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ENSAIO | ESSAY 145

Saúde, luta de classes e o ‘fantasma’ da


Reforma Sanitária Brasileira: apontamentos
para sua história e crítica
Health, class struggle and the ‘ghost’ of the Brazilian Sanitation
Reform: notes for history and criticism

André Vianna Dantas1

DOI: 10.1590/0103-11042018S311

RESUMO O processo político da moderna Reforma Sanitária Brasileira convive, desde o seu nasce-
douro, nos anos 1970, com um espectro que o atormenta: o chamado ‘fantasma da classe ausente’, que
pretende designar a pouca participação das massas populares nas lutas e reivindicações pela saúde.
A experiência de participação popular do processo italiano de reforma sanitária foi a referência dos
sanitaristas brasileiros, a partir da qual o estranhamento com o caso brasileiro se produziu. A histó-
ria do fenômeno, no entanto, como se demonstrou, inscreve-se nos dilemas experimentados pelo
conjunto da classe trabalhadora no Brasil, em franco processo de transição estratégica, no mesmo
período, e se deve também às opções táticas assumidas pelos sanitaristas para a consecução dos ob-
jetivos políticos do movimento sanitário. Conclui-se que o recuo organizativo e combativo da classe
é parte da derrota histórica sofrida com a derrocada do bloco socialista, na virada dos anos 1980. Sua
superação só poderá ser operada pela retomada da construção da luta pela base, atravessando fron-
teiras setoriais e rompendo com a fetichização do Estado, como meio para a emancipação plena dos
trabalhadores, e da ordem ‘democrática’ burguesa, como terreno ‘legítimo’ da luta política.

PALAVRAS-CHAVE Reforma dos serviços de saúde. Política pública. Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT The political process of the modern Brazilian Sanitation Reform has been haunted by a
phantom since its beginning, in the 1970s: the so-called ‘ghost of the absent class’, which intends to
designate the little participation of the masses in the fights and claimings for health. Brazilian sani-
tarists had the popular participation experience of the Italian Sanitation Reform as a reference and
it was precisely from it that emerged a certain strangeness to the Brazilian case. The history of the
phenomenon, however, is inscribed in the dilemmas experienced by the Brazilian working class as a
whole, which was under a process of strategic transition then. It is also due to the tactical choices made
by the sanitarists to achieve the political objectives of Brazilian Sanitation Movement. We conclude
that the organizational and combative retreat of the class is part of the historical defeat suffered when
1 Fundação Oswaldo the socialist block fell, in the turn of the 1980s. The overcoming of both the defeat and the phantom will
Cruz (Fiocruz), Escola
Politécnica de Saúde only be accomplished through the resumption of the struggle from the base, crossing sectoral boundar-
Joaquim Venâncio (EPSJV) ies and breaking with the fetishization of the State as a means to the full emancipation of the workers;
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Orcid: https://orcid. and through the restoration of the bourgeois ‘democratic’ order as a rightful locus of political struggle.
org/0000-0002-1053-
7392
andredantas@fiocruz.br KEYWORDS Health care reform. Public policy. Unified Health System.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 145-157, NOVEMBRO 2018
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É certo que prever significa apenas ver hoje mais claramente os seus gargalos, suas
bem o presente e o passado como movimento. ribanceiras e buracos sem fundo.
(Antonio Gramsci) Uma das expressões máximas dessa
derrota tem sido o processo contínuo e, nos
últimos anos, ainda mais acelerado, de des-
Introdução monte do nosso Sistema Único de Saúde
(SUS). Não por coincidência, foi o SUS
Momentos de balanço em perspectiva também a política social de maior enverga-
histórica costumam resultar de derrotas dura que resultou da luta pela retomada do
mais ou menos graves na luta política. Não chamado Estado Democrático de Direito.
parece restar dúvida de que seja o caso da Ante o desastre, que não é de agora e cujos
classe trabalhadora brasileira. A energia de contornos ainda não estão inteiramente de-
luta galvanizada desde a reorganização das limitados, ressurge com força o debate em
forças populares, na luta contra a ditadura torno da incômoda ausência dos trabalhado-
empresarial-militar (1964-1985), a partir dos res organizados e do povo oprimido em geral
anos 1970, exauriu-se de vez com o processo das batalhas pela sua defesa. Estamos diante
ativo de conciliação de classes promovido do célebre ‘fantasma da classe ausente’, na
zelosamente pelos governos petistas (2003- expressão cunhada por Sergio Arouca em
2016). O golpe parlamentar de 2016 contra fins dos anos 1980. Para esse importante sa-
o governo de Dilma Rousseff marcou o fim nitarista, e para uma geração de militantes
do pacto inaugurado – já ele mesmo uma que ao seu lado lutou por uma saúde pública,
derrota – com a nova república, em 1985. universal e de qualidade, paradoxalmente,
A despeito de alguns sinais de retomada a despeito da orientação dos seus esforços
aqui e ali, é constatável o quanto estamos, no sentido das classes trabalhadoras, o mo-
os trabalhadores, aquém da capacidade de vimento sanitário quase nunca pôde contar
resistir à potência e amplitude dos ataques com a sua participação direta na luta.
que viemos sofrendo, bastante agravados e Para nós, não resta dúvida de que a relação
intensificados desde a usurpação que levou dos movimentos sociais com a reforma
Michel Temer à presidência da República. sanitária é um nó crítico que precisamos
É hora de inventariarmos o que produzi- enfrentar2 mas, diríamos, indo além, que o
mos em termos teóricos, práticos e progra- fenômeno que, por ora, nos ocupa atravessa
máticos na luta política emancipatória de as fronteiras setoriais da saúde. Tal enfrenta-
esquerda nas últimas décadas. A análise da mento também nos impõe uma avaliação da
correlação de forças é elemento indispensá- trajetória cumprida até aqui, como fizemos
vel nesta escovação da história a contrapelo1, em estudo anterior; e não será o caso agora
mas não pode ser debitada a ela todos os de recuperar por completo3. Dividiremos
nossos fracassos. Não se trata aqui de uma este trabalho, então, em três momentos: ini-
perspectiva abstrata, idealista, que pretende ciaremos pela caracterização do fenôme-
cobrar dos projetos e das intenções políticas no; na sequência, apresentaremos a nossa
de determinado período a não realização, crítica na intenção de contribuir para a
total ou parcial, de tudo o que foi declarado. identificação da paternidade do fantasma
O balanço da estratégia e das táticas assu- e, por fim, apontaremos elementos atuais
midas na luta em processo, portanto, deve indicativos da persistência das lideran-
servir como ferramenta da própria luta, sem ças do movimento sanitário nas mesmas
a qual a produção de mais derrotas em sequ- linhas estratégicas de ação que, ao fim e ao
ência poderá ter vida longa, pelas mesmas cabo, acreditamos, têm servido como ali-
trilhas que, uma vez testadas, apresentam mento para o espectro que nos ronda.

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O espectro do inimigo ‘interno’ aparentemente derro-


tado pelo arranjo da ‘normalização demo-
Como atesta Sarah Escorel4(186), ‘fantasma crática’ eram os óbices colocados para a luta
da classe ausente’ é a expressão que pretende política daqueles tempos e ajudam a explicar
designar o distanciamento dos movimentos o fenômeno, que de espectral só tem o nome.
sociais, dos trabalhadores organizados e suas Para tornar a equação ainda mais com-
instituições representativas, das lutas setoriais plexa, o que fazer diante do refluxo dos
na saúde. Para Arouca, isso se configurava movimentos de base, populares, sindicais,
como uma limitação, à medida que expressava combinada à chance real de fazer-se governo,
a incapacidade do movimento sanitário de se por meio das eleições diretas para a presi-
articular sistematicamente com esses setores e, dência da República, como era o caso no ano
por isso, punha mesmo em xeque a sua repre- de 1989, com a candidatura de Luís Inácio
sentatividade e legitimidade na condução da Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores
luta política do setor. Vale, no detalhe, a carac- (PT)?5. Como conceber uma sociedade civil
terização da própria autora: que, em nome de uma democracia suposta-
mente universal, reunia, no plano estrito da
[Arouca] chama de ‘fantasma’ porque ‘assus- política, classes e frações de classe material-
ta, mas não existe’, ou seja, o Movimento Sa- mente tão distintas em favor da anistia, das
nitário questiona periodicamente sua própria Diretas Já, do respeito às liberdades indivi-
legitimidade enquanto intelectual coletiva- duais, do fim da censura, do direito à saúde,
mente orgânico por não contemplar em suas do fim do próprio regime ditatorial? Como
discussões e decisões ‘cotidianas’ organis- lidar com um Estado que, na aparência, des-
mos formalmente representativos das classes privatizava-se com o retorno da democracia
trabalhadoras como os sindicatos operários, e poderia ser disputado de modo a cumprir
as centrais sindicais e até mesmo os partidos as conquistas civilizatórias historicamente
progressistas. No entanto, a classe operária negadas ao povo trabalhador brasileiro?
não está ausente, no sentido de que seus va- Decerto não eram óbvias as respostas
lores e necessidades direcionam a luta pela políticas a serem dadas ante uma conjun-
Reforma Sanitária. tura tão complexa. A partir desses dados
de realidade e dos muitos desafios estraté-
A base material do fantasma, como gicos, táticos, teóricos e programáticos que
acreditamos e seu próprio criador parece daí desdobravam, os sanitaristas tomaram
concordar, é a crise estratégica, teórica e or- opções que, ao lado da correlação de forças
ganizativa da classe trabalhadora desde os desfavorável, contribuíram também para o
anos 1970/1980, em termos globais, com o fim alargamento do fosso que os separavam de
do bloco socialista, a ascensão do neolibera- suas bases, reais ou pretendidas. A autocrí-
lismo e a chamada reestruturação produtiva tica em relação à absolutização da via insti-
do capital. No Brasil, por uma especificidade tucional e o consequente abandono da luta
conjuntural, a rebordosa desse desastre de construída pela base já foram realizados, em
grandes proporções se manifestou em uma parte, pelo movimento sanitário, mas não o
quadra histórica de soerguimento dos mo- suficiente para desabonar a tática e abalar
vimentos de base, populares, trabalhistas, o lugar fetichizado da democracia – como
contra a ditadura. A absorção da derrota em único terreno legítimo da luta política, por
todos os seus aspectos, sua compreensão excelência – e do Estado – entendido me-
profunda em registro nacional, algo distinto ramente como máquina a serviço dos ven-
em face da energia de luta acumulada – ainda cedores de pleitos eleitorais. É verdadeira
que em descenso –, e a percepção do poder a constatação sobre a “ausência de partidos

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e organizações sindicais na base de apoio à em ‘estratégias’ que opõem os militantes dos


reforma”, mas que isso tenha “como conse- partidos (Partido dos Trabalhadores, Parti-
quência o deslocamento da luta para dentro do Comunista Brasileiro, Partido Comunista
do aparelho de Estado”6(209), é verdade do Brasil) que participam do movimento. A
apenas como opção política e elemento a ser maioria a favor do caminho da ‘institucio-
considerado na análise, e não como relação nalização’ está organizada por delegados de
causal, como se quer. O enfraquecimento Goiás, Sul do Pará, Mato Grosso, Zona Leste de
paulatino da pujança da luta popular que ex- São Paulo e Rio de Janeiro [...]. O caminho da
plodiu nos anos 1970 e 1980 e, mais tarde, a institucionalização vai prevalecer inclusive do
sua quase completa retirada do cenário polí- ponto de vista da luta democrática, como se
tico a partir dos anos 1990 são, para nós, uma constata na ampla aceitação pelas esquerdas,
derrota de dupla face: imposta de fora para em 1984, da eleição indireta para a presidência
dentro da esquerda, mas também produzi- da República, realizada por meio de um colé-
da de dentro para fora. Fomos fisgados pelo gio eleitoral predominantemente de direita. É a
canto de sereia que nos conduziu de peito ‘transição pactuada’ entre militares e civis9(23).
aberto para o terreno de luta dos nossos ini-
migos, como se fosse o nosso próprio. Nesse Devemos a Silvia Gerschmann10(70) uma
sentido, temos contribuído ativamente para boa caracterização das relações difíceis
desencarnar a classe que no minuto seguinte entre as lideranças do movimento sanitário
chamamos de ‘fantasma’. e o que seriam as suas bases. Para a autora,
Contudo vejamos o problema mais de que se refere ao processo político que se
perto. Diante da deficiente abordagem, na deu durante a VIII Conferência Nacional
saúde coletiva, da temática dos movimentos de Saúde (CNS), a essência do problema se
sociais e também da difícil apreensão desse concentrava nos movimentos populares, ex-
objeto quando se trata de definir o grau de pressos por intermédio de outra ‘ausência’,
sua interseção com as bandeiras da saúde7,8, dessa vez de ‘maturidade’ para compreender
para abordarmos a relação das lideranças e aceitar os rumos institucionalizantes da luta.
do movimento sanitário com suas bases, De início, é possível notar certo pesar pelo
tomaremos como expressão representati- abandono, por parte do Mops, do que seria uma
va desses grupos o Movimento Popular em escala evolutiva que o teria levado da posição
Saúde (Mops), nascido em 1981, fruto do de movimento social de base à condição de ator
III Encontro Nacional de Experiências em da disputa pelo aparelho de Estado:
Medicina Comunitária (Enemec). Segundo a
compreensão das forças populares envolvidas Precisamente no momento em que o Mops
no processo, a formação do Mops viria em esteve mais próximo das decisões políticas
socorro da “necessidade de lutar por mudan- substantivas, a ausência de maturidade para
ças no modelo de assistência à saúde”9(23). No absorver a institucionalização como uma exi-
entanto, divergências quanto à pertinência gência do processo político no setor se tradu-
política de investir na institucionalização da ziu em cisão interna.
medicina comunitária impõem duras tensões
ao recém-criado movimento. Para início de Na sequência, em que pese a complexida-
conversa, observemos, na citação a seguir, a de do debate acerca da viabilidade prática
complexidade do processo que apontamos: de uma estatização imediata do sistema de
saúde brasileiro – embora não se tratasse
O Mops já nasce ‘rachado’. O pano de fundo (ou não devesse se tratar) de um debate me-
das divergências é de cunho político geral: a ramente pragmático, mas eminentemente
radicalização das divergências fundamenta-se tático –, a autora destaca o isolamento do

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Mops diante de uma proposta que ela con- de Gerschman e endossasse a sua perspec-
sidera irrealizável e, portanto, improcedente tiva. Lancemos mão ainda, mais uma vez,
para aquela conjuntura: de Escorel11(195) para concluir esta brevís-
sima caracterização da tática de ouro dos
Os delegados do Mops apresentaram uma sanitaristas:
proposta de estatização do setor, sem parti-
cipação nenhuma do setor privado, a qual não A partir de 1983 o movimento sanitário con-
contou com a aprovação da maioria das enti- seguiu pôr em prática uma de suas estraté-
dades representadas, dentre elas o Cebes, a gias, a ‘ocupação dos espaços institucionais’.
Abrasco e as centrais sindicais10(105). Na tentativa de modificar o direcionamento
da política pública, passou a fazer das insti-
Por fim, Gerschman10(112) nos apresenta tuições de saúde um lócus de construção da
a argumentação que se encontra subjacente contra-hegemonia. Com a adoção dessa es-
a toda construção de sua análise: o acerto tratégia, separou-se ainda mais do movimen-
da tática sanitarista reformista, que de tão to popular. Ao privilegiar as instituições de
acertada poderia seguir distante e autono- saúde, relegou a segundo plano a ampliação e
mamente em relação às suas bases em poten- o aprofundamento da aliança com as classes
cial. É verdade, façamos justiça, que ao final populares e trabalhadoras [...]. O processo
do trecho citado há uma reprovação quanto passou a ficar restrito a avanços e recuos no
à forma de condução das divergências pelas âmbito das políticas institucionais e, concen-
lideranças do movimento sanitário, mas nada trado nesse espaço (político-legal ou jurídico-
que equilibre ou relativize o processo de ins- -institucional) de luta, o movimento tendeu
titucionalização ‘como uma exigência do pro- a perder de vista a necessidade de trabalhar
cesso político’, como sacramentou a autora, melhor sua aliança com as classes populares.
expressando o posicionamento do movimen-
to sanitário naquela conjuntura ímpar: E completa a mesma autora:

A mudança no terreno da luta política se expli- Nos primeiros anos da Nova República, o mo-
ca: o Movimento Sanitário, vanguarda do pro- vimento sanitário viveu um ciclo de euforia
cesso de transformação das políticas de saúde, quando, inserido nas instituições de saúde,
tinha como estratégia penetrar nos aparelhos conseguiu promover uma inflexão na dire-
de Estado com o objetivo de tentar implemen- cionalidade da política de saúde como um
tar suas táticas para mudar a direção da polí- todo. Esse período foi caracterizado por al-
tica e, assim, privilegiar o setor público. [...] a guns autores como a institucionalização do
participação nos organismos estatais acabou movimento sanitário, que perdera a base na
sendo uma decisão unilateral do Movimento sociedade civil e abandonara as propostas
Sanitário, o que dificultou sua relação com o transformadoras em favor de simples refor-
Mops no transcorrer da década de 80. mas administrativas. Não há dúvida de que,
excetuando-se a VIII CNS e a luta na Cons-
O antiestatismo do Mops e, especifica- tituinte, a atuação do movimento sanitário
mente no contexto da VIII CNS, a recusa à esteve concentrada no plano das instituições
participação do setor privado no Sistema de de saúde. No entanto, as duas exceções foram
Saúde que se propunha, e sua consequente profundas e marcantes, atenuando as supos-
estatização completa, são os pontos destaca- tas tendências ‘institucionalizantes’11(196).
dos pela autora que nos permitiriam aludir
ao que Lênin chamaria de ‘doença infantil’ Como é possível notar, tanto Gerschman
daquele movimento se tivesse escrito o livro quanto Escorel – que podem ser tomadas

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aqui como representativas da visão domi- consequente reação neoliberal burguesa são
nante entre os sanitaristas – apontam com os ingredientes que permanecem na base dos
preocupação o distanciamento entre as ‘li- processos da luta de classes até os dias atuais
deranças’ do movimento e suas bases em no mundo, embora combinados às especifi-
potencial, mas tal como procedeu majorita- cidades regionais. Não é mero acaso crono-
riamente o movimento na sua compreensão lógico que o auge de uma experiência como
de realidade, endossam a tática institucional, o Estado de Bem-Estar Social, no centro do
em última análise, por considerarem-na o capitalismo, tenha sido contemporâneo da
centro da ação estratégica que o momento Guerra Fria e seu desmonte comece a se dar
conjuntural exigia, embora acompanhada no exatamente quando o ‘inimigo vermelho’
encalço do que seria uma contingência incô- vai à lona. Se para a análise das relações de
moda: a ausência da base. força, portanto, como ensina Gramsci13, é
Giovanni Berlinguer12(5), membro do decisivo distinguir o orgânico (movimentos
Partido Comunista Italiano (PCI), liderança relativamente permanentes) do conjuntural
destacada da reforma sanitária daquele país (ocasionais, imediatos), precisamos ter clara
e interlocutor de primeira ordem dos sanita- a curva de descenso global, desde então, da
ristas brasileiros, partindo das mesmas pre- luta dos trabalhadores, a despeito de con-
ocupações de Gerschman, Escorel e outros, quistas e êxitos particulares ou conjunturais.
arrisca uma brevíssima análise sobre outros É ponto pacífico para nós, portanto, que toda
dois processos históricos que resultaram análise sobre uma determinada realidade
na reformulação profunda dos serviços de nacional deve ter em conta esta dinâmica,
saúde. Se na Itália a luta setorial da saúde se além de não poder descuidar dos elementos
caracterizou pela imensa potência do mo- internacionais expressos em cada realidade
vimento popular organizado, este não foi o nacional. Essa pequena digressão nos serviu
caso não só do Brasil. Na Rússia, diz o autor, aqui para reinserir o fantasma de que trata-
onde foi criado o serviço sanitário público mos no mundo dos viventes.
nos anos imediatamente após a revolução de
1917, isso se deveu mais à “sublevação políti-
ca global” do que a reivindicações populares A carne e o osso
específicas. No que diz respeito ao National
Health Service (NHS) inglês, que é de 1948, Se retomarmos a citação de Escorel que ca-
Berlinguer o atribui mais à chegada dos tra- racteriza o objeto que ora nos ocupa, recor-
balhistas ao governo e menos como produto daremos que Arouca não compreende o tal
de um movimento de massas pela saúde. A fantasma, em verdade, como expressão da
despeito de nossa maior ou menor concor- ausência absoluta da classe. Defende que a
dância com as interpretações do autor, os direção geral da luta pela reforma sanitária
casos concretos citados servem para mostrar não pode ser senão da própria classe, embora
que o fenômeno da ‘classe ausente’ é bem o movimento e a atenção dessa mesma classe
mais terreno do que se supõe, posto que tenham estado sempre voltados em menor
indica que as lutas setoriais fazem parte de medida para o campo específico da saúde.
um todo indivisível que não obedece a fron- Não nos parece pouco relevante essa ob-
teiras tão bem claras e delimitadas como servação, dado que indica, a nosso ver, uma
pretendem muitos entre os sanitaristas. compreensão dialética da realidade, em que
Vale ainda um último destaque. O fim do as lutas setoriais não podem ser tomadas
bloco socialista, com a queda do muro de apenas no interior de suas fronteiras, para
Berlim e a dissolução da União Soviética, a compreensão tanto dos êxitos setoriais
na passagem entre os anos 1980 e 1990, e a como dos dilemas e derrotas globais que se

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expressam também em cada setor. Essa pers- a questão da saúde pode ser considerada,
pectiva, no entanto, não foi a que prevaleceu dentro dos movimentos, seja como um obje-
no interior do movimento sanitário, por di- tivo exclusivo, seja, ao contrário, como uma
versas razões, tendo sido a tônica de sua ação luta vinculada a várias outras8(50).
política e formulação, sobretudo a partir dos
anos 1990, o insulamento, cuja principal O SUS, portanto, é produto da luta dos
consequência foi restringir-se ao debate em trabalhadores, embora não majoritariamen-
torno da gestão do SUS. O fantasma só fez te tenham empunhando a sua bandeira.
crescer desde então, mas a interpretação Combinado a isso, contou significativamen-
do fenômeno também se apequenou, des- te, claro, o conhecimento técnico-político e a
lizando para uma culpabilização velada da presença de militantes e profissionais do setor
classe trabalhadora pela sua própria derrota. em posições-chave em âmbito acadêmico e
Seu desconhecimento do SUS, sua pouca ou governamental, mas não de modo a perder de
nenhuma consciência sanitária e o seu senso vista – como se faz – a origem da energia que
comum que valoriza o privado em detrimen- redundou no SUS. Apontar para a ausência da
to do público, conjugados ao corporativismo classe, compreendida apenas como movimento
sindical que fortalece o mercado dos planos social setorial – mesmo que com a melhor das
de saúde, tornaram-se peças de acusação de intenções políticas – desqualifica a luta e super-
uso corrente. Cobra-se do fantasma o que o valoriza os arranjos pelo alto.
fantasma não pode dar. Tais constatações, Outro importante ingrediente que pode
embora corretas, ignoram e desconhecem a ajudar a explicar o fantasma diz respeito à
própria base que acusam de ausente. pretensão de pureza do movimento sanitá-
Eis a chave de leitura para o fenômeno. rio quanto à união nacional que seria possí-
Sem pretender negar a sua validade como vel forjar ante as bandeiras civilizatórias da
problema, é nossa intenção mapear os seus saúde. A aposta em um projeto nacional, in-
contornos e dividir as responsabilidades. A cluindo setores da burguesia, no sentido da
autocompreensão do setor saúde na relação construção tardia, no Brasil, de um Estado
com as lutas da classe trabalhadora em geral, de Bem-Estar Social, é a base para enten-
a percepção de sua importância na luta contra dermos o lugar da reforma sanitária nesse
a ditadura, a memória das conquistas que pro- projeto e, no conjunto da esquerda, os seus
tagonizou e a autoproclamação como “campo descaminhos. Não é de ninguém senão de
privilegiado da luta de classes”4(183) – mais au- Sergio Arouca a sua expressão mais clara,
toelogiosa e individualizante do que unitária proferida nada mais nada menos do que na
e aglutinadora – têm funcionado, paradoxal- sessão de abertura da célebre VIII CNS15(39):
mente, como um obstáculo à construção de
laços, pontes, alianças e, em última análise, Há alguns dias atrás, algumas entidades liga-
enraizamentos na base. É Sônia Fleury14(195) das ao setor privado se retiraram da Confe-
quem confirma o nosso diagnóstico: “nós rência [...]. Mas eu lamento profundamente a
fizemos uma luta muito específica e muito sua ausência, porque nesta Conferência está
sem articulação com as outras áreas”. se tratando é de criar um projeto nacional
Souza8, em uma tentativa de responder o que não pretende excluir nenhum dos grupos
que são, como se constituem e como atuam os envolvidos na prestação de serviços, na cons-
movimentos de saúde, concluiu por sua imensa trução da saúde do povo brasileiro. Assim, a
diversidade e, por consequência, grande di- eles queria deixar uma mensagem: que, mes-
ficuldade de apreensão. A intersetorialidade, mo na sua ausência, vamos estar defendendo
aponta, é uma das características mais clara- os seus interesses, desde que estes não sejam
mente identificáveis nos movimentos: os interesses da mercantilização da saúde.

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Portanto, todo aquele empresário que está a ideia de ‘Reforma Sanitária’ é pensada, na Itália,
trabalhando seriamente na área da saúde, na desde o início, como algo que não se restringe
qualidade da sua competência técnica e pro- aos limites de um projeto de hegemonia ‘bur-
fissional, não precisa se sentir atemorizado, guês’. Mas sim como algo que visa superá-lo, no
porque aqui ele vai ser defendido. sentido dialético rigoroso do termo.

A saúde como campo privilegiado da luta Insistamos um pouco na comparação. É


de classes combina-se, sem crises, aos olhos conhecida a forte presença de militantes do
do movimento sanitário, com a percepção do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no mo-
setor saúde em posição superior, acima do vimento sanitário, a começar pelo próprio
conflito entre as classes. A unidade em torno Arouca17. O projeto conciliador de classes
de um projeto de nação não fazia claras dis- liderado por esse partido, expresso na sua
tinções dessas fronteiras, consideradas em Estratégia Democrático-Nacional (EDN),
vias de superação em um terreno suposta- que pressupunha a existência de uma bur-
mente democrático e universal ou combi- guesia interessada em um desenvolvimento
náveis em um possível jogo de ganha-ganha. nacional que pudesse retirar o País da condi-
Eis as táticas consequentes ao projeto e à ção subjugada em relação às potências impe-
leitura de realidade dos sanitaristas: rialistas e superar o atraso representado pela
aristocracia agrária, guiou as pretensões po-
o Movimento Sanitário fez valer uma de suas líticas e as leituras de realidade do movimen-
outras características que é o estabelecimen- to sanitário3, como acabamos de notar. Em
to de alianças com setores progressistas, po- profunda crise interna, que desembocaria,
pulares ou não, comprometidos com a luta. O em 1992, no seu desmantelamento, o PCB
que lhe permitiu consolidar alianças, manter- adotou postura acanhada e conservadora
-se enquanto movimento orgânico e organi- durante a chamada ‘transição democrática’,
zado, foi ‘conceber a unidade como valor es- produzindo a contenção do movimento sin-
tratégico’ e tratar a questão da saúde como dical, por temor de um retrocesso autoritário
questão nacional 4(186). do processo de distensão do regime. Por essa
razão, colocou-se contra a criação do PT e
Teixeira e Mendonça6(206) são ainda mais da Central Única dos Trabalhadores (CUT),
diretas: “o movimento sanitário preservou distanciando-se assim do movimento de
sempre seu caráter suprapartidário e poli- massas, sindical e popular, que renascera a
classista, condição essencial para manuten- partir dos anos 19702. Como atesta Stotz2(4):
ção da unidade política”.
A resposta mais comum a essa crítica já o movimento da reforma sanitária, contudo,
abordamos algumas páginas atrás: a via ins- desenvolveu-se à margem do movimento ope-
titucional teria sido o caminho que restou rário, tendo inclusive abandonado uma alter-
diante da desmobilização popular em torno nativa de enraizamento operário proposto com
da reforma sanitária. A analogia imedia- a criação do Departamento Intersindical de Es-
ta que está sugerida é com o caso italiano, tudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes
em que a reforma sanitária, como se sabe, de Trabalho – Diesat, fundado em agosto de
contou não só com uma classe numerosa e 1980. Optou por manter-se dentro da coalizão
mobilizada em torno das bandeiras da saúde política (Aliança Democrática) que promovia,
(mas não só) como também com o enraiza- sob hegemonia burguesa, a transição do poder
mento popular do PCI, que conduziu a luta. dos militares para os civis. Foi também o que
É Jaime A. Oliveira16(20), estabelecendo uma propiciou a participação dos quadros do PCB e
comparação Brasil-Itália, quem nos socorre: de sua área de influência no governo do general

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Figueiredo, por meio do Conasp – Conselho (ou fantasmagorização, se preferirmos) da


Consultivo de Administração de Saúde Previ- luta organizada dos trabalhadores não é
denciária, em 1981. nova para a burguesia, como sabemos.
O abandono, pelas forças de esquerda
É difícil não elencar esse enfraqueci- mais representativas, de bandeiras antirre-
mento acelerado da identidade do PCB na gime, que pretendem ir além do ‘existente’,
classe trabalhadora como um dos elementos tem sido, a um só tempo, causa e consequ-
que ajudam a explicar a ausência da mesma ência do nosso desarme quando se trata de
classe das lutas específicas da saúde, tão entender em profundidade as formas clássi-
reclamada pelas lideranças sanitaristas. A cas de dominação burguesa, que atravessam
frágil base social do movimento sanitário, temporalidades e conjunturas, na relação
ao contrário do que poderia fazer supor a com as especificidades de cada espaço-tem-
VIII CNS, expressa-se, por exemplo, no fato po histórico. Entender e combater a apatia e
de que a emenda popular da saúde angariou a desmobilização dos trabalhadores hoje, no
pouco mais de 50 mil assinaturas, enquanto Brasil, passa, portanto, pela reavaliação das
as emendas favoráveis à reforma agrária e ao apostas ‘democráticas’ que temos feito e suas
ensino público conseguiram juntas quatro possibilidades de realização concreta.
milhões de assinaturas18. E se era já frágil no Se debelar o fantasma não pode ser apenas
setor saúde, logo no momento seguinte se obra do nosso desejo, ao menos podemos
enfraqueceu também toda a mobilização e parar de alimentar toda e qualquer aura de
capacidade de organização social que tinha mistério que insistir em pairar ao seu redor.
se acumulado na luta contra a ditadura. Recusemos a equação ilógica que atribui
Para conseguirmos captar essa profunda nossas derrotas (setoriais ou não) à falta de
transformação, em pleno curso, do que cha- povo e nossas vitórias à luta institucional.
mamos de sociedade civil e, em associação Dito de outra forma, não é possível asso-
direta, do Estado e da democracia, é urgente ciar as conquistas na Saúde, bem como suas
que voltemos a tentar compreender em pro- crises e seus fracassos, à existência ou não
fundidade a dinâmica capitalista no Brasil e de movimentos populares organizados em
as formas políticas que por aqui o processo torno das bandeiras da saúde. Embora, no
de acumulação tem produzido. A resposta Brasil, os movimentos sociais nunca tenham
do capital à energia da luta popular dos anos fortemente se organizado por essa demanda,
1970 e 1980 tem sido uma intensa campa- a única explicação razoável e historicamente
nha antiestado como forma de atingir tudo correta, como atestou Arouca, é que a força
o que soe como público, emancipatório ou do movimento organizado da classe é autora
socializante. Na esteira da propalada inefi- do SUS e das conquistas dos últimos 40 anos.
ciência, corrupção e gigantismo da máquina A expertise, o conhecimento profundo das
pública, tem entrado pesadamente em cena questões de saúde, a capacidade formula-
a expansão seletiva de uma sociedade civil dora e habilidade política dos sanitaristas se
dita ‘do bem’, incolor e inodora, reduzindo beneficiaram do ambiente de luta política do
o debate democrático e as lutas democrati- período. Essa equação não pode ser inverti-
zantes a aspectos meramente gerenciais. A da, posto que a ordem dos fatores, nesse caso,
política praticada pelos trabalhadores e por alteraria o produto. O desmonte do SUS é re-
suas lideranças (in memoriam), cada vez sultado do desmonte da classe e de sua luta
mais marcada pela distância de suas formas organizada, na Saúde ou fora dela. É tarefa do
classistas, tem sido chamada pelas forças do movimento sanitário sair em busca da classe
capital a legitimar a sua própria inserção su- que sugere ‘ausente’ fora do estreito campo
balternizada19. A agenda de apassivamento da saúde e da institucionalidade do Estado

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e da academia para, com ela, e a partir dela, portentosas manifestações de rua de junho,
produzir luta política em nome de pautas tão suspeitamos, produziram energia concen-
abrangentes e necessárias quanto as mazelas trada suficiente para importantes desdo-
profundas que experimentam os trabalhado- bramentos políticos que ainda podem se
res atualmente. concretizar em futuro breve (a conferir). Seu
caráter multitudinário e espontâneo, distan-
te de centrais, sindicatos e partidos, desafia a
Considerações finais nossa compreensão, mas também indica com
certo grau de clareza uma recusa a formas e
A superação de uma estratégia de classe não conteúdos políticos que dirigiram o último
é mero ato de vontade das bases ou de suas ciclo político desde a chamada ‘redemocrati-
lideranças, sabemos. O processo é longo, zação’. Como nos ensina Gramsci21(190):
tortuoso e não tem desfecho infalível, pre-
visível. No entanto, a identificação do des- As classes inferiores, estando historicamente
compasso entre os movimentos concretos na defensiva, não podem adquirir consciên-
da classe e as leituras de realidade dos que são cia de si a não ser por negações, através da
ou se pretendem como suas lideranças é ato de consciência da personalidade e dos limites
vigília constante que nos cabe a todos, posto de classe do adversário: mas justamente este
que se constitui em parte importante do nosso processo ainda é informe, pelo menos em es-
‘inventário’. Dessa forma, aqui neste esforço cala nacional.
final de análise, queremos sugerir algumas
rápidas pistas que indicam, no plano do dis- Não nos parece adequado, portanto, que
curso, a persistência das mesmas práticas polí- cobremos dessa irrupção recente um estágio
ticas e apostas estratégicas, que são expressão de consciência de classe avançado que ela
‘também’ da nossa derrota e apatia atuais. não poderia parir ou expressar, uma vez
Nesse sentido, se estivermos corretos que a sua própria ocorrência tardia, e no
na interpretação dos fatos, as jornadas de formato que assumiu, nos sugere a trajetória
junho de 2013 representaram a explosão de recuo de consciência cumprida até aqui.
de uma concertação social vigente, mais Todavia, ela parece nos indicar o fechamento
notadamente, desde 1988 (em nome de um de um período da história política brasileira,
projeto de nação, com ampliação de direi- perante o esgotamento das formas institu-
tos, à esquerda; mas sob controle, posto cionais e da crise dos modos consagrados de
que ‘lento, gradual e seguro’, à direita) que, produzir a política na relação entre as classes.
crescentemente, retirou das ruas e do con- As evidências desse processo abundam, e as
trole das massas o exercício direto da polí- consequências para os trabalhadores – desa-
tica. Sua crise terminal foi a consequência bituados ao enfrentamento e redescobrindo,
mais visível do processo de garroteamento no susto, a luta de classes – têm alcançado
dos canais institucionais de atendimento às níveis dramáticos. Como principal operado-
demandas populares, que Felipe Demier20 ra política do ciclo que parece se fechar, as
tem chamado de ‘democracia blindada’. A forças dessa fração majoritária da esquerda,
reação ao agravamento da crise econômica e que se autointitula ‘democrática’, literal-
à precariedade dos serviços públicos básicos mente não acusou o golpe e se mantém firme
superou a até então eficiente contenção na aposta de soluções consensuadas, intra-
do movimento sindical e dos movimentos classes, conciliadoras, universais e no estrito
sociais produzida pelos governos petistas. respeito dos limites da ordem do capital.
Mesmo que débeis teórica e organizativa- Não será preciso muito esforço para
mente, carentes de projeto e programa, as evidenciar, em registro atualíssimo, o que

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estamos afirmando. Basta que avancemos na até aqui na luta pelo SUS e dos constantes
caracterização desse descompasso, trazen- ataques sofridos desde 1988, com a enorme
do para o diálogo um dos mais importantes ampliação do setor privado e consequente
intelectuais coletivos que falam em nome do enfraquecimento do setor público, aponta-
movimento sanitário e que costuma evocar -se para a necessidade de construção de
o fantasma para a construção dos seus diag- “uma sociedade solidária e democrática” na
nósticos sobre as mesmas derrotas que têm qual se deve buscar “um modelo de Estado
nos atingido a todos, trabalhadores: o Centro onde políticas sociais protegem os cidadãos
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), e reduzem as desigualdades”. Em suma, “um
criado em 1976. Em três documentos recen- Estado democrático cujo centro para o seu
tíssimos, essa entidade manifestou a força desenvolvimento sejam as pessoas e as popu-
viva de uma prática política que resiste, como lações, e não os interesses do mercado”25(6).
dissemos, a despeito (e na contramão) da pe- O terceiro documento a que faremos refe-
dagógica realidade que vivemos. Vejamos. rência é a tese do Cebes para o biênio 2017-
Em editorial intitulado ‘Saúde é demo- 201926. Lançada em fins do mês de julho de
cracia: ontem, hoje e sempre’, presente na 2018, com a assunção de uma nova diretoria,
edição de outubro de 2017, o Cebes reafirma trata-se de um guia geral da ação política do
a sua luta pela democracia e reivindica o seu Centro no período. No entanto, não foge às
importante e representativo papel nas lutas compreensões e diretrizes que apontamos
de décadas atrás pelo direito universal à aqui nos documentos anteriores e, inclusive,
saúde. Faz da realidade o seguinte diagnósti- os repete em determinado conjunto de for-
co: vivemos atualmente, em escala mundial, mulações e ideias-força. Consideramos des-
o aumento da tensão entre democracia e ca- necessário citá-lo diretamente para a coleta
pitalismo, que anuncia o fim do ‘capitalismo de mais evidências, mas a decisão de incluí-lo
democrático’, produto do pacto social do nessas considerações finais se deveu à im-
pós-guerra cujo resultado foi a domesticação portância estratégica conferida a ele por seus
dos mercados pela democracia. E completa: autores para a condução política do Centro, e
do movimento sanitário, no próximo biênio.
a democracia passou a ser dominada pelos Sendo assim, a perspectiva da conciliação
mercados, alterando o contrato social do pós- de classes, que acredita na possibilidade de
-guerra e o equilíbrio que se mantinha entre harmonização dos interesses entre capital e
os interesses do capital e os interesses dos trabalho, no controle do capital pelo Estado
cidadãos22(991). – este conduzido democraticamente pela
vontade geral do conjunto da cidadania –,
Na edição seguinte da mesma revista, não poderia ser mais persistente. Em que
que veio a público em janeiro de 2018, outro pese a importância de reafirmar a luta pela
editorial, sob o título ‘Justiça social, demo- democracia sob uma conjuntura de cassa-
cracia com direitos sociais e saúde: a luta do ção de direitos e desrespeito flagrante aos
Cebes’, insistiu na mesma linha. Recusando mínimos espaços de garantia legal no inte-
o Estado, em última análise, como garanti- rior da ordem burguesa, a constatação que
dor da relação de dominação e extração de salta aos olhos é que continuaremos a pro-
valor que é o capital23 e romantizando a so- duzir uma fantasmagoria voluntária. É de se
ciedade civil como o espaço do consenso e da notar que após 32 anos a síntese do programa
harmonia24, o Cebes novamente nos oferece político da esquerda democrática, vocaliza-
a sua compreensão do real e um programa a do por Arouca na abertura da VIII CNS de
ser buscado pelas forças progressistas. Após 1986, continue a se fazer ouvir.
um rápido balanço da trajetória cumprida Em texto de 1993, analisando o impacto

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da atmosfera revolucionária dos anos 1960 forças por meio de reformas, tijolo por tijolo,
e 1970, no Brasil, Jacob Gorender27(14) disse estaria construindo o socialismo (democrá-
tratar-se também de um fantasma a herança tico), que viria como consequência lógica
deixada pela derrota da luta guerrilheira: “o de um potente processo de democratização.
fantasma da revolução brasileira”. É irresistí- Para tanto, e exatamente em função dessa es-
vel a analogia. Serão distintos os fantasmas? tratégia, aderiu taticamente a uma forma de
Acreditamos que não, posto que ambos são fazer política que, em nome das conquistas
produto de derrota. Na sequência do fim do eleitorais e institucionais, crescentemente,
regime ditatorial, a ‘esquerda democráti- relegou a segundo plano a organização e a
ca’ que resultou do movimento de massas, mobilização pela base, produzindo assim, no
embora tenha nascido recusando a concilia- que lhe coube, deliberadamente, mais distan-
ção de classes capitaneada pelo PCB de então, ciamento e ausência do que a correlações de
aos poucos também se afastou, convicta, da forças já nos impunha. À classe que deixamos
revolução e junto dela, acreditava, do seu de enxergar como verdadeiro motor das con-
fantasma vermelho. Elegeu a ‘radicalização quistas civilizatórias e que, depois de desabo-
da democracia’ como nova bandeira, nos nada pelas suas experiências mais radicais,
limites da ordem burguesa e de suas insti- recolheu-se, demos o nome impróprio de
tuições, na expectativa de que acumulando fantasma. É chegada a hora de reencarná-la. s

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Recebido em 31/07/ 2018
Aprovado em 09/08/2018
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