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Lógicas do Reconhecimento

Curso Ministrado no
Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Primeiro semestre de 2017

Professor Vladimir Safatle


Lógicas do reconhecimento
Aula 1

No ano de 2011, os países á rabes conheceram grandes manifestaçõ es populares


pela primeira vez em décadas. Estas manifestaçõ es contra governos autoritá rios
foram catalizadores de descontentamento social, sentimento de injustiça
econô mica e invisibilidade política. Dentre vá rias palavras de ordem utilizadas
em vista à mobilizaçã o e à consolidaçã o da revolta, uma foi ouvida de forma mais
insistente. Ela tinha a peculiaridade de ser uma palavra que está entre o
sentimento moral e a demanda política, a saber, “Respeito”.
Este dado aparentemente anó dino merece ser salientado. As pessoas nã o
se deixaram mobilizar imediatamente por um projeto de modificaçã o da
estrutura econô mica ou de demandas pontuais sobre direitos e benefícios. Elas
foram à s ruas por se sentirem “desrespeitadas”, desprezadas, ou seja, por
entenderem que havia um nível elementar da vida social que lhes faltava, algo
que poderíamos chamar de “fundamento” da vida social. Fundamento no qual
encontramos prá ticas que explicitam como instituiçõ es e estruturas de poder
devem me reconhecer como sujeito político dotado de visibilidade, de voz. Há de
se levar em conta este fato: para além do que poderíamos definir como
motivaçõ es latentes, a mais importantes sequências de insurreiçõ es populares
do século XXI foi feita em nome de um sentimento profundo de desrespeito.
Há ainda um outro fato que gostaria de trazer a vocês. No ano de 2002,
Kamla Abu Said e sua irmã Amna foram mortas em meio ao conflito Israel-
Palestina enquanto trabalhavam em um fazendo em Gaza. Dias antes, Fatima
Zakarna e seus dois filhos, Bassen e Suhair também haviam sido mortos
enquanto colhiam folhas de uvas nos campos de Kabatyia. Tempos depois, um
palestino cidadã o norte-americano que conhecia as vítimas quis publicar um
obituá rio no jornal San Francisco Chronicle. No entanto, o jornal recusou a
publicaçã o afirmando que “nã o gostaria de ofender ninguém”. Diante da
repercussã o da histó ria, Judith Butler perguntou: é aceitá vel que a experiência
pú blica do luto seja vista por alguém como uma ofensa? 1. A pergunta era, de fato,
necessá ria. Pois afirmar que há vidas que nã o podem ser objeto pú blico de luto,
cujas mortes nã o podem ser objetos de um trabalho de memó ria é, sob quaisquer
circunstâ ncias, moralmente aceitá vel? Notem que se tratava neste caso de retirar
da vida sua dimensã o de experiência que se transmuta em memó ria, ou seja,
tratava-se de reduzi-la à condiçã o de uma vida sem a possibilidade de habitar o
tempo dos traços que resistem ao esquecimento, dos arquivos que desafiam a
contraçã o do presente, dos corpos que se transformam em virtualidades a
construir outras formas de presença.
A questã o que talvez devamos fazer é: nã o se trataria aqui de anular uma
dimensã o (mais uma vez) fundamental do que chamamos de “vida social”?
Desde os gregos, desde Antígona, nos perguntamos se um Estado que impede o
1
BUTLER, Judith; Precarious life, Verso, p. 32
luto pú blico de qualquer um (é há de se insistir aqui neste dimensã o de
“qualquer um”), jogando-o em uma nudez da vida sem atributos e sem
virtualidade, tem ainda o direito de existir. Esta pergunta poderia ser mais uma
vez posta, como precisou ser vá rias vezes postas na histó ria. O que acontece
quando há vidas impedidas de habitar o tempo do luto?
Mas eu gostaria ainda de trazer um terceiro fato. Na década de cinquenta,
o psicanalista Donald Winnicott recebeu uma paciente em seu consultó rio.
Tratava-se de uma mulher, por volta dos cinqü enta anos, que descobriu ter
construído uma vida na qual: “nada do que se passava realmente era
verdadeiramente importante para ela”2. Winnicott fala de um sentimento de nã o
“existir de fato”. Pois ela vive em um estado de dissociaçã o no qual a parte “mais
importante dela mesma” encontra espaço em uma outra vida: uma vida
fantasmá tica. No entanto, nesta vida fantasmá tica onde ela pode conservar si
mesmo no interior da ilusã o de onipotência pró pria ao que nã o precisaria se
confrontar com situaçõ es concretas para existir, ela descobre que fantasia como
um Outro. Winnicott remete tal alienaçã o a situaçõ es infantis nas quais a
paciente, filha mais nova de um casal com vá rias crianças, relaciona-se com
outros internalizando um mundo já organizado. Assim, por exemplo, ela joga
com as crianças um “jogo dos outros”. Atividade que ela associa ao fantasiar.
Desta forma, ela podia: “observar-se jogando o jogo das outras crianças como se
ela observasse alguém outro no grupo do jardim de infâ ncia”3. Maneira de
afirmar que a paciente se sentia, na dimensã o da fantasia, presa ao olhar do
Outro, jogando um jogo cujas regras nã o lhe parecem expressar algo que, de fato,
lhe concerne.
No entanto, a paciente produz um sonho importante para a sequência da
aná lise. Neste sonho, ela se debatia furiosamente com um tecido que deveria ser
cortado para produzir um vestido. Ela o cortava e recortava, fazia e desfazia, o
que lhe deixava exasperada. A interpretaçã o de Winnicott girará em torno da
noçã o de “informidade” (formlessness). Tudo se passa como se o sonho mostrasse
como: “o meio ambiente tinha sido incapaz de lhe permitir, durante sua infâ ncia,
ser informe ‘recortando-lhe’ a partir de um padrã o cujas formas tinham sido
concebidas por outros”4. A partir de tal interpretaçã o, a paciente sente um
profundo sentimento de que, desde sua infâ ncia, ninguém havia reconhecido que
ela devia começar por ser informe.
O que estas situaçõ es tã o distintas entre si tem em comum? Em que
experiência sociais como: manifestaçõ es de massa contra o sentimento de
desrespeito, vidas que nã o podem receber o luto pú blico e uma mulher que se
sente jogando o jogo dos outros e que luta em seus sonhos contra um vestido
potencial por nã o saber o que fazer com sua informidade diriam respeito a um
problema simétrico? Haveria algo a unificar esses campos dispersos da política,
da moral e da clínica?
Creio que esta é talvez a melhor maneira de começarmos nosso curso
porque, de fato, ao menos para uma certa tradiçã o filosó fica, a resposta a darmos
a tais perguntas deveria ser necessariamente positiva. Nesses três casos, há um
nível fundamental da vida comum que foi bloqueado, produzindo com isto
situaçõ es que poderíamos chamar de “invisibilidade social”. Invisibilidade esta

2
WINNICOTT, Donald; Jeu et réalité: l’espace potential, Paris: Gallimard, 1987, p. 44
3
Idem
4
Idem, p. 50
que se traduz no sentimento de simplesmente nã o existir ou de ter uma
existência profundamente mutilada, como alguém preso entre a vida e a morte.
Ou seja, há em todos esses casos, de formas mú ltiplas, com intensidades
variá veis, a experiência de que a possibilidade de existência está inviabilizada. O
que nos coloca uma questã o da maior importâ ncia e que certamente nã o será de
fá cil resposta, uma questã o que cada uma dessas situaçõ es nos coloca, a saber: o
que fenô menos como estes podem nos dizer a respeito do que entendemos por
“existência”?
Claro, há sempre aqueles que darã o de ombros a questõ es como esta
dizendo que a determinaçã o das condiçõ es de existência é um problema trivial
que se reduz a verificaçã o de enunciados constatativos. Eles dirã o entã o que algo
existe na medida que pode ser verificado pela percepçã o em condiçõ es normais.
A percepçã o constataria o que está lá , pronto para ser desvelado. E poderíamos
ainda naturalizar tais “condiçõ es normais” afirmando que elas corresponderiam
a padrõ es normativos gerais dos ó rgã os humanos. Padrõ es estes que, por sua
vez, poderiam ser potencializados a partir de instrumentos e condiçõ es de
laborató rio.
Mas poderíamos também dizer que a determinaçã o das condiçõ es de
existência nã o é dependente de enunciados constatativos. Nó s nã o apenas
constatamos algo quando dizemos que algo existe. Nó s produzimos algo, ou seja,
tratam-se de enunciados performativos. Muitas vezes, dizer que algo existe é
inclui-lo em um horizonte de experiência do qual ele nã o fazia parte, modificar
nã o apenas o estatuto de algo, mas a pró pria estrutura de tal horizonte. Dizer que
algo existe é inseri-lo em outra rede de efeitos. Pois a existência nã o é apenas um
fato, ela é um valor. Isto implicaria, entre outras coisas, colocar em questã o uma
das mais fundamentais crenças do senso comum, a saber, a crença em uma
natureza meramente especular da percepçã o. Como se nossa percepçã o fosse
apenas um espelho do mundo, que pode ficar opaco à s vezes, mas que também
pode ser polido até um grau elevado de translucidez.
Contra tal crença na especularidade da percepçã o poderíamos insistir
como o mundo humano estabelece uma relaçã o profunda entre existência e algo
que devemos chamar aqui, algo que será o verdadeiro objeto de nosso curso e,
por isto, exigirá um movimento lento e detalhado de definiçã o, de
“reconhecimento”. Se a existência nã o é um fato, mas um valor é porque toda
existência deve ser, necessariamente, existência reconhecida.
Neste sentido, poderemos dizer que aquilo em comum nos casos que
trouxe a vocês é: todos eles explicitam um sofrimento de inexistência devido à
impossibilidade de realizaçã o de exigências de reconhecimento. Ao sair à s ruas
exigindo “respeito” é como se falá ssemos que até agora nã o existimos como
sujeitos políticos, nã o fomos reconhecidos no interior das dinâ micas sociais de
poder. Ao nã o admitir que certas vidas nã o possam ser objetos de luto, estamos a
dizer ser inaceitá vel que elas passem à invisibilidade, que lhes sejam negadas as
condiçõ es de reconhecimento. Ao dizer que para existir, ela precisava ser
reconhecida como informe, ser reconhecida para além da figura de uma boa
jogadora que joga o jogo dos outros, a paciente de Winnicott adoece por viver em
um mundo no qual as condiçõ es de reconhecimento de uma dimensã o
fundamental de seu desejo foi negada.
Que este sentimento de reconhecimento negado perpasse a histó ria de
nosso desejo, assim como nossa existência política e as possibilidades de
nomeaçã o no interior da linguagem, isto apenas demonstra como nã o estamos
diante de dimensõ es de experiência completamente autô nomas entre si e que
cabe à filosofia reconstruir o sistema de implicaçã o entre campos que nossa
época gostaria de nos fazer acreditar que sã o radicalmente distintos. O que já
pode servir como uma primeira razã o para analisarmos conceitos
aparentemente genéricos como “reconhecimento”. Pois talvez sua genericidade
tenha de fato uma funçã o.

Existir é ser reconhecido

Mas voltemos por um instante a ideia de que reconhecimento seria,


principalmente, um modo de determinação de existência. Ao invés de começar por
fornecer a vocês aquela que seria a definiçã o atualmente hegemô nica de
reconhecimento, a saber, a relação mútua e simétrica entre indivíduos autônomos
em sua existência social, relaçã o que exige uma mutualidade cooperativa entre
indivíduos, assim como a possibilidade de expressã o e realizaçã o de seus
interesses autô nomos e da consciência de suas auto-limitaçõ es recíprocas, eu
gostaria de construir com vocês uma outra compreensã o do que está em jogo na
maneira que certa tradiçã o filosó fica trouxe à reflexã o o problema do
reconhecimento. Eu gostaria de mostrar a vocês durante este curso que tal
definiçã o de reconhecimento, tã o presente atualmente na filosofia social, na
reflexã o moral, na teoria política, na clínica do sofrimento psíquico, definiçã o
para a qual convergem conceitos como intersubjetividade, açã o comunicativa e
cooperaçã o é insuficiente e irredutivelmente normativa.
Para tanto, seria o caso de começar com uma pergunta que se mostrará
simples apenas em aparência, a saber, o que significa dizer que só o que é
reconhecido existe? Que tipo de existência é esta que emerge a partir da
realizaçã o de dinâ micas de reconhecimento? Eu gostaria de insistir em três
consequências que definirã o o horizonte a partir do qual o problema do
reconhecimento se desenvolverá a partir do século XIX.
A primeira consequência de uma afirmaçã o que vincula reconhecimento e
existência é insistir que a existência é indissociá vel de algo que poderíamos
chamar de “estrutura implicativa”. Existir é produzir implicaçõ es, é estabelecer
relaçõ es implicativas, pois relaçõ es que transformam ambos os termos em
relaçã o. Reconhecer seu desejo é, por exemplo, faze-lo, ao mesmo tempo, existir e
modificar meu pró prio desejo. Esta implicaçã o pode ser restrita, quando o
reconhecimento modificar apenas um conjunto de relaçõ es locais e
contextualmente determinada, ou genérica, quando modificar estruturas gerais
vá lidas em todo e qualquer contexto.
Neste sentido, devemos inicialmente distinguir “reconhecimento” e
“recogniçã o”. Vá rias sã o as línguas que operam tal distinçã o: Anerkennung e
Rekognition, recognition e aknowledge, reconnaissance e recognition. Que nos
aproveitemos da força especulativa da linguagem ordiná ria. Pois esta distinçã o
permite a operacionalizaçã o de uma diferença filosoficamente relevante.
Reconhecer nã o deve ser entendido simplesmente como confirmar o que já
conheço, ver de novo, encontrar algo uma segunda vez, como se fosse questã o de
re-conhecer, de re-apresentar, de re-presentar. Em todas essas situaçõ es,
encontramos o sentido de uma identificaçã o que assimila o nã o conhecido ao
conhecido, o nã o visto ao já visto. Vejo alguém ao longe e reconheço se tratar de
um velho conhecido. Nada ocorreu, a nã o ser a adequaçã o da representaçã o ao
objeto representado. Como nada afinal ocorre quando Só crates mostra, em
Menon, que o escravo sabe operar a duplicaçã o da á rea do quadrado através da
deduçã o da diagonal, mesmo que nã o se dê conta disto. Só crates apenas
atualizou o que já estava lá como reminiscência, o escravo apenas, como dirá
Platã o, “recuperou a ciência”5. Por isto, nã o podemos dizer se tratar de
reconhecimento, o escravo nã o permite emergir algo que lhe modifica e que
modificaria também Só crates. Só crates continua mestre, o escravo continua
escravo, mesmo que saiba agora duplicar quadrados. Ele apenas operou uma
recogniçã o.
No entanto, é verdade que este parece o sentido mais imediato do termo
“reconhecimento”, ou seja, confirmar o que já sei, assegurar-me da existência de
algo que já espero. Mas gostaria de insistir que esta identificaçã o de
acontecimentos no interior de um sistema prévio de expectativas nã o saberia ter
força implicativa alguma. Pois implicar-me com algo é integrar ao meu horizonte
de experiência aquilo que até então dele não fazia parte. Implicaçã o é uma
operaçã o de assimilaçã o do que nã o aparecia como meu, que pressupõ e por isto
formas de transformaçã o. Por isto, reconhecer é indissociá vel da compreensã o
da existência como processo.
A importâ ncia histó rica da noçã o de reconhecimento, fato que como
veremos ocorre a partir do início do século XIX no interior do idealismo alemã o
através de Fichte e, principalmente, Hegel, só poderia ocorrer em uma era
histó rica na qual a existência nã o será determinada como expressã o de uma
substâ ncia, mas como desenvolvimento de um processo de alteraçõ es contínuas
desdobrando-se em um tempo prenhe de contingências. Desenvolvimento
processual que aparece nesta forma de associar, na mesma época que o
reconhecimento se consolidar como problema filosó fico central, determinaçã o
do ser e historicidade, desenvolvimento processual no interior do tempo. Pois se
reconhecer nã o é apenas produzir a recogniçã o de algo é porque se trata de
permitir que algo implique minha pró pria existência, abrindo-lhe a um
movimento que nã o lhe era imanente, ou que só lhe é imanente de forma
retroativa, apó s o reconhecimento de algo que me aparece como outro.
Neste sentido, a segunda consequência de vincular reconhecimento e
existência é assumir uma tese forte a respeito da relaçã o entre ser e pensar. Pois
afirmar que só aquilo que é reconhecido existe é uma das formas possíveis de
dizer que ser e pensar sã o pois o mesmo. O que nã o significa dizer que só o que é
atualmente pensado existe, tese que nos levaria a elevaçã o da gramá tica atual do
pensamento a condiçã o intransponível de determinaçã o de existência. Na
verdade, temos a proposiçã o de que o que é pró prio ao que entendemos por “ser”
é indissociá vel de formas específicas de reflexividade. Há uma reflexividade
imanente ao ser. Ao pensar, nã o produzo necessariamente uma clivagem entre as
coisas tal como elas aparecem para mim e as coisas tais como seriam por si
mesmas. Ao pensar, eu permito que as coisas emerjam em sua existência.
Isto, como vocês podem imaginar exige muito a se dizer a respeito do que
pode significar “pensar” neste contexto. Afinal, poderíamos nos perguntar se
penso quando represento algo, quando disponho algo diante de mim [como
vemos no sentido da palavra vor-stellen] fazendo do sujeito um fundamento
normativo para toda e qualquer existência? Ou penso quando consigo me
5
PLATÃO; Menon, 85d
aproximar do que me despossui das minhas condiçõ es iniciais de representaçã o
e de apreensã o?
A este respeito, lembremos como todo reconhecimento é uma operaçã o
reflexiva. Retomemos o sentido originá rio da noçã o de reflexã o, este que aparece
pela primeira vez com John Locke e que se define como: “a observaçã o que a
mente tem de suas pró prias operaçõ es”6. Há uma experiência de auto-apreensã o
do pensamento em toda reflexã o, uma capacidade do pensamento inspecionar
seu pró prio modo de apreensã o. Neste sentido, a reflexividade imanente ao
reconhecimento tenta descrever estruturas de correlaçã o fundamental entre
auto-referecialidade e referência a outro, entre relaçã o a si e relaçã o a outro. Esta
é uma das tensõ es fundamentais a sustentar os processos de reconhecimento e
ela nos leva a uma questã o maior: em que condiçõ es a auto-referencia é, ao
mesmo tempo, uma referência a outro? Que tipo de autonomia podemos derivar
de uma operaçã o na qual, de forma inesperada, a referência a si e a referência a
outro se confundem? Seria ainda possível falar em identidade no interior das
operaçõ es de reconhecimento? Reconhecer algo que é, ao mesmo tempo,
referência a si e referência a outro é ainda reconhecer uma identidade ou
precisaremos de um conceito mais preciso?
Como derivaçã o direita deste ponto, teríamos a ú ltima consequência da
afirmaçã o do vínculo entre reconhecimento e existência. Pois a noçã o de
reconhecimento, e ninguém melhor do que Hegel compreendeu isto, é
indissociá vel de uma compreensã o da natureza conflitual da existência. Existir é
estar sob conflito. Proposiçã o necessá ria se assumirmos que reconhecer é fazer
existir o que até agora nã o foi contado como existente, é reconfigurar os modos
atuais de existência. Pois esta exclusã o nã o foi fruto de um acaso. Toda existência
está submetida a um jogo de forças, à perpetuaçã o de uma configuraçã o
específica de forças. Por outro lado, todo reconhecimento efetivo implica
modificaçõ es no jogo atual de forças, o que nã o pode ocorrer sem que emerja a
ordem do conflito. O que não produz conflitos não existe, existir é produzir
conflitos e este talvez seja um dos fundamentos de toda teoria do
reconhecimento digna deste nome.
No entanto, há de se lembrar que conflitos podem assumir, grosso modo,
duas formas fundamentais. Posso entrar em conflito por exigir um lugar no
interior do campo atual de visibilidade. Exijo a partilha de certos atributos, o
exercício de certos direitos que nã o me foram até agora conferidos. Neste caso,
notem como aceito a existência de algo como uma “gramá tica social de conflitos”.
Há uma gramá tica pressuposta que traduz os conflitos à s determinaçõ es
possíveis e internas a um campo comum de regulaçã o atualmente em operaçã o.
Eu nã o coloco em questã o o exercício de direitos e a determinaçã o de atributos,
eu apenas exijo que eles também sejam aplicados a mim. Como se diz, eu peço o
que é meu.
Mas há situaçõ es nas quais posso entrar em conflito a respeito da
existência ou nã o de uma gramá tica comum de regulaçã o. Posso dizer que o
conflito é a respeito da existência da pró pria gramá tica. Posso questionar que
exista uma gramá tica social de conflitos partilhada potencialmente por todos.
Assim, fica claro que posso ter um conflito sob regras e um conflito sobre regras e
este segundo caso é certamente o mais complexo. Pois este conflito colocará uma
questã o fundamental a respeito dos modos de reconhecimento. Como
6
LOCKE, John; Essay concerning the human understanding, Livro II, Capítulo I, parágrafo 4
reconhecer o que nega a pró pria existência de uma gramá tica atual de condiçõ es
de reconhecimento? O que gostaria de mostrar é que, longe de uma simples
aporia, temos aqui uma dinâ mica estruturante de algumas de nossas
experiências fundamentais.

Um retorno a Hegel

Recapitulando. Temos entã o na temá tica do reconhecimento um modo de


determinação de existência que é, ao mesmo tempo, implicativo, reflexivo e
conflitual, com níveis diversos de conflitualidade. O que gostaria de fazer neste
curso é nã o apenas descrever a emergência histó rica deste conceito de
reconhecimento implicativo, reflexivo e conflitual, mas também expor sua
presença no pensamento contemporâ neo, sua capacidade de tensionamento das
reflexõ es políticas, morais e clínica da vida contemporâ nea. Neste sentido, o
curso tem uma funçã o dupla.
Em um primeiro momento, será questã o de descrever como o problema
do reconhecimento aparece no interior do idealismo alemã o. Veremos como é
através do problema do reconhecimento que se inicia o que poderíamos chamar
de “guinada materialista do idealismo”. Pois o reconhecimento nos abre para a
tematizaçã o da gênese das estruturas da consciência através das relaçõ es
concretas de trabalho, desejo e linguagem. Se a consciência só é enquanto
reconhecida, entã o serã o os campos concretos de reconhecimento que
determinarã o sua estrutura, seus modos de apreensã o e pensamento. A filosofia
deverá assim se direcionar à compreensã o das modalidades concretas de
trabalho, de desejo e de linguagem enquanto expressõ es de uma gênese social da
consciência. Gênese esta que demonstra como toda proposiçã o de validade
deverá ser historicamente situada.
Mesmo que a emergência do conceito, em sua forma explícita, deva ser
remetida a Fichte e seus Fundamentos do direito natural, é com Hegel que
encontramos o pleno desenvolvimento do problema do reconhecimento, isto em
um movimento que perpassa seus textos de juventude (em especial o
manuscrito intitulado Sistema da eticidade) até alcançar a Fenomenologia do
Espírito, para ser retomado na Enciclopédia e nos Princípios da Filosofia do
Direito. Nó s faremos este trajeto procurando mostrar como ele explicita as fontes
de uma dialética materialista. Ou seja, a tese a ser defendida aqui é: o problema
do reconhecimento é a maneira hegeliana de retirar a filosofia de uma orientaçã o
transcendental, integrando uma perspectiva genética das estruturas da
consciência que nos permite a tematizaçã o do cará ter formador da histó ria e dos
processos materiais de organizaçã o do trabalho, de determinaçã o do desejo e
realizaçã o social da linguagem.
Em Hegel, a temá tica do reconhecimento será ainda uma maneira
inovadora de compreender a natureza dos conflitos sociais. No entanto, aqui
veremos uma segunda hipó tese. Pois há de se perguntar o que teria de realmente
inovador na maneira compreender conflitos sociais nã o apenas como conflitos
de redistribuiçã o de riquezas, de revolta contra a espoliaçã o e contra a ausência
de diretos dados a certas classes privilegiadas, mas como lutas por
reconhecimento. Pois a questã o fundamental só pode aparecer com a pergunta:
mas, afinal, o que Hegel tem em vista quando insiste em uma dimensã o
estruturante da luta por reconhecimento na determinaçã o de todo e qualquer
sujeito?
Como veremos, esta pergunta é mais complicada do que poderia
inicialmente parecer. No entanto, ela é decisiva se nã o quisermos entrar na
ilusã o retroativa que consiste a encontrar em toda filosofia sensível à
importâ ncia das relaçõ es intersubjetivas (como Rousseau, Hobbes, Locke ou até
mesmo Pascal e os moralistas franceses com sua consciência do cará ter
constitutivo do amor-pró prio e da estima na determinaçã o social dos sujeitos) a
presença implícita do problema do reconhecimento. Hegel está a pensar em uma
dificuldade bastante específica vinculada a emergência de um conceito de sujeito
cujas determinaçõ es ontoló gicas será necessá rio precisar. Pois veremos como
Hegel lembra que há vá rios níveis de reconhecimento, mas há um nível
fundamental cuja falta implicará necessariamente uma alienaçã o social
determinante.
Neste sentido, lembremos como, por exemplo, a propriedade é uma forma
de reconhecimento. Ter uma propriedade é exigir que outros reconheçam minha
posse, é levar outros a verem, em minhas propriedades, uma determinaçã o
fundamental de minha pessoa. Da mesma forma, o contrato é um regime de
reconhecimento, pois ele implica meu reconhecimento como sujeito provido de
certos direitos de gozo de bens, de usufruto. A pessoa é, por sua vez, outro
regime de reconhecimento que me define como objeto de normatividades
jurídicas específicas. A identidade social é, por fim, também uma forma de
reconhecimento. Mas será algo parecido a tais determinaçõ es que Hegel tem em
vista? As lutas por reconhecimento das quais fala Hegel seriam lutas sociais
levadas a cabo por sujeitos que querem ser reconhecidos como pessoas, como
proprietá rios, como portadores de direitos assegurados por relaçõ es contratuais,
como identidade sociais? Ou Hegel está a dizer que há uma dimensã o de
reconhecimento para além de tais determinaçõ es e é ela que nos coloca
problemas reais, é ela que, para nó s, é difícil a pensar.
Notem como esta questã o nos é contemporâ nea. Pois uma corrente
fundamental das discussõ es contemporâ neas de reconhecimento, esta que
apareceu no interior da Terceira geraçã o da Escola de Frankfurt (em especial
Axel Honneth) dirá ainda hoje, entre outras coisas, que: “sujeitos esperam da
sociedade, acima de tudo, reconhecimento de suas demandas de identidade” 7. O
que nã o poderia ser diferente para alguém que afirmará : “sujeitos percebem
procedimentos institucionais como injustiça social quando veem aspectos de sua
personalidade, que acreditam ter direito ao reconhecimento, serem
desrespeitados”8.
Afirmaçõ es como estas colocam no horizonte regulador dos processos de
reconhecimento um conceito de “integridade pessoal” cujo pressuposto
fundamental é a naturalizaçã o de facto das estruturas das noçõ es psicoló gicas de
“indivíduo”, “identidade” e “personalidade”. A consequência maior desta
pressuposiçã o será definir a pró pria gênese da individualidade moderna como
um fundamento normativo pré-político para as dinâ micas sociais de
reconhecimento, ou seja, como horizonte valorativo de funçã o transcendental
que funciona como um princípio formal de regulaçã o das expectativas sociais de

7
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition: a response to Nancy Fraser” in: HONNETH, Axel
and FRASER, Nancy; Redistribution or recognition, Nova York: Verso, 2003, p. 131
8
Idem, p. 132
emancipaçã o. Algo que deve ser politicamente confirmado, e nã o politicamente
desconstruído.
Neste ponto faz sentido retornar a Hegel. De fato, é isto que gostaria de
propor a vocês na primeira parte de nosso curso, a saber, um retorno a Hegel.
Gostaria de mostrar como toda sua teoria do reconhecimento é construída como
uma crítica exatamente ao cará ter regulador da individualidade moderna e seus
conceitos de pessoa, identidade e personalidade. Talvez vocês já devam ter
tomado conhecimento da tese de que a filosofia hegeliana seria a elaboraçã o
filosó fica de três acontecimentos maiores para a formaçã o da individualidade
moderna e seu princípio de subjetividade, a saber, a reforma protestante e sua
noçã o de interioridade, a revoluçã o francesa e seu sujeito universal de direitos, a
ascensã o do livre-mercado e seus indivíduos que sã o proprietá rios de si, que
definem sua liberdade sobretudo como auto-pertencimento (self-ownership).
Sem desconsiderar a relaçã o da filosofia hegeliana à elaboraçã o
especulativa de tais acontecimentos histó ricos, gostaria de mostrar como há
outra leitura possível. Digamos que Hegel elabora filosoficamente a reforma
protestante, mas a partir de sua noçã o de conflito e resistência. Da mesma forma,
a revoluçã o francesa, mas sua noçã o de “revoluçã o” que abala o enraizamento
das prá ticas e modos de julgamentos em costumes, tradiçõ es e transmissõ es. Por
fim, Hegel leva em conta a ascensã o do livre-mercado, mas a partir de sua
dinâ mica paradoxal de produçã o de riqueza e aumento da espoliaçã o, ou seja, de
sua regulaçã o social imperfeita. Isto cria uma dupla tarefa de, ao mesmo tempo,
saber dar visibilidade a uma subjetividade capaz de colocar em questã o tudo o
que aparecia arraigado em há bitos e tradiçõ es, abrindo espaço a uma potência de
negaçã o até entã o nunca vista, e produzir institucionalidades que nã o repitam a
estrutura paradoxal do livre-mercado.
Tal situaçã o produzirá a emergência de um conceito de sujeito
absolutamente singular que será recuperado em momentos maiores do
pensamento dos séculos XIX e XX. Neste sentido, gostaria de aproximar tais
questõ es que veremos em Hegel do horizonte de constituiçã o da crítica de Marx
à alienaçã o. Ou seja, trata-se de afirmar que há uma teoria do reconhecimento na
base da crítica marxista das sociedades capitalistas e de seus mecanismos de
alienaçã o no trabalho. Teoria que só pode ser legível na linha direta das relaçõ es
entre Hegel e Marx. A crítica social de Marx nã o é apenas uma crítica da
espoliaçã o econô mica, sua critica da propriedade nã o é apenas uma crítica
econô mica. Ela é a reflexã o sobre um regime de sofrimento social, a saber, a
alienaçã o, resultante de bloqueios em processos de reconhecimento. Por isto, ela
nã o é apenas uma crítica econô mica, mas também uma crítica política e mesmo
moral.

Dois modos de reconhecimento

Feito isto, eu gostaria de apresentar a vocês dois modelos de recuperaçã o


da temá tica do reconhecimento no século XX. Um estará ligado à filosofia
francesa contemporâ nea e seus desdobramentos. Ele se inicia com um
comentá rio da Fenomenologia do Espírito, feito por Alexandre Kojève e se
desdobrará de forma hegemô nica até os anos cinquenta. O outro estará ligado a
segunda e terceira geraçã o da Escola de Frankfurt, assim como a certos setores
da filosofia anglo-saxã sensíveis ao pensamento hegeliano, e se desdobrará ,
principalmente, do início dos anos noventa até hoje.
O primeiro modelo aparece nos anos trinta através da elevaçã o da luta
por reconhecimento a eixo central de uma interpretaçã o de Hegel produzida na
França. Tal interpretaçã o articulava temá ticas de Heidegger a Hegel e Marx,
estava fundada na elevaçã o do desejo a eixo fundamental de aná lise dos
processos sociais de reconhecimento. Sartre, Merleau-Ponty, Lacan, Bataille,
Blanchot, Eric Wail, Raymond Aron. Todos eles foram, de uma forma ou outra,
influenciados pela construçã o do campo de problemas propostos por Kojève.
Poderíamos começar por nos perguntar por que foi apenas nos anos
trinta que a tematizaçã o específica do problema do reconhecimento emergiu
novamente. Qual é a configuraçã o histó rica que produz esta emergência
conceitual filosó fica? A hipó tese que gostaria de trabalhar com vocês é: foi a
constituiçã o de um horizonte revolucioná rio nos anos vinte (Revoluçã o Russa,
Revoluçã o alemã abortada etc.) que fará a problemá tica do reconhecimento
emergir outra vez, da mesma forma como foi o horizonte de Revoluçã o Francesa
que levou Hegel a tematizar as dinâ micas de reconhecimento a partir da
desestabilizaçã o das relaçõ es de dominaçã o e servidã o, da emancipaçã o em
relaçã o à servidã o (lembraria aqui de intepretaçõ es, como a de Susan Buck-
Morss, que verã o na revoluçã o dos escravos no Haiti uma das referências
importantes da dialética hegeliana do senhor e do escravo 9). A presença de um
horizonte revolucioná rio efetivo leva a filosofia a tematizar reversõ es de poder
em relaçõ es de dominaçã o e servidã o que abrem a possibilidade de uma
existência emancipada a partir do reconhecimento do desejo. Ou seja, é neste
momento que o desejo aparecerá como categoria política pela primeira vez de
forma clara no século XX. Como se as possibilidades abertas pelas reversõ es das
relaçõ es de poder nos levassem necessariamente à tematizaçã o da natureza
política do desejo, à tematizaçã o dos regimes de sua alienaçã o como condiçã o
fundamental de emancipaçã o social.
Esta perspectiva será desdobrada e ganhará novas inflexõ es nos trabalhos
de dois dos mais atentos alunos de Kojève, a saber, Jacques Lacan e Georges
Bataille. Por isto, gostaria de mostrar a vocês como a temá tica do
reconhecimento do desejo se desdobrará nos dois casos, seja através de uma
teoria do desejo que visa abrir a uma existência capaz de se afirmar contra os
mecanismos de alienaçã o e suas formas de sofrimento psíquico (Lacan), seja
através de uma teoria da soberania que se colocará como contraposiçã o à
reproduçã o material da sociedade do trabalho (Bataille). Lacan será responsá vel
por compreender sintomas, inibiçõ es e angú stias que produzem o sofrimento
psíquico como déficits de reconhecimento a serem tratados por uma clínica
desmedicalizada, baseada na reorientaçã o da palavra do analisando. Veremos os
detalhes deste modelos, assim como sua vinculaçã o a um horizonte mais amplo
de recuperaçã o da temá tica do reconhecimento.
No entanto, haverá um segundo modelo de recuperaçã o da temá tica do
reconhecimento. Este nã o será solidá rio de um horizonte revolucioná rio, mas de
uma certa retraçã o das potencialidades de transformaçã o social global, com a
emergência de novos campos de conflitos sociais ligados ao sentimento de
desprezo social por grupos mais vulnerá veis. Neste contexto, a noçã o de políticas
de reconhecimento retorna inicialmente sob a forma de reflexõ es sobre as
9
Ver BUCK-MORSS, Susan; Hegel, Haiti and universal history, University of Pittsburgh Press, 2009
potencialidades imanentes a sociedades multiculturais (Charles Taylor) para se
transformar, ao final, no eixo de uma reconstruçã o sistêmica dos potenciais
normativos de uma sociedade capaz de preencher exigências de estima recíproca
e respeito mú tuo de indivíduos (Axel Honneth).
Eu gostaria de mostrar como esses dois modelos representam uma
espécie de embate a respeito das potencialidades imanentes a uma teoria do
reconhecimento, como eles exploram tendências diversas internas à s estratégias
hegelianas. Ao final, eu gostaria de propor a vocês um eixo de desdobramento
contemporâ neo da temá tica do reconhecimento que dê conta de uma teoria da
emancipaçã o adaptada à nossa era histó rica. Tal teoria procurará deslocar a
discussõ es sobre liberdade para fora das estratégias pró prias à afirmaçã o da
autonomia, isto em uma tentativa de recuperar potencialidades pró prias ao
primeiro modelo de reconhecimento proposto no interior da filosofia
contemporâ nea francesa. Ela procurará pensar determinaçõ es sociais para além
da estruturaçã o social da identidade, recuperando com isto um elemento a meu
ver fundamental para a formaçã o de sujeitos em Hegel e Marx.
Lógicas do reconhecimento
Aula 2

Eu gostaria de começar nosso curso a partir de uma reflexã o sobre a emergência


do pensamento do conflito social no interior da filosofia moderna. Ou seja, para
entender o que estava em jogo na constituiçã o do problema do reconhecimento
no início do século XIX, precisamos começar por nos perguntar em que condiçõ es
a ideia de conflito aparece como o fundamento para a caracterizaçã o da natureza
dos laços sociais no século XVII, como ela aparece e que tipo de questõ es tal
emergência produz. Neste sentido, é inegá vel que a referência central é a teoria
social de Thomas Hobbes. Nã o que Hobbes tenha uma teoria do reconhecimento.
Na verdade, com Hobbes a filosofia moderna apresenta a matriz de uma teoria do
conflito social claramente fundada em uma antropologia e capaz de produzir
uma reflexã o sobre a constituiçã o das instituiçõ es e do Estado. No entanto, a
dimensã o do conflito social nã o será inscrita no interior de dinâ micas de
reconhecimento. Ela nã o poderá ser inscrita, já que o conflito será expressã o, na
verdade, de uma antropologia da dominaçã o, de uma antropologia que visa
mostrar como laços sociais só podem ser, inicialmente, relaçõ es de dominaçã o e
servidã o. Ou seja, a sociedade instaura-se a partir de relaçõ es tendencialmente
assimétricas.
Como estas relaçõ es assimétricas nã o podem, para Hobbes, desembocar
em dinâ micas de reconhecimento, elas servirã o para a constituiçã o daquilo que
poderíamos chamar de fundamento fantasmático para a legitimaçã o do poder
soberano. Pois como nã o é possível passar do conflito ao reconhecimento, o
conflito fica reduzido à condiçã o de horizonte latente de destruiçã o potencial do
laço social. Um horizonte que será continuamente mobilizado pelo poder
soberano como sua estratégia de legitimaçã o e de paralisia das transformaçõ es
na estrutura de poder da vida social. Neste sentido, podemos dizer que a reflexã o
de Thomas Hobbes tem o interesse de mostrar o tipo de relaçã o de poder que
emerge quando a vida social é incapaz de abrir espaço a dinâ micas de
reconhecimento. Hobbes coloca, a sua maneira, o problema que as teorias do
reconhecimento de Hegel e teó ricos posteriores tentarã o resolver.

O fantasma da guerra total

Partamos da definiçã o célebre de Hobbes:

Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz


de mantê-los todos em temor respeitoso eles se encontram naquela
condiçã o a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens10.

Daí porque: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades nã o


provém da boa vontade recíproca que os homens teriam uns para com os outros,
mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”11. Esta definiçã o determina
10
HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109.
11
HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
uma das condiçõ es centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a
guerra iminente. Uma guerra que nã o é apenas o tempo da batalha, mas a
disposiçã o contínua à violência contra o outro. É uma reflexã o sobre a guerra que
funda a reflexã o política moderna. Ou seja, o problema político fundamental em
Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade. A saída do estado de natureza
e de sua guerra de todos contra todos, estado este resultante de uma igualdade
natural que nã o implica consolidaçã o da experiência do bem comum mas conflito
perpétuo entre interesses concorrenciais, se faria pelas vias da internalizaçã o de
um “temor respeitoso” constantemente reiterado e produzido pela força de lei de
um poder soberano. Pois:

se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar


controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais
controvérsias inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais,
pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar12.

Proposiçã o que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como
uma força de impulso dirigido ao excesso. Nã o pode haver bens comuns porque
há um desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza
ter dado a cada um direito a tudo” 13 sem que ninguém esteja assentado em
alguma forma de lugar natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de
Hobbes: “o homem espontaneamente deseja infinitamente” 14. Tal excesso
aparece, necessariamente para Hobbes, nã o apenas através do egoísmo ilimitado,
mas também através da cobiça em relaçã o ao que faz o outro gozar, da ambiçã o
por ocupar lugares que desalojem aquele que é visto preferencialmente como
concorrente. Pois o excesso, como é traço comum de todos os homens, só pode
acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo tempo, têm o apetite pelas
mesmas coisas”15. A guerra será inevitá vel se lembrarmos que o direito natural
(jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha pró pria natureza,
ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis) prescreve a
proibiçã o de fazer e aceitar aquilo que è destrutivo à minha vida. Assim, Hobbes
descreve como o aparecimento histó rico de uma sociedade de indivíduos
liberados de toda forma de lugar natural ou de regulaçã o coletiva
predeterminada só pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade
da insegurança total”16.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessá ria da expressã o da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexã o
sobre o desejo como disposiçã o humana fundamental que inaugura uma das
bases da filosofia política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os
modernos, uma categoria política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos sã o
miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para saber
como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência entre os
seres humanos, mas esta racionalidade mimética nã o se traduz em empatia ou
tendência à cooperaçã o. Ela se traduz em rivalidade e violência direta. É a
12
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
13
Idem, p. 30
14
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
15
HOBBES, Do cidadão, p. 30
16
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
expressã o do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de vida ou
morte. No entanto, esta luta nã o pode ser regulada pelos pró prios contendores.
Dela, nã o emerge nada a nã o ser um impasse, já que todos os indivíduos sã o
portadores de força relativamente igual. A força maior de um nã o irá muito mais
além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser superada entã o
através da introduçã o de um terceiro elemento, que neutraliza a rivalidade da
relaçã o dual, a saber, através da instauraçã o do direito e do Estado.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressã o da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituiçõ es? Ou
é o Estado a expressã o de uma coerçã o consentida, de uma restriçã o legítima
como condiçã o para a nã o desagregaçã o do laço social? Qual a natureza do pacto
que produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questã o percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte
violenta, que se faz necessá rio o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto
imanente entre indivíduos é possível, como a pró pria figura do indivíduo
portador de interesses já é a consolidaçã o da inevitabilidade do conflito, já que
luto pelos meus interesses a despeito dos interesses do outro, nã o haverá outra
saída para a regulaçã o social que o aparecimento de uma força externa chamada
de “governo” capaz de estabelecer um pacto feito da auto-restriçã o mú tua e da
limitaçã o de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é
composto de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados
na concorrência, no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes
dirá que os três principais motivos de conflito sã o: a concorrência, a
desconfiança e a gló ria. Ou seja, e esta é uma tese avançada pela primeira vez por
Macpherson no clá ssico A teoria do individualismo possessivo, tudo se passa como
se Hobbes tivesse naturalizado a emergência do indivíduo moderno liberal em
situaçã o de ator animado pela exigência de reconhecimento de seus interesses,
colocando-o no fundamento de uma antropologia normativa do humano. Mesmo
sem ser exatamente um teó rico liberal, já que Hobbes submete o direito da
propriedade individual à s condiçõ es de sobrevivência do Estado, vemos
claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalizaçã o
antropoló gica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.

O medo como afeto que funda o laço social

Neste sentido, há de se estar atento para o circuito de afetos que


constituirá o fundamento possível desta forma de vida social. Pois a
possibilidade mesma da existência do governo e, por consequência, ao menos
neste contexto, a possibilidade de estabelecer relaçõ es através de contratos que
determinem lugares, obrigaçõ es, previsõ es de comportamento, fornecendo à
sociedade sua racionalidade, estaria vinculada à circulaçã o do medo como afeto
instaurador e conservador de relaçõ es de autoridade. A emergência do indivíduo
moderno é indissociá vel da elevaçã o do medo à condiçã o de afeto social central.
Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os pressupostos desta passagem
hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da vida em sociedade:
Este contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos
os vínculos e todas as comunidades sã o dissolvidos. Indivíduos
atomizados se encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento
criando um consenso dirigido à submissã o geral e incondicional à
potência suprema17.

Notemos o sentido da elevaçã o do medo como afeto político instaurador


de laços sociais. Esse medo teria a força de estabilizar a sociedade, paralisar o
movimento e bloquear o excesso das paixõ es, viabilizando assim a perpetuaçã o
de nossas formas sociais. Isto leva comentadores, como Remo Bodei, a insistir em
uma “cumplicidade entre razã o e medo”, nã o apenas porque a razã o seria
impotente sem o medo, mas principalmente porque o medo seria, em Hobbes,
uma espécie de “paixã o universal calculadora” por permitir o cá lculo das
consequências possíveis a partir da memó ria dos danos, fundamento para a
deliberaçã o racional e a previsibilidade da açã o18. Ou ainda, como dirá Esposito,
em Hobbes, o medo “nã o determina apenas fuga e isolamento, mas também
relaçã o e uniã o. Nã o se limita a bloquear e imobilizar, mas ao contrá rio, leva a
refletir e neutralizar o perigo: nã o tem parte com o irracional, mas com a razã o. É
uma potência produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de política”19. Por
isto, o medo ligado à força coercitiva da soberania, ou seja, o medo que tenho do
soberano, deve ser visto apenas como certa astú cia para defender a vida social
de medo maior:

porque os vínculos das palavras sã o demasiado fracos para refrear a


ambiçã o, a natureza, a avareza, a có lera e outras paixõ es dos homens, se
nã o houver o medo de algum poder coercitivo – coisa impossível de supor
na condiçã o de simples natureza, em que os homens sã o todos iguais, e
juízes do acerto dos seus pró prios temores (2003, p. 119).

É verdade que Hobbes também afirma: “As paixõ es que fazem os homens
tenderem para a paz sã o o medo da morte, o desejo daquelas coisas que sã o
necessá rias para uma vida confortá vel e a esperança de consegui-las por meio do
trabalho”20. Ou seja, parece nã o haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e
esperança. Da mesma forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado
fraca para levar os homens a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de
reforçá -la: o medo ou ainda o orgulho e a gló ria por nã o precisar faltar com a
palavra. Tais consideraçõ es parecem abrir espaço à circulaçã o de outros afetos
sociais, como a esperança e um tipo específico de amor-pró prio ligado ao
reconhecimento de si como sujeito moral. Renato Janine Ribeiro, por exemplo,
insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das paixõ es: medo e
esperança, aversã o e desejo ou, em termos físicos, repulsã o e atraçã o. Mas nã o é
possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que nã o existe sem
o contraponto da esperança”21.

17
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
18
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
19
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
20
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem
apenas em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmaçõ es como: “de
todas as paixõ es, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo.
Mais: excetuando algumas naturezas generosas, é a ú nica coisa que leva os
homens a respeitá -las”22. Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se
afastar da força incendiá ria das paixõ es e atingir esta situaçã o de esfriamento na
qual o vínculo político nã o precisaria fazer apelo nem ao temor nem sequer ao
amor (que, enquanto modelo para a relaçã o com o Estado, acaba por construir a
imagem da soberania à imagem paterna, modelando a política na família 23). Ou
seja, o esfriamento das paixõ es aparece como funçã o da autoridade soberana e
condiçã o para a perpetuaçã o do campo político, mesmo que tal esfriamento se
pague com a moeda da circulaçã o perpétua de outras paixõ es que parecem nos
sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressã o de uma compreensã o antropoló gica
precisa, que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da
observaçã o desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como
horizonte uma ló gica do poder pensada a partir de uma limitaçã o política, no
caso, a impossibilidade de pensar a política para além dos dispositivos que
transformam o amparo produzido pela segurança e pela estabilidade em afeto
mobilizador do vínculo social. Política na qual “o protego ergo obligo é o cogito
ergo sum do Estado”24. Difícil nã o chegar em uma situaçã o na qual esperamos
finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual nã o exista realmente
mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor” 25. O que fica claro em
afirmaçõ es como:

entre os homens sã o muitos os que se julgam mais sá bios e mais


capacitados do que os outros para o exercício do poder pú blico. E esses
esforçam-se por empreender reformas e inovaçõ es, uns de uma maneira e
outros doutra, acabando assim por levar o país à perturbaçã o e à guerra
civil26.

As reformas e inovaçõ es sã o um convite à perturbaçã o e à guerra civil.


Pois o estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de proteçã o social, ou seja,
Estado baseado na promessa de amparo, que se serve de todo poder possível,
instaurando um domínio de legalidade pró pria neutro em relaçã o a valores e
verdade. Estado que precisa realizar sua tarefa sem constrangimento externo
algum, ou seja, como uma má quina administrativa que desconhece coerçõ es em
sua funçã o de assegurar a existência física daqueles que domina e protege. Um
Estado construído a partir da dessocializaçã o de todo vínculo comunitá rio,
constituindo-se como o espaço de uma “relaçã o de nã o-relaçõ es”27.
Nã o é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã . A metá fora
nã o poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquá tico dotado de
21
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
22
HOBBES, Leviatã, p. 253
23
Ver, por exemplo, RIBEIRO, op. cit., p. 53
24
SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
25
BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56
26
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146
27
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12
força descomunal que aparece no Livro de Jó . O contexto de sua apariçã o é
sintomá tico. Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo
o que tinha, Jó expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que
sofre tanto? Jeová entã o lhe aparece nã o para lhe responder a apazigua-lo, mas
para mostrar a desmedida entre a ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele
está diante de Jó para dizer : quem es tu que questiona meus desígnios? Neste
contexto, Jeová apresenta a figura de duas forças descomunais: uma aquá tica (o
Leviatã ) e outra terrestre (Behemooth). “Nã o há nada mais tremendo sobre a
terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Ou seja, fazer do Estado um
Leviatã é inscrever-lhe a força de uma imagem teoló gica que visa anular o
sofrimento e a restriçã o como disposiçã o de revolta.
A ú nica limitaçã o que Hobbes reconhece ao poder do Estado é o direito
dos indivíduos à auto-defesa quando a vida está ameaçada pelo poder soberano,
o que decorre do respeito ao primeiro direito natural. Se o soberano atenta
contra minha vida, tenho o direito de a ele me contrapor, pois o que me liga a ele
é um pacto de proteçã o que nã o existe mais. No entanto, o soberano guarda o
direito de continuar sua açã o contra mim já que pode tudo fazer para garantir a
proteçã o social e a permanência do Estado.
Por isto, nã o é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma
ló gica do reconhecimento. Ele opera, ao contrá rio, através da impossibilidade de
reconhecer aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma
violência elevada à condiçã o de determinaçã o metafísica do humano. Violência
que só pode aparecer como desagregaçã o de todo e qualquer laço social. Notem
que há uma decisã o, prenhe de consequências, que faz a violência vinda do
cará ter excessivo do desejo ser expressa apenas como tendência à despossessã o
do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitaçã o de seus
desejos e a restriçã o de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim
uma duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que sã o cidadã os e
cidadã s de tal Estado. Como cidadã o e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz
de me auto-limitar, sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal
personalidade é um afeto responsá vel pela restriçã o e repressã o de meus reais
impulsos. Por isto, a pró pria noçã o de personalidade será comparada por Hobbes
a uma má scara, recobrando o sentido originá rio do termo persona entre os
gregos. Má scara que nã o reconhece, mas que encobre algo a ser reprimido para
que o laço social possa existir. Como se vê, nã o é possível dizer que lá onde o
medo aparece como afeto político central o reconhecimento pode se realizar.
Medo social e reconhecimento sã o processos contrá rios, como vemos facilmente
em situaçõ es atuais concretas.

A função do amparo

Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz
respeito ao modelo geral de gestã o social quando as exigências de
reconhecimento sã o bloqueadas. Pois o Estado nã o será apenas a instâ ncia que
opera a repressã o. Ele será o gestor da lembrança contínua de que há algo a se
reprimir. Ele nã o será apenas o bombeiro da vida social, mas também o pró prio
piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior desta relaçã o de nã o-relaçõ es é
a necessidade que a legitimaçã o da soberania pela capacidade de amparo e
segurança tem da perpetuaçã o contínua da imagem da violência desagregadora à
espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social deixe de ser controlado
por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da legitimidade do
Estado é a perpetuaçã o da iminência da guerra de todos contra todos. O
fundamento fantasmá tico deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condiçã o de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusã o importante de
Agamben: “A fundaçã o nã o é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo
tempore, mas é continuamente operante no estado civil na forma da decisã o
soberana”28. Este mecanismo de fundaçã o que necessita ser continuamente
reiterado diz muito a respeito da continuidade do medo como força de reiteraçã o
da relaçã o do Estado ao seu fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida
através de uma força insuperá vel”29, ele precisa provocar continuamente o
sentimento de desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o
imediatamente em medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se
como força de amparo fundada na perpetuaçã o de nossa dependência. Na
verdade, devemos ser mais precisos e lembrar que a autoridade soberana tem
sua legitimidade assegurada nã o apenas por instaurar uma relaçã o baseada no
medo para com o pró prio soberano, mas principalmente por fornecer a imagem
do distanciamento possível em relaçã o a uma fantasia social de desagregaçã o
imanente no laço social e de risco constante da morte violenta. Uma fantasia
social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É através da
perpetuaçã o da iminência de sua presença que a autoridade soberana encontra
seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a necessidade
do “poder pacificador” da representaçã o política, ou seja, do abrir mã o de meu
direito natural em prol da constituiçã o de um representante cujas açõ es
soberanas serã o a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá
“conformar as vontades de todos”30 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro
escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla
fundamentaçã o. Por um lado, ela apela à condiçã o presente dos homens. Nã o
sendo uma hipó tese histó rica, o estado de natureza é uma inferência feita a
partir da aná lise das paixõ es atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a
afirmar que, longe de ser uma descriçã o do ser humano primitivo, ou do ser
humano aparte de toda característica social adquirida, o estado de natureza
seria: “a abstraçã o ló gica esboçada do comportamento dos homens na sociedade
civilizada” 31.
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em
paz com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens
armados, suas cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilâ ncia”.
Lembra ainda como os “particulares nã o viajam sem levar sua espada a seu lado,
para se defenderem, nem dormem sem fecharem – nã o só as portas, para
proteçã o de seus concidadã os – mas até seus cofres e baú s, por temor aos

28
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
29
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, op. cit., p. 86
30
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
31
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
domésticos”32. Mas notemos um ponto central. A espada que carrego, as trancas
na minha porta e em meus baú s, os muros da cidade na qual habito sã o índices
nã o apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles sã o índices indiretos do
excesso do meu pró prio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe para suas
trancas e você verá nã o apenas seu medo em relaçã o ao outro, mas o excesso de
seu pró prio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situaçõ es nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retó rica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como nã o se trata de permitir que configuraçõ es atuais
sejam, de maneira indevida, elevadas à condiçã o de invariante ontoló gica, faz-se
absolutamente necessá rio também a produçã o contínua dessas construçõ es
antropoló gicas do exterior caó tico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo nã o
sendo uma hipó tese histó rica, nã o há como deixar de recorrer à antropologia
para pensar o estado de natureza. Assim, aparecem construçõ es como esta que
leva Hobbes a acreditar que:

os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceçã o do


governo de pequenas famílias, cuja concó rdia depende da concupiscência
natural, nã o possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos
dias daquela maneira brutal que antes referi33.

Ou seja, sociedades sem Estado como nó s, os povos de muitos lugares da


América, sã o mobilizadas continuamente para lembrar à sociedade europeia
porque a soberania é legítima. No interior desta ló gica de legitimaçã o, esta é
nossa funçã o. Ou ainda:

sabemos disso também tanto pela experiência das naçõ es selvagens que
existem hoje, como pelas histó rias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade34.

Sociedades da violência e sociedades da penú ria estã o à nossa espreita seja em


uma diferença geográ fica, seja em uma diferença histó rica. Na verdade, sempre
deverá haver um “povo selvagem da América” à mã o, o Estado sempre deverá
criar um risco de contaminaçã o da vida social pela violência exterior,
independente de onde esse exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo
ou no Oriente Médio, seja historicamente em uma cena originá ria da violência.
Ao menos neste ponto, Carl Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos
quando afirma que:

Palavras como Estado, repú blica, sociedade, classe e ademais soberania,


Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc.

32
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
33
Idem, p. 110.
34
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
sã o incompreensíveis quando nã o se sabe quem deve ser, in concreto,
atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra 35.

Já temos aqui os problemas que uma teoria do reconhecimento deverá


lidar. Ela deve, inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
legitimaçã o do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
fornecer uma outra imagem antropoló gica, insistindo, por exemplo, na imanência
de relaçõ es de empatia a fundar campos intersubjetivos cuja primeira expressã o
é nã o-conflitual. Retira-se assim o conflito da posiçã o de fundamento da
existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado devido à presença
de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta empatia pode estar
presente na vida social, sendo necessá ria apenas reconstruir as bases normativas
de nossa sociedade a partir do que está presente em vá rios campos da vida
social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada pelos processos de
modernizaçã o social, sendo necessá rio recuperar a força de coesã o do que foi
reprimido em sua origem. Esta é, por exemplo, a estratégia de Rousseau e de sua
outra imagem do estado de natureza baseado na compaixã o, na expressã o e na
cooperaçã o.
Haverá , no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
compreensã o da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
expressã o nã o se reduza à despossessã o dos bens e à morte violenta. Para tanto
será necessá rio, por exemplo, retomar a teoria do desejo que serve de base a
Hobbes e inseri-la no interior de uma noçã o mais ampla de “negatividade” cuja
satisfaçã o e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
antropoló gica da política, mas sem recusar a centralidade ontoló gica da noçã o de
conflito. Dentro desta dinâ mica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior
de uma ló gica na qual a célula elementar nã o sã o as auto-afirmaçõ es individuais,
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever
a noçã o da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepçã o reguladora
de luta de classes, e nã o mais a partir da noçã o de guerra de todos contra todos.
Veremos cada um destes casos no decorrer de nosso curso.

35
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
Lógicas do reconhecimento
Aula 3

Na aula passada, vimos a emergência de uma teoria dos laços sociais fundada na
irredutibilidade da noçã o de conflito, mas que nã o dava espaço ao aparecimento
de uma dinâ mica de desdobramentos de tais conflitos no interior de processos
de reconhecimento. Tratava-se da teoria política de Thomas Hobbes. Insisti com
vocês que Hobbes partia da defesa de uma violência imanente à relaçã o entre
indivíduos no estado de natureza. Violência esta responsá vel pelo horizonte de
uma guerra de todos contra todos que nos levaria tendencialmente à
despossessã o generalizada, à morte violenta e a relaçõ es sempre concorrenciais.
Vimos como Hobbes mobilizava uma verdadeira psicologia do desejo e dos afetos
como fundamento de suas reflexõ es políticas. Diante desta violência imanente, o
estado e o poder soberano apareciam como garantes de uma relaçã o de termos
(os indivíduos) sem-relaçã o entre si. Sua legitimidade estaria fundada em um
pacto social de proteçã o e de amparo que, ao mesmo tempo, era uma forma de
gestã o e incitaçã o do medo como afeto político central. No interior deste pacto, a
natureza humana deveria ser reprimida, sua agressividade e violência
ontoló gicas deveriam ser excluída do horizonte de reconhecimento social. Assim,
consolidava-se uma clivagem entre minha persona como cidadã e cidadã o do
estado e minha psicologia, sempre prestes a fazer reemergir as condiçõ es
pró prias ao estado de natureza.
Como havia dito na aula passada, Hobbes nos era importante por fornecer
o quadro de problemas que uma teoria do reconhecimento deverá lidar. Pois ela
deverá , inicialmente, quebrar o vínculo entre antropologia da violência e
legitimaçã o do Estado. Isto implica operar duas saídas possível. A primeira seria
fornecer uma outra imagem antropoló gica, uma outra psicologia, insistindo, por
exemplo, na imanência de relaçõ es de empatia a fundar campos intersubjetivos
cuja primeira expressã o é nã o-conflitual. Retira-se assim o conflito da posiçã o de
fundamento da existência social, deslocando-o para o que pode ser regulado
devido à presença de um horizonte normativo de experiências de empatia. Esta
empatia pode estar presente na vida social, sendo necessá ria apenas reconstruir
as bases normativas de nossa sociedade a partir do que está presente em vá rios
campos da vida social, como fará Axel Honneth. Ou ela pode estar soterrada
pelos processos de modernizaçã o social, sendo necessá rio, de alguma forma,
recuperar a força de coesã o do que foi reprimido em sua origem. Esta é, por
exemplo, a estratégia de Rousseau e de sua outra imagem do estado de natureza
baseado na compaixã o e na expressã o.
Haverá , no entanto, ainda outro caminho. Ele consistirá em conservar a
compreensã o da centralidade do conflito como dado instaurador dos laços
sociais, mas procurando constituir um conceito mais amplo de conflito cuja
expressã o nã o se reduza à despossessã o dos bens e à morte violenta. Para tanto
será necessá rio, por exemplo, recusar o ponto de partida individualista que
vemos em Hobbes, insistindo na anterioridade das relaçõ es a desapeito de seus
termos e, ao mesmo tempo, retomando a teoria do desejo que serve de base a
Hobbes a fim de inseri-la no interior de uma noçã o mais ampla de “negatividade”
cuja satisfaçã o e reconhecimento poderá se dar de formas variadas, como tentará
fazer Hegel. Ou seja, a estratégia aqui consiste também em modificar a base
antropoló gica da política, mas sem recusar a centralidade ontoló gica da noçã o de
conflito. Dentro desta dinâ mica, poderemos ainda reinserir o conflito no interior
de uma ló gica na qual a célula elementar nã o sã o as auto-afirmaçõ es individuais,
mas a experiência de pertencimento a uma classe, como faz Marx ao redescrever
a noçã o da sociedade como guerra civil diferida a partir da concepçã o reguladora
de luta de classes, e nã o mais a partir da noçã o de guerra de todos contra todos.
Ao final de nossa ú ltima aula eu dissera que vamos analisar cada uma
dessas alternativas. Neste sentido, gostaria de utilizar a aula de hoje para falar da
ausência de uma ló gica do reconhecimento em Jean-Jacques Rousseau. Mesmo
sendo o teó rico que primeiro descreverá a natureza do sofrimento social que
mobiliza sujeitos em direçã o ao reconhecimento, a saber, a alienaçã o, a teoria
política de Rousseau nã o será uma teoria configurada a partir de problemas
ligados à s lutas por reconhecimento. Mesmo intervendo a imagem antropoló gica
fornecida por Hobbes no estado de natureza, insistindo na importâ ncia da
compaixã o e da empatia, seu contratualismo, assim como a centralidade de sua
noçã o de “vontade geral”, exigirã o um certo esquecimento da natureza humana
que encontrará expressã o apenas, de forma compensató ria, no campo das artes
(em especial na mú sica), e nã o no campo da política. Por isto, nã o haverá
dinâ micas de reconhecimento no campo social. Gostaria de expor de maneira
sistemá tica alguns pontos centrais da teoria de Rousseau importantes para nosso
debate.

Isolamento e compaixão no estado de natureza

Guardemos de confundir o homem selvagem como os homens que temos


diante de nossas olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a
seus cuidados com uma predileçã o tal que parece assim mostrar como ela
é ciumenta deste direito36.

Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo


Rousseau, a saber, a ausência de falta. Rousseau nã o partilha a visã o do estado de
natureza como estado de penú ria no interior do qual seria necessá rio lutar para
sobreviver, pois estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da
vida. De certa maneira, nã o seria errado dizer que a experiência da falta é uma
criaçã o da vida social. Se a natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos
animais e aos humanos o espaço potencial de realizaçã o de seus desejos e
necessidades, entã o a falta nã o pode ser uma condiçã o contínua de um desejo
que está sempre a procura de novos objetos.
Rousseau traz algo do cinismo grego em sua descriçã o do estado de
natureza. Pois eram o cínicos que definiam a liberdade como uma liberaçã o em
relaçã o à s necessidades socialmente produzidas, a liberdade como uma
restriçã o, pois quanto menos preciso mais livre sou, menos dependente sou de
artifícios e engenhos para encontrar a satisfaçã o. Retornar a uma certa condiçã o
de animalidade é, de certa forma, o horizonte da realizaçã o da liberdade. Assim:

Nã o é uma grande infelicidade a estes primeiros homens, nem mesmo um


grande obstá culo à conservaçã o, a nudez, a falta de habitaçã o e a privaçã o
36
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade,
p. 139
de todas essas inutilidades que cremos necessá rias. Se eles nã o tem a pele
aveludada, nã o tem por outro lado nenhuma necessidade disto em países
quentes, além de saberem muito bem, em países frios, apropriar-se desta
das bestas que venceram37.

De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e


estes que fazem parte da vida social, um traço de explica em larga medida como é
possível que a falta nã o seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se o
humano pode ser “só , despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem
que isto seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza nã o se conhece a
propriedade. Nã o temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos
vinculados a necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas
propriedades. Os humanos sã o só s, seus encontros sã o intermitentes, suas
preocupaçõ es se vinculam a auto-conservaçã o em um espaço natural vasto no
interior do qual eles estã o em contínua mobilidade. Mas para tanto eles podem
contar com sua força e habilidade. Por isto, os humanos aparecem inicialmente
como nô mades solitá rios.
Notem que, se em Hobbes, o estado de natureza era composto de
indivíduos em relaçã o de concorrência e violência, era porque os desejos eram
compreendidos inicialmente como miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro,
vejo como o outro deseja para saber como desejar, ou seja, há desde o início uma
certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta racionalidade
mimética nã o se traduz em empatia ou tendência à cooperaçã o. Ela se traduz em
rivalidade e violência direta. É a expressã o do desejo que coloca os indivíduos na
rota de uma luta de vida ou morte. Se este mimetismo pró prio ao desejo se
traduz em rivalidade e nã o em empatia é porque Hobbes naturaliza um modo de
relaçã o à s coisas e a si mesmo que se expressa na forma de relaçõ es de
propriedade. Nã o há uma histó ria da emergência das relaçõ es de propriedade em
Hobbes porque elas sã o naturais, elas estã o lá desde o início da existência
histó rica dos seres humanos.
Nã o há esta dimensã o originariamente mimética do desejo em Rousseau,
assim como nã o há uma naturalidade das relaçõ es de propriedade. Os humanos
nã o conservam, eles consomem. Eles nã o se territorializam, mas estã o em
nomadismo. Estes indivíduos isolados nã o conhecem a desigualdade, a nã o ser
esta produzida pela diferença de idade, de saú de, de força do corpo e de
qualidade da alma, a saber, isto que Rousseau chama de “desigualdade física”.
Mas esta desigualdade física nã o se traduz em “desigualdade política ou moral”.
No entanto, mesmo estando em nomadismo, os humanos tem um sentimento que
os vincula, a saber, a piedade ou a compaixã o. Esta piedade é, principalmente, a
impossibilidade de sustentar uma posiçã o de indiferença em relaçã o ao
sofrimento do outro. Ela nã o é uma forma de prá tica cooperativa, mas regime de
implicaçã o afetiva a partir da identificaçã o do sofrimento, mesmo que seja uma
implicaçã o intermitente. Mesmo sendo isolados, os humanos em estado de
natureza nã o sã o indiferentes a sorte de outros humanos.

História da queda

37
Idem, p. 140
Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do
estado de natureza, o que significa a instauraçã o da vida social. Rousseau se
serve de dois fenô menos para descrever a emergência da vida social e da
corrupçã o desta relaçã o imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama
de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos
empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se
desenvolveriam apenas até os limites de seus pró prios instintos. No entanto, se
na aurora do iluminismo a perfectibilidade era vista como a fonte da criaçã o e
felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus males:

Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do


homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condiçã o originá ria na
qual corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com os
séculos suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e ao
cabo em tirano de si mesmo e da natureza38.

Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do


progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “histó ria
da civilizaçã o como progresso da negaçã o do dado natural”39. O primeiro destes
temas consiste em dizer que o desenvolvimento nã o era apenas uma forma de
conhecimento da natureza e de si, mas de uma dominaçã o técnica de si e do
mundo que nos distancia, que marca com um véu, esta condiçã o originá ria que
seria o espaço de afirmaçã o da emergência do sentido. O advento da vida social é
algo como uma queda: “Porque o homem é perfectível, nã o cessou de acrescentar
suas invençõ es aos dons da natureza. E desde entã o s histó ria universal,
embaraçada pelo peso continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso
orgulho, adquire o andamento de uma queda acelerada na corrupçã o: abrimos os
olhos com horror para um mundo de má scaras e de ilusõ es mortais, e nada
assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele pró prio seja poupado pela
doença universal”40. Isto faz da histó ria da técnica a histó ria do afastamento do
sentido, uma histó ria da alienaçã o no sentido mais forte do termo, a saber,
tomar-se por um outro, estar preso ao olhar de um outro.
Neste ponto, lembremos de outro fenô meno responsá vel pela saída do
estado de natureza, um fenô meno ligado ao exercício da faculdade de
perfectibilidade, a saber, a emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o
trabalho cooperativo nã o é fonte de emancipaçã o, mas uma das principais fontes
de alienaçã o. Pois o trabalho cooperativo é expressã o de relaçõ es de
dependência e com tais relaçõ es de dependência aparecem a necessidade do
artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:

Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser


realizadas por um e a artes que nã o necessitavam do concurso de vá rias
mã os eles viveram livres, saudá veis, bons e felizes tanto quanto podia ser
por sua pró pria natureza e continuaram a gozar entre eles das doçuras de
um comércio independente. Mas desde que um homem teve necessidade
do socorro de outro, desde que se percebeu que seria ú til a um de ter

38
Idem, p. 142
39
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
40
Idem, p. 23
provisõ es para dois, e igualdade desapareceu, a propriedade foi
introduzida, o trabalho adveio necessá rio e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor
dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidã o
germinar e crescer como musgos41.

A indú stria e o trabalho impõ em um regime de atividade baseado na


cooperaçã o dos esforços, na previsã o e calculo, no acú mulo tendo em vista a luta
prévia contra situaçõ es desfavorá veis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra
a imanência à natureza, impondo uma atividade que nã o é mais atividade
imediata. Por outro lado, o estabelecimento de relaçõ es de trabalho e produçã o
se funda em tendência imanentes de exploraçã o e dominaçã o. Pois, com as
relaçõ es de produçã o, nã o estamos apenas a falar do advento da propriedade,
mas principalmente do reconhecimento da importâ ncia da sançã o do outro, a
necessidade de reconhecimento do outro como condiçã o para a justificaçã o de
minha atividade. Isto é indissociá vel, para Rousseau, do avento de um ser-para-
outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma
profunda problema moral e problema econô mico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda
de si já que o advento da vida social é a alienaçã o da potência normativa da
origem, isto devido à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida
social implica dependência e esta dependência leva os homens a garantir a
estima dos outros, a cultivar a aparência e a sempre preocupar-se com ela. Eles
se tornam entã o: “enganadores e artificiais” 42 ao submeterem seus desejos a
demandas de reconhecimento. Notemos como Rousseau descreve a emergência
do desejo de reconhecimento:

Nó s nos acostumamos a nos juntar diante de cabanas ou em volta de uma


grande á rvore. O canto e a dança, verdadeiras crianças do amor e do lazer,
transformaram-se no divertimento ou ainda na ocupaçã o dos homens e
mulheres despreocupados e congregados. Cada um começou a olhar os
outros e a querer ser olhado por eles, e a estima pú blica teve um preço.
Este que cantava ou dançava melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais
eloquente se transformou no mais considerado e este foi o primeiro passo
para a desigualdade e, ao mesmo tempo, o primeiro passo em direçã o ao
vício43.

Fica claro assim como Rousseau nã o distingue demandas de


reconhecimento e processos de alienaçã o. Pois o estabelecimento de relaçõ es
sociais nã o é compreendido como constituiçã o de um campo mó vel de
incorporaçã o das singularidades. As relaçõ es sociais sã o solidá rias de dinâ micas
de alienaçã o e contra tal sofrimento social haveria de se retornar à
normatividade natural, se isto fosse possível. As modificaçõ es implicativas
produzidas pelas demandas de reconhecimento sã o sempre compreendidas por
Rousseau como alienaçã o na dimensã o da aparência, o olhar do outro nã o é a
confirmaçã o de si, mas uma forma de aprisionamento. Pois nã o é através do

41
ROUSSEAU, Idem, p. 171
42
Idem, p.173
43
Idem, p. 169
reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à
voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensã o da experiência estética e,
em especial, da expressã o musical.
Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Da mesma
maneira que Hobbes, Rousseau aceita que a celular elementar da vida social sã o
os indivíduos, no seu caso, indivíduos em relaçã o de imanência à natureza. Ou
seja, temos primeiros indivíduos isolados e, em um segundo momento, o artifício
da criaçã o de relaçõ es. Neste sentido, a liberdade natural implica certo modo de
relaçã o a si que podemos descrever como “relaçõ es de auto-pertencimento”,
relaçõ es nas quais afirmamos o fato de se pertencer apenas a si mesmo, o que a
vida social nã o pode realizar. No má ximo, a vida social pode construir uma forma
compensató ria de autonomia baseada na emergência de uma vontade geral. É
desta forma compensató ria que fala O contrato social.

Um corpo político

Tal como Hobbes, Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um


corpo que nã o tem a configuraçã o de um Leviatã no qual o poder soberano se
concentra, de maneira indivisível, nas mã os do detentor do poder executivo. Há
uma soberania a animar o corpo político de Rousseau, mas se trata de uma
soberania popular que tem no espaço da assembleia popular sua expressã o
má xima. Esta assembleia é expressã o de um princípio de igualdade moral ou
política fundamental. Desta forma, Rousseau espera poder instaurar uma
totalidade social baseada na igualdade como virtude que modera os apetites e
nos afasta do cará ter egoísta dos interesses. Como vimos, este corpo político é
uma espécie de suplemento de um outro corpo perdido, a saber, a natureza como
uma espécie de corpo nô made no qual os indivíduos podiam circular em
imanência.
Lembremos inicialmente como a condiçã o fundamental para o advento de
um corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral nã o
é a somató ria de vontades particulares, ou seja, uma vontade de todos. Ela é a
expressã o de um desejo de liberdade baseado, inicialmente, na ideia de auto-
legislaçã o. A alienaçã o dos interesses particulares na vontade geral permite a
constituiçã o de um Eu comum, de um corpo político unitá rio capaz de defender e
proteger a pessoa e seus bens. Defender nã o apenas do outro, como vemos em
Hobbes, mas principalmente defender-se do pró prio poder, defender-se dos
efeitos de usurpaçã o do poder quando alienamos a soberania popular a um
outro, seja ele um príncipe, seja qualquer forma de representante. Por isto,
Rousseau dirá que o povo nã o obedece a um soberano, ele nã o passa alguma
espécie de contrato com ele. Na verdade, o povo se manifesta através do
exercício da soberania. Ele pode derrubar governos, ele deve ratificar leis, ele se
reú ne em assembleia, ele nã o tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe
representa o povo, pois a soberania nã o é algo que possa ser representado sem
ser perdido. Neste sentido, deputados e príncipes sã o apenas “comissá rios” do
povo.
O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que
lhe formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o
homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado
a tudo o que lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil
e a propriedade de tudo o que ele possui” 44. Notemos a estrutura da retó rica de
Rousseau. Sabendo que nã o mais é possível fazer apelo a uma relaçã o à physis
soterrada pelo processo civilizacional, Rousseau que realizar uma liberdade que
ainda signifique pertencimento de si apelando a uma ló gica pró pria à s
individualidades proprietá rias: veja quanto se perde e quanto se ganha;
deixamos o cará ter ilimitado do desejo, mas ganhamos a segurança da
propriedade. Daí porque Hegel dirá , a respeito de Rousseau:

No entanto, como ele apreendeu a vontade em sua forma determinada


como vontade singular (como fez posteriormente Fichte) e como ele
apreendeu a vontade geral nã o como o que a vontade tem de racional em
si e para si, mas apenas como o elemento comum que surge desta vontade
singular enquanto consciente, a reuniã o dos indivíduos singulares no
Estado se transforma em um contrato45.

Hegel critica Rousseau por pensar a vontade a partir da noçã o de vontade


individual, vontade que, ao menos em sua perspectiva, nã o advém exatamente
vontade geral, mas vontade comum, ou seja, associaçã o de diversas vontades que
nã o desejam um objeto universal, mas que desejam as condiçõ es para a
afirmaçã o de seus sistemas particulares de interesses 46. De fato, como nos
lembra Gérard Lebrun ao insistir na “raiz ultra-individualista do contrato”, no
momento do Contrato social, o homem é ainda “aquele que olha para si mesmo”.
Seu desejo de adquirir a liberdade civil provém de uma reivindicaçã o que nasce
no nível da sua independência natural. Sua entrada na uniã o civil é feita
unicamente em nome de seu amor por si mesmo. Ou seja, as condiçõ es de
estabelecimento do contrato social nã o sã o recuperaçõ es da natureza reprimida,
mas regulaçã o da vida social a partir da realidade de uma alienaçã o de base.
Notemos ainda que este desejo de liberdade civil é também desejo de liberdade
moral, de auto-legislaçã o, já que vem de Rousseau a ideia de que liberdade é dar
para si mesmo sua pró pria lei.
Estes pontos podem explicar porque, para fazer emergir um corpo
político, é necessá rio um legislador. Este legislador é a figura instauradora de um
povo, como Licurgo, Moisés. Diz Rousseau:

Este que ousa empreender a instituiçã o de um povo deve se sentir em


estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar
cada individuo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitá rio em parte
de um todo maior do qual os indivíduos receberã o de certa maneira sua

44
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364
45
Idem,
46
Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau com
freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas avalie, em
compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de otário?” In: A
filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos entrar no
contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que compõem a “pessoa
pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas continuam portanto a desfrutar um
direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode infligir aos súditos nenhuma que seja
inútil à comunidade” (idem, p. 230).
vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que
todos nó s recebemos da natureza por uma existência parcial e moral47.

Como lembrará bem Bento Prado Jú nior, é necessá rio uma relaçã o à
exterioridade para que a vida social possa ser instituída em sua proximidade à
natureza: “apenas o estrangeiro que nã o partilha dos preconceitos e dos
interesses dessa humanidade local, pode aproximar-se da condiçã o
extraordiná ria que é a do legislador48.
Mas o que acontece como esta natureza humana deixada para trá s? Ela
ainda terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois
podemos nos perguntar se esta transformaçã o produzida pelo legislador, se esta
mudança da pró pria natureza humana nã o seria sem produzir uma certa
nostalgia social. A vida política nã o parece nã o pode dar conta desta nostalgia. No
má ximo, ela transmutar a experiência de auto-pertencimento pró pria ao estado
de natureza em desejo de igualdade (forma ú nica de impedir a servidã o) e de
autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos
marcados pela experiência do individualidade possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma
linguagem de pura presença. Este ponto se dá através da mú sica e do uso da
mú sica como paradigma para a reinstauraçã o da ordem social.

Música e reconhecimento

A fim de compreender a configuraçã o do paradigma musical em Rousseau,


lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufõ es. Grosso modo, trata-se de uma
contraposiçã o entre, de um lado, uma noçã o de modernidade musical vinculada
ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressã o harmô nica
derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma
polifonia contrapontística controlada pelo centro harmô nico e para uma
definiçã o de estruturaçã o da forma musical absolutamente autô noma em relaçã o
a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reaçã o
que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofô nica inspirada no
canto. Posiçã o rousseauista que Dahlhaus caracterizou bem: “Um
sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela mú sica, um racionalismo que
quer programas, uma pintura musical na mú sica instrumental e a nostalgia de
uma antiguidade que opõ e, à polifonia moderna, confusa e savant, uma
simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical
de Rousseau”49.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da
melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo
entre mú sica e a expressã o natural da linguagem com suas entonaçõ es e acentos.
Isto o permitia vincular a mú sica à uma pedagogia da arte capaz de servir de
veículo de formaçã o moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
Lembremos do que diz Rousseau :

47
Idem, p. 381
48
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 103
49
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma
mú sica e um canto, os europeus sã o os ú nicos que têm uma harmonia,
acordes, achando esta mistura agradá vel ; quando pensamento que o
modo durou tantos séculos sem que, em todas as naçõ es que cultivaram
as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum
animal ou pá ssaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
uníssono ou outra mú sical que a melodia ; que as línguas orientais, tã o
sonoras, tã o musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes
povos voluptosos e apaixonados em direçã o à nossa harmonia ; que sem
ela suas mú sicas tiveram efeitos tã o prodigiosos ; que com ela a nossa
tenha efeitos tã o fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte,
cujos ó rgã os duros e grosseiros sã o mais tocados pelos ruídos e explosõ es
de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexõ es,
fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras
da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em consideraçõ es, é muito
difícil nã o desconfiar que toda nossa harmonia é uma invençã o gó tica e
bá rbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fô ssemos mais
sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à mú sica realmente natural 50.

A discussã o de Rousseau vincula a expressã o musical à “voz da natureza” que se


expressa sem afetaçã o através da objetividade pró pria à entonaçã o e aos acentos
da fala comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda
fala) como fundamento da expressã o musical. Esta expressã o musical pró xima da
fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um
fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo
doador de sentido, como transparência e proximidade.
Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um
espaço político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitaçã o da
disseminaçã o da representaçã o devido ao ideal estético de clareza e
comunicaçã o (o que explica boa parte da luta de Rousseau contra uma mú sica na
qual a expressã o meló dica estaria submetida aos jogos e modulaçõ es
harmô nicas). Esse naturalismo musical, que submete a mú sica ao “prazer moral
da imitaçã o”51 enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por
vir (ou seja, há uma submissã o completa entre mú sica e moral em Rousseau, tal
como houvera antes em Platã o), faz da expressã o do compositor o uso consciente
de efeitos objetivamente determinados. Ou seja, faz da expressã o do compositor
a mera imitaçã o dos afetos objetivamente dispostos. Daí porque o compositor
deve: “conhecer ou sentir o efeito de todos os cará teres a fim de levar
exatamente este que ele escolheu ao grau que lhe convém”52. Da mesma forma, os
instrumentos terã o sua expressã o pró pria: a flauta é tenra, o trompete é
guerreiro, a trompa é majestosa, etc. Ou seja, aqui também trata-se muito mais
de representação de regimes gerais e está veis de afecçã o do espírito, de uso
objetivo de uma paleta de efeitos disponíveis, do que propriamente de expressão.
Notemos como a crítica da alienaçã o em Rousseau serve-se da mú sica
como horizonte de reconstruçã o da capacidade instauradora da linguagem e

50
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
51
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
52
Idem, p. 207
recuperaçã o de dimensõ es sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de
que a alienaçã o social é indissociá vel da degradaçã o da linguagem no espaço
político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas:
“toda língua com a qual nã o nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma
língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas”53. Uma
língua que o povo em assembleia nã o escuta é aquela desprovida de eloquência,
afastada da persuasã o por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome
pró prio, reduzida a sua condiçã o instrumental de descriçã o de interesses. “A
primeira má xima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem
permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensã o instrumental e
comunicacional que os separa. A língua do povo em assembleia, ao contrá rio, é
aquela mais pró xima do canto e da mú sica. De certa forma, para Rousseau, não
há assembleia sem música.
No entanto, a força política da mú sica exige a recusa de sua autonomia, a
recusa do desenvolvimento imanente de seus materiais. Para preencher sua
força política pró pria, a mú sica deve se submeter a uma moral, ela nã o deve criar
um ethos a partir do desenvolvimento imanente de seus materiais. Por isto,
trata-se de exigir a fundamentaçã o dos modos de expressã o em um solo natural e
originá rio pensado como horizonte normativo estrito. Este solo natural nã o é um
campo de singularidades em produçã o, mas um campo de visibilidade da voz da
natureza. Pois: “a força da linguagem nã o reside no poder de fornecer imagens
das coisas, mas no poder de pô r a alma em movimento, de colocá -la numa
disposiçã o que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza
quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a
ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar”54.

53
Idem, Essai sur l’origine des langues,
54
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
Lógicas do reconhecimento
Aula 4

Na aula de hoje, começaremos a discutir o conceito de reconhecimento, tal como


aparece na filosofia hegeliana. A insistência na centralidade dos processos de
reconhecimento é uma inovaçã o filosó fica fundamental produzida por Hegel,
mesmo que o conceito apareça pela primeira vez com Fichte. Tal centralidade
dos processos de reconhecimento indicará um regime de saída do idealismo que
será explorado em toda sua extensã o principalmente, como veremos, por setores
maiores do pensamento do século XX. Isto implicará nã o apenas assumir a
gênese social da consciência cognitiva, ou seja, a maneira com que ela submete
processos de conhecimento a estruturas sociais de reconhecimento. Pois, como
disse em outra aula, o reconhecimento nos abre para a tematizaçã o da gênese
das estruturas da consciência através das relaçõ es concretas de trabalho, desejo
e linguagem. Se a consciência só é enquanto reconhecida, entã o serã o os campos
concretos de reconhecimento que determinarã o sua estrutura, seus modos de
apreensã o e pensamento. A filosofia deverá assim se direcionar à compreensã o
das modalidades concretas de trabalho, de desejo e de linguagem enquanto
expressõ es de uma gênese social da consciência. Gênese esta que demonstra
como toda proposiçã o de validade deverá ser historicamente situada. Posiçã o
cujas consequências estã o muito bem expressas em afirmaçõ es como esta de
Robert Brandom: “Toda determinaçã o transcendental é uma instituiçã o social”.
Por isto, havia dito a vocês que a temá tica do reconhecimento representava o
eixo de uma guinada materialista no interior do idealismo alemã o, um
materialismo que nã o é simplesmente a expressã o do empirismo e de seus sense
data, mas de um materialismo histó rico que a partir de entã o paulatinamente irá
se configurar.
No entanto, a defesa hegeliana das dinâ micas de reconhecimento trará
consequências maiores também para a compreensã o de conceitos reguladores
centrais de nossas formas de vida, como liberdade, identidade, individualidade,
autonomia e emancipaçã o. O reconhecimento é uma peça fundamental de todo
pensamento dialético, nã o apenas por enraizar nossas proposiçõ es sobre estado
de coisas em gêneses sociais, mas também por expor modalidades de
determinaçã o de si que passam pela desarticulaçã o das distinçõ es estritas entre
identidade e diferença, entre referência-a-si e referência-a-outro, o que implica
uma verdadeira “metamorfose categorial” a respeito do que devemos
compreender por “si mesmo”. É a natureza desta desarticulaçã o, sua extensã o e
radicalidade, que colocará problemas para vá rios setores do pensamento do
século XX. É esta sua força de descentramento que, a meu ver, ainda está sub-
explorada. Por isto, parece-me que uma maneira privilegiada para entrar em
dimensõ es importantes de nosso debate filosó fico contemporâ neo seja propondo
um certo retorno a Hegel, um retorno à s tensõ es pró prias a seu texto.
Notemos ainda que vimos em nosso trajeto como a filosofia social do
século XVII e XVIII, em especial Hobbes e Rousseau, nã o tinham a sua disposiçã o
um conceito de reconhecimento enquanto horizonte regulador de dinâ micas de
conflito social. Isto produzia, no caso de Hobbes, uma filosofia que pensava a
emergência de corpos políticos baseados na gestã o social de uma psicologia que
visava a naturalizaçã o de relaçõ es concorrenciais, belicistas e possessivas. Uma
psicologia que visava fornecer as bases para a naturalizaçã o do conceito
moderno de indivíduo, transforma-lo em um conceito pré-político e ligado a um
processo de determinaçã o meramente psicoló gica. Neste sentido, a instauraçã o
do estado de sociedade só era possível através da repressã o contínua do que
aparecia como natureza humana, obrigando com isto a mobilizaçã o contínua do
medo como afeto social. Este circuito de afetos baseado no medo, fruto da
aceitaçã o da fantasia social da guerra de todos contra todos, aparecia como a
mais profunda contradiçã o em relaçã o a prá ticas de reconhecimento. Nã o pode
haver reconhecimento lá onde há medo social.
No caso de Rousseau, vimos como a liberdade civil pressupunha uma
autonomia que representava, a sua maneira, um esquecimento da natureza
humana em sua relaçã o de imanência ao corpo da natureza. De onde se seguia o
fato das demandas de reconhecimento serem compreendidas, em larga medida,
de maneira negativa, como processos de alienaçã o e dependência da estima do
outro. Dependência esta que criava o cultivo da aparência e a perda da
transparência. Aqui também a emergência de um corpo político, sob as formas do
contrato social e da vontade geral, tinha que lidar com as limitaçõ es existenciais
pró prias da elevaçã o da individualidade moderna à célula elementar da vida
social. A vontade geral nascia da possibilidade de motivaçõ es para a açã o que nã o
se resumiam a emulaçã o dos interesses individuais. No entanto, ela implicava a
instauraçã o de uma segunda natureza na qual a independência era transmutada
em coesã o social no interior de um “Eu comum”. Neste processo, a soberania
popular nã o implica lidar com uma primeira natureza perdida e sua nostalgia.
Esta nostalgia continuará a assombrar os laços sociais, mas mesmo esta primeira
natureza nã o será objeto de reconhecimento, no que o termo tem de
determinaçã o de singularidades. Sua emergência será a marca do retorno a uma
origem na qual a generalidade da voz da natureza fala através dos humanos.
De toda forma, tanto a filosofia de Hobbes quanto a de Rousseau tinham
ao menos um ponto em comum: parte-se dos indivíduos isolados em estado de
natureza para alcançarmos as condiçõ es possíveis de emergência de um corpo
político. Em Hegel, veremos estratégias completamente distintas. Ao insistir na
centralidade dos processos de reconhecimento, Hegel lembra que a célula
elementar da vida social nã o sã o indivíduos atomizados, mas relaçõ es. Ou seja, é
certo afirmarmos que, no seu caso, as relaçõ es vem antes de seus termos. Ou seja,
o que temos inicialmente sã o relaçõ es, os indivíduos sã o abstraçõ es, e nã o o
contrá rio (os indivíduos seriam “reais” e as relaçõ es seriam “abstraçõ es”). Hegel
age como quem diz: a consciência nã o é prévia à s relaçõ es intersubjetivas. Na
verdade, ela é seu produto. O que há de concreto no mundo sã o as relaçõ es e sua
força produtiva, nã o as disposiçõ es individuais de conduta. No entanto, a
consciência nã o é um mero produto, um simples suporte de relaçõ es
intersubjetivas. Ela é também o que força as estruturas intersubjetivas a
operarem a partir de conflitos que nã o sã o apenas conflitos a respeito da melhor
aplicaçã o de normas sociais intersubjetivamente partilhadas, mas sã o conflitos a
respeito da legitimidade de tais normas. Esta tensã o de difícil manejo é possível
para Hegel, sem necessariamente substancializar a consciência porque, como
veremos, ele tem à sua disposiçã o o conceito de “negatividade”, que se mostrará
central em toda nossa discussã o. Mas antes de entrar na exposiçã o da estrutura
conceitual hegeliana, há de entender as matizes de sua trajetó ria até a
tematizaçã o do problema do reconhecimento.
Fenomenologia do Espírito e reconhecimento

O texto mais importante sobre a teoria do reconhecimento de Hegel é, sem


dú vida, sua Fenomenologia do Espírito, de 1806. Nela, encontramos a primeira
formulaçã o acabada do problema do reconhecimento através de vá rias figuras da
consciência (como a dialética do senhor e do escravo, o mal e seu perdã o, entre
outras). Elas serã o retomadas e desenvolvidas principalmente em duas obras
posteriores: a Enciclopédia das ciências filosóficas e os Fundamentos da Filosofia
do direito.
De certa forma, o movimento que anima a Fenomenologia do Espírito está
sintetizado na afirmaçã o, presente em sua Introdução: “o caminho do erro é o
caminho da verdade”. Em Hegel, “fenomenologia” significa o estudo da maneira
com que a consciência erra, a maneira com que ela aliena-se na dimensã o do que
lhe aparece. No entanto, este sistema de erros é um caminho em direçã o ao
saber, pois algo acumula-se à s costas da consciência, mesmo que ela nã o perceba.
Isto a ponto do saber aparecer como indissociá vel da compreensã o deste
processo em sua direçã o. O verdadeiro objeto do saber é a compreensã o do
sentido do caminho em sua direçã o.
Assim, em um movimento contínuo, veremos a consciência procurar
adequar sua certeza à verdade, e para tanto ela partira da certeza mais
elementar, a saber, a certeza da objetividade dos dados imediatos do sentido.
Desde o início, ela se verá enredada em contradiçõ es a partir do momento em
que tentará exteriorizar sua certeza, falar sobre ela, expressa-la em um espaço
intersubjetivo. Ela descobrirá que nã o há relaçã o imediata entre a consciência e
seu objeto, que todas essas relaçõ es sã o mediadas pela estrutura de uma
linguagem que nã o é simplesmente “minha”, mas que é fruto de uma experiência
social. Neste caminho, ela descobrirá como a estrutura do objeto tem a estrutura
do Eu. O que a princípio para uma proposiçã o idealista típica que reduz o objeto
à projeçã o da estrutura de categorizaçã o do sujeito. No entanto, Hegel quer
mostrar que é o Eu que irá se modificar a partir de seus fracassos em adequar
seu conceito ao objeto, a certeza à verdade. Neste momento, a consciência deixa
de ser “consciência de objeto” e passa a ser “consciência-de-si”. Pois
compreende-se a emergência de um “Eu que é Nó s, de um Nó s que é Eu”. Ou seja,
nã o é o Eu isolado como subjetividade constituinte que se confronta aos objetos.
Sã o as estruturas sociais de relaçõ es que determinam as formas gerais da
experiência.
No entanto, dizer isto é ainda dizer pouco. Pois há de se entender como
analisar tais estruturas sociais. No caso de Hegel, podemos dizer que o problema
central consiste em entender o que as move. Qual é o motor do movimento das
estruturas sociais e de suas modificaçõ es histó ricas. É para responder esta
questã o que Hegel mobilizará o tema do reconhecimento. É através de lutas por
reconhecimento que as estruturas se movem e se modificam. É forçando
processos incompletos e parciais de reconhecimento que elas se transformam.
Ou seja, a histó ria na Fenomenologia do Espírito é uma histó ria de lutas por
reconhecimento.
Quando for capaz de apreender tal histó ria, quando se ver como sujeito
transindividual que atualiza tal histó ria e age no presente a partir dela, a
consciência-de-si nã o será mais consciência-de-si. Ela será Espírito. Neste
sentido, Espírito nã o é uma espécie de entidade metafísica superior que teria
parte com a secularizaçã o de um conceito divino de providência.
Quando Hegel fala em Espírito, podemos compreender isto, a princípio, de
uma maneira nã o-metafísica. Atualmente, quando falamos sobre sujeitos
socializados que procuram julgar, orientar racionalmente suas açõ es e usos da
linguagem, lembramos inevitavelmente da necessidade de um background
pensado um “sistema de expectativas” fundamentado na existência de um saber
prá tico cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo pré-
intencional, o contexto de significaçã o. Este background indica que toda açã o e
todo julgamento pressupõ em um “espaço social partilhado” capaz de garantir a
significaçã o da açã o, do julgamento e, principalmente, de nossos modos de
estruturar relaçõ es.
Como disse, este background é, em larga medida, pré-intencional e pré-
reflexivo. Nã o colocamos normalmente a questã o sobre a gênese deste saber
prá tico cultural que fundamenta nossos espaços sociais. Sua validade nã o
aparece como objeto de problematizaçã o. No entanto, podemos imaginar uma
situaçã o na qual os sujeitos socializados irã o procurar apreender de maneira
reflexiva aquilo que aparece a eles como fundamento para suas prá ticas e
julgamentos racionais, podemos pensar uma situaçã o na qual eles procurem
compreender o processo de formaçã o cultural que os levou a tais modos de
orientaçã o da conduta. Podemos ainda achar que tais modos de orientaçã o nã o
devem ter apenas uma validade historicamente determinada e restrita a espaços
sociais particulares, mas só podem ser vá lidos se puderem ser defendidos
enquanto universais. Neste momento, estaremos muito pró ximos daquilo que
Hegel compreende por Espírito. Devemos, neste ponto, seguir a definiçã o de um
comentador de Hegel que viu claramente isto: “Espírito é uma forma de vida
autoconsciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu vá rias prá ticas
sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por legítimo/vá lido
(authoritative) para si mesma no sentido de saber se estas prá ticas podem dar
conta de suas pró prias aspiraçõ es e realizar os objetivos que elas colocaram para
si mesmas (...) Espírito nã o denota, para Hegel, uma entidade metafísica, mas
uma relação fundamental entre pessoas que medeia suas consciências-de-si, um
meio através do qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram por vá lidos
para si mesmas”55. É a este horizonte que as prá tica de reconhecimento em Hegel
procuram nos levar. Mas para compreendê-lo de maneira mais efetiva, teremos
que passar da Fenomenologia do Espírito à Filosofia do direito. Pois é lá que este
horizonte normativo do Espírito estará mais claramente posto.

Os primeiros passos em direção ao reconhecimento

No entanto, as primeira formulaçõ es sobre o problema do reconhecimento em


Hegel devem ser creditadas a seus manuscritos de juventude, em especial o
chamado Sistema da eticidade e o curso sobre a Filosofia do Espírito, de 1805.
Neles, encontramos de forma clara a maneira com que a tarefa filosó fica de Hegel
se vincula a um diagnó stico de época que é, ao mesmo tempo, socio-histó rico e
filosó fico.

55
PINKARD, Terry; The sociality of reason, p. 9
Hegel partilha com pó s-kantianos, como Fichte e Schelling, o diagnó stico
de que viveríamos em um momento histó rico de cisã o resultante da elevaçã o do
princípio de subjetividade a condiçã o de fundamento da razã o moderna, assim
como de seus modos de racionalizaçã o social. Este princípio de subjetividade,
com sua condiçã o de fundamento, exige que tudo aquilo que aspira validade seja
submetido à força da reflexã o. Ele faz com que ser e reflexã o seja pois o mesmo.
No entanto, isto parece inicialmente submeter o ser à dimensã o estrita daquilo
que é ser-para-o-sujeito, e nã o ser em-si. Daí diagnó sticos como este que
encontramos no prefá cio da Fenomenologia:

Tomando a manifestaçã o dessa exigência [do Absoluto] em seu contexto


mais geral e no nível em que presentemente se encontra o espírito
consciente-de-si [ou seja, trata-se de compreender o que o presente
coloca como exigência do espírito], vemos que esse foi além da vida
substancial que antes levava no elemento do pensamento; além desta
imediatez de sua fé, além da satisfaçã o e segurança da certeza que a
consciência possuía devido à sua reconciliaçã o com a essência e a
presença universal dela – interior e exterior. O espírito nã o só foi além –
passando ao outro extremo da reflexã o, carente-de-substâ ncia, de si sobre
si mesmo – mas ultrapassou também isso. Nã o somente está perdida para
ele sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude
que é seu conteú do. [Como o filho pró digo], rejeitando os restos da
comida, confessando sua abjeçã o e maldizendo-a, o espírito agora exige da
filosofia nã o tanto o saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela,
aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha perdido]” 56.

Como vemos, Hegel compreende claramente a modernidade como um


momento de cisã o. O espírito teria perdido a imediatez da sua vida substancial,
ou seja, nada lhe apareçeria mais como substancialmente fundamentado em um
poder capaz de unificar as vá rias esferas de valores sociais. Nã o haveria mais
recurso à autoridade da tradiçã o ou à certeza da imediatez. Ao contrá rio, a
modernidade pode ser compreendida como este momento que está
necessariamente à s voltas com o problema da sua auto-certificação. Isto
significa: ela nã o pode mais procurar em outras épocas os critérios para a
racionalizaçã o e para a produçã o do sentido de suas esferas de valores. Ela deve
criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a
substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais
aparentemente nã o-problemá ticos está fundamentalmente perdida. Como dirá ,
cem anos depois, Max Weber: “O destino de nossos tempos é caracterizado pela
racionalizaçã o e intelectualizaçã o e, acima de tudo, pelo desencantamento do
mundo. Precisamente, os valores ú ltimos e mais sublimes retiraram-se da vida
pú blica, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade
das relaçõ es humanas e pessoais”57. Ou seja, aquilo que fornecia o enraizamento
dos sujeitos através da fundamentaçã o das prá ticas e critérios da vida social nã o
é mais substancialmente assegurado.
Em uma aná lise hoje clá ssica, Hegel indica três acontecimentos que foram
paulatinamente moldando a modernidade em suas exigências: a reforma
56
HEGEL, Fenomenologia I, p. 24
57
WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182
protestante [com sua confrontaçã o direta entre o crente e Deus através da
subjetividade da fé], a revoluçã o francesa [que colocava o problema do Estado
Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspiraçõ es de universalidade da Lei e
exigências dos indivíduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, terá em Kant sua
realizaçã o mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece
impulsiona-los é o aparecimento do que poderíamos chamar de “subjetividade”.
É a gênese desta subjetividade que deverá ser objeto da filosofia e de seus
processos de fundamentaçã o.
Hegel poderia, no entanto, apelar a uma saída transcendental que visaria
definir o sujeito como mera condiçã o formal de toda experiência possível. Isto
daria ao sujeito a universalidade necessá ria para nã o sermos empurrado a um
psicologismo subjetivista. Mas a saída transcendental de moldes kantianos era
insatisfató ria para Hegel e para os pó s-kantianos. Pois, primeiramente, ela criaria
sua universalidade através da supressã o de todo processo histó rico de gênese e
metamorfose das categorias do pensamento. As categorias do pensamento
aparecem assim como entidades está ticas e, por isto, indiferente ao mundo tal
como seria em-si. No entanto, dirá Hegel:

Todas as revoluçõ es, nas ciências nã o menos que na histó ria mundial,
provêm (kommen) somente de que o Espírito agora, para entender e
perceber a si, para tomar posse de si, modificou (geändert hat) suas
categorias, apreendendo-se (sich erfassend) mais verdadeira e
profundamente, mais intimamente e com mais coesã o (einiger)”58.

Ou seja, para Hegel, ao procurar apreender-se verdadeira e


profundamente, o Espírito produz necessariamente uma “modificaçã o de
categorias”, um movimento no interior da pró pria significaçã o destas
determinaçõ es universais do pensar. Tais modificaçõ es nã o sã o apenas
acompanhadas por aquilo que o século XX chamará de “mudança de paradigma
científico” e que Hegel descreve como “revoluçã o” na ciência. Elas sã o
necessariamente acompanhadas por amplas mutaçõ es em nossas formas de vida
à s quais Hegel alude ao falar de revoluçõ es na histó ria mundial. Por isto, sua
Ciência da lógica será , primeiramente, uma crítica a ideias como esta:

Pode-se reconhecer que a ló gica, desde remotos tempos, seguiu a via


segura, pelo fato de desde Aristó teles, nã o ter dado um passo atrá s, a nã o
ser que se leve à conta de aperfeiçoamento a aboliçã o de algumas
sutilezas desnecessá rias ou a determinaçã o mais nítida de seu conteú do.
Também é digno de nota que nã o tenha até hoje progredido, parecendo,
por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto se nos pode afigurar (...)
Que a ló gica tenha sido tã o bem sucedida deve-se ao seu cará ter limitado,
que a autoriza e mesmo a obriga a abstrair de todos os objetos do
conhecimento e suas diferenças, tendo nela o entendimento que se ocupar
apenas consigo pró prio o com sua forma (...) Desde os tempos mais
remotos que a histó ria da razã o pode alcançar no admirá vel povo grego, a
matemá tica entrou na via segura de uma ciência59.

58
HEGEL, Enciclopédia, par. 246
59
KANT, Crítica da razão pura, B VIII/B XI
Estas afirmaçõ es de Kant no segundo prefá cio à Crítica da razão pura sintetizam
admiravelmente tudo contra o qual Hegel luta em sua filosofia. Nã o é por outra
razã o que a primeira frase da Ciência da Lógica é exatamente uma lamentaçã o:

A modificaçã o completa que afetou o modo de pensar filosó fico desde


mais ou menos vinte cinco anos entre nó s, a perspectiva mais elevada que
a auto-consciência do Espírito alcançou a respeito de si mesmo neste
período de tempo teve, até agora, pouca influência na forma (Gestalt) da
ló gica60.

A confrontaçã o nã o poderia ser mais clara. Hegel vê como bloqueio


fundamental o fato da ló gica “nã o ter até hoje progredido” e ter pago, como preço
desta estaticidade, a impossibilidade de tematizar a Coisa mesma (die Sache
selbst). Isto nos leva ao segundo problema com uma estratégia transcendental, a
saber, a universalidade de categorias está ticas nos obriga a constituir uma
espécie de “objetividade para nó s” que, para Hegel, equivale a estar a um passo
de uma profissã o de fé cética. Pois nã o há modificaçã o de categorias porque as
coisas em-si e os processos concretos nã o afetam nossas formas de apreendê-los.
Nada que ocorre no tempo será capaz de modificar a forma pura do tempo. Nada
que ocorre no espaço será capaz de modificar as condiçõ es de uma estética
transcendental do espaço.
Contra isto, o jovem Hegel irá procurar submeter as estruturas do
conhecimento à s dinâ micas de reconhecimento. Isto significará nã o só se
perguntar pelas condiçõ es sociais do conhecimento, ou seja, pela maneira com
que processos histó ricos coletivos determinam a forma do pensar. Isto
significará também se perguntar como a consciência emerge, quais sã o as
condiçõ es materiais de sua emergência e de suas modificaçõ es, como estas
condiçõ es determinarã o as potencialidades prá ticas de suas açõ es em suas
expectativas de racionalidade.
Pois há de se entender que, quando Hegel fala em razã o, ele nã o está a
pensar apenas na capacidade de se orientar no julgamento e de deliberar através
da procura pelo melhor argumento no interior de um processo marcado pelo ato
de dar e compreender razõ es. Processo este que pressupõ e a existência de um
fundamento comum de avaliaçã o de enunciados a partir de uma espécie de
gramá tica geral partilhada por todos os atores. Razã o é, para Hegel, uma forma
de vida que se incarna em instituiçõ es e prá ticas sociais tendo em vista a
efetivaçã o das condiçõ es de liberdade. Forma marcada pela reflexividade e pela
capacidade que tenho de me ver como agente das instituiçõ es e prá ticas que me
determinam, isto no sentido de ver minha vontade como atuante no interior das
determinaçõ es fundamentais da vida social. Esta razã o, como fica claro, é
indissociá vel da capacidade humana de constituir relaçõ es capazes de garantir e
reconhecer nossas demandas de liberdade. Ou seja, a razã o nã o é só a
característica da estrutura cognitiva da consciência. Ela é sua força de
instauraçã o de formas sociais.

60
HEGEL, Idem, p. 13. Lembrando, é claro, que a afirmação de Kant não é totalmente correta, já que:
‘a doutrina que ele vê como descoberta completa e perfeita de Aristóteles foi, de fato, uma confusa
versão peculiar da mistura tradicional entre elementos aristotélicos e estóicos” (KNEALE e KNEALE,
The development of logic, Oxford University Press)
Isto explica porque o jovem Hegel tentará uma saída ao princípio de
subjetividade constituinte em Kant fazendo apelo à recuperaçã o de laços sociais
pretensamente marcados pelo reconhecimento mú tuo e pela garantia de uma
açã o social orientada para a emancipaçã o, como seria o caso da polis grega e das
primeiras comunidades cristã s baseadas no amor. Este modelo, no entanto, será
paulatinamente abandonado por Hegel quando compreender que as sociedades
modernas de livre-mercado levaram a individualidade a um desenvolvimento tal,
assim como levaram processos de trabalho a um ponto tal de degradaçã o, que
nã o seria mais possível apelar a modelos baseados em vínculos comunitá rios
substanciais.
Em seu lugar, o jovem Hegel construirá uma descriçã o fenomenoló gica de
etapas sociais de reconhecimento. Elas começam pelas exigências de satisfaçã o
do desejo. Neste sentido, nos encontramos mais uma vez no ponto de partida de
Thomas Hobbes e de seu estado de natureza. No entanto, simplesmente nã o há
estado de natureza em Hegel. Comparemos, por exemplo, o movimento textual
do Leviatã e o movimento textual da Fenomenologia do Espírito. No primeiro
caso, temos um movimento sempre ascendente. Começa-se da descriçã o da
estrutura do desejo individual, expõ e-se seus conflitos, evidencia-se seus
impasses e chega-se ao estado social. Em Hegel, temos uma espécie de dinâ mica
de aprofundamento, no qual a consciência desvela a natureza mediada daquilo
que ela julgava imediato, desvela a natureza socialmente constituída daquilo que
lhe aparecia como natural. Por isto, perde o sentido em falar em algo como um
“estado de natureza”. Saí de cena as discussõ es sobre a natureza humana, mesmo
que a filosofia de Hegel procure compreender uma espécie de emergência do
social a partir da natureza, ou seja, a partir do movimento da vida, o que explica
porque a vida aparece como primeira figura do desejo no capítulo IV da
Fenomenologia do Espirito.
Mas tentemos dar o sentido do movimento geral desta dinâ mica hegeliana
de aprofundamento. No caso de Hegel, e isto já está presente nos escritos de
juventude, o processo do desejo nos leva a uma dinâ mica de conflitos que fará
emergir o trabalho em sua forma de trabalho alienado, trabalho feito no interior
de uma relaçã o de submissã o e de medo da morte. Daí porque a primeira figura
da consciência que trabalho é o servo. No entanto, pelas vias do trabalho as
relaçõ es de dependência levarã o a uma modificaçã o da consciência individual. Ao
trabalhar para um Outro, a consciência descobrirá habitada por uma perspectiva
que nã o é apenas sua, mas também de Outro. Daí o sentido de afirmaçõ es
surpreendentes como:

A submissã o (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da


verdadeira liberdade dos homens. A dissoluçã o da singularidade da
vontade, o sentimento de nulidade do egoísmo, o há bito da obediência
(Gehorsams) é um momento necessá rio da formaçã o de todo homem. Sem
ter a experiência deste cultivo (Zucht) que quebra a vontade pró pria
(Eigenwillen), ninguém advém livre, racional e apto a comandar. E para
advir livre, para adquirir a aptidã o de se auto-governar, todos os povos
tiveram que passar pelo cultivo severo da submissã o a um senhor61.

61
HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia, par. 435
Esta heteronomia ganhará mú ltiplas figuras, mas será o início de uma
estrutura descentrada fundamental para o advento da noçã o de Espírito. A
consciência verá esta heteronomia, por exemplo, em chave teoló gica, como o
culto a um Deus cuja vontade ela nã o compreende e cuja língua ela nã o entende.
Figura esta tematizada através do que Hegel chama de “consciência infeliz”. Ou
seja, Hegel mostra como as dinâ micas do trabalho estã o no fundamento das
forma de relaçã o ao Outro que comporã o as relaçõ es sociais em seu sentido mais
amplo.
Neste sentido, há de se lembrar como em seus escritos de juventude,
Hegel submete até mesmo o amor como estrutura de reconhecimento à s
dinâ micas do trabalho. Por exemplo, no curso sobre a Filosofia do Espírito, ele
dirá que o amor é uma forma de: “supressã o em si-mesmo dos dois [opostos];
cada um é igual ao outro justamente nisto que lhe é oposto; ou o outro, este que o
outro é para si, é ele mesmo. Exatamente porque cada um se sabe no outro, cada
um renunciou a si mesmo”62. No entanto, esta intuiçã o de si no outro aparece
depois que o trabalho foi apresentado como um ato de se fazer outro, de tomar a
forma de um objeto. Isto a ponto de Hegel afirmar que o amor se realiza na
família, principalmente através da concepçã o da criança “produto do trabalho”
do amor.
No entanto, se Hegel oferece uma versã o de uma filosofia da praxis
através desta centralidade do trabalho, seu conceito de trabalho nã o é
simplesmente fenomenoló gico. Os escritos de juventude mostram como ele lida
com uma compreensã o historicamente precisa da emergência da sociedade do
trabalho. Por exemplo, no Sistema da eticidade, Hegel insiste que a circulaçã o dos
objetos trabalhados pressupõ e o valor como abstraçã o capaz de viabilizar a
troca. Tais processos de abstraçã o impedem toda forma efetiva de
reconhecimento. Ele compreende que o advento do trabalho cooperativo
inaugura um processo de “trabalho mecâ nico” no qual nã o é mais o gozo singular
que conta, mas a produçã o do excedente. Ou seja, em todas as situaçõ es nos
deparamos com formas de alienaçã o vinculadas a configuraçõ es precisas dos
processos materiais de produçã o.
No entanto, é pró prio de Hegel um movimento singular no qual a
alienaçã o é superada pelo pró prio processo que ela coloca em marcha. Há um
movimento dialético que tem como objeto a pró pria alienaçã o. O que nã o poderia
ser diferente, já que para Hegel toda forma de exteriorizaçã o (Entausserung) é
uma forma de alienaçã o (Entfremdung). Nã o há exteriorizaçã o que nã o sejam, em
seu primeiro momento, modalidade de alienaçã o. Ou seja, de certa forma, tudo se
passa como se a alienaçã o fosse necessá ria para que os processos de
reconhecimento pudessem ocorrer, tudo se passa como se elas fossem
paradoxalmente nã o apenas uma perda de si, mas uma formaçã o de si. Pois a
experiência da alienaçã o será também a experiência da inefetividade e da
irrealidade das relaçõ es imediatas e imanentes. Ela será a condiçã o para a
emergência de uma consciência do cará ter constitutivo das estruturas
relacionais, mesmo que tal consciência seja produzida à condiçã o da consciência
ter que continuamente perder a si mesma, até chegar o momento em que ela
perceba que perdeu o que, de certa forma, ela nunca teve.

62
HEGEL, G.W.F.; Filosofia do Espírito, p. 36
Lógicas dos reconhecimento
Aula 5

Na aula de hoje, começaremos a leitura do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito,


privilegiando a emergência do problema do reconhecimento no interior do texto.
Antes de começar nossa leitura, gostaria de lembrar como esta é uma das páginas
mais comentadas da história da filosofia contemporânea. Por isto, nosso exercício de
leitura não poderá ser feito desconhecendo quão polêmicas são essas páginas. O que
não poderia ser diferente para um dispositivo filosófico que procura articular, em um
mesmo movimento, reflexão sobre a gênese da consciência cognitiva, uma descrição
fenomenológica da natureza das relações sociais, a emergência dos impasses nos
processos de auto-determinação e auto-identidade, além de uma teoria filosófica do
desejo e do trabalho.
Lembremos, inicialmente, como o jovem Marx verá neste trecho um dos eixos
da filosofia hegeliana por compreender, através da tópica da luta de dominação e
servidão, além da centralidade dada aos processos de reconhecimento mediados pelo
trabalho, a possibilidade de uma guinada materialista no interior do idealismo alemão.
O texto fundamental a este respeito é o capítulo dos Manuscritos econômico-
filosóficos intitulado “Crítica da dialética e da filosofia hegeliana em geral”. Dentro
da tradição marxista, Lukacs voltará à centralidade.
Nos século XX, a partir dos anos 30, será a leitura de Alexandre Kojève que
dará a essas páginas a posição de chave-mestra para abrir o pensamento hegeliano.
Será o primeiro momento que o problema do reconhecimento será explicitamente
tematizado enquanto tal. Kojève chega a começar sua leitura da Fenomenologia do
Espírito a partir do capítulo IV, isto a fim de deixar evidente o caráter inaugural do
advento da consciência-de-si. Sua leitura será influente no cenário francês, seja para
desdobra-la, como será o caso de Georges Bataille, Eric Weil, Maurice Blanchot e
Jacques Lacan, seja para recusá-la, como será o caso de Jean-Paul Sartre e mesmo de
Gilles Deleuze, que irá contrapor o escravo hegeliano ao senhor nietzscheano em
Nietzsche e a filosofia.
Quando a temática do reconhecimento retornar à filosofia alemã, agora dentro
das gerações posteriores da Escola de Frankfurt, o recurso ao pensamento hegeliano
passará preferencialmente pela Filosofia do direito, e não exatamente pela
Fenomenologia do Espírito. Dois exemplos privilegiados das leituras feitas da
dialética do senhor e do escravo nesta seara será “Caminhos da
destranscendentalização”, de Jürgen Habermas e “Do desejo ao reconhecimento:
fundamentos hegelianos da consciência-de-si”, de Axel Honneth.
Já no interior do recente hegelianismo norte-americano, teremos um debate
constante a respeito da dialética do senhor e do escravo feito por Robert Pippin
(“Hegel sobre consciência-de-si: desejo e morte na Fenomenologia do Espírito”),
John McDowell (“O Eu perceptivo e o self empírico: em direção a uma leitura
heterodoxa da Dialética do senhor e do escravo na Fenomenologia de Hegel”) e o
texto de Robert Brandom: “A estrutura do desejo e do reconhecimento”.
Lembremos ainda de dois trabalhos singulares que trazem novas dimensões
relevantes de leitura. Primeiro, um trabalho na confluência entre estas três tradições, a
saber, Seja meu corpo: dominação e servidão na filosofia hegeliana, de Judith Butler
e Catherine Malabou. Segundo, a interpretação de Susan Buck-Morss a respeito da
ligação entre a elaboração da dialética do senhor e do escravo e a revolta dos escravos
no Haiti (Hegel e Haiti).
Esta pluralidade de estratégias de leituras nos coloca um problema importante
de interpretação. Por isto, sugiro em um primeiro momento retornar ao texto de Hegel
a fim de propor uma leitura que tentará ser imanente aos dispositivos colocados em
circulação por Hegel. Isto nos permitirá, em um segundo momento, medir melhor o
impacto das leituras posteriores em sua capacidade de explorar dimensões esquecidas
do texto.

Eu e objeto como duplos

Talvez a maneira mais adequada de ler esse trecho da Fenomenologia do


Espírito seja lembrando desta afirmação de Lukacs: “na época da redação da
Fenomenologia, Hegel concebe sua filosofia como a forma intelectual de uma nova
forma da história universal”63. De fato, Hegel escreve a Fenomenologia no momento
da invasão das tropas francesas na Alemanha. Fato que ele compreende como a
oportunidade da Alemanha romper o atraso e abrir suas portas para um tempo
reinstaurado. Sua filosofia será assim a expressão de uma época pós-revolucionária
que faz emergir uma nova figura do tempo histórico e da consciência. Hegel quer
produzir a escrita deste tempo, daí a forma completamente singular e inovadora com
que a Fenomenologia do Espírito será escrita. Ela é uma espécie de romance de
formação que descreve o despertar da consciência em direção à apreensão reflexiva de
sua própria essência. E no interior deste movimento, o primeiro momento
fundamental de ruptura ocorre quando a consciência rompe a ilusão de uma apreensão
imediata do mundo enquanto objeto da experiência dotado de estruturas e
determinações naturalizadas. Ela havia se confrontado ao mundo a partir das
estruturas da sensibilidade, da percepção e do entendimento. Em todos esses casos,
seu objeto parecia fruto de categorias naturalizadas. Por isto, a primeira ruptura
fundamental dirá respeito a descoberta de que a essência do mundo humano é o
próprio ser humano.
É tendo tal reversão em vista que devemos abordar o capítulo IV da
Fenomenologia. Lembremos inicialmente de seu título: “B. Consciência de si: a
verdade da certeza de si mesmo”. Este era o título original da nossa seção. Neste
sentido, ele se diferencia da seção precedente: “A. Consciência”, com seus três
capítulos dedicados à certeza sensível, à percepção e ao entendimento. O subtítulo da
seção é, na verdade, um comentário do seu sentido. Hegel usará expediente
semelhante apenas em outra seção: “C. (AA) Razão: certeza e verdade da razão”.
No caso da consciência de si, o subtítulo não poderia ser mais apropriado.
Com a consciência de si, entramos naquilo que Hegel chama de “terra pátria da
verdade”. Ou seja, a verdade encontra enfim seu fundamento. Ao contrário, na seção
“Consciência”, a verdade encontrava-se alienada em solo estranho, já que ela sempre
era pensada como adequação a um objeto independente que trazia, em si mesmo, a
verdadeira medida do saber.
Mas vemos que, inicialmente, esta verdade não é apresentada como “a verdade
do objeto”, mas “a verdade da certeza de si mesmo”; quer dizer, a consciência de si
apresenta a natureza verdadeira da certeza subjetiva de si, da certeza subjetiva da
minha própria auto-identidade e auto-constituição. Neste sentido, podemos dizer que
nossa seção visa mostrar como o desvelamento da verdadeira natureza da certeza
subjetiva de si será o fundamento para a re-orientação do saber verdadeiro sobre os
objetos do mundo. Operação possível devido ao postulado idealista de que “a
estrutura e unidade do conceito [descrição de estados do mundo] é idêntica a estrutura
63
LUKACS, Gyorg; El joven Hegel, p. 442
e unidade do eu”64. Assim, o questionamento sobre a verdade da certeza de si será,
necessariamente, questionamento a respeito da verdade sobre o saber dos objetos. É
tendo tais questões em vista que devemos ler o primeiro parágrafo do nosso trecho:

Nos modos precedentes da certeza, o verdadeiro é para a consciência algo


outro que ela mesma. Mas o conceito deste verdadeiro desaparece
(verschwindet) na experiência que a consciência faz dele. O objeto se mostra,
antes, não ser em verdade com era imediatamente em si: o ente da certeza
sensível, a coisa concreta da percepção, a força do entendimento, pois esse
Em-si resulta ser uma maneira, como o objeto é somente para um outro. O
conceito de objeto se supera no objeto efetivo, a primeira representação
imediata se supera na experiência e a certeza vem a perder-se na verdade.
Surgiu porém agora o que não emerge nas relações anteriores, a saber, uma
certeza [subjetiva] igual à sua verdade [objetiva], já que a certeza é para si
mesma seu objeto, e a consciência é para si mesma a verdade. Sem dúvida, a
consciência é também nisso um ser-outro, isto é, a consciência diferencia
(unterscheidet) [algo de si mesmo] mas de tal forma que ela é, ao mesmo
tempo, um não-diferenciar (nicht Unterschiedenes) [já que este algo diferente
ainda é ela mesma]65.

Encontramos aqui um resumo que visa mostrar o que realmente estava em jogo na
seção precedente. Enquanto consciência, a medida da verdade era fornecida pela
adequação entre representações mentais e objetos. No entanto, o objeto da experiência
sempre ultrapassava (ou melhor, sempre invertia) as representações naturais do
pensar. Em cada um destes momentos, a consciência parecia perder a objetividade da
sua certeza, ou seja, a crença de que seu saber era capaz de descrever estados de
coisas independentes e dotados de autonomia metafísica.
No entanto, Hegel afirma que surgiu agora aquilo que, na Introdução, ele havia
chamado de meta: ‘onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde o conceito
corresponde ao objeto e o objeto ao conceito” 66, ou seja, surgiu uma certeza igual à
verdade. Este surgir eclode quando o saber compreende que seu objeto é a própria
consciência e que lá onde ele acreditava estar lidando com objetos autônomos, ele
estava lidando com a própria estrutura do saber enquanto o que determina a
configuração do que pode aparecer no interior do campo da experiência. “É para a
consciência que o Em-si do objeto e seu ser-para-um-Outro são o mesmo” 67. Daí
porque não se trata mais de tematizar a consciência como consciência de objeto, mas
como consciência de consciência, consciência das estruturas do pensar da consciência,
ou ainda, consciência de si (Selbstbewustssein).
Hegel afirma então que, enquanto consciência de si:

O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma, defronta um Outro [pois


toma a si mesmo como objeto] e ao mesmo tempo o ultrapassa; e esse Outro,
para o Eu, é apenas ele próprio [já que ele toma a si mesmo como objeto]68.

64
BRANDOM, Some pragmatist themes in Hegel´s idealism, pag. 210
65
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
66
HEGEL, Fenomenologia, par. 80
67
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
68
HEGEL, idem
Afirmações desta natureza podem se prestar a vários mal-entendidos. Pode
parecer que Hegel afirma, em uma bela demonstração de idealismo absoluto, que o Eu
não é apenas o que fornece a forma do que aparece (como em Kant ao insistir que o
objeto qualquer das categorias do entendimento era o correlato do Eu penso ou da
unidade da consciência), mas também o conteúdo, a matéria do que aparece. Só assim
Hegel poderia afirmar que o Eu é, ao mesmo tempo, o conteúdo da relação (entre
saber e objeto) e a própria relação (a forma através da qual o saber dispõe o que
aparece).
No entanto, lembremos como Hegel retomará colocações desta natureza no
parágrafo 167, ao lembrar que a consciência-de-si não e apenas a “tautologia sem
movimento do ‘Eu sou Eu’” pois “enquanto para ela a diferença não tem a figura do
ser, ela não é consciência-de-si”. A partir daí, Hegel pode então fornecer sua definição
de consciência-de-si:

A consciência-de-si é a reflexão, a partir do ser do mundo sensível e


percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-Outro (die Rückkehr als
dem Anderssein)69.

Ou seja, a consciência-de-si é este movimento de refletir-se no ser do mundo sensível


e percebido e retornar a si desta alienação no que tem valor de um Outro, de um
oposto à consciência. Ou seja, o Outro que o Eu traz consigo não é apenas uma outra
consciência, mas um outra consciência que porta um outra perspectiva de apreensão
do mundo, uma perspectiva que, de uma certa forma, me descentra. Nem toda outra
consciência é um Outro para mim, mas apenas aquela que traz uma perspectiva que
entra em conflito com minha perspectiva. Neste sentido, o Outro pode ser não apenas
uma outra consciência, mas também aquilo que resiste a meu modo de apreensão do
mundo. Esta definição de consciência-de-si é idêntica à definição hegeliana de
“experiência”: “Experiência é justamente o nome desse movimento em que o
imediato, o não-experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do
Simples apenas pensado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso –
como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em sua
efetividade e verdade”70. Isto apenas demonstra como a experiência fenomenológica é
necessariamente experiência de constituição reflexiva da consciência-de-si.

Desejo, interação social e a terra pátria da verdade

No entanto, há ainda uma segunda razão para a passagem da consciência à


consciência-de-si. Não se trata apenas de dizer que, em um dado momento do trajeto
fenomenológico, a consciência descobre que o objeto tem a mesma estrutura do Eu
(sendo que este “mesmo” implica em uma igualdade especulativa, igualdade que
internaliza a diferença). Como eu dissera anteriormente, a grosso modo, a consciência
compreende que sua expectativas cognitivo-instrumentais são dependentes de modos
de interação social e de práticas sociais. Em última análise, toda operação de
conhecimento depende de uma configuração prévia de um “background” normativo
socialmente partilhado, no qual todas as práticas sociais aceitas como racionais estão
enraizadas, e aparentemente não-problemático que orienta as aspirações da razão em
dimensões amplas. Esta idéia foi posta de maneira elegante por Robert Brandom ao

69
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
70
HEGEL, Fenomenologia, par. 36
afirmar que: “Toda constituição transcendental é uma instituição social”71, no sentido
de que tudo o que tem status normativo é uma realização social.
Esta dupla articulação só será possível se mostrarmos que a estrutura do Eu já
é, desde o início, uma estrutura social e que a idéia do Eu como individualidade
simplesmente constraposta à universalidade da estrutura social é rapidamente posta
em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que
está em jogo na gênese do processo de individualização de Eus socializados. Hegel,
de fato, quer levar às últimas conseqüências esta idéia de que o Eu já é desde o início
uma estrutura social mostrando as conseqüências desta proposição para a
compreensão do sujeito do conhecimento, do sujeito da experiência moral, o sujeito
do vínculo político e o sujeito da fruição estética. O Eu nunca é uma pura
individualidade, mas: “os indivíduos são eles mesmos de natureza espiritual e contém
neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o
extremo da universalidade que conhece e quer o que é substancial”72.
No entanto, nada disto nos foi apresentado até agora no interior do texto da
Fenomenologia do Espírito. Novamente, os primeiros passos desta operação
complexa será apresentado de maneira abrupta. No parágrafo 167, ao lembrar que a
noção de “fenômeno”, enquanto “diferença que não tem em si nenhum ser” (já que é
apenas o aparecer para-um-Outro) não era figura da unidade da consciência-de-si
consigo mesma mas, ao contrário, era a própria clivagem (já que a essencialidade está
sempre em um Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel afirma: “Essa
unidade [da consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a
consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)”73.
O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de “desejo em
geral”, ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos
compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se alojado no
“interior das Coisas” como essência para além dos fenômenos, unidade entre o saber e
a determinação essencial dos objetos só será possível a partir do momento em que
compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas como relações de
conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e satisfação. Percebemos
agora o tamanho da inflexão em jogo na passagem da consciência à consciência-de-si.
A princípio, uma afirmação desta natureza pareceria algo totalmente
temerário. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo
selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou
estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche
e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos,
interesses que nos leva a recuperar a dignidade filosófica da categoria de “desejo”?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: “Hegel parece estar
dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma
reivindicação objetiva é o problema de satisfação do desejo, que a ‘verdade’ é
totalmente relativizada por fins pragmáticos (...) Tudo se passa como se Hegel
estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos séculos XIX e XX, que o que conta

71
BRANDOM, idem
72
Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Négation et individualitá dans la pensée polítique
hégélienne
73
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
como explicações bem-sucedidas dependem de quais problemas práticos queremos
resolver (...) que o conhecimento é uma função de interesses humanos”74.
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade a
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser
que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo
particularismo de apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática
tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as
aspirações universalizantes da razão. Mas como defender tal posição partindo da
centralidade do desejo na constituição da consciência-de-si?
Claro está que precisaríamos aqui adentrar na especificação do conceito
hegeliano de desejo. Devemos mostrar como o desejo naturalmente abole sua
perspectiva particularista para se reconciliar com a universalidade de uma espécie de
interesse geral. No entanto, Hegel não faz exatamente isto nos parágrafos seguintes.
Só teremos uma descrição mais adequada do processo do desejo entre os parágrafos
174 e 177. Neste trecho, teremos mais indicações a respeito deste modo de relação
entre sujeito e seu-Outro (no caso, o objeto) que Hegel já havia tematizado no
capítulo precedente ao falar da infinitude. A sua maneira, o desejo em Hegel será a
posição desta infinitude tematizada no final do capítulo sobre o entendimento. Mas
Hegel será agora obrigado a, de uma certa forma, distinguir duas modalidades de
desejo (o desejo vinculado à consumação do Outro e o desejo que forma – ou seja, o
trabalho), da mesma forma com que ele terá de distinguir duas modalidade de
infinitude: uma verdadeira e outra ruim.

O ciclo da vida

Mas antes de entrarmos nestas considerações sobre a noção hegeliana de


desejo, devemos seguir o texto da Fenomenologia a fim de dar conta do que está posto
em seguida, nos parágrafos 168 a 172. Ao apresentar a noção de que a consciência-de-
si é desejo em geral, Hegel afirma que a consciência tem pois diante de si um duplo
objeto: um é ela mesma (já que ela é consciência-de-si), o outro é o objeto da certeza
sensível e da percepção, ou seja, este objeto tal como aparece imediatamente à
consciência. No entanto, este objeto está “marcado com o sinal do negativo”: ele foi
negado enquanto objeto autônomo.
Mas, para nós, ou seja, para aquele que avalia o trajeto fenomenológico da
consciência na posteridade, esta negação não era uma negação simples (o que nos
levaria a uma anulação simples de toda independência do objeto), ela era uma
negação dialética. Ao negar a pura particularidade da certeza sensível, ao ter a
experiência da clivagem do objeto em unidade e multiplicidade, a consciência não
estava apenas tendo a experiência da inadequação do seu saber sobre as coisas. Ela
estava tendo a experiência da manifestação da vida. Por isto, Hegel pode afirmar:

Para nós, ou em si, o objeto que para a consciência-de-si é o negativo retornou


sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência também fez o
mesmo. Mediante esta reflexão sobre si (Reflexion in sich), o objeto veio-a-ser
(geworden) vida. O que a consciência-de-si diferencia de si como ente não tem
apenas, enquanto é posto como ente, o modo da certeza sensível e da

74
PIPPIN, The satisfaction of self-consciousness, p. 148
percepção, mas é também ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato é
um ser vivo75.

Dito pois que o desejo forneceria a nova perspectiva de estruturação das


relações entre consciência e objeto, agora sob o primado da consciência-de-si, Hegel
procura determinar qual é a primeira forma de aparição do objeto do desejo. Esta
primeira forma de aparição não é um objeto autônomo ou uma outra consciência-de-
si. Na verdade, o primeiro objeto do desejo é a vida.
Neste ponto, Hegel retorna a antigas colocações que animaram seus escritos de
juventude. Na sua juventude, Hegel já tinha para si alguns traços gerais da tarefa
filosófica que irá anima-lo a partir da Fenomenologia do Espírito. Hegel compreendia
que a tarefa filosófica fundamental do seu tempo era fornecer uma saída para as
dicotomias nas quais a razão moderna havia se enredado. Lembremos como Hegel
definia os tempos modernos, ou seja, seu próprio tempo, como este tempo no qual o
espírito perdeu sua vida essencial e está consciente desta perda e da finitude de seu
conteúdo.
Vimos até agora como a Fenomenologia do Espírito apresentava algumas
destas dicotomia. O saber pensado como representação, ou seja, enquanto disposição
posicional dos entes diante de um sujeito, não podia deixar de operar dicotomias e
divisões no interior do que se oferece como objeto da experiência entre aquilo que é
para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se dá através da receptividade da
intuição e aquilo que é ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas
estruturas reflexivas de representação, entre o que é da ordem do espírito e o que é da
ordem da natureza, entre o que é acessível à linguagem e o que é pura particularidade
inefável.
Para a geração de Hegel, a filosofia moderna deve ultrapassar um sistema de
dicotomias que encontrou sua figura mais bem acabada na maneira kantiana de
definição do primado da faculdade do entendimento na orientação da capacidade
cognitiva da consciência. Hegel partilha o diagnóstico de pós-kantianos como Fichte e
Schelling de que, na filosofia kantiana, o primado da reflexão e do entendimento,
produziu cisões irreparáveis. Daí porque “o único interesse da razão é o de suspender
antíteses rígidas”76.
Em Hegel, uma das primeiras formas de definição do modo de anulação de
tais dicotomias foi a tematização de uma espécie de solo comum, de fundamento
primeiro, a partir do qual sujeito e objeto se extrairiam, isto na mais clara tradição
schellinguiana. Este fundamento primeiro era a vida. Daí porque Hegel poderá
afirmar, na juventude: “Pensar a pura vida, eis a tarefa”, já que “A consciência desta
pura vida seria a consciência do que o homem é”. Como bem viu Hyppolite: “a pura
vida supera essa separação [produzida pelo primado do entendimento] ou tal
aparência de separação; é a unidade concreta que o Hegel dos trabalhos de juventude
ainda não consegue exprimir sob forma dialética” 77. A vida supera esta separação
porque ela forneceria o solo comum no qual sujeito e objeto se encontram: todos eles
estariam substancialmente enraizados no ciclo da vida que, por sua vez, forneceria,
uma perspectiva privilegiada de compreensão racional do que se apresenta. Ter a vida
por objeto do desejo é reconhecer, no próprio objeto, a substância que forma
consciências-de-si.

75
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
76
HEGEL, Diferença dos sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 38
77
HYPPOLITE, Gênese e estrutura, p. 162
Neste sentido, não é por outra razão que Hegel apresenta a vida logo na
entrada da seção dedicada à consciência-de-si. Enquanto consciência que reconhece
as dicotomias nas quais uma razão compreendida a partir da confrontação entre
sujeito e objeto se enredara, a consciência-de-si procura um background normativo
intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos os modos de interação entre
sujeito e objeto se extraem. A vida aparece inicialmente como este background. O que
Habermas vira muito bem ao afirmar: “Contra a encarnação autoritária da razão
centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que
se manifesta sob o título de amor e vida”78.
No entanto, a vida é ainda uma figura incompleta porque seu movimento não
é para-si, ou seja, não é reflexivamente posto e apreendido. Mas não se trata, por
outro lado, de simplesmente negar, através de uma negação simples, o que a reflexão
sobre a vida traz. De fato, há uma certa continuidade entre a vida e a consciência-de-si
claramente posta por Hegel nos seguintes termos: “A consciência-de-si é a unidade
para a qual é a infinita unidade das diferenças, mas a vida é apenas essa unidade
mesma, de tal forma que não é ao mesmo tempo para si mesma”79.
Mas antes de avançarmos, devemos nos perguntar: como Hegel compreende a
vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira esquemática, podemos dizer que a vida
é fundamentalmente compreendida a partir da tensão entre a universalidade da
unidade da vida e a particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora
das formas viventes. Por isto, ela pode aparecer como figura da infinitude, já que cada
um é encarnação da contradição entre unidade e indivíduo [lembrar dos estudos
posteriores de biologia, em especial os de Weismann, sobre soma – substância mortal-
e plasma – substância imortal]. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao
apresentar o conceito de infinitude no capítulo sobre o entendimento: “Essa infinitude
simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a lama
do mundo, o sangue universal”80. No nosso trecho, Hegel descreve o ciclo da vida do
parágrafo 169:

Seu ciclo se encerra nos momentos seguintes. A essência é a infinitude, como


ser-suprimido de todas as diferenças [a vida é o que retorna sempre a si na
multiplicidade de diferenças do vivente], o puro movimento de rotação, a
quietude de si mesma como infinitude absolutamente inquieta, a
independência mesma em que se dissolvem as diferenças do movimento; a
essência simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura
sólida do espaço. Porém, nesse meio simples e universal, as diferenças
também estão como diferenças, pois essa universal fluidez [da vida como
unidade] só possui sua natureza negativa enquanto é um suprimir das mesmas,
mas não pode suprimir as diferenças se essas não têm um subsistir81.

Todo o desenvolvimento do parágrafo 170 até o parágrafo 172 é uma longa descrição
sobre este processo de afirmação das diferenças contra o fundo de unidade da vida e
de dissolução, ou o perecimento, das mesmas diferenças através da afirmação do
fluxo contínuo da vida enquanto fluxo de multiplicidade de figuras que não subsistem.
Como bem lembra Hyppolite: “Pode-se partir da vida como todo (natura naturans) e
chegar aos indivíduos separados (natura naturata) e pode-se igualmente partir do

78
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 39
79
HEGEL, Fenomenologia, par. 168
80
HEGEL, Fenomenologia, par. 162
81
HEGEL, Fenomenologia, par. 169
indivíduo separado e reencontrar nela esta totalidade da vida” 82. Daí porque Hegel
poderá afirmar, ao final, que a vida: “é o todo que se desenvolve, que dissolve seu
desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento”83.
Mas, como vimos, a vida só é esta infinitude para a consciência-de-si, ela não
para-si. Neste sentido, a infinitude presente na vida deve se manifestar à consciência-
de-si. Como a vida é o próprio meio do qual a consciência-de-si faz parte, ela deve
descobrir inicialmente em si mesma tal infinitude. E a primeira manifestação de tal
infinitude se dará através do desejo. Uma manifestação ainda imperfeita pois solidária
do aparecimento de um infinito ruim. Mas como pode uma infinitude ser ruim?

Hegel e o desejo

Para Hegel, o desejo (Begierde) é a maneira através da qual a consciência-de-


si aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento. Neste sentido, ele é, ao mesmo
tempo, modo de interação social e modo de relação ao objeto. Além do desejo, Hegel
apresenta, ao menos, outros dois operadores reflexivos de determinação da
consciência-de-si: o trabalho e a linguagem.
Na aula passada, insisti que Hegel vinculava-se a uma longa tradição que
remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Isto fica muito
claro em um trecho da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma:

O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
ser, mas uma atividade absoluta84.

A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um Outro (o objeto) é
uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
mesma por objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não é isto o
que ocorre:

O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo [notemos


esta articulação fundamental: a certeza de si mesmo é estritamente vinculada
aos modos de satisfação do desejo] são condicionados pelo objeto, pois a
satisfação ocorre através do suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse
Outro deve ser. A consciência-de-si não pode assim suprimir o objeto através
de sua relação negativa para com ele, pois essa relação antes reproduz o
objeto, assim como o desejo85.

82
in HEGEL, Phénoménologie de l´Esprit, p. 148, nota 9
83
HEGEL, Fenomenologia, par. 171
84
HEGEL, Enciclopédia, par. 427 - adendo
85
HEGEL, Fenomenologia, par. 175
A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas
uma função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de auto-posição
da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir no objeto, tomar a si
mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da satisfação. Através do desejo, na
verdade, a consciência procura a si mesma. Daí porque Hegel pode afirmar que,
inicialmente, o desejo aparece em seu caráter egoísta. Já na Filosofia do espírito, de
1805, Hegel oferece a estrutura lógica deste movimento que serve de motor para a
figura do desejo: "O desejante quer, ou seja, ele quer se pôr (es will sich setzen), se
fazer objeto (Gegenstande machen)"86. Isto implica inicialmente em tentar destruir o
Outro (o objeto) enquanto essência autônoma. No entanto, satisfazer-se com um
Outro aferrado à positividade de uma condição de mero objeto (no sentido
representacional) significa não realizar a auto-posição da consciência enquanto
consciência. A consciência só poderá se pôr se ela desejar um objeto que duplica a
própria estrutura da consciência. Ela só poderá se satisfazer ao desejar uma outra
consciência, ao intuir a si mesmo em uma outra consciência. “A consciência-de-si só
alcança satisfação em uma outra consciência-de-si”. Daí porque:

A satisfação do desejo é a reflexão da consciência de si sobre si mesma, ou a


certeza que veio a ser verdade. Mas a verdade dessa certeza é antes a reflexão
redobrada (gedoppelte Reflexion), a duplicação da consciência-de-si87.

Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério a relação necessária


entre desejo e impulso (Trieb – termo de difícil tradução que atualmente, devido à
influência psicanalítica, é normalmente traduzido por “pulsão”). Tanto na Filosofia do
Espírito de 1805 quanto no livro da Enciclopédia dedicado à Filosofia do Espírito,
Hegel insiste na distinção entre desejo e impulso. Distinção que visa apenas mostrar
como o segundo é a verdade do primeiro. O primeiro ainda estaria aferrado a uma
dicotomia não superada entre o subjetivo e o objetivo. Daí porque a objetividade
aparece como o que deve ser destruído para que a subjetividade possa se pôr. Neste
sentido, sob o império do desejo, a subjetividade é exatamente “o que é privado de
outro, privado de conteúdo e ela sente esta falta” 88. Ou seja, a falta enquanto desejo é
a primeira manifestação de uma subjetividade que já não se reconhece mais no que é
posto como determinidade, ou que já não se confunde como o fluxo simples e
contínuo da vida. A subjetividade que é desejo aparece então como abstração de toda
determinidade, mas uma abstração que, por ser desejo, procura se intuir no objeto e
esta é a contradição que anima a consciência-de-si entre ser algo que é puramente
para-si e algo que é também em-si.
Por outro lado, o impulso é, ao mesmo tempo, o fundamento e a superação do
desejo. Em 1805, Hegel afirmava que o desejo tinha ainda algo de animal por cair na
ilusão de que sua satisfação estava em um objeto externo e particular (daí a
contradição na qual ele necessariamente se enredava). Já o impulso procede da
oposição suprimida entre subjetivo e objetivo, o que significa, entre outras coisas, que
sua satisfação não é mais marcada exclusivamente pela particularidade do objeto, mas
se revela como portando “algo de universal”. Ou seja, o impulso implica em uma
tentativa de reconciliação com o objeto através da realização desta intuição da falta no
objeto. Daí porque: "Lá onde um [ser] idêntico a si mesmo comporta em si mesmo
86
HEGEL, Jenaer Realphilosophie, Hamburg: Felix Meiner, 1969, p. 194
87
HEGEL, Fenomenologia, par. 176
88
HEGEL, Filosofia do Espírito,
uma contradição e é pleno do sentimento de sua identidade sendo-em-si com si
mesmo, assim como do sentimento oposto de sua contradição interna [vinda do
vínculo ao objeto], já surge necessariamente o impulso (Trieb) em suprimir tal
contradição. O [ser] não-vivo não tem impulso algum, pois ele não pode suportar a
contradição, mas perece quando o Outro de si irrompe em si" 89. [lembrar como Hegel
nunca operou com distinções estritas entre impulso e vontade livre - entre desejo
patológico por objetos e vontade ligada à pura forma de uma lei que a consciência
erige para si mesma].
Mas voltemos à noção de que a satisfação do desejo é a reflexão da
consciência de si sobre si mesma, ou ainda, reflexão redobrada. Hegel procurava com
isto fornecer uma saída para o problema da consciência-de-si, ou seja, da consciência
que toma a si mesma como objeto, que não fosse tributária da clivagem entre eu
empírico (objeto para a consciência) e eu transcendental. De fato: “quando a
consciência-de-si é o objeto, é tanto Eu como objeto”, mas como operar tal dualidade
sem cair na dicotomia entre empírico e transcendental?
Inicialmente, Hegel apresentou, através da vida, a idéia de um fundamento
comum a partir do qual sujeito e objeto se extraem. Ou seja, ao invés da
fundamentação das operações de auto-determinação através da posição de estruturas
transcendentais, Hegel apresentou um solo comum que se expressa tanto no sujeito
quanto no objeto. No entanto, a vida é um fundamento imperfeito, pois não é
reflexivo, não pode ser posto reflexivamente, já que a vida não é para si.
Hegel apresenta então a noção, mais completa, de “reflexão redobrada”, ou
seja, a noção de que a consciência só pode se pôr em um objeto que não seja
exatamente um objeto, mas que seja por sua vez uma reflexão, um movimento de
passar ao outro e de retornar a si desta alienação. Daí porque a consciência só pode
ser consciência-de-si ao se pôr em uma outra consciência-de-si. O objeto deve se
mostrar como “em si mesmo negação”, no sentido de portar esta falta que o leva a
procurar sua essência no seu ser-Outro. Sobre a noção de ‘reflexão redobrada’
podemos especificá-la mais afirmando se tratar de um movimento que é, ao mesmo
tempo, reflexão-em-si e reflexão-no-Outro. A reflexão-em-si, Hegel a define na
Enciclopédia, é a própria identidade, quer dizer, esta referência-a-si que subsiste
através do excluir de toda a diferença. Já a reflexão-no-Outro é o momento mesmo da
diferença ou do ser-fora-de-si. Logo, a reflexão duplicada nada mais é do que esta
referência-a-si que é, ao mesmo tempo, referência-a-Outro. Uma espécie de jogo de
espelhos duplicado. Toda vez que a consciência tenta fazer referência a si ela acaba
fazendo referência a um Outro e vice-versa.
Neste sentido, o problema do fundamento da consciência-de-si só pode ser
resolvido através de um recurso à dinâmica de reconhecimento entre desejos.
Dinâmica de reconhecimento que nos levará a um “Eu que é nós e um nós que é eu”.
Por trás deste eu que é nós e de um nós que é eu, há a certeza de que a consciência só
pode ser reconhecida quando seu desejo não for mais desejo por um objeto do mundo,
mas desejo de outro desejo, ou antes, desejo de reconhecimento. Assim, entramos no
dia espiritual da presença. A experiência fenomenológica do advento deste dia
espiritual da presença é o tema do que ficou conhecido como “a dialética do Senhor e
do Escravo”.

89
HEGEL, Enciclopedia, Add, par.426
Lógicas do reconhecimento
Aula 6

Na aula passada, iniciamos as consideraçõ es sobre o capítulo dedicado á


consciência-de-si. Terminamos na discussã o sobre a estrutura do conceito
hegeliano de desejo, assim como na submissã o das dinâ micas do desejo a
processos de reconhecimento. Comecemos hoje entã o pelo comentá rio desta
frase na abertura da seçã o sobre a “Dependência e Independência da
consciência-de-si: dominaçã o e servidã o”:

A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si


para uma Outra, quer dizer, só é como algo reconhecido90.

Esta afirmaçã o sintetiza todo o processo que se desdobrará através da


figura da consciência-de-si. A consciência-de-si só é na medida em que se põ e
para um Outro e como um Outro. Ela é, neste sentido, a realizaçã o da noçã o de
infinitude (enquanto o ter em si a negaçã o de si sem, com isto, produzir um
objeto desprovido de conceito). Esta dinâ mica da infinitude, ou ainda, esta
unidade na duplicaçã o, se dará através de operaçõ es simétricas de
reconhecimento. No entanto, elas nã o estã o disponíveis à consciência-de-si.
Neste sentido, é extremamente sintomá tico que Hegel nã o faça preceder a
dinâ mica do reconhecimento de consideraçõ es sobre o amor, tal como acontece
na Filosofia do Espírito de 1805. Pois o amor seria esta posiçã o de
reconhecimento mú tuo na qual “cada um se sabe no outro e cada um renunciou a
si mesmo”91. Ele poderia fornecer uma base de socializaçã o humana que nos
permitiria pensar processos sociais mais amplos de reconhecimento.
Ao contrá rio, Hegel nã o dará lugar algum para o amor nas suas
consideraçõ es fenomenoló gicas sobre a dinâ mica do reconhecimento.
Atualmente, conhecemos projetos filosó ficos (Habermas, Honneth) que vêem
nisto o sinal do abandono de um conceito forte de intersubjetividade primitiva
da vida humana em prol de uma perspectiva centrada nos processos de auto-
mediaçã o da consciência individual. No entanto, podemos partir de outra
perspectiva. Podemos dizer que Hegel age como quem acredita agora que os
processos mais elementares de interaçã o social só sã o legíveis no interior de
dinâ micas de conflito (o que nã o é estranho a um Thomas Hobbes, por exemplo).
Ou seja, o conflito é o primeiro dado na constituiçã o dos processos de interaçã o
social. E mesmo a “vida” enquanto fundamento de onde se extraem sujeito e
objeto foi pensada a partir do conflito entre a universalidade simples da vida e a
multiplicidade de suas figuraçõ es diferenciadoras.
Hegel pode dizer que os processos mais elementares de interaçã o social
sã o necessariamente conflituais porque, para ele, tudo se passa como se toda
individuação fosse necessariamente uma alienação. Conseqü ência simples do fato
de que toda exteriorizaçã o é necessariamente alienaçã o. A consciência-de-si só
pode ser reconhecida enquanto consciência-de-si se se submeter à alienaçã o de
si. Daí porque Hegel pode dizer, a respeito das interaçõ es elementares entre
consciências-de-si:
90
HEGEL, Fenomenologia, par. 178
91
HEGEL, Filosofia do Espírito
Para a consciência-de-si, há uma outra consciência-de-si, ou seja, ela veio
para fora de si [ela se vê como algo que vem da exterioridade, Hegel chega
a falar em ser-fora-de-si - Aussersichsein]. Isso tem dupla significaçã o:
primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha em uma outra essência
[ou seja, ela se alienou a ver que ela é primeiramente para uma outra
consciência]. Segundo, com isso ela suprimiu o Outro, pois nã o vê o Outro
como essência, mas é a si mesma que vê no Outro [ela só vê, no outro, a
projeçã o de si]92.

Ou seja, a primeira manifestaçã o do Outro é como aquele que me leva à


perda de mim mesmo por me fazer defrontar com algo de mim que se dá na
minha exterioridade. O Outro nã o é aquele que me confirma em minhas certezas.
Ele é aquele que me destitui, que me despossui de minhas ilusõ es de
independência. Vejo no Outro apenas a imagem de mim mesmo, ou apenas a
imagem de mim como um outro. Já vimos esta dinâ mica quando falamos do
desejo. Agora, Hegel lembra que a perda de si é também perda do Outro [já que o
Outro também só é enquanto reconhecido]. “A consciência-de-si deve superar
esse seu-ser-Outro”. Esta superaçã o ou des-alienaçã o da consciência é
necessariamente retorno a si através da construçã o de um conceito renovado de
auto-identidade (nã o mais a auto-identidade enquanto experiência imediata de
si a si, mas a identidade enquanto o que é reconhecido pelo Outro). No mesmo
movimento, ela é reconhecimento da sua diferença para com o Outro. Diferença
que poderá ser entã o reconhecida porque a consciência sabe que ela traz e si
mesma a diferença em relaçã o a si mesma, ou seja, ela verá no Outro a mesma
diferença que ela encontra nas suas relaçõ es à si. Daí porque Hegel precisa dizer:

Mas esse movimento da consciência-de-si em relaçã o a uma outra


consciência-de-si se representa, desse modo, como o agir (Tun) de uma
delas. Porém esse agir de uma tem o duplo sentido (gedoppelte Bedeutung
– um sentido/referência redobrado) de ser tanto o seu agir como o agir da
outra; pois a outra é também independente, encerrada em si mesma, nada
há nela que nã o mediante ela mesma93.

O processo de reconhecimento passará entã o por uma certa pragmá tica pois é o
agir que realiza a posiçã o da consciência. Hegel apenas lembra aqui que o
problema da reconhecimento deve ser necessariamente um problema de como
prá ticas sociais sã o constituídas. Podemos falar aqui em prá ticas sociais porque
Hegel nos lembra, com propriedade, que todo agir tem um sentido redobrado:
ele é, ao mesmo tempo agir do sujeito e agir do Outro. Todo agir pressupõ e um
campo partilhado de significaçã o no qual o agir se inscreve. Pois todo agir
pressupõ e destinatá rios, é agir feito para um Outro e inscrito em um campo que
nã o é só meu, mas é também campo de um Outro. A significaçã o do ato nã o é
assim resultado da intencionalidade dos agentes, mas determinaçã o que só se
define na exterioridade da intençã o.

92
HEGEL, Fenomenologia, par. 179
93
HEGEL, Fenomenologia, par. 182
Por conseguinte, o agir tem duplo sentido (doppelsinnig), nã o só enquanto
é agir quer sobre si mesmo, quer sobre o Outro, mas também enquanto
indivisamente é o agir tanto de um quanto do Outro94.

Hegel nã o teme pensar a anatomia do ato através da dinâ mica de açã o e


reaçã o pró pria ao jogo de forças, na qual a posiçã o da força solicitada
expressava-se necessariamente na posiçã o da força solicitante e na qual um pó lo
servia de determinaçã o essencial ao outro pó lo. Este movimento duplicado
demonstrava como a realizaçã o da força era necessariamente o desaparecer do
seu conceito simples inicial, ou ainda como o desaparecer da força era a
realizaçã o do seu conceito. No caso da interaçã o entre consciências, veremos
como a alienaçã o de cada consciência no Outro já é a realizaçã o da consciência-
de-si. Isto apenas demonstra como:

Cada extremo é para o Outro o meio termo, mediante o qual é consigo


mesmo mediatizado e concluído, cada um é para si e para o Outro,
essência imediata sendo para si, que ao mesmo tempo só é para si através
dessa mediaçã o. Eles se reconhecem como reconhecendo-se
reciprocamente95.

Introduzindo a dialética do Senhor e do Escravo

A partir do pará grafo 185, Hegel propõ e-se analisar o processo de


manifestaçã o, para a consciência-de-si, deste puro conceito de reconhecimento,
desta duplicaçã o da consciência-de-si em sua unidade. É a partir de agora que
teremos uma descriçã o fenomenoló gica da experiência de reconhecimento da
consciência-de-si. Tal descriçã o visa fornecer algo como a “forma geral dos
processos de reconhecimento e de interaçã o social”. Nã o se trata exatamente de
uma antropogênese, como encontraremos na leitura de Alexandre Kojève, sem
dú vida, uma das mais célebres a respeito deste trecho da Fenomenologia do
Espírito. Nã o se trata de uma antropogênese, mas da exposiçã o de uma ló gica do
reconhecimento que será retomada em vá rios momentos da Fenomenologia do
Espírito, como nas figuras da consciência infeliz, na confrontaçã o entre a
consciência vil e a consciência que julga, entre outros.
Por outro lado, uma leitura atenta do nosso trecho demonstra como o
verdadeiro alvo de Hegel encontra-se na crítica ao pensamento representativo e
na meditaçã o sobre as condiçõ es ló gicas de passagem do pensamento
representativo ao pensamento especulativo através de consideraçõ es sobre o
lugar ló gico do reconhecimento. O que nos explica por que, na perspectiva do
para nós (für uns), a DSE nos leva em direçã o ao advento de uma nova figura da
consciência, uma consciência que pensa e, neste momento, Hegel faz uma
distinçã o importante entre objeto do pensamento (especulativo) e
representaçã o: “Para o pensar, o objeto nã o se move em representaçõ es ou em
figuras, mas sim em conceitos, o que significa: em um ser-em-si diferente, que
imediatamente para a consciência nã o é nada diferente dela” 96. Se nã o levamos
94
HEGEL, Fenomenologia, par. 183
95
HEGEL, Fenomenologia, par. 184
96
HEGEL, Fenomenologia I, p. 134. "Dem Denken sich des Gegenstand nicht in Vorstellungen, oder
Gestalten, sondern in Begriffen, das heit in einem unterschiednen Ansichsein, welches unmittelbar für
das Be wutsein kein unterschiednes von ihm ist" (HEGEL, PhG, p. 137)
em conta este primado, a via se abre para a antropologizaçã o excessiva do
discurso hegeliano em detrimento de consideraçõ es sobre sua articulaçã o ló gica.
Vejamos, por exemplo, como Hegel inicia a descriçã o deste movimento
dialético:

De início, a consciência-de-si é ser-para-si simples, igual a si mesma


mediante o excluir de si de todo o outro. Para ela, sua essência e objeto
absoluto é o Eu, e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si é um
singular. O que é Outro para ela, está como objeto inessencial, marcado
com o sinal do negativo97.

Se analisarmos a dialética do Senhor e do Escravo com cuidado, veremos


que seu problema fenomenoló gico consiste na possibilidade de apresentaçã o
(Darstellung – o termo é vá rias vezes utilizado por Hegel no texto) da consciência
como pura abstraçã o, como puro Eu. Hegel é muito claro no que diz respeito à
importâ ncia deste movimento de: “apresentar-se a si mesmo como pura
abstraçã o”98 que é o motor da açã o da consciência.
Notemos o ponto de partida. Hegel nã o diz algo como: “de início, a
consciência-de-si é animada pela realizaçã o de suas necessidades, pela afirmaçã o
de suas propriedades”, como seria em um estado de natureza hobbesiano. Ele
diz: “de início, a consciência-de-si é puro para-si”, ou seja, ela é independência
absoluta, afirmaçã o de sua transcendência em relaçã o a tudo o que é para-Outro.
Tal apresentaçã o como pura abstraçã o é, na verdade, o fundamento da auto-
determinaçã o da subjetividade. A subjetividade só aparece como movimento
absoluto de abstraçã o (é por vincular o ser do sujeito ao ponto vazio de toda
aderência imediata à empiria que Hegel continua vinculado à noçã o moderna de
sujeito). O primeiro movimento de auto-determinaçã o da subjetividade consiste
pois em negar toda sua aderência com a determinaçã o empírica, consiste em
transcender o que a enraíza em contextos e situaçõ es determinadas “para ser
apenas o puro ser negativo da consciência igual-a-si-mesma”. Para Hegel, a
individualidade (Individualität) aparece sempre, em um primeiro momento,
como negaçã o que recusa toda co-naturalidade imediata com a exterioridade
empírica. Por isto, Hegel deve afirmar:

A apresentaçã o de si como pura abstraçã o da consciência-de-si consiste


em mostrar-se como pura negaçã o de sua maneira de ser objetiva, ou em
mostrar que nã o está vinculado a nenhum ser-aí (Dasein) determinado,
nem à singularidade universal do ser-ai em geral, nem à vida99.

Para Hegel, o sujeito moderno nã o era simplesmente fundamento certo do


saber, mas também entidade que marcado pela indeterminaçã o substancial. Ele é
aquilo que nasce através da transcendência em relaçã o a toda e qualquer
naturalidade com atributos físicos, psicoló gicos ou substanciais. Como dirá
vá rias vezes Hegel, o sujeito é aquilo que aparece como negatividade que cinde o
campo da experiência e faz com que nenhuma determinaçã o subsista. Na

97
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
98
HEGEL, Fenomenologia do espírito I, p. 159 - Die Darstellung seiner aber als der reinen
Abstraction ...
99
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
Filosofia do Espírito, de 1805, ele nã o deixará de encontrar metá foras para falar
deste sujeito que aparece como o que é desprovido de substancialidade e de
determinaçã o fixa:

O homem é esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade
desta noite, uma riqueza de representaçõ es, de imagens infinitamente
mú ltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que
nã o existem como efetivamente presentes (...) É esta noite que
descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se
torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante de nó s100.

Para além da ressonâ ncia poética do trecho, devemos simplesmente lembrar


como Hegel insistia que a pró pria constituiçã o do sujeito enquanto pura
condiçã o formal de um saber que seria eminentemente representativo (como o
saber na modernidade) exigia uma operaçã o de “negatividade”. Podemos
inicialmente compreender tal “negatividade” como a posiçã o da inadequaçã o
entre as expectativas de reconhecimento do sujeito e o campo de determinaçõ es
fenomenais. Neste sentido, Hegel poderia simplesmente compreender esta
negatividade que “supera a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que é
apenas ente em geral”101 como “transcendentalidade”, tal como fizera, antes dele,
Kant ao insistir, por exemplo, na clivagem necessá ria entre “eu empírico” e “eu
transcendental”. Mas a negatividade hegeliana nã o é a transcendentalidade
kantiana. Ela é manifestaçã o, na empiria, daquilo que fundamenta a posiçã o dos
sujeitos.
Por isto, a apresentaçã o de si deve aparecer inicialmente como um ato/um
agir que tende à morte do Outro, isto no sentido de ato que tende à negaçã o
completa da essencialidade da perspectiva do Outro. Ela inclui o arriscar a
pró pria vida, já que é afirmaçã o de si através da negaçã o de existência natural.
Na Filosofia do Espírito, Hegel chega a falar: “é um suicídio na medida em que a
consciência se expõ e ao perigo”. Há uma espécie de prova aqui. A consciência
inicialmente nã o foge da morte a fim de defender sua integridade de indivíduo.
De certa forma, ela a procura a fim de provar para si mesmo sua liberdade e
independência.
Esta luta de vida e morte entre as consciências é assim fundamentalmente
um problema de auto-determinaçã o de uma subjetividade cujo fundamento é
pensado enquanto negaçã o. Hegel é bastante claro neste sentido ao afirmar:

Só mediante o pô r a vida em risco, a liberdade se conquista e se prova que


a essência da consciência-de-si nã o é o ser, nem o modo imediato como
ela surge, nem o seu submergir na expansã o da vida, mas que nada há
para a consciência que nã o seja para ela momento evanescente
(verschwindendes Moment); que ela é somente puro ser-para-si. O
indivíduo que nã o arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa
[ou seja, como membro do vínculo social], mas nã o alcançou a verdade
desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente [o que
demonstra que nã o se trata de descrever simplesmente o advento dos

100
HEGEL, Filosofia do espírito, p. 13
101
HEGEL, Fenomenologia I, par. 32
modos de sociabilidade, mas de compreender como a consciência pode ter
a experiência da sua estrutura]102.

Esta distinçã o é fundamental. Hegel afirma que ser reconhecido como pessoa nã o
é o mesmo que ser reconhecido como uma consciência-de-si independente. Ou
seja, o horizonte normativo dos processos de reconhecimento em Hegel nã o se
reduzem ao reconhecimento da minha individualidade como pró pria de uma
“pessoa em geral” que tem certos direitos positivos e obrigaçõ es sociais
intersubjetivamente asseguradas. O que nã o poderia ser diferente se
lembrarmos que, ao menos no interior da tradiçã o dialética, “pessoa” é uma
categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade (dominus),
uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista por
Hegel como “expressã o de desprezo”103 devido à sua natureza meramente
abstrata e formal advinda da absolutizaçã o das relaçõ es de propriedade. Tal
articulaçã o entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma
larga tradiçã o de reflexã o que chegará até as discussõ es recentes sobre a “self-
ownership” como atributo fundamental da pessoa 104.
Na verdade, Hegel procura mostrar como a verdadeira autonomia da
consciência-de-si só pode ser posta em um terreno para além (ou mesmo para
aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos positivos e
determinaçõ es individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a crer que Hegel insiste
que se trata de mostrar como a constituiçã o dos sujeitos é solidá ria da
confrontaçã o com algo que só se põ e em experiências de negatividade e des-
enraizamento que se assemelham à confrontaçã o com o que fragiliza nossos
contextos particulares e nossas visõ es determinadas de mundo, ou seja, que se
assemelha à morte. A astú cia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-se
diante desta negatividade é condiçã o para a constituiçã o de um pensamento do
que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensõ es internas à teoria hegeliana do reconhecimento
também nã o podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
Habermas ao afirmar:

Eu me compreendo como ‘pessoa em geral’ e como ‘indivíduo


inconfundível’ que nã o se deixa substituir por ninguém em sua biografia.
Sou pessoa em geral na medida em que tenho em comum com todas as
outras pessoas as propriedades pessoais essenciais de um sujeito que
conhece, fala e age. Sou ao mesmo tempo um indivíduo inconfundível, que
responde, de maneira insubstituível, por uma biografia tã o formadora
quanto singular105.

Interpretaçõ es desta natureza entificam uma noçã o personalista de


individualidade, noçã o ligada ao Eu como figura de uma determinaçã o completa.
Isto nos impede de pensar a fluidez de um conceito de individualidade onde toda
determinaçã o seria corroída por um fundo de indeterminaçã o que fragiliza sua
102
HEGEL, Fenomenologia, par. 187
103
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
104
Ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge University
Press, 1995.
105
HABERMAS, Jürgen; Verdade e Justificação, Belo Horizonte: Loyola, 2004, p. 195
identidade e sua fixidez. Por outro lado, tais interpretaçõ es tendem a constituir a
universalidade como conceito normativo e essencialista ao demarcá -la a partir
de um conjunto determinado de “propriedades pessoais essenciais” que nã o sã o
objetos de questionamento ou conflito, mas motor de toda demanda presente em
conflitos sociais. Esta é uma via que nos leva, necessariamente, à
substancializaçã o de um conceito antropoló gico de sujeito. É exatamente para
impedir derivas desta natureza que Hegel insiste tanto na necessidade do trajeto
em direçã o à universalidade passar pelo “trabalho do negativo” e pelo “caminho
do desespero”. Mas para tanto faz-se necessá rio entender melhor a funçã o
fenomenoló gica da confrontaçã o com a morte em Hegel.

O senhor absoluto

Em termos ló gicos e estritamente hegelianos, o que aconteceu aqui foi que, ao


deter-se diante da Morte, a consciência chegou ao fundamento da existência
mesma. Nã o é a toa que Hegel joga, deliberadamente, com os termos
zugrundgeher (aniquilar-se) e zu Grund geher (chegar ao fundamento). O
fundamento é, na filosofia hegeliana, esta determinaçã o da reflexã o que: “(...) nã o
tem nenhum conteú do determinado em si e para si; também nã o é fim, por
conseguinte nã o é ativo nem produtivo”106. Ou seja, trata-se da pura forma,
preexistente a qualquer conteú do que venha preenchê-la. O que a consciência
experimentou ao chegar ao fundamento é que apreender esta pura forma é,
invariavelmente, aniquilar-se enquanto aderência ao ser-aí natural e se descobrir
como negaçã o de si em si mesmo. O problema, aqui, é como elevar o fundamento
à existência.
Lembremos como Hegel usa de maneira bastante precisa esta experiência
da negaçã o absoluta que é a morte. Quando, neste contexto, Hegel fala em
“morte”, ele pensa na manifestaçã o fenomenoló gica pró pria à indeterminaçã o
fenomenal do que nunca é apenas um simples ente. Ou seja, a morte indica
uma experiência do que nã o se submete aos contornos auto-idênticos da
representaçã o, a morte como aquilo que nã o se submete à determinaçã o do
Eu. Este fundamento que nã o tem nenhum conteú do determinado em si e para
si, ao se manifestar, toca o pró prio modo de enraizamento do sujeito naquilo
que aparece a ele como mundo. A morte é a experiência da fragilidade das
imagens do mundo e dos sistemas substancialmente enraizados de prá ticas
sociais de açã o e justificaçã o. Ela é assim um movimento fundamental para a
constituiçã o da estrutura moderna da subejtividade.
No entanto, “essa comprovaçã o por meio da morte suprime [erheben –
termo nã o totalmente convergente com aufheben. Hegel usa o termo para indicar
uma negaçã o imediata que nã o implica em conservaçã o] justamente a verdade
que dela deveria resultar”. O puro aniquilamento de si através da morte bloqueia
a auto-posiçã o de si como fundamento. A pura morte do outro anula a
possibilidade do reconhecimento de tal processo de auto-posiçã o e, por
conseqü ência, do reconhecimento da liberdade implicada neste processo de
auto-posiçã o. Daí porque Hegel afirma que a consciência faz a experiência de que
“a vida é a posiçã o natural da consciência, a independência sem a negatividade
absoluta” e que a morte é apenas uma “negaçã o natural”.

106
HEGEL, G.W.F., Enciclopédia, pag. 161
Através da luta de vida e morte, a consciência procura suprimir o que lhe
aparece como essencialidade alheia. Hegel joga com um duplo movimento de
supressã o que é necessariamente convergente. Por um lado, a consciência
procura suprimir seu vínculo essencial à vida como Dasein natural, ela procura
afirmar-se através da distâ ncia em relaçã o a tudo o que está preso ao ciclo
irreflexivo da vida. Por outro lado, a consciência-de-si procura suprimir seu
vínculo essencial à outra consciência-de-si a fim de afirmar-se em sua pura
imediatez idêntica a si mesma. A convergência destes dois movimentos fica
explícita se lembrarmos que a vida fornece a determinaçã o empírica da
consciência-de-si, ela fornece o em-si cuja objetividade implica necessariamente
na presença do Outro. Assim, negar a vida para se pô r como pura abstraçã o é,
necessariamente, um movimento que envolve o negar da essencialidade do
Outro.
No entanto, o contrá rio também é verdadeiro. Como vimos no pará grafo
186, a imersã o integral da consciência no elemento da vida implicava na
impossibilidade do reconhecimento do Outro como consciência-de-si
independente. “Surgindo assim imediatamente, os indivíduos sã o um para outro
à maneira de objetos comuns, figuras independentes, consciências imersas no ser
da vida”107. Isto apenas nos lembra como a confrontaçã o com a negatividade da
morte tem um cará ter formador para a consciência-de-si; fato que ficará ainda
mais evidente no desdobrar da dialética do Senhor e do Escravo.
Podemos mesmo dizer que o reconhecimento nã o implica exatamente no
afastar-se da morte, até porque a vida do espírito é: “a vida que suporta a morte e
nela se conserva”108. O que ele implica é, na verdade, a compreensã o de que o que
está em jogo na experiência fenomenoló gica da confrontaçã o com a morte nã o é
uma “negaçã o abstrata”: termo central que indica uma compreensã o nã o-
especulativa de relaçõ es de oposiçã o. A negaçã o abstrata da vida produz uma
situaçã o na qual os opostos (vida e morte): “nã o se dã o nem se recebem de volta,
um ao outro reciprocamente, através da consciência, mas deixam um ao outro
indiferentemente livres, como coisas (Dinge)”109. Ou seja, a significaçã o dos
termos opostos nã o passa uma na outra. Esta operaçã o nã o é aquilo que Hegel
chama aqui de “negaçã o da consciência (Negation des Bewustssein)”, ou seja, esta
negaçã o determinada que “supera de tal modo que guarda e mantém o superado
e, com isto, sobrevive a seu vir-a-ser superado” 110. A consciência deve pois negar
a vida de maneira determinada, o que implica em compreender a vida como
espaço no qual o negativo pode ser convertido em ser. A vida deve ser
inicialmente negada para ser recuperada nã o mais como pó lo positividade de
doaçã o imanente de sentido, como fundamento originá rio, mas como locus de
manifestaçã o da negatividade do sujeito, como “vida do espírito”.

Dominação e servidão

Mas esta realizaçã o ainda está longe. De fato: “nessa experiência, vem a ser para
a consciência que a vida lhe é tã o essencial quanto a pura consciência-de-si” 111.

107
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
108
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
109
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
110
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
111
HEGEL, Fenomenologia,par. 189
Isto implica em uma clivagem: a conscîência reconhece a essencialidade tanto da
vida quanto da pura abstraçã o em relaçã o ao Dasein natural. Por isto, Hegel fala
da dissoluçã o da unidade do Eu como Eu simples que aparecia enquanto objeto
absoluto da consciência. Eu simples representado pela tautologia do “Eu=Eu”
[lembra da estrutura proposicional da igualdade/ a determinaçã o particular é
idêntica à representaçã o universal]. Esse Eu simples se dissolve em dois
momentos: uma pura consciência-de-si, independente e para quem o ser para-si
é a essência e uma consciência para-um-outro, consciência aferrada à coisidade
(Dingheit) e para quem o essencial é a vida ou o ser-para-um-outro. Esses dois
momentos “sã o como duas figuras opostas da consicência (...) Uma é o Senhor,
outra é o Escravo”112.
Mas, antes de continuarmos, notemos a ambigü idade deste “como se”.
Hegel joga, em vá rios momentos do texto, com uma dupla acepçã o do
antagonismo figurado na dialética do Senhor e do Escravo. Por um lado, ele
parece ser a exteriorizaçã o de uma clivagem interna à consciência na sua divisã o
entre o reconhecimento da essencialidade tanto da vida quanto da posiçã o de
pura abstraçã o. Por outro lado, ele aparece como o resultado de uma
confrontaçã o entre duas consciências-de-si independentes em um movimento
fundador dos processos de interaçã o social. Esta duplicidade indica, na verdade,
que estamos diante de um modo de interação social que é, ao mesmo tempo,
processo de formação da consciência-de-si. Como dissera anteriormente,
estruturaçã o de modos de socializaçã o e processos de constituiçã o do Eu
convergem necessariamente em Hegel, já que este nã o reconhece nenhuma
unidade originá ria da consciência-de-si.
Por outro lado, vale a pena contextualizar leituras que procuram encontrar,
neste momento da Fenomenologia do Espírito, as bases normativas de uma teoria da
gênese do social. Não como deixar de notar diferenças profundas de inflexão entre
esta versão do problema do reconhecimento apresentada na Fenomenologia e aquela
apresentada tanto na Filosofia do Espírito, de 1805, e na Enciclopédia em sua versão
de 1830. Por exemplo, na Filosofia do Espírito, de 1805, o problema do
reconhecimento é apresentado de maneira explícita em termos legais e políticos, já
que a luta por reconhecimento se organiza a partir de conceitos como: crime, lei, bens
e constituição. Nada disto desempenha papel central na apresentação própria à
Fenomenologia do Espírito. Podemos mesmo falar que: “Nesta versão do problema do
reconhecimento, Hegel está primariamente interessado no problema da
universalidade, a maneira através da qual a atividade determinada introduzida na
seção precedente, ainda que mediada através formas de interação social, pode ser bem
sucedida em sua determinação apenas se o que Hegel chama de “vontade particular”
se transforme em “vontade universal e essencial”113. É claro que isto não exclui
problemas políticos e legais, mas eles só podem ser compreendidos de maneira
correta (e reconfigurados em sua extensão) se apresentarmos primeiro os problemas
centrais que determinarão as bases mais amplas dos processos de reconhecimento:
eles tocam a questão do desejo, da relação à vida e à morte e do trabalho.
Os pró ximos seis pará grafos sã o extremamente condensados e tentam dar
conta dos desdobramentos da dissoluçã o da unidade inicial do Eu simples. Eles
sã o organizados em duas perspectivas distintas. Entre os pará grafos 190 e 193,
Hegel expõ e os impasses do reconhecimento do ponto de vista do Senhor. Dos

112
HEGEL, Fenomenologia, par. 189
113
PIPPIN, He satisfaction of self-consciousness, p. 155
pará grafos 194 a 196, Hegel expõ e como o conceito de reconhecimento poderá
ser realizado através do Escravo.
O Senhor é logo apresentado como uma consciência que vive algo como
um impasse existencial ligado ao cará ter parcial do seu reconhecimento.
Enquanto consciência que ainda procura realizar a noçã o de auto-identidade
como pura abstraçã o de si, consciência que procura sustentar uma relaçã o
imediata de si a si, o Senhor é certo de si através da afirmaçã o da
inessencialidade de toda alteridade. No entanto, esta certeza é dependente da
negaçã o reiterada da inessencialidade do Outro. Uma negaçã o que nã o é a
destruiçã o pura e simples do Outro, mas a sua dominaçã o enquanto desprezo
pela sua essencialidade independente. Como sabemos, a necessidade desta
dominaçã o contradiz a aspiraçã o do Senhor em ser reconhecido como pura
identidade de si a si, já que ele é reconhecido como Senhor apenas por uma
consciência inessencial. Este conceito de reconhecimento nã o pode aspirar
validade universal. Vejamos como Hegel nos apresenta tal impasse.
Hegel primeiro lembra que o Senhor precisa afirmar sua independência
e sua dominaçã o no interior de dois processos: na confrontaçã o com outra
consciência-de-si e na confrontaçã o com o objeto (que, no interior da seçã o
“consciência-de-si” aparece necessariamente como tendo sua verdade enquanto
objeto do desejo). Tais processos de dominaçã o sã o organizados como
silogismos. O primeiro é enunciado da seguinte forma:

O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser


independente, pois justamente ali o escravo está retido; essa é sua cadeia,
da qual nã o podia abstrair-se na luta, e por isto se mostrou dependente,
por ter sua independência na coisidade114.

Ou seja, o Senhor domina o Escravo através da negaçã o daquilo que lhe é


essencial (ao escravo): a coisa enquanto Dasein natural. A dominaçã o é, na
verdade, negaçã o daquilo que, para o Outro, tem valor essencial, é se mostrar
como “potência que está por cima desse ser”. Este “silogismo da dominaçã o” tem
a estrutura que pode ser descrita da seguinte forma: a) O senhor nega/domina a
coisa ao negar sua essencialidade independente (a coisa é apenas objeto da
particularidade do meu desejo), b) O escravo vê sua essência na coisa, c) O
senhor nega/domina o escravo ao negar/dominar aquilo que, para o escravo,
tem valor essencial.
Mas a primeira proposiçã o deste silogismo pede um desdobramento
importante. Como sabemos, a coisa aparece aqui como objeto do desejo do
Senhor. Negá -la e domina-la significa, na verdade, consumi-la, tal como vimos
anteriormente no momento de apresentaçã o da satisfaçã o do desejo como
consumaçã o. Hegel demonstra continuar neste registro ao lembrar que a relaçã o
imediata de si a si do senhor deve ser posta como: “pura negaçã o da coisa, ou
como gozo (Genuss)”. O gozo aparece como satisfaçã o posta na identidade
imediata de si a si, retorno à indiferenciaçã o generalizada entre sujeito e objeto
através da destruiçã o do objeto.
No entanto, o Senhor pode gozar da coisa e realizar a certeza de si mesmo
ligada à satisfaçã o do desejo somente se esta coisa duplicar a estrutura da
consciência-de-si (já que o desejo é, na verdade, um modo de auto-posiçã o do
114
HEGEL, Fenomenologia,par. 190
sujeito). A astú cia do Senhor consiste pois em interpor o escravo entre ele e a
coisa. Desta forma, o Escravo trabalha a coisa e oferece, ao gozo do Senhor, uma
coisa trabalhada: “o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se
conclui somente com a dependência da coisa, e puramente a goza: enquanto o
lado da independência deixa-o ao escravo, que a trabalha” 115. Só uma coisa
trabalhada pode satisfazer um desejo compreendido fundamentalmente como
modo de auto-posiçã o (até porque: “o trabalho é o ato de se fazer coisa” 116). Isto
demonstra como o Senhor só pode negar/dominar a coisa, isto no sentido de
intuir no objeto sua pró pria falta, através do trabalho do Escravo. O gozo do
Senhor, enquanto posiçã o imediata de si na coisa, é pois, em ú ltima instâ ncia,
impossível. Gozo impossível porque ele só pode ser alcançado através da
mediaçã o resultante do trabalho do Escravo que, como veremos, se põ e na coisa
[é esta consciência posta que o senhor deseja].
O impasse existencial do Senhor demonstra-se entã o nesta posiçã o que
consiste em depender da mediaçã o do Outro para realizar uma satisfaçã o que se
quer imediata. A consciência inessencial fornece a verdade da certeza de si
mesmo do Senhor. A verdade da sua independência é pois dependência, a
verdade de sua imediatez é pois mediaçã o. Daí porque Hegel pode falar: “é claro
que ali onde o senhor se realizou plenamente ele encontra algo totalmente
diverso de uma consciência independente, o que é para ele nã o é uma
consciência independente, mas uma consciência dependente”117.
Hegel entã o lembra que estamos aí diante de um processo parcial de
reconhecimento. O reconhecimento é uma reflexã o duplicada que comporta
quatro momentos: a reflexã o do ser para-si no ser em-si da primeira consciência,
a reflexã o do ser para-si no ser em-si da segunda consciência, a reflexã o do ser
em-si da primeira consciência no ser para-si da segunda consciência e a reflexã o
do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira consciência. Estes
dois ú ltimos movimentos sã o resultantes da compreensã o de que a dimensã o do
em-si, enquanto espaço do que se põ e como objetividade, é um espaço de
interaçã o social suportado pela presença reguladora da alteridade. Neste
sentido, temos aqui apenas a realizaçã o de dois processos: a reflexã o do ser para-
si no ser em-si da segunda consciência (o Escravo através do trabalho) e a
reflexã o do ser em-si da segunda consciência no ser para-si da primeira
consciência (o Senhor através da consumaçã o e do gozo da coisa trabalhada pelo
Escravo). Daí porque Hegel afirma:

Para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em que o


senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo; e o
escravo faz sobre si o que também faz o sobre outro. Portanto, o que se
efetuou foi um reconhecimento unilateral e desigual118.

A dominaçã o mostra-se assim ser o inverso do que parecia ser, já que a


completa autonomia se confunde com a completa dependência. Podemos
sintetizar este ponto afirmando que, através da figura do Senhor, Hegel está a
criticar uma noçã o de liberdade vinculada à ideia de propriedade de si. O senhor

115
HEGEL, Fenomenologia, par. 190
116
HEGEL, Filosofia do Espírito, de 1805
117
HEGEL, Fenomenologia, par. 192
118
HEGEL, Fenomenologia, par. 191
é aquele cuja independência e liberdade está baseado na ilusã o do pertencimento
de si mesmo. Mas este pertencimento de si só pode se realizar em uma situaçã o
na qual eu nã o me vejo como consciência que trabalha, como consciência imersa
nas sendas do trabalho social. Eu devo ser uma consciência que goza um gozo
que é a afirmaçã o de meu poder sobre mim mesmo e sobre os objetos de meu
desejo. No entanto, esse poder sobre os objetos do meu desejo equivale a
compreender tais objetos como minha propriedade, um pouco como o escravo
nã o é nada mais do que minha propriedade.
Mas ninguém melhor que Hegel em sua dialética do senhor e do escravo
demonstrou como havia uma reversibilidade contínua na relaçã o aparentemente
dissimétrica entre propriedade e proprietá rio. Pois Hegel lembrará que o uso da
propriedade implica, necessariamente, transformaçã o do pró prio proprietá rio,
dependência do pró prio proprietá rio (senhor) em relaçã o à propriedade
(escravo), em relaçã o ao modo de existência da propriedade. Como o gozo do
sujeito proprietá rio depende da propriedade e de seu modo de existência, é
impossível que esse modo de existência nã o passe necessariamente no sujeito.
Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
Fenomenologia do Espírito, as relaçõ es de propriedade nã o aparecem apenas
como relaçõ es de uso, mas como relaçõ es de desejo. Eu nã o apenas uso
propriedades, eu desejo o que se reduz à condiçã o de propriedade e esta é a base
do processo de alienaçã o inerente a toda noçã o de propriedade de si. Meu desejo
se submete à forma da propriedade, meu ser se determina no interior de um
campo de propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
condiçã o de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de escravo é
definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é vincular minha
expressã o ao que se dispõ e integralmente, ao que se define de forma
unidimensional, ao que nã o pode escapar de minha possessã o, mas que apenas
confirma meu domínio, minha narrativa sobre mim mesmo. Por isto, tal posiçã o
só pode ser um impasse existencial.
Lógicas do reconhecimento
Aula 7

Nesta aula, iremos terminar o comentá rio sobre a Dialética do Senhor e do


Escravo, tal como ela aparece na Fenomenologia do Espírito. Na aula passada,
terminamos na descriçã o dos impasses existenciais pró prios à posiçã o do
Senhor. Eu havia insistido com vocês que uma forma privilegiada de
compreender a luta por reconhecimento apresentada por Hegel passa pela
compreensã o de como estamos aqui diante de um problema referente à
estrutura da liberdade. O processo fundamental que anima a Dialética do Senhor
e do Escravo é a afirmaçã o da liberdade. Ou seja, Hegel age como quem lembra:
seres humanos nã o entram em conflito apenas para garantir a realizaçã o de suas
necessidades, a defesa de seus bens, a afirmaçã o de seus interesses. Eles entram
em conflito para realizarem o conceito de liberdade que se coloca de maneira
normativa no horizonte de suas açõ es. Seres humanos nã o lutam por sua
sobrevivência, eles lutam inicialmente para serem vistos como seres livres,
mesmo que no interior destas lutas eles verã o o conceito inicial de liberdade
entre em movimento e transformaçã o.
Nese sentido, todo o movimento começa com a consciência procurando
afirmar sua completa independência em relaçã o a toda determinidade exterior,
como se a liberdade fosse vinculada à capacidade de se por como ser para-si, o
que é uma versã o singular da ideia de liberdade negativa. Mas esta liberdade
como puro ser para-si é, na verdade, dirá Hegel, uma forma de alienaçã o. Pois ser
puro ser para-si só é possível à condiçã o de nã o trabalhar, de nã o ter que me
confrontar com a exteriorizaçã o de si que o trabalho implica no seu contato com
o objeto. Daí a transformaçã o da consciência-de-si na figura de uma consciência
que nã o trabalha, a saber, o Senhor. Na verdade, se quisermos ser mais precisos,
diremos que o Senhor é uma consciência que ignora como a estrutura do
trabalho social a determina.
Mas poderíamos mesmo dizer que, em seu sentido mais profundo, só
posso ser puro ser para-si à condiçã o nã o apenas de nã o trabalhar, mas
principalmente de nã o desejar, pois a dinâ mica do desejo que me leva
necessariamente a descobrir que o objeto que desejo nã o é apenas algo que se
submete a mim como minha posse, como mera propriedade. O objeto que desejo
é outro desejo. Preciso que o outro que desejo nã o seja algo que desprezo e
desejar o que se submete à condiçã o de mera propriedade é desejar o que nã o
pode me reconhecer como sujeito. Mesmo quando eu submeto o outro à
condiçã o de propriedade, eu o faço tendo em vista um terceiro outro que poderia
efetivamente me reconhecer, e que se colocaria sob a posiçã o do verdadeiro
Senhor. Por isto, o desejo necessariamente leva o Senhor a se despossuir de sua
ilusã o de independência, a sua liberdade como puro para-si.
Mas sendo a afirmaçã o do puro ser para-si um impasse que só se
realizaria à condiçã o de nã o trabalhar e nã o desejar (ou seja, que só se realizaria
na morte), é a definiçã o da liberdade como independência, como puro pertencer
a si mesmo que está em questã o. Por isto que terminei a ú ltima aula afirmando
que, através da figura do Senhor, Hegel está a criticar uma noçã o de liberdade
vinculada à ideia de propriedade de si. O senhor é aquele cuja independência e
liberdade está baseado na ilusã o do pertencimento de si mesmo, esta é a ilusã o
fundamental da crença de ser puramente para-si. Mas este pertencimento de si
só pode se realizar em uma situaçã o na qual eu me vejo como consciência que
goza um gozo que é a afirmaçã o de meu poder sobre mim mesmo e sobre os
objetos de meu desejo. Esse poder sobre os objetos do meu desejo equivale a
compreender tais objetos como minha propriedade, um pouco como o escravo
nã o é nada mais do que minha propriedade.
Mas ninguém melhor que Hegel em sua dialética do senhor e do escravo
demonstrou como havia uma reversibilidade contínua na relaçã o aparentemente
dissimétrica entre propriedade e proprietá rio. Pois Hegel lembrará que o uso da
propriedade implica, necessariamente, transformaçã o do pró prio proprietá rio,
dependência do pró prio proprietá rio (senhor) em relaçã o à propriedade
(escravo), em relaçã o ao modo de existência da propriedade. Como o gozo do
sujeito proprietá rio depende da propriedade e de seu modo de existência, é
impossível que esse modo de existência nã o passe necessariamente no sujeito.
Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
Fenomenologia do Espírito, as relaçõ es de propriedade nã o aparecem apenas
como relaçõ es de uso, mas como relaçõ es de desejo. Eu nã o apenas uso
propriedades, eu desejo o que se reduz à condiçã o de propriedade e esta é a base
do processo de alienaçã o inerente a toda noçã o de propriedade de si. Meu desejo
se submete à forma da propriedade, meu ser se determina no interior de um
campo de propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
condiçã o de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de escravo é
definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é vincular minha
expressã o ao que se dispõ e integralmente, ao que se define de forma
unidimensional, ao que nã o pode escapar de minha possessã o, mas que apenas
confirma meu domínio, minha narrativa sobre mim mesmo. Por isto, tal posiçã o
só pode ser um impasse existencial.

Trabalho, essência e angústia

É neste ponto que Hegel deixa o Senhor em seu impasse e passa à análise do
movimento dialético a partir da perspectiva do Escravo. “Sem dúvida, este aparece de
início fora de si, e não como a verdade da consciência-de-si”. Mas ele “entrará em si
como consciência retornando sobre si mesma e se converterá em verdadeira
independência”119. Ou seja, pelas vias da servidão, a consciência irá realizar a
reconciliação com a objetividade necessária para a realização do conceito de
consciência-de-si em sua estrutura de reconhecimento.
Hegel começa lembrando que a essencialidade do escravo parece estar
depositada no Senhor. É ele quem domina o seu fazer e consome o objeto de seu
fazer. Quer dizer, seu fazer lhe é estranho, assim como o objeto com o qual ela
confronta lhe é estranho. Há no entanto um conteúdo positivo neste estranhamento.
Pois isto implica que o escravo se elevou para além de sua singularidade, já que:
“Enquanto o escravo trabalha para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo da sua
própria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude consistindo em não ser apenas
o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro” 120. No entanto, ter seu
desejo vinculado ao desejo de um outro ainda não nos fornece a universalidade do
reconhecimento almejado pela consciência. o conflito produzido pelo desejo, conflito

119
HEGEL, Fenomenologia, par. 193
120
HEGEL, Enciclopédia, par. 433 - adendo
que aparece enquanto motor da DSE, não pode ser a mera colisão entre sistemas
particulares de interesses de duas consciências distintas, como quer comentadores
como Terry Pinkard e Jurgen Habermas 121. Conflito através do qual Eu procuro
dominar o outro através da submissão do seu sistema de valoração e interesse à
perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu procuro submeter o desejo do outro ao
meu desejo. Faz-se necessário que este outro não seja apenas um outro desejo
particular, mas que ele tenha algo da universalidade incondicional do que é essencial.
Hegel então se serve de um certo deslizamento que consiste em dizer que, no
interior desta experiência particular, já há algo da ordem de uma necessidade
universal que toca o modo de manifestação do que é essencial. Isto lhe permite operar
um certo giro de perspectiva que consiste em dizer: lá onde a consciência encontra-se
totalmente alienada, é lá que ela pode encontrar-se a si mesma, já que: “o espírito só
alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento
absoluto”122. Esta idéia de que a consciência deve se perder para poder se encontrar
está intimamente vinculada à maneira com que Hegel compreende a noção central de
“essência”. O parágrafo 194 é muito ilustrativo neste sentido. Hegel começa
lembrando que, para a consciência escrava, a essência está fora dela mesma, está neste
Senhor que encarna o puro para-si e que despreza o agir da consciência escrava que
aparece, para ela mesma, como algo de puramente estranho e oposto. Ela traz assim a
oposição dentro de si e não se reconhece mais em seu agir, que lhe aparece como agir-
para-um-Outro. Contudo, Hegel afirma que esta é condição necessária para que ela
experimente a essência e tenha nela mesma “essa verdade da pura negatividade e do
ser-para-si”. Logo em seguida, complementa:

Essa consciência sentiu a angústia, não por isto ou aquilo, não por este ou
aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o medo da
morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu
em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse
movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir é a
essência simples da consciência-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-
para-si que assim é nessa consciência123.

Notemos inicialmente esta posiçã o peculiar da morte como “senhor


absoluto” capaz de fazer com que tudo o que fixo, vacile, tudo o que é só lido,
desmanche-se no ar. Há um certo paradoxo na dialética hegeliana. O Senhor, por
nã o temer a morte, nã o a conhece, ele nã o a experimenta. Já o escravo, ao temer a
morte, permite que ela lhe faça tremer em toda sua totalidade. Pois, se a
confrontaçã o com a morte é condiçã o para a conquista da liberdade, é porque a
morte é figura privilegiada desta universalidade incondicional e absoluta que,
por ser incondicional e absoluta, manifesta-se como negaçã o de tudo o que é
condicionado e finito. Devemos levar isto em conta quando encontramos Hegel
dizendo:

A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da


verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da vontade, o

121
Ver PINKARD, Hegel´s phenomenology: The sociality of reason, op. cit. e HABERMAS,
Caminhos da destranscendentalização In: Verdade e Justificação, op. cit.
122
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
123
HEGEL, Fenomenologia, par. 194
sentimento do nulidade do egoísmo, o hábito da obediência (Gehorsams) é um
momento necessário da formação de todo homem. Sem ter a experiência deste
cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém
livre, racional e apto a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de
se auto-governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
submissão a um senhor124.

Afirmaçõ es desta natureza servem a vá rios mal entendidos. Hegel nã o está


dizendo que a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade
construída a partir da internalizaçã o de “dispositivos disciplinares” travestidos
de prá ticas de auto-controle. Nã o é qualquer submissã o a um senhor que produz
a liberdade, mas apenas a um senhor que seja capaz de realizar exigências
incondicionais de universalidade, que tenha algo deste “senhor absoluto” que é a
morte. Isto nos explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes
de submeter um povo produzem, necessariamente, o sentimento de que o
trabalho do Espírito é sem medida comum com toda e qualquer política finita,
com todo cá lculo utilitarista baseado em “meu” sistema de interesses egoístas.
Por sinal, a maior de todas as ilusõ es consiste exatamente em ver na crítica
hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de esvaziamento do particular. Hegel
pode criticar o egoísmo porque nã o há nenhuma individualidade neste “ego”, já
que nã o há nada de individual no interior de um sistema de interesses
construído, na verdade, a partir de identificaçõ es e internalizaçã o de princípios
de conduta vindos de uma outra consciência determinada125. Por isto, a
“dissoluçã o da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberaçã o”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar
que a formaçã o da consciência-de-si é apenas a dissoluçã o de um indivíduo
definido como o que se anula, renú ncia incessante de si, ascese permanente. Pois:
“ganhar uma determinaçã o acaba sempre por ser renú ncia a uma diferença que
me individualizava, advir um pouco mais meu ser verdade na medida em que sou
um pouco menos meu ego” 126. Neste sentido, tremer diante do mestre absoluto
seria tomar consciência da impotência de princípio que representa a
singularidade natural. Como se a liberaçã o hegeliana fosse um passe de má gica
no qual o sentimento de fraqueza se transforma em legitimaçã o da incapacidade
de resistir. Assim: “em troca de seus sofrimentos, é o gozo do universal que se
oferece à consciência – belo presente ...” 127. Nã o estamos muito longe de Deleuze
vendo a dialética hegeliana como “idéia do valor do sofrimento e da tristeza,
valorizaçã o das ‘paixõ es tristes’ como princípio prá tico que se manifesta na cisã o,
no dilasceramento”128.
Mas este trecho talvez desvele seu real foco se lembrarmos que, para Hegel, a
essência não é uma substância auto-idêntica que determina as possibilidades dos
modos de ser. A essência é a realização de um movimento de reflexão. Neste sentido,

124
HEGEL, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
125
Esta intuição hegeliana recebeu uma confirmação material através da psicanálise lacaniana e sua
descrição da gênese do Eu através a internalização da imagem de um outro que tem a função de tipo
ideal de conduta e de orientação do desejo. A este respeito, remeto ao capítulo “Desejo sem imagens”
In: SAFATLE, Lacan, São Paulo, Publifolha, 2007.
126
LEBRUN, L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100
127
idem, p. 211
128
DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
contrariamente ao ser que procurava sua fundamentação em determinações fixas, a
essência se põe como determinação reflexiva e relacional. Em outras palavras, a
essência é a unificação deste movimento reflexivo de pôr seu ser em um outro, cindir-
se e retornar a si desta posição. Daí porque Hegel pode afirmar que, quando o ser
encontra-se determinado como essência, ele aparece como: “um ser que em si está
negado todo determinado e todo finito” 129, ou ainda, como “ser que pela negatividade
de si mesmo se mediatiza consigo” 130. Neste sentido, Hegel insiste que a
internalização da negação de si própria à configuração da essência deve se manifestar
inicialmente como negatividade absoluta diante da permanência de toda
determinidade.
É neste sentido que a angú stia deve ser compreendida como a
manifestaçã o fenomenoló gica inicial desta essência que só pode se pô r através
do “fluidificar absoluto de todo subsistir”, ou seja, do negar a essencialidade de
toda determinidade aferrada em identidades opositivas. Manifestaçã o inicial, daí
porque Hegel fala de “essência simples”, mas manifestaçã o absolutamente
necessá ria. A angú stia pode aqui ter esta funçã o porque nã o se trata de um
tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele instante, mas se trata aqui de uma
fragilizaçã o completa de seus vínculos ao mundo e à imagem de si mesmo. É esta
fragilizaçã o que traduz de maneira mais perfeita o que está em jogo neste “medo
diante da morte, do senhor absoluto”. O termo “angú stia” tem aqui um uso feliz
porque ele indica exatamente esta posiçã o existencial na qual o sujeito parece
perder todo vínculo do desejo em relaçã o a um objeto, como se estivéssemos
diante de um desejo nã o mais desprovido de forma. No entanto, se a consciência
for capaz de compreender a angú stia que ela sentiu ao ver a fragilizaçã o de seu
mundo e de sua linguagem como primeira manifestaçã o do Espírito, deste
espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, entã o a
consciência poderá compreender que este “caminho do desespero” é, no fundo,
internalizaçã o do negativo como determinaçã o essencial do ser. Daí porque: “o
temor do senhor é o início [mas apenas o início] da sabedoria” 131. Neste sentido,
podemos mesmo dizer que, para Hegel, só é possível se desesperar na
modernidade, já que ele é a experiência fenomenoló gica central de uma
modernidade disposta a problematizar tudo o que se põ e na posiçã o de
fundamento para os critérios de orientaçã o do julgar e do agir.

Ir ao fundamento

A este respeito, tentemos entender o que acontece, em termos ló gicos,


com este movimento fenomenoló gico de se descobrir diante de um agir que me
despossui completamente. Estejamos atentos ao sentido que Hegel dá a esta
despossessã o de si produzida pela internalizaçã o da morte como senhor
absoluto. Neste contexto, a morte nã o é destruiçã o simples da consciência, nã o é
um simples despedaçar-se (zugrunde gehen), mas é modo de ir ao fundamento
(zu Grund gehen). Pois a confrontaçã o com a morte é experiência fenomenoló gica
que visa exprimir o acesso ao cará ter inicialmente indeterminado do
fundamento, que visa exprimir como: “A essência, enquanto se determina como
fundamento, determina-se como o nã o-determinado (Nichtbestimmte) e é apenas

129
HEGEL, Ciência da lógica – doutrina da essência
130
HEGEL, Enciclopédia, par. 112
131
HEGEL, Fenomenologia, par. 195
a superaçã o (Aufheben) de seu ser determinado (Bestimmtseins) que é seu
determinar”132. O que pode ser entendido da seguinte maneira: a indeterminaçã o
do fundamento vem do fato dele servir de substrato comum entre determinaçõ es
opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o fundamento implica a identidade
entre a identidade e a diferença (die Einheit der Identität und des Unterschiedes).
Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o fundamento da experiência,
assim como o princípio de ligaçã o e unidade que determina o modo de
articulaçã o entre o fundamento e aquilo que ele funda, entã o pensar a verdadeira
essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro (sein Sein in einen
Anderen hat) exige a confrontaçã o com um estado de diferenças nã o submetidas
à forma do Eu133.
Demoremos um pouco mais neste ponto. Sabemos que fundar é
determinar o existente através da sua relaçã o a um padrã o que me permite
orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas categoriais como
a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos fenô menos,
determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como
fundamento posso garantir o critério do verdadeiro e do falso, do correto e do
incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicaçã o de todas estas
estruturas aos fenô menos depende de uma decisã o prévia e tá cita sobre
princípios ló gicos gerais de ligaçã o e unidade capazes de constituir objetos da
experiência e fundar proposiçõ es de identidade e diferença. Estes princípios de
ligaçã o (Verbindung) e unidade sã o derivados do Eu como unidade sintética de
apercepçõ es, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das
determinaçõ es. No entanto, a problematizaçã o de tais princípios é o verdadeiro
objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constró i um witz ao dizer que,
para a consciência, “o ser tem a significaçã o do seu” (das Sein die Bedeutung das
Seinen hat)134, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência
significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligaçã o e unidade que
é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de
sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevâ ncia das distinçõ es kantianas
entre receptividade e espontaneidade.
A dialética precisa pois aceder a um fundamento nã o mais dependente da
forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superaçã o dos modos
naturalizados de determinaçã o, através a fragilizaçã o das imagens de mundo que
orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências. Tal fragilizaçã o
é descrita fenomenologicamente por Hegel através da angú stia e da confrontaçã o
com a morte.
Vemos assim como a confrontaçã o com a morte permite à consciência-de-
si compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinaçõ es fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma
potencia do pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive,
recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença em Hegel é esta potência
interna da in-diferença que corró i toda determinaçã o. Ela será esta expressã o do

132
HEGEL, Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
133
Longuenesse compreendeu isto bem ao afirmar que, para Hegel : “O fundamento é o herdeiro da
unidade de apercepção da Crítica da razáo pura” (LONGUENESSE, Hege let la critique de la
métaphysique, Paris: Vrin, 1981, p. 111).
134
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159
ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é um processo de
demoliçã o”. Demoliçã o que ocorre quando desvelamos esta “franja de
indeterminaçã o da qual goza todo indivíduo”135. Nã o se trata exatamente de um
ganho de determinaçã o e positividade, mas da assunçã o de um risco vinculado à
confrontaçã o com aquilo que se coloca enquanto puramente indeterminado.
Nestas condiçõ es, submeter-se a um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo
que parecia fixo e determinado nada tem a ver com uma a dinâ mica psicoló gica
da resignaçã o, do ressentimento ou da necessidade da repressã o.

O trabalho

No entanto, ainda não tocamos em um ponto essencial que irá estabilizar esta
dialética. Pois a angústia sentida pela consciência escrava não fica apenas em uma:

universal dissolução em geral, mas ela se implementa efetivamente no servir


(Dienen). Servindo, suprime (aufhebt) em todos os momentos tal aderência ao
Dasein natural e trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da potência
absoluta em geral, e em particular o do serviço, é apenas a dissolução em si e
embora o temor do senhor seja , sem dúvida, o início da sabedoria, a
consciência aí é para ela mesma, mas não é ainda o ser para-si; ela porém
encontra-se a si mesma por meio do trabalho136.

Hegel fará então uma gradação extremamente significativa que diz respeito ao
agir da consciência nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do serviço
(Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta tríade marca uma
realização progressiva das possibilidades de auto-posição da consciência no objeto do
seu agir. O serviço é apenas a dissolução em si (Auflösung an sich) no sentido da
completa alienação de si no interior do agir, que aparece como puro agir-para-um-
outro e como-um-outro. O trabalho implica em uma auto-posição reflexiva de si. No
entanto, Hegel não opera com uma noção expressivista de trabalho que veria sua
realização mais perfeita em uma certa compreensão do fazer estético como
manifestação das capacidades expressivas dos sujeitos. A consciência que trabalha
não expressa a positividade de seus afetos em um objeto que circulará no tecido
social. O trabalho não é a simples tradução da interioridade na exterioridade. De uma
certa forma, a categoria hegeliana de trabalho é inicialmente uma defesa contra a
angústia diante da negatividade da morte ou, ainda, uma superação dialética da
angústia, já que ele é auto-posição de uma subjetividade que sentiu o desaparecer de
todo vínculo imediato ao Dasein natural, que sentiu o tremor da dissolução de si.
Lembremos desta afirmação central de Hegel:

O trabalho é desejo refreado (gehemmte Begierde), um desvanecer contido, ou


seja, o trabalho forma. A relação negativa para com o objeto toma a forma do
objeto e permanence, porque justamente o objeto tem independência para o
trabalhador. Esse meio-termo negativo ou agir formativo é, ao mesmo tempo,
a singularidade, ou o puro-ser-para-si da consciência que agora no trabalho se
transfere para fora de si no elemento do permanecer; a consciência
trabalhadora chega assim à intuição do ser independente como intuição de si

135
DELEUZE, Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
136
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132
mesma (...) no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua própria
negatividade137.

Nota-se claramente aqui o papel de síntese que o trabalho desempenha, já que


ele permite a intuição de si através da intuição do objeto, ou ainda, “a intuição do ser
independente como intuição de si mesmo”. Por refrear o impulso destrutivo do desejo
em seu consumo do objeto, o trabalho forma, isto no sentido de permitir a auto-
objetivação da estrutura da consciência-de-si em um objeto que é sua duplicação. Sua
função será pois realizar, ainda que de maneira imperfeita, o que o desejo não era
capaz de fazer, ou seja, permitir a auto-posição da consciência-de-si em suas
exigências de universalidade, já que o trabalho está organicamente vinculado a modos
de interação social e de reconhecimento. Esta saída das dicotomias da consciência-de-
si através da configuração de uma síntese materialista devido à recuperação da
centralidade da categoria do trabalho será de suma importância para os passos
posteriores da filosofia alemã, em especial aqueles que nos conduzem a Marx.
O giro dialético consiste em que dizer que a alienação no trabalho, a
confrontação tanto com o agir enquanto uma essência estranha, enquanto agir para-
um-Outro absoluto, quanto com o objeto enquanto aquilo que resiste ao meu projeto
tem caráter formador por abrir a consciência à experiência de uma alteridade interna
como momento fundamental para a posição da identidade. Daí porque Hegel afirma
que tanto o medo quanto o formar são dois momentos necessários para este modo de
reflexão que é o trabalho. Hegel não teme em afirmar que o formar sem o medo
absoluto fornece apenas um sentido vazio, pois sua forma ou negatividade não é “a
negatividade em si” (Negativität an sich). Daí porque Hegel pode dizer:

Se não suportou o medo absoluto, mas somente alguma angústia, a essência


negativa ficou sendo para ela algo exterior, sua subsistência não foi
integralmente contaminada por ela. Enquanto todos os conteúdos de sua
consciência natural não forem abalados, essa consciência pertence ainda, em
si, ao ser determinado138.

Assim, através do trabalho, o lugar do sujeito como fundamento pode ser


compreendido como negaçã o em si: conseqü ência necessá ria de uma filosofia do
sujeito onde “sujeito” nã o é mais do que o nome do caráter negativo do
fundamento. Afirmar que há um cará ter negativo do fundamento significa, entre
outras coisas, que a relaçã o ao existente nã o é a repetiçã o do que está
potencialmente posto no fundamento, mas que a pró pria determinaçã o do
existente nã o pode mais ser pensada a partir do paradigma da subsunçã o
simples do caso à norma. Ela exige compreender que não há determinação
completa no sentido de identidade completa entre a determinação e o fundamento.
É isto que a consciência-de-si descobrirá pelas vias do trabalho.
Notemos, por fim, que temos uma explicação para o fato de, na
Fenomenologia do Espírito, o trabalho não nos colocar no caminho da
“institucionalização da identidade do Eu”139. Ou seja, contrariando o que poderíamos
esperar, o trabalho não abre uma dinâmica de reconhecimento que se realizará na
regulação jurídica das minhas relações com o outro através da assunção de meus
137
idem, p. 132
138
HEGEL, Fenomenologia, par. 196
139
HABERMAS, Trabalho e interação In: Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70,
2007, p. 196
direitos como sujeito que colabora com a riqueza (Vermögen) social. Ou ainda, ele faz
isto, mas à condição de recomprendermos completamente o que entendíamos por
“identidade”, “direitos”, “sujeito”. Isto porque Hegel está mais interessado no fato do
trabalho aparecer como modo de posição de uma negatividade com a qual o sujeito se
confrontou ao ir em direção à uma potência de indeterminação cuja assunção é
condição para a consciência-de-si “viver no universal”. Daí podemos derivar o
problema maior da modernidade, ao menos segundo Hegel; problema este que está na
base da sua filosofia do direito, a saber, como viabilizar o reconhecimento
institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de confrontação com o
que se oferece como indeterminado? Pois não é a indeterminação que produz
sofrimento social, mas a incapacidade das estruturas institucionais e dos processos de
interação social reconhecerem sua realidade fundadora da condição existencial de
todo e qualquer sujeito.

Estoicismo e a inessencialidade da efetividade

Ao finalizar a dialética do Senhor e do Escravo, Hegel introduz novamente


a perspectiva do para nós a fim de fornecer uma avaliaçã o do que estava
realmente em jogo no interior do processo dialético que analisamos:

Surgiu, assim, para nó s, uma nova figura da consciência-de-si: uma


consciência que é para si mesma a essência como infinitude ou puro
movimento da consciência, uma consciência que pensa, ou uma
consciência-de-si livre. Pois é isto o que pensar significa: nã o ser objeto
para si como Eu abstrato, mas como Eu que tem ao mesmo tempo o
significado de ser em-si ou que se relaciona com a essência objetiva de
modo que ela tenha o significado do ser para-si da consciência. Para o
pensar, o objeto nã o se move em representaçõ es ou figuras, mas sim em
conceitos, o que significa: num ser em-si diferente que imediatamente
para a consciência nã o é nada diferente dela140.

Aparece aqui uma figura da liberdade ligada à auto-determinaçã o do


pensamento. Haverá um ganho em relaçã o à figura anterior, mas haverá
também uma nova forma de alienaçã o. Pois através do pensar, a consciência põ e
uma relaçã o ao ser em-si, ao objeto, o que nã o ocorria no momento em que ela
procurava afirmar sua liberdade como puro para-si. Este pensar a respeito do
qual fala Hegel nã o é o pensar representativo com sua perspectiva de adequaçã o
entre representaçõ es mentais de um “Eu abstrato” e estados fenomênicos de
coisas, mas pensar especulativo que realiza uma unidade que permite a Hegel
dizer: “no pensamento, sou livre porque nã o estou em um outro”. É o trabalho
compreendido como auto-posiçã o na qual a relaçã o negativa para com o objeto
torna-se a forma do objeto que fornece as bases da tal experiência do conceito.
Para compreendermos este ponto, lembremos desta noçã o hegeliana do
conceito como uma estrutura de relaçõ es entre objetos articuladas a partir de
negaçõ es determinadas que se dã o no desdobramento de processos da
experiência. Lembremos também da proposiçã o sobre o holismo semâ ntico de
Hegel, proposiçã o segundo a qual a compreensã o das relaçõ es já é condiçã o
suficiente para a compreensã o do conteú do da experiência. Agora Hegel afirma
140
HEGEL, Fenomenologia, par. 197
que, através de uma compreensã o especulativa do trabalho, temos a
apresentaçã o deste movimento do conceito. Isto a ponto de podermos seguir
Hyppolite e dizer que: “O conceito é o trabalho do pensamento”. Como podemos
compreender estes pontos?
Já sabemos que, através do trabalho, a consciência nã o agiu de acordo com
aquilo que os pragmá ticos chamam de “princípio de expressibilidade”. Ela nã o
realizou de maneira performativa o que estava em sua intençã o (a auto-posiçã o
de si). Do objeto trabalhado, veio uma experiência de independência, de
resistência ao conceito simples do Eu: o objeto era como um Outro. No entanto,
este Outro é a negaçã o determinada do Eu, através do formar, percebo este Outro
diante do meu agir, ele me nega (é Outro) e me conserva (é interno a mim, está
no meu agir, por isto, é eu mesmo). Através do trabalho, posso refletir-me em
meu ser-Outro [que é tanto a resistência do sensível quanto a presença de uma
outras consciências que descentram o significado da minha açã o pois a coloca no
interior de relaçõ es sociais – os dois níveis devem se articular]. Desta forma, o
trabalho nos mostra como o conceito pode estabelecer relaçõ es de negaçã o
determinada com os objetos aos quais ele se refere.
No entanto, a consciência pode operar algo como uma reconciliaçã o
formal e abstrata, tal como dirá mais tarde Marx. Esta é a dimensã o da alienaçã o
que permanece em tal figura da consciência. Os processos de reconhecimento
nã o podem se aquietar no reconhecimento da autonomia do pensamento. Ao
pensar nisto, Hegel fala em uma consciência pensante em geral (abstrata) cujo
objeto é apenas a unidade imediata entre ser em-si e ser para-si. Esta consciência
é, para Hegel, o estoicismo. Mais do que uma escola de pensamento, Hegel vê, no
estoicismo, uma posiçã o geral do pensamento em relaçã o ao problema da
efetivaçã o da liberdade.
Hegel compreende o estoicismo de Zenã o de Cício, Crísipo, Epíteto e de
Marco Aurélio como, no fundo, uma filosofia da resignaçã o. Grosso modo, o
estoicismo compreende a razã o (logos) como princípio que rege uma Natureza
identificada com a divindade. O curso do mundo obedece assim um
determinismo racional. A virtude consiste em viver de acordo com a natureza
racional aceitando o curso do mundo, ou seja, aceitando o destino despojando-se
de suas paixõ es a fim de alcançar a apatia e a ataraxia. A autarkeia estó ica
(influenciada pelos cínicos e pela sua concepçã o de auto-determinaçã o como
afastamento do nomos e dos prazeres) aparece assim como: “liberdade, este
momento negativo de abstraçã o da existência”141. Mesmo que a liberdade
apareça definida como “a possibilidade de agir a partir de sua vontade” 142, a
vontade virtuosa é aquela que se reconcilia com o determinismo racional do
curso do mundo. O que explica como é indiferente para o estó ico ser Escravo
(Epíteto) ou Senhor (Marco Aurélio). Seu agir é livre “no trono como nas cadeias
e em toda forma de dependência do Dasein singular”. Uma indiferença nã o pode
levar a outra coisa que uma “independência e liberdade interiores”143 que, para
Hegel, é sinal do aparecimento do princípio de subjetividade.
Hegel compreende o estoicismo a partir de duas determinaçõ es
complementares. Primeiro:

141
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
142
Diógenes LAÉRCIO, Vida e lenda de filósofos ilustres- Zenão
143
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Seu princípio é que a consciência é essência pensante e que uma coisa só
tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela à medida que a
consciência ai se comporta como essência pensante144.

Nota-se como esta afirmaçã o parece corroborar a exigência hegeliana de que a


consciência-de-si seja posta como essência da verdade. Ainda mais se
lembrarmos da afirmaçã o hegeliana segundo a qual a elevaçã o estó ica ao plano
do pensamento: “consiste em que nã o seja a natureza imediata o conteú do nem a
forma do verdadeiro ser da consciência, mas que a racionalidade da natureza
seja aceita pelo pensamento de tal modo que tudo seja verdadeiro e bom na
simplicidade do pensamento”145. Com isto, o estoicismo apreende a diferença
constante entre o pensar e o que se dá na efetivaçã o fenomenal. Nisto, ele é a
primeira posiçã o afirmativa da abstraçã o.
No entanto, Hegel está mais interessado, ao menos nesta parte da
Fenomenologia, nos impasses estó icos a respeito da determinaçã o da
racionalidade em sua dimensã o prá tica. Sobre a autarkeia estó ica de uma
consciência que se compreende como essencialidade, Hegel dirá : “Seu agir é
conservar-se na impassibilidade que continuamente se retira do movimento do
Dasein, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do
pensamento”146. A este respeito, Hegel chegar a afirmar que: “ a grandeza da
filosofia estó ica consiste que nada pode quebrar a vontade se esta se mantém
firme (...) e que sequer o afastamento da dor pode ser considerado um fim” 147.
Mas Hegel nã o deixa de lembrar que uma des-alienaçã o que se realiza
apenas através do formalismo de um pensar que se retira do movimento do
Dasein só pode aparecer como conformaçã o à quilo que nã o pode, por mim, ser
modificado. Hegel apresenta assim uma crítica que será , em vá rias situaçõ es,
dirigida contra ele pró prio: “A liberdade da consciência é indiferente quanto ao
Dasein natural; por isto igualmente o deixou livre e a reflexã o é a reflexã o
duplicada. A liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua
verdade, e verdade sem a implementaçã o da vida” 148. Apenas como exemplo
desta mesma crítica contra Hegel, lembremos do final de La patience du concept,
de Gerard Lebrun: “Enquanto a ló gica designava até agora a instâ ncia que havia
transformado o desdobramento do logos em um discurso predicativo sobre o
entes, a Ló gica nova nã o julga mais os entes nos quais se investirã o as categorias.
Ela cessa de relacionar estas a objetos e de formar a trama de uma consciência-
de-coisas”. Ou ainda. Sobre a Fenomenologia: “ o que tomá vamos por uma
narrativa de viagem nã o nos leva a nada, como se, ao final da Odisséia, Ítaca fosse
fosse um nome, ao invés de uma ilha. As coisas mesmas a respeito das quais
esperá vamos uma revelaçã o, ei-las transmutadas em linguagem”149.

144
HEGEL, Fenomenologia, par. 198
145
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
146
HEGEL, Fenomenologia, par. 199
147
HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
148
HEGEL, Fenomenologia, par. 200
149
LEBRUN, La patience du concept, p. 408
Lógicas do reconhecimento
Aula 8

Na aula de hoje, gostaria de seguir nossa discussã o sobre as dinâ micas de


reconhecimento em Hegel a partir de um comentá rio da Filosofia do Direito. A
passagem da Fenomenologia do Espírito à Filosofia do direito implica um
desenvolvimento do pensamento hegeliano em direçã o à quilo que poderíamos
chamar de “condiçõ es para a institucionalizaçã o da liberdade”. Vimos na
Fenomenologia como o problema do reconhecimento estava vinculado à s
dinâ micas sociais de afirmaçã o da liberdade. No entanto, nada foi dito a respeito
da gênese das estruturas institucionais responsá veis por tais demandas
aparecerem como fundamento dos processos de racionalizaçã o social. De fato,
este trabalho será feito pela filosofia do direito. Isto nos explica uma definiçã o
importante como:

O terreno do direito é de maneira geral o espiritual e sua situaçã o e ponto


de partida preciso é a vontade que é livre; na medida em que a liberdade
constitui sua substâ ncia e determinaçã o, o sistema do direito é a liberdade
efetivada que o mundo do espírito produz a partir de si pró prio, como
segunda natureza150.

Tal definiçã o nos permite dizer que os conceitos decisivos na filosofia hegeliana
do direito sã o “liberdade” e “vontade livre”, já que definem o campo da
racionalidade do direito. Trata-se, entã o, de demonstrar que a perspectiva
hegeliana nos traz elaboraçõ es importantes a respeito da relaçã o necessá ria
entre reconhecimento da vontade livre e constituiçã o moderna das instituiçõ es.
Como devem ser pensadas as instituiçõ es para que elas sejam capazes de dar
conta de demandas de reconhecimento depositadas no conceito de “liberdade”?
É possível pensar a liberdade fora de alguma garantia de reconhecimento
institucional?
Antes de entrarmos diretamente nestas discussõ es, notemos a
peculiaridade da compreensã o do sentido da noçã o de “direito” para Hegel. Por
“direito”, Hegel entende algo a mais do que o ordenamento estatal de regulaçã o
da vida social. “Direito” sã o: “Todos aqueles pressupostos sociais que se
mostraram necessá rios para a realizaçã o da ‘vontade livre’ de cada sujeito
individual”151. Tais pressupostos sociais englobam o ordenamento jurídico
atualmente existente com sua dinâ mica conflitual interna, as instituiçõ es
políticas que compõ e o Estado moderno, as relaçõ es intersubjetivas de amor que
se dã o no interior da família, a disposiçã o subjetiva formada a partir da
internalizaçã o de preceitos morais, a dinâ mica do livre-mercado, entre outros.
Eles ainda devem estar, de uma certa forma, assegurados (ou em processo de
garantia) no interior dos quadros atuais do Estado moderno.

150
HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, par. 4. As
traduções aqui apresentadas vem, em grande parte, do trabalho de tradução de Marcos Müller.
151
HONNETH, Axel; Sofrimento de indeterminacao, São Paulo : Esfera Pública, 2006, p. 64
De fato, aí está boa parte da complexidade da aposta hegeliana: este
Estado nã o pode ser apenas um ideal, um dever ser. Se a funçã o da filosofia do
direito é: “apresentar e conceitualizar o Estado como em si racional” 152 é porque
ela deve ser capaz de apresentar, a partir de sua necessidade racional, o Estado
que está em vias de se realizar como resultado do projeto moderno. Ou seja, nã o
se trata nem do Estado atualmente realizado, nem de um Estado ideal, simples
ideia sem relaçã o alguma com a efetividade atual. Trata-se de um Estado que
pode potencialmente se realizar, isto no sentido de algo que explora os conflitos
sociais atuais para se realizar.
Esta é uma maneira de lembrar que, afinal, um ordenamento jurídico
estatal está longe de ser algo monolítico e organicamente coeso. Antes, ele é o
resultado heteró clito da sedimentaçã o de lutas sociais entre vá rias disposiçõ es
contrá rias e mesmo contraditó rias no interior da sociedade. O ordenamento
jurídico traz as marcas destas lutas e conflitos. Neste sentido, cabe à filosofia do
direito apresentar quais lutas e conflitos definiram a tendência de racionalidade
do ordenamento jurídico. Talvez seja por isto que Hegel precise terminar seu
prefá cio à Filosofia do direito com a bela metá fora da filosofia como a coruja de
Minerva que levanta vô o apenas com a irrupçã o do crepú sculo. Pois a filosofia
procura mostrar como os conflitos sociais que dã o forma ao direito, que
imprimem tendências no interior do direito, sã o mobilizaçõ es do Espírito na sua
procura em realizar o conceito de liberdade no interior da vida social. Uma
realizaçã o que nunca é linear, que nunca deixa de levar em conta dimensõ es
tá ticas e estratégicas do pensamento, assim como a configuraçã o de situaçõ es
locais. Mas uma realizaçã o que, ao menos segundo Hegel, já teria sido capaz de
deixar marcas irreversíveis em nosso ordenamento jurídico, principalmente
depois do Có digo napoleô nico e do impacto da Revoluçã o Francesa.
Desta forma, por insistir que a vontade livre só pode ser pensada como
efetivaçã o de pressupostos que devem estar em processo de institucionalizaçã o
na vida social, Hegel precisa fazer a crítica de dois modelos hegemô nicos de
liberdade: um baseado na hipó stase das exigências de autenticidade e outro
baseado na hipó stase das exigências de autonomia. A hipó stase destes dois
modelos nos leva à perpetuaçã o da contradiçã o entre liberdade e instituiçã o,
contradiçã o inaceitá vel para Hegel. Pois a autenticidade, quando hipostasiada, só
poderia produzir uma noçã o de liberdade negativa que, quando utilizada como
guia para a açã o política, nos leva diretamente ao terror. Já a autonomia, quando
hipostasiada, produz uma noçã o de livre-arbítrio que, ao servir de guia para a
açã o política, acaba por levar a uma profunda atomização social produzida pela
elevaçã o da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social. Vejamos
cada uma destas distorçõ es do conceito de liberdade, que nã o deixam de tecer
relaçõ es entre si. Ao fim, poderemos compreender melhor qual é a especificidade
do conceito hegeliano.

Da liberdade negativa ao terror

Se se contrapõ e ao direito positivo e à s leis o sentimento do coraçã o, a


inclinaçã o e o arbítrio (Willkür), nã o pode ser a Filosofia, pelo menos, que
reconhece tais autoridades. – O fato de que a violência e a tirania possam

152
HEGEL, ibidem, p. 26
ser um elemento do direito positivo lhe é contingente e nã o concerne à
sua natureza153.

Tal frase é decisiva. Hegel está a lembrar, entre outras coisas, que a liberdade nã o
pode ser confundida com a presumida autenticidade da espontaneidade imediata
dos sentimentos. Uma autenticidade que veria, nas leis, apenas a coerçã o e a
violência institucionalizada sob a forma do direito positivo, já que as leis nunca
seriam condizentes com aquilo que Hegel chamou, na Fenomenologia do Espírito,
de “as leis do coraçã o”. Leis estas para as quais o curso do mundo é
necessariamente pervertido. Contra tal hipó stase da autenticidade, para a qual
todo direito é apenas uma forma velada de violência, Hegel quer defender
afirmaçõ es como: “A liberdade é apenas isto, conhecer e querer tais objetos
substanciais universais como o direito e a Lei e produzir uma realidade
(Wirklichkeit) que lhes é conforme : o Estado”154.
Uma afirmaçã o desta natureza é facilmente objeto das piores confusõ es.
“Livre é a vontade que deseja a Lei”: nã o é difícil ouvir, nesta frase orwelliana, a
confissã o de uma filosofia que parece nã o compreender o sentido de
experiências, tã o comuns em nossas sociedades, de dissociaçã o entre direito e
justiça. Pois o que dizer quando estamos diante de leis injustas? E,
principalmente, por que falar isto em um momento no qual o estado prussiano
estava animado pelo ímpeto do Congresso de Viena (1814-1815) e pela
Restauraçã o anti-liberal que visava aplacar de vez a influência dos ideais da
Revoluçã o Francesa? No entanto, devemos salientar um ponto fundamental:
“Nã o existe revoluçã o na histó ria da humanidade que nã o tenha sido apoiada e
celebrada por esse filó sofo que também tem fama de ser um incurá vel homem da
ordem”155, seja a revoluçã o americana, seja a revoluçã o haitiana de Toussaint
L’ouverture, as revoltas da plebe contra os patrícios, a rebeliã o dos escravos sob
o comando de Spartacus, a revolta camponesa na época da reforma ou ainda a
revoluçã o francesa.
Mas Hegel saberá ter palavras duras contra o jacobinismo e o terror
revolucioná rio. Hegel sabe que o terror é o resultado desastroso da primeira
manifestaçã o de um conceito de liberdade que tem no seu bojo o momento da
liberdade negativa enunciada em nome da autenticidade entusiasmada do
sentimento. Ele é a “liberdade absoluta” transformada em fúria da destruição,
pois liberdade que nã o reconhece nenhuma possibilidade de sua
institucionalizaçã o, que vê todo direito como perda da espontaneidade livre do
entusiasmo revolucioná rio e que, por isto, se volta contra tudo que procura
determiná -la, contra todo governo. Como Hegel dirá na Fenomenologia do
Espírito, para esta liberdade absoluta: “O que se chama governo é apenas a facçã o
vitoriosa, e no fato mesmo de ser facçã o, reside a necessidade de sua queda, ou
inversamente, o fato de ser governo o torna facçã o e culpado”156. Afinal, o terror
jacobino nada tem a ver com a simples violência totalitá ria do Estado contra
setores descontentes da sociedade civil. Na verdade, ele foi o movimento
autofá gico de destruiçã o da sociedade e de auto-destruiçã o do Estado, isto até o

153
Idem, par. 3
154
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, p. 82
155
LOSURDO, Domenico, Hegel, Marx e a tradição liberal, São Paulo : Unesp, 1997, p. 155
156
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, vol II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 97.
momento em que os pró prios líderes jacobinos terminaram na guilhotina. O
jacobinismo é a figura reflexiva do terror que se volta contra si mesmo.
No entanto, e isto se esquece muitas vezes, Hegel nã o deixa de salientar
que tal momento negativo da liberdade é um momento necessá rio da histó ria do
Espírito. Para compreender isto, devemos definir melhor o que Hegel entende
por “liberdade negativa”. No pará grafo 5 da sua Filosofia do direito, Hegel faz a
seguinte afirmaçã o:

A vontade contém a) o elemento da pura indeterminidade ou da pura


reflexã o do eu dentro de si, na qual estã o dissolvidas toda restriçã o, todo
conteú do imediatamente aí-presente pela natureza, pelas carências, pelos
desejos e impulsos, ou dados e determinados pelo que quer que seja; a
infinitude irrestrita da abstração absoluta ou universalidade, o puro
pensamento de si mesmo157.

A noçã o de “liberdade negativa”, enquanto primeiro momento da vontade,


aparece pois como possibilidade de me liberar de toda determinidade, ser
absolutamente para si, como vemos no famoso início da dialética do Senhor e do
Escravo. Daí a noçã o de “abstraçã o absoluta”, noçã o que indica a posiçã o de uma
incondicionalidade que aparece como a primeira manifestaçã o da
universalidade. Incondicionalidade que, por sua vez, procura a todo momento
reafirmar sua inadequaçã o à s determinaçõ es postas. Um pouco como se o
jacobinismo fosse a realizaçã o política de um desejo pensado como pura
negatividade. Por isto, a hipó stase desse momento negativo da liberdade é
descrito por Hegel em termos bastantes duros:

É a liberdade do vazio, que, erigida em figura efetiva ou em paixã o, e


permanecendo meramente teó rica, torna-se, no domínio religioso, o
fanatismo da contemplaçã o pura dos hindus, mas, volvendo-se para a
efetividade, torna-se, no domínio político, assim como no religioso, o
fanatismo do destroçamento de toda ordem social subsistente, e a
eliminaçã o dos indivíduos suspeitos a uma determinada ordem, assim
como, o aniquilamento de toda organizaçã o que queira novamente vir à
tona. Somente quando ela destró i algo é que esta vontade negativa tem o
sentimento de sua existência.

No entanto, e este ponto deve ser salientado, Hegel lembra que é exclusivo do
querer humano esta capacidade de abstrair-se de tudo, de transcender toda
determinaçã o posta. Por isto, ele deve insistir que :

Esta liberdade negativa ou esta liberdade do entendimento é unilateral,


mas esta unilateralidade sempre contém em si uma determinaçã o
essencial: portanto, nã o é de se rejeitá -la, mas a deficiência do
entendimento está em que ele ergue uma determinaçã o unilateral à
condiçã o de ú nica e suprema.

De fato, Hegel reconhece que a pura indeterminaçã o da vontade só pode


nos levar a um impasse tanto existencial quanto político. Podemos dizer que nos
157
HEGEL, Grundlilien ..., par. 5
dois casos, nã o se vai além de uma “estetizaçã o da violência”, seja da violência
contra si que se realiza na insatisfaçã o absoluta, na inadequaçã o recorrente de
todo agir e julgar, seja da violência política contra toda e qualquer instituiçã o. No
entanto, um dos problemas maiores da modernidade, ao menos segundo Hegel,
problema este que está na base da sua filosofia do direito, pode ser
compreendido da seguinte forma: como viabilizar o reconhecimento
institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de confrontaçã o
com o que se oferece como indeterminado e negativo? Sendo assim, tudo se
passa como se fosse questã o de pensar a política e a continuidade dos ideais da
Revoluçã o Francesa após o impasse jacobino.
Como veremos, esta é questã o de difícil equaçã o. Toda a complexidade
vem do fato da liberdade dever ser capaz de determinar seus objetos no interior
da vida social, de fazê-los reconhecer, mas sem simplesmente anular o momento
negativo que é imanente ao conceito moderno de liberdade e que encontrou sua
expressã o inicial deformada no terror jacobino. Assim, de uma maneira bastante
peculiar, o Estado que Hegel procura pensar é o Estado pós-revolucionário
constitucional, Estado capaz de levar em conta as exigências de reconhecimento e
de universalidade postas em circulaçã o pela Revoluçã o Francesa.

O formalismo do livre-arbítrio

Mas, por enquanto, voltemos à s críticas feitas por Hegel a modelos


hegemô nicos de liberdade. Como foi dito anteriormente, Hegel também critica
um modelo de liberdade que hipostasia a noçã o de autonomia. Quando
hipostasiada, tal noçã o produz uma idéia de livre-arbítrio que, ao servir de guia
para a açã o política, acaba por levar a uma profunda atomizaçã o social resultante
da elevaçã o da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social.
Tentemos entender melhor este ponto.
Sabemos como a noçã o moderna de autonomia nos aparece,
normalmente, como a capacidade dos sujeitos porem para si mesmos a sua
pró pria Lei moral, transformando-se assim em agentes morais capazes de se
auto-governar. Esta lei que os sujeitos prescrevem para si mesmos a fim de se
afirmarem como autô nomos nã o é, como sabemos, uma lei particular, ligada aos
interesses egoístas da pessoa privada. Antes, ela é incondicional, categó rica e
universal. Lei capaz de abrir as portas para o reconhecimento de um campo
intersubjetivo de validaçã o da conduta racional e que levaria o sujeito a guiar
suas açõ es em direçã o à realizaçã o de uma ligaçã o sistemá tica dos diversos seres
racionais por leis comuns. Para que ela tenha realidade, faz-se necessá rio entã o
que os sujeitos tenham algo mais do que desejos particulares e “patoló gicos”.
Eles precisam ter uma vontade pura que age por amor à universalidade da Lei.
Vontade que se coloca como dever. Pois, através do dever, a consciência pode dar
para si mesma sua pró pria lei, julgar sua pró pria açã o como quem se cinde entre
uma consciência que age e uma consciência que julga. No entanto, lembrará
Hegel, a perpetuaçã o da moralidade sob a forma do dever só pode produzir um
impasse. Pois: “A ‘moral’ nã o é uma confrontaçã o perpétua entre o homem tal
como ele ‘é’ e este mesmo homem tal qual ele ‘deve ser’” 158. Tal confrontaçã o, se
perpetuada, só poderá nos levar à completa desarticulaçã o da capacidade de agir.

158
FLEISCHMANN, Eugène; La philosophie politique de Hegel, Paris : Gallimard, 1992, p. 118
Hegel insiste, em vá rios momentos, que a desarticulaçã o da capacidade de
agir presente em tal concepçã o de autonomia tem um nome: “formalismo”. Neste
contexto, formalismo significa que a fundamentaçã o da açã o moral através da
pura forma do dever nã o é capaz de fornecer um procedimento seguro de
decisã o a respeito do conteú do moral de minhas açõ es. “Fundamentaçã o através
da pura forma do dever” significa definir a natureza moral de minha açã o
basicamente através de sua conformidade a certos procedimentos formais
enunciados em um imperativo categó rico (procedimentos de universalizaçã o
sem contradiçã o, de incondicionalidade e de categoricidade). Hegel nã o acredita
que a fundamentaçã o transcendental de um princípio moral possa garantir a
clarificaçã o de seus modos de aplicaçã o. Ao contrá rio, ele insiste a todo momento
que uma definiçã o meramente formal do dever cai, necessariamente, em uma
tautologia, em uma “identidade sem conteú do”.
Podemos compreender este ponto da seguinte maneira: na verdade, o
dever, embora sendo aparentemente formal, tem um “conteú do”, que é, no fundo,
o nome hegeliano para “particularizaçã o de contextos de açã o”. Maneira de
lembrar que a determinaçã o do sentido da açã o moral nã o é fruto exclusivo de
consideraçõ es procedurais. Ela exige uma articulaçã o complexa referente à
atualizaçã o de contextos particulares de açã o. Pois o dever aparece no interior de
situaçõ es particulares de açã o, situaçõ es nas quais tenho um conteú do definido
(“devo ou nã o roubar esta mercadoria se tenho fome e nã o tenho dinheiro”,
“devo ou nã o largar minha mulher por um outro amor”). Isto demonstra como o
dever é atividade tendo em vista sua realizaçã o na exterioridade. Ele se curva ao
cá lculo de uma pragmática contextualizada e intersubjetivamente estruturada. Só
a partir daí a atividade pode ser capaz de por para si mesma um fim. Isto explica
a definiçã o dada por Hegel de moralidade:

O conceito de moralidade é o relacionar-se interior da vontade a si


mesma. Mas, aqui, nã o há somente uma vontade, senã o que a objetivaçã o
tem simultaneamente dentro de si a determinaçã o de que a vontade
singular se supera na objetivaçã o, e, portanto, precisamente com isso, ao
eliminar-se a determinaçã o da unilateralidade, sã o postas duas vontades e
uma relaçã o positiva das mesmas uma à outra159.

Ou seja, a moralidade só encontra seu fundamento quando é capaz de se


colocar nã o como vontade individual, mas como vontade que traz em si mesmo a
referencia à “vontade dos outros” (termo muito menos claro do que possa
inicialmente parecer). Por isto, Hegel deve dizer que: “A açã o contém as
determinaçõ es indicadas: a) de ser sabida por mim na sua exterioridade como
minha, b) de ser a relaçã o essencial ao conceito como a um dever-ser e c) de ser a
relaçã o essencial à vontade dos outros”.
Por exemplo, Hegel lembra da má xima com aspiraçõ es universais : “Ama
ao pró ximo como a ti mesmo”. No fundo, ela só pode significar, dirá : “Devo amar
o pró ximo com inteligência; um amor nã o inteligente talvez lhe faria mais danos
que o ó dio”. Esta clá usula de relativizaçã o pode parecer anó dina, mas ela acaba
por introduzir um princípio de fragmentaçã o ligado à individualidade e aos
motivos psicoló gicos que interferem na aplicaçã o da má xima. Pois o que pode ser
um “amor inteligente” a nã o ser aquele que me parece como tal a partir das
159
Idem, par. 112
experiências afetivas que tive e do modelo de amor que recebi? Se esse for o
caso, posso ter convicçã o de agir de forma correta, mas tal convicçã o nã o é
expressã o de segurança ontoló gica alguma. Mesmo que a má xima em questã o
seja universal, seu modo de aplicaçã o passará sempre por inflexõ es individuais, o
que nos explica, neste caso, porque experiências afetivas na qual amo o outro
como a mim mesmo sã o tã o prenhes de mal-entendidos. Nada impede o que
aparece a mim como “amor inteligente” ser sentido pelo outro como algo
profundamente danoso, isto devido à natureza diversa de suas experiências
afetivas.
A ú nica maneira de nã o cair em alguma forma de relativismo profundo
aqui seria apelar a uma dimensã o institucional que, por ser intersubjetivamente
partilhada e por estar na base da formaçã o de todas as individualidades,
forneceria a coesã o social necessá ria para prá ticas serem avaliadas de maneira
relativamente segura. O que explica porque Hegel faz um comentá rio
aparentemente temerá rio como: “Mas o bem fazer essencial e inteligente é, em
sua figura mais rica e mais importante, o agir inteligente universal do Estado.
Comparado com esse agir, o agir do indivíduo como indivíduo é, em geral, algo
tã o insignificante que quase nã o vale a pena falar dele”160.
Essa é a maneira hegeliana de dizer que nã o há açã o moral sem a
referência a normas institucionais que reconheço como justas e legítimas por já
se demonstrarem capazes de garantir as condiçõ es sociais para a realizaçã o da
liberdade. Podemos criticar a crença hegeliana de que tais normas encontrariam
sua figura exemplar no Estado moderno, podemos também relativizar o
“princípio de jurisprudência” que me leva a projetar açõ es futuras a partir das
consequências realizadas por açõ es semelhantes no passado, mas isto nã o
invalida a compreensã o hegeliana de que, ao invés de nos referirmos a
normatividades transcendentais, devemos procurar a fundamentaçã o de
julgamentos morais a partir da racionalidade de instituiçõ es sociais.
Este é o pano de fundo para compreender porque Hegel insiste vá rias
vezes que a vontade livre que delibera, nã o delibera sob a forma do arbítrio. Pois
quem diz arbítrio, diz escolha como se nã o houvesse nenhuma determinaçã o
causal exterior à pró pria espontaneidade da decisã o individual. Mas Hegel insiste
que uma escolha feita nestas circunstâ ncias é uma abstraçã o em relaçã o aos
processos efetivos de determinaçã o do sentido da açã o. Ela nã o perceberá quã o
pouco há a escolher quando a situaçã o na qual a açã o se insere nã o é
reflexivamente apreendida. Por isto, ele deve dizer : “visto que somente o
elemento formal da autodeterminaçã o livre é imanente ao arbítrio, e o outro
elemento, em contrapartida, lhe é algo dado, o arbítrio, se é que ele deve ser a
liberdade, pode com certeza ser chamado uma ilusã o”. Em certo sentido, a açã o
moral é aquela que permite a realizaçã o do Estado justo.

O risco da atomização social

Caso nã o ocorra a revelaçã o de uma verdadeira intencionalidade coletiva,


a constituiçã o da autonomia levará à generalizaçã o de uma forma de açã o
incapaz de compreender sistemas de motivaçõ es para além do quadro das
vontades individuais. Por ter uma compreensã o da significaçã o da açã o ligada à
160
HEGEL, Georg F. W. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1991,
parágrafo 425
dinâ mica de auto-certificaçã o de uma consciência solipsista, tal autonomia, para
Hegel, é uma autonomia de indivíduos isolados. Desta forma, as exigências de
autonomia se realizam politicamente como valor mobilizado para a justificativa
da constituiçã o de uma sociedade de indivíduos onde todas as relaçõ es sociais
sã o pensadas sob a forma do contrato: figura maior do acordo negativo (e ú nico
acordo possível) entre vontades individuais. Para Hegel, isto significa uma
sociedade assombrada por um irreversível processo de atomizaçã o social e de
desagregaçã o.
Hegel vê como sintomá tico que autores para os quais a autonomia
individual é a pedra de toque da razã o prá tica só sejam capazes de pensar a
natureza das relaçõ es só cio-políticas a partir da forma do contrato. Ele
compreende que a tendência contratualista parte da situaçã o social atomizada de
indivíduos portadores de interesses que devem ser restringidos pelos interesses
de outros indivíduos. Restriçã o que, normalmente, legitima-se através da ficçã o
jurídica de um contrato social através do qual conservo interesses possíveis de
serem socialmente realizados e abro mã o daqueles que nã o se submetem a esta
condiçã o.
Por outro lado, se o contrato é um momento importante da efetivaçã o da
liberdade, já que a propriedade privada é, por sua vez, um momento necessá rio
da vontade que se exterioriza e quer se fazer reconhecer em sua particularidade,
a generalizaçã o da figura do contrato para a totalidade da vida social é uma
distorçã o e uma patologia. Longe de ser um modelo de coesã o social, a metá fora
do contrato é a evidência de que estamos diante de uma sociedade em processo
de desagregaçã o. O casamento, a relaçã o ao Estado, a relaçã o do pai aos filhos
nã o sã o contratos. Elas sã o relaçõ es de outra natureza, algo muito diferente do
tipo de relaçã o que posso estabelecer com coisas a respeito das quais sou
proprietá rio (como é o caso das relaçõ es contratuais). Quando elas sã o pensadas
sob a forma do contrato, é porque perderam completamente sua
substancialidade. Por nã o saberem se portar no interior da açã o social, por terem
perdido a coesã o social que permite relaçõ es concretas de reconhecimento, os
sujeitos se apegam à compreensã o reificada do comportamento de outros
sujeitos como se tratassem de coisas que podem ser postas em clá usulas de um
contrato.
Hegel deve fazer esta leitura porque compreende o advento das
sociedades modernas de livre-mercado como movimento preso a tal modo de
definir as relaçõ es sociais. Por isto, tratam-se de sociedades assombradas pelo
risco de atomização social. Por “atomizaçã o social” devemos entender um
processo interno à s sociedades civis capitalistas de enfraquecimento da força
normativa do vínculo social e de fortalecimento das demandas de decisã o em
direçã o aos indivíduos. Hegel descreve uma das facetas deste processo da
seguinte forma:

A tendência a buscar dentro de si, voltando-se para o interior, o que é justo


e bom, e a sabê-lo e determiná -lo a partir de si, aparece, enquanto
configuraçã o mais geral na Histó ria (em Só crates, nos Estó icos, etc.), em
épocas em que aquilo que vige na efetividade e nos costumes como justo e
como bom nã o pode satisfazer a uma vontade melhor; quando o mundo
existente da liberdade tornou-se infiel a essa vontade, ela nã o se encontra
mais a si mesma nos deveres vigentes e deve procurar obter a harmonia,
perdida na efetividade, somente na interioridade ideal161.

Hegel sabe que sua época também conhece tal “crise de legitimidade”. Sua
descrença em relaçã o ao fortalecimento do indivíduo como elemento de
contraposiçã o a tal tendência vem, entre outras coisas, da consciência das suas
conseqü ências catastró ficas no plano só cio-econô mico. Pois a atomizaçã o social
nã o implica apenas transferência do pó lo de decisã o sobre a orientaçã o da
conduta para os ombros dos indivíduos. Ela implica também um modo atomizado
de compreensão da dinâmica da vida social, compreensã o da vida social como
justaposiçã o de vontades individuais. Fato que nã o deve nos surpreender já que
modelos de reflexã o sobre a estrutura do sujeito moral servem, normalmente,
como modelos gerais para a compreensã o dos modos de açã o social a partir de
valores e normas. Agimos moralmente da mesma forma que agimos socialmente,
ou seja, utilizando a mesma estrutura de julgamento e orientaçã o.
Sendo assim, podemos dizer que os modelos da autonomia individual e do
livre-arbítrio acabam por produzir uma imagem da sociedade como conjunto de
normas, instituiçõ es e regras capazes de garantir a plena realizaçã o dos sistemas
particulares de interesses que se orientam a partir de sua pró pria visã o sobre a
realizaçã o do bem e das riquezas. Hegel é um dos primeiros a compreender que,
quando transplantado para a esfera das relaçõ es econô micas tal processo
produz, necessariamente, pauperizaçã o e alienaçã o social. Neste ponto,
podemos sentir a importâ ncia da leitura hegeliana dos economistas britâ nicos.
Tal leitura fora fundamental para a compreensã o hegeliana da complexidade
funcional das sociedades modernas.
Esta passagem em direçã o à economia política é justificada. Como Hegel
opera com um conceito de liberdade para o qual a definiçã o das condiçõ es sociais
de sua efetivaçã o é um problema interno à pró pria definiçã o do conceito, ele
deve poder descrever as situaçõ es nas quais o funcionamento da vida social nã o
fornece mais os pressupostos para a realizaçã o as aspiraçõ es, entre outras, da
autonomia individual. Um pressuposto fundamental está relacionado ao
funcionamento da esfera econô mica, base da constituiçã o daquilo que Hegel
entende por sociedade civil. Podemos dizer isto porque, para Hegel, problemas
de redistribuiçã o e de alienaçã o na esfera econô mica do trabalho sã o um setor
decisivo de problemas mais gerais de reconhecimento social.
Neste sentido, por exemplo, processos de pauperizaçã o nã o serã o vistos
por Hegel apenas como problemas de “justiça social”, mas sim como problemas
de condiçõ es de efetivaçã o da liberdade. Pois nã o é possível ser livre sendo
miserá vel. Livres escolhas sã o radicalmente limitadas na pobreza e, por
conseqü ência, na subserviência social. Posso ter a ilusã o de que, mesmo com
restriçõ es, continuo a pensar livremente, a deliberar a partir de meu livre-
arbítrio individual. Um pouco como o estó ico Epiteto, que dizia ser livre mesmo
sendo escravo. No entanto, uma liberdade que se reduziu à condiçã o de puro
pensamento é simplesmente inefetiva, isto no sentido dela determinar em muito
pouco as motivaçõ es para o nosso agir.
Já o jovem Hegel afirmava que, ao procurar a realizaçã o do bem e das
riquezas através da referência a seu pró prio sistema particular de interesses, a
sociedade conhece um processo de multiplicaçã o de necessidades e afirmaçã o
161
HEGEL, ibidem, par. 138
dos interesses. Da mesma forma que as necessidades se desdobram, os meios
para satisfazê-las se multiplicam e se complexificam, criando assim tanto a
riqueza, o refinamento, quanto o desenvolvimento e, principalmente, o
aprofundando a dependência entre os homens. O que leva Hegel a afirmar:
“Enquanto existência real, as necessidades e os meios advém ser para outro
através dos quais as necessidades e o trabalho de cada um é reciprocamente
condicionado”162. Pois meu trabalho advém um meio para a satisfaçã o dos outros,
assim como minha satisfaçã o depende do trabalho dos outros. É a isto que Hegel
chama de “sistema de necessidades”.
No entanto, Hegel insiste que este sistema de necessidades construído
através da mú ltipla dependência dos trabalhos tem como conseqü ência
inelutá vel a divisã o do trabalho. Desde sua juventude, Hegel percebe que o
desenvolvimento das sociedades modernas de livre mercado exige uma
especializaçã o cada vez maior dos trabalhos, fruto da complexificaçã o dos
objetos produzidos e da ampliaçã o da produçã o em larga escala. Hegel sabe que
tal processo leva necessariamente à simplificaçã o e à abstração mecânica na
esfera do trabalho que, por fim, produz a substituiçã o do homem pela má quina,
como vemos no pará grafo 198 dos Princípios da filosofia do direito. Neste sentido,
ele é talvez o primeiro a compreender que a mecanizaçã o e a automatizaçã o sã o
conseqü ências inelutá veis das sociedades modernas. Conseqü ências que
produzem um sofrimento social de alienaçã o devido à dependência dos sujeitos a
um modo de exteriorizaçã o que os mortificam. Ou seja, ao procurar a realizaçã o
do bem e das riquezas através da referência a seu pró prio sistema particular de
interesses, ocorre uma modificaçã o fundamental na estrutura do trabalho como
espaço de reconhecimento.
No entanto, Hegel reconhece outro problema social grave devido ao modo
de organizaçã o do trabalho nas sociedades liberais. Ele está indicado no seguinte
trecho dos Princípios da filosofia do direito:

Quando a sociedade civil nã o se encontra impedida em sua eficá cia, entã o


em si mesma ela realiza uma progressã o de sua população e indústria.
Através da universalização das conexõ es entre os homens devido a suas
necessidades e ao crescimento dos meios de elaboraçã o e transporte
destinados a satisfazê-las, cresce, de um lado, a acumulaçã o de fortunas –
porque se tira o maior proveito desta dupla universalidade. Da mesma
forma, do outro lado, cresce o isolamento e a limitação do trabalho
particular e, com isto, a dependência e a extrema necessidade (Not) da
classe (Klasse) ligada a este trabalho, a qual se vincula a incapacidade ao
sentimento e ao gozo de outras faculdades da sociedade civil, em especial
dos proveitos espirituais163.

O modo de inserçã o no universo do trabalho depende, segundo Hegel, de


uma relaçã o entre capital e talentos que tenho e que sou capaz de desenvolver.
Isto implica nã o apenas entrada desigual no universo do trabalho, mas também
tendência à concentraçã o da circulaçã o de riquezas nas mã os dos que já dispõ em
de riquezas, assim como o consequente aumento da fratura social e da

162
Idem, Grundlinien ..., op. cit., par. 192
163
HEGEL, ibidem, par. 243
desvalorizaçã o cada vez maior do trabalho submetido à divisã o do trabalho. É
neste contexto que aparece a ralé (Pöbel):

A queda de uma grande massa de indivíduos abaixo do nível de um certo


modo de subsistência necessá rio a um membro da sociedade, queda que
conduz à perda do sentimento do direito, de retidã o e honra que se tem
quando se vive através de sua pró pria atividade e trabalho, produz a ralé
e, ao mesmo tempo, a facilidade de concentrar fortunas desproporcionais
em poucas mã os164.

O advento da ralé é um problema central por mostrar os limites das


possibilidades de reconhecimento no interior da sociedade civil. Hegel chega a
afirmar que por mais que a sociedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente
rica para eliminar a pobreza, já que a integraçã o desta massa via assistência
filantró pica implica quebrar a autonomia de quem garante sua subsistência
através do pró prio trabalho, mas o trabalho de todos produzirá necessariamente
crises de sobreproduçã o e desvalorizaçã o do trabalho. Este problema, cuja ú nica
saída será o imperialismo e o colonialismo e a consequente perpetuaçã o de
relaçõ es de dominaçã o e servidã o, tem a força de bloquear a possibilidade da
efetivaçã o de uma forma de vida regulada pelo conceito de liberdade, o que
mostra como problemas de reconhecimento e de redistribuiçã o estã o vinculados
e, para Hegel, nã o podem ser solucionados no interior da estrutura de
reproduçã o social das sociedades liberais. É por isto que Hegel apela ao Estado.

A eticidade e a dupla função do Estado

A resposta que Hegel dará contra estes dois riscos de desagregaçã o da vida social
impulsionados pela hipó stase de modelos de liberdade baseados na autonomia e
a autenticidade passará pelo fortalecimento do Estado. Para que este
fortalecimento seja possível sem que ele implique mera violência, algo destes
dois modelos deve ser conservado.
Por um lado, o Estado deverá dar um objeto à liberdade negativa, dar uma
forma institucional à negaçã o impedindo que os indivíduos se petrifiquem em
determinaçõ es sociais estanques (como “membro de um estamento”,
“representante de um interesse de classe”). Isto será apresentado através das
consideraçõ es hegelianas sobre a guerra. Através da guerra, o Estado completará
um intrincado processo de formaçã o das individualidades através da
internalizaçã o do cará ter formador da experiência da negatividade da morte.
Este é um tema recorrente em Hegel e podemos encontrá -lo, por exemplo, na
Fenomenologia do Espírito, à ocasiã o da compreensã o do confrontar-se com a
morte como ir em direçã o ao fundamento da existência165. Se voltarmos à outro
momento da Fenomenologia, este dedicado à seçã o “Espírito”, encontraremos
colocaçõ es como:

Para nã o deixar que os indivíduos se enraízem e endureçam nesse isolar-


se e que, desta forma, o todo se desagregue e o espírito se evapore, o

164
Idem, par. 244
165
Discuti este ponto em SAFATLE, Vladimir; O amor é mais frio que a morte : negatividade,
infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo, op. cit.
governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu íntimo pelas
guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito à
independência. Quanto aos indivíduos, que afundados nessa rotina e
direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolá vel e à
segurança da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impõ e, deve dar-
lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissoluçã o da forma da
subsistência, o espírito impede o soçobrar do Dasein ético no natural,
preserva o Si de sua consciência e o eleva à liberdade e à força. A essência
negativa se mostra como a potência peculiar da comunidade e como a
força de sua autoconservaçã o166.

Podemos afirmar que, se o governo nã o repousa sobre uma promessa de


paz, é porque o processo de formaçã o, que se iniciou na família, deve animar os
processos de interaçã o social enquanto meios para a realizaçã o da subjetividade
como universalidade desprovida de toda aderência ao Dasein natural, enquanto o
que se realiza através de um trabalho que é confrontaçã o com a fragilizaçã o das
imagens está ticas do mundo.
Notemos que esta guerra da qual fala Hegel nã o é a explosã o de ó dio
resultante da lesã o da propriedade particular ou do dano a mim enquanto
indivíduo particular. A guerra é campo de “sacrifício do singular ao universal
enquanto risco aceito”167. Se na Grécia, tal guerra era, de fato, movimento
presente na vida ética do povo, já que o fazer a guerra era condiçã o exigida de
todo cidadã o, nã o deixa de ser verdade que Hegel concebe aqui o estado como o
que dissolve a segurança e a fixidez das determinaçõ es finitas. A guerra é o nome
do processo que demonstra como a aniquilaçã o do finito é modo de manifestaçã o
de sua essência.
Nã o se trata aqui de fazer a apologia do estado belicista, mas de procurar,
para além de sua enunciaçã o literal, a funçã o efetiva de tais colocaçõ es. De fato, a
hipó tese que gostaria de defender consiste em afirmar que tais colocaçõ es sobre
a guerra dizem muito a respeito da configuraçã o necessá ria de instituiçõ es e
prá ticas sociais que queiram estar à altura das exigências da modernidade. O que
é importante nesta reflexã o sobre a guerra é a compreensã o de que instituiçõ es
que queiram ser capazes de reconhecer sujeitos nã o substanciais devem fundar-
se em prá ticas sociais pensadas a partir de um trabalho que é reconhecimento da
soberania de uma figura da negaçã o cuja manifestaçã o fenomenoló gica pode ser
uma certa morte simbó lica. Trata-se da figura de instituições sociais que não
tenham mais por função identificar sujeitos em identidades e determinações fixas.
Há vá rias formas de se pensar tal processo sem precisar passar por esta apologia
hegeliana da guerra, certamente questioná vel e dificilmente defensá vel, nã o
apenas nas condiçõ es atuais, mas já em sua época. Por isto, para além da
enunciaçã o literal, devemos saber como recuperar tal motivo que, no fundo,
expõ e a relaçã o necessá ria entre negatividade e Estado.
Se o problema das exigências de autenticidade pode ser regulado desta
forma, o problema da autonomia exigirá , por sua vez, um Estado que forneça as
condiçõ es sociais para a autonomia reencontrar-se nos sistemas sociais de
julgamento. Isto nó s vemos no interior das consideraçõ es hegelianas sobre a

166
HEGEL, ibidem, p. 455
167
SOUCHE-DAGUES, Liberté et négativité dans la pensée politique de Hegel, Paris : Vrin, 1997, p.
26.
eticidade. Ela deve fornecer a estrutura institucional para que as aspiraçõ es
individuais de autonomia sejam efetivadas. Tal estrutura engloba, inclusive, a
obrigaçã o estatal de lutar contra a fratura social inerente ao funcionamento da
sociedade civil no interior da dinâ mica capitalista de desenvolvimento. A vida
ética nã o é indiferente à questã o social, à obrigaçã o de institucionalizaçã o de
políticas de combate à pauperizaçã o (consequência que podemos derivar da
Filosofia do direito, mesmo que ela nã o esteja descrita na obra). No entanto,
devemos analisar melhor o tipo de consolidaçã o de costumes e modos de
julgamento que a noçã o de “eticidade” aplicada à vida moderna pode ser capaz
de garantir.
Notemos apenas que o Estado moderno tem uma dupla funçã o
aparentemente contraditó ria. Ele deve acolher a experiência de indeterminaçã o
que habita as individualidades e ele deve fornecer as determinaçõ es necessá rias
para a efetivaçã o da autonomia através da constituiçã o de um conjunto de leis
positivas universalizá veis. Ele fornece um conjunto de regras sociais, assim como
fornece o modo de expressã o daquilo que, nos sujeitos, é refratá rio à
determinaçã o no interior de regras sociais. Ele, ao mesmo tempo, cria instituições
e gere a indeterminação. Para ser mais claro, para Hegel, o Estado é uma
instituiçã o capaz de gerir a indeterminaçã o, de superá -la sem simplesmente
negá -la. O Estado deve realizar o que a sociedade civil nã o é capaz de realizar
(como políticas de redistribuiçã o que permitam dar realidade à s demandas
só cias de reconhecimento) e, principalmente, deve retirar os sujeitos de sua
completa imersã o na mera condiçã o de indivíduos providos de sistemas
particulares de interesses. De uma certa forma, o Estado des-individualiza os
sujeitos. No entanto, esta des-individualizacao é condiçã o para a liberdade, pois é
possibilidade de abertura do sujeito para algo mais do que a forma isolada e
atomizada do indivíduo. Pois Hegel sabe que podemos sofrer por nã o sermos um
indivíduo, ou seja, por nã o termos conseguido nos realizado como
individualidade capaz de se fazer reconhecer no interior da vida social. No
entanto, podemos sofrer também por ser apenas um indivíduo, um sofrimento
que ganha a forma do isolamento, do esvaziamento e incapacidade de se orientar
no interior da açã o social.
Lógicas do reconhecimento
Aula 9

A aula de hoje será dedicada ao conceito de reconhecimento a partir da filosofia


de Marx. A princípio, esta colocaçã o parece inadequada, pois nã o há , de forma
explícita, uma teoria do reconhecimento em Marx. Ou seja, Marx nã o fala
claramente sobre o problema, como vemos em Hegel. No entanto, como gostaria
de defender, o problema do reconhecimento é o horizonte normativo
fundamental da crítica marxista. Podemos fazer uma afirmaçã o desta natureza
porque a reflexã o crítica de Marx tem por horizonte a realizaçã o concreta de
exigências de emancipaçã o social. Neste sentido, a filosofia social de Marx exige
um esclarecimento a respeito do potencial normativo do conceito de liberdade,
assim como a respeito de suas formas de atualizaçã o.
No entanto, sabemos que Marx, ao invés de começar a pensar o problema
a partir de uma reflexã o moral a respeito da liberdade, como faz por exemplo
Kant em sua Crítica da razão prática, parte de um diagnó stico de sofrimento
social. Esta noçã o de diagnó stico de sofrimento social é importante aqui, pois a
filosofia enquanto discurso deverá se transmutar em Marx a fim de receber a
forma de uma mobilizaçã o discursiva tendo em vista garantir as condiçõ es para
uma prá tica de luta efetiva contra o sofrimento social. Podemos falar em
“sofrimento social” porque o fenô meno descrito por Marx bloqueia as condiçõ es
de realizaçã o dos sujeitos enquanto sujeitos livres, produzindo nã o apenas
situaçõ es de injustiça social, mas situaçõ es de limitaçõ es para aspiraçõ es de
auto-realizaçã o. Tais limitaçõ es se expressam em formas variadas de patologias,
como a funcionalizaçã o da personalidade, o esvaziamento, o estranhamento em
relaçã o à pró pria atividade, entre tantos outros.
Sabemos como Marx dá um nome a tal fenô meno de sofrimento social, a
saber, alienaçã o. Há autores que gostariam de restringir as discussõ es de Marx
sobre alienaçã o a primeira fase de seu pensamento, esta que vai até A ideologia
alemã. Tal leitura, no entanto, é equivocada por nã o levar em conta os sistemas
motivacionais que levam à açã o política, mesmo no Marx de maturidade.
A respeito do conceito de alienaçã o, lembremos inicialmente como ele
está presente em Rousseau, isto a partir de um apelo a um fundamento
antropoló gico esquecido na origem. A temá tica do estado de natureza serve para
fornecer uma “etiologia” do sofrimento social e do sentimento de perda de si que
a vida em sociedade implica. Quando a temá tica da alienaçã o aparecer em Hegel,
ela nã o precisará mais fazer apelo a um fundamento antropoló gico bloqueado
pelos processos de desenvolvimento social, como seria o caso em Rousseau. O
fundamento da crítica nã o seria mais dado por um antropologia filosó fica, mas
por uma filosofia da histó ria. Trata-se, na verdade, de denunciar esta perda da
força reguladora do vínculo social em direçã o à progressã o histó rica capaz de
assegurar a institucionalizaçã o de vínculos sociais racionais com força para
instaurar processos de institucionalizaçã o da liberdade.
Este vínculo entre teoria da alienaçã o e filosofia da histó ria estará
presente em Marx. Haverá um processo de desenvolvimento social que será
responsá vel pelo bloqueio nas possibilidade de auto-realizaçã o dos sujeitos.
Haverá um sofrimento produzido por impossibilidades de reconhecimento
social. Este processo, no entanto, nã o será resultante de alguma forma de
desregulaçã o das normas sociais, como se em algum momento a normas sociais
nã o conseguiriam realizar mais a reproduçã o material da vida social em suas
condiçõ es normais. Na verdade, Marx vincula o sofrimento social ao cará ter
paradoxal do pró prio funcionamento normal da normatividade imanente à s
sociedades capitalistas. Lembremos como, em Marx, a alienaçã o nã o está ligada
apenas à espoliaçã o econô mica na esfera do trabalho devido a alguma forma de
troca injusta na qual nã o receberia o valor justo pelo meu trabalho. Primeiro,
Marx lembra, a partir de sua teoria da mais valia, que a espoliaçã o é condiçã o do
funcionamento “justo” ligado ao valor da força de trabalho. Até porque, a mais
valia é fruto da defasagem entre o valor da força de trabalho e do valor
produzido pelo consumo da força de trabalho no interior do processo de
produçã o de mercadorias.
Segundo, Marx lembrará que, devido à divisã o do trabalho e à
predominâ ncia de uma apropriaçã o de si reduzida à condiçã o da possessã o, o
sofrimento de alienaçã o estará ligado ao cará ter restritivo das identidades
sociais, com a assunçã o de si enquanto pessoa funcionalizada e submetida à
ló gica da determinaçã o por propriedades. Ou seja, nã o se trata apenas de um
problema de espoliaçã o, mas de reconhecimento. Neste sentido, é claro que a
normalidade em Marx nã o está presente em uma média aritmética que expressa
a funcionalidade do sistema. Mas há de se insistir também que ela só pode
aparecer através de uma reconciliaçã o que nã o é apenas aperfeiçoamento de um
progresso histó rico, mas que está posta radicalmente fora do ordenamento social
atual. Ou seja, ela está em uma situaçã o fora do tempo presente com suas figuras
de subjetividade, o que explica porque a temá tica da revoluçã o é tã o central no
pensamento de Marx.

Uma teoria da alienação

Proponho entã o analisar a emergência da teoria da alienaçã o no jovem Marx. Isto


implica inicialmente lembrar como o problema da alienaçã o em Marx está
vinculado de forma privilegiada à categoria do trabalho. Tal vínculo se justifica
porque Marx acredita nã o apenas que o trabalho social é forma de criaçã o de
vínculos de mutualismo e solidariedade. Na verdade, o trabalho é forma de uma
certa induçã o material da sensibilidade. Através dos regimes e modos de
trabalho, as formas da sensibilidade sã o constituídas, assim como a forma do
espaço, do tempo, das intensidades e dos ritmos da percepçã o. A repetiçã o
material destas formas, produzida por injunçõ es de sobrevivência social, tem a
força de bloquear os efeitos de qualquer reconfiguraçã o conceitual do campo de
experiências. Por isto, para Marx, toda transformaçã o que nã o passar pela
transformaçã o das condiçõ es de trabalho será meramente abstrata, inefetiva. No
entanto, tal transformaçã o, como gostaria de mostrar nã o está vinculada
exclusivamente a um problema de redistribuiçã o de bens e riquezas.
Comecemos entã o pelo jovem Marx e suas elaboraçõ es presentes nos
Manuscritos econômico-filosóficos. Marx parte da centralidade do paradigma do
trabalho para perguntar se suas condiçõ es sociais atuais concretas podem
permitir que ele realize seu pró prio conceito, a saber, ser a exteriorizaçã o
(Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto capaz de circular
socialmente. Isto lhe levará a uma crítica nã o apenas do trabalho alienado, mas
do que entendemos até agora por trabalho em seu sentido geral. Pois temos três
níveis da crítica em Marx que nã o devemos confundir: a) a espoliaçã o do objeto
trabalhado, b) a espoliaçã o do valor do trabalho e c) a alienaçã o da atividade
humana sob a forma do trabalho que visa a produçã o do valor 168. Os dois
primeiros níveis nos levam a uma defesa da redistribuiçã o igualitá ria de bens e
rendimentos e a um enquadre do problema da alienaçã o no interior de uma
teoria da miséria operá ria. No entanto, o terceiro nível nos coloca em outro eixo
de discussõ es. Marx nã o se contenta em dizer que o objeto trabalhado, o
resultado do trabalho está espoliado do sujeito. Ele lembra que o pró prio ato da
produçã o, a estrutura teleoló gica do trabalho é um forma de alienaçã o por exigir
uma compreensã o do que podemos chamar de matriz disciplinar do trabalho
com sua relaçã o à propriedade privada e à elevaçã o das “relaçõ es por possessã o”
à condiçã o de modelo fundamental de determinaçã o social. Os dois primeiros
níveis sã o mais classicamente absorvidos pela crítica social que vê em Marx,
sobretudo, uma teoria da justiça social. No entanto, o terceiro nível é
seguramente o mais polêmico e original.
Ao começar pela crítica do trabalho assalariado, Marx procura mostrar
como a dissociaçã o desta unidade ainda fundamental na realidade medieval
entre capital, propriedade da terra e trabalho, com a consequente transformaçã o
dos trabalhadores em assalariados, representava um modelo novo de
subserviência, e nã o uma liberaçã o em relaçã o ao sistema de dependências entre
o servo e o senhor da terra. A constituiçã o do trabalhador como sujeito de direito
que pode vender sua força de trabalho no mercado pelo melhor salá rio é, para
Marx, o fundamento de uma espoliaçã o naturalizada pela racionalidade da
economia política. Ele pressupõ e o processo histó rico de dissociar o trabalhador
do capital e da renda da terra, levando-o à obrigaçã o de viver puramente do
trabalho.
No Primeiro Caderno dos Manuscritos, Marx descreve este processo
através do qual o capital, cujo processo de valorizaçã o é a produçã o efetiva da
riqueza nas sociedades capitalistas, sobrepõ e-se à propriedade fundiá ria,
transformando-a em uma mercadoria como as outras Assim: “a terra como terra,
a renda da terra como renda da terra perderam sua qualidade social, distintiva, e
converteram-se em capital e juro que nada dizem, ou antes, que apenas sugam
dinheiro”169. Ao submeter a propriedade fundiá ria à mera condiçã o de
mercadoria inserida em um processo de valorizaçã o, o capital pode se colocar
como poder de governo sobre o trabalho e seus produtos. Daí esta definiçã o do
capital como trabalho armazenado.
O capital governa através da reduçã o de toda qualidade social da terra e
do trabalho à condiçã o de uma abstraçã o geral representada pela forma-
mercadoria. Este mesmo processo de abstraçã o será imposto a um trabalho cada
vez mais maquínico, dissociado e submetido à divisã o do trabalho. Por isto,
trabalho produtor de sofrimento social e de bloqueios de reconhecimento.
Trabalho submetido à condiçã o de ser mero processo de produçã o do valor. Daí
uma afirmaçã o maior como:

168
Tópico muito bem desenvolvido por Moishe Postone ao afirmar: “O trabalho social não é somente o
objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio, o terreno da dominação. A forma não pessoal,
abstrata, ‘objetiva’ de dominação carcterística do capitalismo está aparentemente relacionada à
dominação dos indivíduos por seu trabalho social” (POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação
social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150)
169
MARX, Karl; Manuscritos. …, p. 94
com a valorizaçã o do mundo das coisas, aumenta em proporçã o a
desvalorizaçã o do mundo dos homens. O trabalho nã o produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral170.

A crítica ao trabalho assalariado terá pois dois momentos distintos,


porém complementares. Primeiro, ela é crítica da espoliaçã o econô mica através
do salá rio. Tal crítica está presente principalmente no primeiro capítulo do
Primeiro Caderno. Segundo, ela é crítica da alienaçã o através da submissã o do
trabalho à condiçã o de processo de produçã o do valor. Por sua vez, esta crítica
está presente principalmente no quarto capítulo do Primeiro Caderno.

Espoliação e monopólio

De fato, que o salá rio seja expressã o da espoliaçã o econô mica, eis algo que
Marx defende ao lembrar como o processo de valorizaçã o do Capital pressupõ e
salá rios habituais compatíveis com uma mera existência animal, como cavalos
que recebem apenas o suficiente para poder trabalhar. A produçã o da riqueza
econô mica nã o se traduz em aumento paulatino e constante dos salá rios. Marx
compreende este aparente paradoxo a partir da dinâ mica monopolista inerente
ao desenvolvimento do capitalismo:

Numa sociedade que se encontra em crescente prosperidade, apenas os


mais ricos entre todos podem viver do juro sobre o dinheiro. Todos os
outros obrigam-se, com seu capital, a montar um negó cio ou lançá -lo no
comércio. Desta maneira, a concorrência entre os capitais torna-se,
portanto, maior, a concentraçã o dos capitais torna-se maior, os grandes
capitalistas levam à ruína os pequenos, e uma parte dos capitalistas de
outrora baixa à classe dos trabalhadores, a qual, com esta entrada, sofre,
em parte, novamente uma reduçã o do salá rio e cai numa dependência
ainda maior dos poucos grandes capitalistas171.

Ou seja, o enriquecimento implica concentraçã o de capitais, com o


fortalecimento dos monopó lios e a consequente ruínas dos pequenos
capitalistas, que caem à condiçã o de assalariados. Marx nã o se ilude a respeito da
solidariedade profunda entre concorrência e monopó lio. Por isto, mesmo em
situaçã o de enriquecimento social, devido à pressã o social produzida pelos
processos monopolistas, os salá rios nã o acompanham o crescimento. Na melhor
das hipó teses, diz Marx, eles estacionam. Daí porque ele poderá afirmar que: “a
infelicidade da sociedade é a finalidade da economia nacional” 172 e que a situaçã o
mais rica da sociedade é miséria estacioná ria para os trabalhadores.
Para entender o raciocínio marxista do enriquecimento da sociedade
como miséria estacioná ria para os trabalhadores, devemos lembrar da diferença
entre pobreza absoluta e pobreza relativa. Quando a produçã o total se eleva,

170
Idem, p. 80
171
MARX, Karl; Manuscritos…, pp. 26-27
172
Idem, p. 28
aumentam também as necessidades, demandas e exigências, o que significa que a
pobreza absoluta pode diminuir enquanto a relativa aumentar:

O samoiedo, com seu ó leo de fígado de bacalhau e peixes rançosos, nã o é


pobre porque na sua sociedade fechada todos tem as mesmas
necessidades. Mas num Estado que avança, que no decorrer de mais ou
menos uma década aumenta a sua produçã o total relativamente à
sociedade em um terço, o trabalhador que antes ou depois destes dez
anos ganha a mesma quantia, nã o ficou tã o abastado quanto antes, mas
tornou-se um terço mais carente173.

Isto explica porque, quanto mais o trabalhador produz, menos tem para
consumir. A pobreza relativa implica diminuiçã o gradativa do que consigo
consumir em relaçã o à s exigências renovadas do meu sistema de interesse. Desta
forma, fica claro como Marx compreende a figura do trabalho assalariado como a
perpetuaçã o de uma forma de espoliaçã o e sofrimento. Neste sentido, poderia
parecer que uma saída consistiria na adoçã o de políticas de aumento substancial
dos salá rios, como queria Proudhom com sua tentativa de organizar as lutas
sociais a partir da pauta do aumento ou mesmo da igualdade dos salá rios. Para
Marx, o problema central nã o é apenas os baixos salá rios, mas a reduçã o do
trabalho à forma da mercadoria que se vende, de qualidade que se abstrai. Ou
seja, sua crítica nã o é apenas à espoliaçã o econô mica, mas é uma crítica do
trabalho assalariado enquanto tal, ou seja, uma crítica à ideia de trabalho em
vigor nas sociedades modernas. Isto fica claro quando Marx disser, em uma
afirmaçã o de grande importâ ncia: “o trabalho – nã o apenas nas condiçõ es atuais,
mas também na medida em que, em geral, sua finalidade é a mera ampliaçã o da
riqueza – é pernicioso, funesto”174.
Esta colocaçã o é importante por nos lembrar que a dominaçã o no
trabalho nã o está ligada apenas à impossibilidade dos produtores imediatos
disporem de sua pró pria produçã o e dos produtos por eles gerados. Nã o se trata
apenas de uma questã o de apropriaçã o e dominaçã o consciente, através da
“cooperaçã o histó rico-universal dos indivíduos”; apropriaçã o destes “poderes
que, nascidos da açã o de alguns homens sobre os outros, até agora se impunham
sobre eles, e os dominavam na condiçã o de potências absolutamente
estranhas”175. Pois, se nã o nos perguntarmos sobre a extensã o real de tal
domínio, correremos o risco de deixar dois problemas intocados, a saber, o fato
da produçã o do valor (a “mera ampliaçã o da riqueza”), como forma de riqueza e
de determinaçã o de objetos, permanecer no centro das estruturas de dominaçã o
abstrata176 e, principalmente, o fato da relaçã o sujeito/objeto continuar a ser
pensada sob a forma do pró prio (como expressã o da consciência, seja ela falsa ou
histó rico-universal) e da propriedade (seja ela individual ou comunal, injusta ou
justamente distribuída).
O problema relativo à reflexã o do trabalho acaba por definir-se como um
problema de “redistribuiçã o de propriedade”, redistribuiçã o do que se dispõ e
diante de mim como aquilo que tem, na sua identidade para comigo, sua
173
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31
174
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 30
175
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 61
176
Cf. POSTONE, idem, p. 151
verdadeira essência. Neste sentido, é difícil nã o aceitar que “o sujeito histó rico
seria nesse caso uma versã o coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e
constituindo o mundo por meio do ‘trabalho’” 177. Por isto, ao menos dentro de tal
perspectiva, nã o faria sentido falar do trabalho como categoria de contraposiçã o
ao capitalismo, já que ele estaria organicamente vinculado à s estruturas
disciplinares de formaçã o da natureza utilitá ria das relaçõ es pró prias à
individualidade liberal e seus direitos de propriedade, expressando apenas
amplos processos de reificaçã o.

Gattungsleben

É neste contexto que devemos tentar compreender melhor o sentido de


um conceito central para o jovem Marx, a saber, a noçã o de “vida do gênero”
(Gattungsleben). Este é um conceito maior para compreendermos o sentido do
que Marx entende por emancipaçã o e alienaçã o. A pró pria estrutura do trabalho
como processo de produçã o do valor implica impossibilidade da atividade
humana se colocar como exteriorizaçã o de sua Gattungswesen, de sua essência
enquanto gênero ou de seu ser do gênero. Neste contexto, a reflexividade da
consciência-de-si dá lugar ao tema da objetivaçã o da vida do gênero. O eixo da
definiçã o do conceito de alienaçã o no jovem Marx encontra-se no bloqueio das
possibilidades de exteriorizaçã o e objetivaçã o da essência do gênero ou, ainda,
da vida do gênero. Vamos ver este ponto como mais calma. Lembremos do
seguinte trecho dos Manuscritos econômico-filosóficos:

O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da


espécie a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a
medida de qualquer espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida
inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da
beleza178.

Esta caracterizaçã o do homem como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida
adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a medida de
qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica em relaçã o
à determinaçã o pró pria a toda espécie nas suas relaçõ es de transformaçã o do
meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente ao pró prio
objeto179. Liberado da condiçã o de ser apenas objeto para-um-outro, o objeto
pode ser expressã o daquilo que, no sujeito, nã o se reduz à condiçã o de ser para-
um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
superar a alienaçã o do sujeito. E o que, no sujeito, nã o se reduz a tal condiçã o de
ser para-um-outro, é o que nele nã o se configura sob a forma de espécie alguma,
nã o tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben)
que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de Feuerbach que, ao
procurar estabelecer distinçõ es entre humanidade e animalidade, dirá que:

177
Idem, p. 99
178
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
179
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas nã o como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu pró prio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 180

No entanto, diferente do que encontramos em Aristó teles, o gênero do


qual o homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele nã o
pode constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a
orientaçã o da praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino.
Mas, e há de se salientar isto com toda força, esta monstruosidade de um gênero
que se objetifica sem ser espécie alguma definida, gênero que imediatamente se
determina e que prenuncia a produçã o pró pria aos “indivíduos histó rico-
universais” de A ideologia alemã, nã o é simplesmente a afirmaçã o de que o
homem só age de maneira nã o alienada apenas quando age conscientemente
como “ser social”, ou seja, reconhecendo que sua essência, por nã o ser essência
natural alguma, só poderia ser sua pró pria auto-produçã o, ou seja, seu “ser
social” genérico e historicamente determinado. Se assim fosse, a afirmaçã o da
vida do gênero nã o seria nada mais que uma apropriação reflexiva da
universalidade situada de minhas condiçõ es histó ricas, assim como da
substâ ncia comum à s relaçõ es intersubjetivas que me constituíram e que se
expressa silenciosamente nos objetos que trabalho. O que nos levaria a uma
especularidade muito bem descrita involuntariamente por Feuerbach ao falar,
nã o por acaso, da especificidade da Gattungsleben humana:

“A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria de si


mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é apenas
quando o homem namora sua pró pria forma individual, mas nã o quando
ele admira a forma humana. Ele deve admirá -la; nã o pode conceber
nenhuma forma mais bela, mais sublime que a humana. Certamente, todo
ser ama a si mesmo, a sua essência, e deve amá -la”181.

A vida do gênero é, nesta leitura, o que permitiria ao homem olhar-se no espelho


e nã o ver sua forma individual, mas descobrir a beleza universal da forma
humana, a substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e dificilmente nã o
seria atualmente completada com a pergunta: mas o que dizer se insistíssemos
que, ao contrá rio, o homem é exatamente este ser que se perde ao olhar-se no
espelho, que estranha sua imagem como quem vê algo prestes a se deformar, que
nã o reconhece sua pró pria imagem por nã o ter uma forma essencial que lhe seja
pró pria? O que dizer se aceitarmos que a experiência do espelho é confrontaçã o
180
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35
181
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos assumir
a crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação
da substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que pôs o que
aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p.
101).
com algo do qual nã o nos apropriamos por completo, mas que nos atravessa
produzindo o sentimento de uma profunda impropriedade?
Esta é apenas uma maneira figurada de afirmar que a universalidade que
passa à existência nã o pode existir como mais uma espécie, nã o pode se
determinar tal como se determinam espécies particulares, como se disséssemos
algo como: “existem cavalos, bois, abelhas e ... animais”. Pois nã o estamos diante
de uma universalidade por partilha de atribuição. De certa forma, “animais” só
podem vir à existência através da desarticulaçã o do campo de determinaçõ es
que permite a organizaçã o das diferenças predicá veis responsá veis pela
particularizaçã o dos existentes. Neste sentido, estamos diante de uma
universalidade por excesso em relação ao espaço de manifestação de
particularidades. Esta é outra maneira de dizer que a universalidade a ser
reconhecida não deve ser compreendida como determinação normativa capaz de
definir, por si só, o sentido daquilo que ela subsume, mas como a força de
descentramento da identidade autárquica dos particulares 182. A universalidade é,
neste contexto, apenas a generalizaçã o da impossibilidade do particular ser
idêntico a si mesmo e a transformaçã o desta impossibilidade em processo de
constituiçã o de relaçõ es. Aceitando tal conceito de universalidade, deveremos
dizer que o trabalho que expressa a “vida do gênero” deve ser compreendido
como a fonte inesgotá vel dos possíveis que passa à existência, mas sem nunca
determinar-se por completo em um valor particular de uso totalmente
funcionalizado. Por isto, ela pode impulsionar os objetos trabalhados a uma
processualidade sempre aberta sob a forma de devir contínuo.
Neste sentido, a expressã o laboral de uma vida que é vida do gênero,
Gattungsleben, só poderia se dar como problematizaçã o do objeto trabalhado
enquanto propriedade especular das determinaçõ es formais da consciência,
enquanto aquilo do qual a consciência se apropria por completo no interior de
um plano construtivo. A vida que se expressa como vida do gênero é o que nos
libera das amarras das formas de determinaçã o atual da consciência, de seus
modos de apropriaçã o, sem nos levar a uma universalidade que é apenas a figura
da individualidade universalizada. Pois há de se aceitar a noçã o de que “o comum
nã o é característica do pró prio, mas do impró prio ou, mais drasticamente, do
outro; de um esvaziamento – parcial ou integral – da propriedade em seu
negativo; de uma desapropriaçã o que investe e descentra o sujeito proprietá rio,
forçando-o a sair de si mesmo” 183. Por isto, a vida que se expressa como vida do
gênero é o que há de impró prio em nó s e o que permite ao trabalho aparecer
como expressã o do estranhamento enquanto afeto de relaçã o do sujeito a si.

Propriedade privada e comunismo

A este respeito lembremos de uma distinçã o importante do jovem Marx sobre


duas formas de comunismo. O primeiro é o comunismo primitivo, que Marx
chama de “comunismo rude” e se aproxima das estruturas arcaicas de
propriedade comunal. O segundo é: “a figuraçã o necessá ria e o princípio enérgico

182
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
183
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
do futuro pró ximo”184 capaz de fornecer aquilo que Marx chama de uma
superaçã o positiva da propriedade privada.
Sobre o primeiro, Marx o descreve como uma generalizaçã o de todas as
relaçõ es sociais sob a forma das relaçõ es de propriedade: “o domínio da
propriedade material é tã o grande frente a ele que ele quer aniquilar tudo que
nã o é capaz de ser possuído por todos como propriedade privada” 185. Na verdade,
a relaçã o por propriedade permanece sendo a relaçã o da comunidade com o
mundo das coisas, mesmo que no lugar da propriedade privada tenhamos agora
a propriedade comunal. Uma propriedade comunal que pressupõ e um certo
retorno à simplicidade que é, para Marx, apenas expressã o da negaçã o abstrata
do mundo inteiro da cultura.
Marx chega a afirmar que a comunidade das mulheres, no qual a mulher
advém uma propriedade comunitá ria e comum, seria o segredo deste
comunismo rude:

Da mesma forma que a mulher sai do casamento [uma forma de


propriedade privada exclusiva] e entra na prostituiçã o universal, também
o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetiva do homem,
caminha da relaçã o de casamento exclusivo com o proprietá rio privado
em direçã o à relaçã o de prostituiçã o universal com a comunidade. Este
comunismo – que por toda a parte nega a personalidade do homem – é
precisamente apenas a expressã o consequente da propriedade privada,
que por sua vez é esta negaçã o186.

Desta forma, fica claro como, para Marx, nã o se trata de passar da


propriedade privada à propriedade comunal, mas de abandonar os modelos de
relaçã o (intersubjetiva, entre sujeito e objeto) sob a forma da possessã o. Assim,
aparece uma distinçã o importante entre apropriaçã o (Aneigung) e possessã o
(besitzen) que abre à compreensã o para a verdadeira superaçã o da propriedade
produzida pelo comunismo. No comunismo, as apropriaçõ es nã o sã o possessõ es
e creio que este é um ponto fundamental, a saber, compreender o que sã o
apropriaçõ es que nã o se deixam pensar como possessõ es, ou seja,
estabelecimento de afinidades miméticas com o que nã o se determina como
minha possessã o.
Assim, se no comunismo é possível falar de uma “verdadeira ressurreiçã o
da natureza, do naturalismo realizado do homem e do humanismo da natureza
levado a efeito”187 é porque, no comunismo de Marx, a natureza nã o é mais
compreendida como o que se submete à relaçõ es de posse, nem mesmo de posse
coletiva. No comunismo, circulam objetos que nã o sã o a confirmaçã o do
individualismo possessivo, objetos sã o produzidos que nã o sã o resultantes do
interesse individual, que nã o sã o marcados pelo sentido do ter e pela submissã o
do objeto à funcionalidade da utilidade. Lembremos a este respeito como
“interesse” é a realizaçã o de uma síntese entre as paixõ es e o cá lculo, é a
submissã o da esfera das paixõ es à forma do que pode ser calculado, do que pode
ser pensado sob o prisma utilitá rio.

184
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114
185
Idem, p. 103
186
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104
187
Idem, p, 107
Ao falar desta apropriaçã o que nã o é possessã o, que nã o é submissã o aos
princípios utilitá rios, Marx afirma:

A apropriaçã o sensível da essência e da vida humanas, do ser humano


objetivo, da obra humana para e pelo homem, nã o pode se apreendida
apenas no sentido da fruiçã o imediata, unilateral, nã o somente no sentido
da posse, no sentido do ter. O homem se apropria da sua essência
multilateral de uma maneira multilateral, portanto como um homem total.
Cada uma de suas relaçõ es humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar,
degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim
todos os ó rgã os da sua individualidade, assim como os ó rgã os que sã o
imediatamente em sua forma como ó rgã os comunitá rios, sã o no seu
comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a
apropriaçã o do mesmo, a apropriaçã o da realidade humana; seu
comportamento para com o objeto é o acionamento da realidade humana
(por isso ela é precisamente tã o mú ltipla quanto mú ltiplos sã o as
determinaçõ es essenciais e atividades humanas), eficiência humana e
sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente, apreendido, é uma
auto-fruiçã o do ser humano188.

Ou seja, esta apropriaçã o nã o é submissã o do objeto à unilateralidade da


funçã o, da utilidade e da posse. Ele é a compreensã o do objeto como parte da
realidade humana. Ele nã o é desvelamento de que o objeto nada mais é do que
produçã o humana. Ele é, na verdade, alargamento, do horizonte humano em
direçã o ao que antes era compreendido como nã o humano, como mera
determinaçã o objetiva funcional. Vigora aqui este processo, tã o claramente
presente na dialética do Senhor e do Escravo, de Hegel, de transformaçã o da
relaçã o entre sujeito/objeto em uma relaçã o entre duas consciências. No entanto,
este processo só é possível se o objeto nã o for reduzido à condiçã o de sujeito,
mas se o sujeito se permitir compreender-se internamente mediado pelo objeto.
Neste sentido, quando Marx afirma que o objeto deve se revelar como “objeto
social”, isto implica nã o apenas que o objeto demonstre as relaçõ es sociais e
histó ricas que o constituíram, mas que as relaçõ es sociais e histó ricas se
ampliem para abarcar aquilo que, até entã o, parecia exterior à reflexividade
pró pria à sociedade. Há uma dupla direçã o no processo que quebra a
possibilidade da apropriaçã o da natureza histó rico-social do objeto ser uma
figura materialista da subsunçã o idealista do objeto pelo sujeito.

188
MARX, Karl; idem, p. 108
Lógicas do reconhecimento
Aula 10

Na aula passada, introduzi a discussão a respeito da existência de uma teoria do


reconhecimento em Marx. Vimos como a problemática do reconhecimento é
fundamental para Marx na medida em que sua filosofia é uma filosofia da
emancipação e de uma análise do sofrimento social produzido pelos bloqueios na
realização das demandas de emancipação. A aula passada foi dedicada à compreensão
da relação entre trabalho e reconhecimento. Defendi com vocês a ideia de que Marx
aponta para uma superação da sociedade do trabalho como condição para a realização
de expectativas de reconhecimento e liberdade social. Isto nos levava necessariamente
a uma teoria da superação das relações de trabalho através de uma filosofia da história
vinculada à centralidade do conceito de revolução. Ou seja, a teoria do
reconhecimento que podemos derivar de Marx é uma reflexão sobre a revolução dos
processos de produção na sociedade do trabalho como condição para a realização de
expectativas de reconhecimento. Revolução que, por sua vez, só pode ser realizada
por sujeitos emergentes que Marx chamará de “proletariado”. Pois é o
reconhecimento de nossa condição de proletariado que poderá realizar a emancipação
social almejada para a institucionalização de nossas demandas de liberdade. Neste
sentido, a teoria do reconhecimento em Marx é, imediatamente, uma teoria da
revolução. Na aula de hoje, eu gostaria de discutir melhor este aspecto pouco
explorado do pensamento de Marx.

Crise e revolução

A moderna sociedade burguesa, com suas relações de produção, troca e


propriedade, sociedade que deu surgimento a gigantescos meios de produção e
troca, assemelha-se ao feiticeiro que perdeu o controle dos poderes infernais
que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há mais de uma década a
história da indústria e do comércio é simplesmente a história da revolta das
forças produtivas modernas contra as condições modernas de produção, contra
as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu
domínio. Basta lembrar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente,
ameaçam cada vez mais a sociedade burguesa. Nestas crises, destrói-se grande
parte dos produtos existentes e das forças produtivas desenvolvidas. Irrompe
uma epidemia que, em épocas precedentes, pareceria um absurdo – a epidemia
da superprodução. Repentinamente, a sociedade vê-se momentaneamente de
volta a um estado de barbarismo; é como se a fome ou uma guerra universal
de devastação houvesse suprimido todos os meios de subsistência; o comércio
e a indústria parecem aniquilados. E por que? Porque há demasiada
civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria,
demasiado comércio. As forças produtivas disponíveis já não mais favorecem
as condições da propriedade burguesa; ao contrário, tornaram-se poderosas
demais para essas condições que as entravam; e quando suprimem esses
entraves, desorganizam toda a sociedade, ameaçando a existência da
propriedade burguesa. A sociedade burguesa é muito estreita para conter suas
próprias riquezas. E como a burguesia vence essas crises? De um lado, pela
destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas, do outro, pela
conquista de novos mercados e pela intensa exploração dos antigos. Portanto,
prepara crises mais extensas e mais destrutivas, diminuindo os meios de evita-
las189.

Neste extenso trecho, encontramos sintetizado vários tópicos maiores da teoria


da relação entre crise e revolução em Marx. Primeiro, a ideia de que o
desenvolvimento da burguesia é impulsionado por um ritmo constante de crises cada
vez mais extensas. Como um feiticeiro que não controla os poderes infernais que
invocou, a burguesia amplia sua capacidade produtiva de forma tal a colocar em
contradição contínua as forças produtivas e as relações sociais de produção, ou seja,
as relações de propriedade dominadas pela burguesia. Essa é outra forma de dizer que
o processo de valorização do Capital é marcado por um excesso, o fundamento do
sistema de produção de valor é expressão de uma dissolução contínua de si. Há uma
certa auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de valorização do
Capital, ou seja, há uma auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de sua
atualização. A atualização do fundamento de produção próprio ao capitalismo produz
demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria. Mas
quanto mais produtividade, menos vale o trabalho, mais necessário é aumentar o
tempo de trabalho, maior a intensificação dos regimes de trabalho e a pobreza
relativa. Daí porque a sociedade burguesa é muito estreita para conter suas próprias
riquezas. Só lhe resta então dois caminhos ou a produção contínua das catástrofes,
com a consequente destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas
através das guerras, das crises ou o imperialismo com seu avanço da lógica
monopolista. O capitalismo aparece assim, para Marx e Engels, como um sistema
cujas crises lhe são inerentes, levando-lhe a ser um gestor contínuo de catástrofes e
dominações imperiais. Isto até o momento em que o processo de espoliação chegar a
um nível tal que, mundialmente, aparecer a classe do proletariado em um processo de
interação contínua e de consolidação de prática revolucionária. O advento da figura
“vazia” do proletariado será o correlato da “dissolução” de um mundo 190. Ou seja, o
proletariado é o termo médio que permite a unificação entre crise e revolução. Ele é o
nome da transformação subjetiva necessária para que, de uma crise, saia uma
revolução.
A teoria da revolução assim é um setor de uma teoria mais ampla das crises
imanentes ao capitalismo. Por outro lado, ela é a expressão de uma concepção de
filosofia da história para a qual a história é expressão de uma sequencia de momentos
típicos nos quais ela se universaliza, transformando-se em história mundial. De fato,
Marx e Engels partilham esta característica da filosofia hegeliana da história, para
quem a história de universalização que caminha através da realização do conceito de
liberdade. É este caminho da liberdade que estabelece a diferença entre a história
positiva e a história tal como é objeto da filosofia da história. No entanto, há uma
diferença maior entre Marx e Hegel neste ponto, Para Marx, o caminho da liberdade
não segue em direção à realização do Estado moderno como forma institucional da
vida racional mas, ao contrário, caminha em direção à desconstituição do Estado
moderno em prol de uma associação entre indivíduos histórico-universais livres que
apareceram inicialmente sob a forma de proletários.
Para tanto, faz-se necessário que o advento do proletariado impulsione um
processo de luta de classe que exigirá a organização da massa de despossuídos em
189
MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, p. 39
190
Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, p. 364
classe e sua união em partido comunista. Este processo chegaria a uma “hora
decisiva” na qual mesmo o setor dos ideólogos burgueses compreenderiam
teoricamente o momento histórico em geral. Uma hora decisiva na qual a guerra civil
implícita na sociedade se transformaria em guerra aberta e declarada com a derrubada
violenta da burguesia. Assim: “a passagem ao comunismo seria pois iminente desde
que as formas e contradições da sociedade civil burguesa fossem completamente
desenvolvidas”191.
Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no movimento
operário da época, de uma transformação pela educação. Neste sentido, as Teses
sobre Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem afinal irá educar os
educadores?” e na sua confrontação entre a mudança pela educação e a prática
revolucionária. Por isto, esta fração comunista não “educa” a massa proletária. A
princípio, ela expressa “o movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos
olhos”, ela nomeia o que ocorre através de um nome próprio. Tal colocação é, mais
uma vez, fruto da crença de Marx e Engels em uma expressão imanente do real que
não pode se reduzir a um discurso ideológico. Expressão imanente baseada nas
noções de contradição, de antagonismo, assim como de um diagnóstico que eleva a
alienação a condição de sofrimento social fundamental nas sociedades modernas
ocidentais e a exteriorização do ser do gênero a condição de seu horizonte de
superação.

O fracasso da revolução

No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não
esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão
iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao
bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís
Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só
voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a
partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à
crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da
racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida,
as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de
sujeito revolucionário.
Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a
operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a
uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos
mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma
verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de
podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de
transformações aparentes que visam evitar uma transformação real.
Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de
1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não
havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise
econômica com sua “devastação do comércio e da indústria” 192 que tornou a tirania da
aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da
burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França
entre 1830 e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e
191
BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79
192
MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 42
encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre fevereiro e junho
de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em Paris, o movimento ocorreu
de forma retroativa. Tudo se passa como se as condições necessárias para a revolução
proletária fossem se desenvolver depois da queda da monarquia. Este processo
retroativo não é, no entanto, a fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas
do fracasso, lembremos das palavras de Marx:

O proletariado se lançou em parte, a experimentos doutrinários, bancos de


câmbio e associações de trabalhadores, ou seja, a um movimento em que abriu
mão de revolucionar o velho mundo com o seu grande cabedal de recursos
próprios; ele tentou, antes, consumar a sua redenção pelas costas da sociedade,
de modo privado, no âmbito de suas condições restritas de existência, e por
isso, necessariamente fracassou193.

Ou seja, o fracasso vem do fato do proletariado não assumir sua situação de


sujeito revolucionário, não estar em condições de consumar sua tarefa histórica,
preferindo acreditar em promessas de recondução de um lugar social no interior da
ordem existente. Neste ponto, devemos compreender melhor o que Marx entende por
“proletário”, quais suas características e porque, para Marx, demandas de
emancipação só podem se realizar sob a forma do reconhecimento de si enquanto
proletariado.

Genealogia do proletariado

Façamos inicialmente um recuo no tempo. Conforme definido da Constituição


Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe composta por aqueles
caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade alguma ou por não
terem propriedades suficientes para serem contado como cidadão com direito a voto e
obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de procriar e ter filhos.
Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à condição de reprodutor da
população, os proletários representam o que não se conta. Daí uma colocação
importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa “pessoa prolífica” –
pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem nome, sem ser contada
como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” 194. Até o final do século XVIII,
proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como sinônimo de “nômade”, de
sem lugar.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade
básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos
de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não
são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de
sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da
pobreza”195. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É

193
MARX, Karl; O 18 do brumário, p. 35
194
RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
195
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez, ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou,
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil
mais ou menos oculta na sociedade existente” 196. Daí porque Marx falará, a respeito
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”197.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:

A revolução comunista se dirige contra o tipo anterior de atividade, elimina o


trabalho e suspende a dominação de todas as classes, ao acabar com as
próprias classes já que essa revolução é levada a cabo pela classe a qual a
sociedade não considera como tal, não reconhece como classe e que expressa,
de per se, a dissolução de todas as classes, nacionalidades etc. dentro da
sociedade atual198.

Teremos de entender melhor o que significa dizer que o proletariado expressa


a dissolução de todas as classes, a dissolução do que constitui classes. Inicialmente,
lembremos como tal guerra civil entre proletários e burguesia que leva à revolução é
fruto de uma contradição cujo motor é a própria burguesia. Marx não cansará de
afirmar que a burguesia é uma classe revolucionária: “A burguesia não pode existir
sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as
relações de produção e, com isso, todas as relações sociais” 199. É ela que mostrará
como tudo o que é solido se desmancha no ar. No entanto, a burguesia é uma espécie
de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode
controlar os poderes infernais que invocou”200, ela “produz seus próprios coveiros”201.
Ou seja, sua ação é contraditória porque, no processo de auto-realização de si, a
burguesia produz uma figura que lhe será oposta e que lhe destruirá. Assim, a
burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação
que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da
própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre
sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo.
196
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50
197
Idem, p. 66
198
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98
199
Idem, Manifesto Comunista, p. 43
200
Idem, p. 45
201
Idem, p. 51
Como vimos, tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A
burguesia produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem
grande parte das forças produtivas já criadas. No entanto, tal desordem produzida pela
burguesia e sua escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a
produção involuntária de novas relações que tem em seu germe a forma de outro
mundo:

Apenas esse desenvolvimento universal das forças de produção traz consigo


um intercâmbio universal dos homens em virtude do qual, por um lado, o
fenômeno da massa “despossuída” se produz simultaneamente em todos os
povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das
transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos
histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais202.

A desordem produz um fenômeno universal de despossessão e de intercâmbio. Mas


tal despossessão universal não é apenas um fenômeno negativo, pois ele produz novas
formas de interdependência e de simultaneidade. A burguesia abre o espaço para o
advento de indivíduos histórico-universais caracterizados pela despossessão comum e
pela simultaneidade de tempos até então completamente dispersos. Ela produz as
condições para o advento de uma universalidade concreta que suspenderá e superará o
estado de coisas atual. É assim que ela produz seus próprios coveiros.

A indeterminação social do proletariado

Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos
despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe
formada por “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de
indivíduos locais”203. Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se
necessário uma certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a
fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre
através da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como:

O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua relação com


mulher e crianças não tem mais nada a ver com as relações da família
burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital,
tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha,
retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele
preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses204.

Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema,


mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos
não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de
permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e
uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No
entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como “essa massa indefinida,
desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la

202
Idem, A ideologia alemã, p. 58
203
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
204
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
bohème”205 e que Marx define como “lumpemproletariado” 206. Vale a pena discutir
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin,
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força
revolucionária207.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:

Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa,


rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por
vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das
galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni, batedores de carteira,
prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos de bordel, carregadores,
literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros,
mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de
um lado para outro, que os franceses denominam la bohème208.

Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um
termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente.
Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do
lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a
história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder
se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
205
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
206
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
207
Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e LACLAU, Ernesto; La razón populista,
op. cit.
208
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se
confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida
desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a
afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados
descritos da seguinte forma em A ideologia alemã:

Na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si um círculo


exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões no ramo que
melhor lhe aprouver, a sociedade encarrega de regular a produção universal,
com o que ela torna possível, justamente através disso, que eu possa me
dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa caçar pela parte da manhã,
pescar pela parte da tarde e a noite apascentar o gado, e depois de comer,
criticar, se for o caso conforme meu desejo, sem a necessidade de por isto me
tornar caçador, pescador, pastor ou crítico algum dia209.

Notemos aqui a natureza anti-predicativa do reconhecimento proposto por


Marx. Não me defino como caçador, pescador, pastor ou crítico, embora possa caçar,
pescar ou criticar. Não estou completamente vinculado nem ao tempo originário da
caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de apreensão reflexiva da crítica, embora possa
habitar as temporalidades distintas em uma simultaneidade temporal de várias
camadas. Não limito minha ação nem ao trabalho manual, nem ao trabalho intelectual.
Todas essas negações demonstram como, por não passar completamente nos
predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva algo da dimensão negativa
da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do corpo social.
No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos perguntar
sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade comunista e aquele
diagnóstico a respeito, por exemplo, do desenvolvimento do capitalismo nos EUA
presente nos Grundrisse:

A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma


de sociedade em que os indivíduos passam (übergehen) com facilidade de um
trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles
contingente e por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de
riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos
209
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
em sua particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau
de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade
burguesa – os Estados Unidos210.

Em que pese a mais moderna forma de existência da sociedade burguesa não


ser exatamente uma “sociedade encarregada de regular a produção universal”, assim
como em que pese o primeiro trecho dizer respeito à crítica da divisão do trabalho
enquanto o segundo versa sobre o conceito de trabalho abstrato, a indiferença em
relação ao trabalho determinado parece a mesma tal como descrita na futura sociedade
comunista. A contingência em relação ao tipo determinado de trabalho, a flexibilidade
das atividades concebidas na indiferença da abstração parece, à primeira vista, algo
próximo dos comunistas que caçam, pescam, pastoreiam e fazem crítica literária,
mesmo que ela seja muito mais uma construção ideológica do que uma realidade
efetiva em solo norte-americano. Mas, se for o caso, então será difícil não dizer que a
sociedade comunista apenas realizaria o que as sociedades burguesas mais avançadas
prometem sem, no entanto, serem capazes de cumprir. Como se as promessas da
sociedade burguesa fossem o fundamento normativo da crítica; fundamento que enfím
poderia ser realizado no momento em que a falsa totalidade do “corpo social de
trabalho” fosse abandonada em direção à verdadeira totalidade produzida pela
regulação racional da produção universal.
Mas insistamos em um ponto: o que está em questão no processo histórico
pensado por Marx não é apenas a superação da divisão social do trabalho, nem a
defesa de uma “regulação social da produção”. Mesmo tal divisão pode mostrar-se
obsoleta para o capitalismo, ao menos em suas sociedades mais avançadas; mesmo tal
regulação pode ser feita através de fortes intervenções estatais, como no modelo da
social-democracia escandinava em seu auge. O que está em questão é, como vimos na
aula passada, a liberação do trabalho em relação à produção do valor, em relação à
produção de objetos que sejam apenas o suporte próprio de determinações do valor e
em relação à submisão do tempo ao tempo de produção do valor. Não somente o
vínculo à identidade social produzida pelo trabalho deve absorver uma certa potência
da indeterminação, mas também o objeto produzido, a ação realizada.

Apropriar-se

Insistamos na relação entre novas formas de apropriação e a configuração do


proletariado como essa classe “que expressa, de per si, a dissolução de todas as
classes dentro da sociedade atual”211. A classe do que dissolve todas as classes por
representar “a perda total da humanidade”212, o que não encontra mais figura na
imagem atual do homem. Neste sentido, podemos dizer que, tal como na teoria
hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificasse tal assimilação por ver, em Hegel,
uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua
alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do
fundamento e conservar algo desta indeterminação213. Seu papel de redenção
(Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de
210
MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 58
211
MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
212
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p.
156
213
Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE, Vladimir;
Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes,
2012.
dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito
político é o aparecimento de um “sujeito como vazio”214 que não é, em absoluto,
privado de determinações práticas. Essa manifestação de um vazio em relação às
determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si
só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar
identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
perspectiva da integralidade de suas personalidades, como quer alguns como Axel
Honneth. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a
abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como
categoria identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do
Manifesto Comunista:

Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão


abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, o
modo de apropriação existente até hoje. Os proletários nada tem de seu a
salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da
propriedade privada até aqui existentes215.

Percebamos o caráter paradoxal deste trecho. Os proletários só podem


apoderar-se das forças produtivas abolindo todo modo de apropriação até hoje
existente (lembremos, neste ponto, da discussão sobre a ideia de uma “apropriação
sem possessão” que vimos na aula passada). O modo de apropriação dos proletários é
um modo que não existe até o momento, impensável até agora pois não é simples
passagem da propriedade privada à propriedade coletiva. Ele é apropriação de quem
não tem nada de seu a salvaguardar, de quem não tem nem terá nada que lhe seja
próprio. Tal apropriação não é apenas a destruição da propriedade, mas também a
destruição do próprio. Por esta razão, a luta de classes em Marx não pode ser
compreendida como mera expressão de formas de luta contra a injustiça econômica,
já que ela é também modelo de crítica à tentativa de transformar a individualidade em
horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento social. O que não
poderia ser diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética,
“pessoa” é uma categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade
(dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista já
por filósofos como Hegel como “expressão de desprezo”216 devido à sua natureza
meramente abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade.
Encontramos claramente em Marx esta crítica já presente em Hegel. Lembremos mais
uma vez como Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em larga
medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como:

“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não


prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre
dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do

214
BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF, 2011,
p. 260.
215
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
216
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (…) A aplicação
prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à
propriedade privada”217.

A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de


indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo
poste da cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que,
através da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar.
Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo
sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade. Por
esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria de
povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que
define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de anti-povo,
isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a
provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação constante
de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada. Esta é uma
maneira de aceitar proposições como:

A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmos a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum218.

Neste sentido, a felicidade do conceito forjado por Marx residia em sua


capacidade de sobrepor lógica política e descrição sociológica, permitindo a criação
de uma relação profunda entre trabalhadores realmente existentes (que constituíam
uma importante maioria social) e proletários. No entanto, sustentar tal relação não é
condição necessária para que o conceito marxista de “proletariado” continue a mostrar
sua operatividade. Na situação histórica atual de reconfiguração da sociedade do
trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços outros para a
manifestação de exigências próprias a uma certa ontologia do sujeito pressuposta pela
construção marxista.

Lógicas do reconhecimento
Aula 11

Na aula de hoje, gostaria de apresentar o que poderíamos chamar de “a matriz


francesa” dos debates sobre reconhecimento. Isto implica começar por recuperar
aquele que será o responsá vel pela introduçã o do tema do reconhecimento no
217
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
218
RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée, 1995, p. 34
interior do pensamento francês, a saber, Alexandre Kojève. Esta introduçã o será
marcada pela centralidade do desejo enquanto categoria fundamental de
reconhecimento. Kojève foi, junto com Jean Wahl e Alexandre Koyrè, um dos
responsá veis - no caso, o principal - pela segunda introduçã o do hegelianismo na
França, desenrolada na década de trinta. A primeira introduçã o se deu ainda no
século passado graças ao esforço de Victor Cousin e Augusto Vera. De qualquer
forma, o hegelianismo nã o se impô s no círculo universitá rio francês, que preferia
as vias de um neo-kantismo defensor do primado da filosofia da representaçã o
ou, ainda, o bergsonismo. Como dizia Sartre, em Questão de método, a respeito da
situaçã o da filosofia universitá ria francesa em 1925: “O horror à dialética era tal
que mesmo Hegel nos era desconhecido”219.
Foi necessá rio que o problema da alteridade e a crítica da noçã o de vida
interior tomassem corpo no campo literá rio-filosó fico, principalmente apó s a
Primeira Grande Guerra e a Revoluçã o soviética, para que Hegel viesse
novamente a tona, agora com a Fenomenologia do Espírito na proa. Alexandre
Koyré 220 e Jean Wahl foram os dois pioneiros, o segundo colocando em circulaçã o
uma versã o trá gico-existencialista de Hegel, através de uma aná lise da figura da
consciência infeliz, em 1929221. Mas o verdadeiro catalisador da explosã o
hegeliana à francesa foi Kojève.
Durante os anos 1933-1939 Kojève foi responsá vel por um seminá rio na
É cole Pratique des Hautes Etudes que marcou intelectualmente toda uma nova
geraçã o de pensadores franceses. Bataille, Merleau-Ponty, Raymond Queneau,
Lacan, Raymond Aron. Maurice Blanchot e Pierre Klossowsky foram alguns dos
seus atentos alunos. André Breton também seguia, esporadicamente os
seminá rios e, assim como Sartre, foi por eles influenciado. Creio podemos mesmo
afirmar que: “a época de Lacan (a época de muitos outros: Bataille, Blanchot,
Sartre) foi um tempo kojéveano, quer dizer, uma época hegeliana-
heideggeriana”222. A compreensã o dialética da relaçã o tensional entre ‘eu’ e
‘outro’ que vinha na contramã o da certeza solipsista do cogito, a palavra como
assassinato da coisa, o desejo enquanto pura negatividade ... todos estes foram
temas colocados em circulaçã o por Kojève, através das suas leituras de Hegel.
A leitura kojèveana de Hegel pode ser dividida em dois grandes motivos.
Primeiro, a descriçã o antropoló gica das figuras da Fenomenologia do Espírito, em
especial das figuras do Senhor e do Escravo - cuja dialética será elevada à
condiçã o de chave para a compreensã o do livro. Segundo, a construçã o de uma
espécie de teoria hegeliana da linguagem inspirada na dialética do Conceito.
Kojève transformou a Fenomenologia do Espírito em uma antropologia
filosó fica, vendo na Dialética do Senhor e do Escravo seu momento fundamental.
Segundo Kojève, encontramos, primeiro, a quietude passiva da consciência
solitá ria absorvida pela contemplaçã o do objeto. Neste momento, a consciência
nã o se diferencia do puro Sentimento de si do animal. Absorvida nesta
contemplaçã o de um ser exterior e objetivo chamada de connaissance223, a
consciência se esquece. Quanto mais ela é consciência da coisa menos ela é
consciência de si. É , pois, necessá rio que este mundo sem fissuras seja quebrado
219
SARTRE, Question de méthode, pag. 22.
220
Ver textos sobre Hegel em KOYRÈ, Alexandre; Estudos sobre a história do pensamento filosófico
Forense Universitária: Rio de Janeiro.
221
WAHL, Jean; Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel
222
BORCH-JACOBSEN; Mikkel, Lacan: the absolute master, pag. 4.
223
Em contraposição ao savoir que é o saber de si que, ao mesmo tempo, é saber do objeto.
e a consciência, chamada a si, seja impelida a deixar de falar da coisa e falar dela
mesma. Quer dizer, seja impelida a dizer: ‘Eu’, acedendo à condiçã o de
consciência-de-si. “Compreender o homem pela compreensã o de sua origem, dirá
Kojève, é compreender a origem do Eu revelado pela palavra”224.
Em Kojève, o que impele a consciência a dizer ‘Eu’ é a temporalidade
originá ria: vir-a-ser que engendra a negatividade do Desejo. Quando o homem
prova um desejo ele toma, necessariamente, consciência de si. “O desejo revela-
se sempre como meu desejo, e por revelar o desejo, é necessá rio se servir da
palavra ‘Eu’”225. Aqui, Desejo: “com efeito é apenas uma nada revelado, um vazio
irreal”226 e, como tal, é o ser do sujeito. Nã o se trata do Desejo de um objeto
específico mas, antes, pura Ação transformadora que nega o dado criando um ser
novo. A este respeito, Kojève gostava de dar o exemplo da fome. A fome é o
desejo de transformar, através de uma ação (o ato de comer), a coisa
contemplada, negando-a em sua realidade independente e assimilando seu ser à
mim.
A compreensã o do Desejo como ser do sujeito impede que o homem seja
pensado enquanto Ser que é eternamente idêntico a si mesmo. O homem deve
ser pensado como um nada, um vazio, açã o negadora que nadifica o Ser para
transformá -lo e, neste mesmo movimento, se transformar. Seu verdadeiro Ser
(Sein) é vir-a-ser (Werden) chamado Tempo e Histó ria.
O Desejo, definido como pura negatividade, como desejo de nada que
possa ser nomeado, ou, ainda, como falta-a-ser, só pode encontrar satisfaçã o em
outro Desejo. É só em outro Desejo, em um nã o-ser, que a pura negatividade
pode satisfazer-se. Isto marca a diferença irredutível entre o Desejo humano e
seu congênere animal. O animal deseja o ser e se satisfaz com esta coisa
naturalmente dada. Ele nã o transcende a Natureza abstratamente negada. Já o
homem nã o deseja uma coisa mas, sim, outro Desejo. O homem é aquele que se
alimenta de Desejos. Daí advém o adá gio: “O desejo do homem é o desejo do
outro (ainda com a minú scula)” e, consequentemente, a necessidade do
reconhecimento do Desejo de um pelo outro.
A versão antropológica da ló gica hegeliana do reconhecimento foi levada a
cabo por Kojève nos termos que se seguem. Desejar um desejo é: “querer
substituir a si mesmo pelo valor desejado por este Desejo” 227. Eu quero que o
valor desejado pelo outro seja o valor que represento. Eu quero que o outro
reconheça meu valor, aquilo que sou, como o que ele deseja. De onde percebemos
que este desejo de reconhecimento só pode engendrar uma luta, chamada por
Kojève, de puro prestígio. Luta através da qual a consciência arrisca sua vida
para ser reconhecida enquanto pura negatividade livre de qualquer aderência à
determinidade. Em outras palavras, o sujeito arriscará sua vida bioló gica a fim
de satisfazer seu desejo nã o-bioló gico.
Sabemos que esta luta deve acabar na servidã o de uma das consciências e
nã o na sua morte. Afinal, com a morte de uma das consciências nã o há
reconhecimento. É preciso, entã o, que uma ceda, ou seja, que reconheça sem ser
reconhecida. De fato, uma cederá por temer a morte e se aferrar à vida. Assim,

224
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 11
225
KOJÈVE, Alexandre; op. cit. pag.166.
226
idém, pag. 12
227
KOJÈVE, Alexandre; pag. 14
efetiva-se uma dissimetria na relaçã o entre as duas consciências. Uma reconhece,
outra é reconhecida228.
Aquela que é reconhecida sem reconhecer será chamada de Senhor: o ser
que é somente para-si. Sua relaçã o com o outro é de pura negatividade. Para ele,
o outro nã o tem essência alguma. O Senhor representa o momento da reflexã o-
em-si, o momento do Gozo da identidade imediata consigo mesmo. Aquela
consciência que reconhece sem ser reconhecida é o Escravo: o ser em-si, ou seja,
o lado da objetividade que encontra sua determinidade no outro. O Escravo está
retido na coisidade, na vida, no ser-para-um-outro. Logo, sua essência lhe
aparece como estando em um mais-além de si mesmo. Ele nã o tem
essencialidade nenhuma e, por isto, representa o momento da reflexã o-no-Outro.
O fim desta dialética nó s conhecemos. Por um lado, o Senhor vive em um
impasse existencial pois só é reconhecido por uma consciência desprovida de
essencialidade. Seu reconhecimento é uma ilusã o e sua liberdade é fundada em
um impasse229. Mas por outro lado, ao temer a morte submetendo-se ao Senhor, o
Escravo provou a angú stia do Nada. “Ele se viu como nada, ele compreendeu que
toda a sua existência era apenas uma morte ‘superada’, ‘suprimida’
(aufgehoben)”230. Só ele chegou à verdade do Ser ao compreender que o desejo
de ser pura negatividade, pura abstraçã o de si, só se realiza na morte. Ele
desvelou a essência do ser como ser-para-a-morte. Pois: “‘o ser verdadeiro do
Homem é, em ú ltima aná lise, sua morte enquanto fenô meno consciente”231.
No caso de Kojève o problema é como satisfazer este Desejo que só se
realiza na morte sem apelar para o suicídio (que nã o seria uma forma de
satisfaçã o). Como o infinito da absoluta liberdade que nega toda determinidade
pode reconciliar-se com o finito e, enfim, aparecer? Em termos kojèveanos: como
o homem pode tornar-se Deus e, assim, ser Sá bio alcançando o Saber Absoluto? A
resposta deve ser procurada do lado do Escravo. Através das vias do Trabalho, o
Escravo alcança a verdadeira liberdade. É verdade que só o Trabalho nã o liberta
mas, transformando o Mundo, negando a coisa dada: “o Escravo se transforma e
cria assim as condiçõ es objetivas novas que lhe permitirã o retomar a Luta
libertadora pelo reconhecimento que ele, em um primeiro momento, recusou por
medo da morte”232. Trabalhando, o Escravo dá forma objetiva à pura
negatividade que se manifestou nele através do medo da morte. Por isto, em
Hegel o trabalho é desejo refreado, desejo que forma.
Se concordarmos com Kojève a respeito da similitude estrutural entre
Trabalho e Discurso podemos chegar à conclusã o final. A astú cia da Razã o abre
as portas para que a consciência seja consciência-de-si capaz de unificar saber de
si e saber do mundo através de um Discurso que é a pró pria revelaçã o-do-ser-
pela-palavra de forma completa e adequada. Uma revelaçã o que é a apresentaçã o

228
Descombes têm uma boa ilustração do impasse lógico originado pela introdução do problema da
alteridade na filosofia francesa contemporânea: “Nova versão da narrativa do encontro de Sexta-Feira
por Robinson Crusoé, a fenomenologia do outro não cessa de apresentar as múltiplas faces da
contradição: o outro é para mim um fenômeno, mas eu sou também um fenômeno para ele.
Manifestamente, um de nós está sobrando no papel de sujeito e deverá se contentar em ser, para si-
mesmo, o que ele é para o outro” DESCOMBES, Vincent; Le même et l’autre, pag. 33.
229
Não é por outra razão que a dialética do reconhecimento deve terminar em uma sociedade sem
Senhores e Escravos. O que significa dizer: em uma sociedade situada no fim da História.
230
KOJÈVE,Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 175
231
idém, pag. 566.
232
idém; pag. 32
do homem como ser-para-a-morte233. Em Kojève a idéia de ser-para-a-morte está
profundamente ligada à noçã o do homem enquanto vir-a-ser. Para o ser-
natural, idêntico a si mesmo e está tico, toda mudança radical é sempre imposta
de fora e significa sua aniquilaçã o. O ser humano, ao contrá rio, pode transcender
a si mesmo e vir a ser um ser-Outro sem, com isto, deixar de ser o que é, ou seja,
ser humano. Por isto, Kojève pode afirmar que, enquanto para o animal, a causa
de sua morte é externa, para o homem ela lhe é interna. Ele mesmo é a causa de
sua morte por ser vir-a-ser e aniquilaçã o de sua natureza dada. Conclusã o: o
homem é a doença mortal do animal.
No momento em que o homem se conscientiza de sua finitude absoluta,
abandonando a ideia de um mais-além e tomando a palavra de um Discurso que
é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se conserva”, ele pode
satisfazer-se. Ele pode enfim alcançar a condiçã o de Sá bio portador do Saber
Absoluto, Sá bio consciente de si por ser capaz de “encarar o negativo e demorar-
se junto dele”234. A luta entre Senhor e Escravo cessa e a Histó ria, entã o, encontra
seu fim: “Assim, Saber Absoluto ou Sabedoria e aceitaçã o consciente da morte,
compreendida como nadificaçã o completa e definitiva, sã o a mesma coisa”235.
O fim da Histó ria e das lutas de dominaçã o e servidã o marcaria o advento
do Estado Universal homogêneo do qual o Sá bio seria cidadã o. Como o Discurso
pode enunciar a ú ltima palavra e revelar o Ser nã o há mais necessidade da açã o
negadora do homem. O Sá bio pode, entã o, dedicar-se ao cultivo do snobismo
através da arte, do jogo, do amor etc. Aqui, para além dos enganos da satisfaçã o
animal do desejo ilustrada na destruiçã o infinita ruim do consumo, a verdadeira
negatividade encontra satisfaçã o nas representaçõ es formalizadas e
teatralizadas do sujeito. Ela deleita-se na artificialidade leve das açõ es gratuitas e
sem finalidade. Se a Histó ria nã o fala mais, entã o o Sá bio fabrica, ele mesmo, a
negatividade gratuita.
Anos depois de ministrar seus seminá rios, já como membro do alto
escalã o do corpo diplomá tico francês, Kojève encontrará a melhor configuraçã o
desta subjetividade pó s-histó rica no modo de vida japonês. A estilizaçã o
presente na vida cotidiana japonesa através das figuras da cerimô nia do chá , do
ikebana, dos bonsaïs, das gueixas era, aos olhos de Kojève, a pró pria
democratizaçã o do snobismo. “O Japã o é um país com oitenta milhõ es de snobs”.
Daí, a conclusã o inevitá vel: “se o humano se funda sobre a negatividade, o fim do
discurso da histó ria oferece duas vias, japonisar o Ocidente ou americanisar o
Japão, quer dizer, fazer amor de uma forma natural ou à maneira de macacos”236.

Como assassinar coisas com palavras

A leitura kojèveana da ló gica do conceito é uma das partes mais


engenhosas da sua interpretaçã o de Hegel. Kojève, ao se perguntar sobre em que
consistiria o Saber Absoluto, havia concluído: o Saber Absoluto coincide com a
revelaçã o positiva e completa do Ser e do Real pelo Discurso. Uma revelaçã o que
é a apresentaçã o do homem como ser-para-a-morte. Dirá Kojève: “É em se
233
Cf. KOJÈVE, Alexandre. Idém, pag. 553.
234
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, pag. 38.
235
idém, pg. 540.
236
KOJÈVE, Alexandre; Entrevista para Quinzaine littéraire 01/07/68 in LABARRIÈRE, Pierre-Jean
et JARCZYK,Gwendoline; De Kojève à Hegel, pag. 100.
resignando à morte, em revelando-a por seu discurso, que o Homem advém,
finalmente, ao Saber Absoluto, ou à Sabedoria, fechando, assim, a Histó ria”237.
Mas tal Discurso capaz de revelar o Ser é engendrado através da negaçã o do
mundo naturalmente dado; pois: “quando se cria o conceito de uma entidade
real, nó s a arrancamos de seu hic e nunc [aqui e agora]. O conceito de uma coisa
é essa coisa mesma arrancada de seu aqui e agora dados” 238. É ao negar este dado
particular que se acede à universalidade do conceito, ú nica dimensã o portadora
de sentido. Pois o universal é a negaçã o do particular enquanto particular. Como
nos lembra Kojève: “Se quisermos transformar uma entidade concreta ( =
particular) em conceito ( = universal) , em ‘noçã o geral’, é necessá rio arrancá -la
do hic e nunc de sua existência empírica (este cã o está aqui e agora, mas o
conceito ‘este cã o’ está ‘em todo o lugar’ e ‘sempre’)239. Por isto: “a compreensã o
conceitual da realidade empírica equivale a um assassinato”240.
O conceito constró i uma identidade na diferença na medida em que nega
a imediaticidade da coisa mostrando como ela é, desde sempre, pura mediaçã o.
Daí a conclusã o: “o conceito é em si mesmo esta morte que é vida, já que ele é
essencialmente vir-a-ser-outro, quer dizer, assassinar-se a si-mesmo em sua
imediaticidade, de forma que ele acede por aí à sua expressã o verdadeira, à sua
universalidade” 241.
Mas o conceito só é morte que é vida porque o homem nada mais é do que
negatividade destruidora encarnada. É ele que arranca a coisa de seu aqui e
agora, negando sua faticidade, e criando o conceito. Desta forma, a palavra
lembra ao homem que ele é pura negatividade. A palavra plena, reveladora do
Ser, é aquela que confessa, ao mesmo tempo, ser a assassina da coisa e o á libi da
nadificaçã o do homem. A conclusã o de Kojève nã o podia ser diferente: “O
homem de Hegel é o Nada (Nicht) que nadifica o Ser-dado existente como
Mundo, e que nadifica a si mesmo (enquanto tempo histó rico ou Histó ria)
através da nadificaçã o do dado”242.
Neste ponto, faz-se necessá rio levantar uma distinçã o importante. Nã o se
trata de afirmar que a nomeaçã o anula uma pretensa riqueza concreta do
particular em prol da sua transformaçã o em um universal abstrato. Se assim
fosse, tudo se passaria como se existisse uma espécie de domínio do inefável
depositado em um para-além da nossa linguagem cotidiana. Nesta perspectiva de
interpretaçã o, a universalidade abstrata da palavra seria sempre ultrapassada
pela riqueza das determinaçõ es particulares da Coisa mesma. O advento da
linguagem inauguraria a perda intransponível da imanência. Daí a conclusã o: no
domínio da linguagem cotidiana, é o ser que se esvairia, recusando qualquer
tentativa de nomeaçã o. É o ser que pediria silêncio. É a Verdade que recusar-se-
ia a subjugar-se à palavra; da mesma forma como o desejo é aquilo que se recusa
a ser nomeado. Estaríamos condenados a viver em um mundo sustentado por
palavras vazias. Palavras que nã o revelam a luminosidade do ser. Estaríamos
condenados ao silêncio.
237
KOJÈVE, Alexandre; Introduction à la lecture de Hegel, pag. 540)
238
KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 452
239
idém, pag. 564
240
idém, pag. 373.
241
LABARRIÈRE, Pierre-Jean et JARCZYK, Gwedoline: Hegeliana, pag. 55. Esta citação é
interessante por vir de autores de uma tradição totalmente anti-kojèveana e, mesmo assim, convergir
com as proposições deste.
242
KOJÈVE, Alexandre; ILH, pag. 574.
Como vimos, esta nã o é exatamente a conclusã o de Kojève. A palavra que
revela o Ser chega no momento em que o homem se conscientiza de sua finitude
absoluta, abandonando a ideia de um mais-além, de um inefável, e toma a letra de
um Discurso que é morte encarnada, que é “vida que suporta a morte e nela se
conserva”. É neste momento que a infinitude pode ser revelada. Em Hegel, a
infinitude verdadeira é caracterizada por ser a negaçã o absoluta de toda
determinidade finita. Kojève deu, à esta infinitude, a figura de um Desejo que é
pura negatividade capaz de negar toda determinidade.
Todo o problema consiste em como Gozar a satisfaçã o de um Desejo que
só se realiza na morte. Como perpetuar a pura abstraçã o de si sem aniquilar-se
definitivamente? No fundo, trata-se de uma espécie de versão antropogênica para
o clá ssico problema do modo de aparecimento da infinitude, sendo que aparecer
só pode significar ‘ser representada em uma determinaçã o finita’243. A soluçã o
kojèveana para o problema da apresentação do infinito será encontrada no
momento em que o sujeito abrir mã o desse Gozo, que é em si impossível já que só
se realiza na aniquilaçã o absoluta da morte, para alcançá -lo na forma invertida
de uma espécie de morte simbolizada e sempre presentificada. Lembremo-nos
da afirmaçã o de Alexandre, o ser verdadeiro do homem só pode ser sua morte
enquanto fenômeno consciente.

243
Vale a pena notar que se trata de um problema estruturalmente muito semelhante àquele que anima a
luta de vida ou morte na Dialética do Senhor e do Escravo tal como Hegel a descreve. Tanto é assim
que o encontramos a afirmar que: “Porém a apresentação de si como pura abstração da consciência-de-
si consiste em mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que não
está vinculado a nenhum ser-aí determinado, nem à singularidade universal do ser-aí em geral, nem à
vida”(Cf. HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do espírito, pag. 128). O problema aqui consiste em saber
como a pura negatividade pode encarnar-se na determinidade, ou seja, como a consciência pode ter a
experiência do estar-aí do puro Eu. Problema similar àquele apresentado por Lacan através da noção de
palavra plena..
Lógicas do reconhecimento
Aula 12

Na aula de hoje, gostaria de introduzir a teoria do reconhecimento de Jacques


Lacan. Esta teoria, desenvolvida no interior de uma reflexã o clínica a respeito das
modalidades de tratamento do sofrimento psíquico, baseia-se na compreensã o
das formas clínicas da neurose, da psicose e da perversã o como deficits de
reconhecimento do desejo. Por isto, a racionalidade da praxis clínica será
reconstruída a partir de uma dialética do reconhecimento. Tentemos,
inicialmente, compreender como se configura tal dialética.

Psicanálise como dialética

“A psicaná lise é uma experiência dialética”244. Enunciada em 1953, esta


proposiçã o resumia o programa de racionalidade analítica que sustentava a
experiência lacaniana. Sabemos que, nesta mesma época, Lacan procurava
fundar a racionalidade da praxis analítica através do paradigma da
intersubjetividade. Tal decisã o era o motor do projeto lacaniano de retorno a
Freud. Assim, em 1953, a ocasiã o do início de tal retorno, Lacan enuncia as
condiçõ es necessá rias para a fundamentaçã o da objetividade analítica. Ele dirá :

A psicanálise só fornecerá os fundamentos científicos à sua teoria e à sua


técnica ao formalizar de maneira adequada essas dimensões essenciais de
sua experiência que são, com a teoria histórica do símbolo, a lógica
intersubjetiva e a temporalidade do sujeito.245

Estamos diante do resultado de uma longa trajetó ria de refundaçã o da


metapsicologia e da praxis analítica. Resultado que indicava um duplo programa
latente: o desenvolvimento das conseqü ências da articulaçã o estrutural do
universo simbó lico e a formalizaçã o da reflexividade intersubjetiva. Eis o ponto
de chegada de um amplo projeto de determinaçã o dos pressupostos gerais da
objetividade pró pria aos fenômenos subjetivos no qual Lacan se engajara durante
vinte anos. Projeto já presenta na sua tese de doutorado, de 1932, sob a forma da
enunciaçã o de uma ciência da personalidade de matriz inicialmente politzeriana
cujas aspiraçõ es serã o transferidas para a reformulaçã o lacaniana da psicaná lise.
A utilizaçã o clínica do campo intersubjetivo podia aparecer como espaço
privilegiado de determinaçã o do regime de objetividade pró prio à subjetividade
porque ela impediria a psicaná lise de adotar uma perspectiva materialista
reducionista e de coisificar os fenô menos subjetivos. Como Lacan dirá vá rias
vezes, a psicaná lise marca o retorno do sujeito no interior do discurso da ciência.
Mas: “Só há sujeito para um outro sujeito” 246 e tratava-se de pensar a
racionalidade analítica a partir de tal reflexividade. Assim, ao mesmo tempo em
que via na psicaná lise uma experiência dialética, Lacan podia afirmar que ele era
também : “a experiência intersubjetiva onde o desejo se faz reconhecer”247.

244
LACAN, E., p. 216
245
LACAN, E, p. 289
246
LACAN, S VI, sessão do 13/05/59
247
LACAN, E. p. 279
A realizaçã o intersubjetiva do desejo, ou seja, a reflexividade pró pria ao
reconhecimento do desejo do sujeito pelo Outro apresentava-se como a essência
da cura analítica. Tratava-se da possibilidade de assunçã o do desejo do sujeito na
primeira pessoa do singular no interior de um campo lingü ístico
intersubjetivamente partilhado. De onde se seguia a afirmaçã o: “O sujeito
começa a aná lise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem falar de si.
Quando ele for capaz de falar de si a você, a aná lise estará terminada”248.
Percebemos aqui que, para Lacan nos anos cinquenta, dialética, diá logo,
intersubjetividade e reconhecimento eram termos convergentes. Na verdade, a
dialética nomearia a estrutura ló gica do diá logo intersubjetivo que opera na
aná lise. Um diá logo particular já que seria capaz de produzir o reconhecimento
do desejo. A ló gica dialética ficava assim reduzida a formalizaçã o de relaçõ es
intersubjetivas pró prias a uma modalidade muito específica de diá logo chamada
à s vezes por Lacan de : “maiêutica analítica”249.
Esta maneira de articular dialética e intersubjetividade levou Lacan a
aproximar dialética hegeliana e dialética platô nica a fim de falar da “dialética da
consciência de si, tal como ela se realiza de Só crates até Hegel”, isto contra a
opiniã o do pró prio Hegel250. É claro que tal operaçã o levanta vá rias questõ es,
sendo que a maior delas é: estaríamos diante de um retorno da dialética a sua
matriz dialó gica ? De fato, Lacan nã o parece temer tal retorno já que afirma :

A psicanálise é uma dialética, aquilo que Montaigne, em seu livro III,


capítulo VIII, chama de ‘arte de conferir’. A arte de conferir de Sócrates no
Menão consiste em ensinar o escravo a dar o verdadeiro sentido à sua
própria palavra. Esta arte é a mesma em Hegel251.

Neste sentido, Lacan nã o fazia outra coisa que seguir a perspectiva de


leitura do hegelianismo francês de sua época. Pois era Hyppolite que
perguntava : “O que significa, originariamente, o termo ‘dialética’ a nã o ser a arte
da discussã o e do diá logo?”252.
Lembremos que o hegelianismo francês da primeira metade do século XX
– meio do qual Lacan saiu – procurou colocar em evidência a estrutura linguística
intersubjetiva que estaria na base da formaçã o do cará ter relacional da
consciência-de-si. Até um certo ponto para Kojève, mas principalmente para
Hyppolite, a dialética da identidade e da diferença se desenvolverá no campo
lingü ístico do reconhecimento intersubjetivo : “A ú nica possibilidade de resolver
a determinaçã o opaca na transparência do universal, de desatar o nó ”, dirá
Hyppolite, “é de comunicar através da linguagem, de aceitar o diá logo”253; até
porque : “A linguagem diz as coisas, mas ela diz também o eu que fala e
estabelece a comunicaçã o entre os diversos eu, ela é o instrumento universal de
reconhecimento mú tuo”254.
248
LACAN; E, p. 373
249
LACAN, E, p. 109.
250
LACAN, E., p. 292. Lacan faz tal aproximação sem levar em conta a afirmação de Hegel sobre a
maiêutica socrática: "A dialética que visa dissolver (aufzulösen) o particular para produzir o universal
não é ainda a verdadeira dialética" (HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, 19/64).
251
LACAN, S I, p. 317.
252
HYPPOLITE, Logique et existence, Paris: PUF, p. 12
253
HYPPOLITE, idem, p. 23
254
ibidem, p.11.
Esta compreensã o da dialética como diá logo capaz de dissolver a
opacidade do particular através do reconhecimento intersubjetivo era a chave
que Hyppolite usava para aproximar psicaná lise e fenomenologia hegeliana.
Assim, ele falará de uma função de inconsciência da consciência que aproximaria
o inconsciente freudiano e a estrutura de desconhecimentos, fundamento do
movimento pró prio a Verneinung. Com tal estratégia, ele podia afirmar que :
“desconhecer nã o é nã o conhecer. Desconhecer é conhecer para poder
reconhecer e para poder dizer um dia : eu sempre soube” 255. A opacidade do
inconsciente seria anulada através de uma palavra que reconhece um saber
recalcado e esquecido. A dialética aqui é convergente por nã o reconhecer
nenhum limite a operaçõ es de conceitualizaçã o e de simbolizaçã o pró prias ao
saber da consciência. Aqui, como será posteriormente o caso em Habermas e em
Ricoeur, a interpretação analítica aparece como uma auto-reflexão que opera
através de processos de rememoração256.

Dora e suas inversões

Um exemplo privilegiado da maneira com que Lacan pensa os usos clínicos da dialé tica do reconhecimento é dado neste
momento pela sua leitura do caso Dora, de Freud.
O motor da interpretaçã o é dado por inversõ es da palavra do paciente. O analista procura mostrar o que o
paciente desconhece, ou seja, o que ele pressupõ e sem poder pô r. Neste sentido, a interlocuçã o analítica pode permitir ao
sujeito receber sua pró pria mensagem de uma maneira invertida. O que nã o é outra coisa que a utilizaçã o clínica da
fó rmula : "na linguagem, nossa mensagem nos vem do Outro sob uma forma invertida" 257.
Esse processo aparece no caso Dora sob a forma de uma sucessã o de três inversões dialéticas mas cuja ú ltima
nã o teria sido elaborada por Freud devido à ausê ncia de uma interpretaçã o capaz de levar Dora a reconhecer o valor do
que lhe aparecia como objeto de seu desejo. Vejamos de perto em que consistiam tais inversõ es e até onde elas podem
nos levar.
Dora era uma histé rica levada a Freud devido a uma intençã o de suicídio seguida de um desmaio. Ela
apresentava também sintomas de depressã o e alguns sintomas de "conversã o" motivados pelo desgosto do gozo sexual.
Um desgosto resultante do que Freud chamava de inversão do afeto (Affektverkehrung).
Sua aná lise se coloca inicialmente sob o signo da reivindicaçã o dirigida ao pai. Ela reclama que o amor de seu
pai lhe fora roubado pela ligaçã o deste com uma amante, a Sra. K. Como em uma espé cie de troca, ele a ofereceu à s
assiduidades do marido da amante, o Sr. K. A primeira inversão consistirá em mostrar como o sujeito desconhece (no
sentido de denegar) que esta configuraçã o do estado do mundo dos objetos de seu desejo é suportada e pressuposta por
seu pró prio desejo. O sujeito coloca como limite uma diferença exterior que, na verdade, é  : "a manifestaçã o mesma de seu
ser atual"258. Dora deve pois se reconhecer naquilo que ela nega como absolutamente estrangeiro e fora de seu desejo.
Neste sentido, o primeiro papel da interpretaçã o analítica consistiria em permitir ao sujeito internalizar de maneira
reflexiva uma diferença interna que lhe apareceu inicialmente como um limite externo. E aqui Lacan pensa sobretudo em
afirmaçõ es freudianas como : "Ela tinha razã o : seu pai nã o queria levar em conta o comportamento do Sr. K em relaçã o à
sua filha, isto a fim de nã o ser incomodado na sua relaçã o com a Sra. K. Mas ela havia feito exatamente a mesma coisa. Ela
havia sido cú mplice desta relaçã o e tinha descartado todos os índices que testemunhavam sua verdadeira natureza"259.
Tal relaçã o de cumplicidade a respeito de um estado de coisas cujo motor primeiro é o desejo do pai revela
como o desejo de Dora estaria vinculado, de maneira constitutiva, ao desejo do Outro paterno. É em torno deste desejo
que gira todo o drama. A primeira inversã o leva pois ao desvelamento de uma relaçã o edípica constituída pela
identificaçã o paterna.
Tal desvelamento permitirá a dissoluçã o de uma parte significativa dos sintomas ditos de conversã o. Sintomas
ligados à oralidade (acesso de tosse, dipné ia, asma nervosa, afonia) que revelam a inscriçã o, no corpo sexuado, de um
modo de identificaçã o e de demanda em relaçã o ao pai. Lacan lembrará da importâ ncia do papel do pai na histó ria da
formaçã o do corpo eró geno de sua filha. Importâ ncia legível na maneira com que a erogenidade do corpo de Dora é
deslocada em direçã o à oralidade - o que nã o deixa de indicar a representaçã o oral da relaçã o sexual (felaçã o) prevalente

255
HYPPOLITE, Figures de la pensée philosophique, Paris: PUF, 1971, p.215
256
Ver a este respeito o clássico artigo Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito: Habermas
intérprete de Freud in PRADO JR., Alguns ensaios, São Paulo: Paz e Terra, 2000, assim como meu
comentário em SAFATLE, Auto-reflexão e repetição : Bento Prado Jr. e a crítica ao recurso
frankfurtiano à psicanálise in Agora: Estudos em teoria psicanalítica, 2004
257
LACAN, E., p. 7
258
LACAN, E, p. 172
259
FREUD, GW vol. V, p. 210
devido à impotê ncia do pai, assim como os prazeres de chupeteadora na sua primeira infâ ncia que estabelecem o gozo em
uma á rea de cumplicidade com o pai.
A segunda inversão é uma espé cie de desdobramento deste reconhecimento da identificaçã o ao pai em direçã o
à identificaçã o à s escolhas de objeto do pai. Freud se pergunta de onde vem o cará ter prevalente (überwertiger) da
repetiçã o dos pensamentos de Dora a respeito da relaçã o entre seu pai e a Sra. K. Sua aná lise demonstra que o ciú me em
relaçã o à Sra. K é um pensamento reativo (Reaktionsgedanke) que esconde um pensamento inconsciente oposto
(Gegensatz). A aná lise deve pois permitir novamente uma inversã o no oposto: “Tornar consciente o recalcado oposto é o
caminho para retirar, de um pensamento prevalente, sua amplificaçã o”260. Trata-se de um trabalho que permite à aná lise
mostrar como o ciú me era apenas um modo de manifestaçã o da identificaçã o ao lugar do sujeito-rival. Lugar ocupado por
estas duas mulheres amadas pelo seu pai, uma antes e outra agora; ou seja, a mã e e, principalmente, Sra. K. O ó dio pode
pois se inverter no seu oposto: o amor. Um movimento pulsional que Freud chamará mais tarde de inversão no oposto
(Verkehrung ins Gegenteil). Inversã o que Lacan sublinha ao falar desta inclinaçã o homossexual fundada sobre a: "ligaçã o
fascinada de Dora pela Sra. K"261. Pois: "toda a situaçã o se instaura como se Dora tivesse posto para si a questã o - O que
meu pai ama na Sra. K?"262.
Mas, antes de continuar a análise lacaniana, coloquemos uma questã o de mé todo. Até aqui, nada nos impede de
pensar a interpretaçã o analítica como auto-reflexão da consciência que permite ao sujeito inverter seus
desconhecimentos em rememoraçã o capaz de historicizar os nó s traumá ticos. Até aqui, as intervençõ es do analista
procuraram abrir ao sujeito as vias para que ele possa pô r aquilo que desconhece. Nã o estamos muito distantes de uma
teoria do fim de análise como historicização dos conteúdos recalcados e dos núcleos traumáticos que se desdobra a partir do
horizonte convergente dos processos de simbolizaçã o. O que nos explicaria afirmaçõ es como: "A reconstituiçã o completa
da histó ria do sujeito é o elemento essencial, constitutivo, estrutural, do progresso analítico"263.

O que vimos até agora com Dora foi a assunçã o pelo sujeito de sua histó ria
através de procedimentos de construçã o e de interpretaçã o analítica de forte
tendência hermenêutica. O inconsciente aparece como algo que, graças ao
progresso da simbolizaçã o na aná lise, teria sido: enfim, algo que será realizado
no simbólico. O que permitirá a integraçã o exaustiva das determinaçõ es
opacas que davam corpo aos conteú dos recalcados.
No entanto, notemos como a interpretaçã o de Lacan terminará . Tomemos, por
exemplo, o segundo sonho trazido por Dora e no qual o dado principal é a
morte do pai. Uma morte anunciada através de uma carta da mã e na qual se lê:
"Agora ele está morto e, se você quiser (?), pode vir". Freud associa tal carta à
carta deixada por Dora na qual ela ameaçava suicidar-se a fim de amedrontar
o pai levando-o a deixar a Sra. K. Isto permite a Freud compreender a morte
do pai como manifestaçã o de um desejo de vingança de Dora devido a um
amor edípico traído. Por outro lado, com a morte do pai, as interdiçõ es sobre o
saber da sexualidade seriam levantadas, o que o sonho figura através da
leitura que Dora faz de um dicioná rio. Para Freud, isto significa reconhecer o
desejo inconsciente de substituir o amor ao pai pelo investimento libidinal no
Sr. K. Mas Freud nã o desenvolve o fato de que Dora associa o "se você quiser"
aos termos de uma carta da Sra. K que a convidava à casa do lago. Tal
associaçã o poderia revelar o valor da identificaçã o homossexual de Dora à Sra.
K permitindo, com isto, a consolidaçã o de uma outra via de interpretaçã o.
É neste sentido que Lacan criticará o final de aná lise proposto por Freud. Nó s
vimos como Freud e Lacan reconheciam a importâ ncia da identificaçã o de
Dora à Sra. K. Freud chega a falar de um "amor inconsciente no sentido mais
profundo" e a reconhecer o amor de Dora à Sra. K como elemento central da
histó ria do desejo da paciente. Mas este dado continuará marginal no conjunto
da economia da interpretaçã o freudiana. Ao contrá rio, Freud prefere ver aí
uma identificaçã o ao lugar do sujeito-rival enquanto lugar da escolha paterna

260
FREUD, GW vol. V, p. 214 « Das Bewutmachen des vardrängten Gegensatzes ist dann der Weg,
um dem überstarken Gedanken seine Verstärkung ze entziehen »
261
LACAN, E., p. 220
262
LACAN, S IV, p. 141
263
LACAN, S I, p. 18 (citação modificada)
de objeto. O que lhe permite compreender o comportamento de Dora como o
comportamento de uma mulher ciumenta em relaçã o ao amor do pai. A
questã o central para Freud será pois: "por que o amor edípico foi reavivado
neste momento da histó ria do desejo do sujeito?". Sua resposta é
programá tica: trata-se de um sintoma que visa exprimir aquilo que está
presente no inconsciente: o amor pelo Sr. K. Resultado incontorná vel se
seguirmos os postulados de uma hermenêutica edípica.
Lacan, por sua vez, prefere levar o final de aná lise em direçã o ao
desvelamento daquilo que ele chama de "valor real" do objeto que a Sra. K
representa para Dora: "ou seja, nã o um indivíduo, mas um mistério, o mistério
de sua pró pria feminilidade; nó s queremos dizer, de sua feminilidade
corporal"264.A fascinaçã o de Dora pela Sra. K encontraria sua raiz na questã o
maior para uma histérica: "O que é uma mulher?". Questã o que toca a
estrutura de sua posiçã o subjetiva através da sexuaçã o de seu corpo. Mas nã o
se trata aqui de ver na imagem da Sra. K uma resposta capaz de saturar a
questã o sobre o mistério do feminino. Se este fosse o caso, a aná lise
terminaria na assunçã o da identificaçã o narcísica com uma imagem na
posiçã o de eu ideal.
Na verdade, a terceira inversão traz uma inversã o interna no valor da
imagem do feminino representada pela Sra. K. Ao invés da simples imagem da
fascinaçã o narcísica, ela deve ser desvelada como imagem de um mistério, no
sentido de algo fundamentalmente desprovido de determinaçã o objetiva e de
representaçã o consciente adequada.
Neste sentido, Lacan tenta desdobrar as conseqü ências clínicas do fato de
que: "nã o há simbolizaçã o do sexo da mulher enquanto tal" 265. Tal ausência de
determinaçã o significante do sexo feminino permite a Lacan afirmar que: "o sexo
feminino tem um cará ter de ausência, de vazio, de buraco que faz com que ele
seja menos desejá vel que o sexo masculino no que ele tem de provocante" 266.
Afirmaçã o aparentemente "falocêntrica", mas apenas aparente.
De qualquer forma, para Dora, da imagem da Sra. K poderia advir
exatamente esta imagem "de ausência, de vazio, de buraco" que aparece como
abertura em direçã o ao reconhecimento da inadequaçã o fundamental do sujeito
à s representaçõ es imaginá rias do sexual. Neste sentido, podemos dizer que a
identificaçã o de Dora à Sra. K poderia ser equivalente a uma dissoluçã o do eu
enquanto totalidade de um corpo sem falhas, já que seria reconhecimento de si
naquilo que é desprovido de determinaçã o objetiva.
Notemos que a terceira inversã o é estruturalmente distinta das outras
duas. Enquanto que as duas primeiras eram passagens no oposto, este é o
desvelamento de uma contradição interna à pró pria determinaçã o da imagem da
Sra. K. Uma contradiçã o entre sua posição de imagem fantasmá tica que sustenta
o pensamento identificador do eu de Dora e seu valor de negaçã o de toda
determinidade. Ela indica a tentativa de inscriçã o do valor do sexual como
negaçã o irredutível.
Tal maneira de compreender o valor da imagem da Sra. K inscreve-se em
um movimento geral que concerne a reformulaçã o lacaniana do pensamento do

264
LACAN, E., p. 220
265
LACAN, S III, p. 198.
266
LACAN, S III, p. 199.
sexual. Se a psicaná lise vê a realidade sexual como lugar de verdade, como locus
originá rio do sentido da linguagem dos sintomas, entã o a melhor estratégia para
impedir que dela advenha uma hermenêutica sexual é transformar o sentido do
sexual em pura opacidade. O sexual será assim presença do negativo e do não-
idêntico no sujeito. O advento do sexual será sempre ligado ao trauma vindo da:
"inadequaçã o radical do pensamento à realidade do sexo"267. Inadequaçã o que
indica como: "o sexual se mostra por negatividades de estrutura" 268. Tal sexual
traumá tico está vinculado ao real da pulsã o que foi forcluído, de onde vem sua
resistência aos procedimentos simbó licos de nomeaçã o.
Vemos assim se desenhar um polo de tensão que deixa a metapsicologia
lacaniana necessariamente instável e móvel. Trata-se de uma tensã o entre
imperativos de reconhecimento mú tuo e a irreflexividade de um conceito de
sujeito pensado a partir da negatividade do desejo em seu vínculo ao sexual.
Como reconhecer um desejo que é presença do sexual como pura opacidade
vinda de uma negatividade sem inversõ es? Como produzir o reconhecimento do
real do sexo, que é definido exatamente como aquilo que permanece fora dos
processos de simbolizaçã o? Em suma, nesta tensã o entre o sexual e os
imperativos de reconhecimento aloja-se uma tensão entre subjetividade e
intersubjetividade que será marca constitutiva do pensamento lacaniano. O motor
do progresso da praxis lacaniana estará pois na tentativa de encontrar o ponto
que impede tal tensã o de anular um dos polos, o que, em um caso, poderia
produzir a reduçã o do sujeito à dimensã o de um gozo mudo pró ximo da psicose
(irreflexividade do sujeito sem imperativos de reconhecimento) e, no outro, a
alienaçã o absoluta do particular no genérico da estrutura (imperativos de
passagem ao Simbó lico sem irreflexividade do sujeito). Um motor como o
verdadeiro solo dialético da psicaná lise lacaniana só pode ser encontrado em
suas consideraçõ es sobre a pulsã o e o gozo. Assim, o conceito lacaniano de
intersubjetividade era desde sempre marcado por esta tensão entre a negatividade
do que se aloja na subjetividade e a dialética do reconhecimento.

Reconhecer um desejo puro

Falamos até aqui da noçã o de cura analítica como reconhecimento do desejo


por si mesmo e pelo Outro. Cura como índice da nomeaçã o de um desejo que,
até entã o, só podia aparecer sob a forma de sintomas. Mas, no interior desta
coreografia, esquecemos constantemente do teor da reposta lacaniana a
questõ es como: 'qual desejo espera insistentemente por reconhecimento?', 'O
que significa exatamente dar nome ao desejo?'. Tais questõ es podem começar
a ser respondidas se levarmos em conta afirmaçõ es como:

“Os antigos colocavam o acento sobre a tendência, enquanto que nós, nós o
colocamos sobre o objeto (...) nós reduzimos o valor da manifestação da
tendência, e nós exigimos o suporte do objeto pelos traços prevalentes do
objeto”269.

267
LACAN, S XIV, sessão do 18/01/67
268
LACAN, AE, p. 380
269
LACAN, S VII, p. 117
Tal proposição lacaniana, feita com uma ponta de nostalgia a respeito da vida
amorosa dos antigos, é, na verdade, a exposição de todo um programa analítico de
cura. Enunciada em 1960, ela trazia atrás de si uma longa reflexão a respeito do
destino do desejo no final de análise. Colocar o acento sobre a tendência desprovida
de objeto aparece aqui como uma solução possível para romper um certo ciclo
alienante do desejo preso às amarras do Imaginário; ruptura fundamental como
indicação da proximidade do final de análise.
A este respeito, vale a pena relembrar alguns princípios básicos que serviram
de guia para as primeiras reflexões lacanianas. Até o final dos anos cinqüenta, há um
conceito central na metapsicologia lacaniana: o desejo puro.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a característica
principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação.
Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de nomeável" 270. Aqui,
escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que tentava costurar o ser-
para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de afirmar que a verdade do
desejo era ser “revelação de um vazio”271, ou seja, pura negatividade que transcendia
toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com
objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal.
Mas por que esta pura tendência que insiste para além de toda relação de objeto
transformou-se em algo absolutamente incontornável para Lacan? Nós podemos
fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir sobretudo
de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento lacaniano, tanto
os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre projeções narcísicas do
eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos do mundo empírico. De
onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as relações de objeto, assim
como a necessidade de atravessar este regime narcísico de relação através de uma
crítica ao primado do objeto na determinação do desejo. Lacan é claro a respeito deste
narcisismo fundamental. Ele dirá, por exemplo, que: “A relação objetal deve sempre
submeter-se à estrutura narcísica e aí se inscrever”272. E ele dará um caráter
epistemológico a sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso
científico [e todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"273.
Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan
principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do Imaginário, já
que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera das relações que
compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e introjeções 274. Aqui, faz-se
necessário salientar um ponto importante: o objeto empírico aparece necessariamente
como objeto submetido à engenharia do Imaginário e à lógica do fantasma. A
possibilidade de fixação libidinal a um objeto empírico não-narcísico ainda não é
posta. Assim, a fim de livrar o sujeito da fascinação por objetos que são, no fundo,
produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer
conteúdo empírico. Subjetivar o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento. Haveria
uma outra possibilidade através da tentativa de determinar as modalidades possíveis
de uma experiência de objeto que não estivesse inscrita a priori em uma lógica
270
LACAN, S II, p. 261
271
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
272
LACAN, S I, p. 197
273
LACAN, S II, p. 130
274
"Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana "
(LACAN, S III, p. 107)
narcísica. De fato, tal hipótese ganhará relevância na segunda metade da trajetória
intelectual lacaniana, o que pode nos explicar as estratégias posteriores de pensar o
final de análise através da identificação do sujeito com o objeto desprovido de
estrutura de apreensão, ou seja, com o objeto como resto opaco, como dejeto. O que
nos permitirá repensar a questão do destino da categoria de objeto na clínica analítica.
Mas, por enquanto, insistamos na via da purificação do desejo. Lacan percebeu
claramente que a psicanálise nascera em uma situação histórica na qual o sujeito era
compreendido como entidade não-substancial, desnaturada e marcada pelo selo de
uma "liberdade negativa" que lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas
representações e identificações. A operação de 'purificação do desejo' escondia assim
uma estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a função
transcendental própria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo (o que
nos explica como foi possível à psicanálise desenvolver uma teoria não-psicológica
do desejo). A aproximação lacaniana entre, por exemplo, o sujeito do inconsciente e a
estruitura do cogito cartesiano era uma das conseqüências de tal estratégia. O que
Badiou sublinhou bem ao lembrar que: "o que ainda vincula Lacan (mas este ainda é
a perpetuação moderna do sentido) à época cartesiana da ciência é pensar que seja
necessário sustentar o sujeito no puro vazio da substração se quiseremos salvar a
verdade [do regime fantasmático de apresentação de objetos]"275.
Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das realizaçõ es fenomenais,
haveria uma "permanência transcendental do desejo"276. O que nos envia à
definiçã o canô nica do sujeito como falta-a-ser, já que:

O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual
o ser existe277.

Neste caso, esta estranha falta que nã o é disto ou daquilo é o pró prio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condiçã o a priori de constituiçã o do mundo dos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta nã o
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, nã o há nada parecido a
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
uma verdadeira ' deduçã o transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
Freud, ele nã o identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida
pela interdiçã o vinda da Lei do incesto. É verdade que Lacan afirmará : "o objeto
da psicaná lise nã o é o homem, mas o que lhe falta - nã o uma falta absoluta, mas
falta de um objeto "278. No entanto, devemos sublinhar que tal objeto que lhe
falta nã o é exatamente um objeto empírico.

Um sujeito transcendental para a psicanálise?


275
BADIOU, L'être et l'événement, Paris: Seuil, 1988, p. 472. É tal articulação entre
transcendentalidade e negatividade na função do sujeito que permitirá a comentadores como Slavoj
Zizek ler Kant de maneira 'lacaniana', como vemos em afirmações coimo: "o ensinamento maior da
consciência de si transcendental é totalmente oposto à transparência de si absoluta e à presença a si.
Sou consciente de mim mesmo, eu me volto de maneira reflexiva em direção a mim mesmo porque
nunca posso 'encontra mim mesmo' na dimensão numenal, como a Coisa que sou atualmente" (ZIZEK,
Slavoj, The ticklish subject, London: Verso, 2000, p. 304)
276
LACAN, S VIII, p..
277
LACAN, SII, p. 261.
278
LACAN, AE, p. 211
Devemos entã o nos perguntar se o sujeito lacaniano do desejo nã o seria
uma versã o psicanalítica do sujeito transcendental. É neste ponto que podemos
medir a particularidade da filiaçã o lacaniana ao discurso filosó fico da
modernidade. Se o desejo é condiçã o a priori para a constituiçã o dos objetos do
mundo, nã o se trata de um desejo cujo sentido se desvelaria através da auto-
intuiçã o imediata de um eu. Ou seja, o desejo nã o exige um conceito de ego
transcendental capaz de aparecer como destino privilegiado dos processos de
reflexã o. Ao contrá rio, como o desejo é determinado de maneira inconsciente
pela estrutura só cio-lingü ística externa que constitui a priori as coordenadas de
toda experiência possível (isto segundo sentido da fó rmula estruturalista: o
desejo do homem e o desejo do Outro - onde o Outro aparece como estrutura
só cio-lingü ística transcendental na qual o sujeito deve surgir), entã o o sujeito
será necessariamente determinado empiricamente pela estrutura.
Sublinhemos aqui a importâ ncia deste motivo estruturalista maior: as
condiçõ es a priori da experiência já estã o dadas antes da constituiçã o do sujeito e
graças à anterioridade do significante. No caso lacaniano, isto significa dizer que
o desejo do Outro já está constituído antes da subjetivaçã o do desejo pelo sujeito.
Lembremos, por exemplo, que o lugar da criança já está constituído no interior
da constelaçã o familiar através das convençõ es de estruturas de parentesco, do
nome que à s vezes o identifica a um ancestral e à linhagem do desejo presente no
Ideal do eu dos pais. Mas tal anterioridade temporal é sobretudo anterioridade
ló gica, já que nã o é possível ao sujeito desenvolver procedimentos de auto-
referência e de auto-reflexã o antes da estruturaçã o prévia do campo de
experiências e de socializaçã o por um sistema só cio-lingü ístico de regras, de
normas e posiçõ es. Daí afirmaçõ es como: "o sujeito só é sujeito ao assujeitar-se
ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrô nico a este
campo do Outro" 279.
Isto significaria que o sujeito lacaniano é apenas o suporte inconsciente de
processos estruturais de determinaçã o de sentido - tal como encontraríamos em
uma perspectiva estruturalista clá ssica? É a temá tica da intersubjetividade, com
seu motivo de reconhecimento do sujeito pelo Outro enquanto estrutura
transcendental, que nos demonstra o contrá rio. Se há reconhecimento
intersubjetivo do desejo (mesmo entre dois polos situados em posiçõ es nã o-
recíprocas, já que o Outro determina de maneira nã o-recíproca o sujeito), entã o
devemos pensar em um sujeito que nã o é simplesmente suporte mas que, em
certas condiçõ es, pode se transformar em agente. É claro, muito haverá a se dizer
a respeito da especificidade desta agência do sujeito lacaniano; uma agência que
nã o se submete a nenhum princípio de expressividade dependente de um
conceito positivo de intencionalidade. Mas, de qualquer forma, ela disponibiliza
um contrapeso ao problema da heteronomia completa do sujeito.
Por enquanto, podemos fornecer aqui uma hipó tese capaz de nos guiar na
compreensã o desta posiçã o paradoxal do sujeito lacaniano. Lacan guarda um
elemento pró prio à funçã o transcendental presente no conceito moderno de
sujeito, mas nã o se trata do poder transcendental de constituiçã o das
coordenadas da 'realidade objetiva'. Neste sentido, o sujeito lacaniano nã o pode
ser um puro sujeito transcendental, já que tal poder nã o lhe pertence nem de

279
LACAN, S XI, p. 172
fato (ele nã o é um ego transcendental), nem de direito (sua funçã o ló gica nã o
consiste na faculdade de síntese pró pria a uma unidade sintética de percepçõ es).
Parece-me que, ao articular seu conceito de sujeito através de figuras da
subjetividade moderna tã o distantes umas das outras quanto podem ser o cogito
cartesiano, o sujeito da vontade livre kantiana e a consciência desejante de Hegel,
Lacan procura um certo caráter de transcendência ligado, na modernidade, à
articulação do conceito de função transcendental do sujeito.
Nã o se trata aqui de compreender a transcendência simplesmente como
esta ilusã o pró pria ao uso da razã o e sempre presente quando ela procura aplicar
um princípio efetivo para-além dos limites da experiência possível - noçã o de
transcendência que só pode ser antinô mica ao questionamento transcendental,
como bem demonstrou Kant. Lacan é marcado por um pensamento da
transcendência no qual se cruzam as reflexõ es vindas da fenomenologia alemã (a
transcendência do Dasein) e do hegelianismo (a negatividade da Begierde). Neste
sentido, basta lembrarmos de Kojève falando da negatividade do desejo como: "o
ato de transcender o dado que lhe é dado e que é em si mesmo"280. "O ato de
transcender" deve ser compreendido aqui como negaçã o que põ e a nã o-
adequaçã o entre o ser do sujeito e os objetos da dimensã o do empírico, como
apresentaçã o de uma nã o-saturaçã o do ser do sujeito no interior do campo
fenomenal. Tal transcendência nã o põ e princípio efetivo algum para além da
experiência possível. O que nos explica porque devemos compreendê-la como
transcendência negativa. Podemos assim dizer que o sujeito para Lacan é uma
transcendência sem transcendentalidade, ao menos sem o cará ter constitutivo da
objetividade pró prio ao sujeito transcendental. A hipó tese aqui consiste em dizer
que, com Lacan, a subjetividade está inicialmente ligada aos modos de
manifestaçã o desta transcendência negativa e a intersubjetividade é o espaço
possível de auto-apresentaçã o da subjetividade.

280
KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, op.cit, p. 13
Lógicas do reconhecimento
Aula 14

Na aula de hoje, gostaria de apresentar a recuperaçã o do problema do


reconhecimento feita por Axel Honneth. Tal recuperaçã o aparece atualmente
como um dos eixos centrais de articulaçã o dos debates no interior da filosofia
política. De fato, o conceito de reconhecimento ganhará , graças principalmente a
Honneth, uma importâ ncia que até entã o nunca teve no interior da filosofia
política. Como vimos nas ú ltimas aulas, a recuperaçã o francesa do problema do
reconhecimento permitiu desdobramentos substanciais no interior dos campos
da clínica e da ética, mas nã o diretamente no campo político. Cabe
principalmente a Honneth e Charles Taylor esta tarefa. No entanto, trata-se aqui
de lembrar que nã o devemos refletir sobre os usos políticos contemporâ neos do
conceito de reconhecimento sem levar em conta a avaliaçã o de seu contexto
só cio-histó rico de recuperaçã o, no início dos anos noventa. Contexto
extremamente sugestivo pois indissociá vel da perda, nas ú ltimas décadas, da
centralidade do discurso das lutas de classe enquanto chave de leitura para os
conflitos sociais. Haverá de fato um novo enquadre nos modos de reflexã o sobre
os conflitos sociais a partir do momento em que a temá tica do reconhecimento
ganhar centralidade.
A luta de classes foi acusada de limitar os conflitos sociais a problemas
gerais de redistribuição igualitária de riquezas (que nã o sã o meramente
expressõ es de uma teoria da justiça redistributiva), ignorando com isto
dimensõ es morais e culturais que nã o poderiam ser compreendidas como meros
reflexos de estruturas de classe. Sendo assim, uma leitura possível consistiria em
dizer que certo acú mulo de modificaçõ es teria fornecido as condiçõ es para a
elevaçã o do reconhecimento a problema político central. Dentre tais
modificaçõ es três seriam fundamentais.
Primeiramente, teríamos o esvaziamento do proletariado enquanto ator
histó rico de transformaçã o social revolucioná ria: tema presente na Escola de
Frankfurt ao menos desde os anos 30 através de suas pesquisas sobre as
regressõ es políticas da classe operá ria em direçã o à sustentaçã o do nazismo281.
Certamente, muito contribuiu para a consolidaçã o de tal diagnó stico a forte
integraçã o do operariado aos sistemas de seguridade e à s políticas corretivas dos
ditos Estados do bem estar social a partir dos anos 50. Note-se como Habermas,
olhando para a ausência de candidatos a ocuparem a vaga de atores globais de
transformaçã o revolucioná ria depois dessa integraçã o da classe operá ria e do
posterior enfraquecimento do pró prio Estado do bem estar social, insistirá em
ler tal situaçã o como expressã o de esgotamento de “uma determinada utopia
que, no passado, cristalizou-se em torno do potencial de uma sociedade do
trabalho”282. Esgotamento que levará alguém como Axel Honneth a afirmar,
recentemente, que a pró pria crença no papel privilegiado do proletariado no
interior de uma política revolucioná ria nã o passava de um “dogma histó rico-

281
Ver, por exemplo, FROMM, Erich; Arbeiter und Angestellte am Vorabend des Dritten Reiches: eine
sozialpsychologische Untersuchung, Stuttgart: Deutsche Verlags- Anstalt, 1980
282
HABERMAS, Jurgen: A nova intransparência: a crise do Estado de bem estar social e o
esgotamento das energias utópicas, Novos estudos Cebrap, n. 18, setembro de 1987, p. 105
filosó fico”283. Aceito que o pretenso papel privilegiado do proletariado nã o
passava de um “dogma”, o investimento no discurso da luta de classes como eixo
central de organizaçã o e constituiçã o das identidades no interior dos embates
políticos perde necessariamente sua força para abrir espaço a outros candidatos.
Mas para a consolidaçã o da centralidade atual do conceito de
reconhecimento, foi necessá rio que tal perda na crença revolucioná ria do
proletariado fosse acompanhada de um fenô meno suplementar vinculado à
mutaçã o do sistema de expectativas ligado a um dos eixos centrais do
desenvolvimento das lutas políticas, a saber, o universo do trabalho. Tal mutaçã o
pode ser compreendida se seguirmos Luc Boltanski e Eve Chiapello a fim de
afirmar que, desde as revoltas de maio de 68, um novo “ethos” do capitalismo
começou a ser formado.
A crítica social que se desenvolve a partir de maio de 1968 visava,
principalmente, o trabalho e sua incapacidade em dar conta de exigências de
autenticidade. Visto como o espaço da rigidez do tempo controlado, dos horá rios
impostos, da alienaçã o taylorista e da estereotipia de empresas fortemente
hierarquizadas, o trabalho fora fortemente desvalorizado pelos jovens de 68.
Vá rios estudos do início dos anos setenta demonstram consciência dos riscos de
uma profunda desmotivaçã o dos jovens em relaçã o aos valores presentes no
mundo do trabalho, preferindo atividades flexíveis, mesmo que menos
renumeradas.
O resultado de tal crítica teria sido a reconfiguraçã o do nú cleo ideoló gico
da sociedade capitalista e a consequente modificaçã o do ethos do trabalho.
Valores como: segurança, estabilidade, respeito à hierarquia funcional e à
especializaçã o, valores estes que faziam do mundo do trabalho um setor
fundamental de imposiçã o de identidades fixas e rígidas, deram lugar a outro
conjunto de valores vindos diretamente do universo de crítica do trabalho.
Capacidade de enfrentar riscos, flexibilizaçã o, maleabilidade, desterritorializaçã o
resultante de processos infinitos de re-engenharia compõ em atualmente um
novo nú cleo ideoló gico. Com esta modificaçã o, o universo do trabalho nas
sociedades capitalistas estaria mais apto a aceitar demandas de reconhecimento
da individualidade e a modificar a matriz da experiência de alienaçã o, retirando
tal matriz da temá tica da espoliaçã o econô mica a fim de deslocá -la em direçã o à
temá tica da imposiçã o de uma vida inautêntica, ou seja, vida desprovida do
espaço de desenvolvimento de exigências individuais de auto-realizaçã o. Com
este deslocamento da espoliaçã o à inautenticidade no interior da crítica do
trabalho, abria-se mais uma porta para secundarizar o conceito de luta de classes
e elevar o problema do reconhecimento a dispositivo político central.
Por fim, devemos lembrar como esta mutaçã o acaba por se encontrar com
outra série de modificaçõ es ligadas, por sua vez, à compreensã o, ocorrida a partir
dos anos setenta, das lutas de grupos historicamente vulnerá veis e espoliados de
direitos (como negros, gays, mulheres) enquanto lutas de afirmaçã o cultural das
diferenças. Isto significa afirmar que elas nã o foram apenas compreendidas como
setores de uma luta mais ampla de ampliaçã o de direitos universais a grupos até
entã o excluídos, mas como processos de afirmaçã o das diferenças diante de um
quadro universalista pretensamente comprometido com a perpetuaçã o de
normas e formas de vida pró prias a grupos culturalmente hegemô nicos. Muito
283
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, In: FRASER e HONNETH; Redistribution or
recognition, Verso: New York, 2003, p. 116
colaborou para isto o desenvolvimento das temá ticas ligadas ao
multiculturalismo.
Desde 1957, o termo aparecera a fim de descrever a realidade multi-
linguística da Federaçã o Suíça. No entanto, foi no Canadá que o multiculturalismo
chegou a ser implementado, pela primeira vez, como política de Estado. Marcado
tanto pelo conflito entre as comunidades angló fonas e francó fonas quanto por
uma elevada taxa de imigraçã o, o Canadá adotou, em 1971, sob o governo social-
democrata de Pierre Elliot Trudeau, o Announcement of Implementation of Policy
of Multiculturalism within Bilingual Framework. Através dele, o país se auto-
definia como uma sociedade multicultural que reconhecia, inclusive, a
necessidade de políticas específicas financiadas pelo Estado visando a
preservaçã o de tal multiplicidade. Em 1988, estas políticas foram reforçadas
através da implementaçã o do Canadian Multiculturalism Act. Vá rios outros
países, majoritariamente anglo-saxõ es (além dos Países Baixos), seguiram o
quadro canadense de constituiçã o de políticas multiculturais de Estado. Nã o é de
se estranhar ter sido um filó sofo canadense, Charles Taylor, um dos primeiros a
recuperar o conceito de reconhecimento exatamente no interior de um debate
sobre o multiculturalismo.
Esta tendência multicultural foi uma peça hegemô nica na orientaçã o
política de esquerda a partir dos anos oitenta devido, principalmente, ao seu
potencial de defesa de minorias étnico-culturais e à possibilidade de ser acoplada
a prá ticas de institucionalizaçã o da diversidade de orientaçõ es sexuais. Ao
mesmo tempo, o desenvolvimento de uma reflexã o filosó fica sensível à natureza
disciplinar de estruturas de poder que visavam impor normatividades no campo
da sexualidade, do desejo, da normalidade psíquica, da estrutura da família, da
constituiçã o dos papeis sociais, forneceu o quadro conceitual para desdobrar o
impacto de tais lutas. Mesmo que autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e
Jacques Derrida nã o tenham sido responsá veis pela recuperaçã o da teoria do
reconhecimento - o que nã o poderia ser diferente devido ao anti-hegelianismo
explícito dos dois primeiros e mitigado no caso do terceiro - é inegá vel que sua
forma de crítica à compreensã o marxista tradicional dos embates políticos, assim
como sua defesa ética do primado da diferença em muito colaboraram para a
consolidaçã o de um quadro filosó fico mais propício à recuperaçã o da
centralidade do problema do reconhecimento da alteridade como problema
político central. Desta forma, estavam dadas as condiçõ es gerais para que a
compreensã o filosó fica das lutas políticas passasse necessariamente de uma
abordagem centrada no conflito de classe a uma abordagem centrada em
mú ltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual, das
etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais da pessoa. Uma
multiplicidade de campos que teriam sido levados ao centro da cena política
depois da aceitaçã o tá cita da impossibilidade de uma política revolucioná ria
baseada na instrumentalizaçã o da luta de classes.
Sendo assim, ao menos no interior desta leitura, teríamos de admitir que o
conceito de reconhecimento estaria limitado geograficamente à descriçã o de
lutas sociais em países do chamado primeiro mundo, que já teriam realizado a
integraçã o do proletariado à classe média, assim como já teriam aceito a
necessidade do descentramento de suas matrizes culturais através da abertura à
afirmaçã o tolerante de formas de vida em contínua variaçã o. Nã o por outra
razã o, volto a insistir, um dos primeiros usos da segunda recuperaçã o do
conceito de reconhecimento esteve exatamente vinculado à reflexã o sobre a
dinâ mica social das sociedades multiculturais, como podemos ver no texto
supracitado de Charles Taylor.
Mas esta leitura nã o condiz com a realidade histó rica do re-aparecimento
do conceito no interior da filosofia social. Como sabemos, em 1992 ele foi
retomado. Ou seja, exatamente no momento em que se inicia a lenta
desintegraçã o das conquistas econô micas dos ditos Estados do Bem estar social,
com o desmantelamento dos direitos trabalhistas, a privatizaçã o (gradual ou
total) da previdência e o sucateamento da educaçã o, da saú de e de outros
serviços pú blicos. Uma desintegraçã o que ocorreu no momento em que vá rios
teó ricos afirmavam entrarmos em uma era “pó s-ideoló gica”, ou seja, marcada
pelo fim da crença em transformaçõ es sociais revolucioná rias com a consequente
aceitaçã o do horizonte normativo das democracias liberais como está gio final
das lutas sociais.
Isto talvez explique porque críticos - principalmente de matriz marxista,
mas nã o apenas eles - desta importâ ncia dada ao conceito de reconhecimento
insistiram estarmos aqui diante de uma espécie de conceito meramente
compensatório. Pois tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de
implementar políticas efetivas de transformaçã o dos modos de produçã o e luta
radical contra a desigualdade, nos restasse apenas discutir políticas
compensató rias de reconhecimento. Da mesma forma, dado o fato do Capital
aparecer, de maneira agora inquestioná vel, como ú nica instâ ncia capaz de
ocupar o espaço da universalidade no interior do liberalismo das sociedades
multiculturais, nos restaria simplesmente reinventar demandas de
reconhecimento de identidades comunitá rias, em suas mú ltiplas formas,
tentando dar à comunidade um sentido que nã o se reduzisse a um mero espaço
de restriçã o. Por fim, dada a impossibilidade de transformaçõ es sociais de larga
escala, nos restaria discutir a natureza moral de nossas demandas sociais.

A economia da identidade individual

Mostrar que nã o está vamos diante de um mero dispositivo


compensató rio, mas provido de importante força de transformaçã o das
estruturas sociais, foi uma tarefa que engajou vá rios defensores do uso político
do conceito de reconhecimento nos ú ltimos vinte anos. Ela consistiu em
evidenciar como a força emancipató ria do reconhecimento no interior de
processos políticos concretos nã o se dava à margem da discussã o sobre
problemas de redistribuiçã o igualitá ria das riquezas. Isto significou, neste
contexto, lembrar como as discussõ es sobre diferenças culturais e identidades
sociais nã o mascaram necessariamente problemas estruturais ligados a lutas de
redistribuiçã o de riquezas entre classes. Tendo tal projeto em mente, autores
como Axel Honneth foram levados a sustentar que “mesmo injustiças ligadas à
distribuiçã o devem ser entendidas como a expressã o institucional de desrespeito
social ou, melhor dizendo, de relaçõ es nã o justificadas de reconhecimento” 284. O
que o leva a defender, entre outras coisas, proposiçõ es como a de que mesmo o
movimento operá rio “procurava em uma dimensã o essencial encontrar

284
HONNETH, Axel; “Redistribution as recognition”, op. cit., p. 114
reconhecimento para suas tradiçõ es e formas de vida no interior de um
horizonte capitalista de valor”285.
A estratégia de Honneth baseava-se em uma assimilaçã o do problema da
redistribuiçã o de riquezas a um quadro mais amplo de discussõ es referentes ao
reconhecimento. Para tanto, foi necessá rio compreender o sentimento social de
injustiça econô mica como expressã o possível das “fontes motivacionais do
descontentamento social e da resistência”286. Abria-se assim a possibilidade, ao
menos para Honneth, de criar um quadro motivacional unitá rio centrado na ideia
de que “sujeitos esperam da sociedade, acima de tudo, reconhecimento de suas
demandas de identidade”287. O que nã o poderia ser diferente para alguém que
afirma que “sujeitos percebem procedimentos institucionais como injustiça
social quando veem aspectos de sua personalidade, que acreditam ter direito ao
reconhecimento, serem desrespeitados” 288. Isto já estava presente em seu
primeiro livro sobre o assunto, Luta por reconhecimento:

É a reivindicaçã o de reconhecimento intersubjetivo da identidade


individual que introduz uma tensã o moral na vida social, é ela que leva
sem cessar o progresso social para além do ú ltimo grau institucionalizado
e pela via negativa de um conflito reconduzido passo a passo, leva
progressivamente a um estado de liberdade vivido no elemento da
comunicaçã o.

A afirmaçã o é clara: os processos de reconhecimento seriam regulados


pelas exigências da identidade individual. Exigências estas que introduziriam
conflitos sociais visando ampliar os processos de institucionalizaçã o da
liberdade. O que coloca no horizonte regulador dos processos de
reconhecimento um conceito de “integridade pessoal” cujo pressuposto
fundamental é a naturalizaçã o de facto das estruturas dos conceitos psicoló gicos
de “indivíduo” e “personalidade”. Segundo Honneth, as lutas políticas, mesmo
aquelas organizadas a partir de demandas de redistribuiçã o econô mica visam, no
limite, garantir as condiçõ es concretas para a “formaçã o da identidade
pessoal”289. Ou seja, a pró pria gênese da individualidade moderna aparece como
um fundamento pré-político para o campo político. Algo que deve ser
politicamente confirmado, e nã o politicamente desconstruído. Daí uma afirmaçã o
decisiva, segundo a qual “admito a premissa de que o propó sito da igualdade
social é permitir o desenvolvimento da formaçã o da identidade pessoal de todos
os membros da sociedade”290.
Feita tal naturalizaçã o, Honneth pode servir-se, entre outros, dos estudos
de historiadores como E.P. Thompson e Barrington Moore a fim de afirmar que a
estrutura motivacional das lutas da classe operá ria baseou-se, principalmente,
“na experiência da violaçã o de exigências localmente transmitidas de honra”291,
285
HONNETH; idem, p. 123
286
Idem, p. 125
287
Idem, p. 131
288
Idem, p. 132
289
Idem, p. 176
290
Idem, p. 177
291
Idem, p. 131. Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth pode afirmar que, em
Marx “a luta de classes não significa, primeiramente, um afrontamento estratégico visando a aquisição
de bens ou de instrumentos de poder. Ela constitui um conflito moral cuja questão é a ‘emancipação’
do trabalho, condição essencial de que depende, ao mesmo tempo, a estima simétrica entre sujeitos e a
já que, mais importante do que demandas materiais teria sido o sentimento de
desrespeito em relaçã o a formas de vida que clamam por reconhecimento. Ao
insistir na centralidade da experiência moral do sentimento de “desrespeito”
como motor das lutas políticas, elevando-o a condiçã o de base motivacional para
todo e qualquer conflito, Honneth pode inscrever problemas de redistribuiçã o no
interior do quadro geral de demandas morais. Assim, sendo a vulnerabilidade
social ligada à pauperizaçã o compreendida, principalmente, como expressã o
material da impossibilidade da realizaçã o de exigências morais de respeito, abre-
se as portas para afirmar que “a distinçã o entre empobrecimento econô mico e
degradaçã o cultural é fenomenologicamente secundá ria”292, já que conflitos por
redistribuiçã o nã o poderiam ser compreendidos como independentes de toda e
qualquer experiência de desrespeito social.
Notem como Honneth aceita a premissa hegeliana de que a existência de
“obrigaçõ es intersubjetivas” seria uma “condiçã o quase natural de todo processo
de socializaçã o humana”. Mas tais obrigaçõ es intersubjetivas teriam uma
dinâ mica de desenvolvimento caracterizada pela progressã o em direçã o a
formas cada vez mais exigentes de individualidade. Progressã o que faz das lutas
e conflitos sociais conflitos éticos marcados pela expectativa de reciprocidade e
estima. No entanto, ele acredita que o Hegel da Fenomenologia do Espírito
reenquadra o problema do reconhecimento em uma teoria da consciência em
seus processos progressivos de automediaçã o. Esta é uma interpretaçã o de
Habermas que consiste a afirmar que o Hegel de maturidade teria perdido o
potencial de uma intersubjetividade primeira, isto em prol do recentramento da
filosofia a partir do sujeito. Isto traria consequências para a filosofia política,
como a tendência a pensar as relaçõ es sociais a partir do modelo da relaçã o entre
a consciência e as instâ ncias de poder. Assim, ao invés da aná lise dos processos
de mutualidade e dependência intersubjetiva, teríamos um “desenvolvimento
monoló gico” que explicaria a importâ ncia dada à s relaçõ es individualizadas com
o Estado.

Relações materiais

A fim de retomar o projeto do jovem Hegel em outras bases, Honneth


propõ e reatualizar a ideia de obrigaçõ es intersubjetivas como condiçã o quase
natural de todo processo de socializaçã o humana. Para tanto, trata-se de
constituir uma teoria baseada em diferentes níveis de reconhecimento recíproco.
Níveis que se organizam através de uma dinâ mica de progressã o. Eles começam
pelo amor e sua possibilidade de consolidaçã o de graus de segurança emocional,
passando depois pelas relaçõ es jurídicas de direitos e, por fim, à s relaçõ es
comunitá rias de solidariedade. Amor, direito e solidariedade garantirã o três
níveis de relaçã o prá tica a si, a saber, a autoconfiança, o autorespeito e a
autoestima.
O amor será pensado principalmente a partir das relaçõ es de
intersubjetividade primá ria no interior da família, em especial, entre o bebê e a
mã e. A tese da intersubjetividade primá ria serve para Honneth defender a
existência de uma tendência fortemente cooperativa e comunicacional no

consciência individual de si” (HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik


sozialer Konflikte, Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 233)
292
Idem, p. 171
interior das primeiras experiências de interaçã o social. Por esta razã o, ela é
fundamental para o projeto de Honneth, assim como para sua critica de modelos,
a seu ver, insuficientes. O filó sofo alemã o deriva a tese da intersubjetividade
primá ria da teoria das relaçõ es de objeto de Donald Winnicott e sua forma de
compreender as relaçõ es de amor e de dependência mú tua entre mã e e bebê.
Tais relaçõ es de amor constituiriam uma base só lida para o desenvolvimento da
capacidade de ser si mesmo em um outro. Desta forma:

a experiência intersubjetiva do amor abre o indivíduo a este estrato


fundamental de segurança emocional (emotionalen Sichereit) que lhe
permite nã o apenas experimentar, mas também exteriorizar (Äusserung)
suas pró prias necessidades e sentimentos, assegurando assim a condiçã o
psíquica do desenvolvimento de todas as outras atitudes de respeito de
si293.

Ou seja, segundo tal perspectiva, levamos para esferas mais amplas da vida social
e para relaçõ es afetivas em idade madura a crença na exteriorizaçã o tranquila de
necessidades e sentimentos, uma crença que seria resultado da experiência
intersubjetiva de amor e de afirmaçã o de si presente inicialmente na relaçã o
entre mã e e bebê. Tal relaçã o poderia ser chamada de “intersubjetiva” por ela
ser, ao menos segundo Honneth, simétrica. Como se o bebê dependesse da mã e
da mesma forma que a mã e dependeria do bebê, isto no interior de uma relaçã o
de “identificaçã o emocional” onde a criança aprende a adotar a perspectiva de
uma segunda pessoa. Tal mú tua dependência poderia resolver-se através da
consolidaçã o de uma posiçã o de cooperaçã o e de segurança emocional que
permitiria, à criança, desenvolver sua “consciência individual de si”. Posiçã o na
qual o amor aparecia como uma “simbiose refratada pelo reconhecimento” e pelo
respeito à autonomia.
Neste sentido, o reconhecimento jurídico como sujeito do direito
forneceria a universalidade de relaçõ es que o amor desconhece. Tal
reconhecimento se constitui através de um alargamento histó rico progressivo no
qual o sistema jurídico deve ser a expressã o de interesses universalizá veis de
todos os membros da sociedade. O que exige a compreensã o recíprocas dos
membros da sociedade como livres e iguais. No entanto, o reconhecimento
jurídico diz respeito a qualidades universais que me fazem como pessoa em
geral. Faz-se ainda necessá rio um nível de reconhecimento que assegure a
posiçã o social de qualidades características que me diferenciam dos demais, sem
que isto implique necessariamente em quebra do princípio formal de igualdade.
Este terceiro nível nos abre ao problema da estima social e se funda na existência
de uma comunidade de valores culturalmente definidos pela coletividade.

Lutas sem risco

Mesmo assim, para fundamentar sua filosofia política, Honneth precisa


criar a imagem de um processo de reconhecimento que se realiza na confirmaçã o
de si pelo outro. Pois a segurança emocional gerada pelo cará ter bem sucedido
das demandas de amor no interior do nú cleo familiar estaria na base das
293
HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: zu moralischen Grammatik sozialer Konflikte.
Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 171
demandas sociais de reconhecimento da autonomia individual e da afirmaçã o de
seus sistemas particulares de interesse. Elas estariam também na base da
profunda sensibilidade dos sujeitos para experiências de desprezo e de injustiça.
Desta forma, Honneth constró i uma antropologia psicanalítica para orientar
processos de interaçã o social onde nã o há lugar para antagonismos insuperá veis.
Antropologia profundamente familiarista capaz de fornecer os fundamentos
morais dos conflitos sociais.
Honneth espera que tal antropologia psicanalítica seja compatível com
aspectos da reflexã o sobre conflitos sociais no interior da tradiçã o dialética de
Hegel e Marx. Para ele, a ideia fundamental de Hegel seria que “a luta pelo
reconhecimento constitui a força moral que impulsiona a realidade vital social
humana em direçã o ao desenvolvimento e o progresso” (HONNETH, 1992, p.
227). Pois a experiência moral de desprezo de minha dignidade de sujeito agente
e desejante estaria na origem dos movimentos de resistência social e de
sublevaçã o coletiva. Sendo assim, o progresso histó rico em direçã o à liberdade
seria a histó ria da realizaçã o, cada vez mais universal, de uma antropologia
psicanaliticamente orientada. Mas para Hegel entrar neste horizonte serã o
necessá rios alguns ajustes.
O principal deles está na maneira com a qual Honneth lê a dialética
hegeliana do senhor e do escravo. Honneth reconhece na referida dialética um
“fato transcendental” que aparece como prerrequisito para toda a sociabilidade
humana. Mas, em suas mã os, tal dialética será o movimento de conquista
paulatina de uma capacidade de “auto-restriçã o” através da qual aprendo a
limitar as ilusõ es de onipotência de meu desejo ao entrar em contato com a
irredutibilidade do desejo do outro. Desta forma “ego e alter ego reagem um ao
outro restringindo ou negando seus respectivos desejos egoístas” (HONNETH,
2010, p. 30).
Por projetar o conflito de interesses individuais como base da luta
hegeliana de reconhecimento,294 Honneth poderá compreender até mesmo a luta
de classes marxista dentro de um quadro de exigências morais de
autorrealizaçã o individual e de estima simétrica entre sujeito. Ele se apoia em
certas tendência detectadas nos escritos político-histó ricos e nos escritos de
juventude de Marx para afirmar que

[...] a luta de classes nã o significa para ele, primeiramente, um


afrontamento estratégico visando a aquisiçã o de bens ou de instrumentos
de poder. Ela constitui um conflito moral cuja questã o é a “emancipaçã o”
do trabalho, condiçã o essencial de que depende, ao mesmo tempo, a
estima simétrica entre sujeitos e a consciência individual de si
(HONNETH, 1992, p. 233).

A realizaçã o pelo trabalho nã o pode ser compreendida apenas a partir da


dimensã o da satisfaçã o das necessidades materiais, nem as lutas sociais a partir
da dimensã o ú nica do antagonismo econô mico. Honneth acredita que os escritos
políticos de Marx, contrariamente a suas aná lises do capitalismo, interpretam as
lutas de classe a partir da noçã o de uma ruptura ética.
No entanto, há uma dificuldade importante a ser salientada nesta
estratégia. Vimos até agora como Honneth funda o sofrimento de injustiça e
294
Como fizeram também Pinkard, 1994 e Habermas, 2004
desprezo, que nos levam à açã o política, em um terreno pré-político, marcado
por questõ es constitucionais normalmente ligadas à discussã o sobre a gênese da
individualidade moderna, da “consciência individual de si”. Ou seja, a pró pria
gênese da individualidade moderna aparece como um fenô meno pré-político.
Algo que deve ser politicamente confirmado, e nã o politicamente desconstruído.
Desta forma, os sentimentos de injustiça e desprezo sã o normalmente
compreendidos como resultantes do bloqueio da possibilidade de afirmaçã o
social e de reconhecimento jurídico de traços da identidade individual. Ou seja,
ao menos neste caso, reconhecimento e identidade caminham necessariamente
juntos.
Isto talvez explique porque os exemplos privilegiados de lutas de
reconhecimento para Honneth sejam as lutas pela afirmaçã o das “diferenças
antropoló gicas”295 pró prias à s lutas feministas, assim como aquelas pelos direitos
dos negros e homossexuais. Elas seriam exemplos deste “processo prá tico no
interior do qual experiências individuais de desprezo sã o interpretadas como
vivências típicas de todo um grupo, de forma a motivar a reivindicaçã o coletiva
de ampliaçã o de relaçõ es de reconhecimento” (HONNETH, 1992, p. 260). Ou seja,
experiências de desprezo ligadas a atributos de indivíduos em afirmaçã o de suas
diferenças culturais sã o interpretadas como violência que nã o afetam apenas o
Eu individual. No entanto, ainda nã o saímos da esfera da afirmaçã o de atributos
individuais da pessoa e da construçã o social de identidades.
Isto explica, por exemplo, porque sua recuperaçã o do conceito de
“patologias sociais” será , em larga medida, ligada à s discussõ es sobre o bloqueio
nas “condiçõ es sociais de auto-realizaçã o individual” (HONNETH, 2006, p. 35).
Como se a realizaçã o de si devesse, naturalmente, ser pensada respeitando as
estruturas do indivíduo ou, segundo Honneth leitor de Freud, as estruturas do
“ego racional”. Por outro lado, isto nos explica porque os modelos de sofrimento
privilegiados por Honneth sejam a anomia social e o sofrimento de
indeterminaçã o identitá ria.296

Modelos de patologias sociais

Aqui, devemos tornar mais preciso um ponto. Normalmente, as discussõ es


sobre anomia insistem no enfraquecimento da normatividade social devido ao
desenvolvimento exponencial das demandas individuais. Como se as demandas
de liberdade individual explodissem o quadro de regulaçã o das normatividades
sociais. Daí porque Durkheim (2005, p. 224) teria de constantemente insistir que
“o indivíduo, por si mesmo, nã o é um fim suficiente à sua atividade. Ele é muito
pouco. Nã o apenas limitado no espaço, ele é estreitamente limitado no tempo”.
Mas, na verdade, temos anomia nã o porque a individualidade levanta
demandas particulares e identitá rias específicas que nã o poderiam ser realizadas
pela ordem social. Uma situaçã o como esta nã o gera anomia, mas, se quisermos
utilizar um termo proposto por Durkheim, “egoísmo” ou, ainda, revoltas políticas
direcionadas ao reconhecimento de particularidades ou à ampliaçã o do direito
de escolha e decisã o. Temos anomia, ao contrá rio, quando as demandas deixam
de ser determiná veis, deixam de ter forma específica devido a um
enfraquecimento das normas com sua capacidade de individualizaçã o e de
295
Sobre o conceito de “diferença antropológica” ver, sobretudo, Balibar, 2011.
296
Como podemos ver em Honneth, 2005a
limitaçã o das paixõ es. Por isto, ao falar das causas sociais do suicídio, Durkheim
deve lembrar que os suicídios motivados pela anomia se distinguem tanto
daqueles motivados por uma individualizaçã o excessiva (os suicídios egoístas)
quanto dos motivados por uma individualizaçã o insuficiente (suicídios
altruístas). Neste contexto de anomia entra-se em um “estado de
indeterminaçã o” (DURKHEIM, 2005, p. 275) (ou, se quisermos utilizar um
vocabulá rio de Honneth, em um “sofrimento de indeterminaçã o”) no qual
nenhuma individualizaçã o é possível devido ao fato da sociedade estar, entre
outras coisas, submetida à “inorganizaçã o característica de nosso estado
econô mico” (p. 286) com sua “sede de coisas novas, de gozos ignorados, de
sensaçõ es inominadas, mas que perdem todo seu sabor desde que sã o
conhecidas” (p. 285). Diante de promessas constantes de gozo, produzidas pela
sociedade capitalista em ascensã o, toda satisfaçã o limitada é insuportá vel
exatamente por ser uma limitaçã o, toda escolha identitá ria é sem sentido
exatamente por ser uma multidã o de recusas. Daí as reprimendas de Durkheim
contra “este mal do infinito, que a anomia aporta sempre consigo” (p. 304) e que
só pode produzir có lera, decepçã o e lassidã o exasperada por uma sensibilidade
superexcitada.
Como Durkheim opera com um conceito quantitativo de diferença entre
normal e patoló gico,297 reconhecerá que um certo grau de anomia é necessá rio.
Assim, para ele, “toda moral do progresso e do aperfeiçoamento é insepará vel de
um certo grau de anomia” (p. 417). No entanto, algo nas condiçõ es particulares
do progresso em nossa sociedade produz uma situaçã o anormal e patoló gica de
anomia. Contra isto, Durkheim sugere um reforço das estruturas institucionais
que passe, sobretudo, pela consolidaçã o de vínculos comunitá rios ligados aos
agrupamentos profissionais.
Quando recuperar o conceito de patologia social, Honneth irá à sua
maneira partir deste diagnó stico de Durkheim, mas acrescentando um elemento.
Trata-se da compreensã o de como, nos ú ltimos trinta ou quarenta anos, esta
situaçã o de anomia social foi institucionalizada, transformando-se em um modo
de gestã o do sofrimento social e uma mola propulsora da ideologia neoliberal do
está gio atual do capitalismo. Lembremos aqui de afirmaçõ es como:

expectativas de auto-realizaçã o individual, que cresceram rapidamente


devido a uma combinaçã o historicamente ú nica de vá rios processos
distintos de individualizaçã o nas sociedades ocidentais dos ú ltimos trinta,
quarenta anos e que, neste tempo, tornaram-se tã o claramente um padrã o
institucionalizado de expectativas da reproduçã o social, perderam seu
propó sito (Zweckbestimmung) interno e, mesmo assim, tornaram-se a
base de fundamentaçã o do sistema. O resultado desta inversã o paradoxal,
na qual processos que outrora prometeram um crescimento qualitativo da
liberdade tornam-se agora ideologias da desinstitucionalizaçã o, é a
emergência de vá rios sintomas individuais de vazio interior, de
sentimento de ser supérfluo e desprovido de determinaçã o (HONNETH,
2010, p. 207-208).

Como podemos perceber, o diagnó stico nã o poderia ser mais pró ximo do quadro
fornecido por Durkheim. Exigências de autorrealizaçã o individual se
297
Como fica claro em: DURKHEIM, 2004.
transformaram em “ideologias da desinstitucionalizaçã o”, ou seja, em processo
de enfraquecimento da capacidade de coesã o e organizaçã o das normas sociais.
Com isto, produz-se uma desregulaçã o das normas sociais paga com patologias
ligadas ao sentimento depressivo de esvaziamento e à incapacidade de açã o.
Assim como teó ricos sociais como Luc Boltanski e Eve Chiapello (1999),
Honneth compreende claramente como tal anomia virou uma “força produtiva”
da economia capitalista em era de flexibilizaçã o e desregulaçã o contínuas. Ele
compreende também, tal como vimos no capítulo anterior, como essa gestã o
social da anomia é paga com o desenvolvimento exponencial de patologias
ligadas à desregulaçã o da capacidade de constituir identidades, como a
depressã o e seu “cansaço de ser si mesmo”, 298 a insegurança narcísica e os
transtornos de personalidade borderline. Mas, como gostaria de insistir, sua
resposta nã o parece escapar da procura em reconstruir as bases normativas para
institucionalidades capazes de garantir o desenvolvimento bem sucedido de
indivíduos. Ela ignora que o problema nã o se encontra nos processos de
desinstitucionalizaçã o, mas no impacto de outra forma de regulaçã o social ligada
à expropriaçã o psíquica do estranhamento.

298
Ver, a este respeito, o influente livro de Ehrenberg, 2000.

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