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ETNOGRAFIA PRISIONAL: Presídio Estadual de Camaquã -

Apontamentos iniciais sobre as vozes do “cemitério dos vivos”

Juliano Gomes de Carvalho


Orientador: Professor Augusto Jobim do Amaral1

Resumo: O presente artigo vem fazer uma bricolage de alguns dados parciais colhidos por
conversas feitas junto aos apenados do Presídio Estadual de Camaquã. Tal trabalho é
intermediado pelo Observatório da Violência e Direitos Humanos da Universidade Luterana
do Brasil (Ulbra), campus Guaíba. O projeto, que tem um braço avançado em Camaquã (RS),
neste ponto, propõe fazer um estudo do sistema prisional desde dentro, para que se possa
identificar algumas questões essenciais desde a escuta dos internos e, assim, se tenha
condições de produzir conhecimento hábil á redução do impacto da violência vivenciada
naquele cotidiano. Ademais, trazem-se elementos suplementares para reforçar a
responsabilidade social e repensar a problemática acerca da necessária transformação do
panorama do sistema carcerário contemporâneo.

Palavras-chave: Sistema prisional – discurso jurídico-penal – direitos humanos – execução


penal.

INTRODUÇÃO: à título de enquadramento da pesquisa e sobre o universo do encontro 2

O objetivo principal da pesquisa é iniciar um estudo etnográfico sobre o universo


prisional referente aos apenados do Presídio Estadual de Camaquã, quer dizer, um estudo que
diretamente possa trazer à lume, desde dentro, a voz não raramente ignorada pelo sistema
carcerário em geral, ou seja, dos atores que vivenciam a violência cotidiana. A finalidade é
colher dados, informações, e aduzir reflexões que auxiliem ao envolvimento e à compreensão
mais ampla, não apenas das autoridades diretamente responsáveis, mas da sociedade como um
todo, diante da temática complexa e difícil que é o sistema prisional.

Acadêmico bolsista PROICT 2010 do curso de Direito da Ulbra, Campus Guaíba RS.
1
Advogado, Mestre e Especialista em Ciências Criminais (PUCRS); Doutorando em Altos Estudos
Contemporâneos (Universidade de Coimbra – Portugal); Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu
(Universidade de Coimbra – Portugal); Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da ULBRA.
2
O Observatório da Violência e Direitos Humanos, onde vem à tona esta pesquisa, é um espaço de
monitoramento interdisciplinar da violência e da violação dos direitos humanos. O trabalho de pesquisa está
vinculado ao Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA - Campus Guaíba). O grupo de
Camaquã começou a operar, sob a coordenação do Professor Alberto Wunderlich (Docente do Curso de Direito
da Universidade Luterana do Brasil, coordenador do Observatório), em 09 de setembro de 2009. Em 2010, foi
obtida a bolsa dedicada à pesquisa PROICT/ULBRA, sob a orientação do Professor Augusto Jobim do Amaral
que, com grande auxílio mesmo antes da obtenção da bolsa, vem dando suporte a esta complexa missão.
Necessário frisar ainda a fundamental participação do professor Gilberto Britto que, junto a SUSEPE, obteve
apoio e autorização para as entrevistas junto aos apenados, sem a qual este trabalho seria impossibilitado.
2

O material sobre o qual se debruça o texto advém de trabalho iniciado em setembro de


2009, que atualmente encontra-se em fase de entrevistas com os apenados em regime
fechado.3 Pretende-se posicionar o detento também como agente de construção do
conhecimento diante do Sistema Penal, ao invés de seguir o midiático movimento da cultura
punitiva maniqueísta que se reduz a colocar a vítima como centro das políticas penais,
ressonando a autoridade do “senso comum”. Como assevera Garland: “a importância da
pesquisa e do saber criminológico foi rebaixada, e em seu lugar outorgou-se nova deferência à
voz da “experiência”, do “senso comum”, daquilo que “todo mundo sabe”4. Assim, busca-se
trilhar um caminho definido complexamente desde um sujeito atravessado pelas linhas de
força do poder/saber institucionalizado.
Em agosto de 2009, existiam na cidade de Camaquã 255 pessoas encarceradas, porém
o presídio que só possuía vagas para 134 presos na época5, desde meados de junho de 2010,
conta com 180 vagas, ainda incompatível com a população que se encontra regularmente
entre 270 a 300 internos6. O universo estudado abrange, pois, amplamente os aspectos que
envolvem o sujeito em contato com a instituição total7 e a natural importância de se perceber
o mundo fronteiriço, escondido da sociedade por muitos motivos, que ali há, com leis próprias
e eficazes a reforçar os simbolismos de sua própria manutenção.

1. A FRONTEIRA E O OUTRO LADO

Os muros de uma prisão são muito mais espessos do que sua estrutura física pode
sugerir. Assim que as entrevistas começaram a ser registradas, uma gigantesca quantidade de

3
Estes encontros ocorrem em até quatro vezes por semana, dependendo da disponibilidade de local e possuem
duração média de cinqüenta minutos; buscando, sobretudo, oferecer um espaço de escuta ao interno em que se
tenta manter ao mínimo qualquer direcionamento no relato. 3 Desta maneira, sem condução específica, ao menos
deliberadamente, concebeu-se proporcionar condições à fala inesperada, à espontaneidade, durante os encontros.
4
GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução,
apresentação e notas de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 58.
5
Dados referentes à publicação da primeira fase desta pesquisa intitulada “Uma Radiografia dos Apenados na
Sociedade Camaqüense”, artigo publicado nos Anais do XII Seminário Intermunicipal de Pesquisa – X Salão de
Iniciação Científica e Trabalhos Acadêmicos – VII Mostra de Atividades Extensionistas e Projetos Sociais da
Ulbra Campus Guaíba. Guaíba: 2009 [Formato Digital].
6
Informação que é apenas auferida num quadro localizado na entrada do presídio, onde são atualizadas
diariamente informações sobre população total do estabelecimento. Portanto, não há acesso a um número exato
diante das freqüentes mudanças.
7
Como na maior parte destas instituições, o Presídio de Camaquã localizado na Avenida 7 de setembro s⁄n,
muito perto de um bairro de reconhecível vulnerabilidade social, a menos de 1km do centro da cidade tem
altos muros com arames farpados, guaritas e guardas armados na entrada e em pelo menos umas das guaritas que
vigiam os pátios. Para o momento, porém, a descrição física do estabelecimento prisional não será aquele dado
mais necessário ao detalhamento do trabalho, ainda que as violências e situações advindas deste ambiente
tenham sua presença nos silêncios ou nos procedimentos definidos como “normais e rotineiros”
3

informações soterrou qualquer expectativa de um entendimento simples dos dados. A seguir,


serão delineados alguns traços deste lugar tão debatido e ao mesmo tempo invisível à
sociedade. Mesmo com dados preliminares, um olhar frontal é revelador e importante no
sentido de compreender os mecanismos desta fronteira.

1.1 Infância, família, escola: alguns significantes iniciais

Os relatos até o momento sugerem, naturalmente, uma forte relação entre momentos
limites na infância combinados com a tentativa individual de resolver problemas sociais
graves, sintomas de fragilização dos laços sociais sob o qual o interesse pelo delito toma lugar
e ocupa posição de destaque, torna-se uma opção privilegiada e disponível. Nota-se, pois,
uma evidente falta de uma adequada presença do Estado para oferecer minimamente opções a
certos grupos sociais. “Sou novo, mas vivo na rua desde meus cinco anos de idade, roubando,
posando na rua”8 (...) “Eu não tive mãe, minha mãe era de cabaré e coisa, aí fui morar com
ela. Fui criado pela FEBEM Beira Rio, lá na Padre Cacique em Porto Alegre. O Sr.
Conhece?”9 Ao mesmo tempo em que a fala de ambos demonstra valentia por ter
sobrevivido, aflora no dizer destes jovens o ressentimento pelo abandono. Atenção esta
apenas dispensada quando veiculada pela punição, controle e discriminação. Sua criação na
antiga FEBEM, sua formação institucionalizada, apenas representa o problema paradigmático
da grave ineficácia dos procedimentos punitivos de controle que o responsabilizam desde seus
cinco anos de idade.
A família, por outro lado, é inarredavelmente um momento especial nas conversas,
certamente com contornos e tons significantes de acordo com a posição na vida de cada
entrevistado.10 Falar sobre conflitos familiares é um desafio por si, ainda mais sob uma rotina
de controle, e, mais, considerando-se que as manifestações referentes às relações afetivas ou
familiares, não raro, dependendo do caso, podem trazer conseqüências nefastas ao apenado.
Se a participação da família, sob a ingerência do estabelecimento prisional, é considerada
fundamental para o “bom conceito” do interno, por outro lado, certamente também é motivo
de angústia por parte do recluso. Escolher, por exemplo, entre sobrecarregar as despesas
8
Entrevista 11 com V.T. em 26⁄07⁄2010. Anexo 02.
9
Entrevista 04 com M. A. em 12⁄07⁄2010. Anexo 01.
10
Frise-se que as informações não permeiam aquilo que se poderia esperar, ou seja, apenas a pura ausência de
vínculos familiares. Pelo contrário, destacam-se entre os internos laços consideráveis com elas. Desde o
profundo sentimento de saudades, ou mesmo de medo que algo ocorra com seus familiares na sua ausência -
objeto constante das falas, que não raro é desconsiderado pelo discurso oficial sobre o sistema penal -, há a clara
confirmação da contraposição ao discurso redutor das agências criminalizadoras que os desprovêem de qualquer
“bondade”, que os desumaniza estigmatizando-os até mesmo em suas aflições, preocupações e amores
4

familiares e ser considerado um apenado socialmente apto; ou então recusar a visita para
preservar o orçamento familiar, geralmente limitado, ou simplesmente para não impor
sofrimento aos seus familiares, acaba por ser um dos dilemas diariamente enfrentado. Como
no relato de L.A. que espelha o contraditório sentimento diante da presença da mãe: “não sei
porque que Deus foi tão injusto com nós como filho pra ela, pra ela passar tanto trabalho, eu
me culpo muito por isto, mesmo. Peço pra ela. Não vem, se eu estou bem. Te mando um
recado quando eu estiver com saudades. Porque eu não quero que ela sofra o que eu estou
sofrendo.”11. E ainda teimamos, como autistas juristas em sustentar a pessoalidade da pena,
como se ela não tivesse como afetar alvo muito maior que a liberdade do interno. Mesmo que
distantes, às vezes, concomitantemente, a família sofre os efeitos da prisão, redobrado ainda o
sofrimento quando tentam os internos preservar seus familiares do contato com este
“cemitério dos vivos” 12.
O fator escolar é outro significante de estudo que quantitativamente não apresenta
maiores novidades frente aos processos seletivos de criminalização, visto os notáveis índices
de pauperização em que se encontram os “clientes do sistema”. Por outro lado, é sempre
interessante a avaliação dos entrevistados frente ao lugar que a escola deixou de ocupar em
suas vidas.13 Na maioria dos casos relatados, observa-se um problema claro de
vulnerabilidade social, em que precipitadamente haverá, pelo discurso das agências de
criminalização, a direta relação da violência com a definição de um grupo como
patologicamente delinqüente. Tal como ensinava Foucault14, esta sim é a maior violência
perpetrada, aquela que se subjaz contra o próprio grupo rotulado.

1.2 O crime e a penitência do desamparo legal

No tocante ao universo dos crimes que respondem, como esperado, são em geral
aqueles ditos “contra o patrimônio”, mostrando novamente a estrutural seletividade do

11
Entrevista 17 com L.A. em 13⁄08⁄2010. Anexo 03.
12
Expressão utilizada por M. A. para definir a cadeia. Entrevista 04 em 12⁄07⁄2010. Anexo 01.
13
Seja pelo abandono por falta de interesse já que supostamente não haveria qualquer tipo de valorização por
parte dos pais quanto à importância da escola , seja pelo abandono escolar para ajudar no próprio sustento
familiar pois frequentemente observam-se numerosos parentes , ou, finalmente, devido à influência da
drogadição
14
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 35. Ed.
Petrópolis. RJ: Vozes, 2008, p.230. É pela escuta destes sujeitos que outra verdade é produzida, não aquela
definitiva e inconteste dos meandros do senso comum que jamais se coloca em questão, mas aquela provisória
por certo, mas justamente mais verdadeira que qualquer outra exatamente por ter ciência de sua provisoriedade.
FOUCAULT, Michel. “Nietzche, A Genealogia e a História”. In: Microfísica do poder. Organização e tradução
de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 19.
5

sistema penal, previsível e útil à indústria do medo. Definições legais que, ademais, como se
observam nos relatos, são de difícil acessibilidade e entendimento pelos apenados via
processo de execução. Diante da linguagem fechada do mundo jurídico e a dificuldade de
interpretação e auxílio profissional adequado, mais uma face cruel da execução da pena é
apresentada. Grande porcentagem da população carcerária é analfabeta ou analfabeta
funcional, fazendo os internos completamente excluídos de todo processo jurídico que define
suas vidas.15
Nas entrevistas aflora a enorme distância entre as necessidades daqueles que estão
dentro da prisão e o que o aparato de justiça penal lhes oferece. Nada mais lógico do que um
conflito constante nesta situação, onde o sistema oferece algo que o interno não quer ou não
entende. O mundo jurídico dificulta, e até impossibilita a participação do interno no
andamento de seu processo, pois este não entende os mecanismos e critérios que decidem seu
futuro, gerando enorme insegurança e expectativa. Entender torna-se impossível, ou
intolerável, quando só depois de meses de espera obtém-se algum contato com a assessoria
jurídica, fazendo com que muitos parem de considerar a justiça como algo a ser considerado.
A busca por algum sinal de esperança noutros lugares, fugas desesperadas, comumente
encontra abrigo na droga ou, com mais sorte, em alguma crença religiosa. Pode-se relatar o
caso de R.C. que, durante uma conversa, contou que este encontro fora o único em que foi
literalmente ouvido durante os dois anos de regime fechado que cumpre, além de afirmar que
nada espera da justiça, pois se sente esquecido, agora ainda mais do que quando em
liberdade.16 Já o relato de L.R., que está a quatro meses em regime fechado, encarcerado pela
primeira vez, fala do terror constante referindo-se ao seu colega de cela: “tem uma rapaz aí
que está a um ano e três meses sem condena”17.
Diante deste explícito desamparo legal, observam-se instabilidades emocionais e
revoltas que se desdobram em atitudes violentas. Os relatos reforçam a distância do dito nas
numerosas folhas dos processos que nem de perto tangenciam o dizer essencial de suas vidas.
As falas mostram o forte descrédito da justiça pelos internos, não necessariamente pela
condenação em si, mas por não tê-los escutado realmente. Reforça-se no imaginário comum

15
Como em todo ambiente social, este grupo excluído produz, por sua vez, subgrupos internos, definidos por
regras próprias ao convívio dentro da prisão. Crimes de tipos considerados intoleráveis para os internos são
direcionados ao setor do “seguro”, termo usado para definir os apenados que devem permanecer separados dos
demais justamente por conflitos específicos, como os sexuais, ou condutas conceituadas como delitos graves
pelas regras da prisão, entre elas a denúncia ou “X-9” “trenador” (aquele que mente ou usa nome de outro para
obter vantagem) e também quem possui algum conflito anterior e seja negada sua presença junto aos internos da
“galeria” (grupo geral da prisão).
16
Entrevista 15 com R.C. em 06⁄08⁄2010. Anexo 04.
17
Entrevista 05 com L.R. em 05⁄07⁄2010. Anexo 05.
6

dos apenados a sensação de injustiça por estar respondendo por algo, sem ter sido posto em
questão o que de nuclear tinha de ser considerado.

2. A CONFIGURAÇÃO DOS CORPOS, E PARA ALÉM DELA

Durante os meses de contato direto com o ambiente prisional, quase que por inércia,
percebem-se os procedimentos disciplinadores de configuração dos corpos nos seus diversos
níveis18. Desde a “chamada” (contagem dos presos), onde todos respondiam presente como
numa escola, no fracionamento do tempo e a busca de um apenado dócil, subjugado a todo
procedimento imposto, encarando estes rituais com naturalidade e previsibilidade, a
constituição do preso se faz presente. Sobre o objetivo disciplinador, é o paradoxo que aflora:
sabe-se que a prisão constrói a delinqüência e ainda se teima em considerar o apenado
“enquadrado”, aquele se sujeita a esta prática modelar de obediência (des)individualizadora
degradante da subjetividade, como exemplo.
Os relatos impressionam pela violência disciplinadora que está inserida no cotidiano
penitenciário. Muito mais do que perder a liberdade, o corpo do delinquente é definido
constantemente. A disciplina prisional não considera qualquer experiência de vida anterior.
No momento que o homem rompe a fronteira das grades, transforma-se num preso e
merecedor de uma transformação que o tornará o cidadão ideal, dócil e produtivo. O apenado
acaba por encarar esta construção de subjetividade como algo realmente conveniente em sua
vida, que serão pessoas melhores incorporando as regras de disciplina. Como A.D. que elogia
a atitude de seu colega de cela que já adquiriu os hábitos impostos por uma prisão de
segurança máxima, quando ao lavar as mãos sempre pede permissão: “posso fazer uma
luva?”19. Reforçando diariamente o controle dos atos, busca-se um “outro homem”,
ignorando-se(?), porém, que a prisão produz exatamente o que o sistema declara não extirpar:
a prisão secreta seu próprio alimento.20
As entrevistas testemunham o grande esforço dos apenados na busca de meios que
amenizem as aflições durante os dias na prisão. A sanidade mental, na opinião da grande
maioria dos entrevistados, pode depender da habilidade em desviar os pensamentos para fora
daquele ambiente. Na luta para superar as situações enfrentadas diariamente na prisão, os
choros reprimidos denunciam o sofrimento na tentativa de imaginar o outro lado dos muros.

18
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 35. Ed.
Petrópolis. RJ: Vozes, 2008, p.195-214.
19
Entrevista 10 com A.D em 22⁄07⁄2010. Anexo 06.
20
FOUCAULT, Michel. “Sobre a Prisão”. In: Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, p. 131.
7

Os relatos que não deixam de beirar o desespero. M.A., que viveu na rua desde seus 5 anos de
idade, diz: “o meu sonho, e eu vou conseguir, é ter uma casa-lar pra criança, tira criança da
rua.”21. Outro entrevistado, P.A., mesmo depois de criticar o trabalho de investigação
superficial que o colocou na prisão, revela “até fico meio assim de falar, é ser detetive, meu
sonho sempre foi esse aí.”22. A.L., ainda noutro encontro, revela também:“as vezes eu fico
pensando, todos os dias de manhã vem vindo o carrinho, do café, vem vindo aquele barulho
do carrinho, todos os dias a mesma coisa. Tu te acorda e ta aqui dentro e pensa que ta em
casa, mas não ta em casa (...) mas não, tá na cadeia.”23. Encarar a realidade da prisão exige
grande esforço mental, aprisionar o corpo é considerado o menor dos males pela grande parte
dos entrevistados frente ao flagelo da alma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: a sempre inconclusa tarefa do ator jurídico

A pena aplicada pelo jurista hoje não se sustenta frente à realidade dos efeitos de sua
execução. Apesar disto, os operadores do direito se escondem sob o manto do seu discurso e
desviam o olhar frente à realidade. A pena como fonte de aplicação de dor não pode ser
justificada, como bem descreve Zaffaroni: “a programação normativa baseia-se em uma
´realidade´ que não existe”24. Desta maneira, o discurso penal que supostamente protege e
salva claramente tem uma produção de níveis de violência muito maior do que aquilo que
procura combater. A busca por um sistema penal garantidor é a função do ator jurídico que
pretende salvar vidas e reduzir danos, pois a “a realidade operacional de nossos sistemas
penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico penal.”25. Suma, o
conflito entre a real operacionalidade do nosso sistema penal e as previsões fantasiosas e
nefastas destas práticas por alguns discursos jurídico-penais deve sempre impulsionar os
incansáveis estudos de vanguarda crítica. Estes definitivamente desafiadores por exatamente
darem condições de alguma mudança ao iluminar e dar voz aos lugares mais sombrios do
sistema penal.

21
Entrevista 04 com M.A. em 12⁄07⁄2010. Anexo 01.
22
Entrevista 03 com P.A. em 08⁄07⁄2010. Anexo 07.
23
Entrevista 09 com A.L. em 16⁄07⁄2010. Anexo 08.
24
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de
Janeiro, Revan, 1991, p. 12.
25
Diante da total incapacidade de realização daquilo que sempre se propôs, tendo em vista as características
estruturais do exercício de poder do sistema penal – tal como desconsiderar as características sociais, selecionar
condutas criminalizantes, concentrar poder – deve-se buscar incessantemente a “brusca aceleração do descrédito
do discurso penal”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do
sistema penal, p. 15.
8

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Juliano Gomes. “Uma Radiografia Dos Apenados na Sociedade Camaquense”,


In: Anais do XII Seminário Intermunicipal de Pesquisa - X Salão de Iniciação Científica e
Trabalhos Acadêmicos – VII Mostra de Atividades Extensionistas e Projetos Sociais da
ULBRA (Campus Guaíba). Guaíba: 2009 [Formato Digital].
DELEUZE, Gilles. La Isla Desierta y Otros Textos, Textos y entrevistas (1953-1974). Edición
preparada por David Lapoujade. Versión castellana de José Luis Pardo. Valencia: Pre-Textos,
2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete.
35. ed.. RJ: Vozes, 2008.
FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber. Organização e seleção de
textos de Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2° ed.. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado.
26° ed.. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GARLAND, David. A Cultura do Controle: Crime e ordem social na sociedade
contemporânea. Tradução, apresentação e notas de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan,
2008.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do
sistema penal. Tradução Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 4° ed.. Rio de
Janeiro: Revan, 1991.

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