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Estado Laico e Religião: uma análise da atuação política do Congresso Nacional a partir de projetos de lei e discursos
em plenária no período de 2013 a 2016
, Porto Alegre, n. 40, p. 131-153, ago. 2019.
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Estado Laico e Religião: uma análise da atuação política do Congresso Nacional a partir de
projetos de lei e discursos em plenária no período de 2013 a 2016
Secular State and Religion: an analysis of the political action of the National Congress based on bills
and speeches in plenary sessions between 2013 and 2016
REFERÊNCIA
VERBICARO, Loiane Prado; SIMÕES, Paloma Sá Souza. Estado Laico e Religião: uma análise da atuação política do
Congresso Nacional a partir de projetor de lei e discursos em plenária no período de 2013 a 2016. Revista da
Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 40, p. 131-153, ago. 2019.
RESUMO ABSTRACT
O artigo tem como objetivo de estudo a presença da The article aims to study the presence of religion in bills
religiosidade nos projetos de lei e discursos em plenária and speeches in plenary sessions delivered by federal
proferidos por deputados federais, no período de 2013 a deputies, from 2013 to 2016, in order to highlight if such
2016, com intuito de evidenciar se tal influência religiosa religious influence wounds state secularism. This work
fere a laicidade estatal. O trabalho propõe-se a explicar a intends to explain the importance of religious citizens’
importância da participação de cidadãos religiosos na vida participation in the public life, so that their presence does
pública, de modo que a presença deles não desconstitua a not abolish the neutrality of the state institutions. The
neutralidade das instituições estatais. A pesquisa é de research is bibliographical, using author Jürgen
cunho bibliográfico, utilizando como referencial teórico o Habermas’ body of work as theoretical reference, and
autor Jürgen Habermas, e documental, a partir da análise documentary, based on the analysis of bills and speeches
de projetos de lei e discursos em plenária obtidos no site in plenary obtained on the Chamber of Deputies’ website.
da Câmara dos Deputados. Propõe-se o trabalho a The paper proposes to demonstrate the dual position
demonstrar a postura dual adotada pelos parlamentares adopted by parliamentarians when it comes to the
quando se trata de declaração da opinião religiosa em seus declaration of religious opinion in their speeches versus
discursos versus a argumentação utilizada por eles no the arguments used by them at the moment of creation of
momento de criação das legislações aplicáveis à statutes applicable to community, emphasizing respect
coletividade, ressaltando o respeito ou não à laicidade do towards state secularity or the lack thereof.
Estado.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Filosofia Política. Laicidade. Religião. Câmara de Political theory. Secularity. Religion. Brazilian Chamber
Deputados. of Deputies.
SUMÁRIO
Introdução. 1. Tolerância, garantia da existência do Estado Democrático e liberdade religiosa. 1.1. Neutralidade de
instituições e laicidade estatal. 1.2. Religião na esfera pública e participantes religiosos. 1.3. Uso público da razão de
* Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade de Salamanca (2014), Mestre em Direitos Fundamentais e Relações
Sociais pela Universidade Federal do Pará (2006), Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Pará
(2011), Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará - suma cum laude (2004), Coordenadora do Curso de
Direito do Centro Universitário do Pará, Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Direito do Centro Universitário do Pará. Atualmente cursa Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Pará. É
líder do grupo de pesquisa: Democracia, Poder Judiciário e Direitos Humanos.
**
Aluna do Curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará – CESUPA, ex-monitora bolsista de Introdução
ao Estudo do Direito, bolsista da Iniciação Científica PIBICT e integrante do Grupo de Pesquisa (CNPQ): Democracia,
Poder Judiciário de Direitos Humanos.
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forma como as crenças religiosas são apropriadas dessa busca, foi possível localizar projetos de lei
para induzir regras no âmbito de uma sociedade e discursos em plenária em que se identificou a
democrática, bem como mostrar os discursos presença ou ausência do uso da religião como
políticos pautados em justificativas religiosas, fundamento das falas ou justificativas dos
que violam a doutrina da neutralidade estatal e os projetos de lei.
direitos fundamentais dos cidadãos. A partir da delimitação do problema de
Dessa maneira, a pesquisa é relevante pesquisa e do objetivo central estabelecido, a
para que se possa analisar se os representantes pesquisa desenvolve a importância da tolerância
políticos da sociedade brasileira estão exercendo como garantia de existência do Estado
suas funções públicas em conformidade com o Democrático e da liberdade religiosa, de modo a
preceito constitucional da laicidade estatal. Além expor como as mudanças na concepção de
disso, o estudo feito é relevante para que se tolerância foram necessárias para a proteção do
possa evidenciar se a ideia de Estado laico direito à liberdade religiosa, diante do pluralismo
permite a presença de cidadãos religiosos no de visões de mundo em uma sociedade plural,
ambiente político. complexa e democrática.
Diante disso, os questionamentos a Logo em seguida, discorre-se sobre a
serem respondidos sobre o contexto político ideia de neutralidade das instituições estatais e
brasileiro, com base na teoria habermasiana, são: qual a sua relação com a laicidade, fazendo-se,
(a) cidadãos religiosos podem fazer parte da vida portanto, uma delimitação entre os conceitos de
pública? (b) A existência de bancadas religiosas neutralidade, laicidade, estado laico e laicismo.
fere a laicidade estatal? (c) Os discursos em Após, desenvolve-se a concepção habermasiana
plenária e projetos de lei pronunciados pelos da relação entre religião e a esfera pública, bem
parlamentares estão em conformidade com o como o uso público da razão de representantes
princípio do Estado laico presente na políticos religiosos. A partir da formulação
Constituição Federal? dessas ideias, parte-se para uma contextualização
Tais questionamentos serão respondidos da participação de parlamentares religiosos na
a partir da análise documental dos projetos de lei política brasileira e, então, inicia-se a análise dos
e discursos em plenária. Para a obtenção desse discursos em plenária e dos projetos de lei.
acervo documental, foram realizadas buscas no Assim, à luz da teoria habermasiana e
site da Câmara dos Deputados, o qual apresenta dos documentos obtidos no site da Câmara dos
janelas de pesquisa, de modo a realizar o Deputados, fez-se uma análise da relação entre
levantamento selecionado. A pesquisa utilizou-se religião e política, na sociedade brasileira, no
de três janelas, a saber: legislação, deputado e período compreendido entre os anos de 2013 a
discurso. O levantamento por meio da internet 2016, de modo a dar respostas aos
seguiu o critério do uso de palavras-chave tais questionamentos anteriormente levantados.
como religião, aborto, homoafetivos, estatuto da
família, Deus. 1 TOLERÂNCIA, GARANTIA DA
Além disso, o site oferece uma EXISTÊNCIA DO ESTADO
ferramenta de ordenação dos resultados DEMOCRÁTICO E LIBERDADE
encontrados por relevância ou por data, de RELIGIOSA
maneira que se utilizou a opção da data, pelo que
foi possível delimitar o período da pesquisa no A teoria do agir comunicativo de
triênio, entre os anos de 2013 a 2016. A partir Habermas (2013) afirma que a tolerância é um
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termo empregado historicamente na sociedade não buscam de modo razoável nem julgam
com a finalidade de garantir a coesão social, bem possível uma união na dimensão de convicções
como de tornar possível a convivência mútua conflitantes” (HABERMAS, 2007a, p. 290).
entre cidadãos com ideologias diversas no Nesse sentido habermasiano, não
âmbito social. existiria necessidade de se buscar o ato de
O termo tolerância, na Alemanha do tolerar, e, portanto, não haveria necessidade da
século XVI, muitas vezes utilizado para denotar tolerância se as pessoas fossem indiferentes
um preceito legal ou para determinar um tipo de quanto às práticas diversificadas dos demais
comportamento, palavra Toleranz, que no membros da sociedade ou se praticassem a
contexto da Reforma Protestante assumiu o alteridade, pois assim, não existiria rejeição das
significado limitado de aceitação religiosa, ao convicções dissonantes. Além disso, o termo
indicar “tanto a ordem legal que garante a para Habermas (2007a) só passa a fundamentar
tolerância, quanto a expectativa normativa do normas legais e comportamentais quando da
comportamento tolerante” (HABERMAS, 2013, existência de conflitos religiosos.
p. 2). Em virtude disso, a tolerância para
Sucedeu-se diferentemente da forma Habermas (2007a) não se confunde com a
utilizada na Inglaterra, entre os séculos XVI e indiferença por esta parecer superficial e por
XVII, cujo termo para “tolerância religiosa passa aquela não fazer parte de visões preconceituosas,
a ser um conceito de direto” (HABERMAS, uma vez que estas são inaceitáveis dentro de
2007a, p. 279), após governos publicarem éditos argumentações políticas (ARAÚJO, 2009, p.
de caráter obrigatório, que coagiam os cidadãos e 165). Contudo, a tolerância é essencial, visto
os Estados a praticarem a tolerância com as que, sob um ponto de vista funcional, tem por
minorias religiosas. “finalidade receptar a destrutividade social de
A tolerância religiosa caracteriza-se no um dissenso irreconciliável e permanente”
termo inglês tolerance como uma forma de (HABERMAS, 2007a, p. 291), ou seja, permite a
comportamento, e a palavra toleration refere-se coexistência e o respeito mútuo entre pessoas de
aos atos legais do Estado, que permitem aos uma comunidade com convicções divergentes.
cidadãos exercerem a religiosidade particular. A tolerância, portanto, não carrega o
Por outro lado, nos países de língua portuguesa, sentido de indiferença, porque pressupõe a
não existem divergências de significação para o reciprocidade entre os membros da comunidade,
uso da palavra tolerância, cujo sentido faz “não é apenas o espírito de abertura, de acolher a
referência a comportamento e preceito legal, diferença, o reconhecimento do outro, mas a
indistintamente (HABERMAS, 2013, p. 2). exigência endereçada ao outro de ele assumir
A tolerância para Habermas (2013) é para si as mesmas disposições [...] que
essencial para a cultura política liberal, por assumimos para nós mesmos” (ZARKA, 2012,
compreendê-la como uma virtude política p. 37).
necessária para que possam existir relações entre A aceitação do outro deve significar, no
pessoas diferentes; não apenas para alcançar meio social, amplo respeito às diversidades, não
generosidade e paciência para com a diversidade apenas a permissividade muitas vezes
cultural no campo social, mas “para além de uma caracterizada como esforço individual, mas
busca paciente da verdade, abertura, confiança concretamente ter o sentido de ações conjuntas,
mútua e de um sentido de justiça”. Para o autor, ou seja, o querer deve partir das partes
a tolerância deve ser solicitada “quando as partes interessadas. Assim, “a tolerância apresenta uma
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esse tipo de manifesto viola a liberdade de o autor discorre sobre separação entre esfera
expressão religiosa, bem como a liberdade de pública e privada compreendida nos dias atuais.
crença e consciência asseguradas a cada membro O limite entre as esferas pública e
da sociedade, pois, muitas vezes, decisões privada são tratadas por Habermas (2014) a
tomadas com base em argumentos voltados a partir da chamada esfera pública representativa,
resguardar a isonomia entre os sujeitos da cuja “representação no sentido de uma
sociedade, na verdade, são permeados por um representação da nação ou de determinados
discurso ideológico intolerante em relação a mandantes não tem nada a ver com essa esfera
grupos religiosos. pública representativa” (HABERMAS, 2014, p.
Desse modo, a neutralidade das 103). A esfera pública representativa passou por
instituições estatais defendida por Habermas mudanças históricas, políticas, sociais para
(2007b) é composta pelo princípio da laicidade, alcançar a estrita separação entre o âmbito
responsável pela regulamentação da postura do público e privado, ao se separar em um “sentido
ente público e, consequentemente, da garantia de especificamente moderno” (HABERMAS, 2014,
liberdade religiosa e igualdade entre os cidadãos, p. 109).
pois este é o objetivo do Estado religiosamente Assim, a sociedade moderna passou a se
neutro. Assim, o Estado neutral e laico se afasta adaptar à separação entre público e privado, pois
da ideia de laicismo, pois, diante da igualdade deixou de valorizar a figura das autoridades a
entre os indivíduos, estes não estão proibidos de partir do final do século XVIII, momento em que
expressarem suas manifestações religiosas no houve a dissipação da sociedade feudal e da
âmbito coletivo da sociedade, desde que o poder organização societária estamentada, já que abriu
público – e aqueles que exercem cargos públicos espaço para o aparecimento da esfera pública
– permaneça inerte em relação a qualquer uma representativa, fazendo com que existisse a
das visões de mundo. polarização destes membros, que antes eram
valorizados, em outras áreas da sociedade; ao
1.2 Religião na esfera pública e participantes final, esses se transformaram, por um lado, em
religiosos elementos privados e, por outro, em elementos
públicos, visto que a organização social de
Para a efetiva análise da influência das antigamente se dissipou e esses precisaram
religiões nos discursos políticos, faz-se ocupar outro espaço na sociedade.
necessário compreender a divisão de esferas Após o movimento de polarização,
existentes e identificar a existência de algum tipo Habermas (2014, p. 110) ressalta a posição
de relação direta entre elas. social da igreja, visto que esta se modificou “no
As discussões a respeito da concepção contexto da Reforma; a religião, que
de esfera pública, conforme esclarece Habermas representava o vínculo da igreja com a
(2014), existiu durante séculos nas sociedades, autoridade divina, passa a ser assunto privado. A
assim como os limites entre âmbito público e liberdade religiosa garante historicamente a
esfera privada. Para isso, realiza o autor uma primeira esfera da autonomia privada”.
análise histórico-social-política desde a A crescente divisão entre âmbito
Antiguidade, a partir da organização da público e privado se evidenciou com o
sociedade grega, passando pela Idade Média, desenvolvimento do capitalismo mercantil e o
com as relações entre os senhores feudais e seus aparecimento da classe burguesa, que favoreceu
súditos, até chegar às sociedades modernas, onde a origem da esfera pública do poder público, o
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qual “se objetiva da administração pública mas também aquelas que são independentes do
contínua e no exercício permanente” poder político-econômico e que influenciam na
(HABERMAS, 2014, p. 121). formação da opinião pública fora do poder
Assim, depreende-se que a esfera estatal, a exemplo, os clubes, as igrejas, as
pública, espaço aberto para diálogos, tem como associações, partidos políticos, etc.
seu sujeito “o público como portador da opinião Por isso, é essencial tratar a respeito da
pública” (HABERMAS, 2014, p. 94), portanto, é influência que as pessoas religiosas exercem na
um local com comunicação amplamente esfera pública com relação à contribuição de
praticada entre os membros da sociedade, por formação da opinião pública dos demais
meio da racionalidade, e se constitui pelo membros da sociedade, que participam
“princípio organizador de nossa ordem política” diretamente das instituições as quais promovem
(HABERMAS, 2014, p. 95). esses debates a respeito dos temas públicos, bem
A esfera pública não se confunde com como daqueles que, indiretamente, interessam-se
uma organização ou instituição, explica pelo discurso, seja pela publicidade ou por
Habermas (2014), visto que não regulamenta a diálogos entre grupos, que incluem em suas
estrutura, o modo e a ordem de manifestação das opiniões as questões debatidas.
pessoas em seu âmbito. Não deve, também, ser A interferência das instituições
vislumbrada como um espaço físico específico, religiosas no âmbito das questões políticas e
uma vez que é possível a existência de uma sociais na sociedade contemporânea não é um
esfera pública no meio virtual, por exemplo, fenômeno atual, porque “historicamente, papas,
sendo necessário apenas que exista presença do cardinais e clérigos exerceram vasta influência
agir comunicativo por parte dos indivíduos. política, por vezes derrubando reis conforme a
No sentido do agir comunicativo, para conveniência” (CABRAL, 2014, p. 32).
Habermas (2014, p. 93), a esfera pública é Como prática histórica, a intervenção da
descrita como uma rede favorável para a igreja dominou grande parte do poder estatal,
“comunicação de conteúdo, tomadas de posição atuando diretamente nas deliberações dos
e opiniões; [...] os fluxos comunicacionais são monarcas e chefes de Estado. Todavia, com o
filtrados e sintetizados, a ponto de se avanço da sociedade moderna, ascensão do
condensarem em opiniões públicas enfeixadas Iluminismo e o processo de racionalização da
em temas específicos”. Assim, como os sociedade, as igrejas aos poucos perderam
discursos do mundo globalizado são transmitidos espaço, por isso atualmente procuram formas
velozmente por meio da tecnologia, da mesma diversas para participar do meio político.
forma “a esfera pública se reproduz pelo agir “Os líderes religiosos continuam a se
comunicativo, implicando apenas o domínio de posicionar em questões morais e sociais
uma linguagem natural; ela está em sintonia com consideradas controversas, [...] as opiniões que
a compreensibilidade geral da prática emitem sobre questões como casamento
comunicativa cotidiana” (HABERMAS, 2014, p. igualitário e aborto representam apenas uma
93). entre as muitas vozes na multidão” (CABRAL,
A esfera pública para Habermas (2014) 2014, p. 32-33). As funções exclusivas da Igreja
é plural, porque existe diversidade essencial para relacionadas a “educação, saúde, alívio da
o aprendizado e contribuição das instituições pobreza – foram delegadas ao Estado”, o que não
mutuamente. Na esfera pública não são apenas as a impede de prestar tais serviços, desde que haja
instituições estatais que interferem diretamente, “regulamentação e autorização estatal”
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desperdício cognitivo, segundo Habermas secularização de seus argumentos para que eles
(2007b), o Estado não pode impedir as doutrinas pudessem efetivamente participar das discussões
religiosas de manifestarem suas convicções na sobre a vida pública.
esfera pública, porque estas são fontes de Dessa maneira, para Habermas (2007b),
instituições morais que ainda não passaram por é possível a utilização de argumentos religiosos
um processo de racionalização, de modo que tal na esfera pública, desde que estes passem por um
proibição pode privar os cidadãos do processo cooperativo, entre os cidadãos –
conhecimento dessas instituições morais que religiosos e seculares –, de tradução para uma
ainda não passaram para uma linguagem secular. linguagem universal, assim, os cidadãos
Isso significa dizer que o autor não religiosos devem se esforçar para traduzir seus
descarta a religião da esfera pública, uma vez argumentos a uma linguagem comum, enquanto
que os argumentos religiosos podem ser uma que os cidadãos seculares precisam se empenhar
forma de aprendizado moral, mesmo que eles em compreender e interpretar os argumentos
ainda não estejam fundamentados sob uma religiosos. Assim, não haveria uma desigualdade
perspectiva racional, por exemplo, os dez entre eles no momento de participação da vida
mandamentos, que são concepções religiosas pública.
cristãs e que com o processo de secularização A não admissão de argumentos
possuem relação com os direitos humanos, religiosos na esfera pública, conforme afirma
porque as “tradições religiosas possuem poder de Habermas (2007b), é uma violação ao princípio
aglutinação especial no trato de intuições da igualdade entre os cidadãos, porque todos
morais” (HABERMAS, 2007b, p. 148), o que precisam ter iguais oportunidades de
propicia o aprendizado moral dos indivíduos da participação nas discussões políticas a respeito
sociedade quando esses conteúdos são da justiça. Sendo assim, caso houvesse a
“traduzidos para uma linguagem acessível em exclusão dos argumentos religiosos na esfera
geral” (HABERMAS, 2007b, p. 149). pública, o Estado estaria impondo uma restrição
Já o argumento da desigualdade moral aos cidadãos religiosos, que pautam os seus
afirma que, se houver a exclusão da religião na fundamentos sobre justiça em argumentos
esfera pública, a situação entre os cidadãos religiosos, pois estariam em uma situação
seculares – que não fundamentam suas prejudicial se comparados aos cidadãos
convicções a partir de religião – e os cidadãos seculares.
religiosos – que fundamentam religiosamente Além disso, o autor ressalta que existem
suas ideias – ficariam assimétrica, uma vez que, indivíduos que só possuem como linguagem e
quando houver discussão sobre justiça, os compreensão do mundo a sua religião, de modo
cidadãos seculares, por já disporem de que a exclusão dos argumentos religiosos
argumentos racionais, teriam seus argumentos acabaria por ocasionar com que estes indivíduos
aceitos sem muitos esforços, pois não nunca pudessem participar da vida pública, em
precisariam realizar a tradução deles. Contudo, desrespeito à igualdade de oportunidades de
com relação aos cidadãos religiosos, por participação na vida pública.
utilizarem argumentos religiosos, teriam estes Por conta disso, e em conformidade
rejeitados, a menos que realizassem o processo com o princípio da neutralidade estatal,
de tradução deles para uma linguagem secular Habermas (2007b) esclarece que há uma
pública. Dessa forma, seria um fardo assimétrico separação existente entre a esfera pública
impor aos cidadãos religiosos a exigência de informal e a esfera pública formal. A esfera
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pública formal é composta por parlamentares, formal, já que nesta só é cabível a presença de
membros do governo e da administração, e nesta argumentos que estejam nos moldes da
só cabe o uso de argumentos laicos, por isso o neutralidade, exigência esta “necessária para
autor defende que a tradução cooperativa dos uma garantia simétrica da liberdade de religião”
argumentos deve ser realizada, anteriormente, na (HABERMAS, 2007b, p. 145).
esfera pública pré-parlamentar (HABERMAS,
2007b, p. 149), que corresponde à esfera pública 1.4 Representantes religiosos na política
informal, composta pelos membros da sociedade, brasileira
instituições privadas, igrejas, etc.
O uso apenas de argumentos seculares, No ano de 1987, a Assembleia
incluídos os argumentos religiosos que passaram Constituinte para elaboração da Constituição
pelo processo de tradução cooperativa, que não Federal de 1988 contou com a presença de 34
favorecem argumentos de doutrinas religiosas parlamentares evangélicos, do total de 559
específicas, tem o sentido de cumprimento da constituintes, o maior número de representantes
neutralidade estatal, porque adota postura neutra, deste segmento religioso na política neste
esperada pelas diversas visões de mundo período, cuja “influência evangélica exerceu
presentes na sociedade. pressão de forte „pedigree conservador‟”, na
Tal limitação feita, de que somente os elaboração da Constituição Federal (CABRAL,
argumentos que estiverem em uma linguagem
2014, p. 33).
secular podem ser proferidos no âmbito da esfera
pública formal, não deve ser vista como uma Discursando em nome da maioria, os políticos
forma de escamotear os argumentos religiosos, evangélicos lutaram na constituinte contra o
porque a intenção de Habermas é demonstrar que aborto, o jogo, os direitos dos homossexuais, o
todos os cidadãos, sejam eles seculares ou feminismo, a pornografia, a liberação do
divórcio e dos métodos contraceptivos e a
religiosos, devem e podem fazer parte da vida favor da censura de costumes na TV, no rádio,
pública, desde que todos aceitem as regras da no cinema e em espetáculos. Além disso, eram
laicidade, submetendo seus argumentos de favoráveis à educação religiosa nas escolas e
maneira secular, para serem amplamente pelos meios de comunicação (CABRAL, 2014,
p. 42).
discutidos e aprovados ou não no âmbito
público.
A partir desse momento, grupos de
O interesse do autor não está na
evangélicos passaram a ocupar o espaço público
intenção que motivou determinado argumento,
relevante na política brasileira, pois suas
mas tão somente na maneira como esse
atuações significaram aumento de parlamentares
argumento foi publicamente demonstrado. Se
no decorrer dos anos. O grupo de católicos
este se encontra nos moldes da laicidade, com
concorrendo ao cargo político, na década de
justificativas racionais, apesar da motivação
religiosa, ele está dentro do que é desejável para 1990, também cresceu, ainda que contrários às
a laicidade. Caso este argumento, de motivação determinações do Vaticano, que aconselhava os
religiosa, tenha se manifestado externamente de membros da Igreja católica a manterem-se
modo a não ter superado a sua motivação, ou afastados da política. Conforme afirma Mariano
seja, se nele estiver presente, expressamente, os (2011), o Vaticano desejava que os católicos se
ideais e as justificativas religiosas, ele deve ser manifestassem de maneira indireta à política,
desconsiderado no âmbito da esfera pública sem estimular a presença de seus membros na
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vida pública do país. Nesse sentido, afirma bancadas passam a tomar decisões políticas
Mariano (2011, p. 249) que: pautando-se em fundamentos religiosos, isso
porque, conforme mencionado anteriormente,
No campo político por meio do lobby da compete aos agentes públicos (juízes,
CNBB, da pressão direta de lideranças parlamentares, chefes de estado, etc.), que fazem
católicas sobre parlamentares e dirigentes
parte da esfera pública formal, tomar decisões
políticos, da realização de parcerias com os
poderes públicos, da vocalização e da pautadas em argumentações racionais, sejam elas
publicização de seus valores religiosos. genuinamente seculares ou que tenham passado
pelo processo de tradução cooperativa, nos
As articulações entre católicos e moldes da teoria habermasiana.
evangélicos no âmbito da política brasileira Essa violação é evidenciada por
passaram a determinar os passos da democracia intermédio da participação de alguns
no país, o que abriu espaço para a discussão a parlamentares que compõem a popularmente
respeito dos limites da participação da religião chamada “bancada evangélica” – a qual busca
na esfera pública, ainda que a Constituição representatividade política à classe que
Federal de 1988 disponha de uma nação laica, representa através de uma atuação conservadora
sem uma religião oficial. com relação às questões políticas que esbarrem
O âmbito político brasileiro é dividido no âmbito religioso –, uma vez que por meio das
em grupos de interesses, que buscam assegurar pesquisas realizadas visualizaram-se
questões políticas e ideológicas específicas de determinadas atuações políticas de deputados
classes, o que é possivelmente evidenciado no que fazem parte desta Frente Parlamentar que
Congresso Nacional, por meio das Frentes violaram o princípio da laicidade estatal, previsto
Parlamentares, as chamadas “bancadas de na Constituição Federal brasileira.
interesses”. Cada frente parlamentar é composta Ocorre que antes de adentrar na análise
por deputados e senadores que visa a um dos documentos obtidos, é necessário ressaltar
objetivo comum, uma discussão específica a que há certo questionamento por parte da
respeito de temas determinantes. Atualmente, sociedade brasileira acerca de a existência de
ano de 2017, na 55º Legislatura, existem cerca parlamentares e bancadas de interesses com
de 270 Frentes Parlamentares direcionadas a denominações religiosas estar por si só violando
variados assuntos (BRASIL, 2016c). a laicidade desejável ao Estado. Partindo-se da
Dentre as bancadas existentes, dá-se análise habermasiana de que a sociedade é plural
destaque à Frente Parlamentar Evangélica – e de que deve haver isonomia entre os cidadãos
composta por 203 deputados e 4 senadores – e à com relação à discussão sobre questões de
Frente Parlamentar Católica – composta por 214 justiça social e, consequentemente, da vida
deputados e 5 senadores (BRASIL, 2016c). A pública, é possível afirmar que a existência de
existência de tais bancadas não viola os preceitos tais Frentes Parlamentares, bem como a presença
democráticos, uma vez que a democracia de pessoas religiosa no meio público, não fere a
comporta o pluralismo e a diversidade cultural e laicidade desejável ao Estado.
religiosa, devendo existir o diálogo entre os Dessa maneira, apesar da atuação de
interesses das diversas classes da sociedade. alguns deputados ferir a laicidade estatal, a
Ocorre que há violação ao princípio da existência de Frentes Parlamentares religiosas
neutralidade estatal no momento em que não viola a neutralidade das instituições do
parlamentares que compõem ou não essas Estado, ao contrário, corrobora a ideia de que em
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Os discursos analisados dos documentos pelo fato de que, a partir desse julgado, os
da fala em plenária foram motivados pela recente demais tribunais do país podem utilizar do
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão e criar precedentes judiciais que
que, no julgamento do Habeas Corpus 124.306, autorizem a realização de interrupções de
determinou ser possível a interrupção da gravidez, sem considera-las como prática
gravidez até o terceiro mês da gestação, sem que abortiva, o que, dependendo da proporção, pode
essa prática seja considerada aborto. gerar manifestação social para que haja a
A grande repercussão da decisão se deu regulamentação legislativa de descriminalização
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argumentos racionais para que suas propostas criação do projeto tenha sido por alguma crença
sejam discutidas amplamente, de acordo com as religiosa.
regras da laicidade, embora a motivação da
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