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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFRGS


NÚMERO 40

Estado Laico e Religião: uma análise da atuação política do


Congresso Nacional a partir de projetos de lei e discursos em
plenária no período de 2013 a 2016

Secular State and Religion: an analysis of the political action of the


National Congress, based on bills and speeches in plenary, from 2013
to 2016

Loiane Prado Verbicaro


Centro Universitário do Pará

Paloma Sá Souza Simões


Centro Universitário do Pará

Estado Laico e Religião: uma análise da atuação política do Congresso Nacional a partir de projetos de lei e discursos
em plenária no período de 2013 a 2016
, Porto Alegre, n. 40, p. 131-153, ago. 2019.
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Estado Laico e Religião: uma análise da atuação política do Congresso Nacional a partir de
projetos de lei e discursos em plenária no período de 2013 a 2016

Secular State and Religion: an analysis of the political action of the National Congress based on bills
and speeches in plenary sessions between 2013 and 2016

Loiane Prado Verbicaro *

Paloma Sá Souza Simões**

REFERÊNCIA
VERBICARO, Loiane Prado; SIMÕES, Paloma Sá Souza. Estado Laico e Religião: uma análise da atuação política do
Congresso Nacional a partir de projetor de lei e discursos em plenária no período de 2013 a 2016. Revista da
Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 40, p. 131-153, ago. 2019.

RESUMO ABSTRACT
O artigo tem como objetivo de estudo a presença da The article aims to study the presence of religion in bills
religiosidade nos projetos de lei e discursos em plenária and speeches in plenary sessions delivered by federal
proferidos por deputados federais, no período de 2013 a deputies, from 2013 to 2016, in order to highlight if such
2016, com intuito de evidenciar se tal influência religiosa religious influence wounds state secularism. This work
fere a laicidade estatal. O trabalho propõe-se a explicar a intends to explain the importance of religious citizens’
importância da participação de cidadãos religiosos na vida participation in the public life, so that their presence does
pública, de modo que a presença deles não desconstitua a not abolish the neutrality of the state institutions. The
neutralidade das instituições estatais. A pesquisa é de research is bibliographical, using author Jürgen
cunho bibliográfico, utilizando como referencial teórico o Habermas’ body of work as theoretical reference, and
autor Jürgen Habermas, e documental, a partir da análise documentary, based on the analysis of bills and speeches
de projetos de lei e discursos em plenária obtidos no site in plenary obtained on the Chamber of Deputies’ website.
da Câmara dos Deputados. Propõe-se o trabalho a The paper proposes to demonstrate the dual position
demonstrar a postura dual adotada pelos parlamentares adopted by parliamentarians when it comes to the
quando se trata de declaração da opinião religiosa em seus declaration of religious opinion in their speeches versus
discursos versus a argumentação utilizada por eles no the arguments used by them at the moment of creation of
momento de criação das legislações aplicáveis à statutes applicable to community, emphasizing respect
coletividade, ressaltando o respeito ou não à laicidade do towards state secularity or the lack thereof.
Estado.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Filosofia Política. Laicidade. Religião. Câmara de Political theory. Secularity. Religion. Brazilian Chamber
Deputados. of Deputies.

SUMÁRIO
Introdução. 1. Tolerância, garantia da existência do Estado Democrático e liberdade religiosa. 1.1. Neutralidade de
instituições e laicidade estatal. 1.2. Religião na esfera pública e participantes religiosos. 1.3. Uso público da razão de

* Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade de Salamanca (2014), Mestre em Direitos Fundamentais e Relações
Sociais pela Universidade Federal do Pará (2006), Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Pará
(2011), Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará - suma cum laude (2004), Coordenadora do Curso de
Direito do Centro Universitário do Pará, Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Direito do Centro Universitário do Pará. Atualmente cursa Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Pará. É
líder do grupo de pesquisa: Democracia, Poder Judiciário e Direitos Humanos.
**
Aluna do Curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA, ex-monitora bolsista de Introdução
ao Estudo do Direito, bolsista da Iniciação Científica PIBICT e integrante do Grupo de Pesquisa (CNPQ): Democracia,
Poder Judiciário de Direitos Humanos.

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representantes religiosos. 1.4. Representantes religiosos na política brasileira. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO entre dois ou mais sujeitos capazes de se


comunicar (falar e agir) dentro de um modelo de
O estudo da influência da religião na interação social, que é o agir comunicativo.
atuação política brasileira faz-se importante, na Dessa forma, a participação da sociedade nesse
medida em que a postura adotada pelos modelo democrático é mais ativa, visto que o
parlamentares da Câmara dos Deputados é envolvimento dos cidadãos extrapola o exercício
visualizada como dual. Isso porque, no momento do direito ao voto, pois estes são capazes de
em que proferem discursos em plenária, eles influenciar diretamente as decisões públicas
utilizam fundamentações religiosas para mediante a prática de diálogos racionais acerca
demonstrar suas opiniões acerca de determinado de questões da vida pública.
assunto. Todavia, quando apresentam um projeto A democracia deliberativa existe a
de lei, seguem as regras da laicidade, uma vez partir do momento em que os membros da
que o inteiro teor dos projetos e seus argumentos sociedade atuam de maneira direta nas
de justificativa são racionais. Dessa maneira, é discussões da esfera pública política e das
importante saber se esses representantes tomadas de decisões do poder público, porque
políticos, durante suas atuações políticas, estão existe a ética do agir comunicativo que, segundo
respeitando ou violando a neutralidade das a teoria habermasiana, se constitui de três
instituições do Estado. princípios cruciais ao seu pleno exercício, quais
Como lastro teórico, a pesquisa utilizou sejam: (a) a regra da inclusão, que permite a
como referencial, sobretudo, o autor alemão participação de qualquer indivíduo; (b) a regra
Jürgen Habermas e, a partir das suas concepções da participação, que sugere que todo integrante
sobre neutralidade das instituições, laicidade, da discussão pode expor suas opiniões, ideias,
esfera pública política e pluralidade de visões de etc.; e (c) a regra da comunicação livre de
mundo, analisou os documentos obtidos por violência e coação, já que nenhum interlocutor
meio do site da Câmara dos Deputados, os quais pode ser coagido ou impedido de realizar seus
são os discursos em plenária e projetos de lei. discursos por qualquer outro participante.
Habermas (1997) defende o modelo de Assim, em conformidade com o
democracia deliberativa, o qual aduz que uma pensamento pós-metafísico habermasiano, tem-
decisão só é legítima após passar por um se que a razão comunicativa, oriunda do agir
processo de diálogo, o qual deve ser feito de comunicativo, “é produto da superação moderna
maneira pública, transparente e igual. Tal das visões globais de mundo, de caráter religioso
discussão é relevante e o cumprimento dos ou metafísico, as quais mantinham cingidos os
requisitos para esse efetivo diálogo também, conceitos formais de mundo e suas respectivas
porque todos os membros da sociedade são livres pretensões de validade” (ARAÚJO, 2003, p.
para participar das discussões e expor suas 221).
opiniões no âmbito da esfera pública. Então, é a partir da compreensão do
A participação do sujeito na sociedade, Estado na teoria de Habermas, que é possível
para Habermas (1997), é compreendida a partir analisar a influência da religião na política
da teoria da ação, que visa analisar a relação brasileira, pois ele possibilita compreender a

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forma como as crenças religiosas são apropriadas dessa busca, foi possível localizar projetos de lei
para induzir regras no âmbito de uma sociedade e discursos em plenária em que se identificou a
democrática, bem como mostrar os discursos presença ou ausência do uso da religião como
políticos pautados em justificativas religiosas, fundamento das falas ou justificativas dos
que violam a doutrina da neutralidade estatal e os projetos de lei.
direitos fundamentais dos cidadãos. A partir da delimitação do problema de
Dessa maneira, a pesquisa é relevante pesquisa e do objetivo central estabelecido, a
para que se possa analisar se os representantes pesquisa desenvolve a importância da tolerância
políticos da sociedade brasileira estão exercendo como garantia de existência do Estado
suas funções públicas em conformidade com o Democrático e da liberdade religiosa, de modo a
preceito constitucional da laicidade estatal. Além expor como as mudanças na concepção de
disso, o estudo feito é relevante para que se tolerância foram necessárias para a proteção do
possa evidenciar se a ideia de Estado laico direito à liberdade religiosa, diante do pluralismo
permite a presença de cidadãos religiosos no de visões de mundo em uma sociedade plural,
ambiente político. complexa e democrática.
Diante disso, os questionamentos a Logo em seguida, discorre-se sobre a
serem respondidos sobre o contexto político ideia de neutralidade das instituições estatais e
brasileiro, com base na teoria habermasiana, são: qual a sua relação com a laicidade, fazendo-se,
(a) cidadãos religiosos podem fazer parte da vida portanto, uma delimitação entre os conceitos de
pública? (b) A existência de bancadas religiosas neutralidade, laicidade, estado laico e laicismo.
fere a laicidade estatal? (c) Os discursos em Após, desenvolve-se a concepção habermasiana
plenária e projetos de lei pronunciados pelos da relação entre religião e a esfera pública, bem
parlamentares estão em conformidade com o como o uso público da razão de representantes
princípio do Estado laico presente na políticos religiosos. A partir da formulação
Constituição Federal? dessas ideias, parte-se para uma contextualização
Tais questionamentos serão respondidos da participação de parlamentares religiosos na
a partir da análise documental dos projetos de lei política brasileira e, então, inicia-se a análise dos
e discursos em plenária. Para a obtenção desse discursos em plenária e dos projetos de lei.
acervo documental, foram realizadas buscas no Assim, à luz da teoria habermasiana e
site da Câmara dos Deputados, o qual apresenta dos documentos obtidos no site da Câmara dos
janelas de pesquisa, de modo a realizar o Deputados, fez-se uma análise da relação entre
levantamento selecionado. A pesquisa utilizou-se religião e política, na sociedade brasileira, no
de três janelas, a saber: legislação, deputado e período compreendido entre os anos de 2013 a
discurso. O levantamento por meio da internet 2016, de modo a dar respostas aos
seguiu o critério do uso de palavras-chave tais questionamentos anteriormente levantados.
como religião, aborto, homoafetivos, estatuto da
família, Deus. 1 TOLERÂNCIA, GARANTIA DA
Além disso, o site oferece uma EXISTÊNCIA DO ESTADO
ferramenta de ordenação dos resultados DEMOCRÁTICO E LIBERDADE
encontrados por relevância ou por data, de RELIGIOSA
maneira que se utilizou a opção da data, pelo que
foi possível delimitar o período da pesquisa no A teoria do agir comunicativo de
triênio, entre os anos de 2013 a 2016. A partir Habermas (2013) afirma que a tolerância é um

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termo empregado historicamente na sociedade não buscam de modo razoável nem julgam
com a finalidade de garantir a coesão social, bem possível uma união na dimensão de convicções
como de tornar possível a convivência mútua conflitantes” (HABERMAS, 2007a, p. 290).
entre cidadãos com ideologias diversas no Nesse sentido habermasiano, não
âmbito social. existiria necessidade de se buscar o ato de
O termo tolerância, na Alemanha do tolerar, e, portanto, não haveria necessidade da
século XVI, muitas vezes utilizado para denotar tolerância se as pessoas fossem indiferentes
um preceito legal ou para determinar um tipo de quanto às práticas diversificadas dos demais
comportamento, palavra Toleranz, que no membros da sociedade ou se praticassem a
contexto da Reforma Protestante assumiu o alteridade, pois assim, não existiria rejeição das
significado limitado de aceitação religiosa, ao convicções dissonantes. Além disso, o termo
indicar “tanto a ordem legal que garante a para Habermas (2007a) só passa a fundamentar
tolerância, quanto a expectativa normativa do normas legais e comportamentais quando da
comportamento tolerante” (HABERMAS, 2013, existência de conflitos religiosos.
p. 2). Em virtude disso, a tolerância para
Sucedeu-se diferentemente da forma Habermas (2007a) não se confunde com a
utilizada na Inglaterra, entre os séculos XVI e indiferença por esta parecer superficial e por
XVII, cujo termo para “tolerância religiosa passa aquela não fazer parte de visões preconceituosas,
a ser um conceito de direto” (HABERMAS, uma vez que estas são inaceitáveis dentro de
2007a, p. 279), após governos publicarem éditos argumentações políticas (ARAÚJO, 2009, p.
de caráter obrigatório, que coagiam os cidadãos e 165). Contudo, a tolerância é essencial, visto
os Estados a praticarem a tolerância com as que, sob um ponto de vista funcional, tem por
minorias religiosas. “finalidade receptar a destrutividade social de
A tolerância religiosa caracteriza-se no um dissenso irreconciliável e permanente”
termo inglês tolerance como uma forma de (HABERMAS, 2007a, p. 291), ou seja, permite a
comportamento, e a palavra toleration refere-se coexistência e o respeito mútuo entre pessoas de
aos atos legais do Estado, que permitem aos uma comunidade com convicções divergentes.
cidadãos exercerem a religiosidade particular. A tolerância, portanto, não carrega o
Por outro lado, nos países de língua portuguesa, sentido de indiferença, porque pressupõe a
não existem divergências de significação para o reciprocidade entre os membros da comunidade,
uso da palavra tolerância, cujo sentido faz “não é apenas o espírito de abertura, de acolher a
referência a comportamento e preceito legal, diferença, o reconhecimento do outro, mas a
indistintamente (HABERMAS, 2013, p. 2). exigência endereçada ao outro de ele assumir
A tolerância para Habermas (2013) é para si as mesmas disposições [...] que
essencial para a cultura política liberal, por assumimos para nós mesmos” (ZARKA, 2012,
compreendê-la como uma virtude política p. 37).
necessária para que possam existir relações entre A aceitação do outro deve significar, no
pessoas diferentes; não apenas para alcançar meio social, amplo respeito às diversidades, não
generosidade e paciência para com a diversidade apenas a permissividade muitas vezes
cultural no campo social, mas “para além de uma caracterizada como esforço individual, mas
busca paciente da verdade, abertura, confiança concretamente ter o sentido de ações conjuntas,
mútua e de um sentido de justiça”. Para o autor, ou seja, o querer deve partir das partes
a tolerância deve ser solicitada “quando as partes interessadas. Assim, “a tolerância apresenta uma

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dupla exigência: endereçada a si e ao outro no Assim, a ideia de tolerância baseada na


sentido de estabelecer e manter a reciprocidade reciprocidade entre os membros da sociedade
que permite a coexistência [...]” (ZARKA, 2012, pode evitar o aparecimento de conflitos entre as
p. 37). diversas concepções de sociedade e de mundo,
Dessa maneira, a tolerância é algo que bem como deve resguardar a liberdade religiosa
os Estados Democráticos buscam sempre dos indivíduos pela neutralidade do Estado laico.
resguardar, por ter estrita relação com a
liberdade religiosa assegurada na maioria das 1.1 Neutralidade de instituições e laicidade
democracias contemporâneas, em virtude do estatal
pluralismo de visões de mundo em única
sociedade. Assim, a institucionalização da A garantia da liberdade de expressão
tolerância evita a origem de conflitos entre religiosa dos sujeitos na sociedade moderna,
grupos divergentes (HABERMAS, 2007a, p. segundo Habermas (2007b, p. 133), foi originada
285-286), uma vez que pode preservar a pela efetivação da tolerância por algumas
diversidade existente por meio da concessão medidas estatais necessárias para seu efetivo
mútua, por parte dos indivíduos, de tal liberdade alcance, como é o caso da neutralidade das
religiosa, assegurando, portanto, a consolidação instituições do Estado, que é a postura neutra que
do Estado Democrático. o ente público deve ter em relação às visões de
A manutenção da harmonia entre a mundo presentes no âmbito social.
pluralidade de grupos étnicos, religiosos, A neutralidade estatal, no pensamento
políticos e sociais para Zarka (2012, p. 32) só habermasiano, traduz-se pela postura que o
existe pela reciprocidade. “Isso quer dizer, em Estado Democrático deve seguir em não
particular, que não pode ocorrer a tolerância da favorecer apenas uma ideia de mundo, mas a de
intolerância. [...] A tolerância é uma virtude permitir a diversidade cultural, além de aceitar
minimal” em que “o seu valor está em assegurar que todas as pessoas se manifestem livremente
a coexistência dos indivíduos, dos grupos ou dos na sociedade, sem a intervenção da figura do
povos diferentes, os quais são opostos entre si”. Estado em determinar que uma cultura seja a
Desse modo, tem-se que o amparo e a mais correta ou a oficial.
proteção da tolerância são essenciais para a Corroborando com o pensamento
manutenção da harmonia da diversidade habermasiano, Zarka (2012, p. 67) afirma que a
existente no Estado Democrático, por isso é neutralidade é a maneira como “o Estado liberal
desejável, segundo Habermas (2007a), que os se define, independentemente de qualquer
Estados adotem postura neutra em relação às religião ou ideologia liberal, mais ainda de
visões de mundo, de crença, de fé, de religião. qualquer determinação moral das finalidades da
Assim, tem-se que os Estados contemporâneos vida”. Desse modo, o papel da neutralidade é o
buscam seguir os preceitos da neutralidade de permitir com que os mais variados grupos
estatal, a partir da laicidade, no intuito de manter sociais convivam e se reconheçam dentro da
os pilares do pluralismo democrático e a democracia em que vivem sem que haja algum
convivência harmônica do multiculturalismo tipo de “acordo entre eles, nem com o Estado,
presente na sociedade, bem como resguardar a quanto a valores culturais, religiosos, sexuais,
proteção à liberdade religiosa, direito etc.”.
estreitamente relacionado com a noção de É, portanto, por intermédio da postura
tolerância. neutral do Estado que há a neutralização da

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esfera pública e de suas instituições e, Para o autor, deve existir


consequentemente, a transferência para a esfera
privada das questões concernentes à diversidade a neutralidade do Estado em matéria religiosa
de religiões e sua maneira de organização (ou a concessão de tratamento estatal
isonômico às diferentes agremiações
(ZARKA, 2012, p. 74), fato este que possibilita a religiosas), a tolerância religiosa e as
coexistência tolerante do pluralismo de culturas e liberdades de consciência, de religião
religiosidades presentes no Estado democrático. (incluindo a de escolher não ter religião) e de
A neutralidade como delimitação do culto” (MARIANO, 2011, p. 244).
campo de ação estatal (ZARKA, 2012, p. 78) e
A institucionalização do Estado laico,
como princípio político para efetivação da
portanto, visa resguardar a isonomia entre os
tolerância é composto pelo princípio da laicidade
membros da sociedade, de maneira que não
do Estado, que defende a separação entre Estado
sejam discriminados socialmente, a partir de uma
e religião, pois o poder público não deve instituir
atitude estatal de favorecimento a um segmento
uma religião oficial ou apoiar determinado
religioso específico. Assim, a ideia de
segmento religioso, mas precisa o Estado
neutralidade diante das visões de mundo
garantir a liberdade e igualdade das pessoas,
defendida por Habermas (2007b) tem como
independentemente de seus credos, diferenças
fundamento o princípio da laicidade estatal, que
étnicas, culturais e religiosas, além de primar
não se confunde com a noção de laicismo.
pela garantia da tolerância diante da pluralidade
O laicismo, segundo Cichovski (2014,
social, uma vez que a ausência de tolerância
p. 355), tem relação com “discurso autoritário e
provoca conflitos religiosos prejudiciais à
excludente que implica violação da liberdade
democracia e aos preceitos dos direitos humanos
religiosa, interferindo indevidamente na esfera
fundamentais para o convívio coletivo.
individual, pois se caracteriza em restrição
Ademais, ressalta-se que além da
injustificável a direito fundamental de livre
garantia à liberdade e igualdade entre as pessoas,
opinião e expressão religiosa”.
a laicidade do Estado serve como um mecanismo
O laicismo, portanto, mostra uma
de autorregulação estatal. Quando acontece
concepção contrária à de laicidade, uma vez que
violação a este princípio no espaço público, o
remete a uma ideologia de indiferença com
Estado fica suscetível à modificação da sua
relação às crenças, muitas vezes de hostilidade
natureza e função (ZARKA, 2012, p. 75), fato
contra os segmentos religiosos quando
este prejudicial para a garantia dos preceitos
percebidos nas práticas da sociedade. Por isso, o
fundamentais da democracia.
laicismo tem uma postura de enclausuramento da
O Estado laico, portanto, é a não
religião no âmbito privado do sujeito, devendo a
escolha, por parte do ente público, de apenas um
manifestação religiosa estar presente apenas no
dos segmentos religiosos presentes na sociedade,
foro íntimo de cada pessoa, pois a livre
oficializando-o e passando a aplicá-lo como
manifestação no espaço público pode ser
único princípio correto e desejável na esfera
visualizada com certa repulsa, até mesmo
pública. Nesse sentido, para Mariano (2011, p.
coibida por parte de atitudes estatais ou de
244) historicamente “a laicidade refere-se à
grupos compostos por intolerantes religiosos.
emancipação do Estado e do ensino público dos
O laicismo, portanto, procura retirar do
poderes eclesiásticos e de toda referência e
âmbito da coletividade as manifestações
legitimação religiosa à neutralidade confessional
religiosas, de modo que fiquem restritas ao
das instituições políticas e estatais”.
domínio da privacidade de cada pessoa. Todavia,
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esse tipo de manifesto viola a liberdade de o autor discorre sobre separação entre esfera
expressão religiosa, bem como a liberdade de pública e privada compreendida nos dias atuais.
crença e consciência asseguradas a cada membro O limite entre as esferas pública e
da sociedade, pois, muitas vezes, decisões privada são tratadas por Habermas (2014) a
tomadas com base em argumentos voltados a partir da chamada esfera pública representativa,
resguardar a isonomia entre os sujeitos da cuja “representação no sentido de uma
sociedade, na verdade, são permeados por um representação da nação ou de determinados
discurso ideológico intolerante em relação a mandantes não tem nada a ver com essa esfera
grupos religiosos. pública representativa” (HABERMAS, 2014, p.
Desse modo, a neutralidade das 103). A esfera pública representativa passou por
instituições estatais defendida por Habermas mudanças históricas, políticas, sociais para
(2007b) é composta pelo princípio da laicidade, alcançar a estrita separação entre o âmbito
responsável pela regulamentação da postura do público e privado, ao se separar em um “sentido
ente público e, consequentemente, da garantia de especificamente moderno” (HABERMAS, 2014,
liberdade religiosa e igualdade entre os cidadãos, p. 109).
pois este é o objetivo do Estado religiosamente Assim, a sociedade moderna passou a se
neutro. Assim, o Estado neutral e laico se afasta adaptar à separação entre público e privado, pois
da ideia de laicismo, pois, diante da igualdade deixou de valorizar a figura das autoridades a
entre os indivíduos, estes não estão proibidos de partir do final do século XVIII, momento em que
expressarem suas manifestações religiosas no houve a dissipação da sociedade feudal e da
âmbito coletivo da sociedade, desde que o poder organização societária estamentada, já que abriu
público – e aqueles que exercem cargos públicos espaço para o aparecimento da esfera pública
– permaneça inerte em relação a qualquer uma representativa, fazendo com que existisse a
das visões de mundo. polarização destes membros, que antes eram
valorizados, em outras áreas da sociedade; ao
1.2 Religião na esfera pública e participantes final, esses se transformaram, por um lado, em
religiosos elementos privados e, por outro, em elementos
públicos, visto que a organização social de
Para a efetiva análise da influência das antigamente se dissipou e esses precisaram
religiões nos discursos políticos, faz-se ocupar outro espaço na sociedade.
necessário compreender a divisão de esferas Após o movimento de polarização,
existentes e identificar a existência de algum tipo Habermas (2014, p. 110) ressalta a posição
de relação direta entre elas. social da igreja, visto que esta se modificou “no
As discussões a respeito da concepção contexto da Reforma; a religião, que
de esfera pública, conforme esclarece Habermas representava o vínculo da igreja com a
(2014), existiu durante séculos nas sociedades, autoridade divina, passa a ser assunto privado. A
assim como os limites entre âmbito público e liberdade religiosa garante historicamente a
esfera privada. Para isso, realiza o autor uma primeira esfera da autonomia privada”.
análise histórico-social-política desde a A crescente divisão entre âmbito
Antiguidade, a partir da organização da público e privado se evidenciou com o
sociedade grega, passando pela Idade Média, desenvolvimento do capitalismo mercantil e o
com as relações entre os senhores feudais e seus aparecimento da classe burguesa, que favoreceu
súditos, até chegar às sociedades modernas, onde a origem da esfera pública do poder público, o

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qual “se objetiva da administração pública mas também aquelas que são independentes do
contínua e no exercício permanente” poder político-econômico e que influenciam na
(HABERMAS, 2014, p. 121). formação da opinião pública fora do poder
Assim, depreende-se que a esfera estatal, a exemplo, os clubes, as igrejas, as
pública, espaço aberto para diálogos, tem como associações, partidos políticos, etc.
seu sujeito “o público como portador da opinião Por isso, é essencial tratar a respeito da
pública” (HABERMAS, 2014, p. 94), portanto, é influência que as pessoas religiosas exercem na
um local com comunicação amplamente esfera pública com relação à contribuição de
praticada entre os membros da sociedade, por formação da opinião pública dos demais
meio da racionalidade, e se constitui pelo membros da sociedade, que participam
“princípio organizador de nossa ordem política” diretamente das instituições as quais promovem
(HABERMAS, 2014, p. 95). esses debates a respeito dos temas públicos, bem
A esfera pública não se confunde com como daqueles que, indiretamente, interessam-se
uma organização ou instituição, explica pelo discurso, seja pela publicidade ou por
Habermas (2014), visto que não regulamenta a diálogos entre grupos, que incluem em suas
estrutura, o modo e a ordem de manifestação das opiniões as questões debatidas.
pessoas em seu âmbito. Não deve, também, ser A interferência das instituições
vislumbrada como um espaço físico específico, religiosas no âmbito das questões políticas e
uma vez que é possível a existência de uma sociais na sociedade contemporânea não é um
esfera pública no meio virtual, por exemplo, fenômeno atual, porque “historicamente, papas,
sendo necessário apenas que exista presença do cardinais e clérigos exerceram vasta influência
agir comunicativo por parte dos indivíduos. política, por vezes derrubando reis conforme a
No sentido do agir comunicativo, para conveniência” (CABRAL, 2014, p. 32).
Habermas (2014, p. 93), a esfera pública é Como prática histórica, a intervenção da
descrita como uma rede favorável para a igreja dominou grande parte do poder estatal,
“comunicação de conteúdo, tomadas de posição atuando diretamente nas deliberações dos
e opiniões; [...] os fluxos comunicacionais são monarcas e chefes de Estado. Todavia, com o
filtrados e sintetizados, a ponto de se avanço da sociedade moderna, ascensão do
condensarem em opiniões públicas enfeixadas Iluminismo e o processo de racionalização da
em temas específicos”. Assim, como os sociedade, as igrejas aos poucos perderam
discursos do mundo globalizado são transmitidos espaço, por isso atualmente procuram formas
velozmente por meio da tecnologia, da mesma diversas para participar do meio político.
forma “a esfera pública se reproduz pelo agir “Os líderes religiosos continuam a se
comunicativo, implicando apenas o domínio de posicionar em questões morais e sociais
uma linguagem natural; ela está em sintonia com consideradas controversas, [...] as opiniões que
a compreensibilidade geral da prática emitem sobre questões como casamento
comunicativa cotidiana” (HABERMAS, 2014, p. igualitário e aborto representam apenas uma
93). entre as muitas vozes na multidão” (CABRAL,
A esfera pública para Habermas (2014) 2014, p. 32-33). As funções exclusivas da Igreja
é plural, porque existe diversidade essencial para relacionadas a “educação, saúde, alívio da
o aprendizado e contribuição das instituições pobreza – foram delegadas ao Estado”, o que não
mutuamente. Na esfera pública não são apenas as a impede de prestar tais serviços, desde que haja
instituições estatais que interferem diretamente, “regulamentação e autorização estatal”

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em plenária no período de 2013 a 2016
, Porto Alegre, n. 40, p. 131-153, ago. 2019.
140

(CABRAL, 2014, p. 32-33). 153).


Essas funções sociais e morais que Sendo assim, tanto a participação de
envolviam o poder da Igreja para auxiliar a vida cidadãos religiosos quanto cidadãos seculares
das pessoas deixaram de existir com a são imprescindíveis para o deslinde da vida
neutralidade das instituições do Estado, o que pública e das decisões políticas. A ressalva em
favoreceu as organizações e cidadãos religiosos a relação aos cidadãos religiosos é quanto à
procurarem outras formas de participar da vida presença destes no âmbito da esfera pública
pública, seja pela presença de representantes formal, visto que neste local suas opiniões e
parlamentares no Congresso Nacional, seja pela decisões devem respeitar a condição para o uso
realização de discussões no âmbito privado das público da razão de cidadãos religiosos, não
instituições religiosas, com o intuito de havendo, portanto, possibilidade de um
influenciar a formação da opinião pública. indivíduo religioso fazer parte de uma instituição
Desse modo, a participação de cidadãos pública e utilizar-se de fundamentos
religiosos na esfera pública é de grande exclusivamente religiosos para tomar decisões
contribuição, uma vez que, no âmbito da esfera políticas.
pública formal – composta pela administração
pública, parlamentares, chefes de Estado, etc. – 1.3 Uso público da razão de representantes
há um número restrito de componentes religiosos
responsáveis pelas decisões políticas e que,
muitas vezes, não dialogam ou problematizam Ao tratar da religião na esfera pública,
assuntos que já são amplamente difundidos no Habermas (2007b) adota o pensamento pós-
âmbito da esfera pública informal – associações, metafísico que é ao mesmo tempo agnóstico e
instituições privadas, clubes, igrejas, escolas, etc. receptivo com a religião, desde que a mesma não
Assim, tem-se que a esfera pública informal comprometa a autocompreensão secular
“reage às decisões das instituições ou (ARAÚJO, 2009, p. 166), pois defende a
problematiza temáticas que até o momento não mediação com relação ao uso público da razão, à
foram consideradas pelas instituições, medida que não deve prevalecer, tão somente, a
provocando uma reação das próprias instituições, utilização de argumentos seculares, nem
as quais ou reveem ou tomam novas decisões tampouco só os discursos de fundamentos
sobre novas temáticas” (PINZANI, 2009, p. religiosos quando existir discussões acerca das
152). questões de justiça ou que envolvam decisões
Assim, os cidadãos seculares e direcionadas à coletividade.
religiosos, ao debaterem assuntos no âmbito da As críticas filosóficas de Habermas
esfera pública informal, estão contribuindo para (2007b) ao uso público da razão são contrárias
a formação da opinião pública e influenciando na ao que John Rawls determina aos cidadãos
formação política, visto que as instituições religiosos, isso porque Rawls (2008) defende que
formais reagem a esses questionamentos, os cidadãos só podem utilizar argumentos
demonstrando a democratização do poder que baseados na razão pública para fundamentar suas
“ocorre somente quando o fluxo comunicativo escolhas e decisões no espaço político, enquanto
entre cidadãos e instâncias decisórias autorizadas que, para Habermas, tal determinação é
se torna um fluxo de poder no qual o poder inadequada em razão de dois argumentos: o
político informal e institucionalizado entram em desperdício cognitivo e a desigualdade moral.
uma relação de feedback” (PINZANI, 2009, p. Com relação ao argumento do

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desperdício cognitivo, segundo Habermas secularização de seus argumentos para que eles
(2007b), o Estado não pode impedir as doutrinas pudessem efetivamente participar das discussões
religiosas de manifestarem suas convicções na sobre a vida pública.
esfera pública, porque estas são fontes de Dessa maneira, para Habermas (2007b),
instituições morais que ainda não passaram por é possível a utilização de argumentos religiosos
um processo de racionalização, de modo que tal na esfera pública, desde que estes passem por um
proibição pode privar os cidadãos do processo cooperativo, entre os cidadãos –
conhecimento dessas instituições morais que religiosos e seculares –, de tradução para uma
ainda não passaram para uma linguagem secular. linguagem universal, assim, os cidadãos
Isso significa dizer que o autor não religiosos devem se esforçar para traduzir seus
descarta a religião da esfera pública, uma vez argumentos a uma linguagem comum, enquanto
que os argumentos religiosos podem ser uma que os cidadãos seculares precisam se empenhar
forma de aprendizado moral, mesmo que eles em compreender e interpretar os argumentos
ainda não estejam fundamentados sob uma religiosos. Assim, não haveria uma desigualdade
perspectiva racional, por exemplo, os dez entre eles no momento de participação da vida
mandamentos, que são concepções religiosas pública.
cristãs e que com o processo de secularização A não admissão de argumentos
possuem relação com os direitos humanos, religiosos na esfera pública, conforme afirma
porque as “tradições religiosas possuem poder de Habermas (2007b), é uma violação ao princípio
aglutinação especial no trato de intuições da igualdade entre os cidadãos, porque todos
morais” (HABERMAS, 2007b, p. 148), o que precisam ter iguais oportunidades de
propicia o aprendizado moral dos indivíduos da participação nas discussões políticas a respeito
sociedade quando esses conteúdos são da justiça. Sendo assim, caso houvesse a
“traduzidos para uma linguagem acessível em exclusão dos argumentos religiosos na esfera
geral” (HABERMAS, 2007b, p. 149). pública, o Estado estaria impondo uma restrição
Já o argumento da desigualdade moral aos cidadãos religiosos, que pautam os seus
afirma que, se houver a exclusão da religião na fundamentos sobre justiça em argumentos
esfera pública, a situação entre os cidadãos religiosos, pois estariam em uma situação
seculares – que não fundamentam suas prejudicial se comparados aos cidadãos
convicções a partir de religião – e os cidadãos seculares.
religiosos – que fundamentam religiosamente Além disso, o autor ressalta que existem
suas ideias – ficariam assimétrica, uma vez que, indivíduos que só possuem como linguagem e
quando houver discussão sobre justiça, os compreensão do mundo a sua religião, de modo
cidadãos seculares, por já disporem de que a exclusão dos argumentos religiosos
argumentos racionais, teriam seus argumentos acabaria por ocasionar com que estes indivíduos
aceitos sem muitos esforços, pois não nunca pudessem participar da vida pública, em
precisariam realizar a tradução deles. Contudo, desrespeito à igualdade de oportunidades de
com relação aos cidadãos religiosos, por participação na vida pública.
utilizarem argumentos religiosos, teriam estes Por conta disso, e em conformidade
rejeitados, a menos que realizassem o processo com o princípio da neutralidade estatal,
de tradução deles para uma linguagem secular Habermas (2007b) esclarece que há uma
pública. Dessa forma, seria um fardo assimétrico separação existente entre a esfera pública
impor aos cidadãos religiosos a exigência de informal e a esfera pública formal. A esfera

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pública formal é composta por parlamentares, formal, já que nesta só é cabível a presença de
membros do governo e da administração, e nesta argumentos que estejam nos moldes da
só cabe o uso de argumentos laicos, por isso o neutralidade, exigência esta “necessária para
autor defende que a tradução cooperativa dos uma garantia simétrica da liberdade de religião”
argumentos deve ser realizada, anteriormente, na (HABERMAS, 2007b, p. 145).
esfera pública pré-parlamentar (HABERMAS,
2007b, p. 149), que corresponde à esfera pública 1.4 Representantes religiosos na política
informal, composta pelos membros da sociedade, brasileira
instituições privadas, igrejas, etc.
O uso apenas de argumentos seculares, No ano de 1987, a Assembleia
incluídos os argumentos religiosos que passaram Constituinte para elaboração da Constituição
pelo processo de tradução cooperativa, que não Federal de 1988 contou com a presença de 34
favorecem argumentos de doutrinas religiosas parlamentares evangélicos, do total de 559
específicas, tem o sentido de cumprimento da constituintes, o maior número de representantes
neutralidade estatal, porque adota postura neutra, deste segmento religioso na política neste
esperada pelas diversas visões de mundo período, cuja “influência evangélica exerceu
presentes na sociedade. pressão de forte „pedigree conservador‟”, na
Tal limitação feita, de que somente os elaboração da Constituição Federal (CABRAL,
argumentos que estiverem em uma linguagem
2014, p. 33).
secular podem ser proferidos no âmbito da esfera
pública formal, não deve ser vista como uma Discursando em nome da maioria, os políticos
forma de escamotear os argumentos religiosos, evangélicos lutaram na constituinte contra o
porque a intenção de Habermas é demonstrar que aborto, o jogo, os direitos dos homossexuais, o
todos os cidadãos, sejam eles seculares ou feminismo, a pornografia, a liberação do
divórcio e dos métodos contraceptivos e a
religiosos, devem e podem fazer parte da vida favor da censura de costumes na TV, no rádio,
pública, desde que todos aceitem as regras da no cinema e em espetáculos. Além disso, eram
laicidade, submetendo seus argumentos de favoráveis à educação religiosa nas escolas e
maneira secular, para serem amplamente pelos meios de comunicação (CABRAL, 2014,
p. 42).
discutidos e aprovados ou não no âmbito
público.
A partir desse momento, grupos de
O interesse do autor não está na
evangélicos passaram a ocupar o espaço público
intenção que motivou determinado argumento,
relevante na política brasileira, pois suas
mas tão somente na maneira como esse
atuações significaram aumento de parlamentares
argumento foi publicamente demonstrado. Se
no decorrer dos anos. O grupo de católicos
este se encontra nos moldes da laicidade, com
concorrendo ao cargo político, na década de
justificativas racionais, apesar da motivação
religiosa, ele está dentro do que é desejável para 1990, também cresceu, ainda que contrários às
a laicidade. Caso este argumento, de motivação determinações do Vaticano, que aconselhava os
religiosa, tenha se manifestado externamente de membros da Igreja católica a manterem-se
modo a não ter superado a sua motivação, ou afastados da política. Conforme afirma Mariano
seja, se nele estiver presente, expressamente, os (2011), o Vaticano desejava que os católicos se
ideais e as justificativas religiosas, ele deve ser manifestassem de maneira indireta à política,
desconsiderado no âmbito da esfera pública sem estimular a presença de seus membros na

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vida pública do país. Nesse sentido, afirma bancadas passam a tomar decisões políticas
Mariano (2011, p. 249) que: pautando-se em fundamentos religiosos, isso
porque, conforme mencionado anteriormente,
No campo político por meio do lobby da compete aos agentes públicos (juízes,
CNBB, da pressão direta de lideranças parlamentares, chefes de estado, etc.), que fazem
católicas sobre parlamentares e dirigentes
parte da esfera pública formal, tomar decisões
políticos, da realização de parcerias com os
poderes públicos, da vocalização e da pautadas em argumentações racionais, sejam elas
publicização de seus valores religiosos. genuinamente seculares ou que tenham passado
pelo processo de tradução cooperativa, nos
As articulações entre católicos e moldes da teoria habermasiana.
evangélicos no âmbito da política brasileira Essa violação é evidenciada por
passaram a determinar os passos da democracia intermédio da participação de alguns
no país, o que abriu espaço para a discussão a parlamentares que compõem a popularmente
respeito dos limites da participação da religião chamada “bancada evangélica” – a qual busca
na esfera pública, ainda que a Constituição representatividade política à classe que
Federal de 1988 disponha de uma nação laica, representa através de uma atuação conservadora
sem uma religião oficial. com relação às questões políticas que esbarrem
O âmbito político brasileiro é dividido no âmbito religioso –, uma vez que por meio das
em grupos de interesses, que buscam assegurar pesquisas realizadas visualizaram-se
questões políticas e ideológicas específicas de determinadas atuações políticas de deputados
classes, o que é possivelmente evidenciado no que fazem parte desta Frente Parlamentar que
Congresso Nacional, por meio das Frentes violaram o princípio da laicidade estatal, previsto
Parlamentares, as chamadas “bancadas de na Constituição Federal brasileira.
interesses”. Cada frente parlamentar é composta Ocorre que antes de adentrar na análise
por deputados e senadores que visa a um dos documentos obtidos, é necessário ressaltar
objetivo comum, uma discussão específica a que há certo questionamento por parte da
respeito de temas determinantes. Atualmente, sociedade brasileira acerca de a existência de
ano de 2017, na 55º Legislatura, existem cerca parlamentares e bancadas de interesses com
de 270 Frentes Parlamentares direcionadas a denominações religiosas estar por si só violando
variados assuntos (BRASIL, 2016c). a laicidade desejável ao Estado. Partindo-se da
Dentre as bancadas existentes, dá-se análise habermasiana de que a sociedade é plural
destaque à Frente Parlamentar Evangélica – e de que deve haver isonomia entre os cidadãos
composta por 203 deputados e 4 senadores – e à com relação à discussão sobre questões de
Frente Parlamentar Católica – composta por 214 justiça social e, consequentemente, da vida
deputados e 5 senadores (BRASIL, 2016c). A pública, é possível afirmar que a existência de
existência de tais bancadas não viola os preceitos tais Frentes Parlamentares, bem como a presença
democráticos, uma vez que a democracia de pessoas religiosa no meio público, não fere a
comporta o pluralismo e a diversidade cultural e laicidade desejável ao Estado.
religiosa, devendo existir o diálogo entre os Dessa maneira, apesar da atuação de
interesses das diversas classes da sociedade. alguns deputados ferir a laicidade estatal, a
Ocorre que há violação ao princípio da existência de Frentes Parlamentares religiosas
neutralidade estatal no momento em que não viola a neutralidade das instituições do
parlamentares que compõem ou não essas Estado, ao contrário, corrobora a ideia de que em

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um Estado Democrático de Direito todos os A inferência permitiu que


cidadãos são iguais e possuem as mesmas examinássemos temas frequentes nos
oportunidades entre si de participar da vida documentos, comparando-os com teorias e com
pública, sem que haja repressões ou outras pesquisas, para sustentar os dados ou para
discriminações em razão de sua opção religiosa. refutá-los. Assim, seguimos com a técnica da
Já com relação à atuação dos análise do conteúdo para a seleção dos eixos de
parlamentares, a partir da análise dos análises originados da descrição das inferências,
documentos retirados do site da Câmara dos que proporcionaram a resposta aos
Deputados, evidenciou-se que os deputados que questionamentos da atuação neutral dos
compõem as Frentes Parlamentares religiosas parlamentares, de modo que, para uma melhor
possuem duas posturas diferentes: 1) se compreensão e análise deles, foram feitos dois
posicionam de maneira não neutral ao realizarem quadros: um composto por projetos de lei e
discursos em plenária, evidenciando suas crenças excertos das justificativas de propositura do
e segmentos religiosos; e 2) respeitam as regras referido projeto e outro contendo discursos em
da laicidade e neutralidade ao propor projetos de plenária e trechos de falas dos parlamentares, a
lei, os quais, por mais que sejam motivados fim de que se identifique, nas justificativas e
religiosamente, são compostos por argumentos falas, o cumprimento ou não do princípio da
racionais. neutralidade das instituições.
Conforme descrito na introdução, o A partir disso foi possível realizar
levantamento dos documentos se deu por buscas quadros comparativos da atuação dos
no próprio site da Câmara dos Deputados através parlamentares, utilizando-se os documentos
do uso de palavras-chave tais como aborto, obtidos, conforme cada modo de atuação
Deus, família, homoafetivos. A partir desse anteriormente mencionado para evidenciar que,
mecanismo de busca selecionou-se ao todo 14 apesar da esfera pública formal ser um ambiente
documentos, sendo sete discursos em plenária e onde as discussões precisam ser racionais, ainda
sete projetos de lei, um quantitativo que atendia há o uso de argumentações baseadas em crenças,
ao objeto de pesquisa. Desses 14, foram fato este que resulta na violação ao princípio da
selecionados sete documentos, sendo três neutralidade estatal, tendo como consequência a
discursos em plenária e quatro projetos de lei. descrença da sociedade quanto à laicidade do
Esses sete documentos receberam o tratamento Estado.
da técnica da análise de conteúdo, porque são os Dessa maneira, o quadro 1 demonstra os
que efetivamente abordam as decisões e posturas discursos em plenária dos deputados federais, os
tomadas pelos parlamentares acerca da religião, quais violam a laicidade estatal ao pronunciar no
da tolerância e da postura do Estado diante das âmbito da esfera pública formal opiniões dotadas
visões de mundo. de teor religioso.

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Quadro 1: Discursos em plenária


Nome do Tipo do
Data Sumário/Ementa Presença do discurso religioso
parlamentar documento

“Por isso, convoco que cada cristão e


cristã, homem e mulher de boa
vontade, na legitimidade que possui
Divulgação do artigo
como cidadãos brasileiros e partindo de
“Escolhe, pois, a vida”, de
João Campos sua área de atuação e competência,
Discurso autoria de Dom Washington
20/12/2016 manifestem a sua parcela de
(PRB-GO) em plenária Cruz, Arcebispo de Goiânia,
contribuição em defesa da vida. Que o
sobre posição contrária ao
Senhor nos anime neste bom propósito,
aborto.
para que não sejamos omissos diante
da morte que se deflagra sobre aqueles
que sequer podem reagir”.

“Sr. Presidente, sabemos que existe


justiça terrena, mas também existe
justiça divina. Ai daqueles que
Contrariedade à decisão do tomarem decisões que venham
Pastor Supremo Tribunal Federal prejudicar ou causar um mal desta
Eurico Discurso
30/11/2016 de descriminalização do natureza, principalmente uma afronta à
em plenária
(PHS-PE) aborto até o terceiro mês de vida, tal qual foi esta decisão do STF!
gestação Temo por esta decisão dos juízes do
STF. Talvez eles respondam não diante
de nós, mas diante de Deus, pela
arbitrariedade que estão praticando”.

Nota de protesto da Frente


Parlamentar Evangélica, da
Frente Parlamentar Católica “Conclamamos todos os cristãos do
e da Frente Parlamentar em Brasil a intercederem em oração e a
Frente
Defesa da Vida e da Família incentivarem suas comunidades a se
Parlamentar Discurso
30/11/2016 contra decisão da Primeira manifestarem contrariamente à
Evangélica e em plenária
Turma do Supremo Tribunal liberação do aborto no Brasil, unindo
Católica
Federal – STF sobre a forças em prol das iniciativas que
descriminalização do aborto visem colocar fim a esta situação”.
até o terceiro mês de
gestação.

Fonte: Brasil (2016a, 2016b, 2016d).

Os discursos analisados dos documentos pelo fato de que, a partir desse julgado, os
da fala em plenária foram motivados pela recente demais tribunais do país podem utilizar do
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão e criar precedentes judiciais que
que, no julgamento do Habeas Corpus 124.306, autorizem a realização de interrupções de
determinou ser possível a interrupção da gravidez, sem considera-las como prática
gravidez até o terceiro mês da gestação, sem que abortiva, o que, dependendo da proporção, pode
essa prática seja considerada aborto. gerar manifestação social para que haja a
A grande repercussão da decisão se deu regulamentação legislativa de descriminalização

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do aborto, matéria polêmica no Congresso Nos pronunciamentos feitos pelos


Nacional e raramente colocada em pauta, em deputados evidenciou-se a indignação dos
virtude das questões morais e religiosas que mesmos à decisão do Supremo Tribunal Federal,
envolvem essa discussão. de modo que eles utilizaram a plenária, local de
Os discursos em plenária indicam a discussão sobre assuntos de relevância coletiva,
presença do discurso religioso articulado à para clamar àqueles que possuem o mesmo
atuação dos membros da Câmara dos Deputados, entendimento religioso que eles a se
que utilizam suas crenças para desconsiderar a posicionarem em contrariedade à decisão.
decisão tomada pelo STF. Assim, vislumbra-se o Isto é, eles utilizaram a plenária para
caráter conservador dessa ideologia e quanto manifestar insatisfações, bem como chamar a
pode agir no intuito de postergar a análise de população brasileira que também é contrária às
assuntos como o aborto no âmbito legislativo, práticas do aborto a se posicionarem em desfavor
por estes colidirem com as crenças religiosas dos da decisão tomada. Então, os parlamentares
parlamentares. optaram por “conclamar todos os cristãos do
A decisão do STF provocou a Brasil” e “convocar todos os cristãos” para que
mobilização das Frentes Parlamentares contribuíssem com o direito à vida. Ainda,
mencionadas no Congresso Nacional para Frentes Parlamentares Católicos e Evangélicos
acelerar a inclusão do projeto de Lei nº se manifestaram repudiando a decisão do STF e
478/2007, denominado Estatuto do Nascituro, na requerendo auxílio dos cristãos para uma
pauta de julgamentos da casa legislativa. Esse corrente de orações para que o aborto não seja
projeto de lei prevê a regulamentação da legalizado no Brasil.
proteção ao nascituro desde a concepção, ainda Diante do exposto é possível evidenciar
que as leis ordinárias do país prevejam direitos a que os discursos proferidos em plenária pelos
ele, todavia o objetivo deste estatuto é ampliar o parlamentares com relação à decisão do STF,
rol de direitos e compeli-los em única lei. que tratou do aborto, foram pronunciamentos
O Estatuto do Nascituro de 2007 dotados de ideologia religiosa. Deste modo, em
recebeu críticas por parte da sociedade, pois desacordo com o pensamento pós-metafísico
prevê a criminalização do aborto em qualquer defendido por Habermas (1997), que dispõe que
circunstância, inclusive nos casos em que a a razão comunicativa é o resultado da superação
mulher é vítima de violência sexual, hipótese em das visões de mundo, tal como a religião para
que, atualmente, pode existir a interrupção da explicar os fenômenos da vida.
gravidez sem que o ato seja considerado crime Assim, no momento em que os
de aborto. Além disso, a Frente Parlamentar parlamentares utilizam a esfera pública formal
Evangélica clamou pela inclusão do Projeto de para pronunciar fundamentos religiosos,
Emenda Constitucional nº 164 de 2012 na pauta conforme se conclui da teoria habermasiana,
de julgamento da Comissão de Constituição e estão violando o princípio da neutralidade estatal
Justiça, a fim de que a inviolabilidade à vida seja e, consequentemente, descaracterizando a
reconhecida desde a concepção, isto porque, no laicidade do Estado, pois utilizam o ambiente
ordenamento jurídico brasileiro, há divergências político e público para justificar decisões e
teóricas a respeito do início da vida, aplicando-se opiniões com base na religião.
a teoria naturalista, de que só têm direitos e Do contrário, o quadro 2 mostra que os
personalidade jurídica aqueles que nascem com deputados, ao elaborarem seus projetos de lei ou
vida. projetos de decreto legislativo, utilizam-se de

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argumentos racionais para que suas propostas criação do projeto tenha sido por alguma crença
sejam discutidas amplamente, de acordo com as religiosa.
regras da laicidade, embora a motivação da

Quadro 2: Projetos de lei


Tipo do
Nome do
docu- Data Sumário/Ementa Presença de argumento racional
parlamentar
mento
Altera o art. 3º da Lei nº
9.394, de 20 de dezembro
“Somos da opinião de que a escola, o
de 1996. Explicação:
currículo escolar e o trabalho pedagógico
Inclui entre os princípios
realizado pelos professores em sala de aula
do ensino o respeito às
não deve entrar no campo das convicções
Erivelton PL convicções do aluno, de
pessoais e valores familiares dos alunos da
Santana 7.180/ 24/02/2014 seus pais ou responsáveis,
educação básica. Esses são temas para serem
(PSC-BA) 2014 dando precedência aos
tratados na esfera privada, em que cada
valores de ordem familiar
família cumpre o papel que a própria
sobre a educação escolar
Constituição lhe outorga de participar na
nos aspectos relacionados
educação dos seus membros”.
à educação moral, sexual e
religiosa.
Susta o Decreto nº 8.727, “A bem da verdade, a matéria atinente a
de 28 de abril de 2016, que nomes, sua alteração ou abreviatura encontra
"Dispõe sobre o uso do lugar adequado em lei ordinária federal,
nome social e o como, por exemplo, no art. 29, § 1º, “f”, da
Pastor Eurico PDC reconhecimento da na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
(PHS-PE) e 395/ 18/05/2016 identidade de gênero de Em outras palavras, o tema deve ser tratado
outros 2016 pessoas travestis e em nível de lei federal e não de decreto, isto
transexuais no âmbito da é, o âmbito normativo de iniciativas dessa
administração pública natureza, vez que é matéria reservada à lei
federal direta, autárquica e ordinária (art. 59, III, da
fundacional. Constituição Federal)”.
“Em vista destas constatações, percebe-se
que o sistema jurídico brasileiro encontra-se
mal aparelhado para enfrentar semelhante
ofensiva internacional, contrária aos desejos
Tipifica como crime contra da maioria esmagadora do povo brasileiro,
Eduardo a vida o anúncio de meio que repudia a prática do aborto, conforme
PL
Cunha abortivo e prevê penas verificado pelas mais diversas pesquisas de
5.069/ 27/02/2013
(PMDB-RJ) e específicas para quem opinião. Trata-se, ainda, de garantir a
2013
outros induz a gestante à prática máxima efetividade às normas
de aborto. constitucionais, que preceituam a
inviolabilidade do direito à vida. Urge,
portanto, uma reforma legislativa que
previna a irrupção de um sério problema de
saúde pública”.
“A família vem sofrendo com as rápidas
Anderson PL Dispõe sobre o Estatuto da mudanças ocorridas em sociedade, cabendo
Ferreira 6.583/ 16/10/2013 Família e dá outras ao Poder Público enfrentar essa realidade,
(PR-PE) 2013 providências. diante dos novos desafios vivenciados pelas
famílias brasileiras”.
Fonte: Brasil (2013a, 2013b, 2014, 2016).

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Os documentos analisados referem-se a Assim, eles respeitaram a ideia de que


projetos de leis que obtiveram grande comoção não importa se a motivação que os fez assumir
social, em razão de tratarem sobre assuntos certa postura ao debater os assuntos foi religiosa,
polêmicos, uma vez que põem frente a frente a mas tão somente a capacidade que eles tiveram
moral e o interesse social. Dessa maneira, os de expor suas opiniões através de argumentos
temas abordados – Escola Sem Partido, nome racionais, colocando tais ideias em uma
social para travestis e transexuais, aborto e a discussão racional e laica, uma vez que eles
criação de um Estatuto da Família – são assuntos mantiveram a neutralidade das instituições
que há anos geram polêmicas no meio político- estatais ao demonstrarem argumentos racionais
social, visto que a sociedade possui visões e/ou traduzidos no âmbito da esfera pública
divergentes a respeito do assunto e, dependendo formal.
da posição adotada pelos parlamentares diante Em contraponto ao verificado na análise
destas questões, eles podem sofrer consequências dos discursos em plenária, a argumentação
irreversíveis, da perspectiva de suas futuras utilizada pelos Deputados Federais no momento
candidaturas; isso porque os membros do Poder da propositura de projetos de lei é totalmente em
Legislativo estão sujeitos ao controle das uma linguagem universal e racional, muito
maiorias, uma vez que são dependentes do apoio embora a motivação para a elaboração dos
majoritário para conseguirem se reeleger e projetos possa ter a presença da crença religiosa.
manter certa credibilidade com seus eleitores. Essa postura é a desejável em um
Portanto, o Legislativo segue a lógica Estado Democrático plural, que resguarda a
majoritária, preocupa-se com a vontade dessas liberdade religiosa e defende a neutralidade das
maiorias. instituições estatais, pois, por meio do uso da
Assim, diante de assuntos como esses a linguagem acessível a todos, será possível que os
atuação dos parlamentares é de apoio aos parlamentares crentes e não crentes consigam
assuntos, de não apoio ou de omissão. Com efetivamente dialogar acerca da pretensão dessas
relação à polêmica no âmbito social, aqueles que pautas ao interesse da coletividade.
são críticos desses projetos de lei, rotulados Conforme dispõe a teoria habermasiana,
como conservadores, almejam que a atuação todas as decisões políticas precisam ser
legislativa vá de encontro aos avanços da formuladas em uma linguagem universal, sem
sociedade e alheia às crenças religiosas de um que se tome partido por alguma visão de mundo
determinado número de pessoas da sociedade. (HABERMAS, 2007b), haja vista que “o
Sendo assim, da análise dos excertos procedimento democrático extrai sua força de
retirados das justificativas dos projetos de lei, legitimação de seu próprio caráter deliberativo e
verifica-se que, apesar da reprovação social pela da inclusão de todos os participantes [...]”
postura adotada pelos parlamentares que (HABERMAS, 2007b, p. 152).
elaboraram e apoiaram os projetos acima Nesse sentido, apesar de termos
mencionados, os parlamentares exerceram selecionado projetos de lei que discutam temas
corretamente, conforme a teoria habermasiana, o que causam grande impacto no âmbito da
papel deles ao colocar em pauta de discussão coletividade por conta da necessidade de se
política tais temas, utilizando-se de argumentos debater sobre eles versus as questões morais que
racionais, embora os deputados deixem evidente os envolvem, dentre elas os valores religiosos, os
ao público suas opiniões pessoais e religiosas deputados federais conseguiram cumprir com a
quanto ao assunto. neutralidade das instituições do Estado ao

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proporem Projetos de Lei em defesa de seus Assim, no momento em que há a


ideais, motivados ou não por suas crenças, de discussão sobre determinado assunto relevante
maneira a expor as suas razões por meio da para a sociedade e que envolva questões morais e
linguagem secular e universal. políticas, os parlamentares não se afastam dos
Isso posto, percebe-se que, em face da discursos religiosos oriundos de suas crenças,
dualidade de atuação dos deputados, eles se como foi possível visualizar através dos
sentem mais livres para expressar suas opiniões discursos em plenária. Ocorre que esta postura
religiosas no âmbito dos discursos em plenária viola a neutralidade das instituições estatais,
em vez de demonstrá-las em seus projetos de lei. conforme a teoria habermasiana, pois o ideal é
Deste modo, supõe-se que os próprios que haja a tradução cooperativa desses
parlamentares desconhecem a maneira de argumentos, com a devida superação da
atuação desejável no âmbito da esfera pública fundamentação religiosa por meio de argumentos
política, isso porque as plenárias fazem parte racionais, embora a motivação pela crença esteja
desse ambiente formal e, consequentemente, só presente, dessa maneira o âmbito da esfera
aceitam argumentos racionais, sejam eles pública formal estaria livre de decisões ou
originários ou traduzidos. Assim, acredita-se que opiniões que violam as regras da laicidade.
os parlamentares violam a neutralidade das Além disso, no momento em que os
instituições estatais sem conscientemente deputados falam livremente, no ambiente
perceberem que a estão violando, e isso gera público, que seus atos são praticados a partir de
uma desconformidade ao que dispõe o sentido de suas crenças religiosas, eles acabam por inflamar
laicidade da teoria habermasiana. a sociedade, que passa a desacreditar da
Ademais, observa-se que a rejeição de importância do princípio da laicidade estatal, o
parte da sociedade pela presença das Frentes que provoca uma visão negativa do poder
Parlamentares religiosas está ligada ao modo de político. Ademais, os discursos em plenária
atuação dos membros destas, visto que o povo, proferidos pelos parlamentares têm por
em parte, discorda das opiniões pessoais dos consequência a violação de direitos
deputados, embora desconheça que tais ideais fundamentais da coletividade, a partir das falas
foram transformados em argumentos racionais discriminatórias que cercam os discursos.
no momento de propositura de uma lei voltada à Apesar disso, no momento de executar
sociedade. as funções políticas que lhes cercam, os
parlamentares respeitam as regras da laicidade e,
CONCLUSÃO ao elaborarem legislações que serão aplicáveis a
toda coletividade caso aprovadas, utilizam-se de
Os documentos analisados evidenciam a argumentos racionais, colocando-os em uma
dualidade presente no âmbito da esfera pública base de discussão racional, tal qual é a desejável
política brasileira, de modo que há, ao mesmo pela teoria habermasiana e importante para a
tempo, o respeito e o desrespeito ao princípio da manutenção do Estado Democrático. Desse
laicidade estatal presente na Constituição modo, apesar de suas crenças religiosas, os
Federal. Isso porque é possível identificar que deputados entendem que, ao se tratar de normas
nos discursos em plenária é forte a presença da que envolvem a sociedade, é necessária que a
religiosidade, enquanto que nas justificativas de argumentação seja em uma linguagem comum,
criação de projetos de lei, verifica-se a presença mesmo que por trás dessas fundamentações
de argumentos racionais. racionais esteja a motivação religiosa deles.

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Dessa maneira, um cidadão religioso minoritárias ficam vulneráveis socialmente


que tem uma crença como fundamento para diante do apoio, mesmo que indireto, do Estado a
pensamentos e iniciativas não pode ser excluído uma doutrina religiosa majoritária,
de participar da vida pública; no entanto, é caracterizando, assim, uma expressa violação da
essencial que ele e os demais cidadãos religiosos liberdade de religião, do Estado laico e da
e seculares se adequem a um modo universal de igualdade entre cidadãos, o que tem como
diálogo sobre as decisões necessárias ao Estado, consequências a ocorrência de práticas de
conforme afirma Habermas (2007b). A tradução intolerância, preconceitos e desigualdades
cooperativa dos discursos a uma linguagem sociais, situações que não devem ser visualizadas
universal, no âmbito da esfera pré-política, seria em uma sociedade plural e democrática.
o modo mais justo de manter todos os cidadãos, Assim, vislumbra-se que, apesar de um
independentemente de sua crença ou da falta Estado oficialmente laico, o Brasil possui relatos
dela, participando das decisões estatais. de interferência das crenças religiosas
Esse discurso ideológico é uma postura majoritárias no âmbito da esfera pública política,
adotada pelos políticos que viola a neutralidade ferindo, portanto, a neutralidade das instituições
estatal, abre margem para as práticas de do Estado e a laicidade declarada na
intolerância religiosa, visto que as classes Constituição Federal de 1988.

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Recebido em: 25/09/2017


Aceito em: 14/12/2018

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