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Música
BB King em
1971. Fotografia de Heinrich Klaffs
Com origens nas profundezas do sul dos Estados Unidos, os blues nasceram de uma
miscelânea, de uma infusão entre o território americano, desde o jazz ao rock n’ roll, e
as raízes africanas, nomeadamente nas suas tradições musicais e espirituais.
Musicalmente, o diálogo entre dois diferentes discursos (o call and response), as suas
escalas próprias, e o progresso harmónico dos acordes, em especial com a sua blue note,
pautada com um registo mais agudo ou mais grave que o estandardizado. O efeito
repetitivo do ritmo produzido a partir dos swings comummente usados no jazz dão
forma e conteúdo aos conhecidos grooves. De letras mais modestas e simples, passou-se
a um registo gradualmente mais tripartido, repetindo as primeiras estruturas musicais e
depois findando numa linha mais longa e acentuada. O surgimento deste género musical
coincide com a emancipação das comunidades afroamericanas, nomeadamente após o
fim da escravatura e o surgimento dos juke joints, estabelecimentos onde estas
comunidades conviviam e onde davam os primeiros passos na produção musical. É um
caminho que, ainda hoje, prossegue em marcha consistente e vibrante, de coração cheio
e com vontade de se exprimir.
No coração daqueles que não diferenciavam o country dos blues, nasciam grandes
impulsionadores deste género cada vez mais ramificado. Bo Carter, Blind Lemon
Jefferson, Lonnie Johnson, Tampa Red (o “mágico da guitarra”) e Blind Blake faziam
das cordas um caminho de amplificação da sustentação da música, antecipando a
técnica da slide guitar (o uso de um tubo oco e cilíndrico nas cordas da guitarra usada,
para produzir tons bem distintos). A improvisação era muita, embora as emoções
fossem consolidadas e anunciadas desde há muito, vocalizando a densidade deste
género musical. Foi assim que os tais “Delta Blues” se desenvolveram, misturando as
origens rurais com as novidades urbanas. O seu grande mestre seria Robert Johnson,
que somente viveu 27 anos, mas que deixou um legado incontornável e inestimável,
sustentado num talento instrumental e vocal muito raro. Charley Patton e Son House,
seus antecessores e os fundamentos deste ramo do género, abriram-lhe esse caminho;
enquanto no sudoeste do país, onde o fingerpicking na guitarra se assimilava à
música ragtime e onde Blind Willie McTell e Blind Boy Fuller eram mestres,
acompanhados de letras verdadeiramente poéticas e delicadas, na herança de Curley
Weaver, Barbecue Bob e Kokomo Arnold.
Ainda em Memphis (1920s-1930s), as jug bands, grupos de músicos que atuavam com
instrumentos convencionais, mas também com outros artesanais e domésticos, davam
uma outra roupagem aos blues. A banda de Guss Cannon foi acompanhada por outros
nomes de relevo, como Frank Stokes, Sleepy John Estes, Robert Wilkins, Kansas Joe
McCoy, Casey Bill Weldon e uma mulher, algo que, então, era surpreendente: a célebre
Memphis Minnie, que brilhava com a guitarra e com a voz de um modo arrebatador. De
Memphis, muitos partiram para zonas mais urbanas, nomeadamente para Chicago, em
que, no início dos anos 1940, os blues ganhavam um caráter cada vez mais urbano, em
especial com Big Bill Broonzy e pelo pianista Leroy Carr e o seu guitarrista, Scrapper
Blackwell (um modelo cada vez mais recorrente no futuro).
Tornaram-se, assim, mais elaborados e adaptados a um público bem mais amplo, onde
muitas mulheres viram o seu protagonismo aparecer e perdurar. Assim seria no caso de
Ma Rainey, uma das vozes mais imponentes da história do género, Bessie Smith (a
“Imperadora dos Blues”, com uma voz ainda mais pesada, embora bela), Lucille Bogan
e também Mamie Smith, que, embora não fizesse parte do grande trio de vozes no
feminino, foi a primeira a gravar uma música do género em 1920. Outros casos célebres
foram os de Lucille Hegamin e Victoria Spivey, gravando os seus “race records” (uma
distinção que era feita para aqueles que, de etnia branca, compravam os discos) com
uma grande improvisação melódica, com construções sintáticas distintas e com muitas
onomatopeias, que autenticavam o som com a pujança humana e dramática que os blues
exigiam desde sempre. Também Sister Rosetta Tharpe, uma instrumentista de vulto na
música gospel, iluminou um caminho distante da discriminação racial e sexual, com um
folclore capaz de se superar nessa dimensão.
Depois de tantas turbulências políticas e sociais, que constituíram o pano de fundo das
décadas exploradas atrás, chegaram os anos 1950, em que os blues já se tinham
ramificado no R&B e em que ganhavam cada vez mais espaço na indústria musical. O
seu shuffle era feito cada vez mais à base de instrumentos elétricos, desde a guitarra ao
baixo, passando pelo duplo baixo (o seu antecessor), a bateria e a harmónica, recorrendo
a amplificadores de voz e de guitarra. Em Chicago, e encaminhados pelas origens do
delta de Mississippi, estava Elmore James, o grande “rei” da slide guitar, assim como
Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Willie Dixon (um dos mais célebres compositores, que
escreveu diferentes canções de referência do género (os blues standard), como “Hoochie
Coochie Man” ou “Back Door Man”, e Jimmy Reed, com a força das cordas das suas
guitarras e baixos e a imensa profundidade das suas vozes. Com a harmónica, e também
em Chicago, Little Walter, Sonny Boy Williamson II e Sonny Terry gravavam para
editoras distintas, como a Chess Records, a Checker Records, a Vee-Jay Records ou a
J.O.B. Records, com a competição da Sun Records, deslocada para Memphis até,
também ela, ter subido para Chicago em 1960, após ter descoberto o estelar Elvis
Presley.
Pantanoso também se tornou no estado de Louisiana com os swamp blues, mais lentos e
alicerçados por ideias crioulas e zydecas, abrindo espaço para que a simplicidade e a
estabilidade de Lightnin’ Slim, Slim Harpo, Sam Myers e Jerry McCain se impusesse.
Outros nomes eram revisitados e reeditados, como Mississppi Fred McDowell, o que
levou a que o norte desse estado se tornasse renovado e reforçado com
um boogie hipnótico ao sabor de estruturas musicais pouco convencionais, enfatizando
a percussão e o ritmo. Os anos de 1960 trariam bastantes atribulações civis e sociais,
principalmente com as reivindicações por parte das comunidades afroamericanas de
uma efetiva igualdade social, política, económica, cultural e cívica na sociedade do país.
A solidificação do rock n’ roll e o surgimento do soul também agitariam as águas
musicais um pouco por todo o mundo, que se tornaram cada vez mais azuis com
festivais na Europa e com uma presença cada vez mais assídua no Reino Unido, em que
se inspiravam e imitivam as grandes lendas que os blues tinham criado. Abria-se espaço
para expressões mais híbridas, que seriam a fundação da world music, com origens
indígenas, mas também outras conotadas com vários géneros musicais (o caso do
novaiorquino Taj Mahal).
É nesta fase que se torna verdadeiramente reconhecido B.B. King (Blues Boy King),
que, à imagem de John Lee Hooker, importou elementos do rock e colaborou com
diversos músicos de etnia branca. King seria conotado como “rei dos blues”, o
verdadeiro rei, já que criou um estilo de produção de solos de guitarra verdadeiramente
único, fazendo as cordas balançar e arquear mais para sons mais robustos e abertos, sem
recear as vibrações que daí advissem, os vibratos. Consigo, não dispensava a presença
do saxofone, do baixo, da trompete e do trombone e abriu portas a que os blues se
tornassem cada vez mais reconhecidos e, de igual modo, capazes de se integrar em
várias formas de dar música. Bobby Bland e Albert King fariam isso mesmo.
Como já mencionado, a questão dos direitos civis mexeu muito com a década de 1960 e
foi assim que os próprios blues foram revisitados e reinterpretados, crescendo o
interesse pelas tradições e pelas raízes musicais e onde nomes consagrados dos
acústicos, embora ainda não mencionados, como Mississippi John Hurt, Skip James e
Reverend Gary Davis, voltaram. Um trabalho em muito alavancado pelas reedições da
Yazoo Records e pelos discos de J. B. Lenoir, que se inspirou nos movimentos de
liberdade de expressão dos meados da década de 1960. Com um look renovado e “rock
n’roll’zado”, aparecia o grupo de Paul Butterfield, assim como, em Inglaterra, os
grandes grupos, como os Fleetwood Mac, os The Animals, John Mayall & the
Bluesbreakers e The Yardbirds, onde começou o legado de Jimmy Page, futuro
guitarrista dos Led Zeppelin, e o do também guitarrista Jeff Beck. Nascia o blues rock,
catapultado pela presença imponente dos The Doors, da Jimi Hendrix Experience, dos
talentos de Janis Joplin e da Allman Brothers Band. A alma psicadélica e elétrica
cresceu e arrastou-se até ao Texas, onde Johnny Winter e Stevie Ray Vaughan, assim
como os ZZ Top, deram-lhe um toque tradicional e enraizado nas origens dos blues. De
igual modo, andaram os soul blues, com as aspirações de Otis Redding, de Ray Charles
e de Sam Cooke.
Mais perto dos nossos dias, desde Robert Cray a John Mayer trazem uma ideia de
progressividade dos blues, que não se fixam nas gerações anteriores, mas que também
procuram reinventar-se, nomeadamente ao olhar do indie rock e de muita música local,
nomeadamente de proveniências latinas e periféricas. Carlos Santana, por exemplo,
assim como nomes, como Joe Bonamassa, Gary Clark Jr., Derek Trucks, Susan
Tedeschi, fazem parte de uma nova geração que reverencia as origens, mas que também
não deixa de parte a possibilidade de inovar e de se fazer diferenciada. São blues que se
consagram com um sentido de revelação, por vezes bíblico, mas mais íntimo e
personalizado do que de outro modo. As suas fontes capacitam-lhes de uma alma
própria, emancipadora, munida de uma consciência cívica crítica. O seu presente
assegura um papel de referência e de identidade para muitas das comunidades flageladas
e fragilizadas durante os tempos. Quanto ao futuro, a segurança de um legado
permanente e irreverente, de sonoridades azuladas como o céu, mas rentes na terra.