BERGSON, Henri. Aulas de Psicologia e de Metafísica – Curso de Psicologia - 5ª aula: Seu objeto.
Características próprias dos fatos que ela estuda. Trad. Rosemary Costhek Abílio – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2014, pp. 3-9.
A psicologia ou ciência da alma propõe-se estudar a alma humana, a analisar e
descrever as operações que ela empreende. – Portanto, antes de mais nada, devemos delimitar claramente sua área, estabelecer quais são os fatos de que se ocupará e quais são, ao contrário, os que pertencem a outras ciências. Assim sendo, vamos tentar determinar o que caracteriza o fato psicológico, tentar distingui-lo dos outros fatos ou fenômenos. O meio mais simples será usar exemplos. Penso nessa dor bem característica que sentimos quando espetamos o dedo, com um alfinete, por exemplo. Isso é um fato; essa dor existe incontestavelmente e posso dizer que o alfinete tocou e picou um certo ponto da superfície de minha pele, ponto que ocupa no espaço um lugar perfeitamente determinado. - Mas a dor que sinto, onde está ela? Não adiantará afirmar que está na extremidade de meu dedo, pois, se estivesse ali, poderíamos vê-la, tocá-la, acabaríamos descobrindo um ponto onde essa dor habita. Ora, isso é impossível e absurdo. Quando dizemos que estamos sentindo uma dor no dedo, queremos dizer que a causa física dessa dor, ou seja, a ponta do alfinete, foi colocada nesse lugar do dedo. Mas o dedo, por si só, não pode sentir; ele é apenas matéria, e tanto isso é verdade que se pode até mesmo sentir dores num dedo que não se tem mais. É bem conhecida a ilusão das pessoas amputadas, que tem sensações no membro que perderam. Isso ocorre porque, por um efeito do hábito, localizamos certas dores ou certos prazeres em determinadas partes do corpo. Mas essas dores e esses prazeres não estão ali nem em outro lugar. Não estão em lugar nenhum. Uma dor ou um prazer são fenômenos, fatos que existem, que ocorrem, isso é incontestável, mas que não tem extensão. Pois, se pudéssemos indicar um lugar preciso onde se encontram, poderíamos vê-los ou tocá-los, ou colocá-los em evidência por meio de um experimento ou de um processo físico qualquer. – Ora, isso é impossível; e o que estamos dizendo de uma dor como a picada será verdade a fortiori para aquela dor de outro tipo, que é chamada de dor moral. Imagino que a perda de um amigo me cause tristeza. Essa tristeza tem um começo e em geral tem um fim; tem uma duração. Mas onde ela está? Alguns a situam no coração. Realmente, quando estamos tristes dizemos que nosso coração está pesado. Mas seria inútil dissecar o coração para procurar a tristeza. Ela não está ali; não está ali nem em outro lugar. É verdade que o fisiologista Claude Bernard conseguiu demonstrar que determinadas emoções, e mesmo a maioria das emoções, repercutem no coração; que, quando estamos tristes, por exemplo, o sangue aflui para aquele órgão de tal modo que realmente ficamos com o coração mais pesado; que, ao contrário, o sangue reflui para as extremidades quando estamos alegres, e então realmente ficamos com o coração leve. Mas esses são fenômenos fisiológicos que acompanham as emoções; não são as emoções propriamente ditas, pois elas não ocupam lugar no corpo humano. Assim, temos aqui certos fatos: uma dor física, uma dor moral, uma sensação, um sentimento, que existem incontestavelmente, que têm uma certa duração, um certo tempo, e que entretanto não têm lugar no espaço, não são localizáveis. Passemos agora a uma outra categoria de exemplos: neste momento estou refletindo sobre minhas chances de ser aprovado num exame difícil. É o que se costuma chamar de uma ideia (a palavra ideia não está empregada aqui no sentido filosófico, como veremos; mas não importa). – Quanto mais reflito, mais os pensamentos de toda espécie se cruzam e se entrecruzam em meu espírito; e, se eu fixar por muito tempo minha atenção nas chances favoráveis e nas chances contrárias, alternadamente embalado pela esperança e atormentado pelo receio, posso acabar sentindo uma violenta dor de cabeça. – O povo explica esse tipo de fato dizendo que é a cabeça que pensa. Mas, como isso seria possível? Se o pensamento ficasse dentro da cabeça, ocuparia um lugar ali; e quem dissecasse os tecidos que a formam acabaria encontrando o pensamento na ponta do escalpelo. – Isso não acontece e nunca acontecerá. O cérebro realmente é o órgão do pensamento; é até mesmo provável que não possamos pensar sem que fenômenos físicos ou químicos se operem simultaneamente no cérebro. Mas o cérebro não é o pensamento e o pensamento não mora no cérebro, pois, se residisse nele, seria encontrado. E forçosamente não está em outro lugar. Portanto, não está em lugar nenhum; não tem um lugar no espaço; tem uma duração, como o sentimento, mas não tem extensão. Finalmente, para concluir essa enumeração, vamos considerar uma terceira ordem de fatos: uma resolução tomada, uma decisão, por exemplo. Digo a mim mesmo que vou começar a estudar para ser aprovado no exame. Tomo essa resolução num certo momento determinado; portanto, é possível designar para ela um lugar na duração, no tempo; mas será possível atribuir-lhe um lugar no espaço? É verdade que posso dizer que fui eu que tomei essa resolução e que estou aqui e não em outro lugar. Mas será mesmo o eu que está aqui, que reside nesta sala quando me movimento? É o corpo. Mas essa força que chamo de eu, que chamo de mim, não posso dizer que ela esteja no meu corpo, pois, se estiver, está onde? – Portanto, é para facilitar a linguagem que localizamos, isto é, fixamos num ponto determinado os fenômenos ou objetivos que acabamos de examinar. Na realidade, eles não são localizáveis. Esses diferentes fatos pertencem a categorias distintas, sem dúvida, e todos se produzem na duração, todos ocupam um certo tempo; mas não têm extensão, estão fora do espaço e escapam a ele. São chamados de fatos psicológicos. Definimos os fatos psicológicos de um modo preciso dizendo que esses fatos têm como característica própria poderem ser localizados na duração mas não no próprio espaço, ocuparem tempo mas não extensão. É nisso, aliás, que se distinguem dos fatos físicos. Um fenômeno físico, a caída de uma pedra, por exemplo, também ocupa tempo. Essa queda começa e termina em momentos determinados; mas é possível indicar o ponto do espaço onde ela começa e o ponto do espaço onde termina. Portanto, é um fato físico; portanto, não é um fenômeno psicológico. Essa diferença radical que separa os fenômenos psicológicos dos outros fatos estudados pela ciência acarreta outras diferenças. Os fenômenos que acontecem diariamente no mundo material nos são revelados pelos sentidos. Nossos sentidos, como veremos, têm como órgãos nervos, um sistema nervoso; e precisamente porque esses nervos são tocados por coisas externas é que tomamos conhecimento dessas coisas. Fenômenos físicos que não impressionarem nossos sentidos não podem ser conhecidos por nós e permanecem ignorados para sempre. Mas, justamente porque nossos sentidos só entram em ação quando seus órgãos receberem uma estimulação física, esses sentidos só podem perceber objetos extensos. Percebemos, por exemplo, um odor: isso acontece porque moléculas se desprenderam do objeto odorante e vieram tocar nossa mucosa. Mas a molécula é algo que tem uma grandeza, que tem extensão, que ocupa espaço; e quando um fenômeno não ocupa uma extensão, quando não tem um lugar no espaço, como nossos sentidos poderiam percebê-lo? – Essa simples observação é suficiente para sugerir-nos que os fenômenos chamados de psicológicos não podem ser conhecidos pelos sentidos. Então, como temos conhecimento deles? Por uma faculdade especial, que teremos oportunidade de estudar com detalhes e que se chama consciência. É ela que nos informa que estamos tristes ou que estamos alegres, que tomamos uma resolução, que nossos pensamentos se voltam para um determinado bem. A consciência é, portanto, uma faculdade de observação interior. É como uma luz projetada sobre os fatos dessa ordem particular que são chamados de psicológicos. A consciência, como falaremos mais adiante, é essa nossa faculdade ou esse nosso poder de conhecermos a nós mesmos. É um sentido interno. – Portanto, ao passo que os fatos do mundo físico são conhecidos pelos sentidos, os fatos psicológicos só podem ser percebidos pela consciência. Por isso frequentemente são chamados de fatos ou fenômenos da consciência. Por fim, devemos destacar que todo fenômeno que ocupa extensão se presta à medição. Assim, medimos uma dilatação, uma atração, um movimento etc., mas, inversamente, só podemos medir o que ocupa extensão. Isso porque toda medida implica uma superposição efetuada ou possível. Dizer que uma coisa é o dobro de uma outra é dizer que esta aqui, posta naquela ali, caberia nela duas vezes. Dizer que 6 é o dobro de 3 é simplesmente expressar que 3 metros, por exemplo, podem ser postos duas vezes numa extensão de 6 metros; que, se tivermos 6 maçãs, por exemplo, poderemos obter as 6 maçãs alinhando 3 maçãs e 3 maçãs. Não há outro modo de entender a medida. Dizer que uma temperatura é duas vezes mais alta que uma outra é dizer que a coluna termométrica, contada num caso a partir de zero, pode ser posta duas vezes na coluna termométrica contada a partir de zero no mesmo termômetro em outras circunstâncias. – Ora, os fatos psicológicos, como não ocupam espaço, não podem ser superpostos; portanto, não são mensuráveis. Realmente, o que significaria uma dor ser o dobro de uma outra dor? Concebe-se bem, a rigor, que uma dor é mais intensa do que uma outra, que sofreremos mais com a perda de um amigo íntimo do que com uma picada no dedo, mas ninguém ousaria afirmar que a primeira dor seja dez, quinze vezes maior do que a segunda. Aqui a medição é impossível. Não há grandezas desse tipo capazes de uma superposição viável. Essa é uma terceira característica do fato psicológico. Apesar de real, apesar de passível de intensidade, ele possui uma intensidade que não pode ser medida. Portanto, para concluir, o fato psicológico é aquele que, ocupando um lugar na duração, não ocupa um lugar na extensão; que, escapando aos sentidos, só é percebido pela consciência; por fim, que, apesar de sujeito a intensidade, não admite medida.