pelos monocultivos de eucalipto, que se transformam carvão
e devastam babaçuais, seja pela própria transformação do coco em carvão, seja ainda
pelo recorte dos coqueirais pelos trilhos, a mineração entra sem pedir licença na
dinâmica de vida e trabalho das quebradeiras de coco babaçu.

321
Para termos uma noção da importância da quebra do coco babaçu para um
conjunto de comunidades atravessadas pela mineração, alguns dados são
representativos.
QUADRO 17 – Importância da extração do Coco Babaçu ao Maranhão
Quantidade de Babaçu na Extração Vegetal por
Estado da Federação (Toneladas)
Estados 2000 2010 2016
Amazonas 1 12 0
Pará 19 28 13
Tocantins 1.953 626 257
Maranhão 10.8043 99.460 57.191
Piauí 6.013 5.223 3.500
Ceará 416 354 179
Bahia 443 352 249
Mato grosso 0 0 1
Total (Brasil) 116.888 106.055 61.390
Fonte: IBGE, 2017. Elaboração Bruno Malheiro, 2018.

O quadro 17 representa a importância do estado do Maranhão na extração do


babaçu, sendo, de longe, o estado com maior quantidade de toneladas extraídas.
Tocantins e Piauí também apresentam destaque e o Pará, mesmo com uma produção
menor que Bahia e Ceará e os três estados supracitados, compõe uma região de
organização importante das quebradeiras de coco. Essa região de organização, que
engloba o bico do papagaio e os caminhos percorridos por Padre Josimo, mas alarga-o,
consolidou-se a partir da criação do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco
Babaçu (MIQCB). Entre 1989, com a criação da Associação em Área de Assentamento
do Maranhão (ASSEMA), quando foi instituído um grupo de estudos de mulheres
trabalhadoras rurais, e 1991, com o I Encontro Nacional das Quebradeiras de Coco,
consolida-se o movimento, que envolve as quebradeiras dos estados do Maranhão, Pará,
Tocantins e Piauí, aglutinando várias unidades regionais, quais sejam: São Luis, baixada
maranhense (município de Viana-MA), Médio Mearim (município de Pedreiras-MA),
município de Imperatriz–MA, Tocantins (Bico do Papagaio), Sudeste do Pará
(município de São Domingos do Araguaia-PA) e ainda outra no Piauí (Esperantina).
Na década de 1990, por conta de toda pressão internacional para a criação de
reservas extrativistas, particularmente protagonizadas pelas organizações dos ―povos da
floresta‖, no expressivo exemplo do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNA), foram
criadas, em 1992, quatro reservas específicas para a coleta do babaçu: do Extremo
Norte, entre os municípios de Sampaio, Carrasco Bonito e Augustinópolis; do

322
Quilombo do Frechal, no município de Mirinzal-MA; do Ciriaco, no município de
Cidelândia-MA; e de Mata Grande, que engloba os municípios de Davinópolis, Senador
La Roque e João Lisboa (BARBOSA, 2013)73, sendo que apenas a RESEX do
Quilombo do Frechal foi realmente efetivada, o que direciona parte da luta das
quebradeiras para a efetivação das outras Reservas (PNCSA, 2014). Além das RESEXs,
as relações com intelectuais e técnicos consolidaram a pauta pela Lei do Babaçu Livre,
que se instituiu em vários municípios74, e dá uma tradução jurídica a uma demanda
territorial bastante singular.
Uma dessas RESEXs criadas, a do Ciriaco no município de Cidelândia no
Maranhão está nas cercanias da EFC e sofre impacto direto, principalmente da demanda
por carvão para as siderúrgicas. Vale ressaltar ainda que alguns municípios cortados
pelos trilhos aprovaram ou tramitam leis para os babaçuais livres, como Cidelândia e
Vila Nova dos Martírios. Em termos de produção, o quadro abaixo demonstra todos os
municípios diretamente atravessados pela EFC com registro, em toneladas, de extração
de babaçu, entre 2000 e 2016.
Vale ressaltar que, apesar da produção do babaçu ainda ser a fundamental fonte
de vida para múltiplas mulheres quebradeiras, ela tem uma queda expressiva no período
identificado no quadro, justamente pelo processo de devastação do babaçual se acelerar
nos últimos anos, o que também exige força organizativa das mulheres.
QUADRO 18 – Extração de Babaçu por município de influência da EFC
Quantidade de Babaçu na Extração Vegetal por município na
Área de Influência direta da EFC (Toneladas)

Municípios/ Ano 2000 2010 2016


Anajatuba (MA) 91 84 85
Arari (MA) 238 210 18
Bom Jardim (MA) 1.684 868 526
Cidelândia (MA) - 16 34
Igarapé do Meio (MA) 804 461 287
Itapecuru Mirim (MA) 509 548 553
Miranda do Norte (MA) 22 31 31

73
Além dessas quatro Reservas Extrativistas, outras também são dignas de nota, como a do Rio Iriri
(Altamira, Pará) criada em 2006, a da Chapada Limpa (Chapadinha, MA), criada em 2007 e a do Rio
Xingu, (Altamira, PA) instituída em 2008.
74
Vários municípios aprovaram leis ou tramitam leis específicas para o livre acesso aos babaçuais, são
eles: Lago do Junco (MA), Lago do Rodrigues (MA), Esperantinópolis (MA), São Luís Gonzaga (MA),
Imperatriz (MA), Axixá (MA), Lima Campos (MA), Capinzal do Norte (MA), Pedreiras (MA), São José
dos Basílios (MA), Cidelândia (MA), Amarante do Maranhão (MA), Vila Nova dos Martírios (MA),
Praia Norte (TO), Buriti do Tocantins (TO), São Miguel do Tocantins (TO) e São Domingos do Araguaia
(PA) (MIQCB, 2017).

323
Monção (MA) 2.356 1.080 432
Pindaré-Mirim (MA) 614 375 229
Santa Inês (MA) 233 179 134
Santa Rita (MA) 10 12 12
São Pedro da Água Branca (MA) - 30 14
Tufilândia (MA) 822 293 157
Vila Nova dos Martírios (MA) - - 10
Vitória do Mearim (MA) 1.003 760 55
Fonte: IBGE, 2017. Elaboração Bruno Malheiro, 2018.
Dos 23 municípios atravessados pela EFC no Maranhão, 15 deles apresentam a
coleta do coco babaçu como atividade importante, com destaque aos municípios de
Bom Jardim, Itapecuru Mirim, Igarapé do Meio, Monção, Tufilândia, Vitória do
Mearim, Pindaré-Mirim e Santa Inês. É, portanto, esse o contexto em que as
quebradeiras de coco definem a Mineração no corpo de seus antagonismos para a
efetivação do babaçual livre. Mesmo áreas não diretamente cortadas pela ferrovia, são
afetadas pela demanda pelo coco inteiro tornado carvão.
Aqui eles já levam o carvão pronto, os caminhoneiros, eles não
querem só o coco inteiro, já querem é o coco inteiro todo queimado, e
tem de todo jeito, é fazenda alugada, é queimando nos lotes, é de todo
jeito, o importante prá eles é ter carvão. E compram coco inteiro
também, tem as juntadeiras de coco e o coco vai todo embora. Cada
mulher cata 18 sacos por dia, enchendo sacola, é criança enchendo
saco, é todo jeito (Maria Francisca Batista da Costa apud ACEVEDO
MARIN; MARTINS, 2014).

Pela explicação de dona Maria Francisca, percebemos claramente a


preocupação com a expansão da transformação do coco inteiro em carvão. Uma carta,
escrita em 2009 pelo MIQCB, em vista do perigo da desterritorialização das
quebradeiras, sintetiza as principais questões e conflitos vivenciados:
O processo de devastação dos babaçuais, através do desmatamento
indiscriminado e de corte raso, vem se intensificando nas terras
tradicionalmente ocupadas e usadas pelas quebradeiras de coco
babaçu; a produção de carvão vegetal, principalmente com a
usurpação do coco inteiro, vem aumentando com a multiplicação das
carvoarias, vinculadas à indústria siderúrgica, que operam em
desrespeito às leis trabalhistas e associadas ao trabalho escravo, com
ameaças à integridade física das quebradeiras de coco; a expansão
desordenada do rebanho bovino restringe o extrativismo do babaçu,
que prestaria serviços ambientais, contradizendo o discurso de
proteção social e ambiental do governo. Por isso reivindica-se a
aprovação do projeto de lei que dispõe sobre a Preservação e o Livre
Acesso aos Babaçuais pelas quebradeiras de coco (Carta ao VI
Encontro do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco
Babaçu, 2009)75.

75
Ver em http://aneste.org/vi-encontro-do-movimento-interestadual-das-quebradeiras-de-coc.html.

324
No documento estão presentes as causas centrais da devastação dos palmeirais,
mas também está clara a demanda jurídica de aprovação do projeto de lei de Acesso
livre aos babaçuais, que demarca as estratégias territoriais do movimento. Entretanto,
outra música cantada pelas Encantadeiras, um grupo de cantoras quebradeiras, revela-
nos muito sobre a arte de quebrar coco.
(...) O coco é para nós grande riqueza
É obra da natureza
Ninguém vai dizer que não
Porque da palha só faz casa pra morar
Já é meio de ajudar a maior população
Se faz o óleo para temperar comida
É um dos meios de vida
Pra os fracos de condição
Reconhecemos o valor que o coco tem
A casca serve também para fazer o carvão
Com o óleo do coco as mulheres caprichosas
Fazem comidas gostosas de uma boa estimação
Merece tanto seu valor classificado
que com o óleo apurado se faz o melhor sabão
Palha de coco serve pra fazer chapéu
da madeira faz papel inda aduba nosso chão
Tela de coco também é aproveitado
Faz quibano o cercado pra poder plantar feijão
A massa serve para engordar os porcos
Tá pouco o valor do coco precisa darem atenção
Para os pobres este coco é meio de vida
Pisa o coco Margarida e bota o leite no capão
(XOTE DAS QUEBRADEIRAS DE COCO,
João Filho ou João Abelha. ENCANTADEIRAS, 2014)

Pela música, o coco babaçu define um modo particular de riqueza da natureza.


Pelas rimas, transforma-se em quase tudo de essencial à vida, ajuda a morar e a comer,
produz sabão, chapéu, aduba o chão, engorda os porcos, enfim, é a própria condição
essencial para a realização da vida, por isso, precisa ser compreendido em sua
importância para os pobres de condição. Não estamos tratando, como muitos pensam e
mesmo definem, de uma atividade econômica apenas, mas de um modo específico de
existência, um modo de cantar o mundo, através de vozes femininas, no qual o coco
babaçu assume importância central, não só para a reprodução social, mas para um fazer
espacial.
Outra música nos traduz esse fazer espacial que define a atividade cotidiana
das quebradeiras:
Babaçu Livre é a decisão.
Se derrubar é a destruição.
Meio ambiente só se vê falar.
Queremos nossa reserva para preservar.

325
Somos quebradeiras, demos opinião.
Fizemos lei da nossa profissão.
Já discutimos a legislação.
Pra levar para o congresso para aprovação.
(Canto das Quebradeiras.
Raimunda Gomes da Silva. ENCANTADEIRAS, 2014).

Babaçu livre é a decisão! Por essa frase a perspectiva de liberdade de acesso


aos babaçuais para a coleta do coco, exprime uma dinâmica territorial definida pelo uso
coletivo do palmeiral, o que se objetiva em lei e ganha contornos jurídicos. A campanha
de 2016 do MIQCB, talvez seja mais uma expressão importante do que significam os
babaçuais, diz a campanha ―Floresta de Babaçu é vida. Deixar em pé, deixar viver‖
(MIQCB, 2016).
Pela vida da floresta de Babaçu desenha-se uma territorialidade inscrita pelos
caminhos dos babaçuais, como um modo de significar o espaço, de organizá-lo a partir
de uso coletivo e de valorizá-lo por uma perspectiva de valor nutrida da riqueza do
coco.

8.4 O RIO COMANDA A VIDA...


Um rio definitivamente não é um amontoado de água a atrapalhar a passagem
de um trem. Vendo por esse ângulo esquecemos que um sentido de um rio carrega mil
sentidos, que as horas contadas por sua correnteza, discorrem o tempo ao vento e
definem ritmos sociais, que pelo espelho de suas águas vemos o sonho de mundos
percorridos por barcos à montante, a magia de seres escorridos de nossa compreensão à
jusante.
Em seu clássico livro ―O rio comanda a vida‖, Leandro Tocantins desenha com
sutileza essa importância do rio aos povos amazônicos,
O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o
que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os
condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma
dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.
(TOCANTINS, 2000, p.278)

A vida como dádiva do rio e as águas como fiador dos destinos, talvez seja
uma maneira honesta e precisa para falar dos rios para as comunidades e povos
amazônicos. Entretanto, seja pela arrogância faraônica de grandes hidrelétricas que
barram os rios de cumprirem seus caminhos e destinos, seja pela displicência
interessada de obras de logística que atravessam nascentes, rios e igarapés e fazem secar
a esperança vinda das águas, como uma ferrovia, os rios sucumbem diante dos circuitos

326
cada vez mais rápidos de um capital cada vez mais fluido, cuja fluidez, quase sempre,
impede outros fluxos, outras correntezas...
É nesse cenário de rios cortados por uma ferrovia e suas obras de duplicação,
mas também de rios usados pela mineradora como barragens de rejeitos, como o rio
Parauapebas - que a qualquer momento pode ser afundado de minérios, como o Rio
Doce, em Minas Gerais, no crime de novembro de 2015 - que comunidades no corredor
Carajás-Itaqui afirmam sua vida à beira de rios cortados pelo trem.
A mineradora, das zonas de extração aos espaços recortados pelos trilhos,
ameaça um conjunto de corpos d‘água. O senhor Edmar chega a afirmar que:
O rio Parauapebas é um rio, como se diz, que não tá servindo quase
prá nós aqui, porque água não tá tendo... e quando tinha água aí pra
gente tomar banho, se a gente tomasse banho, com uma hora tava todo
cheio de coceira no corpo todinho, cheio de caroço coçando no nosso
corpo todo. É uma água que não tem serventia, por quê? Porque é só
pela causa deles mesmo que joga tudo ruim ai pra dentro (...) Aí não
tem como, nem a gente banhar, nem a gente beber dela. É uma água
que não serve mesmo pra nada (Edmar, Camponês acampado em
Canaã dos Carajás, entrevista realizada em outubro de 2016).

Rosiane Cardoso, que, como já vimos, já fez denúncias das violações da


mineradora Vale até a organismos internacionais, também afirma que:
Ela (a Vale) chega implanta o projeto dela e tudo e a economia que ela
diz que é desenvolvimento, que é isso que ela chegou iludindo. Hoje
são 15 igarapés entupidos, as vezes a gente sai pra pescar e a gente já
encontra bem pouco pescado, nessa região desses 15 igarapés a gente
vê bem pouquinhos peixes lutando para sobreviver. O que eu quero
pros meus filhos é isso que eu tenho hoje, que eles trabalhem
independentemente pra eles (Rosiane Cardoso, presidenta da
Associação dos Moradores de Sítio do Meio/Santa Rita/MA e
Secretário do Sindicato dos Pescadores da localidade, depoimento ao
documentário Trilhos da Vida, 2016).

O rio povoa o cotidiano e o trabalho de Rose, e o entupimento de 15 igarapés


pela empresa, que ela tanto denuncia, turva de incertezas o seu futuro. Esse relato,
colhido do filme ―Trilhos da Vida‖ é feito com lágrimas nos olhos e voz embargada
pela emoção da impossibilidade de continuar a pescar. O choro de Rose é a denuncia de
uma indiferença para com um modo singular de usar o rio e de se relacionar com a
natureza - no qual o pescado significa um sentimento de autonomia e independência em
relação à vida - é o um modo de demonstrar o desrespeito para com todo o sentimento
que ela, sua família e a comunidade nutrem com o território, suas lágrimas são, enfim,
de uma reclamação, afinal, como ela mesmo diz: ―eles não querem saber se eu já me

327
apeguei a esse lugar, que eu já construí família aqui, meu patrimônio, onde estou
criando meus filhos, eles não estão nem aí (NÃO VALE, p. 16)‖
Os sentidos de uma territorialidade se desenham pela busca da autonomia
expressa na abundância do pescado e no modo particular de pertencimento construído
através de relações familiares e comunitárias.
Também politizando esta indiferença, assim como faz Rose, o Cacique da
aldeia Januária, uma das sete aldeias de terra indígena Rio Pindaré, Bruno Caragiu
Guajajara sentencia:
Uma coisa que eu deixei bem clara (para a Vale) é que eu não ia
deixar eles matarem o rio Pindaré igual eles mataram o rio Doce, que
é uma coisa bem triste, que prejudicou ribeirinhos, assentados,
indígenas, todo mundo que dependia dos rios (...). Hoje o Rio Pindaré
é um rio que dá um suporte pra gente, a gente tem lazer, a gente tira
dali o sustento, uma perda pra nós do Rio Pindaré seria quase que uma
morte pra gente (Bruno Caragiu Guajajara, Cacique da Aldeia
Januária, entrevista à RBA em 29/07/2017).

A morte do rio como a morte de um povo é motivo suficiente para os


Guajajara avisarem a uma empresa que eles não irão deixar que ela mate o rio!
O mapa 9 (Ferrovia Carajás e Hidrografia) demonstra muito bem não apenas
o conjunto enorme de rios cortados pela EFC, mas pedimos um destaque ao Rio
Pindaré, lembrado por Bruno Guajajara, pois a ferrovia segue o curso deste rio o
cruzando várias vezes, sendo sua dinâmica inteiramente modificada por ela.

328
MAPA 9 – Ferrovia Carajás e Hidrografia

329
Os Guajajara-Tenetehara no Maranhão é um povo tupi-guarani, que se
autodenominam Tenetehara, os seres humanos verdadeiros e, provavelmente, foram
denominados de Guajajara, os donos do Cocar, pelos Tupinambás. Sua história de
contato com o karaiw (o não-índio) possui mais de quatrocentos anos, quando em 1615
encontraram-se, nas margens do rio Pindaré com uma expedição francesa, situação que
mudou com a instalação das missões jesuítas na região a partir de 1653 (ISA, 2018). O
tempo de contato aqui é exposto para termos em conta os séculos de relação dos
Tenetehara com o rio Pindaré.
Em termos cosmológicos, o mundo dos Tenetehara é povoado de espíritos
com quem os mesmos se relacionam no cotidiano, pelas trilhas da floresta, pela pesca
no rio, pela convivência com a natureza. Há os espíritos dos animais, das águas, das
árvores, dos mortos, da floresta, sendo o mundo composto por uma complexa teia de
relação entre os indígenas e esses espíritos. Esses seres são os Karowara, e um deles
queremos destacar aqui, Ywan, que é o espírito temido e protetor das águas (GALVÃO;
WAGLEY, 1961).
A vida de um povo como a vida de um rio não é mera metáfora. Aquilo que
chamamos natureza, particularmente aquilo que representamos como sendo um
elemento natural: o rio, na verdade tem alma, é, também, um ser ou vários seres, que
podem ser hostis se não forem tratados com respeito, segundo os Tenetehara.
Kaboiting Tenetehara, em depoimento a Cláudio Zannoni (1999), deixa bem
claro como o mundo é regido pelas leis de Maíra, o herói criador do homem e da mulher
Tenetehara, que o ensinou a viver, caçar, pescar. Por suas palavras as relações com a
natureza ganham um sentido muito próprio:
- Na nossa lei tudo tem espírito. Não se pode matar qualquer animal
(...). Peixe também tem espírito (...). Até para cortar uma árvore é
preciso pedir licença. Se tu tá doente e precisa daquela árvore, tu
conversa com ela dizendo que você tá doente, que só ela pode te curar.
Aí assim a gente tira a casca, a folha ou a raiz.

Assim como outras territorialidades indígenas já descritas em linhas gerais aqui


neste trabalho, para os Tenetehara o que chamamos de natureza é, na verdade, uma teia
de muitos espíritos que possuem claro discernimento acerca do que são e protegem,
sendo, nesse emaranhado de relações, que a maneira de interação com o rio, a floresta,
uma árvore, um animal é definida. A vida complexa da natureza delimita um modo de
uso do espaço em que os ritmos são definidos pelos Karowara, o que revela que um rio
é muito mais que um rio, em sentido karaiw. Pedir licença é o mínimo que se pode fazer

330
ao se relacionar com os Karowara, pois o grau de hostilidade deles, por ações
desmedidas e irresponsáveis, pode trazer doenças, pragas e, até mesmo, o extermínio da
comunidade.
A vida, assim, não é vista como um elemento próprio do corpo humano é,
também, a conexão estabelecida entre este e todos os seres que povoam, protegem,
habitam as árvores, os animais, os rios...
Rosiane, seu Edmar e Bruno Guajajara constroem antagonismos territoriais
com a empresa Vale pela afirmação da importância do rio para a vida, para o cotidiano,
para as formas de uso do espaço.

8.5 A TERRITORIALIDADE DO CUIDADO QUILOMBOLA


A nossa ida a campo para conhecer a comunidade quilombola de Santa Rosa
dos Pretos76, foi várias vezes planejada, mas várias vezes adiada. Os mais de 600km de
distância, em linha reta, de nossa base de pesquisa, Marabá, e o município de Itapecuru
Mirim no Maranhão, onde fica a comunidade, além da dificuldade de percorrê-los entre
vans, ônibus e outros transportes, sempre impediam um entrelaçamento entre nossas
agendas de pesquisa e as agendas da comunidade. Mas tínhamos de conseguir, a
comunidade constituiu-se, por seus processos de luta, uma referência para múltiplos
sujeitos em antagonismo à mineração. Algumas viagens foram feitas, entre avião,
ônibus e van, até chegarmos finalmente à Santa Rosa, pontualmente às 8 da manhã,
como programado, totalizando mais ou menos 10 horas de viagem. Embora os olhos e o
corpo, já cansados dos outros trinta dias de trabalho de campo, parecessem que ainda
não haviam chegado, rapidamente despertaram-se com o abraço forte que nos deu dona
Anacleta Pires, liderança do quilombo. Um tempo veloz ainda estava impregnado no
corpo, depois da distancia percorrida, mas tudo se desmontou naquele abraço. Foram
alguns segundos de um afetuoso aconchego com quem, até então, não conhecíamos
pessoalmente. Aquele abraço, que fortalecera o espírito, naquele momento,
transformava-se na melhor metáfora de compreensão daquele lugar. Ele não era por
acaso e dizia muito mais do que se poderia imaginar, longo de pronto, naquela chegada.
Depois do abraço, um café para acordar de vez! Já estávamos na cozinha, junto
à família de dona Anacleta e, durante o dia inteiro, de vez enquanto voltávamos para lá,

76
As terras do quilombo eram da antiga Fazenda Santa Rosa em Itapecuru Mirim no Maranhão, que
pertenceu, até 1898, a Joaquim Raimundo Nunes Belfort (1820-1898), o Barão de Santa Rosa, um tenente
coronel dono de escravos, que afirmou em testamento que as suas terras ficariam para usufruto perpétuo
de seus ex-escravizados (LUCCHESI, 2016).

331
sempre alternando entre o pátio, a sala e algumas caminhadas pela comunidade. E foram
nessas pequenas andanças, que outra marca nos acordava para aquele mundo de
relações: a necessidade dos mais jovens de pedir à benção aos mais velhos. Quantas
vezes, durante as caminhadas, crianças, jovens e mesmo adultos vieram ao nosso
encontro pedir a benção de Anacleta, quantas vezes ela pediu à benção aos mais velhos,
que encontrou no caminho.
O Cuidado foi a palavra mais ouvida de todas as pessoas que tivemos a
oportunidade de conhecer e conversar. E foi nesse ambiente de total acolhimento que
Dona Anacleta começou a falar, sem mesmo ser questionada. Logo perceberíamos que
aquele roteiro semi-estruturado, preparado com esmero, havia de se deixar fluir pelo
rumo daquela prosa. E uma atmosfera de confiança se construiu de pronto, como que
selasse o abraço da recepção, talvez por, em outra oportunidade, já termos conversado
bastante com seu filho e uma de suas filhas, durante uma reunião em Marabá, talvez
pela Rede Justiça nos Trilhos ter se pontificado a ajudar no contato, o fato era que, nessa
hora, o sono e o cansaço não turvaram, em nenhum momento, a atenção para com
aquelas palavras proferidas com tanta sabedoria.
De início, ela nos falou de todas as lutas que a comunidade teve e ainda está
tendo de travar por conta de múltiplas intrusões (a comunidade é cortada pela ferrovia
transnordestina, por vários linhões de energia elétrica, pela Br-135 e pela Estrada de
Ferro Carajás e seu processo de duplicação) e logo traduziria toda essa luta em um
modo de compreensão particular do território. Disse ela:
Nesse reconhecimento a gente pode dar vários conceitos a espaços né,
como, por exemplo, o que significa um território pra nós né, que é a
junção de vários quilombos. A gente sabe que em questão de terra,
grão de terra, é espaço-terra, mas trazendo as questões das
ancestralidades tem muita diferença né? A Santa Rosa por conter essas
diferenças (...) é um território, uma junção de vários quilombos, o que
nos leva a compreender... isso faz parte da resistência que através dos
comportamentos, isso nos faz entender as diferenças né? Então isso
forma território. A gente tem uns conceitos bem definidos em termos
de entendimento. O que é o quilombo, o que é o território e o que é a
comunidade negra rural. O território é formado pelos quilombos, o
quilombo é só um espaço, é um povo que comunga o mesmo
comportamento e as comunidades quilombolas foram pessoas que se
agruparam de diferentes quilombos (...) (Anacleta Pires, Liderança
Quilombola, entrevista realizada em janeiro de 2018).

Dona Anacleta organiza para nós uma geografia quilombola, significando


conceitos, ela demarca fronteiras de entendimento bastante claras e projeta uma leitura
geográfica bastante singular. Nesses termos, o território é a reunião dos quilombos, mas

332
não pode ser visto apenas como o grão de terra, o espaço-terra, é mais que isso, por ser
marcado por ancestralidade. Há legados, histórias, tradições, um repertório de cultos,
costumes, festas que marcam uma diferença no espaço. Essa junção de vários quilombos
só marca a diferença pela resistência através de determinados comportamentos,
determinados modos de fazer. Por esse prisma, o quilombo é só um espaço, cujo
atributo central é o compartilhamento de um dado comportamento, sendo as
comunidades quilombolas ou comunidades negras rurais um conceito que abarca as
diferentes pessoas de distintos quilombos que se agrupam sem necessariamente
formarem quilombos.
O modo de compreensão, ou os ―conceitos bem definidos em termos de
entendimento‖, decorre, de um lado, da necessidade de compreensão da diversidade de
formas de organização social que a realidade vai construindo. Por outro lado, surge o
território como uma categoria eminentemente política, uma vez que marca a unidade na
diversidade de quilombos e comunidades quilombolas, expressando a diferença e se
objetivando em resistência.
Vale dizer que o território quilombola a que dona Anacleta se refere
compreende vários quilombos, além de Santa Rosa dos Pretos, Barreira Funda, Sítio
Velho, Matões, Fugido, Centro de Águida, Colégio, Barreiras, Boas Vista, Kelrú,
Curvas de Santana, Alto São João, Conceição e Picos I e II (LUCCHESI, 2016).
Mas essa primeira forma de reunião que significa o território não tem sentido
se não houver aquilo que sentimos intensamente assim que chegamos ao quilombo, o
cuidado, ou nas palavras de Anacleta:
A gente tem conflitos internos mas não quer que ninguém fale deles
né (...) é coisa de família a gente se resolve. Falando isso pra dizer que
a gente vive dos cuidados, mesmo com conflitos que tem até na casa
da gente com o filho, com o marido, mas a gente tem harmonia na
nossas diferenças. A gente briga fora das festas, fora das
manifestações, mas na hora das manifestações, dos cuidados, não
existe isso (...) nas festividades todo mundo ajuda e nas manifestações
todo mundo participa (Anacleta Pires, Liderança Quilombola,
entrevista realizada em janeiro de 2018).

O cuidado é atitude estruturante para amalgamar a diversidade quilombola


num sentido territorial de luta e resistência. Viver dos cuidados, apesar dos conflitos,
torna-se uma atitude social ou uma maneira de construir solidariedade entre diferenças
internas. As festas e manifestações são os lugares em que o cuidado assume tons de
reunião, ou mesmo de politização. Começamos a entender o tamanho respeito para com
os mais velhos e a função social dos abraços.

333
Mas o cuidado, continua Anacleta, não significa apenas um modo de relação
social sem conflitos ou uma dinâmica de solidariedade estratégica em mementos de
necessária unificação. O cuidado é muito mais que isso, pois é uma ponte para as
―relações naturais‖:

O território significa fortaleza né, é o que nos leva fortalecer não é,


porque é assim, as vezes fica até difícil de explicar, porque isso pra
nós é a relação natural, sabe, hoje até que de manhã eu fiquei
pensando nas questões, pensando no significado ‗terra‘ (...) diante do
que a gente ta vivendo hoje. A gente se encontra para lutar melhor a
partir das relações naturais, é se sentir parte dessa natureza, é saber
que somos um grão de terra, que somos um pingo de água, que somos
uma folha e que somos uma semente... Eu acho que por aí com esses
significados é que a gente vai pra frente pra defender a permanência,
principalmente da forma que nos colonizaram a mente, o sentimento
(...). Temos que entender essa territorialidade a partir dessas coisas, do
pertenço (Anacleta Pires, Liderança Quilombola, entrevista realizada
em janeiro de 2018).

Se o território é uma reunião de quilombos a marcar a diferença pela


ancestralidade quilombola, se o cuidado solidifica essa primeira reunião, ele também
assume o significado de fortaleza, de modo que o que o fortifica é um modo particular
de se sentir parte da natureza, como grãos de terra, pingos d‘água, folha e semente. Só
desse modo, projetando esses significados é que se pode defender a permanência e
descolonizar a mente, de modo a preencher de expressão a palavra: pertenço.
O sentido do território, dessa forma, aponta uma travessia da humanização da
natureza para uma humanidade da natureza. Os termos parecem iguais, mas são
radicalmente distintos. Pela humanização temos a ação humana como elemento a
transformar a natureza (a produzir espaços?), pela humanidade da natureza temos um
religar ao que nos dá a vida (território?). Por essa geografia, a cultura, a ancestralidade e
toda a gama de significações identitárias, e o próprio cuidado, só ganham sentido
quando são relações naturais, ou melhor dizendo, quando somos grão de terra e
sentimos ela recortada por um trilho, quando somos gota d‘água e não mais chegamos
ao igarapé que não existe mais, quando somos folha que cai, quando não mais se segura
no galho e, ao mesmo tempo, semente que germina a nossa possibilidade de continuar a
existir. O território, nestes termos, assume o caráter de religar a comunidade à vida da
terra e da natureza, ou em outras palavras, de naturalizar a humanização para dar
humanidade à natureza que somos nós.

334
Uma geografia se define para marcar sua diferença frente à geografia de todas
as formas de violação que atravessam a comunidade. Essa geografia compreende o
território como um processo de (re)união em, pelo menos, três sentidos: o primeiro,
porque o território reúne a diversidade de formas de organização social a um sentido
político objetivo e claro de resistência; o segundo, porque reúne distintos grupos pela
prática social do cuidado, e o terceiro, porque reúne as relações sociais e relações
naturais, ou seja, religa a comunidade e a natureza como modo de sentir a terra.
Josicleia Pires, uma das filhas de dona Anacleta, faz eco aos sentidos
assumidos pelo território:
Nosso lugar de origem é nossa mãe! É nossa terra. A questão do
espiritual e do sentir. A gente está mostrando em todo instante o
sangue, o corpo e os corpos do que nos antecederam, pois a gente é a
base de tudo isso, pois foi tudo a gente que construiu, mesmo que
escravizados, construímos isso aqui. A gente se vê enquanto um (...).
A gente precisa se preocupar com o outro, com o cuidado (Josicleia
Pires, liderança quilombola, entrevista realizada em fevereiro de
2016).

O sentido de mãe, ou mesmo o lugar do feminino, é fundamental para o


território quilombola. A mãe terra é a mãe de reprodução e dos cuidados, ela dá sentido
à existência, pois pôs no mundo, criou e cuida. A ela estamos ligados espiritualmente e
sentimos isso pelo sangue e corpo daqueles que antecederam. A ancestralidade também
se mostra como um modo de sentir a terra, como ato de ligação ancestral e, assim, a
reunião dos quilombos, a prática do cuidado estão ligados ao ato de sentir a terra, a mãe
que alimenta, une e cuida.
É só a partir dessa geografia, forjada pela necessidade de continuar a existir
diante das violações da mineração e tantos outros projetos monstruosos, que podemos
entender a tamanha politização necessária dada ao território.
No ano de 2008 a empresa Vale entrou com um recurso
administrativo contestando o processo de regularização fundiária de Santa Rosa dos
Pretos, a empresa, nestes termos, além de atravessar o corpo da comunidade, que é sua
terra, e criminalizar suas lideranças, em processos já descritos anteriormente neste
trabalho, usa do artifício mais escuso que é deslegitimar em uma esfera burocrática o
que é legítimo na esfera social, transformando a burocracia em um modo de
circunscrever ao seu tempo moroso, demandas urgentes e, assim, ampliar a assimetria
na relação com a comunidade, alargando sua capacidade de interferir no fazer político
das pessoas.

335
Por esse questionamento a politização do território torna-se ainda mais
necessário, pois como diz Anacleta ―quem sabe o que somos nós não é a Vale‖. Desse
modo a objetividade política do território, torna-se premente:
(...) ainda não somos reconhecidos e respeitados em nossa dignidade,
como povo quilombola. Avançamos muito em direitos, mas somos
ainda ameaçados diariamente (...). Aqui era uma só família e, dentro
da nossa compreensão de territorialidade, todos os quilombos são
irmãos (...) eu luto pra que a gente consiga viver na nossa terra, do
nosso jeito. Temos as nossas danças, nossos tambores, é uma beleza,
uma resistência. A Vale entrou com essa contestação. Diz que
desconhece a nossa origem. Ela alega que não somos quilombolas.
Não é fácil falar com quem não quer ouvir e entender (...). Nós sempre
pedimos respeito em relação ao território e não nos respeitam. Nós
conhecemos todos os nossos limites, e as nossas terras foram
invadidas (Anacleta Pires, liderança quilombola apud JUSTIÇA NOS
TRILHOS, 2016).

O território quilombola, para politizar os termos da contestação, define-se


como uma fronteira étnica materializada em limites físicos, como modo de explicar sua
distinção, de modo a garantir a permanência de um jeito próprio de lidar com terra. O
sentido da resistência se constrói pelo modo de fazer diferente, pelas danças, pelos
tambores, pelo modo de definir a territorialidade através da família, em que o uso
comum prevalece ao uso privado e, também, pela dignidade de ser quilombola.
As relações com a terra, com a família, com a história vão criando os
significados que orientam as práticas e, nesse sentido, a auto-definição torna-se um
mecanismo de diferenciação das relações que orientam as práticas da grande
mineradora. O território, esse modo de sentir a terra pelo cuidado, torna-se
decisivamente um ato de resistência, ou no sentido mais exato, r-existência.
Nesse sentido, como comenta Almeida (2004), uma identidade coletiva se
objetiva em movimento social, sendo que o sentido coletivo da auto-definição impõe
uma noção de identidade que corresponde à territorialidade.
A geografia quilombola também nos fornece definições e reinterpreta conceitos
um tanto naturalizados por nossa geografia. O modo particular de geografar quilombola,
esse sentir a terra, agora reconstrói o olhar sobre uma noção tão falada nesse trabalho e
tão pouco refletida: o corredor.
As vezes a gente vai olhar os trilhos né, a gente vai à beira ou à
margem dos trilhos da Vale, aí a gente vê um trilho, um trem passando
e as vezes não se atenta que tem algo por trás. A gente tem aqui os
trilhos da transnordestina, temos cinco linhões e essa ferrovia e esse
trem da Vale que é uma destruição. E estamos aqui em corredores, por
que tudo corta, nada faz uma curva, tudo corta de ponta a ponta o

336
território (...). Tudo que passou aqui foi desse jeito. A gente tem essa
dificuldade de viver nos corredores e sufocado (Anacleta Pires,
Liderança Quilombola, entrevista realizada em janeiro de 2018).

O corredor não deixa de ser um circuito econômico criado por um modo


particular de acumulação por espoliação que imobiliza múltiplos territórios e inclui na
racionalidade corporativa a gestão das populações do entorno. O corredor continua
sendo isso. Mas no olhar quilombola ele também é um corte! Um corte que sufoca o
território se sentirmos a terra como parte de nosso corpo, se nosso olhar geográfico é
feito por uma ligação entre história e natureza, em matéria viva que sente as dores de
uma amputação.
O corte é o caráter destrutivo de uma ferrovia é sua leitura a contrapelo, por
isso agora lembramos novamente de uma passagem de Walter Benjamin que em muito
dialoga com dona Anacleta.

O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mais eis precisamente


por que vê caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros
ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda
parte, tem de desobstruí-lo também por toda parte. Nem sempre com
brutalidade, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda
parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de
saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, mas
por causa do caminho que passa através delas (BENJAMIN, 1987, p.
237).

Onde se vê a vida, a história, o cuidado, também ali é possível ver caminho e,


por isso, uma estrada de ferro produz suas ruínas que, pelo saber quilombola,
reconduzem o modo de olhar a partir das lutas do presente.
A reunião entre ancestralidade, cuidado e natureza num sentir a terra é
atravessada por trilhos, o território é cortado e sufocado, o corredor, para quem sente
seu passar, é uma faca, não um modo de transporte, o trem, desse modo, é uma lâmina
afiada a cortar territórios, ferir sonhos, separar vidas, dividir comunidades, rachar casas,
rasgar dignidades...

8.6 DO CONSELHO DOS CACIQUES AO TERRITÓRIO-FLORESTA


O dia estava ensolarado, era sábado, quando chegamos a Aldeia Kyikatêjê,
uma das 14 aldeias existentes na terra indígena Mãe Maria, para conversar com Concita
Sompré e seu esposo Zeca Gavião, cacique da aldeia. Já nos conhecíamos de outros
encontros, Concita hoje faz mestrado na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará,

337
e Zeca já havia participado de vários eventos na mesma universidade, onde lecionamos.
Mas a aproximação veio mesmo através de amigos que discutem a questão indígena
regional e possuem uma grande proximidade com diversas lideranças indígenas.
Logo na chegada, nosso primeiro encontro foi com Concita, enquanto Zeca
fazia uma reunião com várias outras lideranças indígenas bem ao nosso lado.
Conversamos por mais de uma hora (logo voltaremos à inteligência e perspicácia de
Concita em relação ao contexto de múltiplas violações vivenciadas pelos indígenas).
Com o fim da reunião, Zeca se aproximou e prontamente começou a falar e a responder
algumas questões que colocávamos na conversa. Entre uma fala e outra, percebemos
que a reunião, que presenciamos, expressava uma preocupação coletiva dos indígenas
de distintas aldeias da TI Mãe Maria com o território.
O povo Kyikatêjê, pertence aos povos indígenas do tronco jê, ou Jê-Timbira, e
atualmente vive na Reserva Indígena Mãe Maria77. Os povos que vivem na Reserva
possuem uma autodenominação referenciada a lugares, os Parkatêjê e os Kyikatêjê, ao
Rio Tocantins e os Akrãtikatêjê à montanha, vale lembrar que outros grupos também
criaram novas denominações em tempos recentes. Os Parkatêjê (par é pé ou jusante,
katê é dono e Jê é povo, sendo os povos da jusante), os Kyikatêjê (Kyi é cabeça, sendo
os donos do rio acima) e os Akrãtikatêjê (Akrãti é montanha, sendo os donos da
montanha), esses últimos ocupavam as cabeceiras do rio Capim, antes de serem
expulsos pela UHE de Tucuruí e forçados a ir à Mãe Maria.
Esses grupos Timbira ficaram conhecidos pelo Branco como ―Gaviões‖,
denominação dada pelo uso de penas de gavião em flechas, mas também pelo temor que
provocavam através de suas múltiplas resistências à ocupação de seus territórios78.
A reserva indígena Mãe Maria, mesmo que reconhecida, é cortada pela Estrada
de Ferro Carajás, pela linha de transmissão da Eletronorte e pela BR 222. Em 1982 foi

77
A Reserva Indígena Mãe Maria foi pela primeira vez reconhecida pelo Estado em 1943, para demarcar
os limites das terras dos Parjatêjê, sendo Mãe Maria o nome do igarapé limítrofe da área. A reserva foi
homologada pelo decreto nº 93. 148 de 20 e agosto de 1986. Com uma área de 62.488,4516 hectares, é
ocupada por três povos indígenas, conhecidos como povo Gavião: os Parkatêjê, os Kyikatêjê e os
Akrãtikatêjê. Os Kyikatêjê (grupo do Maranhão), e os Akrãtikatêjê (grupo da Montanha) uniram-se aos
Parkatêjê entre 1971 e 1983 em torno de uma única aldeia. No ano de 2001 os Kyikatêjê mudaram-se,
fundando uma nova aldeia na mesma Reserva, na altura do quilômetro vinte e cinco da rodovia, local
onde eram desenvolvidos alguns projetos agropecuários (RICARDO,1985; ROSANI;CARDOSO;SÁ,
2008).
78
Outro grupo Gavião, também afetado por relativa proximidade aos trilhos da EFC, mas que não está na
Reserva Indígena Mãe Maria, são os Krikati, que se autodenominam Krikateyê, ou ―os donos da aldeia‖,
uma denominação que faz alusão ao processo de dispersão dos gavião e de que só eles conseguiram ficar
na aldeia grande (NIMUENDAJU, 1944, p.12), hoje a TI Krikati no Maranhão.

338
firmado o primeiro convênio FUNAI-CVRD específico para os indígenas, a partir do
qual os grupos receberiam uma ―compensação‖ financeira pelos impactos da mineração.
O repasse dos recursos sempre criou um clima de tensão entre empresa e os indígenas e
mesmo, em determinados contextos em que a empresa negociou individualmente com
lideranças, provocou algumas divisões internas. Até a escrita desse trabalho somavam-
se 14 aldeias na TI.
Entretanto, a Terra indígena é formada por uma multiplicidade de grupos, que,
por sua vez, possuem profundas diferenças e, mesmo, um histórico de guerras entre si.
Nesse ínterim, a multiplicação de aldeias não pode ser lida pela simples ideia de
fragmentação, mas significa mais uma reorganização espacial de grupos distintos
profundamente fraturados por uma história de violações.
É contra essa história de violações e para construir uma espécie de retorno ao
território que aquela reunião que estávamos ao lado se prestava. Por isso, fizemos esse
rápido percurso para a melhor compreensão do momento atual na Terra indígena. Nas
palavras de Zeca Gavião:
Mas e o território? Como está o território? Porque a minha
preocupação professor é que se não tiver essa organização... Eu puxei
à frente de um Conselho dos Caciques aqui dentro, que senta para
conversar sobre o território. Contra a Vale do rio doce, a Eletronorte,
qualquer empreendimento dentro da reserva a gente discute (Zeca
Gavião, liderança Kyikatêjê, entrevista realizada em janeiro de 2018).

Ao cenário de multiplicação das aldeias, o território emerge como o terreno a


partir do qual se pode reunir distintos Caciques, daí a ideia de um Conselho para
discutir regularmente questões semelhantes que aflige distintos grupos em um mesmo
território.
Uma coisa que tá vindo lá no futuro. Você imagina, hoje são 14
aldeias... Olha rapaz a floresta é nossa (...). Então foi essa ideia de
criar o Conselho dos Caciques pra nós trabalhar (...) Eu tava ouvindo a
mamãe falar na língua materna, ela vai ser extinta (...). Nós gaviões só
vamos continuar fortes se continuarmos com nossas raízes, não só
com nome (Zeca Gavião, liderança Kyikatêjê, entrevista realizada em
janeiro de 2018).

A projeção do futuro, interrompida por alguns segundo de pensamento, é


completada com a leitura de um processo de criação de várias aldeias que, se não for
conduzido por uma atitude prudente de olhar a floresta, pode se traduzir no
enfraquecimento de raízes do povo. A floresta, nesse sentido, expressa a possível de

339
reunião das aldeias, um ponto de encontro, um território-floresta que se define em
antagonismo a qualquer empreendimento que venha a constranger o território.
A defesa dos Gavião vem, além da defesa do território-floresta, da capacidade
de fortalecimento interno dos traços que os identificam, dessa forma:
O gavião tem que ser gavião mesmo, ele pode ser médico, advogado
quem quer que seja, mas ele tem que ser gavião. Saber que a pintura
em nenhum momento vai sujar ele, mas fortalecer ele como um
indígena, que o cocar vai fortalecer como gavião (Zeca Gavião,
liderança Kyikatêjê, entrevista realizada em janeiro de 2018).

Claramente o contato com o kupê é elemento a ser considerado, no sentido em


que ser gavião nada tem a ver com isolamento, rigidez, um gavião pode ser médico,
advogado, mas tem de ter clareza que a pintura o fortalece não o suja, assim como o
cocar. Essa preocupação nos faz voltar ao primeiro encontro na aldeia e à conversa que
tivemos com Concita. Ela, pela sua larga experiência com educação e expressando sua
preocupação com sua aldeia que, hoje, está a menos de 40km da cidade de Marabá,
atravessada por rodovia, ferrovia e linhas de transmissão, em que o contato com o
mundo urbano, com o kupê, é permanente, inclui um projeto de educação indígena no
bojo dessas lutas também travadas no âmbito do conselho dos caciques, diz ela
A gente valorizou muito a educação formal, ocidental, de
conhecimento de novos mundos e deixamos o nosso pras festas, pros
rituais, e aí, a gente percebeu que nós precisamos agora mudar (...).
Porque não usar as duas? A gente vai trabalhar esse outro lado da
educação indígena, porque ela existe nas brincadeiras, nas festas, na
caçada, mas agora a gente vai trabalhar ela de modo a fortalecer cada
vez mais (...). Os indígenas, nós, só valorizamos aquilo que gostamos,
então se você passa a gostar muito de uma coisa que não é sua, você
vai deixar de gostar daquilo que te identifica né. Valorizando a
cultura, as caminhadas, as caçadas (...) você vai fazer aquilo que os
velhos fazem por prazer (Concita SOMPRÉ, professora e liderança
Kyikatêjê, entrevista realizada em janeiro de 2018).

A educação passa a ter um papel decisivo para que os indígenas valorizem e


gostem daquilo que os identifica como indígenas. A clareza de que o conhecimento
ocidental é importante para travar lutas formalizadas, seja pela linguagem do direito,
seja para a melhor compreensão dos processos que afetam a terra indígena, está presente
em Concita e Zeca, entretanto, é preciso não se esquecer do mundo de cá, do mundo que
não se aprende na escola do pensamento formal, o mundo das festas, brincadeiras e das
caçadas.

340
Ali próximo a casa onde fomos recebidos, acontecia um ―jogo de flechas‖ que
tivemos a oportunidade de presenciar. E por ele nos aproximamos do mundo
reivindicado por Concita. Em conversa com alguns ―jogadores‖ ouvimos algumas frases
recheadas de sentido, dentre elas a exclamação ―assim pegava a onça, ou ela te pegava!‖
Em visita à mesma aldeia, Silva e Possas (2017), durante, também, um ―jogo
de flechas‖ ouviram um relato de um ancião Kyikatêjê, o professor Ajanã Katykti, que
resgatamos aqui para entender melhor o repertório sociocosmológico que marcam o
mundo Kyikatêjê. Os relatos encaminham para uma travessia para o momento em que o
―jogo de flechas‖ (nome dado pelo Branco, ou pelo Kupê, sentido de branco para os
indígenas) não era um jogo, mas sim a abertura de caminhos pela floresta, para o
momento da vida na mata. Os caminhos na mata são consolidados pela a ação da caça,
de guerreiros ancestrais e dos rastros dos animais perseguidos pelas flechas. Entretanto,
esses caminhos também são o lugar em que o caçador vira caça, onde ele encontra a
alteridade da onça, dos espíritos da floresta. A onça, aliás, por ser caçadora das caças
indígenas e dos próprios indígenas, indicam, por seus esporros (rugidos), os melhores
lugares para a caça. Entretanto, não se ouvem mais esporros, não se têm mais caminhos
na floresta, pois outros caminhos destruíram a mata, afugentaram os espíritos da
floresta, as caças. Os trilhos, as estradas, os linhões, que hoje cortam a aldeia,
transformaram a caça em jogo e não mais permitem o encontro com a alteridade da
floresta (SILVA, PASSOS, 2017).
Pela caçada na mata, entendemos melhor o território-floresta dos Kýikatêjê,
essas trilhas de encontro com a multiplicidade de seres animados da mata, essa reunião
entre o caçador, a caça, os ancestrais e os espíritos, o que nos aponta que a natureza
possui múltiplas expressões ou corporificações de consciência, de modo que os cortes
na mata para a passagem de outro caçador, esse de lucros, afugenta os animais, os
espíritos, acaba com a possibilidade da caça, que é a possibilidade de abrir caminhos na
floresta, que é, enfim, a possibilidade de encontro com a natureza.
Nos Parkatêjê, os ensinamentos de Toprãmre Krôhôkrenhum Jõpaipaire, ou
somente Krôhôkrenhum, cacique ou capitão dos Parkatêjê, que há pouco tempo nos
deixou, são também expressivos para compreendermos melhor os sentidos da floresta
para estes povos.
Sua máxima inicial de que kupẽ ―parece saúva mesmo, apareceram para pegar
a folha dos outros‖ (KRÔHÔKRENHUM, 2011, p. 38) é bastante significativa e
expressiva, principalmente quando ele completa dizendo:

341
Quando vemos o que os kupẽ estão fazendo com a floresta... É muito
desmatamento. O muro que estão fazendo, o asfaltamento da estrada,
eles inventaram tudo. Então eu vejo e digo assim: ‗Olha cada coisa
bagunçada que kupẽ está fazendo e Jê é que está dando castigo pra
eles, porque aprontam demais. É por isso que tá acontecendo muita
coisa. A floresta está desaparecendo, está sofrendo. Coitada! (...) Kupẽ
fala que essas coisas dão riqueza. Mas essas riquezas acabam um dia e
a floresta fica só capim, só capim. Se chegar a isso, um bocado de
gente vai ficar lascada. De onde se vai tirar dinheiro? Da terra que eu
mesmo destruí?Tudo isso é muito ruim! (KRÔHÔKRENHUM,
2011, p. 158).

A destruição da natureza que os kupẽ estão fazendo, Jê, quem deu o sinal de
vida aos indígenas, que ―deu a língua, deu o bucho, deu tripa, tudo pra (...) viver‖
(KRÔHÔKRENHUM, 2011, p.161), está castigando por conta da floresta está sofrendo.
Novamente a floresta assume a feição humana de quem sofre, de quem precisa dos
cuidados dos indígenas. Novamente a existência indígena se define pela vida da floresta
e na floresta. A distinta maneira de compreensão79se dá ao se pensar que os animais, as
plantas, os espíritos, todos carregam um discernimento, uma humanidade, não havendo,
portanto, uma relação hierárquica entre o que a nossa sociedade convencionou chamar
de humano e não humano, pois a humanidade não se restringe aos humanos e estes não
têm nenhum privilégio em relação aos outros seres. Sem a hierarquia, o respeito à
humanidade de todos os seres prevalece.
Os Akrãtikatêjê, na figura cativante de Jamrikakumti Hõpryre Ronore Jõnpikti,
conhecido comumente como Payaré, cacique dos Akrãtikatejê, que conhecemos
pessoalmente e que, também, recentemente nos deixou, sempre tiveram a necessidade
de politizar seu território e reivindicar o direito à floresta. Payeré chega a firmar que:
[...] Também a Vale corre o risco me disseram que corre risco por que
a Vale tem a tendência de só destruir, destruir, não importa quem que
vai comprar (...) só continua tirando o minério pra todo o país, e onde
é que o índio vai viver? Como é que o índio vai viver? (PAIARE,
2013 apud RIBEIRO JÚNIOR, 2014).

79
O estímulo inicial para esta reflexão são as numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma
teoria indígena segundo a qual o modo como os humanos vêem os animais e outras subjetividades que
povoam o universo — deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos
meteorológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos e artefatos —, é profundamente diferente do modo
como esses seres os vêem e se vêem (...) os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção
está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma
"roupa") a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie
ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal: uma
intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos
assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal (VIVEIROS DE CASTRO, 1996,
p. 116-117).

342
A preocupação de Payeré é com o ritmo de destruição empreendido pela Vale
que, um dia, não mais vai deixar nenhum lugar para o índio viver. Sua filha Tônkyre
Akrãtikatêjê (Kátia), que gentilmente nos recebeu em sua aldeia, onde também é
Cacique, completa o raciocínio do pai e chega a afirmar:
Porque a Vale acabou com a nossa vida, nós tinha igarapé, rio
da onde nós se mantia, pegava peixe com a mão, que ela passou
lá e secou, aquilo não tem dinheiro que pague pra nós. Então era
onde nós banhava nossos tempos, nossos rituais, nós fazia... a
Vale destruiu. Aí vai ficar por isso, porque ela destruiu um ritual
muito forte nosso, ela destruiu uma vida, ela diminuiu,
afugentou nossas caças e nossos peixe (Kátia Silene, liderança
Akrãtikatêjê, entrevista realizada janeiro de 2018).

Um conjunto de modos de ser e fazer transborda pela fala de Kátia, a


importância das águas do rio para banhar os tempos, o igarapé que não tem dinheiro que
pague, a caça e os peixes afugentados. A vida de um povo é o rio que se banha e se
pesca, é a caça que se come, são os ritos e tempos entrelaçados com a natureza. A
destruição desse entrelaçamento terra-floresta-povo significa a destruição da vida.
Cada grupo ao seu modo sofre as conseqüências do atravessamento dos trilhos
e, agora, da duplicação destes. Mais do que uma leitura fechada, o que quisemos aqui
foi demonstrar distintos modos de pensar e fazer o território, em muito, objetivados pelo
antagonismo com a mineração. Desde o conselho dos Caciques e do modo de pensar a
educação de Concita, aos alertas de Krôhôkrenhum, Payeré e Kátia, os povos se
encontram atravessados pela mineração em múltiplos sentidos, sendo que suas formas
de responder a isso reconstroem um repertório sóciocosmológico, que poderíamos
chamar de uma geografia dos povos, que valoriza e politiza seus territórios para defesa
do território-floresta, que, por diferentes caminhos, torna a natureza sujeito, que carrega
um discernimento, sofre, ou seja, que carrega uma humanidade, não mais exclusiva aos
humanos, sendo o território expresso na reunião, por ora tensa, por ora não, entre todos
esses seres.

8.7 PELA FLORESTA, COM AS TRILHAS E CONTRA OS TRILHOS: A TERRITORIALIDADE


DOS SONS DOS AWÁ-GUAJÁ

Os trilhos que atravessam os Gavião, também reduzem os caminhos na mata


dos Awá-Guajá na Terra Indígena Carú no Maranhão.

343
Os Awá-Guajá, um povo tupi-guarani, é um dos últimos povos exclusivamente
caçadores e coletores do Brasil e hoje são confinados pela Estrada de Ferro de Carajás
que passa cerca de 500 metros de sua área de perambulação (COELHO, 1986).
Para os Awá o caminhar pela floresta, ou simplesmente, o Harakwá, esses
caminhos por eles conhecidos, são as vias para o amadurecimento, são a forma de
crescer, são, enfim, suas fontes de vida e conhecimento. O mundo e a sabedoria tornam-
se uma arte de compreender trilhas e de não se perder, os caminhos na floresta são as
escolas dos Awá, de modo que caminhos já percorridos possuem um valor enorme pelo
conhecimento da floresta que por eles se acessa (YOKOI, 2014; GARCIA, 2010).
O discurso de Piraima‘a da aldeia Juruti colhido por Marcelo Yokoi, sintetiza
bem o que as trilhas na mata significam:
Fazer caminhando, na floresta, aí é só andar, aí vai assim mesmo
caminhando, ai vai caminhando assim (...) ai vai pega outro caminho
no mato, descendo no caminho, outro caminho (...) aí caçando,
caçando, caçando, volta assim de novo, na floresta, caçando caça,
caçando macaco, caçando assim, aí eu fui caçar porco, comer caça,
caçando, e eu sozinho caçando, aí pai veio ensinar caminhar pra mim,
ensinar a caminhar pra mim e eu sabe, caçando, sabe, tá crescendo, pai
ensinar caminhar pra mim, sabe caminhando, ai eu aprender caçar
sozinho (...) aí sabe, crescendo, sozinho caçando, aí nunca mais
perdido, não perdi não, aí eu sabe mato, sabe mato, caçando macaco,
cotia, veado, assim, nunca mais perdi, nunca mais perdi, longe, longe
mesmo (...) (PIRAIMA‘A apud YOKOI, 2014, p.104-105)

Andando pela mata, com o pai ensinando a caminhar e caçar é o modo de


crescer, de saber andar só e não se perder, mesmo que longe. A vida, então, se faz
caminhando, caçando, construindo autonomia de percorrer a floresta como um lugar
conhecido.
Também é pelos Harakwá que se encontram os Karawara, grupos humanos que
vivem em outro patamar, seres celestes (habitantes do iwá, o céu) que descem à terra
para caçar e, portanto, também precisam da floresta para sobreviver. Esses seres são
capazes de trazer forças curativas à terra, o que os dá uma importância significativa na
vida dos Awá (YOKOI, 2014). O conhecimento das trilhas também é o encontro com os
Karawara e uma forma de entender até onde se pode ir, uma vez que a floresta é
importante aos homens e aos seres celestes.
Mas se os caminhos são fundamentais para os Awá, o silêncio da floresta,
passa a ser elemento fundante para se acessar conhecimentos. Não há caça sem silêncio,
por isso, quando temos o maior trem do mundo passando cerca de 500 metros das

344
trilhas dos Awá, falamos do desencontro com os Karawara, falamos do atravessamento
dos Harakwá. Os trilhos decretam o fechamento dos caminhos, um fechamento que
significa uma violência para com o modo como se constrói a vida. Sobre o silêncio é
importante acrescentar
Os Awá tem toda uma teoria sobre o barulho, sobre o som, que
inclusive forma o conhecimento deles sobre a caça. O silêncio na mata
é muito valorizado. Eles conseguem ouvir a chuva quando está
chegando, minutos antes de ela cair. Então eles têm toda uma teoria
nativa sobre o barulho e o barulho do trem é um barulho do terror
(GARCIA, U. apud MOTA, 2013).

Toda dinâmica de localização, de contato em momento de caça, de


identificação da caça, até mesmo o estalar de galhos pisados que podem ser ouvidos a
centenas de metros, fazem parte do aprendizado do silêncio que dá destaque aos
variados tipos de ruídos e assovios. Porém, o silêncio é interrompido por um trem de
quatro locomotivas e 336 vagões, que passa mais de 20 vezes ao dia, com cerca de
3.300 metros a uma velocidade média de 40Km/h. A gama de sons da floresta é
interrompida pelo estrondo assustador do maior trem do mundo.
Ele cada vez mais vai construir ferrovia e povoado e seguindo ferrovia
e, ainda mais, poluindo pra gente e diminuindo a caça, diminuindo as
frutas. As vezes que a gente vai pro mato, encontra um barraquinho
deles, às vezes fica com medo do trem, fazendo barulho, fazendo
zoada pra eles (a caça) e cada vez mais se afastando (Ytatixí Awa
Guaja, depoimento ao documentário Trilhos da Vida, 2016).

O trem aterroriza a territorialidade dos Awá-Guajá, essa territorialidade


definida pelos Harakwá, ou seja, pelas trilhas de conhecimento na mata, nas quais se
encontra com os Karawara e pelas quais se domina a arte de perceber sons no silêncio
da floresta para uma melhor caçada.

8.8 O QUINTAL, A CASA, OS TRAJETOS...


Era um fim de tarde quando chegamos ao bairro do Km 7 em Marabá para nos
encontrar com Valdir Gonçalves e João Reis, duas lideranças do bairro, ambos
processados pela Vale. Os trilhos cortam o cotidiano do bairro, atravessam a vida de
várias pessoas e o encontro, em um espaço aberto de reuniões nas proximidades da casa
de seu João, foi a poucos metros da passagem do trem. A conversa foi interrompida por
quatro vezes para que aguardássemos a passagem dos vagões. O barulho e a trepidação
impediam qualquer concentração e conversa de se desenvolverem. Durante a entrevista
com seu João, nos momentos de conversa interrompida, ele, num primeiro momento,

345
tentava falar mais alto, gritar por vezes, mas depois, com semblante irrequieto,
enrijecendo o rosto simbolizando desconforto, calava-se e esperava o trem passar para
que sua voz fosse escutada. Nos áudios das gravações ainda se ouvem murmúrios do
tipo ―assim não dá né?‖ ou ―Tá vendo, é isso!‖.
A vida é interrompida para o trem passar. A síntese ―Tá vendo, é isso!‖
proferida por seu João, é uma metáfora bastante expressiva de nossa conversa, ou
melhor dizendo, é a metáfora das mais de 100 comunidades, áreas urbanas, povos
tradicionais recortados pela mineração. Sua voz não superava o barulho do trem, seu
poder de expressão era interrompido para os vagões passarem e, diante de sua
impossibilidade de se fazer ouvir naqueles tão repetidos instantes, começamos a
compreender, com a clareza da experiência, o porquê de tantas comunidades, tantas
pessoas usarem a expressão dragão de ferro, um animal com calda prolongada, uma
espécie de mistura de serpente que envenena e ave de rapina que leva tudo embora, com
um estrondo a cortar a tranqüilidade de qualquer um por onde ele passa.
O quintal de seu João, onde ele plantou várias árvores frutíferas para desfrutá-
las com a família e que foi limitado pela ferrovia já construída, desde 1985, foi
diretamente afetado pelas obras de duplicação da ferrovia. Em meio ao crescimento
urbano da cidade de Marabá, que resultou no alargamento da derrubada do que ainda
restava de floresta ou mata secundária em seus entornos - só fugindo a essa regra, as
terras indígenas e de proteção ambiental - seu João fazia, do seu quintal, uma
possibilidade de relativização de todo esse afastamento da vida urbana dos locais de
produção agrícola, via nele, como nos relatou, não uma área verde no sentido dessas que
se tornam mercadoria a valorizar empreendimentos urbanos, mas onde poderia trabalhar
com prazer nos fins de semana, onde poderia ter um contato com a terra. Entretanto, as
frutas de seu quintal, livres de agrotóxico e qualquer veneno, marcas dos arredores da
casa, hoje se tornaram lembrança:
O que é que acontece (...) Eu cheguei pra cá para Marabá eu tinha 7
anos, hoje eu tô com 48, tenho três netos, meus filhos tudo estão de
maior, só tem uma menina com 17 anos. Fizemos o plantio aqui na
beira. Agora veja lá. É só gente fumando droga, o mato tomou de
conta, a ferrovia acabou, os pés de acerola morreu, os pés de abacate
morreu. Então é destruição total, a gente não tem mais o que fazer.
(João Reis, morador do bairro Auzira Mutran, Marabá, entrevista
realizada em novembro de 2017).

Assim como o quintal de seu João, vários outros relatos que ouvimos,
denunciavam a impossibilidade de se pensar nos entornos de uma casa, vizinha dos

346
trilhos. Entretanto, também as casas são afetadas, o canto mais íntimo do mundo das
pessoas também sofre abalos decisivos.
Em outro bairro próximo ao Km 7, o bairro Araguaia, também em Marabá e
também cortado pelo trem, nas nossas andanças de pesquisa, descobrimos a rua do
trilho, uma rua paralela a EFC. Logicamente que entramos na rua por algumas vezes.
Numa dessas vezes, um senhor nos chamou, ao ver o registro através de uma câmera
que fazíamos, perguntando se aquilo era para Vale. Surpresos, rapidamente nos
identificamos. O senhor, então, logo nos colocou para dentro e identificou, uma a uma,
as rachaduras que a estrutura da casa colecionava devido à trepidação produzida pelo
trem. Prontamente ele disse: ―tem que tirar foto de tudo pra mostrar‖. Entre o medo de
perder a indenização possível e a revolta de ter a casa com a estrutura totalmente
comprometida, o senhor nos agradeceu a visita.
FIGURA 29 – Uma casa e o maior trem do mundo

Fonte: Bruno Malheiro, outubro de 2016.

A vida à beira dos trilhos tem caminhos como em qualquer outro lugar, as
pessoas precisam ir e vir de um lugar a outro para realizarem seus afazeres. As pessoas
precisam ir à escola, ao trabalho, ao médico, à igreja e tantos outros lugares. E assim

347
também, em suas casas, como em qualquer outro lugar, precisam dormir, ter momentos
de sossego. Mas, o cotidiano às margens da passagem do maior trem do mundo torna
complexo, o que para muitos parece simples:
Aqui às vezes é de 15 em 15 minutos, um trem passa, o outro já tá ali
no desvio. E acontece da gente não conseguir mais dormir por causa
da zoada, da buzina. Tem rachadura aí nas casas, tem rachadura já no
muro do colégio que o colégio ele é reformado, é novo. Então, a
trepidação dele na linha incomoda por isso, porque as casas trepida
também (Maria Vessoza de Lima, moradora de Buriticupu, Maranhão,
depoimento ao documentário Trilhos da Vida, 2016)

A constância do barulho não permite qualquer descanso. Escondia a voz de seu


João, atrapalha o sono de dona Maria Lima. Mas, além do barulho, as rachaduras se
proliferam por onde o trem passa. Da rua do trilho em Marabá à Buriticupu.
Além das rachaduras provocadas pela passagem do trem, as obras de
duplicação da ferrovia também provocaram danos irreversíveis às casas em diversas
localidades, pelo simples fato de provocarem inundações em locais antes não
inundáveis. O entupimento de passagens d‘água, o efeito barragem provocado por
aterramentos feitos para a construção da nova linha férrea, dentre vários outros fatores,
provocam alagamentos em bairros inteiros, como em Marabá. Embora, no plano básico
ambiental das obras de duplicação, haja a previsão e, inclusive, já exista a
implementação de drenos, meio-fio, valetas, bueiros e canaletas (VALE; AMPLO,
2011), a situação real de muitas localidades é de mudança completa nos regimes
hídricos. E é do meio da linha do trem, em um processo de ocupação dos trilhos
provocado pela revolta de moradores que tiveram, pela primeira vez, suas casas
inundadas pela chuva, por conta das obras de duplicação, que escutamos o seguinte
relato:
Até porque nós estamos aqui porque já não é de hoje que tá
acontecendo isso. Já foram avisados há muito tempo por causa desse
problema aqui. Antes alagava Marabá todo e não alaga as casas.
Alagava Marabá todinho, mas nossas casas não alagava. O papo de
vocês (VALE) é o mesmo todo tempo (...). A gente sai, quando
chover a água volta pra nossas casas e a gente volta a perder o que não
tem mais! (Moradora do bairro do Km 7, Marabá, depoimento durante
a ocupação da ferrovia em 7 de dezembro de 2014).

O medo de se perder o que não se tem mais, em alagamentos que nunca haviam
ocorrido, fizeram um bairro inteiro acampar em cima dos trilhos para barrar o fluxo de
um trem que trouxe a água, antes distante, para dentro das casas. Mais uma vez morar
torna-se um desafio às margens do trilho.

348
Na dinâmica de uma comunidade ou de um bairro de uma cidade, a espera de
um trem passar, com seus 330 vagões e 3,3 quilômetros de extensão, pode significar,
dentre outras coisas, medo, como alerta um morador da comunidade Mata do Pires, no
município de Santa Rita no Maranhão:
Desisti de estudar porque ficava com medo de voltar andando à noite.
Tinha muito assalto na parada do trem. Não tem nenhuma iluminação
nem segurança. Eu voltava já era quase 22h e o trem estava parado,
com 3 km de rota de fuga. Não somos bandidos para usar rota de fuga
(morador da Comunidade de Mata do Pires, 2013 apud FAUSTINO;
FURTADO, 2013)

Esperar pode significar perigo. Mas a solução de usar uma rota de fuga, que
significa uma volta enorme unicamente para atravessar os trilhos, configura o retrato
dos absurdos cotidianos pelos quais passam múltiplas comunidades. O nome
comumente usado para os desvios, que permitem chegar a lugares recortados pelos
trilhos sem passar pelos caminhos do trem, ―rota de fuga‖, é expressivo e prontamente
ressignificado num contexto que um simples trajeto, significa uma fuga, em que chegar
a escola significa fugir do trem e caminhos são desfeitos para que o ferro possa
caminhar.
Existem, segundo a própria mineradora em estudo realizado pela Diagonal
urbana e Fundação Vale em 2008, 735 pontos de passagem de pessoas na ferrovia
(FUNDAÇÃO VALE, 2008). As passagens são definidas, por nível, em três
modalidades, a saber: passagem de nível, realizada pelo nível da ferrovia, passagem
superior, como viadutos e passarelas e passagem inferior, como túneis. Segundo o Plano
Básico Ambiental do processo de duplicação (AMPLO, 2011), entre passagens oficiais
e as muitas clandestinas criadas pela própria população, existiriam 101 passagens
registradas para, então, os 735 pontos de passagem existentes.
Esse ir e vir, diríamos, interrompe a própria vida. Quando representamos
mortes por estatística, ou melhor, quando uma vida torna-se um número frio e sem
expressão, começamos a perceber que estamos falando de processos que desencadeiam
a morte em uma escala que os números tentam alcançar. Estamos falando, portanto, não
de casos isolados, mas de regularidades. Entre 735 pontos de passagem e 101
possibilidades de passar, muitos acidentes acontecem interrompendo a vida de muitas
pessoas.

349
QUADRO 19 - Número de Acidentes Graves na Estrada de Ferro Carajás entre
2006 e 2017
Com Com Morte Com Com
Com Dano ao Com
Ano Total Interrupção ou Lesão Prejuízo Produto
Meio Ambiente Vítima
da Circulação Grave Elevado Perigoso
2006 20 0 0 20 0 0 29
2007 13 1 2 9 1 0 9
2008 7 0 1 4 0 1 4
2009 13 0 1 11 0 1 12
2010 11 0 1 7 0 3 7
2011 6 0 0 5 0 1 5
2012 8 0 0 7 0 0 4
2013 9 0 4 3 1 1 1
2014 7 0 1 5 0 0 5
2015 13 0 2 9 3 0 10
2016 8 0 0 6 1 1 8
2017 17 0 0 13 4 0 14
Total 132 1 12 99 10 8 108
Fonte: ANTT com dados do SAFF/SIADE 2006 a 2017. Adaptação e formatação Bruno Malheiro 2018.

Vale ressaltar que o quadro acima (quadro 19) informa, segundo levantamento
feito pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) apenas os acidentes
graves na EFC entre 2006 e 2017. Num largo levantamento estatístico realizado pelo
órgão encontramos, entretanto, que, nesse mesmo período foram 272 acidentes no total,
132 destes considerados graves, 108 com vítimas e 99 com mortes ou feridos graves
(ANTT, 2017).
Dona Maria da Luz da Graça, que perdeu o irmão em Miranda do Norte no
Maranhão, atropelado pelo trem, demonstra toda a dor e indignação que um número não
pode expressar: ―Choque muito grande que a gente sente. Saber que a gente não pode
nem se despedir dele. É ruim demais. A Vale tudo que ela faz de ruim com a gente tudo
fica impune. Essa é nossa realidade!‖ (Maria da Luz da Graça, Documentário Trilhos
da Vida, 2016).
Essa geografia dos trilhos que faz se aglomerar histórias tristes por suas
margens, também aprisiona possibilidades e, por vezes, as urgências da vida precisam
esperar o trem passar. Essa agonia, ganha contornos de revolta em depoimentos como o
de seu Lindovaldo de Outeiro dos Pires no Maranhão:
Tentando prestar socorro para um senhor que passava mal no
povoado. Quando chegamos na ferrovia o trem tava parado, a gente
não conseguiu acesso pra passar e prestar socorro, ele veio a falecer
no local. Então a partir daí surgiu a ideia da gente fazer uma
paralisação na ferrovia, foi a gota d‘água pra todo aquele sofrimento

350
que a gente vinha passando e a gente tentar amenizar a situação
(Lindovaldo Lopes, Morador de Outeiro dos Pires, Maranhão,
depoimento ao documentário Trilhos da Vida, 2016)

O tempo do trem recorta os tempos do cotidiano das comunidades, amputa a


possibilidade de realização do que era habitual, mas também das urgências. Quando um
doente precisa passar pelos trilhos para ir ao hospital, na outra margem, ou para ser
socorrido por quem está do outro lado, percebemos o real significado que sua passagem
representa, uma vez que ele não desvia das sirenes da ambulância, não acelera com o
grito de alguém, não para diante do desespero, enfim, seu fluxo e seu tempo, que
operam em escala planetária, na compulsiva locomotiva do lucro, simplesmente
desconsideram a horizontalidade e densidade de tempos sociais e trajetórias geográficas
cotidianas das comunidades que atravessa.
Pelo quintal, pela casa, pela possibilidade de passar, pela tranqüilidade, pelo
luto de uma morte, as várias comunidades têm sido forçadas a transformar seus lugares
de vida em espaços de luta e resistência. Várias vozes aqui saíram do meio de uma
ocupação dos trilhos, muitas delas, inclusive, são de pessoas que respondem a processos
judiciais impetrados pela Vale.
Gostaríamos de abrir um pequeno parêntese aqui para duas observações de
campo que nos fazem compreender melhor essas vozes e seus contextos de expressão. A
primeira observação remonta à rua do trilho, por onde estivemos em alguns momentos e
citamos anteriormente. Essa rua, ao passo que revela uma definição de um nome próprio
pela marca da passagem do trem, também esconde um fato importante que começamos
a perceber nela mesmo. Por várias vezes, na busca de endereços, perguntamos a
pessoas, quais direções seguir e, em muitas respostas, as identificações das ruas eram
feitas por nomes próprios de conhecidos moradores da rua, antes dos nomes das ruas. A
rua onde mora dona Maria, onde mora seu Pedro ou onde mora o Bernardo... Assim
também foi em outras áreas urbanas redefinidas pela EFC, seja no Maranhão seja no
Pará, uma marca dos processos de identificação dos lugares eram as pessoas. Isso
parece que nos conta muito sobre as relações de vizinhança e sobre os contatos e
referências espaciais como pessoas. Outro aspecto dos trabalhos de campo que fizemos
foi o fato de que, as pessoas que nos receberam, embora, muitas delas nos levassem a
conhecer sua casa e, até mesmo, a mostrar as conseqüências nefastas nas estruturas, da
passagem do trem, escolhiam espaços fora das casas para a realização de entrevistas
quando estávamos com gravador em mãos. A rua ou a parte da casa que nos leva ao

351
contato com o trem foi a principal escolha. A constância do fato nos fez construir a
hipótese de que, assim como o barulho do trem como apagamento de vozes à beira dos
trilhos pode ser metáfora, falar para rua, uma rua que carrega o nome de pessoas,
também perece ser uma escolha de falar para fora, uma atitude política, pública, de fazer
circular o que se diz. A escolha não era sem razão, foi sempre uma escolha ilustrativa,
uma vez que as imagens falavam por si e enredavam, em um conteúdo de significações
mais expressivo, o que se dizia.
Essas observações de campo, mesmo não possuindo atributos suficientes para
generalizações, ajudam-nos a entender, de um lado, que a ferrovia a cortar trajetórias
geográficas cotidianas, corta referências espaciais e temporais, modos de ser, estar e
transitar o e no espaço, de modo que o antagonismo aos circuitos e processos territoriais
da empresa decorre menos de uma estrutura de mobilização e organização ampla e mais
da força de mobilização e engajamento provocada pela negligência para com essas
referências espaço-temporais, ou poderíamos dizer, para com as territorialidades
cotidianamente definidas pela experiência, territorialidades que conjugam a casa, a rua,
o quintal, mas fundamentalmente se materializam coletivamente em manifestações,
associações, reuniões em um antagonismo a um modo de usar e recortar o espaço de
uma empresa. Por outro lado, a força do antagonismo se alimenta da assimetria de uma
relação entre uma das maiores empresas do mundo e comunidades, bairros... Assim, a
vontade de existir torna-se mote de r-existências que se objetivam em vontade coletiva.
Voltamos à conversa com seu João e com seu Valdir:
Eu tô aqui desde a primeira reunião. Quando começaram a fazer o
aterro aqui pra duplicação, alagou as casas da rua E. Então alagou e a
defesa civil veio (...). Eles destruíram muita coisa... Através da
defensoria a gente conseguiu obrigar a Vale a pagar umas casas (João
Reis, morador do bairro Auzira Mutran, Marabá, entrevista realizada
em novembro de 2017).

A gente fazia reuniões constantes com a mineradora e denunciávamos


o problema: casas rachando, trepidação do solo, na hora que as
pessoas estavam assistindo jornal havia interferência (...). Trouxemos
as entidades para nos assessorar, a CPT, o Justiça nos Trilhos o
CEPASP (...). Quando veio a duplicação eles marcaram uma
audiência pública, que não foi audiência nenhuma, foi uma reunião
pública lá no casarão para apresentar o projeto da duplicação. E eles
iam remover as pessoas (...). Andaram nas casas, fizeram cadastro,
removeram, negociaram com pessoas e não cumpriram. Hoje a
maioria das pessoas está com ação judicial com auxilio da defensoria
pública (Valdir Gonçalves, morador do bairro Auzira Mutran, Marabá,
entrevista realizada em novembro de 2017).

352
Entre tentativas de negociação com a empresa, ações de mobilização realizadas
com auxilio de redes e entidades de assessoria e ações que se encaminham para a esfera
do direito, antagonismos se acirram e sujeitos coletivos se forjam no interior do front
político, com clara expressão, motivação e definição territorial.

8.9 PENSAR POR OUTRAS (GEO)GRAFIAS


O caminho em contra-fluxo do trem, do mar à floresta, dos rios aos quintais,
das trilhas na mata aos babaçuais, das casas ao abrigo da terra, revelam-nos como
grupos distintos pluralizam a geografia dessa região que, mesmo batizada com nome
indígena, Carajás, projeta-se pela imagem homogênea de um trem de ferro. Outras
grafias, portanto, passaram por essas páginas, mas, também, vários sentidos de mundo
animaram e definiram essas maneiras distintas de grafar a terra. Geo-grafias que
pluralizam as práticas que produzem o mundo, mas também (geo)grafias que pluralizam
os sentidos de mundo a definir as práticas.
Falamos, portanto, de diferentes territorialidades, que aqui são entendidas
(...) não como algo biologicamente motivada(s), mas sim enraizada(s)
socialmente e geograficamente. Seu uso depende de quem está
influenciando e controlando o quê e quem, nos contextos geográficos
de espaço, lugar e tempo. A Territorialidade está intimamente
relacionada em como as pessoas usam a terra e como elas organizam-
se no espaço, e como elas dão sentido ao lugar‖ (SACK, 1986, p. 03).

A territorialidade, portanto, apresenta-nos os modos distintos de uso do espaço,


de organização e de sentido a partir de grupos sociais geograficamente enraizados. Por
ela chegamos mais perto de enxergar a sociedade e o território por um olhar centrado na
diversidade. Nestes termos, o grito pelo e a partir do território, é o grito de sociedades
subalternizadas pela moderno-colonialidade, são as vozes que ecoam para ainda terem a
possibilidade de falar, são modos de trabalho, modos de lidar com a terra, modos de
morar, modos de se relacionar entre si e com a natureza, que se objetivam politicamente
para não serem engolidos pela tempestade do capital. Nesse sentido, pensar múltiplas
territorialidades em um território jurídico-politicamente definido pelo Estado é o nosso
caminho para entrar nas lutas reais.
Por essa leitura, identificamos três marcas que expressam a experiência da
alteridade que estas territorialidades apresentam: 1) a primeira é um modo particular de
se posicionar frente ao tempo, que conjuga um modo distinto de ver a história e de
mobilizar a memória; 2) a segunda é um modo distinto de atribuir humanidade à

353
natureza produzindo outras formas de sentir e pensar o mundo; 3) e a terceira é a
marcação de formas distintas de usar e organizar o espaço.
A primeira marca expressa que o lugar que se habita interfere diretamente em
nosso olhar sobre a história. Estar à beira de uma mina de ferro, ter seu território
recortado por um trem, viver cotidianamente com a velocidade dos fluxos capitalistas à
sua porta, enfim, situar-se nas zonas de sacrifício criadas por uma geografia de exceção
desenhada por uma racionalidade corporativa, desloca o olhar frente ao tempo, de modo
à ressignificar a visão de progresso a partir de suas ruínas.
As quebradeiras, em canção, cantam o conhecimento da história dos
fazendeiros e industriais, como destruição dos palmeirais. Onde qualquer outro ouve os
ruídos do maior trem do mundo, os Awá-Guajá os ressignificam como o barulho do
terror. As comunidades às margens dos trilhos também compreendem bem que o que se
vende como progresso nada mais é que a interrupção da vida. Camponeses acampados e
assentados sempre experimentaram os ―avanços‖ da história como expulsão e violência.
Os quilombolas reconstroem a imagem de um corredor de exportação de ferro como
uma navalha de corte, que sangra comunidades. Os Gavião, por sua vez, definem a
alegoria de uma saúva que só quer levar as folhas, como a expressão da sanha desse
tempo que só progride passando por cima da vida.
Ver a história como ruína também define modos específicos de acionamento da
memória como forma de diferenciação e auto-definição. A ancestralidade quilombola
não demonstra apenas o legado de tradições, cultos, costumes e festas que marcam uma
diferença no espaço, mas também se expressa como uma força de ligação entre os
sujeitos e o território, como um modo de sentir o espaço, tornando a memória uma força
de organização e reunião. A preocupação dos Gavião com uma educação indígena fora
dos moldes da educação formal, revela a importância da memória das brincadeiras,
festas, caçadas como modo de fortalecimento daquilo que os identifica. Não diferente
disso, são as memórias camponesas marcadas pela espoliação e mobilizadas como mote
de solidariedade, encontro e força de organização.
A segunda marca dessas territorialidades, os modos distintos de atribuir
humanidade à natureza, demonstra, por sua vez, distintos modos de sentir, explicar e
definir o mundo. Embora essa marca não esteja presente em todas as territorialidades
expressadas anteriormente, a sua presença entre os povos indígenas, pescadores e
quilombolas é digna de nota, pois os seus sentidos de distinção e formação da diferença
ganham modos próprios de compreensão, por outras relações de sentido com a natureza.

354
Assim, os pescadores podem conversar com o mar, pois suas águas carregam
discernimento, bem como os quilombolas, pela ancestralidade, conectam-se com o
mundo, sentindo a natureza, e os Guajajara podem definir a morte de um rio como a
morte da comunidade, pois que esse rio é protegido por um dos Karowara - espíritos
protetores – mais temidos que é Ywan.
A humanidade da natureza também se mostra pelas trilhas na mata, dos
Kyikatêjê, ou mesmo dos Awa-Guajá que, na verdade, são uma caminhada para o
encontro da multiplicidade de seres animados, uma reunião entre o caçador, a caça, os
ancestrais e os espíritos, essas múltiplas expressões e corporificações de consciência que
habitam a natureza.
Os diferentes modos de perceber a humanidade na natureza apontam-nos para
distintas imaginações conceituais do mundo, demonstrando que a experiência da
alteridade carrega distintas cosmologias, pois que se ancora em pontos de vista sobre o
mundo radicalmente distintos daqueles pontos de vista moderno-coloniais que se
expressam em um messianismo de uma história em progresso que inferioriza as
diferenças.
A terceira marca dessas experiências de alteridade - as distintas maneiras de
usar e organizar o espaço – demonstra que os diferentes modos de se posicionar frente à
história e de perceber a humanidade da natureza animam práticas espaciais, definindo
usos e disposições no espaço.
Desse modo, determinadas ações ganham um sentido de aprendizado de um
modo particular de usar e organizar os lugares, por isso as trilhas na floresta, o ato de
pescar, a prática do cuidado, a coleta do coco babaçu, a solidariedade entre acampados,
entre outras práticas, apresentam-se, para os sujeitos, como práticas de ensinamento, ou
alegoricamente como suas escolas, pois são por elas que se aprende a ver a floresta, os
rios e igarapés, os animais, os palmeirais e a terra, como meios vitais das comunidades.
Nesses termos, assim como os Awá precisam do silêncio, os Guajajara precisam do rio,
os pescadores do rio, do mar e da praia, os quilombolas dos igarapés e da terra, as
quebradeiras dos palmeirais e os camponeses da fertilidade e abundancia que a terra
pode oferecer.
Em linhas gerais, estamos diante de um novo repertório geográfico e político!
Se a geografia se funda na tentativa de compreensão da organização espacial da
sociedade temos, num dado momento, de admitir que nosso interesse coincida com o
interesse dos sujeitos instituintes das práticas que investigamos, pois que não há vida

355
sem conhecimento, não há espaço e território sem saber. Parece lógico, mas quase
sempre ignoramos que os sujeitos criam seus próprios campos de problematizações a
partir dos quais orientam suas formas de ser e estar no mundo, que recortam o caos da
realidade projetando-a uma explicação, que criam um horizonte de sentido a partir do
qual se situam e definem suas territorialidades, criam, enfim, e como diria Deleuze
(1993), seus planos de imanência, essa seleção específica de problemas a partir da qual
o conhecimento se move e se habita de conceitos.
Essas múltiplas geografias, portanto, não apenas pluralizam os repertórios
geográficos de uma região, elas ampliam nossa capacidade de compreensão do mundo,
pois apontam, num corredor sitiado por uma empresa, distintos modos de não ser
empresa, distintos modos de não agir como corporação, pois carregam pontos de vista
sobre o mundo radicalmente diferentes da racionalidade do empresariamento da vida.
Entretanto, toda essa diversidade territorial se forja diante da normalidade da
exceção que se territorializa em uma geografia corporativa. Por isso, cada expressão de
alteridade, cada modo de sentir e pensar o mundo diferente carrega, também, a
experiência de habitar a exceção, de conviver com os signos da destruição, da morte,
das ruínas e da ameaça. Portanto, são modos distintos de se fazer existir espacialmente
que politizam a vida para tornar possíveis seus mundos.
O próximo capítulo, último deste trabalho, pretende expressar como essas
diferentes experiências de alteridade politizam-se para continuar a existir. Entraremos
nas próximas páginas na forma como experiências espaciais historicamente
desperdiçadas definem unidades de mobilização, como arregimentam repertórios de
ação coletiva e, também, como os sujeitos políticos constroem suas políticas de escala,
de modo a amplificar suas demandas e se reposicionar diante das hierarquias escalares
que o funcionamento de uma corporação extrativa produz.

356
CAPÍTULO 9

A GEOGRAFIA DAS LUTAS SOCIAIS EM CARAJÁS:


UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO, REPERTÓRIOS DE

AÇÃO COLETIVA E POLÍTICAS DE ESCALA

Vocês, brancos, dizem que nós, Yanomami, não queremos o


desenvolvimento. Falam isso porque não queremos a mineração em
nossas terras, mas vocês não estão entendendo o que estamos
dizendo. Nós não somos contra o desenvolvimento: nós somos contra
apenas o desenvolvimento que vocês, brancos, querem empurrar para
cima de nós (...). Para nós desenvolvimento é ter nossa terra com
saúde, permitindo que nossos filhos vivam de forma saudável num
lugar cheio de vida.
Vocês falam que somos pobres e que nossa vida vai melhorar. Mas o
que vocês conhecem da nossa vida para falar o que vai melhorar? Só
porque somos diferentes de vocês, que vivemos de forma diferente,
que damos valor para coisas diferentes, isso não quer dizer que somos
pobres. Nós Yanomami temos outras riquezas deixadas pelos nossos
antigos que vocês, brancos, não conseguem enxergar: a terra que nos
dá vida, a água limpa que tomamos, nossas crianças satisfeitas.
Vocês brancos pensam que nós somos pássaros, ou somos cotias, para
nos darem apenas o direito a comer os frutos que nascem em nossas
terras? Não pensamos as coisas de forma dividida, pensamos na
nossa terra-floresta como um todo. Se vocês destruírem o que está
abaixo do solo, tudo que está acima também sofrerá.
Não somos apenas nós, povos indígenas, que vivemos na nossa terra.
Vocês querem perguntar a todos os moradores da floresta o que eles
acham sobre a mineração? Então perguntem aos animais, às plantas,
ao trovão, ao vento, aos espíritos Xapiri, pois todos eles vivem na
floresta. A floresta também pode se vingar de nós, quando ela é
ferida.
Nós Yanomami não queremos mineração, não queremos que ela seja
feita em nossa terra
Davi Kopenawa Yanomami

357
O perspectivismo de Davi Kopenawa Yanomami volta a nos lembrar que
devemos ouvir o território. Pela reinvenção dos sentidos de desenvolvimento, como a
saúde da terra-floresta, que não hierarquiza homens, animais, plantas, solo e subsolo,
pois os vê em unidade existencial, entendemos que a riqueza não está na transformação,
mas na permanência dessa condição ontológica, aprendemos, ainda, que, pelo fato dos
animais, das plantas, do trovão, do vento, dos espíritos Xapiri, carregarem um
discernimento, uma humanidade, não há relação hierárquica entre o que
convencionamos chamar de racional e o que arrogamos o lugar de irracional, pois a
humanidade não se restringe aos humanos. Por esse caminho, o não dos Yanomami à
mineração significa: fazemos de outro modo, vivemos de outro modo, queremos coisas
diferentes, valorizamos coisas diferentes e, fundamentalmente, precisamos da terra-
floresta.
Os Yanomami, embora estejam em ambos os lados da fronteira Brasil e
Venezuela, na região do interflúvio Orinoco-Amazonas, portanto, bem distantes das
experiências históricas tomadas como referências nesse trabalho, iniciam esse capítulo
como expressão de todas as formas de dizer não à mineração já percorridas até aqui,
como uma força a nos conduzir pela diversidade territorial desperdiçada pela lógica
industrial da Mineração.
Essa diversidade de territorialidades lida e expressada pelos seus sujeitos
instituintes amplia os nossos lugares de enunciação epistemológicos, mas também dá
heterogeneidade e expressividade diferencial ao ato de geo-grafar, uma vez que as
grafias mobilizam distintos modos de entender e ver o mundo.
Entretanto, como lembramos anteriormente, não podemos pensar essas
territorialidades sem situá-las no quadro contextual de uma geografia de exceção, o que
torna os processos de afirmação de suas diferenças, também atos de resistência, daí falar
em r-existência. Por isso, falaremos dos sujeitos políticos que ousaram reinterpretar essa
geografia funcional de um grande empreendimento demonstrando que as áreas e
distâncias expressadas na cartografia corporativa, são, na verdade, territórios, abrigos de
gente diferente, lugares onde distintos grupos se sentem em casa, terrenos sagrados,
profanos, espaços de culto, de trânsito, de vida. Distintos são, portanto, os movimentos
sociais, as identidades políticas e ações coletivas que se objetivaram em torno dos
espólios da mineração, através de práticas espaciais que definem, marcam, reclamam ou
se objetivam em território.

358
Três aspectos da organização política dos sujeitos serão colocados em relevo a
partir daqui. Primeiramente, o modo em que essas territorialidades e experiências de
alteridade se objetivam em processos práticos de mobilização social, ou seja, o modo
em que suas diferenças se contrastam com a dinâmica da mineração de modo a
objetivarem formas de mobilização política. O segundo ponto refere-se aos repertórios
de ação coletiva utilizados pelas distintas unidades de mobilização, isto é, o conjunto de
práticas e ações de reivindicação e protesto que são acionadas pelos sujeitos políticos
nos processos de luta social. O terceiro ponto refere-se às políticas de escala criadas
pelos sujeitos em luta, ou ainda, aos modos em que os sujeitos políticos usam da escala
como prática social para amplificar suas demandas, ampliar seus processos de
mobilização e disputar os modos de representação de seus territórios.
Por isso, esse capítulo se estrutura em quatro partes. Na primeira fazemos
alguns apontamentos teóricos daquilo que estamos chamando geografia das lutas
sociais, na segunda, tentaremos identificar as unidades de mobilização política
constituídas em antagonismo à mineração no corredor Carajás-Itaqui, na terceira,
entraremos nos repertórios das ações coletivas e, na quarta, nas políticas de escala
empreendidas pelos sujeitos em luta.

9.1 GEOGRAFIA DAS LUTAS SOCIAIS EM ANTAGONISMO À MINERAÇÃO


Não leremos as práticas de r-existência pelas ideias-força que estruturam o que
Laclau (1983) chegou a chamar de um paradigma de compreensão dos movimentos
sociais, quais sejam: que estes possuem uma Identidade social que se refere a uma
estrutura geral, que apresentam um tipo de conflito que aponta algum indício que
revoluciona as estruturas gerais; e que possuem um espaço político plenamente
unificador.
Esse padrão de leitura de uma parte ortodoxa do marxismo universitário, que
adora categorias normativas e unificadoras, não parece acompanhar a materialidade
histórica das próprias lutas que tomam como campo de reflexão. Vários autores, dentro
do próprio marxismo, já construíram caminhos distintos de interpretação, como
Thompson (1981) que reivindica a experiência como um termo ausente do marxismo,
demonstrando a classe social enquanto resultado da prática histórica de certas
coletividades, ou mesmo Bartra (2010), que, ao tratar o debate sobre a pertinência dos
conceitos de classe, movimento, sujeito e ator, lembra da necessidade de um

359
deslocamento dos conceitos frente à derrocada do dogma da transição global do
capitalismo ao socialismo e do proletariado como classe revolucionária.
No percurso a uma teoria mais aberta, Laclau e Mouffe (2015), parecem
oferecer, com o conceito de antagonismo, algumas pistas interessantes para a análise,
quando expressam que o antagonismo indica o modo em que ―a presença do ‗Outro‘ me
impede de eu ser totalmente eu mesmo‖ (LACLAU E MOUFFE, 2015, p. 125),
demonstrando que o antagonismo não permite que vejamos a sociedade como um
sistema estável, ou um sistema de classificação, diria Quijano (2005), de modo que as
relações políticas não se constroem a partir de lutas em que as identidades estão
previamente prontas e acabadas, mas que o antagonismo é uma condição para a
formação de identidades políticas.
Porto-Gonçalves (2003), não cansa de repetir o que parece óbvio, mas é
profundamente importante e muitas vezes desconsiderado nesta discussão, que o termo
forte em luta de classe é o termo luta e não o termo classe. Nesse mesmo sentido,
Raquel Gutierrez Aguilar (2013) argumenta que o privilégio dado à classe em
detrimento da luta nos estudos sociológicos, gerou dificuldades de compreensão, uma
vez que, por esta leitura, os sujeitos são constituídos previamente à luta em si. O que a
autora propõe como caminho metodológico é que compreender as lutas no capitalismo
contemporâneo pressupõe perceber quem são os sujeitos que se mobilizam, mas do que
classificá-los, estudando sempre as contradições, tendo em vista a instabilidade em
contextos de conflito social. Isso significa dizer que é também através da luta que os
sujeitos se constituem, é pelas relações de força, que subjetividades políticas são
forjadas, identidades são mobilizadas, coletividades se autodeterminam, territorialidades
são marcadas.
Fazemos esse caminho analítico para encontrar sujeitos até então exteriores às
análises circunscritas a um circulo fechado de relações estruturais classificadas, ou
como descreve Dussel (1973, 1986), estamos possibilitando uma fissura da totalidade,
provocada por um exterior que nos exige uma abertura à alteridade. Com essa abertura à
alteridade, queremos voltar aos antagonismos, agora, não mais para explicar sua
pertinência de análise das mobilizações sociais, mas para ampliar seu escopo. Embora a
noção de antagonismo social pluralize os sentidos de contradição e conflito, alargando
nossa compreensão, ainda há certa restrição do alcance das formas de construção das
identidades políticas à negação dada pelo antagonismo, o que constrói um referente a
partir do qual se define as relações e, também, pode significar novamente um

360
fechamento à alteridade. Entretanto, não queremos abandonar o antagonismo, apenas
demonstrar que existe algo de bastante expressivo nas lutas sociais contemporâneas -
particularmente na América Latina, e isso já nos advertiu Zibechi, Svampa, Porto-
Gonçalves e muitos outros - que precisa ser mais bem destacado para que os conflitos
sociais não apareçam apenas pela lógica do mesmo, mas também expressem a lógica da
diferença. Falamos do território, elemento central das lutas políticas contemporâneas.
Os antagonismos sociais carregam múltiplas oposições, mas os sujeitos em
conflito afirmam relações sociais territorializadas, modos de existência social e política
espacialmente marcados, maneiras de sentir e pensar com a terra, distintas.
Falamos muito neste trabalho de espoliação, uma expressão do processo de
acumulação que afeta a base material e simbólica da vida de múltiplos grupos sociais,
por isso não podemos deixar de perceber que
(...) el sustrato de los conflictos sociales transita desde los espacios de
la explotación (el mercado, la fábrica) y de la política hacia el
territorio; el conflicto social se expande al conjunto de las esferas de la
vida social y tiende a expresarse en su mayor agudeza en aquellas que
constituyen el sustrato de la vida: las comunidades, sus condiciones de
existencia y sus espacios geográficos y simbólicos (ORNELAS, 2008,
p. 93).

Essa mudança espacial dos conflitos sociais, dos espaços de exploração para os
espaços de espoliação, ou das fábricas ao território, exige que a análise também mude
suas referências, entretanto, o que significa um deslocamento funcional aos circuitos do
capital para ativar novas/velhas maneiras de geração do valor, no campo analítico, é,
fundamentalmente, um deslocamento epistemológico, uma vez que o que está em
questão não são mais sujeitos classificados ou classificáveis por relações de produção
unicamente, nem apenas um ―objeto‖ de saber sociológico acomodado em categorias
como protesto social, modos de engajamento, repertórios de ação coletiva, mas sujeitos
que se autodefinem por e a partir do território, que empreendem lutas sociais em
situações de antagonismo com os circuitos do capital, os quais se forjam no contexto
dos regimes de contenção e desterritorialização e, aos quais, a primeira resistência é a
necessidade de continuar a existir em modos de pensar, agir e se relacionar marcados e
politizados no e pelo território.
Alguns dirão que esse modo de pensar é restritivo e incapaz de conseguir uma
leitura de conjunto, pois apenas segue as ações sociais sem construir categorias abstratas
de compreensão da totalidade. Só se entende assim se o território não for considerado
como elemento estruturante da ação humana, e mais, só se entende por esse ângulo se

361
não se percebeu que a chegada ao território aqui, deu-se a partir de um deslocamento
estrutural dos antagonismos sociais produzidos pela expansão capitalista, por uma
leitura que inclui o território como elemento fundante da luta de classes, que escolhe o
caminho da experiência sem perder a capacidade de compreensão de um todo, uma vez
que é o conjunto das ações coletivas que objetiva o território como categoria da prática
social.
Não podemos, portanto, pensar os antagonismos sociais sem lembrar que eles
são, em sua maioria, no atual contexto de ampliação dos processos de espoliação
capitalista, particularmente na América Latina - e neste trabalho todas as marcas
históricas particulares da Amazônia, já mostradas, - conflitos territoriais, tensões entre
territorialidades distintas, o que nos leva a pluralizar a gramática espacial da sociedade,
a abrir uma fenda na totalidade para fazer falar a alteridade pelo território, ou como
muito bem lembra Porto-Gonçalves (2017, p. 44):
Com a própria crise das esquerdas, em parte pela nova configuração
do espaço sob hegemonia do capital, em que a fábrica deixa de ser o
lócus privilegiado da acumulação com a flexibilização locacional e
laboral, em parte pela perda de centralidade política dos partidos e dos
sindicatos, e ainda em parte, pelo Estado estar sendo, cada vez mais,
capturado pelos interesses do capital, vemos surgir por todo lado
outros protagonistas nas lutas sociais. Os seringueiros, camponeses da
floresta amazônica afirmaram que não queriam terra, mas sim
território, indicaram que num mesmo território do Estado existem
múltiplas territorialidades e não só camponesas, como o indica o fato
de terem construído a Aliança dos Povos da Floresta junto com os
povos indígenas. O grande levante equatoriano e a Marcha pela Vida,
pela Dignidade e pelo Território na Bolívia, em 1990, e o zapatismo,
em 1994, darão visibilidade definitiva a esses outros (velhos/atuais)
protagonistas.

Esses velhos/novos protagonistas ao se afirmarem e, em um salto de escalas,


aparecerem no debate público, demonstram que suas lutas ampliam a diversidade
epistemológica do mundo, uma vez que projetam novos repertórios de agir e pensar. A
razão ocidental preguiçosa, que sempre desperdiçou essas experiências sociais em nome
de leituras de totalidades abstratas, alargando futuros (ideologias de progresso) e
contraindo presentes (experiências sociais), como nos fala Boaventura de Souza Santos
(2008), precisa reconhecer que, quando falamos em lutas sociais, estamos pondo em
questão, também, as categorias que definem o mundo, ou como melhor sintetiza
Bourdieu (1989, p. 142):
O conhecimento do mundo social e, mais precisamente, as categorias
que o tornam possível, são o que está, por excelência, em jogo na luta

362
política, luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de
conservar ou de transformar o mundo social conservando ou
transformando as categorias de percepção desse mundo

Os espaços em conflito, ou melhor dizendo, a dinâmica dos conflitos


territoriais, expressam, portanto, lutas que, ao se objetivarem em termos políticos,
também se constituem em lutas epistemológicas, sem esquecer que esse trânsito entre
práticas espaciais politizadas e modos de compreensão e definição do mundo social é
construído pelo território. É o território, portanto, que amalgama a objetividade da luta e
toda sua significação epistemológica e política (torna-se categoria da prática social,
como diria Haesbaert) que dá materialidade às demandas, inscrevendo-as em tradições,
ritos, mitos, modos de se relacionar e pensar a natureza, que, enfim, percorre o caminho
entre as necessidades imediatas do presente, todas as formas que possibilitam e dão
condição à vida e o universo de significados sociais e históricos que marcam diferenças
e objetivam identidades políticas.

9.2 AS UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICA


Está claro que a expansão dos territórios da mineração precisa incluir as largas
extensões de ‗área‘, pelas quais atravessa, em sua racionalidade operacional, guiada pela
lógica da superacumulação, o que, em termos concretos é a prática de fragmentação
social e política das comunidades do entorno, como medida de alargamento dos lucros
pela redução dos riscos à ―segurança‖ operacional, são as escolhas racionais de uma
grande empresa para gerir populações, deslocar territórios, atravessar culturas e dizer o
que Vale.
É diante dessa força territorial de uma empresa, que a capacidade de continuar
a existir é politizada, que a vida vira uma possibilidade, a qual, para não ser sangrada
em suas bases, precisa se tornar uma expressão política. É nesse particular processo de
espoliação colocando em xeque a existência concreta de múltiplos grupos sociais, que
subjetividades políticas são formadas, processos de auto-identificação são afirmados,
processos cotidianos ganham significação política, experiências espaciais tornam-se
marcas de auto-nomeação, ou em outras palavras
[...] pode-se dizer que, mais do que estratégia de discurso, ocorre o
advento de categorias que se afirmam por meio da existência coletiva,
politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também
as práticas rotineiras de uso da terra. A complexidade de elementos
identitários, próprios de autodeterminação afirmativas de culturas e
símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional, ou traduzida
para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura

363
profunda com a atitude colonialista e homogeneizante, que
historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural,
diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação dos
―nativos‖, ―selvagens‖ e ágrafos ao conhecimento erudito do
colonizador (ALMEIDA, 2004, p. 167).

A entrada na cena política dessa diversidade de existências coletivas apresenta,


pelo menos, três rebatimentos interpretativos importantes e dignos de nota: a)
encaminha a uma crítica epistemológica à colonialidade do saber que imperou nas
interpretações sobre os movimentos sociais; b) leva a uma consideração da esfera do
direito como elemento a dar objetividade às demandas sociais levantadas; c) transforma
o território em categoria da prática social de convergência de demandas políticas;
O primeiro rebatimento particularmente vem do fato de que o terreno
epistemológico das definições sociais dos grupos é o próprio grupo não mais os critérios
de classificação da ciência, o que afeta diretamente o histórico apartamento colonial
entre cognição e mundo, identificado por Escobar (2005), de modo que o conhecimento
se mostra mais como práticas e capacidades corporificadas do que propriamente por
teorias colonialmente sistematizadas a partir de um lugar distante do qual se fala. Por
esse processo de descolonização, as diferenças territoriais deixam de ser representadas
como o lugar da imaturidade, em uma leitura colonial da modernidade como saída da
imaturidade diante do esforço da razão, como demonstra Dussel (2005), para se auto-
referenciarem racionalmente, pluralizando o mundo, as explicações sobre o mundo,
demonstrando o lugar hegemônico e violento que a própria ciência assumiu
historicamente ao ignorar a diversidade epistemológica.
O segundo rebatimento interpretativo vem das necessidades concretas das lutas
sociais em se objetivarem. Nestes termos, particularmente no Brasil, a emergência dessa
diversidade de sujeitos sociais coletivos no cenário político está ligada a uma íntima
relação com a esfera objetiva dada pelo direito, principalmente por conta das teorias do
pluralismo jurídico terem sido incorporadas, em parte, na Constituição de 1988, criando
uma nova relação jurídica entre essa diversidade social e o Estado brasileiro. Com base
no reconhecimento da diversidade cultural pelo Estado, a associação entre identidade e
território se constituiu em uma via de reconhecimento jurídico de direitos territoriais.
Nesses termos,
O alvo central dessa onda consiste em forçar o Estado brasileiro a
admitir a existência de distintas formas de expressão territorial –
incluindo distintos regimes de propriedade – dentro do marco legal
único do Estado, atendendo às necessidades desses grupos. As novas

364
condutas territoriais por parte dos povos tradicionais criaram um
espaço político próprio, na qual a luta por novas categorias territoriais
virou um dos campos privilegiados de disputa (LITTLE 2002, p. 13).

O terceiro rebatimento vem do fato dessa politização da vida e entrada na cena


política dessa diversidade, significar um encontro, desses distintos grupos e povos
tradicionais, com o território, que, desse modo, torna-se categoria da prática social, pois
faz convergir suas demandas pelos seus meios de existência, de vida, de trabalho, pelos
seus modos de pertencer ao lugar, de significar e usar o espaço e de ter autonomia na
gestão dos recursos.
Os três rebatimentos interpretativos convergem a uma dinâmica de politização
da vida, e, nessa direção, Almeida (2008), lendo a politização dos conhecimentos
tradicionais na Amazônia, apresenta alguns processos de objetivação das lutas sociais,
quais sejam: a) a associação entre identidade e território por processos de auto-
identificação para o reconhecimento de direitos territoriais; b) a politização de situações
sociais e atividades econômicas para a emergência de categorias de auto-identificação;
c) a mobilização das entidades ambientalistas na busca de sistematizar um
conhecimento sobre Amazônia; d) o novo sindicalismo de trabalhadores rurais que
designam a agricultura familiar; e) as experiências de cooperativas agroextrativistas; f) e
o agrupamento de indígenas de diferentes etnias em uma só entidade.
Porto-Gonçalves et alli (2015, p. 89), por sua vez, na tentativa de melhor
explicar os dados de conflitos no campo recolhidos pela CPT, diferencia dois grupos de
mobilização social, a saber:
1º Grupo – reúne aqueles/as que remetem a algum uso tradicional da
terra, em sentido amplo de natureza (o que implica a água, a vida -
floresta, campo, mangue, etc.). 2º Grupo – reúne aqueles/as cuja
identidade se define de algum modo por algum agente externo da
violência que sofre. São atingidos por barragens, pela mineração,
pelos trilhos, pelos linhões de transmissão de energia. Ou, ainda,
grupos que se definem nas circunstâncias de processos de
desterritorialização e que sinalizam um horizonte de
reterritorialização, como os sem terra, cujo ―Sem‖ indica uma perda e
o ―Terra‖ indica um horizonte de sentido para a vida com aquilo que
perderam.

Cada autor observa a partir de seu ângulo disciplinar, mas também a partir das
situações e casos concretos que analisam, o que nos leva a entender que a caracterização
dos sujeitos instituintes da emergência de territorialidades em tensão com os processos
de territorialização hegemônicos, só pode ser lido a partir das particularidades dos

365
antagonismos que se colocam em situações concretas, o que não significa que o
exercício analítico dos autores acima mencionados não seja utilizado pela identificação
de situações de mobilização coincidentes.
Nesse trabalho, falamos de antagonismos territoriais ou tensões de
territorialidades entre diversos grupos sociais e a mineração, particularmente no
contexto espacial do corredor Carajás-Itaqui. Nesses termos, identificamos, pelo menos,
cinco unidades de mobilização coletiva80 que politizam o território, a partir das leituras
de Almeida (2008) e Porto-Gonçalves et alli (2015), quais sejam:
1. Unidades de mobilização étnica, que apontam a singularidade de seus
modos de relação com a natureza e usos da terra como elementos de
afirmação de suas territorialidades frente aos processos de intrusão da
mineração em seus territórios;
2. Unidades de mobilização definidas por processos de oposição aos circuitos
espaciais e processos de territorialização da mineração, politizando espaços
resultantes de lutas históricas frente às ameaças, em várias frentes, que a
mineração significa;
3. Unidades de mobilização sindical que politizam a situação da terra na
Mineração, denunciando a formação de latifúndios agro-minerais e a
relação direta entre a mineração e a perda das condições de reprodução de
agricultores familiares;
4. Redes de mobilização política e/ou entidades de assessoramento e
mediação que atuam politizando situações de conflito social na assistência
jurídica e educativa de comunidades diretamente afetadas pela mineração,
empreendendo políticas de escala;
5. Ativismos sociais ou processos de mobilização que eclodem pela
politização de situações espaciais degradantes impostas pela dinâmica
territorial da mineração.

80
A leitura das unidades de mobilização parte do pressuposto que a construção de sujeitos políticos é
coletiva e envolve processos de politização da vida e afirmação de territorialidades. Essa leitura é
tributária da ideia de que a compreensão da questão agrária e ambiental não pode se desvincular da
emergência de categorias sociais que se afirmam a partir de uma existência coletiva (ALMEIDA, 2008).
A proposta de distinção que aqui fizemos é esquemática, o que significa que processos de mobilização
podem apresentar marcas de duas ou mais unidades identificadas e que há uma relação de aprendizado
mútuo entre essas unidades, podendo uma gerar outra e vice-versa.

366
9.2.1 UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO ÉTNICA
As unidades de mobilização étnica assumem diversos formatos e expressões,
mas, embora sejam politizadas em antagonismo à mineração, ativam identidades
políticas afirmativas de um modo de existência territorial. Em relação aos indígenas,
que sofrem as intrusões da mineração em seus territórios desde a década de 1980 na
região, quando do Programa Grande Carajás, e vêem novamente seus territórios
atravessados por um conjunto de projetos minerais, dentre eles o S11D e a duplicação
da Estrada de Ferro Carajás, observamos diversas experiências de objetivação de suas
demandas por processos de mobilização política.
Para deixar mais claro acerca das de intrusões da mineração em territórios
indígenas pela dinâmica de extração-trasporte-exportação do ferro em Carajás, é preciso
ressaltar que são quatro terras indígenas diretamente afetadas por essa dinâmica, seja
pelas zonas de extração em suas circunvizinhanças, como a TI Xikrin do Rio Catete,
seja por serem recortadas pelos trilhos, como a TI Mãe Maria, no Pará e a TI Rio
Pindaré e Caru no Maranhão. Entretanto, foram e ainda são múltiplos os povos direta ou
indiretamente afetados pelos processos territoriais ligados à mineração. Os mais
afetados, não há dúvida, são os Xikrín do Cateté, os Gavião Akrâtikatêjê, Parkatêjê e
Kyikatêjê, no Pará; além dos Guajajara, Krikatí, Ka‘apor e Awá-Guajá, no Maranhão.
Estes, também, irão protagonizar lutas sociais importantes em antagonismo à
mineradora Vale. Entretanto, os Aikewara, os Parakanã, os Tembé, os Arawaeté do
Igarapé Ipixuna, os Apinaye, os Karajá da terra indígena Xambioá, os Krahô da TI
Kraolândia, os Canela, os Xerente, além de outras etnias também foram e, algumas,
ainda são, afetadas pela dinâmica pela mineração, seja por algumas delas estarem
incluídas no convênio firmado em 1982, entre Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e
a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), abrangendo cerca de 90 aldeias e uma
população de cerca de 12.500 índios, entre Maranhão, Pará e Tocantins (VIDAL, 1986),
seja pela dinâmica de ocupação regional provocada pelos projetos minerais, que
aceleram processos migratórios e múltiplas intrusões em territórios indígenas.
A formação das associações indígenas tem sido o mecanismo mais usado nos
processos de negociação e, por vezes, enfrentamento com a empresa, desde o convênio
firmado entre FUNAI e CVRD na década de 1980. Embora a maioria das associações
tenham sido construídas como uma exigência formal de distintos acordos, muitas delas
foram ressignificadas e ganharam os sentidos de organização interna de povos e aldeias.
O caso dos Akrâtikatêjê é bem emblemático, pois há uma compreensão que a relação

367
estabelecida com a corporação mineral, por meio da associação, não pode impor aos
indígenas os termos, as referências e os tempos da empresa, ou como afirma a liderança
Kátia Silene:
Nós precisa viver em união, em paz! Nós precisa se preocupar com as
nossas brincadeiras, no dia do amanhã e no que comer, no que caçar,
nós não pode ficar se preocupando que amanhã tem uma reunião, que
hoje tu vai resolver sobre isso, agora tu tem que ir pro banco... (Kátia
Silene, liderança Akrãtikatêjê, entrevista realizada janeiro de 2018).

A vida em comunidade, em seu comer, brincar e caçar deve sempre ser sempre
o mais importante. A preocupação com os tempos, espaços e significados projetados
pelos modos de relação com a empresa, particularmente por meio das associações,
reforça um modo de se posicionar nessa relação.
Entretanto, para além das associações específicas dos povos e, por vezes, de
algumas aldeias criadas em relações de tensão e negociação com a empresa, temos
também a emergência de alguns movimentos estaduais, coordenações e federações que
expressam coletivamente demandas, como a Coordenação das Organizações e Articulações
dos Povos Indígenas do Maranhaõ (COAPIMA) e a Federação dos Povos Indígenas do
Pará (FEPIPA), além de alianças esporádicas para a reivindicação mais urgentes. Essas
organizações são acionadas quando processos semelhantes afetam povos distintos,
sendo que muitos indígenas das etnias afetadas pela mineração em Carajás, não só
possuem assento em tais organizações, como, por vezes, assumem certo protagonismo.
A articulação entre povos indígenas com entidades de mediação e redes de
mobilização, as quais serão mais à frente descritas, também é um dos caminhos
encontrados pelos indígenas para construir processos de mobilização. Nesse sentido, a
articulação com o CIMI e também as reuniões possibilitadas pela Teia dos Povos e
Comunidades Tradicionais do Maranhão são experiências dignas de nota por
possibilitarem contatos estratégicos entre povos para o enfrentamento de problemas e
reivindicação de demandas semelhantes.
O mapa 10 apresenta as terras indígenas, oficialmente reconhecidas,
diretamente afetadas pela dinâmica da mineração em Carajás, bem como as várias terras
indígenas do entorno dos projetos e da Estrada de Ferro Carajás que também sofrem
com a dinâmica regional provocada pela mineração.

368
MAPA 10 – Mineração e Terras Indígenas no corredor Carajás-Itaqui

369
São, portanto, várias Terras Indígenas nos espaços de influência da mineração,
transformados em territórios administráveis pela empresa Vale, que têm sua dinâmica
alterada, seja no estado do Pará, seja ainda no Maranhão e até mesmo no Tocantins,
como é o caso da TI Apinayé.
As unidades de mobilização étnica não se expressam apenas pelos processos de
organização, mobilização e r-existência indígena, uma vez que também se expressam
pelas lutas quilombolas em antagonismo à mineração. A Estrada de Ferro Carajás e seu
projeto de duplicação atravessam 88 comunidades quilombolas em suas áreas de
influência direta e indireta, sendo 87 comunidades no Maranhão e uma no Pará, a
comunidade Casca Seca no município de Bom Jesus do Tocantins. Entre as
comunidades quilombolas do Maranhão, duas estão no município de Bacabeira, 15 em
Santa Rita, 49 em Itapecuru-Mirim, 16 em Anajuba, uma comunidade em Miranda do
Norte e 4 em Monção (AMPLO, 2011).
Os enfrentamentos com a mineração se dão por meio das associações
comunitárias formadas geralmente para pleitear os processos de reconhecimento dos
quilombos pela Fundação Palmares e para a posteriormente batalha árdua de
reconhecimento fundiário pelo INCRA. Entretanto, para além das associações, algumas
outras organizações são dignas de nota. A Coordenação Nacional de Articulação das
comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), tem ressaltando uma preocupação
na relação entre quilombolas e empresas de mineração, principalmente pelos distintos
casos de violação e violência que essa relação tem expressado no país intero, com
especial destaque ao estado do Maranhão. A expressão dos processos de criminalização
e outras ocorrências de violação aos direitos territoriais quilombolas em relação a
empresas de mineração (CONAQ, 2018), bem como o assessoramento de algumas
comunidades, demonstram a importância da coordenação como unidade de mobilização.
Também é importante ressaltar a proximidade com algumas comunidades no
assessoramento dos processos de luta social da Associação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ), além do Centro de Cultura Negra do
Maranhão (CCN/MA) e da Rede Justiça nos Trilhos que, mais à frente, falaremos mais.
Outra importante experiência de articulação quilombola é o Movimento
Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM), um movimento popular de caráter étnico
criado para defender os direitos e interesses das comunidades remanescentes de
quilombos diante das violações praticadas pelo Estado e por empresas privadas no
Maranhão. A preocupação do movimento, o que está presente em sua carta de

370
princípios, com as várias frentes que ameaçam os territórios quilombolas, dentre as
quais está a mineração, demonstra a importância dessa unidade de mobilização étnica
para os quilombos diretamente afetados pela dinâmica mineral.
Há, também, alianças importantes com outros movimentos sociais, entidades
de mediação, redes de mobilização e até mesmo com centros de pesquisa que
proporcionam assessoramento, produção de materiais, mas também articulações
políticas entre as comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.
Nesse particular, já citamos a Rede Justiça nos Trilhos, mas também é importante
destacar as experiências que também serão vistas mais de perto posteriormente, como a
Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, a Articulação Mundial dos
Atingidos pela Vale e o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.
O mapa 11 demonstra os territórios quilombolas recortados pelos trilhos na
escala do corredor Carajás-Itaqui, sendo que o mapa 12 amplia o nível de detalhes para
ampliar a leitura dos distintos territórios quilombolas notadamente nos municípios de
Itapecuru Mirim e Santa Rita, com destaque às comunidades de Queluz e Pedrinhas,
além de Monge Belo e Santa Rosa dos Pretos, que são separadas pela linha do trem.

371
MAPA 11 – Mineração e Territórios Quilombolas no corredor Carajás-Itaqui

372
MAPA 12 – Territórios Quilombolas recortados pelos trilhos da EFC

373
Além de indígenas e quilombolas, pescadores e quebradeiras de coco babaçu
também se objetivam enquanto categorias sociais em antagonismo à mineração. Os
primeiros pelas interferências da construção do Píer 4 do Terminal Marítimo de Ponta
da Madeira, que atinge áreas de pesca artesanal, como a praia do Boqueirão em São
Luís, além das diversas interferências da Estrada de Ferro Carajás e do seu processo de
duplicação nos rios por onde passa, afetando diretamente a dinâmica de subsistência de
pescadores. As segundas, pela expansão de siderúrgicas no entorno da EFC,
particularmente nos municípios de Marabá e Açailândia, politizam sua condição de
acesso aos babaçuais, pois estes sofrem a interferência das guseiras para a
transformação do coco babaçu inteiro em carvão. Se os pescadores objetivam seus
processos de luta pelas Colônias de Pescadores, as quebradeiras construíram o
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) como unidade de
mobilização política que representa os interesses sociais, políticos e econômicos do
grupo, criada não apenas para garantir o acesso aos babaçuais frente às múltiplas frentes
de devastação dos palmeirais, mas também como uma via de garantir o bem viver das
mulheres do campo e sua visibilidade política.

9.2.2 UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO DEFINIDAS PELO ANTAGONISMO À MINERAÇÃO


As unidades de mobilização definidas por processos de oposição aos circuitos
espaciais e processos de territorialização da mineração, podem ser expressadas por dois
movimentos de massa que possuem grande dinâmica de mobilização no corredor
Carajás-Itaqui, são eles o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o
Movimento pela Soberania Popular Frente à Mineração (MAM).
O MST, seja no Pará, seja no Maranhão, historicamente construiu sua dinâmica
de luta e organização em torno do enfrentamento ao latifúndio, tão presente como marca
da estrutura fundiária desses dois estados. O repertório político, portanto, sempre passou
por processos de ocupação de áreas públicas griladas por latifundiários, ou mesmo
grandes fazendas improdutivas, para a formação de acampamentos e a reivindicação ao
Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) da efetivação de assentamentos
rurais nas áreas ocupadas. Essa dinâmica, diga-se de passagem, reconstruiu os processos
de luta pela terra regionais e sempre foi respondida com extrema violência pelo arranjo
de relações que inclui fazendeiros, o instrumental de violência da polícia e a morosidade
e impunidade da justiça. Entretanto, com a expansão dos processos territoriais ligados à
mineração, territórios conquistados, tornados assentamentos agrários e instituídos pelo

374
INCRA, começam a sofrer múltiplas interferências da mineração, seja por meio de
intrusões diretas, seja por meio de programas ligados à empresa Vale. São vários
assentamentos e acampamentos afetados diretamente pela duplicação da ferrovia e pelo
ramal ferroviário até Canaã dos Carajás, entre eles: Onalício Barros, Palmares I,
Palmares II, Carlos Fonseca, Araçatuba, União da Vitória, Carajás II, Frei Henri, Dina
Teixeira e Nova Esperança (ARCADIS TETRAPLAN, 2011).
A luta pela conquista da terra, também se torna a luta por permanecer nos
territórios conquistados
O trilho passa por dentro do assentamento, cortando o assentamento e
isso tem caso de morte dentro do assentamento do trilho pelo trem, ali
nas margens e agora entra na discussão da duplicação dos trilhos. E
ela (Vale) vem basicamente na contramão (...). Tem área nossa que
está sob controle da Vale, o subsolo da área de ocupação, e (...) a Vale
financia dentro das nossas áreas uma contradição e coloca ali um
sistema (...) de como se briga dentro do espaço (Militante MST-PA,
entrevista realizada em fevereiro de 2016).

O Movimentos Sem terra, além de ter um posicionamento político


contrário a este implementado pela Vale, nós também estamos em
defesa das famílias assentadas, das próprias famílias acampadas que
estão ameaçadas de, mais uma vez, perderem suas terras já
conquistadas, porque essas terras estão sendo ocupadas pelo projeto da
Vale, seja na duplicação da ferrovia, como é o caso aqui no Maranhão,
como na exploração do minério como é o caso da atuação da Vale no
Estado do Pará (Divina LOPES, MST-MA,depoimento ao
documentário Trilhos da Vida, 2016).

Os antagonismos que o movimento se depara se ampliam com a chegada da


mineração e o conjunto de alterações espaciais que ela gera (mapa 13). A fala de Pedrão
chega mesmo a demonstrar um caso em que o solo pertence aos assentados, mas o
subsolo à Vale que, como já amplamente discutimos aqui, por isso, constrói estratégias
de desmobilização afetando as condições físicas de existência nos acampamentos e
assentamentos e a própria organização do movimento social, particularmente
construindo formas de amplificar contradições internas.
A reflexão de Divina também alerta para as múltiplas interferências da
mineração em territórios já conquistados pelo movimento, o que conduz a uma posição
política contrária à Vale em virtude dos processos empreendidos pela empresa
significarem ameaça não apenas a acampados, mas também a assentados,
particularmente no Maranhão, pelo processo de duplicação dos trilhos da mineradora.
Nesse contexto, a mineração torna-se questão central para a dinâmica de
enfrentamento do MST, não sem razão é a partir da articulação de diversas forças

375
políticas ligadas ao Movimento que surgirá a necessidade de criação de um novo
movimento, pois como aponta Charles Trocate, liderança do MST/Pará:
(...) desde 2012 já analisávamos a perspectiva de construir um
movimento popular, com uma plataforma política que negasse a
atividade de mineração onde fosse possível e, onde não
conseguíssemos barrar tais projetos, nos mobilizar para que as
mineradoras paguem pelos danos causados. Assim, decidimos criar
esse movimento nacional, popular, classista, antiimperialista,
antineoliberal e internacionalista com um elemento diferenciado, pois
é o primeiro movimento na história do Brasil que não nasce no sul e
no centro sul do país, mas surge do norte e nordeste para se tornar
nacional (Charles TROCATE, 2013).

Diante desse universo de assentamentos recortados por trilhos e diretamente


afetados pela mineração (mapa 13), é que alguns movimentos diretamente ligados à luta
pela terra começam a ampliar as alianças para lutar contra essa nova racionalidade
territorial que afeta a vida de quem já havia conquistado a terra. É, portanto, de um
amplo arco de alianças entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
o Movimento dos Trabalhadores da Mineração (MTM), comunidades indígenas
atingidas pela mineração, além da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Centro de
Educação Pesquisa, Assessoria Sindical e Popular (CEPASP), Rede Justiça nos Trilhos,
Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, dentre outras entidades, surge o
Movimento Nacional pela Soberania Popular frente à Mineração (MAM) que começava
a questionar a localização espacial dos problemas ambientais da mineração, afirmando a
necessidade de pensar a resistência das comunidades atingidas, questionando os meios
pelos quais as empresas se apropriam dos recursos, mas fundamentalmente discutindo
os fins desta atividade e o sentido da produção em larga escala, pondo em questão o
saque e o sentido do saque de matéria e energia processados pelas grandes empresas de
mineração.

376
MAPA 13 – Mineração e Assentamentos de Reforma Agrária no Corredor Carajás-Itaqui

377
O MAM que surge em 2012, no Pará, no front ao Grande Projeto Carajás, já
possui núcleos de mobilização em nove estados mais o Distrito Federal, a saber: Pará,
Maranhão, Minas Gerais, Bahia, Ceará, Goiás, São Paulo, Tocantins e Piauí. Sua lógica
mobilização política se dá em torno das Assembléias Populares da Mineração que, em
cada espaço afetado pela grande Mineração, pretendem ser núcleos de articulação entre
as populações rurais e urbanas afetadas, os trabalhadores das empresas e outras
entidades, ONGs, sindicatos, instituições de ensino/pesquisa e demais sujeitos políticos
em antagonismo à mineração. As assembléias, alimentando-se dos princípios da
educação popular, pretendem, antes de tudo, transformarem-se em espaços de
organização popular, a partir de processos de formação e convergência política (MAM,
2017).
A organização de livros, cartilhas e materiais próprios para a formação política,
bem como as parcerias estabelecidas com outras organizações e movimentos sociais,
tem subsidiado a elaboração das assembléias populares, politizando os conflitos sociais
forjados a partir dos processos de instalação e expansão, não apenas dos processos de
extração mineral, mas também de toda estrutura logística que a mineração necessita
para drenar matéria e energia.
Como movimento de massas que se organiza a partir de núcleos de
mobilização e ação política pelas assembléias populares, o MAM se propõe a interferir
nas decisões acerca não apenas dos ritmos de exploração mineral, mas também na
definição dos espaços onde se pode minerar para, assim, garantir a o controle e a função
social dos processos minerários, de modo a possibilitar a soberania popular na
mineração, questionando, em termos estruturais, as escolhas do Estado brasileiro pelo
modelo agro-mínero exportador.
Outra articulação importante também surgida em oposição à mineração -
particularmente pela necessidade urgente de construir uma reflexão crítica frente às
discussões do Novo Código da Mineração - é o Comitê Nacional em Defesa dos
Territórios frente à Mineração, que em 2013 lança um manifesto de criação:
Diversas organizações de trabalhadores/as das minerações,
quilombolas, assentados/as e agricultores/as familiares, povos
indígenas, ribeirinhos/as, pescadores/as, cidadãos/ãs e comunidades
atingidas e ameaçadas pela cadeia da mineração, organizações não
governamentais, movimentos sociais, populares e ambientalistas, vêm
a público lançar o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente a
Mineração. Partimos, em nossa construção coletiva, do entendimento
de que a democracia e a transparência sejam garantidas na formulação
e aplicação da política mineral; que o direito de consulta,

378
consentimento e veto dos empreendimentos sejam garantidos às
comunidades afetadas e ameaçadas; que se respeitem taxas e ritmos de
extração definidas previamente de forma democrática; que se viabilize
um zoneamento econômico e ecológico que determine onde se pode e
onde não se pode minerar; que as empresas sejam obrigadas a
contingenciar recursos para viabilizar o Plano de Fechamento de
Minas, mitigando os danos socioambientais; que os direitos dos
trabalhadores sejam garantidos e que a mineração em Terras Indígenas
seja tratada no âmbito do Estatuto dos Povos Indígenas e da
Convenção 169 da OIT, respeitado o direito de consulta,
consentimento e veto destes povos (INESC, 2013).

O Comitê assume característica própria por ser uma junção de múltiplas formas
de luta e organização em múltiplas frentes, mas organizadas em torno da
democratização das decisões em torno dos projetos de mineração, lutando pelo direito
de dizer não atividade mineral.

9.2.3 UNIDADES DE MOBILIZAÇÃO SINDICAIS


As unidades de mobilização sindical que politizam a situação da terra na
Mineração, expressam-se em muitos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais em vários
municípios recortados pela EFC e diretamente afetados pelos projetos de extração
mineração, particularmente o S11D. Entretanto, a dinâmica de compra de terras pela
empresa Vale já largamente discutida aqui, torna-se elemento central de mobilização
para um sindicato que ganha centralidade nas lutas de antagonismo à mineração, que é o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás, que reformula a crítica à
mineração e à empresa Vale, agora tratada também como grande latifundiária regional.
A compreensão da força fundiária de uma empresa de mineração, não apenas
pela compra de terra das zonas de extração, mas pela apropriação de largas extensões de
terra para a contenção de outros usos que venham a dificultar outros processos
minerários, transforma os processos de mobilização sindical, historicamente marcados
pela luta contra o latifúndio, também em mobilizações sociais de fôlego em
antagonismo á grande corporação mineradora.
A queda da produção de arroz e feijão, da fruticultura e do leite, que
sustentavam a economia camponesa - particularmente em Canaã dos Carajás - em
função da atividade fundiária da empresa Vale, alargou o número de desempregados no
campo, bem como de pessoas sem terra. As assembléias e reuniões sindicais tornaram-
se espaços de convergência política dos antagonismos à atividade mineral, e a empresa
Vale passou a ser traduzida, a partir das experiências camponesas, como a principal

379
força de formação de latifúndios agro-minerais que desmobilizam e desterritorializam
na região de Carajás.
Entretanto, para além do sindicalismo rural, há, em relação à mineração,
importantes mobilizações dos trabalhadores da mineração entre as décadas de 1980 e
1990, principalmente antes da privatização da CVRD. Entretanto, como já
argumentamos neste trabalho, os processos de flexibilização e terceirização, que
ganharam fôlego mesmo antes da privatização, mas se consolidaram com ela,
contiveram os conflitos com os trabalhadores e impuseram à maioria dos sindicatos uma
função de gerência de acordos coletivos com pauta salarial. Mesmo assim, é válido
lembrar algumas mobilizações como, por exemplo, do Sindicato dos Ferroviários no
Maranhão, Pará e Tocantins que, em 2016, impediu o acesso de ônibus à base da
mineradora em São Luís. Embora ações de antagonismo à mineradora sejam raras e a
atenção sindical se reserve aos acordos coletivos, isso não significa que as condições de
trabalho e que não haja conflitos e reivindicações, os vários bloqueios à entrada da mina
de Carajás por trabalhadores terceirizados contra a empresa terceirizada de limpeza
industrial, em 2012, demonstra que há tensões grandes contidas pela extrema
flexibilização e lógica de terceirização.

9.2.4 REDES DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICA


As Redes de mobilização política e/ou entidades de assessoramento e mediação
assumem vários formatos e expressões no antagonismo à mineração. Não iremos citar
todas aqui, apenas as que, de alguma forma, interferem nos processos que
descreveremos mais à frente.
No Pará não há como não começar pelo Centro de Educação Pesquisa,
Assessoria Sindical e Popular (CEPASP). O Centro, desde a década de 1980 defende
uma frente ampla de luta contra a mineração na região de Carajás, apontando-a como
estruturante para a compreensão da questão agrária regional. É interessante ressaltar
esse papel histórico do CEPASP, pois, mesmo quando a dinâmica da mineração não
ganhava centralidade para movimentos populares, que questionavam a violência do
campo e estrutura fundiária regional, o Centro sempre se manteve próximo às demandas
sociais e conflitos ambientais ligados à mineração, reafirmando, desde a instalação do
Programa Grande Carajás, a necessidade de uma articulação abrangente que enfatizasse
os problemas regionais provocados pela mineração.

380
As estratégias de mobilização do Centro são marcadas pela organização de
campanhas, como a campanha ―Contra o saque dos nossos minérios‖, pela elaboração
de distintos materiais, entre cartilhas, livros e panfletos de formação política, mas
também pelo estímulo à formação de Comunas - espaços colaborativos de formação
política onde se pratica a economia solidária e se exercita a autonomia, para que as
comunidades atingidas pela mineração não apenas construam processos de luta, mas
exercitem a construção de sua autonomia política e econômica.
Na mesma linha do CEPASP, mas com uma abrangência maior, é necessário
ressaltar a importância política da criação, em 1992, do Fórum Carajás, uma articulação
entre organizações sociais, ONGs e pesquisadores de Instituições de Ensino,
envolvendo sindicatos de trabalhadores rurais, sindicatos urbanos, organizações de
mulheres, associação de agricultores, associações de bairros, cooperativas, pastorais da
igreja católica, organizações de pescadores, quebradeiras de coco babaçu, dentre vários
outros grupos (PASTOR, 2010). A experiência do Fórum de articular em rede um
conjunto de organizações sociais, entidades de mediação e pesquisadores para
compreender e lutar contra os conflitos socioambientais provocados pelos Grandes
Projetos articulados ao PGC, além de consolidar organizações e o horizonte de
articulação internacional para a pressão da opinião pública frente aos desastres dos
megaempreendimentos na Amazônia, produziu um vasto material documental e
bibliográfico, fundamentais, inclusive, para a elaboração deste trabalho.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) também começou a acompanhar mais de
perto os conflitos sociais e fundiários em torno da mineração, bem como a enxurrada de
processos de criminalização de lideranças construídos e levados à justiça pela Vale.
Poucos advogados na CPT de Marabá, por exemplo, respondem aos mais de 100
processos que caminham, entre reintegração de posse e a criminalização de lideranças.
A questão fundiária, recodificada com a Mineração, ampliou as demandas jurídicas da
CPT de forma exponencial, que hoje assume papel central nas lutas sociais em
antagonismo aos processos de territorialização pela via da mineração.
Assim como a CPT, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), por conta de
todas as intrusões da mineração em territórios indígenas, já descritas aqui, também irão
ampliar o apoio aos grupos indígenas em antagonismo à mineração. Nesse particular,
por estarem ao lado dos indígenas em reuniões, ou mesmo em manifestações,
funcionários do próprio CIMI, no Maranhão, já foram acionados judicialmente pela

381
empresa Vale, que, por sua vez, criminalizando a assessoria do conselho aos indígenas,
particularmente, nesse caso, envolvendo os Awa-Guajá na terra indígena Caru.
A Rede Justiça nos Trilhos começou seus trabalhos de organização, articulação
e assessoria, como uma Campanha, no ano de 2007, por iniciativa dos Missionários
Combonianos, uma congregação da Igreja Católica, que está em várias regiões do
Maranhão. As articulações mais imediatas foram com o Fórum Carajás, o Fórum
‗Reage São Luís‘, o Sindicato dos Ferroviários do Maranhão, Tocantins e Pará, com o
GEDMMA (Grupo de Estudo Modernidade e Meio Ambiente – UFMA) e com o MST,
sendo que vários outros movimentos e entidades aderiram à campanha, de modo que,
pelo conjunto de materiais bibliográficos e audiovisuais, a consolidação de um site e,
fundamentalmente, pelo amadurecimento organizativo e associativo, a campanha torna-
se uma rede, tendo como foco de atuação a assessoria jurídica, a educação popular e a
circulação de informações sobre os conflitos socioambientais e denúncias, atuação esta
sintetizada pela missão central:
Fortalecer as comunidades ao longo do corredor Carajás e denunciar
as violações aos direitos humanos e da natureza responsabilizando
Vale e Estado, prevenindo novas violações e reafirmando os modos de
vida e a autonomia das comunidades nos seus territórios (JUSTIÇA
NOS TRILHOS, 2017 n/p).

Parte do aprendizado político e fortalecimento da Rede Justiça nos Trilhos


também decorrem das articulações, durante o Fórum Social Mundial em Belém, em
2009, para a criação da Articulação Mundial dos Atingidos pela Vale e pela realização
do I Encontro Mundial dos Afetados pela Vale no Rio de Janeiro em 2010.
A Rede constrói, primeiramente, um levantando das várias denúncias de
violações de direitos humanos ao longo da Estrada de Ferro Carajás: como a poluição
do ar, as remoções forçadas, a exploração sexual nas obras, a rachadura das casas e os
processos de criminalização de lideranças. Após o levantamento, cria um conjunto de
canais de comunicação com as comunidades, em processos de convergência e
politização das situações sociais de conflito com a mineração, de modo a se aproximar
das demandas políticas das comunidades por meio da educação popular, do
assessoramento jurídico e da produção de denúncias das violações de direitos humanos.
Os sentidos da rede se expressam na aproximação entre os lugares em conflito
com a mineração em múltiplas escalas, não apenas entre as distintas comunidades
atravessadas pela mineração ao longo do corredor Carajás-Itaqui, mas destas com outras
comunidades afetadas pela mineração em outros estados e países. A partir de diversos

382
instrumentos, como encontros, reuniões e assembléias, há a possibilidade de
aproximações e convergência de sensibilidades políticas distintas.
O caso particular da Articulação Mundial dos Atingidos pela Vale, ao passo
que pode ser considerada uma unidade de mobilização que politiza suas demandas pela
oposição a uma empresa, ora mobilizando a categoria atingidos, ora afetados, também
pode ser considerada uma rede de mobilização, pela forma de articulação de distintos
movimentos sociais, sindicatos, comunidades afetadas, Ongs e outras redes de
mobilização política que têm como demandas concretas os impactos da empresa Vale
em distintos países: Brasil, Canadá, Chile, Argentina, Guatemala, Peru e Moçambique.
Essas articulações foram processualmente construídas a partir de outros
espaços e Fóruns, como o Fórum Social Mundial, particularmente o de Belém em 2009,
que construíram as condições objetivas para a reunião de distintas experiências de
resistência à mineração, particularmente à empresa Vale, tornando possível a
consolidação de um primeiro encontro da Articulação no ano de 2010 no Rio de Janeiro.
Após o encontro, caravanas de reconhecimento das situações sociais de conflito,
intercâmbios, a elaboração de materiais escritos, como um dossiê de denúncias à
mineradora, bem como a estruturação de um site, consolidaram uma articulação em rede
que, mesmo com grandes dificuldades de consolidar um contato mais próximo entre as
comunidades e movimentos envolvidos, amplifica demandas assumindo um papel
decisivo de tornar público violações aos direitos humanos praticadas pela empresa em
distintos locais do mundo.
Outra importante experiência de articulação em rede, que chega em 2018 ao
seu oitavo encontro, é a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão. A
reunião de camponeses, indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, sertanejos e
pescadores surgiu como espaço de troca de experiências e construção de autonomia dos
povos e comunidades tradicionais diante das distintas ameaças do Estado e de empresas
privadas. A teia se expressa como espaço de encontro para diferentes povos e
comunidades não apenas no sentido de coletivizar o enfrentamento das ameaças
enfrentadas, mas pautando a autonomia como elemento fundante, seja em relação ao
Estado, seja em relação a empresas. Com a realização de encontros diretamente em
comunidades afetadas por frentes econômicas e articulando distintas comunidades e
povos, mas também outras redes de mobilização, movimentos sociais, Ongs e centros de
pesquisa, a teia se consolida como uma das mais importantes articulações políticas no
corredor Carajás-Itaqui. No encontro de 2018, a carta pública lançada aponta o nome

383
das principais empresas privadas que estão avançando sobre os territórios dos povos e
comunidades tradicionais do Maranhão, dentre as identificadas, logicamente está a
empresa Vale.

9.2.5 POLITIZAÇÃO DE SITUAÇÕES SOCIAIS DEGRADANTES


Além das redes de mobilização e entidades, alguns ativismos sociais ou
processos de mobilização que politizam situações espaciais degradantes, são
importantes no desenho dos antagonismos definidos pelos processos de territorialização
da Mineração no corredor Carajás-Itaqui. São inúmeras associações de bairro e/ou
comunitárias que lutam contra a rachadura das casas provocada em praticamente todas
as localidades por onde passa o trem, que lutam contra os alagamentos provocados por
obras na ferrovia que alteram a dinâmica de escoamento superficial da água da chuva,
ou mesmo, que alertam para os constantes acidentes provocados pelo EFC. Nesse
particular, a luta dos moradores da comunidade de Piquiá de Baixo (embora também
seja uma luta encampada em conjunto com a Rede Justiça nos Trilhos), localizada há 12
km da cidade de Açailândia no Maranhão é bastante expressiva para demonstrar esse
processo, uma vez que os moradores sofrem os impactos da siderurgia e da mineração
desde meados da década de 1980. Fumaça, poeira, poluição, descumprimento de normas
ambientais pelas guseiras, assolaram as condições mínimas de permanência no lugar, de
modo que a pauta dos moradores tornou-se o reassentamento, ou como relata a Rede
Justiça nos Trilhos, que há anos desenvolve projetos de articulação social na
comunidade, ―os moradores sempre realçam que nunca teriam desejado deixar suas
terras e compreendem essa necessidade como o mal menor frente à violência dos
impactos socioambientais da região‖ (JUSTIÇA NOS TRILHOS, 2016).
As condições sociais degradantes a que são submetidas às comunidades,
particularmente Piquiá de Baixo - não apenas pela poluição do ar proveniente das
siderúrgicas, mas também por todos os constrangimentos que provocam o
atravessamento dos trilhos - tornam a necessidade de sair a última condição de
politização da vida. O reassentamento como bandeira, embora pareça marcar o desprezo
ao lugar, na verdade demonstra uma reunião possível para continuar a viver com
dignidade. A marca do reassentamento é, fundamentalmente, a dignidade de viver em
condições salubres de vida, distante das violações cotidianas da mineração, o que marca
a mobilização a partir de situações degradantes como um grito pela dignidade e pela
vida.

384
Em linhas gerais, essas cinco unidades de mobilização são instituintes de
múltiplos processos de r-existência à mineração no corredor Carajás-Itaqui. Não foi
nosso objetivo fazer uma descrição densa de cada uma delas, mas demonstrar a
emergência de vários sujeitos políticos que pluralizam os sentidos do antagonismo à
mineração pela afirmação de suas diferenças e territorialidades através de distintos
modos de se reconhecer, de se organizar e de politizar a vida em face às violações da
mineração.

9.3 REPERTÓRIOS DE AÇÃO COLETIVA: OCUPAR OS TRILHOS, AS ESTRADAS E A

TERRA
Se a racionalidade corporativa mineral, após conter os conflitos internos do
―chão da fábrica‖ (flexibilizar as relações de trabalho, terceirizar funcionários e
imobilizar sindicatos por acordos coletivos anuais para minimizar os efeitos dos
processos de mobilização dos trabalhadores da mineração) precisou criar mecanismos
de controle dos espaços necessários para a realização de todas as etapas do metabolismo
social dos processos mineradores, os sujeitos políticos em antagonismo à mineração
também começaram a responder às novas formas de intrusão em seus territórios.
Os grandes projetos de mineração, como tecnologias políticas de exceção para
a normalização dos fluxos capitalistas de matéria e energia, precisam, para realizar os
circuitos do capital, da extração aos portos de exportação, das barragens aos linhões, dos
monocultivos às estradas, das estruturas logísticas para a realização de sua geografia de
exceção. Para o circuito de capital se completar, portanto, ele precisa interromper as
relações entre quilombos, interromper o trânsito cotidiano de comunidades, precisa
imobilizar pessoas, cortar territórios indígenas.
Essa dependência de uma estrada de rodagem, de uma estrada de ferro, de uma
linha de transmissão, fez com que os antagonismos forjados aos grandes projetos
minerais expressassem-se por ações políticas de ocupação e interrupção dos sistemas
logísticos. A hierarquia posicional de fluxos é rompida pelos processos de ocupação.
A ocupação, em todos os sentidos que a palavra pode ter, mas,
fundamentalmente, enquanto ação de conquistar ou reconquistar algo surge no cenário
nebuloso do nosso tempo, como um imperativo às lutas sociais. Não é sem razão. O
neoliberalismo como filho de crises e neto do desespero, encontrou na violação dos
espaços de bem comum, modos violentos de continuar a lucrar. Pela análise do
liberalismo e do neoliberalismo, Foucault (2004, p. 154), chegou a constatar que é ―essa

385
multiplicação da forma ‗empresa‘ no interior do corpo social que constitui, a meu ver, o
escopo da política neoliberal‖. Esse empresariamento da vida, ou essa empresa que vira
alma e um gás que se respira, diria Deleuze (1992), nada mais é que o elemento
fundante dos processos de espoliação, o que nos faz entender que tudo aquilo que não se
reduz a essa equação, tudo o que não se deixou ser ―empresa‖, torna-se uma reserva de
capital.
Esse trabalho focalizou, por diversos prismas, o governo do território pela
racionalidade corporativa mineral como um ataque aos territórios de camponeses,
pescadores, indígenas, quilombolas, das quebradeiras de coco e de muitos outros
grupos. Se o ataque e a violação fazem parte do repertório dessa geografia de exceção,
as ocupações surgem, por distintos modos, ângulos e significados, como elemento
presente no repertório de ações coletivas81 das geografias das r-existências.
Entrementes, os modos de ocupar assumem expressões bastante diversas e,
quando estamos falando dos processos de ocupação dos trilhos, estradas e terras em
antagonismo à mineração, sustentamos aqui a ideia de que há neles uma ampliação
profunda no significado que assumem as ocupações, particularmente no contexto de luta
pela terra no Pará e no Maranhão.
O latifúndio, como marca de expressão da organização fundiária desses estados
e historicamente referendado por políticas de desenvolvimento e colonização, que
serviram de barreira para outros modos de ocupação da terra, inviabilizando as
demandas dos trabalhadores rurais pela reforma agrária (IANNI, 1979), sempre foi, por
representar uma impossibilidade em relação à vida, elemento central de contestação de
movimentos, entidades e organizações sociais na região.
Essa pauta, aliás, assume centralidade na região sudeste do Pará e no
Maranhão, particularmente com a criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
do Movimento de Educação de Base (MEB) e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais
(STRs), ainda antes e durante o regime militar, com expressiva importância para a
criação de um conjunto de STRs, mesmo que estes Sindicatos tenham sofrido a
interferência direta e, em alguns casos, intervenção do Estado, para tornarem-se linha
auxiliar dos programas de colonização (ALMEIDA, 1989). É válido destacar a
importância simbólica e prática do STR de Santa Inês no Maranhão criado em 1963,

81
―A palavra repertório identifica um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e
postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha. Repertórios são criações
culturais aprendidas, mas eles não descendem de filosofia abstrata ou tomam forma como resultado da
propaganda política; eles emergem da luta. (TILLY apud ALONSO, 2012, n/p).

386
mesmo ano da criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG), do STR de Imperatriz-MA, criado em 1967, mas só reconhecido em 1973,
e do STR de Conceição do Araguaia e de São João do Araguaia no Pará, ambos criados
em 1974, além de muitos outros que surgiram, como em Itupiranga, em 1979 e em
Marabá em 1980. A articulação da igreja em torno da fundação da CPT em 1975 e sua
rápida instalação no Pará e Maranhão, ainda em meados da década de 1970, na
assessoria direta da luta dos posseiros, sindicalistas e posseiros sindicalistas, consolidam
processos de resistência camponesa, através particularmente, de lutas sociais
empreendidas pela ocupação de terras e confrontos diretos com fazendeiros (ASSIS,
2007; CONCEIÇÃO, 1980; GUERRA, 1991).
Entretanto, para a luta posseira se efetivar como luta de ocupação e pela terra, o
movimento primeiro foi de libertação do cativeiro, ou seja, de libertação das relações de
exploração às quais estavam submetidos nas fazendas, seja em relações de trabalho que
instituíam a escravidão por dívida, seja por meio de relações que relembravam a
servidão. A fuga, luta e/ou libertação era o fim primeiro para a conquista da terra.
Já na década de 1980, como destaca Hébette (2004), a atuação dos militantes,
além das práticas das associações, alargou a possibilidade de luta pela terra, quebrando
o isolamento das diversas frentes de conflitos dos posseiros, permitindo, desta forma, o
estabelecimento de uma nova articulação com o Estado, tendo os STRs como
interlocutores. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que primeiramente
se instalou em Conceição do Araguaia, também assume um papel importante,
principalmente no final da década de 1980 e na década de 1990, junto com vários outros
movimentos. Em 1996, após o massacre dos trabalhadores na ―Curva do S‖ ocorre a
criação da sede regional da FETAGRI em Marabá, além de outras associações e
comissões na luta pela reforma agrária. O MST, por sua vez, na esteira do histórico
processo de luta posseira, consolida as estratégias de resistência na tríade ocupar,
produzir e resistir, expressando um processo de territorialização camponesa.
Esse rápido parêntese histórico é feito no sentido de compreender que a pauta
da reforma agrária, voltada contra o latifúndio - este definido por arranjos de relações
autoritárias entre oligarquias, empresas e Estado, mas referenciando, em termos
geográficos, pelo tamanho da terra - encaminha um processo de luta, em que a justiça
fundiária se dá pela redistribuição da terra e o provimento de condições objetivas e
técnicas para a permanência nela. A necessidade da ―terra de trabalho‖ contra a ―terra
de negócio‖ politiza a situação fundiária pela necessidade de redistribuição da unidade

387
produtiva básica que é a terra. Ocupar significa dividir, construir a possibilidade de
justiça fundiária.
A importância dessa pauta até os nossos dias não se discute. Entretanto,
queremos aqui demonstrar uma ampliação de sentidos do ato de ocupar quando nos
referimos aos antagonismos com a mineração.
Às 5h da manhã do dia 24 de março de 1987, um pouco mais de dois anos da
inauguração da EFC em 28 de Fevereiro de 1985, distintos grupos indígenas Gavião da
Reserva Mãe Maria ocuparam a Estrada de Ferro Carajás reivindicando a saída de um
grupo de posseiros de seus territórios e afirmando que a, então, CVRD, que atravessou
em 17 km a terra indígena, teria de pagar para passar por lá com seu trem (CORREIO
BRASILIENSE, 25/03/1987). Em 1988, os Gavião e Guajajara ocupam a sede da
FUNAI em Imperatriz-MA exigindo a indenização pela passagem da ferrovia em seus
territórios (DIÁRIO POPULAR, 29/07/1988). Em 22 de março de 1993 cerca de 200
indígenas Guajajara, Krikati, Awá-Guajá, Urubu Kaarpor interditaram a Estrada de
Ferro Carajás exigindo o compromisso da CVRD em custear a demarcação dos
territórios dos Awá e Krikati, além de assistência em saúde e educação e desintrusões
dentro da TI Alto Turiaçu (O IMPARCIAL, 23/03/1993).
Esses distintos processos de ocupação, embora ocorridos entre as décadas de
1980 e 1990, momento de ebulição das lutas agrárias e violência no campo, seja no
Pará, seja no Maranhão, passaram um tanto despercebidos em virtude da violência
exercida contra outros processos de ocupação empreendidos por posseiros e pelo
próprio MST.
Entretanto, uma diferença básica há entre essas duas maneiras de ocupar. Se,
de um lado, na luta posseira e sem terra, ocupa-se como um caminho a buscar a terra e a
vida na terra, a ocupação dos indígenas marca diferenças, institui uma tensão entre
territorialidades distintas, pois se trata de uma defesa daquilo que tradicionalmente
significa a vida, o território.
Em outro lugar da Amazônia, Porto-Gonçalves (2003), observou os Empates
dos seringueiros no Acre contra a derrubada da floresta, como um modo de se
estabelecer em um front, identificando também, diferenças históricas entre os primeiros
empates, ocorridos mais como reunião de posseiros, ainda na década de 1970, e aqueles
realizados, sobretudo, após o assassinato de Wilson Pinheiro, liderança regional, como
empates para garantir aos seringueiros uma colocação, um modo de afirmar uma
localização e um modo de usar a floresta.

388
Essa ampliação de sentido se dá pela necessidade de se fazer ver uma diferença
para se lutar no sentido de continuar a existir, r-existir. Podemos dizer que as famílias
sem terra que, durante a Jornada Nacional de Lutas do MST, ocuparam os trilhos da
EFC em 17 de outubro de 2007, no eixo ferroviário que corta o assentamento Palmares
II, no município de Parauapebas, estavam ali para exigir dignidade em seus territórios.
Dentre as muitas pautas apresentadas em suas exigências, o movimento, além de
demonstrar que lutava contra a privatização da companhia - realizada 10 anos antes, em
1997 - e contra o modelo de desenvolvimento agromineral regional, agora, com
território cortado pela ferrovia, exigia da empresa uma responsabilização expressa em
ampla pauta de melhorias nos territórios atravessados pelos trilhos.
Não se pode compreender esse empate do trem, como afirmação de uma
localização, empreendido pelo MST, sem entender que as ocupações em busca da terra,
que foram 443 só no sudeste do Pará, entre 1988 e 2015, resultaram na criação, no
mesmo período, de 485 assentamentos rurais, num total de 501 registrados até 2016,
totalizando uma área de 297.344,257 km². Literalmente as lutas sociais no campo
tencionam a concentração fundiária e conquistam vitórias importantes e, agora, as terras
conquistadas, tornam-se territórios em disputa, particularmente com os processos de
territorialização pela via da mineração.
A nota do MST sobre esta ocupação expressa claramente um novo sentido
dado àqueles que são atravessados pelos projetos de desenvolvimento que, com aquele
ato, resolveram ser ―gente‖:
Estamos em milhares, vindos de outros acampamentos, do garimpo,
de lugarejos distantes, dos assentamentos, das cidades, das periferias,
enfrentamos as terríveis contradições do modelo imperante da
fronteira (...). O que queremos? Numa única palavra, exercer
soberania sobre a nossa riqueza. Decidimos ser gente, cidadãos nessa
região onde o capital quer que seja apenas sua fronteira de expansão
(MST, 31/10/2007 apud TROCATE; ZANON; VIEIRA, 2015, p.
135).

Os processos de ocupação, nestes termos, expressam dinâmicas de afirmação


de localizações, de modos de ser e estar num espaço que, por sua vez, carregam
conquistas e modos de existência, os quais, em antagonismo à mineração, precisam ser
objetivados em modos de organização e luta coletiva.
Ainda ampliando o sentido das ocupações, cerca de um mês depois da
ocupação da ferrovia pela comunidade quilombola de Jaibara dos Nogueiras em
Itapecuru Mirim no Maranhão, por conta do atropelamento de um quilombola pelo

389
trem, 35 comunidades quilombolas do mesmo município, ocuparam novamente a EFC
em 23 de setembro de 2014 e lá permaneceram por 5 dias ininterruptos. Pelas vozes
quilombolas, o ato de ocupar nada mais é que um ato de proteção, pois como afirma
uma liderança quilombola ainda em 2014, logo após a tentativa da empresa de
criminalizar o ato: ―Nós não cometemos crime não, nós fizemos é proteção de vida
porque por cinco dias (...) foi cinco dias que eles não agrediram mais a mãe natureza,
que tá fazendo mal prá todo mundo‖.
Se os empates no Acre, em plena luta seringueira, barravam as grandes
empresas e grandes fazendeiros de expandirem a devastação da floresta e, assim,
afirmavam uma identidade territorial, um modo de organizar e usar o espaço, as
ocupações dos trilhos no corredor Carajás-Itaqui, também expõem modos de destruição
da vida pela mineração, mas afirmam a existência de outras vozes, outros territórios.
Mas não percebemos isso apenas nos processos de ocupação dos trilhos. A
dinâmica de concentração fundiária provocada pela mineração, também gerou
mobilizações de ocupação de terras, marcando a necessidade de se respeitar territórios.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás fornece uma
boa contextualização para entendermos o que está em jogo nos múltiplos processos de
ocupação de terras da mineradora que ocorre no município, diz ele
A mineradora entendeu que aquela área ela poderia precisar e aí
começou a perturbação, pesquisando, furando, entrando. Nós, sem
informação, sem ter quem nos ajudasse a defender nosso povo. Então
ela chegava e enganava né (...). E aí a gente ficava só com o impacto,
porque ela entrava, pesquisava, furava, ninguém sabia que era levado
daqui da nossa terra (...). Então depois disso aí, ela chegou a comprar
mais de 50% do município [Canaã dos Carajás] e onde as melhores
terras ela chegou a desapropriar (...). E com o decorrer do tempo ela
começou a sistematizar dizendo que os trabalhadores de Canaã eram
preguiçosos, os colonos eram preguiçosos. E aí foi que eu fui perceber
que o que ela colocava era chantageando a gente, porque além dela
pegar a área do povo ela ainda criticava o pessoal (José de Ribamar,
Pixilinga, liderança sindical em Canaã dos Carajás, entrevista
realizada em outubro de 2016).

A compra de terras pela empresa, em um espaço de vida e trabalho de milhares


de agricultores, é a desmobilização literal das possibilidades de reprodução da
agricultura camponesa. O senhor Pixilinga chega a afirmar que

Creio que essas áreas têm que voltar a ser produtivas. Aqui nós
tínhamos uma bacia leiteira muito grande, na época de 1998, 1999 até
2002. E aí nós temos dois caminhões parados ali como resultado (...).
Nesses caminhões nós puxava 6.000 litros de leite por dia. Nós pegava

390
desde o que tirava três litros, cinco litros, até o que tirava duzentos,
quatrocentos litros nós pegava (José de Ribamar, Pixilinga, liderança
sindical em Canaã dos Carajás, entrevista realizada em outubro de
2016).
Os caminhões do sindicato parados são uma síntese do significado, em termos
de uso da terra, que a mineradora provocou no município. Entretanto, de dentro de um
dos acampamentos, Cristóvão Botelho, além de construir uma analogia para a ação de
desterritorialização da empresa Vale, dá vida e expressão para o que está em jogo:
Eu analiso a Vale como o presidente Figueiredo na época. O
presidente Figueiredo ganhou prêmio de maior amansador da selva
(...) Ele ganhou medalha de ouro por amansar a selva. Só que as
autoridades não atentaram pro impacto que eles iam causar no
amanhã, como causou. Porque se ele não tira esse mundo de gente(...).
É o que eu analiso a Vale, o que pode acontecer o amanhã (...). Quem
chegou aqui no Cedere 3 há vinte e cinco anos atrás não precisava de
uma geladeira e de um pote não, ele ia lá na cacimba e pegava a água
dele e bebia e agora vai beber água dessa aí (Cristóvão Botelho,
Camponês acampado em Canaã dos Carajás, entrevista realizada em
outubro de 2016).

A força de ―amansar‖ a selva de um presidente da Ditadura Militar é


comparada à força de tirar gente do lugar da empresa Vale, forças análogas, que
provocam extremos impactos no amanhã. Nesse sentido, o que está em questão é, por
um lado, a concentração de terras nas mãos da empresa que não permite a sobrevivência
de pequenos agricultores, mas é também o reclamo de um modo de usar o espaço
historicamente construído, e que foi desmobilizado pela empresa. As ocupações são,
portanto, uma resposta ao latifúndio, calcadas na experiência histórica da agricultura
camponesa em Canaã dos Carajás.
Além dos trilhos e da terra, muitos caminhos de várias comunidades
atravessadas pelos trilhos, tornam-se, de uma hora para outra, bases de apoio da
empresa, o que também faz com que as estradas dos entornos das áreas de extração,
bem como dos entornos da ferrovia, também sejam, algumas vezes, ocupadas para se
fazer ver outras passagens, outras maneiras de fluir.
Um caso emblemático que alarga os sentidos dos processos de ocupação
ocorreu no município de Igarapé do Meio no Maranhão, mas especificamente na Vila
Primavera. Lá os caminhos de brincadeira, do transitar cotidiano da comunidade
tornaram-se uma estrada de rodagem para o transporte de materiais de manutenção da
ferrovia. As crianças não mais brincavam em paz, os caminhos de trabalho e lazer dos
adultos, tornaram-se perigosas travessias. Em um ato simbólico, uma menininha de
nome complicado, Naira Natiere, juntamente com amigos e pessoas da comunidade,

391
resolveu barrar a passagem dos carros por seus caminhos. A figura 30, que se
transformou em símbolo de resistência de várias organizações, anuncia o empate!
FIGURA 30 – “Proibido passar carro da Vale aqui...”

Fonte: DOCUMENTÁRIO TRILHOS DA VIDA, 2016.

A proibição de Naira aos carros da Vale é uma interrupção da destruição do


cotidiano da comunidade, é a possibilidade que ela encontrou de continuar a brincar e a
circular sem os riscos dos carros passando. É um modo de dizer ―estamos aqui‖,
―existimos‖ para uma empresa que acelera tempos, ritmos, fluxos, mas esquece das
vidas de suas margens.
Se observamos, em momento anterior, processos de subjetivação política em
antagonismo à mineração, bem como a diversidade de territorialidades que esses
processos afirmam, o que percebemos com a recorrência das ocupações, seja dos trilhos,
seja de terras, seja de estradas, é que o ato de ocupar torna-se, em grande medida, a
síntese política do antagonismo à mineração pelas distintas territorialidades.
A ação coletiva de ocupar, portanto, é, antes de qualquer coisa, um aprendizado
político coletivo de grupos que sofrem com a intrusão em seus territórios dos sistemas
logísticos da mineração e todos os arranjos de relações definidos pelas estratégias
corporativas de governo do território. Mas é importante ressaltar, também, que a
recorrência destas ações antagônicas à mineração decorre de distintos processos de
transferências políticas entre comunidades, povos e movimentos sociais, ou seja, elas
expressam uma tensão específica e interações entre distintas sensibilidades políticas.
Entretanto, as ocupações se singularizam enquanto ato, uma vez que objetivam
identidades políticas em movimentos sociais, marcando diferenças por meio de
símbolos, linguagens e performances. As imagens abaixo demonstram distintos atos de
ocupação por diferentes unidades de mobilização política, nas quais, pelos símbolos

392
projetados, percebemos as identidades políticas mobilizadas e as organizações,
entidades e movimentos que mobilizam o ato.
FIGURA 31 – Mulheres ocupam a Estrada de Ferro Carajás

Fonte: MST, 2016


A mobilização de mulheres, expressa na figura 31, aconteceu em março de
2016 e denunciava a ameaça da mineração aos territórios conquistados pelos
movimentos camponeses, particularmente o MST. Pelas bandeiras, faixas e cartazes os
movimentos se apresentam, a organização feminina do ato é ressaltada e múltiplas
denúncias são realizadas.
FIGURA 32 – Ocupação da entrada da Floresta Nacional de Carajás pelo
MAM

Fonte: MAM, 2018.

393
A ocupação da entrada da Floresta Nacional de Carajás, onde ficam os mais
importantes projetos extrativos da empresa Vale S. A, pelo Movimento pela Soberania
Popular na Mineração registra, em imagem, uma distinção de projetos. A mobilização,
realizada durante o I Encontro Nacional do MAM, realizado em Parauapebas, entre 18 e
21 de maio de 2018, expressa, pela paralisação momentânea de fluxos ligados à
mineração, um repertório de ação coletiva de reposicionamento e relocalização de
comunidades e movimentos sociais frente aos fluxos da mineração. Pelo vermelho das
bandeiras e das camisas dos militantes e pela faixa ―soberania popular na mineração‖, o
antagonismo ganha o simbolismo de cores e linguagens.
FIGURA 33 – Quilombolas do Maranhão ocupam trilhos da Vale

Fonte: Castro (2014).

A figura 33, por sua vez, registra a ocupação da EFC por comunidades
quilombolas no Maranhão em setembro de 2014 e também demonstra a marcação do ato
pelo simbolismo de distintos movimentos e entidades quilombolas. Nesses termos,
bandeiras e faixas expressam organizações e entidades e exigem a demarcação dos
territórios quilombolas.

394
FIGURA 34 - Indígenas Guajajara e Awá Guajá ocupam Estrada de
Ferro Carajás

Fonte: Justiça nos Trilhos (2012).

Os indígenas Guajajara e Awá Guajá, nesse ato de ocupação dos trilhos em


2012, também mobilizam seus símbolos, suas marcas e tradições, singularizando um
repertório coletivo pela afirmação de suas territorialidades.
Por esses repertórios de ação coletiva identidades objetivam-se em movimentos
sociais em uma prática de relocalização das comunidades atravessadas pela mineração,
de se tornar visível em sua diferença. Pelas ocupações, territorialidades se objetivam em
ação coletiva, distintos sujeitos se encontram, distintas culturas políticas se expressam,
distintos modos de organização são levados a cabo num encontro pelo território.

9.4 AS POLÍTICAS DE ESCALA DIANTE DA EXCEÇÃO COMO REGRA


Quando falamos de escala, para que não haja desentendimentos desnecessários,
podemos estar falando, inspirando-nos em Souza (2013), da abrangência de um
fenômeno, uma referência a tamanhos variados de um processo, objeto, área; podemos
estar falando de recortes analíticos, aproximações possíveis a um fenômeno, processo,
área, que remonta um direcionamento do olhar, com mais ou menos detalhes do que vê;
e também estamos falando de um instrumento político e estratégico, um modo de se
disputar o que se pode ver e como se vê, ou ainda, de práticas que ampliam a
visibilidade e ressonância de um processo de mobilização e podem, até mesmo,
construir novas arenas políticas.

395
É esse terceiro aspecto que nos interessa, a escala como uma prática social de
reposicionamento sócio-espacial. Não que não utilizemos os outros modos de leitura
neste trabalho, mas porque é necessário, na compreensão das lutas sociais, pensar que o
dimensionamento das demandas, muda a partir da forma de amostragem dos problemas,
tendo em vista que ―a representação/distorção da realidade é um pressuposto para o
exercício do poder‖ (SOUZA SANTOS, 2004, p. 202).
Concordamos, em parte, com Moore (2018) para quem a escala também deve
ser compreendida como categoria da prática social, considerando-a muito mais como
categoria da experiência de atores em comum do que como categoria distante da
experiência, formatada pelos meios universitários, o que nos leva a entender o modo
como as práticas produzem escalas não apenas como as práticas se situam ou ocorrem
em dada escala. Assim entendida, a escala teria uma expressão epistemológica, o que
nos leva a entendê-la como um modo de interferência no que sabemos sobre o mundo,
ou como um modo de percepção/compreensão; também expressaria práticas de
classificação e hierarquização espacial por múltiplas formas de significação; além de se
expressarem como um processo de cognição, modos de criação de imagens e
imaginações espaciais (MOORE, 2018). Entretanto, não concordamos com a
relativização excessiva do conceito que faz o autor, ao traduzir as experiências e
práticas escalares apenas em termos de discursos, significações e cognições sem dar a
importância necessária para delimitações escalares mais rígidas, como as impostas pelo
Estado ou mesmo por empresas (da natureza da que este trabalho analisa). Nesses
termos, acreditamos ser importante, nesse momento concordando com Moore (2018),
que empreender uma análise das políticas de escala significa se direcionar para o que as
pessoas fazem em termos de produção de escala para fins econômicos e políticos
específicos, entretanto, nesse momento discordando do autor, é preciso pensar que há
relações desiguais que definem abrangências e capacidades diferenciais de
interferências escalares dos distintos sujeitos políticos.
No caminho de uma política de escala, Smith (2000), observando os veículos
dos sem-teto projetados por um artista de Nova York, demonstra que o trânsito entre
escalas, a conexão social ativa entre distintas escalas, que um veículo pode produzir
para quem a mobilidade é uma impossibilidade, pode traduzir-se claramente em termos
de política espacial, uma vez que rompe fronteiras escalares formatadas pelas relações
econômico-sociais capitalistas e amplia a experiência espacial dos sem-teto, redefinindo

396
as escalas da vida cotidiana e produzindo um ―salto de escalas‖ que significa, então, um
modo de não subordinação aos meios de restrição escalares.
Nas trilhas deixadas por Moore (2018) e Smith (2000) e muitos outros que não
convêm citar aqui, mas nos ajudaram na reflexão podemos, trazendo a discussão para o
campo das lutas sociais na Amazônia, dizer que, assim como o território é
reintroduzido, em seu sentido radicalmente crítico, nas ciências sociais pelos atores
sociais em conflito com um modo de capitalismo muito particular, que funciona pela
espoliação, contenção e desterritorialização, acreditamos que a escala também o é. É a
análise da escala como prática social e a partir dos veículos dos sem-teto que nossos
interlocutores chegam à noção de política de escala. Não falamos, logicamente, do
mesmo lugar epistêmico de nossos interlocutores, uma vez que nossas práticas de
construir políticas de escala apresentam formas distintas por conta de nossa
particularidade histórica e geográfica.
Do lado de cá, o trânsito de escalas, na maioria das vezes, é barrado por uma
geopolítica do conhecimento que também poderíamos chamar de geopolítica do
reconhecimento. Walter Mignolo (2004), com clareza, mostrou-nos como determinadas
histórias locais tornam-se globais e como outras histórias locais permanecem
invariavelmente locais.
O lugar a partir do qual se fala ou se luta, interfere diretamente na capacidade
de circulação daquilo que se diz e se quer. Existe um enorme desequilíbrio entre os
lugares de enunciação, e não dizemos isso apenas situando regiões diferentes, no caso
aqui, a Amazônia e as outras regiões do país, pois isso também se opera quando lidamos
com posições sociais diferentes. A versão da empresa que comete um crime ambiental,
geralmente é a mais difundida do que a de quem sofreu com os danos.
Em duas palavras, saltar escalas na Amazônia é, também, lutar contra
injustiças cognitivas colonialmente definidas82. Quando falamos em injustiça, é para
dizer que o privilégio que alguns têm de falar e serem ouvidos significa colocar na
sombra os dizeres de muitos outros. Quando atribuímos o adjetivo cognitivo à injustiça,
estamos dizendo que nosso conhecimento das coisas é produzido, em muito, a partir
deste privilégio que alguns têm diante de outros, ou seja, que nossos pontos de vista,
visões de mundo, sempre carregam a influência de lugares que conseguiram falar para o

82
Boaventura de Souza Santos (2010, p. 49-50) nos mostra que ―não existe justiça social global sem
justiça cognitiva global. Isto significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à
geração de alternativas. Ela requer, de fato, um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo
pensamento, um pensamento pós-abissal‖.

397
país, para o mundo, em detrimento de lugares, cujas interpretações sempre se
circunscreveram a eles próprios. Esse é o sentido de uma injustiça cognitiva que produz
uma geopolítica do conhecimento, que aqui, alargamos seu sentido e também
chamamos, de geopolítica do reconhecimento.
Talvez esse seja o motivo para que as políticas de escala na Amazônia sempre
envolverem a violência e a morte.
Já dissemos nesse trabalho que o lugar, onde se finca cada palavra aqui dita, é
mais conhecido pela morte que pela vida, entretanto, isso que parece soar como mero
jogo de palavras, também demonstra que, seja no Pará, seja no Maranhão, quase todas
as vezes em que as lutas sociais ganharam repercussão nacional ou internacional, foram
as mortes de lideranças que as fizeram tornar-se pauta. O valor das causas é medido,
portanto, pelo número de ameaças de morte e de mortes, ou seja, problemas históricos
só rompem as barreiras da injustiça cognitiva e da geopolítica do reconhecimento e
saltam escalas, quando dramas se instalam, foi assim em 17 de abril de 1996, dia em
que 21 camponeses foram assassinados pela polícia em Eldorado dos Carajás e a luta
camponesa tornou-se pauta mundial; foi assim em 12 de fevereiro de 2005, dia em
que Irmã Dorothy Stang foi assassinada em Anapu-PA e por longos dias a comoção
internacional voltou-se os olhos à Amazônia; foi assim em 24 de maio de 2011 quando
Maria do Espírito Santo e José Claudio Ribeiro, ambientalistas que viviam e lutavam
pela floresta, foram assassinados cruelmente no assentamento agroextrativista Praia Alta
Piranheira em Nova Ipixuna no Pará e, também assim, exatos seis anos depois, quando
10 camponeses foram massacrados em Pau D‘Arco no Pará pela polícia e a reforma
agrária ganhou as capas de jornal; foi assim em 30 de abril de 2017, quando o Brasil e o
mundo conheceram os indígenas Gamela pelos mesmos terem sido atacados
brutalmente em Viana no Maranhão; foi assim muito antes, em 22 de dezembro de
1988, com a morte de Chico Mendes, e tem sido assim invariável e covardemente.
A tragédia-crime de Mariana83, a tragédia crime de Barcarena84, apontam que,
para a mineração, a equação é semelhante: é preciso desastres criminosos de largas e

83
―No dia 5 de novembro de 2015 rompeu em Mariana, Minas Gerais, a barragem do Fundão,
pertencente à Mineradora Samarco S.A., uma joint-venture entre a brasileira Vale S.A. e a anglo-
australiana BHP Billiton. De acordo com Bowker Associates, esse foi o maior desastre envolvendo
barragens de rejeito de mineração do mundo, considerando os registros iniciados em 1915. Em sua
análise, os autores consideram o volume de rejeito liberado (cerca de 60 milhões de m3), a distância
percorrida pela lama (mais de 600 km até chegar à foz do Rio Doce) e os prejuízos estimados (US$ 5,2
bilhões, ou R$ 20 bilhões, baseado no valor estipulado pelo governo federal). Para além das perdas
materiais e ambientais, a tragédia humana envolvida no desastre foi um dos principais agentes
mobilizadores nos dias imediatamente posteriores ao rompimento da barragem. A ausência de um plano

398
incalculáveis proporções para que se introduza, ainda que de forma tímida, as denúncias
e demandas de movimentos sociais e redes de mobilização, nas pautas amplas e na
agenda política nacional.
A morte como única forma de sensibilização para a vida é um subproduto da
ausência da vida amazônica no imaginário social e político brasileiro, que tanto falamos
no início deste trabalho, e das relações de exceção que fazem girar a roda do capitalismo
na região, em que uns vivem e outros podem morrer. A geopolítica do reconhecimento,
melhor dizendo, as relações de poder que definem uma hierarquia de importância aos
lugares, uma potência de circulação distinta a fatos semelhantes, unicamente porque
acontecem em espaços diferentes, ou ainda, essa desigualdade geográfica do
reconhecimento, torna a política de escala uma necessidade premente para a defesa de
territórios e expressão de territorialidades na Amazônia.
O Movimento dos seringueiros no Acre já havia percebido que as articulações
internacionais seriam fundamentais para que, nacionalmente, as suas pautas de luta
fossem escutadas e transformadas em política, de modo que o triste episódio do
assassinato de Chico Mendes e toda a visibilidade que o fato obteve, demonstrou que a
imprensa nacional ―repercutia a repercussão internacional do fato e não o fato em si‖
(PORTO-GONÇALVES, 2003, p. 48).
O caminho trilhado por seringueiros e, também, por vários povos indígenas, a
transformar suas demandas em assuntos de interesse internacional, também aparece
como modo em que o conjunto das organizações sociais em antagonismos territoriais

de emergência efetivo e a incapacidade do Estado e da empresa de prestarem o devido atendimento às


vítimas aumentou consideravelmente o sofrimento dos atingidos pelo rejeito. Além disso, a
incompetência dos mesmos agentes em oferecer informações precisas sobre o ocorrido gerou um
sentimento de forte ansiedade na população brasileira e que se manifestou em uma ampla rede de
solidariedade‖ (SILVA; ANDRADE, 2016, p. 11).
84
No dia 17 de fevereiro de 2018, moradores do município de Barcarena denunciaram o vazamento de
rejeitos da refinaria Hydro Alunorte, pertencente à empresa norueguesa Norsk Hydro. A refinaria está
localizada no pólo industrial de Barcarena e beneficia bauxita proveniente das minas da empresa em
Paragominas (PA) e Oriximiná (PA), produzindo a alumina calcinada, estágio intermediário entre a
bauxita e o alumínio. Desde então, uma série de irregularidades foram encontradas pelos órgãos de
fiscalização. Laudo do Instituto Evandro Chagas (IEV), acionado pelo Ministério Público do Pará (MP-
PA) e pelo Ministério Público federal (MPF), confirmou a contaminação por alumínio, nitrato e sódio de
diversas áreas de Barcarena provocada pelo vazamento de rejeitos da Hydro Alunorte. Ainda, a perícia
flagrou tubulação clandestina utilizada para despejo de rejeitos. Problemas de pele, oftalmológicos e
digestivos vêm sendo relatados pelos moradores das vilas vizinhas. Muitos moradores não estão
recebendo água da empresa e só não ficam sem água por causa de doações. Não foi o primeiro vazamento
de rejeitos da refinaria da Hydro em Barcarena. Em 2009, um grande vazamento de rejeitos da Hydro
atingiu diversas comunidades de Barcarena, contaminando rios e igarapés com chumbo e mercúrio
(COELHO, 2018, n/p).

399
com a mineração, quebram essa regra necropolítica em que a vida de lutas sociais só
aparece pela morte de lideranças.
Experiência são várias que apontam para essa direção. A presença de Rosiane
Cardoso, presidenta da Associação de Moradores de Sítio do Meio, cidade de Santa Rita
no Maranhão e Secretária do sindicato dos pescadores da localidade, no Grupo de
Trabalho Intergovernamental da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre
corporações transnacionais e direitos humanos, em Zurique na Suíça, afirma a
capacidade de articulação e amplificação da voz de quem está em múltiplas
comunidades violadas pela mineração. Em seu discurso, Rose ressalta:
Sou pescadora, moro numa comunidade tradicional pesqueira
diretamente afetada pela empresa Vale (...) Vivemos diretamente da
pesca e somos afetados pela empresa desde o início da extração de
minério de ferro, há 30 anos. Lá nós temos nossos direitos violados
(NÃO VALE, 2017, p. 17).

Em 2012, um conjunto de organizações sociais e redes de mobilização


conseguiram com que a empresa Vale ganhasse aquele, que é conhecido no mundo
empresarial, como o ―Prêmio Nobel‖ da vergonha corporativa, o Public Eye Awards,
criado em 2000, em contraponto ao Fórum Econômico Mundial e que se transformou,
ao longo dos anos, em uma campanha internacionalmente reconhecida a colocar
holofotes em empresas que desrespeitam os Direitos humanos. Neste ano, a votação foi
a maior até então registrada, 88.000 votos, sendo 25.041 direcionados à Vale que, desse
modo, foi eleita a pior empresa do mundo, numa concorrência com Samsung, Syngenta,
Tepco e Freeport, a destacar a japonesa Tepco, responsável pelo desastre nuclear de
Fukushima.
A própria Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, iniciativa que põe
em conjunto os múltiplos povos e comunidades afetadas pela empresa, onde a mesma
possui operações, além da participação no conselho dos acionistas da empresa de
membros da Rede justiça nos Trilhos, também são formas construídas de saltar as
escalas e fazer circular a crítica aos conflitos territoriais em torno dos processos de
territorialização particularmente da empresa Vale.
Essas múltiplas formas de saltar escalas, que também criam novas arenas
políticas ou reposicionam as arenas de luta, podem ser lidas a partir de três eixos gerais
que as experiências sociais em r-existência à mineração nos indicam, quais sejam: por
ações que alteram as hierarquias escalares definidas pela empresa; por organizações que

400
ampliam as escalas de engajamento; e por modos de codificar a diferença à esfera do
direito.
Um trem a passar todos os dias na porta de casa não apenas perturba o sono,
mas também impede a realização dos fluxos cotidianos para que os fluxos de uma
empresa se realizem. Diferentes posições sociais se definem, pois, como nos mostra
Massey (2000, p. 179),
(...) diferentes grupos sociais e diferentes indivíduos posicionam-se de
formas muito distintas em relação a esses fluxos e interconexões. Não
me refiro simplesmente à questão de quem se movimenta e de quem
não o faz, embora essa questão seja um elemento importante; trata-se
também do poder em relação aos fluxos e ao movimento. Diferentes
grupos sociais têm relacionamentos distintos com essa mobilidade
diferenciada: algumas pessoas responsabilizam-se mais por ela do que
outras; algumas dão inicio aos fluxos e movimentos, outras não;
algumas ficam mais em sua extremidade receptora do que outras.
Algumas são efetivamente aprisionadas por ela.

As geometrias de poder que Doren Massey nos descreve ganham a clareza de


imagens de pensamento nos dizeres de Dona Anacleta Pires:
Como é que a gente não vai pisar dentro do que é da gente? E esse
trilho ele divide uns territórios quilombolas. No caso a Santa Rosa e o
Monge Belo. E aí o pessoal do Monge Belo estão do lado de lá dos
trilhos tem que passar e nós que estamos do lado daqui, nós precisa de
Monge Belo e Monge Belo precisa de nós, agora como é que nós
vamos ficar isolados sem poder andar por questão de quem chegou e
invadiu nossas terras? (Anacleta Pires, Liderança quilombola,
entrevista realizada em janeiro de 2018).

Para que o circuito do capital se complete, para que o minério extraído chegue
ao porto pela ferrovia e de lá acesse os principais mercados consumidores, ele precisa
interromper as relações entre quilombos, interromper o trânsito cotidiano de várias
comunidades, precisa imobilizar pessoas.
Essa hierarquia posicional de fluxos, melhor dizendo, essa hierarquização de
escalas é rompida pelos processos de ocupação que já descrevemos aqui. Parar o trem,
por exemplo, não é só parar o trem para os sujeitos que assim o fazem, mas é
possibilitar a realização das experiências espaciais, trajetos geográficos inscritos
localmente e interditados por fluxos de ferro e, ao mesmo tempo, impossibilitar
processos de acumulação em escala, barrar a conexão entre o local de extração e o local
de consumo de ferro, diminuir o tempo de circulação da mercadoria e drenagem da
natureza, constituindo-se em um agir localmente que interrompe fluxos globais de
mercadoria e capital. A escala de realização dos fluxos de capital de uma mineradora,

401
entretanto, ainda é referendada pelo Estado como mais importante que os fluxos
cotidianos das mais de 100 comunidades atravessadas pela ferrovia, por isso, que a cada
nova interrupção, novos sujeitos são indiciados e criminalizados. Mesmo assim,
demonstrando que as suspensões na vida, que o atravessamento da ferrovia provoca, são
graves e constantes, ações continuam a acontecer por mais variados motivos.
Não queremos aqui entrar em nenhum mérito jurídico ou mesmo fazer
nenhuma apologia ao fechamento de ferrovias, até porque hoje pessoas sofrem na pele
com processos e mais processos civis e criminais por conta disso, não é esse nosso
papel nem poderia ser, queremos, apenas, que fique claro, dizer que essas ações ou
mobilizações, como as dos índios Xikrin que, em junho de 2003 ocuparam as
instalações do Projeto Sossego da Vale, em Canaã dos Carajás, e em 2006 ocuparam,
por mais de três dias, a mina de ferro de Carajás, na tentativa de obrigar a Vale a
negociar valores relacionados ao direito dos índios, são as formas encontradas pelos
sujeitos sociais em conflito de alterarem, pelo menos por alguns momentos, a hierarquia
de escalas que os circuitos da mineração produzem para as comunidades afetadas.
Se um circuito produtivo depende de estruturas concretas para funcionar e se
tornar integrado globalmente, a interrupção de uma dessas engrenagens tornou-se, para
distintos sujeitos políticos em antagonismo à mineração, um modo de promover uma
política de escala, de se reposicionar no arranjo desigual de escalas.
Outro modo de usar a escala como categoria da prática social é através das
organizações sociais que conectam o engajamento social à escala dos problemas e
conflitos socioambientais provocados pela atuação da empresa em diferentes países. A
Vale, como uma empresa global, opera concretamente com atividades de exploração no
Canadá, Chile, Moçambique, Guiné, Colômbia, Argentina, Peru, África do Sul,
República Democrática do Congo, Gabão, Angola, Cazaquistão, Mongólia, Filipinas,
Índia, Indonésia, China e Austrália, tendo operações e/ou escritórios e/ou Joint
Ventures, ainda, na Nova Caledônia, EUA, França, Noruega, Zâmbia, Paraguai, Reino
Unido, Suíça, Coréia do Sul, Taiwan, Japão, Tailândia e Omã.
A Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, já promoveu, além de
encontros, expedições entre organizações sociais de alguns desses países para que as
entidades conheçam os espaços de conflito das outras entidades. Nessa troca de
experiências locais, o engajamento torna-se um modo de conexão, uma forma de
ampliação das experiências geográficas sentidas e experimentadas em distintos lugares.
À articulação internacional do mercado, em circuitos de mercadoria e capital em escala

402
planetária, articulações horizontais entre sujeitos políticos em antagonismo à mineração,
forjam-se como conexões, em diferentes lugares do mundo, de sensibilidades políticas e
geográficas, unidas como um modo de refundarem o mundo a partir de seus territórios
de vida.
Essas articulações também fazem com que comunidades em que as lutas
permaneciam localizadas, acionassem a possibilidade de conseguirem ampliar as
expressões de suas lutas, ou como diz Padre Dário acerca de Piquiá de Baixo:
A comunidade conseguiu acionar a opinião publica local nacional e
até mesmo a internacional. Nessa lógica é importante que outras
comunidades conheçam sobre o Piquiá, porque é uma história que
mostra como que a história pode ser redirecionada. Não é automático
se submeter! (Dário Bossi, Padre Coboniano, entrevista realizada em
setembro de 2016).

O salto de escalas assume a importância de redirecionar a história e, assim, é


tomado como exemplo. Nessa direção, a história de um lugar vira a possibilidade para
outros lugares redirecionarem suas histórias, fazendo com que as interações, as
conexões ampliem as possibilidades das lutas sociais, produzindo um questionamento
no posicionamento dos sujeitos políticos frente à mineração que, diante de exemplos de
resistência, ampliam sua capacidade de não se submeter.
Conhecer outras experiências de resistência é também um modo de reconstruir
elos de ancestralidade ou de unir simbolicamente espaços que o capitalismo separou.
Assim foi a experiência de Dona Anacleta Pires na África:
Em 2010 nós fomos à África. Eu queria ir à África, era um sonho da
gente. Não tivemos dificuldade nenhuma de ser reconhecido em Guiné
Bissau como irmão deles da família Pires. Inclusive, eles já esperavam
há tempos. Desde quando arrancaram nossos pretos, eles diziam
assim, que são vocês hoje, a gente não tinha prazer de fazer festa. A
gente não consegue se render a esse capitalismo que tá aí
desumanizando a gente cada dia mais. Então a gente se vê na
resistência como em Guiné Bissau (Anacleta Pires, liderança
quilombola, entrevista realizada em janeiro de 2018).

As memórias do ocaso da escravidão unem continentes. Uma família, a Pires,


liga Brasil e Guiné Bissau a uma história de roubo, seqüestro, saque e escravidão. O
prazer da festa pelo reencontro é também a vontade de não se render aos processos de
desumanização capitalistas que produziram uma história em ruínas. Mas o encontro
torna a luta de um quilombo contra uma mineradora, também a luta histórica de
distintos lugares contra a escravidão.

403
Essa ampliação das escalas do engajamento, portanto, reposiciona as arenas de
luta, pois produz um acumulo de forças políticas em torno de uma questão, ampliando a
amplitude e ressonância dos processos de mobilização.
A terceira expressão de uma política de escala nas lutas sociais em tensão
territorial com a mineração se expressa nas reivindicações dos povos e comunidades
tradicionais codificando suas diferenças étnicas a partir da esfera do direito. A demanda
pela lei do babaçu livre, pelo reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas,
pelo estabelecimento de direitos que assumem o adjetivo qualificador de territoriais,
parecem ser um modo de sujeitos políticos reconstruírem, a partir de suas demandas, o
significado das escalas político-administrativas do Estado, traduzindo para o direito sua
vida, para que a mesma continue a existir.
O estabelecimento, pela esfera legal, de uma escala normativa nacional
impulsiona a codificação de demandas da experiência em legislações e direitos
territoriais, um modo de imaginar a nação ao seu modo, melhor dizendo, de pluralizar a
imagem de nação tão homogênea nas normalizações. Há aí, por um lado, o
reconhecimento da força destrutiva e concreta do modo em que a escala nacional se
apresenta aos povos e comunidades tradicionais e todas as desregulações de direitos
influenciadas por arranjos de interesses empresariais entre a mineração e o agronegócio,
mas também há, por outro lado, um modo estratégico de se reposicionar no âmbito do
direito, na tentativa do reconhecimento de modos diferentes de usar e significar o
espaço e definir o território.
Seja pelo encontro de culturas políticas distintas e saberes diferentes, seja pelos
modos de ampliação das escalas de ação no cotidiano das lutas sociais, uma marca está
presente nos antagonismos à mineração: mobilizar-se, saltar escalas, reposicionar arenas
de luta, produzir antagonismos e defender territorialidades significam, antes de tudo,
enfrentar a experiência de habitar a exceção, para superar a morte como modo de
reconhecimento de demandas, para superar a criminalização da luta por justiça, para
superar a violência como a gramática dos conflitos, enfim, para se fazer existir em sua
diferença na exceção, pois em nenhum outro lugar do país é tão arriscado e perigoso ser
diferente.

404
CRÔNICAS DE PESQUISA
OUVI NOVOS MUNDOS
Ouvi vozes que marcavam o tempo, ecos de sonhos e lutas que,
diante das adversidades do mundo, reinventavam seus tons e teimavam em
bradar sua estridente maneira de ensinar.
Diante do caderno, minhas mãos se movimentavam como que
quisessem, de algum modo, codificar em palavra escrita, o que aquelas
vozes anunciavam. A caneta, porém, nem chegava a encostar-se ao papel
e sua tinta já rasurava a potência de sentido dos enredos proferidos.
Tentativa vã a minha de querer definir o que ouvira. Não há
como decodificar vozes que escapam às frias curvas dos nossos códigos
usuais. Não haveria tinta em minha caneta capaz de expressar o que
fora dito e, se assim eu o fizesse, seria como escrever em prosa o que
se quer verso.
Pelos timbres ecoados, as experiências se esgarçavam e ganhavam
sentido na necessidade de comunicá-las. A memória reivindicava sua
presença delineando as palavras ditas. O ato de falar, então, tornava-
se uma maneira de sentir a história.
Cada voz ouvida, portanto, não era apenas corpos em vibração
transferindo pelo ar sons até os meus ouvidos. Eram olhares e
sorrisos, pois, acima de tudo, carregavam as marcas de toda uma vida,
vibravam as dores e os amores, sonhavam e faziam sonhar, eram memória
e horizonte, expressão e potência, lembravam e projetavam e, imersas
na densidade do agora, corporificavam em sons trajetórias, tensões,
aprendizados e, assim, ao passo que comunicavam o que se viveu,
tornavam possível a vida.
Ouvir, então, não significava apenas um modo de atenção ao que
se dizia, era um alargamento de minhas maneiras de sentir o mundo,
era, enfim, um arrancar das raízes que fincavam (e ainda fincam) meu
pensamento a um enrijecido solo, de onde ainda teimam em brotar mil
formas de não sentir.
E, assim, a cada encontro com os personagens centrais desse
trabalho, novos mundos se anunciavam.
Bruno Malheiro, Niterói, 15 de Junho de 2016.

UMA GEOGRAFIA DAS VANS


As vans são os meios de transportes mais usados, depois das
motos, no sudeste do Pará e sudoeste do Maranhão. Por elas os lugares
se encontram, os trajetos se estreitam - ou se alargam - as histórias

405
ganham mobilidade. Não marquei em GPS os percursos que fiz com vans,
entre várias cidades e povoados do Pará e do Maranhão, para ter uma
noção da quilometragem percorrida, entretanto, mais importante que as
distâncias, são os enredos que se conhece nesses percursos, são as
histórias que se contam no meio do caminho.
Parece que as estradas sem fim, os horizontes longos dos
itinerários, aguçam a necessidade de dar sentido aos caminhos
percorridos, e não foram apenas uma, nem duas as vezes que uma viagem
de duas, três ou quatro horas, transformou-se em um verdadeiro
registro de impressionantes histórias de vida.
Uma dessas histórias foi contada por um senhor de 72 anos,
quando eu estava a caminho de Açailândia no Maranhão.
O senhor sentou ao meu lado, na altura da cidade, ainda
paraense, de Dom Eliseu, e logo balançou a cabeça em sinal de
positivo. Eu balancei também, mas estava com fones no ouvido, em
ritual que construí nas viagens, de escolher uma música a definir cada
caminho percorrido. Percebi que ele ficou me olhando querendo
conversar. Foi o tempo de escutar duas músicas para que eu tirasse o
fone e uma conversa fluísse como se nos conhecêssemos há tempos.
Eu puxei a prosa perguntando se o ponto final dele seria mesmo
Imperatriz (embora meu destino final fosse Açailândia, a van que
estávamos iria apenas até Imperatriz). Ele logo respondeu que sim e
engatou a resposta em um conjunto de novos enunciados que tornariam
aquele caminho mais uma descoberta.
Ele é cearense, chegou ao Pará na década de 1980, como muitos,
vindos em busca do ouro de Serra Pelada. Ficou no garimpo por um ano e
logo saiu. Arranjou família, como assim o definiu, e trabalhou um
tempo de sapateiro em Imperatriz. Já na década de 1990 voltou ao
Ceará, depois que sua mulher faleceu, mas não demorou dois anos e
voltou para o Pará, onde viveu com um dos filhos. Quando trabalhou em
Imperatriz, trouxe as duas irmãs para morar com ele, mas, depois de ir
de volta ao Ceará, desencontrou-se com elas. Ficou sabendo da morte de
uma das irmãs ainda no nordeste, mas a outra desapareceu como, também,
assim afirma o senhor. Aquela viagem tinha, então, um motivo especial.
Depois de mais de 20 anos ele, por intermédio de um amigo, conseguira
localizar a irmã. Aquela era a sua viagem de retorno, de reencontro, e
ele precisavam compartilhar isso.
Quase no fim da conversa ele me pergunta: “mas e tu o que fazes
por aqui?” Respondi que era professor em Marabá e estava fazendo uma
pesquisa. “Pesquisa? De que?”, perguntou ele. Eu respondi que estava
percorrendo o corredor da Estrada de Ferro Carajás para entender os

406
conflitos de diversas comunidades com a mineradora Vale. Ele me olhou
firme e disse algo que merece destaque:
- Meu filho tentou trabalhar lá, nem deram bola. Serra Pelada
pelo menos tinha muita gente tentando, agora é só ela que quer tudo aí
né? Acho que não tem nada de bom, fala disso ai na tua pesquisa!
Entre entender a expectativa do senhor ao meu trabalho e uma
leitura de monopólio dos processos de extração mineral, os
funcionários da Van já recolhiam o dinheiro e o destino final já
estava a menos de três minutos. Nesse cenário, não perguntei mais
nada, apenas agradeci a conversa e desejei um bom reencontro ao
senhor, que me abraçou e logo levantou. Desceu antes de chegar à
rodoviária e essas linhas seriam escritas no próximo percurso.

Bruno Malheiro, entre Imperatriz e Açailândia, 18 de setembro de 2016.

TRILHOS DA GUERRA
Dizem por aí que existe uma noite de longínquo paradeiro

Que é feita de medo e sorriso contido

Contam-na como um caminho em desespero

Que torna segredo um crime sem castigo

Ela sempre se lança às montanhas

Serpenteando por entre horizontes que não deixa emergir

Leva milhões de anos em uma semana

Fazendo de sua razão a única via a seguir

Mesmo sombreando as paragens por onde passa

É como amanhecer que ela é promovida

Muitos já descobriram sua trapaça

De prometer o Sol para anoitecer a vida

Carregando anos e sonhos em seu curso

Ela chega ao mar como quem vai embora

Mas nem bem completa seu percurso

407
Retorna sedenta apagando os primeiros brilhos da aurora

Para o quilombo essa noite que nunca termina é, na verdade, uma guerra

Para a aldeia um processo de anoitecimento

Camponeses já até perderam a terra

O que, aos olhos cínicos do Estado, soa como desenvolvimento

Mas a noite encarna-se em um grande corredor

E, embebida de ferro, deixa-se ver como vagões

Fica nítido um tempo-espaço de horror

Que apressa o passo e atravessa multidões

Mas há um canto que não cessa

Vem das entranhas de quem ainda teima em amanhecer os dias

Sai bem de onde o trem atravessa

Com refrão forte de congregar rebeldias

O paradeiro da noite, então, é interrompido por versos

Que, como canção, lembram o canto do japiim

Gritos de alerta, sons de protestos

Desfazem o silêncio e ecoam assim:

“Trilhos da guerra

Não permitiremos mais

Que nossa Aquarela

Vire um quintal sem paz

Filhos da Terra: lutarás!”

Bruno Malheiro, Niterói, 07 de Janeiro de 2019.

408
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nem tudo o que escrevo resulta numa


realização, resulta mais numa tentativa. O
que também é um prazer. Pois nem tudo eu
quero pegar. Às vezes, quero apenas tocar.
Depois o que toco às vezes floresce e os
outros podem pegar com as duas mãos...

Clarice Lispector

As palavras finais de um trabalho sempre estão entre dois extremos: a angústia


de se chegar logo ao ponto final e a luta incessante para que o esforço condensado em
palavras, não possua ponto final, mas se desgrude das páginas e faça algum sentido,
como instrumento de compreensão, para intelectuais acadêmicos e/ou dos movimentos e
organizações sociais, ou mesmo como registro ou reflexão para a região de onde surgiu
a experiência encarnada em cada palavra escrita.
Por essas vias de compreensão pensamos essas palavras em dois momentos,
um em que faremos um exercício de síntese e o outro onde colocaremos, sem o
compromisso de adensamento, questões que este trabalho levanta e que podem ser
seguidas, refeitas, ampliadas, mas que irão, por longo tempo, povoar as intenções
analíticas do autor.
Esse trabalho é resultado de três posicionamentos epistemológicos e políticos
que precisam ser compreendidos para que tenhamos uma noção mais acabada do seu
conjunto: o primeiro foi a transformação do campo de experiência do autor em um
campo de problematização acadêmico, o que fez com que as escolhas teórico-
metodológicas tenham sido feitas, também, a partir das necessidades e lacunas
explicativas de uma experiência com uma região; o segundo foi a escolha de
reposicionar o ângulo de problematização dos grandes projetos minerais na Amazônia,
tomando as tensões territoriais como terreno epistemológico privilegiado de
problematização geográfica da realidade; e o terceiro foi a escolha política de dar voz e
visibilidade às experiências sociais que instituem outra ordem social e apontam para
outros horizontes de sentido, uma vez que não há mudanças sem ouvir os povos, sem
um giro territorial, sem um deslocamento de nossas referências espaço-temporais.
Por esses caminhos a tese fundamental desse trabalho é de que não podemos
pensar os grandes projetos de mineração na Amazônia sem entendê-los por suas
geografias de exceção e sem desconsiderar as múltiplas geografias em r-existência que

409
se afirmam em antagonismo a eles, ou seja, defendemos a ideia de que esses
megaempreendimentos são paradigmas do estado de exceção na Amazônia, uma vez
que o governo corporativo do território que realizam se dá numa esfera de
indeterminação política que transforma os espaços necessários à realização do
metabolismo social da mineração em territórios administráveis, e os povos e
comunidades que os habitam, em riscos a serem geridos e/ou eliminados. Por outro
lado, a crítica a essa geografia de exceção não se sustenta se não tomar a diversidade
territorial dos espaços afetados pela mineração como imperativo político e epistêmico a
demonstrar que os caminhos do minério, são, antes de tudo, caminhos indígenas,
quilombolas, pescadores, camponeses, enfim, são geografias em r-existência que se
afirmam denunciando silêncios históricos e expressando territorialidades.
Três foram os caminhos trilhados para a definição desta tese: pelo arquivo,
pelo diagrama e pelas heterotopias. Esses caminhos, a titulo de síntese, serão lidos como
três encontros: com uma arqueologia do território; com uma genealogia do território; e
com uma ontologia do território.
Pelo primeiro encontro, com uma arqueologia do território, analisamos as
condições de emergência das práticas discursivas que definem um modo hegemônico de
ler a Amazônia e, por conseqüência, encaminham práticas de governo corporativo do
território, marcadas por dispositivos de exceção. Nesse particular, abramos um
parêntese para dizer que concordamos com o diagnóstico de Stuarth Elden (2016) de
que a dimensão histórica do território é geralmente negligenciada na maioria das
análises territoriais, mas discordamos que essa dimensão histórica deva ser buscada nas
condições de emergência do conceito, pois que elas estão mais nas práticas que definem
um campo de problematização aos conceitos que na história do conceito em si.
Pela arqueologia do território chegamos a uma formação discursiva que tratou
a Amazônia como risco à soberania e vazio de sentido e, assim, homogeneizou a
diversidade regional em nome de uma verdade e uma razão de Estado. Essas figurações
da Amazônia, inscritas no quadrinômio segurança-território-população-riqueza é que
irão justificar, para essa região, a política como guerra e a exceção como regra, ou seja,
a pretensa necessidade de suspender qualquer ordem em nome da ordem, qualquer lei
em nome da lei. Esse modo de incluir pela exclusão, aliado ao tratamento especial que o
setor mineral historicamente recebeu em termos de regulamentações, forjaram um
arranjo de relações de exceção que tornou possível a emergência de uma tecnologia

410
política, os grandes projetos minerais, capaz de suspender a diversidade territorial
regional por uma geografia de exceção.
A síntese analítica desse primeiro percurso pode ser dada pelo conceito de
territorialização de exceção definido como processos em que a criação de mediações
espaciais, que proporcionem acesso a recursos e/ou domínio de espaços, passam por
dinâmicas de suspensão normativa, criando dispositivos, com claros recortes raciais e
étnicos, de gestão de populações, numa lógica de ação que estrutura/define/interdita o
campo de ação e a possibilidade de criação de mediações espaciais de outros grupos
sociais, os quais, definidos por um menor valor e utilidade, tornam-se politicamente
matáveis e territorialmente invisíveis e dispensáveis.
Pelo segundo percurso, realizado por uma genealogia do território, chegamos
às práticas de governo corporativo, tendo a economia política e a ecologia política como
pontos de diálogo para demonstrar que são por modos particulares de acumulação que
se definem estratégias corporativas de territorialização.
Para melhor compreender essas estratégias e situar a espacialidade da
atividade econômica em evidência, a mineração, percorremos pela ecologia política do
território para situar os regimes geográficos corporativos em uma lógica de apropriação
da natureza e de troca desigual de matéria e energia, compreendendo, pela noção de
metabolismo social, os diversos momentos metabólicos necessários para a realização
dos processos de acumulação pela via da mineração. Por esses caminhos encontrados,
entre economia política e ecologia política do território, compreendemos esses
dispositivos neocoloniais do geometabolismo do capital (MACHADO ARÁOZ, 2016),
pelo modo particular de transformação do espaço em território para as estratégias
corporativas, o que põe em relevo um transbordamento da necessidade de gestão
corporativa a todos os espaços necessários para a realização dos metabolismos da
mineração, o que expõe os processos de desmobilização, resignificação e antecipação à
crítica, os quais territorialmente se traduzem em um regime de contenção territorial e
desterritorialização.
Aliás, a ideia de regime de contenção territorial e desterritorialização foi
construída como perspectiva de síntese desse percurso, referindo-se, por sua vez, aos
meios e técnicas de exercício do poder, constituídas por relações complexas entre
corporações privadas, o Estado e outros agentes do mercado financeiro, voltadas para a
garantia do uso do território como recurso e para o controle dos fluxos de realização das
atividades econômicas, notadamente no âmbito de exploração de produtos primários,

411
através da expropriação de bens coletivos e, conseqüente, da desestruturação das
mediações espaciais que garantem a reprodução de outros grupos sociais no território.
Envolvem, portanto, ações de encurtar, barrar, canalizar e remover caminhos, itinerários
e mobilidades, mas, também, de expulsar e desapropriar, ou ainda, fragilizar, minar e
desmobilizar as condições objetivas de reprodução social, o que provoca a suspensão de
direitos fundamentais, a impossibilidade de realização de territorialidades outras, para
geração de riqueza privada.
O terceiro encontro, pela ontologia do território, ou melhor, pela ontologia
política do território, na verdade foi um encontro com a expressividade do território-
floresta de povos indígenas, da territorialização dos sons dos Awá-Guajá, dos territórios
do cuidado quilombola, dos territórios de uso comum das quebradeiras de coco babaçu,
da territorialidade entre a praia e o mar dos pescadores do Boqueirão, das solidariedades
territoriais camponesas... Esse terceiro caminho nos levou a escutar o território e
expressar a diversidade de territorialidades a marcar diferenças que, por sua vez,
redefinem toda uma gramática de leitura regional centrada, muitas vezes, unicamente
nos processos de homogeneização do espaço. Essas expressões, portanto, ampliam os
lugares de enunciação desse trabalho, mas também dão heterogeneidade e
expressividade diferencial ao ato de geo-grafar, uma vez que as grafias do mundo
mobilizam distintos modos de sentir e pensar o mundo, por isso, tornam-se (geo)grafias,
quiçá geo(s)grafias.
Entretanto, essas territorialidades situam-se num quadro contextual de uma
geografia de exceção, em que povos, comunidade e movimentos sociais tornam-se
variáveis administráveis num tabuleiro em que as peças se movimentam para violá-los,
criminalizá-los, ameaçá-los... É, portanto, pela necessidade de continuar a existir que
essas experiências de alteridade resistem - por isso r-existem - objetivando-se em
distintas unidades de mobilização, em ações coletivas de ocupação ou interrupção dos
sistemas logísticos e em políticas de escala que alargam a ressonância e visibilidade das
lutas, mas também criam outras arenas políticas.
Por esses três percursos chegamos a múltiplas geografias de exceção: dos
processos de territorialização de exceção, como condição de emergência dos grandes
projetos minerais na Amazônia, aos modos de funcionamento espacial de uma
racionalidade empresarial, por meio de regimes de contenção e desterritorialização.
Entretanto, encontramo-nos, também, com geografias em r-existência, com vidas
sitiadas pela espionagem, pela criminalização e pela violência, que, mesmo habitando a

412
exceção, apontam-nos outros horizontes de sentido ao marcarem sua diferença diante da
indistinção, ao tornarem possível a existência diante da indiferença.
Desses pontos de síntese, decorrem linhas ainda não escritas que apontam
possíveis prolongamentos que este trabalho levanta.
Uma primeira linha de continuidade é a discussão da questão agrária a partir de
processos de territorialização ligados a indústria extrativa mineral.
A mineração definitivamente entra em cena no debate da questão agrária. A
terra, diferente de muitas interpretações, é elemento fundante para a realização dos
vários momentos metabólicos da mineração, o que torna o acesso às condições objetivas
para a implantação de projetos mineradores, seja em termos de acesso a recursos, seja
ainda para viabilização logística, fator fundamental de estímulo à compra de terras que,
por sua vez, pelos diversos instrumentos legais que tornam a atividade mineral
prioridade diante de qualquer outra forma de uso da terra, coloca as áreas apropriadas
pelas grandes empresas de mineração como espaços de um interesse público onde se
realiza a riqueza privada.
Por esses termos e entendendo a mineração como um metabolismo social que
não se realiza só pela extração, mas necessita de processos de transformação, excreção,
descarte, circulação e de uma demanda de consumo, temos que a transformação dos
espaços necessários à realização dos momentos metabólicos da mineração, em
territórios administráveis pelas empresas, como um vetor fundamental para a aceleração
dos conflitos agrários. Dessa forma, é pelo antagonismo à mineração que uma
diversidade de sujeitos políticos, a partir de distintas unidades de mobilização,
complexificam a gramática das lutas por terra e território.
A questão agrária, nesses termos, não só se complexifica por um arranjo de
relações ligado aos interesses das mineradoras, o qual amplia a dinâmica de compra de
terra para viabilização de processos de territorialização pela via da mineração, violando
outras territorialidades, por regimes de contenção territorial e desterritorialização. A
questão agrária também amplia a sua complexidade, quando consideradas as tensões
territoriais criadas pela mineração, pois é por meio delas que vários processos de r-
existência se afirmam e que múltiplas territorialidades emergem e diversificam a
gramática das lutas sociais no campo e na cidade.
Uma segunda linha de continuidade que esse trabalho aponta é para a
compreensão dos processos de territorialização pela via de grandes corporações.

413
Fizemos aqui um exercício analítico de diálogo com a sociologia pragmática de
Luc Boltanski para traduzirmos os modos de dominação gestionária e desarmamento
das críticas sociais inscritos na racionalidade corporativa, como processos de
transformação de espaço em território para as empresas, ou seja, como um modo de agir
no espaço evitando ações espaciais que atrapalhem a dinâmica econômica instalada,
ações estas lidas como riscos corporativos, o que torna povos afetados por tais
dinâmicas em populações a serem geridas e seus territórios em áreas administráveis.
Esse modo de leitura não exclui várias outras formas de interpretação da
dinâmica espacial de grandes corporações feitas a partir de uma escala mais abrangente,
envolvendo a capacidade de empresas influenciarem decisões de governos e, por sua
fluidez no espaço e envergadura financeira, impor formas de uso do território.
Entretanto, acreditamos que a leitura dessa racionalidade territorial corporativa, ou
ainda, do governo corporativo do território, encaminha a compreensão das estratégias
concretas de uma empresa para garantir seus arranjos espaço-temporais e a viabilização
de sua produção, no sentido de construir um mapa das relações de força que tornam
viável dada atividade econômica, como uma prática espacial, ou como um processo de
territorialização.
Nesse sentido, mais que definir territórios corporativos e suas características e
expressões em um contexto globalizado, optamos por entender processos de
territorialização corporativos ou a dinâmica de governo corporativo do território, a partir
da indústria extrativa mineral, que, por sua vez, podem ser pensados pela maneira em
que o espaço se torna elemento estratégico para a realização de uma atividade
econômica, seja em termos de definição da dinâmica de localizações produtivas,
segmentação e integração dos negócios e trânsito de escalas, seja ainda pela ampliação
dos sentidos dos riscos corporativos através da inclusão nestes de populações afetadas
pelos empreendimentos, o que materializa uma governamentalidade corporativa do
território.
Uma terceira linha de continuidade que este trabalho demonstra é sua opção
decolonial à geografia.
Boaventura de Souza Santos (2006) identifica a razão ocidental, que produziu
um pensamento abissal, como uma razão indolente, preguiçosa. Ela é assim
representada pelo fato de ignorar múltiplas experiências sociais que são, simplesmente,
deixadas de lado, não figurando nas expressões do que se convencionou chamar de
pensamento universal. As noções de uma razão indolente ou de um pensamento abissal

414
podem muito bem situar os modos hegemônicos de ler a geograficidade da sociedade
como geografias indolentes ou geografias abissais, as quais exigem um exercício de
descolonização.
Cruz (2017) encontra sete desafios para um fazer geográfico decolonial que,
em linhas gerais, podem ser descritos pela necessidade: de enraizamento das leituras às
particularidades e singularidades históricas dos espaços a partir dos quais surgem os
problemas de pesquisa; de resignificação das categorias geográficas a partir das
premissas do pensamento decolonial; de ampliação do debate epistêmico e abstrato por
pesquisas a partir de práticas e experiências concretas; de construção de uma leitura
multiescalar para que não fiquemos presos às sugestões de leituras macroescalares; de
reinvenção das formas de fazer pesquisa a partir do diálogo com outras epistemes; de
construção de uma estética decolonial pensando na potencia de circulação das
linguagens; e de reaprendizado dos habitus coloniais universitários para reinventar
práticas pedagógicas e currículos (CRUZ, 2017).
Este trabalho, se não encampa todos esses desafios, até por essa tarefa ser
efetivamente coletiva, arriscou-se por alguns deles.
Achamos necessário ressaltar a importância que demos nesse trabalho para o
que significa dar um enraizamento histórico às tensões territoriais que um grande
projeto de mineração cria. Não fomos buscar uma explicação em fatos históricos, senão
em invenções ou versões de história que tornaram possível pensar um complexo de
violência e devastação, como assim o define Porto-Gonçalves (2008) lendo as
especificidades de expansão capitalista no sudeste do Pará, como regra de uma dinâmica
territorial. Nesses termos, pensar o que se transformou em história e o que não se
transformou em história, em termos de Amazônia, perante a formação do Estado
português e/ou brasileiro, terá grande potência explicativa para entender a dinâmica de
colonialismo interno e a maneira em que o estado de exceção torna-se regra nessa
região.
Por isso, desnaturalizar invenções, desmontar os argumentos que reservaram à
Amazônia a imagem de risco à soberania e vazio de gente, conhecimento e riqueza,
tratando tais argumentos como práticas discursivas a encaminhar dinâmicas de
territorialização de exceção, é, em si, um exercício de descolonização do olhar
geográfico. Ou ainda, fazer falar ruínas onde até então só se representavam grandes
construções também é um excercício descolonial, porque desmonta a força epistêmico-
política que têm os grandes projetos nas interpretações da Amazônia, trazendo-os para o

415
campo das letras minúsculas e representando-os como projetos mostruosos para
valorizar aquilo que a sua racionalidade não enxerga. Enfim, ler a história e a geografia
a contrapelo, interpelar nossos olhares históricos e geográficos, quebrar a ligação
umbilical das análises entre mineração e desenvolvimento, ver colonialismo interno
onde muitos observam a construção da nação, ver estado de exceção onde muitos veem
apenas a expansão do capital e sua malha técnica perece-nos um esforço de uma
geografia decolonial.
O esforço de pensar o território a partir de práticas sociais, também tentou ser
um exercício descolonial, primeiro, por ser uma tentativa de aproximação às
experiências sociais e não apenas às abstrações conceituais; segundo, por ser uma
tentativa de ressignificar uma categoria geográfica através da ampliação do lócus de
enunciação a partir do qual se constrói a reflexão; e, terceiro, por pensar o território
como categoria da prática social e de convergência de demandas políticas.
A discussão sobre o território no campo da geografia, historicamente
privilegiou uma genealogia conceitual a partir da qual se classificou abordagens e
escolas de pensamento emergindo daí uma força crítica e analítica para novas
proposições. Por essa linha de fazer teoria, o território é envolvido pela relação de dois
outros conceitos: espaço e poder, sendo que é a partir de distintos modos de integração
conceitual que se chega a múltiplas definições. Nesses termos, o relativo consenso em
relação ao espaço não é estendido ao poder que, em geografia, assume uma gramática
bastante diversa, podendo ser sintetizada pelos termos dominação, apropriação,
hegemonia, exercício, violência e autonomia, os quais, por sua vez, convidam para o
campo geográfico autores como Weber, Lefebvre, Gramsci, Foucault, Arendt e
Castoriadis. Desse casamento conceitual, várias são as derivações que assume o
conceito de território, tributárias do modo particular de relação entre espaço e poder e,
lógico, da inventividade dos autores e suas trajetórias de pesquisa.
Por outro lado, a discussão sobre território, assim como é central para a
Geografia, também o é ao campo da antropologia, que por tradição distinta privilegia
processos de teorização a partir de experiências de pesquisa específicas, sendo que as
definições sobre território, territorialização e territorialidade surgem a partir de um
envolvimento com dinâmicas e processos históricos, como um reconhecimento de uma
possibilidade relativa de generalidade de determinadas práticas e ações sociais.
São dois modos de teorização distintos, ambos com importância, mas
separados por um abismo epistemológico. Entretanto, o questionamento desse

416
distanciamento se efetiva menos pelo campo acadêmico e mais pelo campo das lutas
sociais que promovem o que Porto-Gonçalves (2015) denomina de giro territorial.
Nesses termos, após autores na década de 1960 trazerem o espaço para a teoria social
crítica, notadamente Michel Foucault e Henri Lefebvre, fazendo um giro espacial, em
fins do século XX e início do XXI, vários são os movimentos sociais e entidades
políticas que introduzem um novo léxico teórico e político ao território (PORTO-
GONÇALVES, 2015), tornando-o um condensador de direitos, como nos fala Cruz
(2011).
Esse trabalho segue o caminho aberto pelas lutas sociais e pelo giro territorial.
Se não há vida sem conhecimento, não há espaço e território sem saber, pois que os
atores sociais também são autores de suas reflexões e de suas geografias. Isso faz do
encontro com sujeitos em luta, com as territorialidades em r-existência, uma potência
histórica, epistemológica e ontológica de descolonização do pensamento geográfico.
Por isso, decidimos construir o arquivo dos grandes projetos minerais na
Amazônia, para recolocar no mapa seus silêncios históricos, por isso, também,
interrogamos os seus diagramas, para cartografar a violência dos arranjos de sua
racionalidade, e por isso, enfim, encontramo-nos com as heterotopias, para pluralizar os
repertórios geográficos e políticos e ampliar nossos horizontes de sentido.

417
REFERÊNCIAS
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth; CASTRO, Edna. Negros do Trombetas:
guardiões de matas e rios. 2ªEd. Belém: UFPA-NAEA, 1998.
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Estratégias dos quilombolas de Jambuaçu e
projetos da Vale S. A. no Moju, Pará. In: ALMEIDA, A. W. B. (org). Territórios
Quilombolas e Conflito. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social/ UEA Edições, 2010.
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth; MARTINS, Rosane de Oliveira. A arte da
resistência de comunidades tradicionais em Barcarena (Pará) face à ordem do progresso
industrial. In: 38º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu-MG: 27 a 31 de outubro de
2014.
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. MARTINS, Cynthia Carvalho (orgs). A Guerra
do Coco: Boletim Informativo. PNCSA, 2014.
ACSELRAD, Henri. Discursos da sustentabilidade urbana. In: Revista Brasileira de
Estudos Urbanos e regionais. Nº 1, Maio de 1999, pp. 79-90.
______. As práticas espaciais e o campo dos Conflitos Ambientais. In: ACSELRAD, H.
Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004. p. 13-35.
______. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça
ambiental. Revista de estudos avançados 24 (68), 2010.
______. Desigualdade ambiental, Economia e Política. In: Revista Astrolábio Nueva
Época. Nº 11, 2013, pp. 105-123.
______. Da desfetichização do ambiente à sociologia da desmobilização – trajetórias de
pesquisa. In: FERNANDES, Ana Cristina; LACERDA, Norma; PONTUAL, Virgínia
(Orgs). Desenvolvimento, Planejamento e governança: expressões para o debate
contemporâneo. Rio de Janeiro: Letra Capital/ANPUR, 2015. P 25-48
ACSELRAD, Henri; GIFFONE, Raquel. A gestão do ―risco social‖ e a neutralização da
crítica. In: Revista Praia Vermelha. Rio de Janeiro. V. 19, N° 2, Jul-Dez 2009, pp. 51-
64.
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa.
Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
______. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002.
______. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
______. O amigo & o que é um dispositivo? Chapecó: Argos, 2014.

418
AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTE TERRESTRE. VALE – Estrada de Ferro
Carajás. Brasília: ANTT, 2017. Disponível em:
http://www.antt.gov.br/ferrovias/index.html.
AGUILAR, R. G. Conocerlas luchas y desde las luchas. Reflexiones sobre eldespliegue
polimorfo del antagonismo: entramadoscomunitarios y horizontes políticos. In: Acta
Sociológica, núm. 62, septiembre-diciembre, 2013, pp. 11 – 30. Disponível em:
http://www.revistas.unam.mx/index.php/ras/article/download/44097/39886.
AGNELI, Roger. Uma nova lógica de investimento social, 2010. Disponível em
<https://gife.org.br/uma-nova-logica-de-investimento-social/>. Acessado em
27/11/2016.
ALBERT, Bruce. Terras indígenas, política ambiental e geopolítica militar no
desenvolvimento da Amazônia: a propósito do caso Yanomami. In: LÉNA, Philippe &
Adélia E. de OLIVEIRA (orgs.) Amazônia: A Fronteira Agrícola 20 Anos Depois.
Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi (Coleção Eduardo Galvão), 1991, p.37-58.
_____. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da
natureza. In: Pacificando o Branco. Cosmologia e Política do Contato no Norte
Amazônico (B. Albert e A.R. Ramos, orgs.), 1995.
ALIER, Joan Martínez. O ecologismo dos pobres. São Paulo, Editora Contexto, 2017.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. GETAT – Segurança nacional e o revigoramento
do poder regional. Reforma Agrária (Boletim da Abra), Campinas, v. 11, n. 2, mar.-abr.
1981. p. 24-41.
______. Carajás: Guerra dos Mapas. Belém: Editora Falangola, 1994.
______. Terra de quilombo, terras indígenas, ―babaçuais livres‖, ―castanhais do povo‖,
faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM,
2006.
______. Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8/Fundação
Universidade do Amazonas, 2008.
______. Agroestratégia e desterritorialização: direitos territoriais e étnicos na mira dos
estrategistas dos agronegócios. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (et. alii.)
Capitalismo globalizado e recursos territoriais. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010, p.101-
144.
______.. Amazônia: a dimensão política dos ―conhecimentos tradicionais‖ In: ACSELRAD,
Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich
Boll, 2004.

419
ALMEIDA, M. C. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
ALMEIDA, Monica Piccolo. Reformas neoliberais no Brasil: A Privatização nos
Governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. Tese (Doutorado em Historia). Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói-RJ, 2010.
ALMEIDA, Rogério Henriquez. Territorialização camponesa no sudeste do Pará.
2006. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido) –
Universidade Federal do Pará, 2006.
ALBUQUERQUE JR., D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. 3ª ed. Recife:
FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2006.
ALONSO, Angela. Repertório, segundo Charles Tilly: história de um conceito. In:
Sociologia & Antropologia, Vol 2, nº3. Rio de Janeiro, junho de 2012.
ALTVATER, Elmar. Ilhas de Sintropia e Exportação de Entropia: custos globais do
fordismo fossilístico. Caderno 11 do NAEA. Belém: UFPa, 1993, p. 3-54.
______. O Preço da Riqueza. Pilhagem ambiental e nova (des)ordem mundial. São
Paulo: Ed. UNESP., 1995.
AMPLO.. Estudo de Impacto Ambiental. Projeto Ferro Serra Norte – Mina N4 e N5,
estudo global das ampliações.. Belo Horizonte: AMPLO/VALE, sem ano
______. Duplicação da Estrada de Ferro Carajás / Estudo Ambiental e Plano Básico
Ambiental (EA/PBA). Belo Horizonte: AMPLO/VALE, 2011.
______.. Estudo de Impacto Ambiental Projeto Serra Leste 10Mtpa. Belo Horizonte:
AMPLA/VALE, 2016.
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a
difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
AQUINO, Filipe. A construção do imperativo verde: um estudo sobre publicidade e
sustentabilidade. Curitiba/PR: Editora Appris, 2015.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e
totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso
tempo. UNESP, Rio de Janeiro, 1995.
ARTICULAÇÃO INTERNACIONAL DOS ATINGIDOS PELA VALE (AIAV).
Relatório de Insustentabilidade da Vale 2015. Disponível em:
https://atingidospelavale.files.wordpress.com/2015/04/relatirio_pdf.pdf.
A CRÍTICA 23/08/1987

420
BAINES, Stephen G. A Política Indigenista Governamental e os Waimiri-Atroari:
Administrações Indigenistas, Mineração de Estanho e a Construção da
''Autodeterminação Indígena'' Dirigida· In: Revista de Antropologia, SÃO PAULO,
USP, 1993, V. 36.
______. Territórios indígenas ressignificados. In: 29ª Reunião Brasileira de
Antropologia. Natal/RN, 2014.
BARBOSA, Alfredo Ruy. Breve panorama da legislação minerária. Revista de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 1994.
BARTRA, A. Campesindios. Aproximaciones a los campesinos de um continente
colonizado. Revista Memória, 248, 2010.
BBC. Novo código da mineração é escrito em computador de advogado de mineradoras.
Por Ricardo Senra. Disponível em
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151202_escritorio_mineradoras_codi
go_mineracao_rs
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2003.
BECK, Ulrich. ―A Reinvenção da Política: Rumo a uma Teoria da Modernização
Reflexiva‖, In: BECK, U. GIDDENS, A. LASH, S. Modernização reflexiva: política,
tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo, Editora da Unesp, 1997, pp. 11-
71.
______. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2São Paulo: Editora 34,
2011.
BENJAMIN, Walter. Rua de Mão única. Obras escolhidas Volume 2. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987.
______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 6ª Ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1993.
______. Origem do drama barroco alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2013.
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
______. Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
______. Meditações Pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2001.
______. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São
Paulo: Editora UNESP, 2004.
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.

421
BOLTANSKI, L. Sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação
gestionária. In: Sociologia & Antropologia. Rio de Janeiro, v.03.06: 441–463,
novembro, 2013.
BONNEMAISON, Jöel. Voyage autour du territoire. L’espace géographique, Paris, v.
10, n. 4, p. 249-262, 1981.
BOUMENY, Helena Maria Bousquet. Três decretos e um ministério: a propósito da
educação no Estado Novo. In:___. Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, p. 137-166, 1999.
BRASIL. Portaria nº 128 de 30 de março de 2017.
______. Decreto-Lei de 28 de fevereiro de 1967.
______. Decreto n° 1.523, de 3 de fevereiro de 1977
______. Decreto-Lei nº 1.813 de 24 de novembro de 1980.
______. Decreto-Lei 85.387 de 24 de novembro de 1980b.
______. Decreto-Lei nº 1.985, de 29 de janeiro de 1940
______. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
______. Projeto de Lei Complementar nº260 de 1990.
______. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. –
Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014.
BRADESCO. Minério de Ferro. Apresentação do Departamento de Pesquisas e Estudos
Econômicos - DEPEC, 2017.
BRITO, D. C. A Modernização da Superfície: Estado e Desenvolvimento na Amazônia.
Belém, UFPA/NAEA/PDTU, 266 p., 2001.
BRUM. Eliane. Belo Monte: a anatomia de um etnocídio. Coluna El País. 01/12/2014.
BRONZ, D. (2010). Trabalho apresentado na 27a. Reunião Brasileira de Antropologia,
01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.
BUNKER, S. Underdeveloping the Amazon: extraction, unequal Exchange, and the
failure of the modern state. United States os América: University of Illinois, 1985.
CARNEIRO, M. ―Estado e empreendimentos guseiros no Programa Grande Carajás‖.
In: CASTRO, Edna e MARIN, Rosa Acevedo (Orgs.). Amazônias em tempo de
transição. Belém: UFPA/NAEA/ARNI/CELA, 1989. p. 151-192.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982.
CASTRO-GÓMES, Santiago. ―Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da
invenção do outro‖. In: LANDER, Edgardo. (Org.). A colonialidade do saber:

422
eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005, p. 169-186.
______. Michel Foucault y lacolonialidaddel poder. In: Tabula Rasa. Bogotá-Colombia,
No.6: 153-172, enero-junio, 2007.
CASTRO, E.; MARÍN, R. E.. Estado e poder local: dinâmica das transformações na
Amazônia brasileira. Pará Desenvolvimento: a face dos Grandes Projetos. Belém:
IDESP, 1986/1987, p.9-18.
CASTRO, Claudio. Ocupação da EFC, 2014. Disponível em:
https://www.paulinas.org.br/familia-crista/pt-br/?system=news&id=7743&action=read
Acessado em 29/11/2017.
CETEM. Verbetes Cetem. Região Norte. 2014. Disponível em:
http://verbetes.cetem.gov.br/verbetes/Texto.aspx?p=7&s=5
CHAUÍ, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo, Editora
Perseu Abramo, 2000.
CHACHÉ, Cristiane Borborema. O licenciamento ambiental ―fragmentado‖: estudo de
caso do COMPERJ. Revista Ensaios, Vol.7, julho-dezembro de 2014.
COELHO, Elizabeth Maria Beserra. A política indigenista no Maranhão Provincial. São
Luís: Sioge, 1990
COELHO, Maria Célia Nunes et all. Impactos ambientais da Estrada de Ferro Carajás
no sudeste do Pará. In: TEIXEIRA, João Batista Guimarães (org.). Carajás: geologia e
ocupação humana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2006.
COELHO, Maria Célia Nunes; COTA, Raymundo Garcia. (Orgs.). Dez anos de Estrada
de Ferro Carajás. Belém: UFPA/NAEA, 1997.
COELHO, M., LOPES, A., SILVA, A., SILVA, F., FONSECA, H., MATOS, I. &
SOUZA, M. Territórios, Cidades e Entorno no Espaço da Mineração em Carajás / Pará
– Amazônia Oriental. In: TRINDADE Jr. S. C. et al (Org.). Cidade e Empresa na
Amazônia: Gestão do território e desenvolvimento local. Belém: Paka-Tatu, 2002. p.
137-169.
COELHO, Maria Célia Nunes; MONTEIRO, Maurílio; LOPES, Auzira; BACURI,
Sérgio. Regiões do entorno dos projetos de extração e transformação mineral na
Amazônia Oriental. In: Novos Cadernos NAEA. v. 8, n. 2, p. 73-107, dez. 2005.
COELHO, Tádzio Peters. Projeto Grande Carajás: trinta anos de desenvolvimento
frustrado. In: ZONTA, M. TROCATE, C. A questão mineral Vol 1. Marabá/PA: Editora
Iguana, 2015.

423
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO AMAZONAS. O genocídio do povo
Waimiri-Atroari. 1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade. Manaus: CEV, 2012.
CONCEIÇÃO, M. da. Essa terra é nossa. Entrevista e edição de Ana Maria Galano.
Petrópolis: Vozes, 1980. [Depoimento sobre a vida e as lutas de camponeses no Estado
do Maranhão].
CORRÊA, Roberto Lobato. Corporação e espaço: uma nota. Revista Brasileira de
Geografia 53 (1), 1991, pp. 137-145.
COSTA, Maria Alice Chaves Nunes; BORIN, Eliane Cavalcante Peixoto. Investimento
Social Privado: o caso da Companhia Vale do Rio Doce. Simpósio de Excelência em
gestão Tecnológica. Rio de Janeiro, 2006.
COTA, Raimundo Garcia. Carajás: a invasão desarmada. Petrópolis/RJ: Vozes, 1984.
COUTO E SILVA, Golbery. Planejamento Estratégico. Campinas: UNICAMP/IFCH,
1955. SILVA,
______. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1967.
CRUZ, Valter do Carmo. Lutas sociais, reconfigurações identitárias e estrátegias de
reapropriação social do territó-rio na Amazônia. 2011. Programa de Pós- Graduação
em Geografia da UFF. Niterói: POSGEO/UFF, 2011.
______. Geografia e pensamento descolonial: notas sobre um diálogo necessário para a
renovação do pensamento crítico. In: CRUZ, Valter do Carmo; OLIVEIRA, Denilson
Araújo. Geografia e Giro Descolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação
do pensamento crítico. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017.
CRUZ, Angelina Martins. MALHEIRO, Bruno Cezar. Desterritorialização e impactos
ambientais do projeto Sossego: uma análise a partir da vila Bom Jesus em Canaã dos
Carajás. In: NEUMANN, Pedro; BERGAMASCO, Sonia Maria Pessoa Pereira.
Desenvolvimento Territorial/ PRONERA. Santa Maria/RS: Editora e Gráfica Caxias,
2016.
CUNHA, Manuela Carneiro. C. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São
Paulo: Claro Enigma, 2012.
DAL POL. No País dos Cinta Larga: uma etnografia do ritural. Dissertação de
Mestrado. Programa em Pós-Graduação em Antropologia da USP, 1991.
DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
______. O que é filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1993.

424
DIAS DOS SANTOS, B. D Arukwahaw: uma etnografia do casamento Suruí à luz da
etnologia ritual. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de
Ciências da Arte, Programa de Pós-graduação em Artes, Belém, 2014.
DIAGONAL. Plano de desenvolvimento do assentamento – PDA Projeto de
assentamento União Santana. Canaã dos Carajás, 2012.
DIAGONAL. Gestão Social integrada, 2018. Disponível em
<http://www.diagonal.net/o-que-fazemos/gestao-social-integrada>. Acessado em
02/03/2017.
DIÁRIO DO AMAZONAS 11/07/1987
DNPM, Mineralnegócios, Guia do Investidor no Brasil. Brasília: DNPM, 2006.
DONADONE, J. C.; SZNELWAR, L. I. Dinâmica organizacional, crescimento das
consultorias e mudanças nos conteúdos gerenciais nos anos 90. In: Revista
Produção. vol.14 nº2. São Paulo, 2004.
DUSSEL, E. El método analectico y lafilosofíalatinoamericana enrique Dussel. In:
ARDILES, O. et. alii. Hacia una filosofía de laliberación latino-americana. Buenos
Aires: Editorial BONUM, 1973.
______.Método para uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986.
______. A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse. São Paulo:
Expressão Popular, 2012.
______. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: In: LANDER, E. (Org.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
DUTRA, M. A natureza da TV: uma leitura dos discursos da mídia sobre a Amazônia,
biodiversidade, povos da floresta... Belém: NAEA, 2003.
EY. ERNST & YOUNG. Relatório de riscos de negócios mineração e metais 2013 a
2014. EY, 2013. Disponível em: http://www.ey.com.br/Publication/vwLUAssets/EY-
Business_risks_in_mining_and_metals_-_Portuguese.pdf
EL PAIS, 02/03/2017
ELDEN, Stuart. Terra, Terreno e Território. In: Revista Geografares. Nº 21, Janeiro-
junho, 2016.
ENCANTADEIRAS. Canto e encanto nos babaçuais: músicas sob domínio popular
selecionadas por ―As Encantadeiras‖. Belém: UFPA, 2014.

425
ESCOBAR, Arturo. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-
desenvolvimento? In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
______. ―Ecología Política de la globalidade y la diferencia‖. In: ALIMONDA, H.La
Naturaleza colonizada: ecología política y minería em América Latina. Buenos Aires:
CLACSO, 2011, p. 61-92.
______. Cultura y diferencia: laontología política del campo de Cultura y Desarrollo.
In: Wale’keru. Revista de investigaciónen Cultura y Desarrollon. 2, 2012. p. 8-29.
Disponível em: http://edu-library.com/es/walekeru?class=text_blanc
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. Rio de Janeiro: ESG, 1983.
ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2017.
FANON, F..Os Condenados da Terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
FARO, L. C; POUSA, C. FERNANDEZ, C. Conversas com Eliezer. Rio de Janeiro:
INSIGHT ENGENHARIA DE COMUNICAÇÃO, 2005.
FAUSTINO, Cristiane; FURTADO, Fabrina. Mineração e violações de direitos: o
Projeto de Ferro Carajás S11D, da Vale S.A. Açailândia: DHESCA/Brasil, 1. ed, 2013.
FAUSTO, Carlos. Inimigos Fieis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São
Paulo: EDUSP, 2014.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro.
3ªEd. Rio de Janeiro: Globo Editora, 2001.
FERNANDES, Rosani de Fátima; CARDOSO, Ronny da Silva; SÁ, João Daniel. Os
usos e a proteção da floresta pelo povo Kyikatêjê: soberania e autodeterminação. In:
26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, 01 e 04 de junho, Porto Seguro/BA, 2008.
FERRAZ, I.; SURUI, W.; CALHEIROS, O.; SURUÍ, T. O tempo da guerra – os
Aikewara e a guerrilha do Araguaia. 1o Relatório da Comissão de Verdade Suruí,
fevereiro 2014.
FERRAZ, Iara. Os Parkatêjê das matas do Tocantins: a epopeia de um líder Timbira.
1984. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1984.
______.. Relatório de viagem realizada entre 03 e 15 de fevereiro de 1985. Belém:
CVRD, 1985.
FIGUEIREDO, João. Presidente do Brasil, Discursos. V.4. Tomo II. Brasília:
Presidência da República, 1982.

426
FOLHA DE SÃO PAULO. Nacionalismo de recursos naturais é a 'assombração' do
setor 11/04/2012
FOUCAULT, M. [1966] As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
______. [1969] Arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2007.
______. [1974] A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.
______. [1975] Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis : Vozes,
1977.
______. [1976] A história da sexualidade 1: a vontade de saber. 10ª ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1988.
______. [1975-1976] Em defesa da Sociedade: Curso no Collège de France do ano
75/76. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
______. [1977] Outros espaços. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos III. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 411-422.
______. [1978] Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______. [1979] Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______. [1970-1982] Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
______. Ditos e Escritos II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
______. O Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______.. O sujeito e o poder. In P. RABINOW e H. DREYFUS, Michel Foucault: uma
trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
GALLOIS, Dominique Tilkim. O discurso Waiãpi sobre o outro: um profetismo
moderno. In: Revista de Antropologia, vol.30/31/32, São Paulo, 1989.
______. Terra Indígena Wajãpi: da demarcação às experiências de gestão territorial.
São Paulo: Iepé, 2011.
GIFE. Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, Roger Agnelli, 2010. Disponível em:
<https://gife.org.br/>
GIFFONE, Raquel. Dos riscos da política às políticas do risco: um estudo sobre os
riscos sociais corporativos e suas formas de gestão. Tese de Doutorado. Instituto de
Planejamento Urbano e Regional. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro:IPUR, 2015.
GONDIN, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.

427
GOMES, Mércio Pereira. O povo Guajá e as condições reais para a sua sobrevivência.
In: RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil : 1987/88/89/90. São
Paulo: Cedi, 1991.
______. O índio na história: O povo Tenetehara em busca de liberdade. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002
GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Colonialismo interno (uma redefinição). In:
BORON, A. A.; AMADEO, J.; GONZÁLEZ, S. (orgs.). A teoria marxista hoje:
problemas e perspectivas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales-CLACSO, 2006.
______. As novas ciências e as humanidades: da academia à política. São Paulo:
Boitempo, 2006.
______. De la sociología del poder a la sociología de la explotación: pensar América
Latina en el siglo XXI. México, D. F.: Siglo XXI Editores; Buenos Aires : CLACSO,
2015.
GORDON, César. Economia Selvagem - Ritual e mercadoria entre os índios
XicrinMebêngôkre, Editora: ISA/Editora Unesp/NuTI, São Paulo, 2006.
GRAMSCI, Antonio. Os cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a
política. (vol.3). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GUDYNAS, E. Estado compensador y nuevos extractivismos. Nueva Sociedad, v.237,
p.128- 146. 2012a.
HAESBAERT, Rogério. Região, Diversidade Territorial e Globalização. In:
Geographia, Ano 1, Nº 1. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 1999, p.
15-39.
______. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: B. Brasil, 2004.
______. Viver no Limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de
insegurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
______. Contenção territorial: campos e novos muros. In: Boletín de Estudios
Geográficos Nº 102. Cuyo-Argentina: Universidad Nacional de Cuyo, 2014, p. 25-45.
HALL, Antony. L. Amazônia, desenvolvimento para quem? Desmatamento e conflito
social no Programa Grande Carajás. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
HARVEY, D. A condição Pós Moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
______. O Novo Imperialismo. São Paulo: edições Loyola, 2004.
______. Para entender O capital: Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
HÉBETTE, Jean (Org.). O cerco está se fechando. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.

428
______. Cruzando a fronteira: 30 anos de estudos do campesinato na Amazônia.
Belém: EDUFPA, v. I, II, II e IV, 2004.
IBRAM, Nacionalismo de Recursos Naturais é Assombração do Setor. Disponível em:
http://www.ibram.org.br/150/15001002.asp?ttCD_CHAVE=161944
IBASE. Carajás: o Brasil hipoteca seu futuro. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
______. Mapas das Minas. Rio de Janeiro: IBASE, 2015.
IBGE. Produção Agrícola Municipal. Canaã dos Carajás. 1997-2015.
______. Produção Agrícola Municipal. Maranhão. 2000-2017.
______. Dados População, Canaã dos Carajás. 2010
ICMBIO. Proposta de Criação do Parque Nacional dos Campos Ferruginosos de
Carajás. ICMBIO, S/D. Disponível em:
http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/Cartilha_baixa__.pdf
______. Plano de Manejo da Floresta Nacional de Carajás: Volume 1 Diagnóstico.
Brasília: ICMBIO, 2016.
INSTITUTO ETHOS DE EMPRESAS E RESPONSABILIDADE SOCIAL.
Responsabilidade social empresarial nos processos gerenciais e nas cadeias de valor.
São Paulo: Ethos, 2006.
JUSTIÇA NOS TRILHOS. Povos Indígenas explicam razões da ocupação da Estrada
de Ferro Carajás. 2012. http://justicanostrilhos.org/2012/10/06/povos-indigenas-
explicam-razoes-da-ocupacao-da-estrada-de-ferro-carajas/ Acessado em 12/04/2017.
______. Documentário Trilhos da Vida, 2016. Disponível em:
http://justicanostrilhos.org/2016/04/06/documentario-trilhos-da-vida-2/. Acessado em
18/09/2017.
______.Conheça a história da liderança quilombola Anacleta Pires. Disponível em:
http://justicanostrilhos.org/2016/06/28/conheca-a-historia-da-lideranca-quilombola-
anacleta-pires/. Acessado em 02/01/2017.
______. Famílias do interior do Pará são despejadas de terras pleiteadas pela Vale,
2016. Disponível em: http://justicanostrilhos.org/2016/02/19/familias-sao-despejadas-
de-terras-da-uniao-pleiteadas-pela-vale-no-interior-do-para/. Acessado em 02/02/2017.
KRÔHÔKRENHUM JÕPAIPAIRE, Toprãmre. Mẽikwỳtekjêri: Isto pertence ao meu
povo. Marabá, PA: GKNORONHA, 2011.
KYTLE, B, RUGGIE, J. ―Corporate social responsibility as risk management: a model
for multinacionals‖. Corporate social responsibility iniciative, Working paper n º 10.
Cambridge, MA: John F. Kennedy School of Government, Harvard University. 2005

429
KOWARICK, Marcos. Amazônia/Carajás: na trilha do saque. São Paulo: Editora Anita
Garibaldi, 1995.
LACLAU, Ernesto. Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. Revista do
CEDLA, Latin American Studies, n° 29, 1983.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma
política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.
LADEIRA, Maria Elisa; AZANHA, Gilberto. Apinayé. 2003. Disponível on line:
http://pib.socioambiental.org. Acesso em 09 de abril de 2017.
LARAIA, R.; DA MATTA, R. 1978. Índios e castanheiros. A empresa extrativa e os
índios no Médio Tocantins. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 (Coleção Estudos
Brasileiros; v. 35).
LEFEBVRE, Henri. La Production de L’Espace. Paris: Éditions Anthropos, 1974.
______. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Edtora UFMG, 1999.
LEONEL, M. Etnodicéia Uruéu-au-au. São Paulo: Edusp/ IAMA/FAPESP, 1995.
LEVIEN, Michael. Da acumulação primitiva aos regimes de desapropriação. In:
Sociologia & Antropologia. Rio de Janeiro, V. 4, junho, 2014, pp. 21–53.
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia
da territorialidade. In: Série Antropologia. Brasília: UNB, 2002.
LISSOVSKY, M; MORAES DE SÁ, P. S. As colunas da Educação: a construção do
ministério de Educação e Saúde. Rio de Janeiro: IPHAN, 1996
LOVY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, uma leitura das ―teses sobre o
conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005.
LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação de capital: contribuição ao estudo econômico
do imperialismo. Tomo II. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
MACHADO ARÁOZ, Horácio. Territorio, colonialismo y minería transnacional: una
hermenéutica crítica de las nuevas cartografías del Imperio. In: III Jornadas del
Doctorado en Geografía. La Plata: Universidad Nacional de La Plata, 2010.
______. Orden neocolonial, extractivismo y ecología política de las emociones. In:
RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 34, pp. 11-43, Abril de
2013.
______. O debate sobre o ―extrativismo‖ em tempos de ressaca: a Natureza americana e
a ordem colonial. In: DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; FILHO, Jorge Pereira (Orgs.).
Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao
desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016.

430
MALERBA, Juliana (org). Novo marco legal da mineração no Brasil: para que? Para
quem? Fase, 1ª edição. Rio de Janeiro, 2012.
MALHEIRO, Bruno Cezar. Saberes e territórios em disputa: pensando a epistemologia
da Fronteira. In: Iguana Reflexões Amazônicas. Marabá: Editora Iguana, 2015.
MALHEIRO, Bruno Cezar; RIBEIRO, Beatriz. ―Contexto, texto e intertexto: abrindo as
perspectivas do olhar sobre a educação do campo‖. In: SOUZA, H.; SANTIAGO, I.;
BRITO, N.Percursos formativos em Educação do Campo. Brasília: MDA, 2014.
MARTINS, José de Souza. Fronteia: degradação do outro nos confins do humano. São
Paulo: Hucitec, 1997.
MARX, K. Formações pré-capitalistas. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
______. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MASSEY, Doreen. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, Antônio (Org.). O
espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 176-185.
MATTEI, U. NADER, L. Pilhagem: quando o Estado de direito é ilegal. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.
MBEMBE, A. Crítica à razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.
______. Necropolítica. In: Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. n. 32,
dezembro 2016 .
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Amazônia na Era Pombalina. Volume 3. Rio de
Janeiro: RIHGB, 1963
MIGNOLO, W. D. Histórias locais/ Projetos globais. Belo Horizonte: Ed.UFMG,
2003.
MILANEZ, B.; MALERBA, J.; WANDERLEY, L. J. (Orgs), Novo Marco Legal da
mineração no Brasil: Para quê? Para quem? Rio de Janeiro, RJ, Brasil: FASE, 2012
MILANEZ, B. Boom ou bolha? A influência do mercado financeiro sobre o preço do
minério de ferro no período 2000- 2016. Versos - Textos para Discussão PoEMAS,
1(S2), 2017, p. 1-18
MILANEZ, Bruno; et al. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos
econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG).
Relatório Final, poemas, Mimeo, 2015. Disponível em:
http://www.ufjf.br/poemas/files/2014/07/PoEMAS-2015-Antes-fosse-mais-leve-acarga-
vers%C3%A3o-final.pdf. Acesso em: 15 de maio de 2016.
MINAYO, Maria. De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresário e da privatização
na subjetividade operária. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

431
MONTEIRO, Maurílio. Siderurgia e Carvoejamento na Amazônia: drenagem
energético-material e pauperização regional. Belém: UFPA/NAEA, 1998.
______.. A. Mineração e metalurgia na Amazônia. Contribuição à crítica da ecologia
política à valorização de recursos minerais da região. Tese de Doutorado em
Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido NAEA/UFPA. Belém, Pará, Brasil,
2001.
______. Meio século de mineração industrial na Amazônia e sua importância para o
desenvolvimento regional . Estudos Avançados. vol.19, n.532005, pp.187-207.
MOREIRA, Eidorfe. Amazônia: o conceito e a paisagem. Belém: Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia, 1958.
MONTE, Paulo. Etno-História Waimiri-Atroari. Dissertação de Mestrado, São Paulo,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1992.
MONTEIRO, Maurílio de Abreu. Meio século de mineração industrial na Amazônia e
suas implicações para o desenvolvimento regional. Revista Estudos Avançados, 19 (53),
p. 187-207, 2005
MOORE, Adam. Repensar a escala como uma categoria geográfica: da análise para a
prática. In: GEOgraphia, vol. 20, n. 42, jan/abr, 2018
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Portaria No 128, de 30 de Março de 2017.
______. Plano nacional de mineração/2030.Brasilia-DF: MME, 2010.
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Resultados da fiscalização para
erradicação do trabalho escravo por federação e anual – 2008 e 2009. Brasília: MTE,
2010.
MIRANDA, Rogério Rego. (Contra)hegemonia e território do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no sudeste paraense. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. Universidade de São Paulo. São
Paulo:USP, 2017.
MOLER, L. B. Nosso modo de vida vale a pena: Um estudo sobre pescadores artesanais
Maranhenses. 2011. 100 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) --- Programa
Pós-Graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica PUCSP, São
Paulo. 2011.
MÜLLER, I. N. J. Infraestrutura de apoio a grandes empreendimentos e as alterações
no meio ambiente. Dissertação apresentada ao curso de Ciência ambiental USP, 1994

432
MST. Mulheres do MST ocupam os trilhos da Vale no Maranhão. 2016.
http://www.mst.org.br/2016/03/07/mulheres-ocupam-os-trilhos-da-vale-no-
maranhao.html. Acessado em 05/09/2017
NETO, J. D. P. No país dos Cinta Larga: uma etnografia do ritual. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia USP. São Paulo; USP, 1991.
NETWORK INTELIGÊNCIA CORPORATIVA. Enfoque empresarial. Disponível em
<http://www.networkic.com.br/enf_intel.htm>. Acessado em 09/04/2015
NIMUENDAJÚ, Curt Unkel. Os Timbira Orientais. Belém do Pará, 16 de julho de
1944.
OLIVEIRA, João Pacheco. A segurança das fronteiras e o novo indigenismo. In:
HÉBETTE, Jean (Org.). O cerco está se fechando. Rio de Janeiro: Vozes, 1991
______. O Nascimento do Brasil e outros ensaios: ―pacificação‖, regime tutelar e
formação da alteridade. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Aculturação e ―fricção interétnica‖. In: América Latina,
v. 6, n. 3, p. 33-46, 1963
______. A Sociologia do Brasil indígena. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972.
______. O índio e o mundo dos brancos. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1996.
OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,
2003.
ORNELAS, Raul. Contra-hegemonias e emancipações: apontamentos para um início de
debate CECEÑA, Ana Ester. (Org.). Os desafios das emancipações em um contexto
militarizado. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
PAIM, G. A Amazônia ameaçada: da Amazônia de Pombal à soberania sob ameaça.
Brasília: Senado Federal, 2009.
PALHETA, João Márcio. Território e mineração em Carajás. Belém: GAPTA-UFPA,
2013.
PASTOR, Marluze. Contrário me dê licença para contar essa história. In: Revista Fórum
Carajás - Mineração na Amazônia: Estado, Empresas e Movimentos Sociais. São Luís:
FORUM CARAJÁS, 2010.
PEREIRA, Edir Augusto. Ensaios de Amazônia. Niterói/RJ: EDUFF, 2016.
PEREIRA, C. M. Z. Conflitos e identidade no passado e no presente: política e tradição
em um quilombo na Amazônia. Dissertação de Mestrado Programa de Pós Graduação
em Antropologia da UNB. Brasília: UNB, 2008.

433
PERROUX, François. A economia do século XX. Tradução de José Lebre de Freitas.
Lisboa: Herder, 1967.
______. O conceito de polos de crescimento. p. p. 99 – 110. In: FAISSOL, S.
Urbanização e Regionalização: relações com o desenvolvimento econômico. IBGE,
1975.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Da geografia às geo-grafias: um mundo em
busca de novas territorialidades. In: CECENÃ, Ana Esther; SADER, Emir (orgs). La
Guerra Infinita: Hegemonía y terror mundial. Buenos Aires, CLACSO 2002.
______. Geografando nos Varadouros do Mundo. Ed. Ibama, Brasília, 2003.
______. Geografia da Riqueza, Fome e Meio Ambiente: pequena contribuição crítica ao
atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. In: OLIVEIRA, Ariovaldo
U.; MARQUES, Marta I. (orgs). O Campo no Século XXI: território de vida, de luta e de
construção da justiça social. São Paulo: Ed. Casa Amarela e Ed. Paz e Terra, 2004. p.
207-254
______. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2005.
______. A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
______. Ou inventamos ou erramos: encruzilhadas da integração regional sul-
americana. In: Memorias seminariogeografía crítica: territorialidad, espacio y poder en
América Latina. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia/Universidad Externado de
Colombia, 28, 29 y 30 de septiembre de 2011.
______. De saberes e de territórios: diversidade e emancipação a partir da experiência
latino-americana. In: CRUZ, Valter do Carmo; OLIVEIRA, Denilson Araújo.
Geografia e Giro Descolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação do
pensamento crítico. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; HAESBAERT, Rogério. A Nova Des-ordem
Mundial. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; CUIM, Danilo Pereira; LEAL, Leandro
Teixeira. Bye bye Brasil, aqui estamos: a reinvenção da questão agrária no Brasil. In:
CANUTO, Antônio; LUZ, Cássia Regina da Silva; ANDRADE, Thiago Valentim.
Conflitos no Campo Brasil 2015. Goiânia: CPT, 2015.
PINTO, Lúcio Flávio. Carajás: o ataque ao coração da Amazônia. 2ª Ed. Rio de
Janeiro: Editora Marco Zero, 1982.
PIZARRO, Ana. Amazônia: as vozes do rio. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

434
Brasília. Edições do Senado federal, 2009.
PUTNAM, R. Comunidade e democracia. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
QUIJANO, A..Colonialidad y modernidad/racionalidad. In: BONILLA, H. (Org). Los
conquistados: 1492 y lapoblación indígena de las América. Quito: Tercer Mundo-
LibriMundiEditors, 1992.
______. Colonialidade do Poder e classificação social. In: SOUZA SANTOS,
Boaventura; MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina,
2009, p. 73-118.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.
RIBEIRO, Darci. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no
Brasil moderno. Petrópolis, Vozes, 1977.
RIBEIRO DOS SANTOS, J. O sistema jurídico indígena e o direito estatal: o caso
Xikrín versus mineradora Vale. In: V Encontro Anual da ANDHEP – Direitos
Humanos, Democracia e Diversidade. Belém, 17 a 19 de setembro de 2009.
RIBEIRO JUNIOR. Akrãtikatêjê: Dominação e Resistência na luta por seu território.
Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e
Sociedade na Amazônia. Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará –
UNIFESSPA. Marabá/PA, 2014.
RICARDO, Carlos. (Org). Povos indígenas no Brasil: Sudeste do Pará (Tocantins).
São Paulo: CEDI, 1985.
RICARDO, Fany.; ROLLA, Alícia. Mineração em Unidades de Conservação na
Amazônia brasileira. São Paulo, Instituto Socioambiental (ISA), mar, 2006. Disponível
em: <http://www.ibram.org.br/sites/1300/1382/00000776.pdf>.
______. Mineração em Terras Indígenas na Amazônia brasileira. 1ª ed. São Paulo,
Instituto Sócio Ambiental (ISA). Março/2013. 112p. Disponível em
<http://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/publicacoes/minera
cao2013_v6.pdf>
ROCHA, Gilberto de Miranda. A Construção da Usina Hidrelétrica e a redivisão
político-territorial na área de Tucuruí. 1998. Tese (Doutorado em Geografi a Humana)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1998.
ROCHA, Marco Antônio Martins. Grupos Econômicos e Capital Financeiro: uma
história recente do grande capital brasileiro. Tese (Doutorado em Economia) no
Instituto de Economia da Unicamp, Campinas, 2013.

435
RODRIGUES, Roberta Menezes. Empresas, Company Towns e territorialização em
áreas de mineração na Amazônia oriental. In: XII ENANPUR. Belém, 21 a 25 de maio
de 2007.
SACK, R. D. Humanterritoriality: its tneoryandhistory. Cambridge: Cambridge
University Press. 1986.
SACHS, I. Estratégias de transição para o século XXI. In: BURSZTYN, M.
Desenvolvimento sustentável. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 28-56.
SANTOS, Valdeci Monteiro. A Economia do Sudeste Paraense: fronteira de expansão
na periferia brasileira. Tese de Doutorado. Instituto de Economia, Universidade
Estadual de Campinas, 2011.
SANTOS, M. A Natureza do Espaço. São Paulo: HUCITEC, 1996.
______. O retorno do território. En: OSAL: Observatório Social de América Latina. Año
6 no. 16. Buenos Aires : CLACSO, 2005.
SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início
do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SANTOS, Anderson de Jesus. Pedra Bonita, as pedras que contam: aspectos
socioeconômicos do ciclo de mineração de cassiterita no Vale do Jamari / sub-bacia do
Rio Jacundá do fim da década de 50 à 90. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em História da UFRS, 2014.
SASSEN, Saskia. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de
Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2016.
SAUVIAT, Catherine. ―Os fundos de pensão e os fundos mútuos: principais atores da
finança mundializada e do novo poder acionário‖. In: CHESNAIS, François. A finança
mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005.
SCLIAR, C. Geopolítica das minas do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1996;
SETE/VALE. Plano Básico Ambiental. Canaã dos Carajás: SETE/VALE, 2012
SILVA, Jarbas Vieira; GOMES, Maria Júlia. Apresentação. In: MILANEZ, Bruno;
LOSEKANN, Cristina. Desastres no vale do Rio Doce: antecedentes, impactos e ações
sobre a destruição. Rio de Janeiro: Folio Digital/ Letra e Imagem, 2016.
SILVA, Jerônimo da Silva; POSSAS, Hiran de Moura. ―Fazendo o caminho de volta‖:
memória e crítica a partir de Concita Sompré. In: SILVA, Idelma Santiago et alli.
Mulheres em perspectiva: trajetórias, saberes e resistências na Amazônia Oriental.
Belém: Paka-Tatu, 2017.

436
SILVA, Lara de Paula. Fracionamento de empreendimentos no licenciamento
ambiental. In: Direito coletivo Comentário à jurisprudência. V. 14 / n. 25 / jul.-dez.
2015, p. 295-318.
SILVEIRA, Maria Laura. Region y division territorial del trabajo: desafíos en el
período de la globalizacion. In: Investigacion y desarrollo 17(2). 2009, p. 435-455.
______. Nuevo orden espacial de la globalizacion: encrucijadas y horizontes. Revista de
Geografia Espacios 1(1): 2011, p. 1-17.
SILVEIRA ATHIAS, SORIANO DE MELLO, GUIMARÃES, PINHEIRO & SCAFF
ADVOGADOS. Assessoria para implantação de projetos na Amazônia. Disponível em
<http://www.advassociados.com.br/Assessoria_para_implantacao_de_projetos_na_Ama
zonia.html>. Acessado em 09/01/2018.
SMITH, Neil. Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem teto e
produção da escala geográfica. In: ARANTES, Antonio A. (org.) O espaço da
diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 132-175.
SOARES, Lúcio de Castro. C. Amazônia. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de
Geografia, 1963.
SOJA, Edward W. Geografias Pós-Modernas: a reafirmação do espaço na teoria social
crítica. RJ: Jorge Zahar Editor, 1993.
SOUZA, Márcio. Amazônia Indígena. Rio de Janeiro: Record, 2015.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Os Conceitos Fundamentais da Pesquisa Sócio-Espacial.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
SOUZA SANTOS, Boaventura de. A gramática do tempo. São Paulo: Cortez, 2008.
______. A crítica da Razão Indolente: contra o desperdício de esperiência. São Paulo:
Cortez, 2007.
______. Para além do Pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos
saberes. In: SOUZA SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula. Epistemologias
do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
SUDAM. Operação Amazônia: Discursos. Belém: SUDAM/Serviço de documentação e
divulgação, 1968.
SVAMPA, M. Consenso de losCommodities y linguajes de valoración em América
Latina. In: revista Nueva Sociedad, No 244,marzo-abril de 2013
STAVRIDES, Stavros. Hacia la ciudade de umbrales. Madrid: Akal, 2016,
SYNERGIA. Quem somos. Disponível em <http://www.synergiaconsultoria.com.br/>
Acessado em 02/03/2017

437
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia.
Manaus: Editora Valer /Edições Governo do Estado, 2000.
TOLEDO, Vitor. El metabolismo social: una nueva teoría socioecológica Revista
Relaciones 136, otoño 2013, pp. 41-71, disponível em
http://www.colmich.edu.mx/relaciones25/files/ revistas/136/pdf/VictorToledo.pdf
TSE. Eleições 2010. Brasília: TSE, 2010.
______. Eleições 2014. Brasília: TSE, 2014.
______. Eleições 2016. Brasília: TSE, 2016.
TRINDADE JR., Saint-Clair Cordeiro; BARBOSA, Estêvão José Souza.
Reestruturação metropolitana na Amazônia oriental: empreendimentos econômicos e
dispersão urbana na área de influência imediata de Belém. Geousp – Espaço e Tempo
(Online), v. 20, n. 2, p. 349-363, mês. 2016.
TROCATE, C. ZANON, M. J. e VIEIRA, J. (orgs.). Elementos Constitutivos do MAM -
Movimento Pela Soberania Popular na Mineração. Marabá: Editora iGuana, 2015.
VALE. Relatório de Sustentabilidade 2007. Rio de Janeiro: VALE, 2007.
______. Relatório de Sustentabilidade 2008. Rio de Janeiro: VALE, 2008
______. Relatório de Sustentabilidade 2009. Rio de Janeiro: VALE, 2009
______. Relatório de Sustentabilidade 2010. Rio de Janeiro: VALE, 2010
______. Relatório de Sustentabilidade 2011. Rio de Janeiro: VALE, 2011
______. Relatório de Sustentabilidade 2012. Rio de Janeiro: VALE, 2012
______. Relatório de Sustentabilidade 2013. Rio de Janeiro: VALE, 2013
______. Relatório de Sustentabilidade 2014. Rio de Janeiro: VALE, 2014
______. Relatório de Sustentabilidade 2015. Rio de Janeiro: VALE, 2015
______. Relatório de Sustentabilidade 2016. Rio de Janeiro: VALE, 2016
______. Demonstrações Financeiras em 31 de dezembro de 2016. Rio de Janeiro:
VALE, 2016.
______. Relatório de Sustentabilidade 2017. Rio de Janeiro: VALE, 2017
VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na
ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
VALVERDE, O..Grande Carajás: planejamento da destruição. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1989.
VIDAL, Lux Boelitz. A questão indígena. In: GONÇALVES JR.; José Maria (Org.).
Carajás: desafio político, ecologia e desenvolvimento. São Paulo/Brasília:
Brasiliense/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1986.

438
______. Os índios da Amazônia: um desafio recíproco. In: HÉBETTE, Jean (Org.). O
cerco está se fechando. Rio de Janeiro: Vozes, 1991. p. 54-77.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; ANDRADE, Lúcia. Hidrelétrica do Xingu: o
Estado contra as sociedades indígenas. In: SANTOS, Leinad Ayer; ANDRADE, Lúcia.
(orgs.) As hidrelétricas do Xingu e os povos indígenas. Comissão Pró-índio de São
Paulo, 1988, pp. 7-23.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio. Mana vol.2 nº 2. Rio de Janeiro, Oct, 1996.
______. O Nativo Relativo. Mana. vol.8 nº 1, Rio de Janeiro. Apr, 2002.
______. Encontros. Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue
Editorial, 2008.
ZANNONI, Claudio. Conflito e coesão: o dinamismo tenetehara. Brasília, DF: CIMI,
1999.
ZIBECH, R. Brasil potência: entre integração regional e um novo imperialismo. Rio de
Janeiro: Consequência, 2012.
YOKOI, Marcelo. Na terra, no céu. Os Awá-Guajá e os outros. Dissertação de
Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal
de São Carlos. São Carlos: UFSCAR, 2014.
WAGLEY, C. & GALVÃO, E. Os índios Tenetehara. Uma cultura em transição. Rio de
Janeiro, MEC/Serviço de Documentação, 1961.
WANDERLEY, Luiz Jardim. Conflitos e movimentos sociais populares em área de
mineração na Amazônia brasileira. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em Geografia da UFRJ, 2008.
______. Do Boom ao Pós-Boom das commodities: o comportamento do setor mineral
no Brasil. Versos - Textos para Discussão PoEMAS, 1(1), 2017, p. 1-7.

439

Você também pode gostar