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milton.torres@unasp.edu.br
1. Introdução
Este trabalho tem por foco uma experiência didática intercultural mediada por
tecnologias educacionais. Trata-se de um esforço inovador e interdisciplinar
empreendido conjuntamente por duas instituições de ensino superior, a Universidade
do Texas, localizada em Austin, nos Estados Unidos, e o Centro Universitário
Adventista de São Paulo, localizado em Engenheiro Coelho, no estado de São Paulo.
A parceria, proposta pela instituição norte-americana, promoveu a junção virtual de
duas classes de graduação, uma de cada instituição, e uma classe de mestrado
profissional em educação, do centro universitário brasileiro. O empreendimento contou
com a participação de cerca de cinquenta alunos norte-americanos matriculados numa
disciplina introdutória de língua portuguesa, e oriundos de vários cursos e programas
da universidade texana; cerca de quinze alunos brasileiros do quarto ano do curso de
Tradutor e Intérprete, em sua grande maioria do sexo feminino, matriculados numa
classe optativa criada especificamente pela instituição brasileira para a parceria e
intitulada “Comunicação intercultural”; e, finalmente, quatro alunas do mestrado
profissional em educação da mesma instituição brasileira, matriculadas numa
disciplina optativa ad hoc intitulada “Comunicação intercultural e educação”. Apenas
três dos cinquenta alunos norte-americanos conseguiam se comunicar,
rudimentarmente, em língua portuguesa, enquanto que praticamente todos os alunos
brasileiros da graduação tinham relativa fluência na língua inglesa. Por outro lado,
apenas uma das quatro alunas brasileiras do mestrado conseguia se comunicar em
língua inglesa, ficando as demais na dependência da interpretação cochichada que
lhes era oferecida em um revezamento cumprido pelos alunos do curso de Tradutor e
Intérprete durante a aula, que se realizava integralmente em língua inglesa e que
ocorriam toda segunda-feira, das 19 às 21h, no horário de Brasília, sob a direção de
três docentes, dos quais dois eram pós-doutores e uma pós-doutoranda. A disciplina
optativa contemplava dois créditos, o que resultou em dezoito encontros semanais
durante o primeiro semestre de 2018. No decorrer desse período, foram realizados
quatro encontros on-line, nos quais os alunos brasileiros interagiram diretamente com
os alunos norte-americanos sob a direção do instrutor norte-americano. Além disso,
cada instituição superior designou um monitor para assessorar os demais alunos em
relação ao uso da tecnologia empregada na disciplina. O objetivo deste trabalho é,
portanto, refletir sobre a experiência e contextualizá-la em relação às preocupações
dos instrutores brasileiros, aqui representadas sob as metáforas do polegar e do
dedão do pé.
O filósofo Michel Serres fala com entusiasmo, em seu livro Thumbelina: the
culture and technology of millenials, de 2014, da geração atual, que ele descreve como
sendo a geração do polegar. Segundo ele, com o uso constante do polegar, a nova
geração está trocando sua capacidade de reflexão por um bem que ele julga mais
valioso: a criatividade. Para o filósofo, esse é o próximo passo na evolução da
humanidade. Trata-se de treinar o cérebro para ser tão ágil e maleável quanto um
polegar que desliza veloz sobre o console compacto de um dispositivo eletrônico. A
previsão de Marshall McLuhan, renomado educador canadense é ainda mais
surpreendente. De acordo com ele,
Henry (2008) fala, porém, de estudiosos com uma constatação muito mais pessimista,
a de que a nova geração não passa de “uma raça alienígena de exibicionistas que vive
cada momento de suas exaustivamente documentadas vidas através de dispositivos
digitais”. Com uma tônica semelhante, Twenge (2017) afirma que a geração atual, à
qual ela chama de “IGen”, uma expressão que equivale a “geração EU”, é formada por
crianças hiper-conectadas que crescem menos rebeldes e mais tolerantes, mas mais
infelizes e completamente despreparadas para a vida adulta. Por isso, Carey (2009
[1989], p. 229) declara que “hoje, o tempo virtual, o espaço virtual e a memória
computacional estão reinventando a consciência prática, coordenando e controlando a
vida”.
Para falar a verdade, na condição de formadores de formadores, também
temos certa aflição diante da ideia de que as pessoas se reduzam a sua agilidade
digital e que a hiper-conectividade possa conduzir as novas gerações a uma vida
controlada, artificial e infeliz. A prestidigitação faz, de fato, com que as mãos sejam
mais rápidas do que os olhos. No entanto, é coisa de mágico. Embora admiremos a
habilidade do prestímano, seus feitos não passam de ilusionismo. Ou seja, as mãos
podem até ser mais rápidas do que os olhos, mas será que conseguem mesmo fazer,
nessa rapidez, uma obra que não se desmanche no ar?
Howard G. Hendricks, professor de renome internacional, costumava dizer, até
sua morte em 2013, que “a caneta é uma tranca mental” (apud TINLIN; ZACHARIAS,
2013, p. 46). A frase não tem sentido negativo. Com a declaração, ele queria dizer
que, quando escrevemos alguma coisa, depuramos o pensamento e clareamos as
ideias. Ou seja, ao usar a caneta, evitamos dizer bobagem. Uma professora
aposentada de certa universidade, mais modesta, dizia várias vezes, enquanto dava
instruções sobre o ensino de línguas antigas: “grego se aprende é com o dedo”. Com
isso, ela queria dizer que era preciso exigir que os alunos copiassem os paradigmas
das declinações e conjugações daquela difícil língua antiga. Sem querer entrar no
mérito intrínseco dessas afirmativas, gostaria de expressar, aqui, nossa preocupação
com o fato de que os alunos estejam escrevendo menos. Mesmo no ensino superior,
os alunos têm cada vez mais dificuldades para escrever, de próprio punho, uma
sentença simples. Eles se sentem mais à vontade olhando para os próprios polegares.
A sensação que temos, porém, é de que estão olhando para o próprio umbigo!
Isso força os internautas a surfar a internet sem se deterem tempo suficiente para
refletir em sua leitura online.
Há, por outro lado, algo na textura, cheiro, aparência e cinestesia do livro que
ajuda na associação de ideias. O mesmo se percebe numa comparação entre a
escrita e a digitação com os polegares. De fato, como mostram vários artigos
publicados pela revista Computers in Human Behavior, há uma correlação negativa
entre horas na internet e desempenho acadêmico (CHEN et al., 2014, p. 431-443;
BELLUR et al., 2015, p. 63-70; RASHID; ASGHAR, 2016, p. 604-612; NAQSHBANDI,
2017, p. 167-176). Isto é, quanto mais tempo passam na frente do computador, pior é
o desempenho de jovens e crianças na escola. É como se, depois de passar o dia
inteiro comendo chocolate, a criança perdesse o apetite por verduras e legumes. Por
mais gostoso que seja o chocolate, é preciso lembrar que o chocolate não provê a
mesma nutrição que legumes e verduras. Outros artigos mostram, ainda, que há uma
correlação significativa entre horas na internet, agressividade e depressão entre
crianças e adolescentes (SAMAHA; HAWI, 2016, p. 321-325; CHO et al., 2017, 257-
262). Ou seja, quanto mais horas na frente do computador, mais violentas e
deprimidas algumas crianças e adolescentes se tornam. Finalmente, outros artigos
mostram que há também uma correlação significativa entre horas na internet e uso de
drogas e suicídio (MORENO et al., 2015, p. 601-607). Isto é, quem passa muito tempo
no mundo virtual, tem mais chances de se suicidar e usar drogas do que quem não o
faz.
Mas não é só isso o que nos preocupa. O que nos incomoda não é que os
milênios estejam dando novas funções a seus polegares cada vez mais ligeiros e
adestrados, elevando-os, assim, à categoria de órgão mais importante do corpo. O
que incomoda é para quê os estejam usando: na criação de relacionamentos cada vez
mais artificiais e frívolos em detrimento da reflexão e do desenvolvimento de sua
capacidade cognitiva. O que incomoda é que, agora, sequer consigam olhar para o
próprio umbigo e que prefiram ficar obcecados pelo próprio polegar, com o
consequente risco de se esquecerem do dedão do pé. O pior é que, sem essa teoria,
talvez continuemos a ser os trogloditas bem vestidos que já nos acostumamos a ser.
Daí, a advertência enfática de Kunstler (2012):
a tecnologia que pensamos que pode nos salvar, vai acabar nos
destruindo… Tudo o que fazemos hoje em dia, nosso desejo cada
vez maior de conforto, prazer e diversão, nossa recusa em lidar com
a realidade, nossa fidelidade ao culto da tecnologia e do crescimento
sem limites... Tudo isso nos empurra para a realidade em que as
almas abandonam toda esperança.
Há certo exagero nessa predição funesta. Entretanto, os sintomas indicam que não
podemos menosprezar o efeito que a internet, o computador e os dispositivos
eletrônicos de modo geral vêm exercendo sobre nosso cérebro e a forma como
aprendemos (ou não) e vivemos. Daí, a necessidade de experimentos que possam
conjurar esses objetos a serviço do aprendizado mais substancial e significativo.
3. A experiência
4. Conclusões
Não pusemos em discussão, aqui, o que é anatomicamente mais importante:
se o polegar ou o dedão do pé. Numa enquete realizada, em 2011, pelo jornal
britânico The Guardian, vários leitores tentaram decifrar o mistério semântico de que o
polegar tem um nome próprio, enquanto o dedão do pé não tem esse privilégio.
Obviamente, isso não ocorre em todas as línguas. No latim, por exemplo, polegar e
dedão do pé têm seus próprios nomes, respectivamente pollex e hallex. Em geral,
porém, o dedão do pé carece de um nome particular; em português, por exemplo, só
recebe um sufixo aumentativo. Os leitores do The Guardian lembraram, então, que
polegares opostos realmente nos diferenciam dos animais inferiores, dando-nos a
capacidade de segurar objetos e movimentá-los, enquanto que os dedões do pé, por
não serem opostos aos demais dedos, só nos dão equilíbrio para a marcha. Ou seja,
sem o polegar, nossa habilidade de surfar a internet estaria, então, grandemente
comprometida.
No entanto, talvez não devêssemos salientar demasiadamente as diferenças
entre polegar e dedão do pé, já que McKenna (2014) nos informa que os cirurgiões
plásticos são especialistas em transformar o dedão do pé em polegar no caso de
pacientes que sofreram algum tipo de acidente cuja consequência foi a amputação do
polegar, assim devolvendo aos pacientes sua capacidade háptica, isto é, o neologismo
que se aplica, agora, à capacidade tátil de segurar e manipular os dispositivos
eletrônicos. Além disso, esperamos, de fato, que os leitores nos perdoem pelas
metáforas com que construímos nossa argumentação até aqui. Tomamos o polegar
como símbolo da agilidade dos milênios em conversar com a internet e, por um lado,
imediatamente construir o conhecimento e os relacionamentos que desejam, mas que,
por outro lado, os impede de fazê-lo de modo cabal e qualitativamente válido. Em
contrapartida, tomamos o dedão do pé, que é mais difícil de ver e menos atraente de
se contemplar, como símbolo da elaboração mais consciente e capaz de lidar com as
dimensões práticas, mas também abstratas, da reflexão científica e epistemológica.
Os resultados da experiência didática intercultural apontam, significativamente,
para o alcance dos objetivos propostos. Os alunos tiveram que ler o livro-texto da
disciplina. No entanto, suas atividades não se limitaram à leitura do livro-texto e ao
comparecimento às aulas expositivas. Em vez disso, eles fizeram uma imersão
considerável numa cultura que não era a sua. No final, escreveram um artigo no qual
descreveram e fundamentaram sua experiência. De modo geral, os alunos se
mostraram empolgados com a experiência, seguindo à risca o cronograma das
postagens. Estas apresentaram-se, em geral, embasadas em aspectos salientes e
significativos da teoria Lescant de comunicação intercultural. Durante as interações via
Zoom, os alunos se mostraram muito menos resistentes à participação, em geral até
competindo para fazer uso da palavra. As interações ocorreram de forma espontânea
e madura para a idade relativamente tenra de muitos participantes, especialmente os
alunos norte-americanos que, em sua maioria, eram calouros na universidade texana.
O aspecto mais extraordinário, porém, da experiência didática intercultural foi
que não se perceberam desvios no emprego das tecnologias educacionais. Isto é,
durante todo o tempo os alunos se mostraram conectados com o que estava
acontecendo nas interações, sem sucumbir à tendência de usar o acesso à internet
para recorrer a jogos online e/ou redes sociais de caráter exclusiva e intrinsecamente
irrelevante para as interações. Os instrutores se congratularam, portanto, por terem
conseguido, pelo menos naquela classe, fazer com que os alunos participantes
fizessem a jornada do polegar para o dedão do pé. Só o futuro poderá nos revelar se
entre eles, ou aqueles influenciados por eles, não aparecerá o gênio da “teoria de
tudo”.
5. Referências
BELLUR, S. et al. Make it our time: in class multitaskers have lower academic
performance. Computers in Human Behavior, v. 53, dez. 2015, p. 63-70.
CARR, Nicholas. The shallows: how the Internet is changing the way we think, read,
and remember. Ashland, OR: Blackstone, 2015.
HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. São Paulo: Ediouro, 2009.
HENRY, Amanda. An optimized view. The Washington Post, 9 out. 2008. Disponível
em: http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2008/10/08/
AR2008100803324.html. Acesso em: 16 mar 2018.
KUNSTLER, James. Too much magic: wishful thinking, technology, and the fate of the
nation. New York: Atlantic Monthly, 2012.
MCKENNA, Henry. The surgeons who make toes into thumbs. The Atlantic, 14 out.
2014. Disponível em: https://www.theatlantic.com/health/archive/2014/10/the-
surgeons-who-make-toes-into-thumbs/381362/. Acesso em: 16 mar. 2018.
THE GUARDIAN. Why has your thumb got a special name, but your big toe is just
called a big toe? Guardian.co.uk. 2011. Disponível em:
https://www.theguardian.com/notesandqueries/query/0,,-82346,00.html. Acesso em: 16
mar. 2018.
TWENGE, Jean M. IGen: why today’s super-connected kids are growing up less
rebellious, more tolerant, less happy – and completely unprepared for adulthood (and
what this means for the rest of us). New York: Atria, 2017.