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Revista Brasileira de Educação do Campo

Brazilian Journal of Rural Education


ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12479

Educação musical e projetos sociais: discutindo a relação


entre música, pertencimento e demandas sociais em dois
países
1 2
Elisama da Silva Gonçalves Santos , Anderson Brasil
1
North Dakota State University. 1340 Administration Ave, Fargo, ND 58105, USA. Universidade Federal da Bahia - UFBA.
2
Avenida Adhemar de Barros, s/nº - Ondina, Salvador - BA, Brasil. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB.

Autor para correspondência/Author for correspondence: elisamamus@yahoo.com.br

RESUMO. Os projetos sociais em música são uma temática


sobremodo hodierna no campo da Educação Musical. Devido a
pujança do tema aqui discutido, é indicada a dilatação do objeto
aprender e ensinar música para além das feições do contexto
social em que esses projetos sociomusicais estão inseridos.
Desta maneira, busca-se alcançar um olhar ampliado para as
vivências em música oferecidas em projetos sociais não só no
Brasil, mas também em contextos com refugiados oriundos de
países em situações de guerra. Aqui são protagonizadas
vivências em projetos sociomusicais no estado de Dakota do
Norte, nos Estados Unidos. Por meio de diálogos com teóricos
da Educação Musical busca-se trazer à reflexão a temática dos
refugiados de países em guerra, o sentimento de pertencimento e
o papel da educação musical em comunidades frente as
demandas que perpassam os aspectos musicais.

Palavras-chave: educação musical, projetos sociais, sentimento


de pertencimento, transformação social.

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Santos, E. S. G., & Brasil, A. (2021). Educação musical e projetos sociais: discutindo a relação entre música, pertencimento e demandas sociais em dois países...

Music education and social projects: discussing the


relationship between music, belonging, and social demands
in two countries

ABSTRACT. The social projects in music are a modern topic in


the field of music education. Due to the importance of the point
provided here, it is indicated the expansion of the object learning
and teaching music beyond the aspects of social context in
which these music social projects are inserted. Therefore, we
seek to achieve an expanded look at the musical experiences
offered in social projects not only in Brazil, but also in contexts
with refugees originally from countries at war. In this article, we
also illustrate experiences in social projects located in North
Dakota, in the United States. Through dialogues with
researchers of music education, we seek to reflect on the
situation of refugees from countries at war, the sense of
belonging, and the role of music education in communities in
relation to the demands that permeate the musical aspects.

Keywords: music education, social projects, sense of belonging,


social transformation.

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Educación musical y proyectos sociales: discutiendo la


relación entre música, pertenencia y demandas sociales en
dos países

RESUMEN. Los proyectos sociales en la música son un tema


muy hodierna en el campo de la Educación Musical. Debido a la
fuerza de tema que aquí se aporta, se indica la ampliación del
objeto de aprendizaje y enseñanza de la música más allá de las
características del contexto social en el que se insertan estos
proyectos socio-musicales. Así, se busca lograr una mirada más
amplia sobre las experiencias en música ofrecidas en proyectos
sociales no sólo en Brasil, sino también en contextos con
refugiados de países en situación de guerra. Aquí nos centramos
en las experiencias de proyectos socio musicales en el estado de
Dakota del Norte, en Estados Unidos. A través de diálogos con
teóricos de la educación musical, pretendemos hacer reflexionar
sobre el tema de los refugiados de países en guerra, el
sentimiento de pertenencia y el papel de la educación musical en
comunidades frente a las demandas que impregnan los aspectos
musicales.

Palabras clave: educación musical, proyectos sociales,


sentimiento de pertenencia, transformación social.

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Introdução
principalmente, educacional no que diz

Os projetos sociais são espaços respeito ao direito de cidadãos a uma

emergentes, decorrentes da luta e educação de qualidade. Segundo a

organização de movimentos sociais, grupos Constituição Federal de 1988, no Art. 6º,

da sociedade civil, instituições diversas e “São direitos sociais a educação, a saúde, a

da iniciativa de uma ou mais pessoas. alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer,

Desde os anos de 1980, os projetos sociais a segurança, a previdência social, a

vêm se expandindo ligeiramente no Brasil proteção à maternidade e à infância, a

e no mundo, promovendo uma nova assistência aos desamparados, na forma

configuração ao tecido social existente. desta Constituição” (Brasil, 1988). Pode-se

Para Gohn (2003), isso se explica devido constatar que é competência do Estado

às transformações ocorridas na sociedade proporcionar aos cidadãos educação

nas últimas décadas do século XX, pública, gratuita e de qualidade, assim

marcada por uma série de lutas contra a como, saúde, segurança e assistência

desigualdade social, pobreza, fome, social. No entanto, isso não acontece em

condições de trabalho e o consumismo todos os espaços urbanos de forma

capitalista reinando como valor essencial igualitária e em muitas periferias e

na sociedade. Além disso, a escassez de comunidades, moradores vivem sob a

políticas públicas e os altos índices da escassez de serviços essenciais à vida

violência também suscitaram novas cotidiana. É com o intuito de diminuir o

demandas principalmente para a esfera impacto da negligência do Estado que

educacional no Brasil. temos a ação de projetos sociais, fundações

Ao analisarmos o contexto político e e ONGs que buscam proporcionar para as

econômico brasileiro, percebemos um país comunidades o acesso a bens como saúde,

rico em recursos naturais, com altos segurança, arte, esporte e lazer. Neste

indicadores agropecuários, porém com cenário, os projetos sociais constituem-se

uma indústria que enfrenta recessões, alto como mais um espaço de ação para

desemprego e com elevados índices de promover a emancipação, participação e

desigualdade na distribuição de renda acesso aos direitos de todo cidadão. Assim,

(IBGE, 2021)i. Essa realidade é alimentada tratando-se do ensino de música nesses

por um sistema capitalista acidentado, espaços, “pensar a Educação Musical no

gerando impactos na esfera econômica e, seio dos projetos é também pensar a

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música de forma politizada.” (Santos, 1960 e 1970 com o Movimento dos


2014, p. 5). Direitos Civis dos Negros nos Estados
O surgimento de movimentos sociais Unidos lutando por políticas públicas que
engajados na luta por políticas públicas e abolissem a discriminação e a segregação
garantias de direitos fundamentais tem sido racial no país e o Movimento pela
registrado há muitos séculos no Brasil. As Libertação das Mulheres. Este reivindicava
lutas e movimentos sociais do período o direito ao voto, ao divórcio, à instrução,
colonial, do império e do Brasil República, ao corpo e pela igualdade jurídica, política
foram protagonizadas por grupos e econômica (Davis, 2016).
minoritários contra a dominação e Os movimentos sociais no cenário
exploração econômica que geraram norte-americano também impulsionaram
historicamente altos índices de grupos minoritários em outros países. Os
desigualdades sociais. No final do século movimentos sociais ressurgem com força
XIX e início do século XX, com a no Brasil a partir da década de 1980 e
substituição da mão de obra escravizada protagonizam a mobilização e
pela assalariada e o processo de reivindicação por mudanças estruturais na
industrialização, vemos a formação de um sociedade (Gohn, 2011). Nesses
proletariado urbano que agora se organiza movimentos há grupos diversos que lutam
em sindicatos, uniões e associações (Gohn, por acesso a bens sociais baseados no
2000). interesse coletivo. Seja um grupo de
Nos Estados Unidos, a história de pessoas que lutam pela criação e
luta dos movimentos engajados na manutenção de uma creche no bairro,
mudança social também percorreu um grupos que lutam pela reforma agrária e
longo caminho. Em seu “Livro Mulheres, uso da terra, seja um grupo de jovens que
Classe e Raça”, Angela Davis descreve a promovem atendimento pré-natal para
história do movimento negro naquele país adolescentes grávidas, ou um grupo de
e a criação de sindicatos e associações pela moradores que lutam pelo planejamento de
luta antiescravagista, contra o racismo, moradia no bairro. Não é comum a criação
pelos direitos das mulheres negras de projetos sociais dentro dos movimentos
trabalhadoras, o direito ao voto, o direito sociais, no entanto, Gohn afirma que a
ao corpo e pelo acesso à educação (Davis, ideia de emancipação, também imbricada
2016). As lutas sociais ao longo do século nos projetos, é dominante no âmago dos
XX culminaram nos eventos das décadas movimentos. Manifestações dessa ideia de

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emancipação têm levado à mobilização Esse texto brota de diálogos de vida


social resultando na criação de colegiados, e de docência entre dois
conselhos, ONGs e até mesmo na pesquisadores/professores negros que
implantação de políticas públicas. Gohn abalizaram suas temáticas a partir dos
(2010) abaliza a ideia de emancipação e projetos sociais. Aqui julgamos sobremodo
participação como um processo formativo importante protagonizar a fala na primeira
de cidadãos éticos, conscientes, ativos e pessoa, trazendo a experiências da primeira
solícitos com o coletivo, engajados na autora, enquanto mulher, musicista, negra
comunidade que os rodeia. Esse processo e brasileira, imersa em experiências em
deve considerar: dois contextos socioculturais, a saber,
Brasil e Estados Unidos, em momentos
Projetos emancipatórios, que
coloquem como prioridade a distintos da sua vida.
mudança social, qualifiquem seu Como sujeito social oriunda de uma
sentido e significado, pensem
alternativas para um outro modelo comunidade na Bahia, ao longo da minha
econômico, não excludente, que
contemple valores de uma sociedade
infância, fui testemunha da negligência do
em que o ser humano é o centro das Estado, com a falta de segurança, saúde e
atenções e não o lucro, o mercado, o
status quo político e social, o poder educação de qualidade em nosso bairro.
em suma. (Gohn, 2010, p. 73). Neste período, tive a oportunidade de ter
aulas de música num conservatório da
Se mobilizados em contextos de
minha cidade ligado à extensão de uma
ensino e aprendizagem, os princípios de
universidade estadual. Nesta instituição, fiz
emancipação e participação trazidos por
o curso básico de piano contando, também,
Gohn podem ser basilares para cultivar a
com aulas de musicalização, flauta doce,
autonomia dos educandos, proporcionar as
canto coral e história da música. Durante
trocas de saberes em sala de aula
oito anos, frequentei o conservatório
respeitando às subjetividades do aluno,
graças aos esforços de meus pais, que
sensibilizar os sujeitos sociais envolvidos e
pagavam uma taxa semestral, extraindo do
resgatar o sentimento de pertença dentro de
pouco que conseguiam trabalhando dia e
uma comunidade.
noite para sustentar a nossa família. Essa
Educação Musical, projetos sociais experiência transformou a minha vida.
comunitários e o sentimento de Através do conservatório, pude não só
pertença: compartilhando experiências
em dois países desenvolver o estudo musical no piano,
mas também, trocar experiências com

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outras crianças e adolescentes, conhecer bagagem musical proveniente das


outros contextos culturais e sociais e até brincadeiras da infância, das tradições da
seguir carreira como musicista família, dos corredores da escola e da
profissional. Paralelo ao curso de piano, eu igreja e das canções ouvidas nas rádios.
vivenciava música na igreja e em casa, Infelizmente nem todos tiveram a chance,
apreciando música gospel brasileira e como eu, de frequentar uma escola de
americana, ouvindo meus pais cantarem música, tocar um instrumento musical,
hinos, assistindo concertos na TV com tornar-se musicista profissional ou até
minha mãe e vendo-a tocar teclado. Mas, mesmo seguir carreira em outra área.
não há dúvidas que frequentar um Minha primeira visita a um projeto
conservatório de música mudou o meu social ocorreu em 2010 quando eu era
futuro, dando-me oportunidade de ampliar aluna do curso de Licenciatura em Música
significativamente o meu universo cultural da Universidade Federal da Bahia. Como
e humano. atividade da disciplina Iniciação Musical
Ao longo da minha infância e II, todos os licenciandos deveriam realizar
adolescência, testemunhei os problemas observações em diversos contextos de
sociais que cercavam a minha comunidade, Educação Musical. Ao chegar ao projeto
e questionava, se não poderíamos ter uma social, Espaço Cultural Pierre Verger, na
escola ou um projeto social no bairro cidade de Salvador, observei aulas de
oferecendo aulas de música, teatro, dança e percussão. Desde a primeira aula fui
outros cursos. Quem sabe meus amigos envolvida pelos sons, ritmos e interações
preencheriam o tempo ocioso que entre o professor e aqueles 20 jovens.
dispendiam nas ruas sendo “presas fáceis” Naquela ocasião, lembrei da minha
para a violência e drogas? Esse é um trajetória e da minha comunidade, o que
cenário que está evidente não só na minha despertou em mim um encanto por aquele
comunidade como também em diversos espaço e pensei nas mais variadas
contextos no Brasil. É uma vulnerabilidade oportunidades que um projeto social pode
social, fruto também da desigualdade, do propiciar aos seus participantes. Assim, o
aumento da violência e da falta de políticas tema “projetos sociais” tornou-se o centro
públicas educacionais (Kleber, 2006). da minha pesquisa de mestrado realizada
Lembro claramente que éramos jovens e entre os anos de 2012 e 2014, onde
crianças repletos de energia, ávidos por investiguei os saberes docentes e a
conhecimento e enriquecidos por uma

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formação de professores de música para a restauração da nossa trama social,


atuantes nesses espaços (Santos, 2014). muito fragmentada na sociedade
A pesquisa foi realizada em três contemporânea.
projetos sociais da cidade de Salvador e, Em 2017, ingressei no Doutorado em
durante 9 meses, estive imersa nesse Artes Musicais na Universidade Estadual
universo observando, entrevistando e da Dakota do Norte, na cidade de Fargo,
conversando com professores, alunos e no estado de Dakota do Norte nos Estados
pessoas da comunidade. O olhar de Unidos. Além das experiências vividas
pesquisadora ora se cruzava com o olhar da dentro da Universidade, pude testemunhar
educadora musical que um dia pertenceu a vivências em Educação Musical oferecida
uma comunidade e pensava na importância em projetos sociais comunitários que muito
daqueles espaços culturais dentro das se assemelhavam com as minhas
periferias. Os dados mostraram que o experiências vividas durante o mestrado,
trabalho com música na comunidade está claro que com algumas peculiaridades. Ao
fortemente conectado à formação integral chegar naquela cidade em agosto de 2017,
do ser humano. “Não é música por música. percebi o grande número de imigrantes
A aula de música também é arte, educação, refugiados habitando aquela região. Depois
resgate do sentimento de pertença, de alguns dias de conversas com a
socialização e espaço de trocas de comunidade local e pesquisas, percebi que
experiências de vida” (Santos, 2014, p. havia naquela cidade escolas de educação
123). A interação comunidade-projeto básica com educação para jovens e adultos
também se configura como um fator direcionadas especificamente para
primordial para a conexão música e vida refugiados que foram acolhidos nos
cotidiana, uma vez que o projeto social Estados Unidos e tentavam se inserir no
acabava sendo uma extensão familiar ou mercado de trabalho daquele país.
uma segunda casa dos alunos. “O Um dos programas de educação de
conhecimento da comunidade e de suas jovens e adultos é oferecido por escolas
demandas influencia diretamente nos integradas ao Sistema de Escolas Públicas
objetivos do professor no projeto, podendo de Fargo através do Centro de
ele atuar nos marcos de uma proposta de Aprendizagem de Adultos funcionando na
trocas culturais e ampliação do Agassiz School. Os recém-chegados ao
conhecimento dos alunos” (Santos, 2014, país e, por conseguinte, naquela cidade,
p. 123), o que por sua vez, pode contribuir eram encaminhados à escola através do

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Serviço Social Luterano e conduzidos pelo e foram acolhidos e abraçados pelo fazer
Órgão do Governo dos Estados Unidos musical coletivo. De acordo com Wood
para Reassentamento de Refugiados.ii Os (2010), muitos desses refugiados têm
alunos contavam com aulas de inglês como experienciado situações de perdas em seus
segunda língua, preparação para o GED países, tendo que deixar para traz até
(exame de conclusão do ensino médio mesmo familiares. Além disso, “aqueles
americano), aulas de culinária, atividades que são reassentados nos Estados Unidos
de integração, informática e atividades enfrentam uma nova configuração de
artísticas, como pintura e desenho. Além desafios dos mais variados níveis indo do
disso, as famílias refugiadas têm a físico ao social, psicológico, espiritual até
oportunidade de matricularem seus filhos necessidades emocionais”iii (tradução
na escola no mesmo horário em que estão nossa) (Wood, 2010, p. 33).
assistindo às suas aulas. Outras instituições Trago alguns dados para corroborar a
como igrejas e projetos comunitários da minha experiência. De acordo com o
cidade oferecem atividades de integração Conselho Americano de Imigração, em
entre as famílias refugiadas e a população 2018, um em cada vinte habitantes da
local, distribuição de alimentos e agasalhos Dakota do Norte era um imigrante,
e o engajamento desses indivíduos em enquanto um em cada 20 residentes era
práticas musicais como a atividade coral. A nascido no estado com no mínimo um
prática coral nas igrejas luteranas e imigrante na família. A pesquisa mostrou
metodistas em Fargo é amplamente que no mesmo ano, do total de imigrantes
cultivada e tem sido um meio encontrado residentes naquele estado, 16.536 eram
para integrar imigrantes refugiados à mulheres, 16.204 eram homens e 3.084
comunidade, promover comunicação mais eram crianças. A maioria desses imigrantes
fluente e auxiliar no resgate da autoestima são oriundos de países como Filipinas,
e sentimento de pertença tão fragilizados Butão, Nepal, Libéria, Somália, Sudão,
naqueles indivíduos. Tive a oportunidade Congo, Eritréia, Afeganistão, Paquistão e
de atuar como pianista colaboradora em México. Entre o perfil de imigrantes estão
um coral em uma das igrejas da cidade e refugiados que deixaram seus países
pude perceber a quantidade de pessoas devido a situações de guerra, fome,
oriundas de outros países, que através da pobreza e conflitos políticos, pessoas que
prática coral criaram novos vínculos buscam melhores condições de trabalho e
sociais, engajaram-se em novas amizades, estudantes que posteriormente acabaram se

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inserindo no mercado de trabalho e americano, tais como, depressão,


migrando para o país. A pesquisa ainda dificuldades de concentração, dificuldades
mostrou que os imigrantes compõem 6 por de aprendizado, barreiras com a língua,
cento da força de trabalho do estado e que perda da autoestima, sentimento de
metade dos imigrantes residentes naquela inadequação, e dificuldades de relacionar-
região já são cidadãos americanos se. Após a análise dos dados, Jabrhamdan
naturalizadosiv. percebeu que entre a didática pedagógica
Alguns pesquisadores têm debruçado dos educadores musicais foram
os olhares para o tema Educação Musical, encontradas algumas posturas importantes.
refugiados e o resgate do sentimento de A primeira delas é a visão de música como
pertencimento a um grupo. A exemplo de universal, onde os educadores abraçavam
Katelyn E. Wood (2010) que através de um tradições musicais de diversos povos,
estudo etnomusicológico investigou o levando em consideração os
papel da música na vida de refugiados conhecimentos prévios da turma. Foi
reassentados na comunidade de Prospect observado que através da apreciação as
Park em Pittsburgh, Pennsylvania. Em seu crianças eram capazes de expressarem suas
estudo, Wood teve como sujeitos de emoções, independente das origens da
pesquisa refugiados participantes das música. Segundo, foi observado entre os
atividades oferecidas pelo Centro educadores musicais o amplo uso de gestos
Comunitário Prospect Park. Wood trata da e pistas físicas no ensino através da ampla
ideia de “música como refúgio” para demonstração no instrumento ou no canto,
superar os desafios de migrar de um lugar bem como a importância do sorriso e do
para outro, para integrar pessoas e para o incentivo para estimular os alunos.
resgate da identidade cultural. Sameerah Terceira atitude observada em sala foi o
Jabrhamdan (2018) em sua pesquisa de uso de um repertório culturalmente vasto
mestrado investiga a didática pedagógica para que os estudantes se sentissem
que educadores musicais têm utilizado para representados na sala de aula e nas
promover a inclusão de alunos imigrantes e apresentações. A última atitude importante
refugiados dentro da aula de música em observada por Jabrhamdan esteve
escolas no subúrbio de Nova York. Em seu relacionada à como os educadores musicais
estudo, Jabrhamdan alerta para os desafios proporcionaram um ambiente de aula
enfrentados por crianças refugiadas seguro com o respeito mútuo a todas as
inseridas no sistema de educação culturas ali presentes. Os educadores

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criaram um ambiente positivo no qual o relação indivíduo-música-lugar tem


“erro” era possível, o que deixava a turma intersecções com nosso contexto. A
mais confortável para se expressar educação musical desvela-se como uma
musicalmente, uma vez que a língua era ponte de resgate de memórias do país de
uma barreira significativa para o origem, ao tempo em que, pontes para a
aprendizado de muitas crianças. construção de uma identidade com o novo
O paralelo traçado entre os projetos “lugar” o que por sua vez envolve a
sociais no Brasil e os projetos sociais relação afetiva com o novo contexto de
comunitários e educacionais com vida. Sobre identidade cultural, lugar e
refugiados nos Estados Unidos nos mostra memória Bossé (2004, p.168) afirma que:
a importância do resgate do sentimento de
Se a construção de uma identidade
pertença através da música. Além do passa pela consideração de uma
sentimento de pertença, práticas musicais herança e pela preservação de um
patrimônio sócio-histórico, e se a
nesses contextos têm proporcionado um capacidade de recordar, preservar e
perpetuar um passado faz parte de
reencontro dos indivíduos envolvidos com um sentimento identitário, este
suas identidades culturais. A partir dos último encontra um local de
expressão privilegiada nos “lugares
dados observados em algumas pesquisas de memória”.
como Kleber (2006), Santos (2014) e
Brasil (2014), percebe-se a relação que os Para Bossé, os “lugares de memória”

projetos sociais estabelecem com a ideia de são considerados o suporte da identidade

“lugar”, com a comunidade e com os cultural, evidenciando a ligação emocional

alunos. Tratamos “lugar” aqui como “o com aqueles espaços e tudo que o

território identitário” com o qual se representa, como a família, os amigos, as

estabelecem vínculos sociais e afetivos rodas de conversa, as músicas ouvidas e

(Bossé, 2004). Nesse contexto, a música dançadas em casa e nas ruas, as diversas

revela-se como um ponto de ligação, uma manifestações artísticas, a comida, as

reativação de memórias, fortalecimento brincadeiras, as crenças e as relações de

dos laços identitários com o “lugar”, com o trabalho tanto nas periferias brasileiras

espaço, com os amigos, com os professores como em um subúrbio de Nova York ou da

do projeto que muitas vezes são também Somália, por exemplo. Práticas musicais

oriundos da própria comunidade (Santos, contextualizadas e plurais em projetos

2014). Tratando-se das práticas musicais sociais comunitários podem proporcionar o

com refugiados no contexto americano, a resgate do sentimento de pertença


fortalecendo a relação do indivíduo com o

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seu contexto sociocultural e destes problemas contemporâneos, as


consequentemente consigo mesmo. comunidades atuam como força motriz não
só da transformação social, no que tange
A Educação Musical frente algumas
ao acesso a determinados bens
demandas sociais
educacionais, como também das
As comunidades brasileiras e os indagações para além dos ares inerentes à
projetos sociais têm sido um campo vulnerabilidade social como destaca Brasil
sobremodo robusto para a pesquisa em (2019, p. 38):
música nas últimas décadas. Contudo,
Com o avanço de comunidades
diante desse aumento no número de
periféricas, avançam também o
trabalhos acadêmicos é necessário alargar a crescimento dos projetos sociais e,
por conseguinte, a demanda por
compreensão acerca do papel da música no educadores musicais. Diante desse
contexto sociocultural das periferias. Com pleito de educadores para atuarem
nesses projetos, muitas vezes
o avanço das favelas e das comunidades incrustados em locais
demasiadamente expostos à
nos grandes centros urbanos do Brasil, violência, chegamos às seguintes
oportuniza-se a expansão de estudos que indagações: qual a formação
necessária ao educador musical que
alcancem as tensões sociais e os outros atua nesses projetos sociais?
Esperariam as pessoas atendidas por
desdobramentos políticos/pedagógicos que ele apenas o ensino de música? Um
estes contextos em baila demandam. O curso de graduação abarcaria uma
formação eficiente para lidar em sala
geógrafo Milton Santos nos esclarece que de aula com tais questões?
o crescimento dos grandes centros urbanos
arrasta consigo uma série de implicações: As universidades brasileiras têm
aprendido com as favelas e as
Problemas como os do emprego, da comunidades têm espargido ao país jovens
habitação, dos transportes, do lazer,
da água, dos esgotos, da educação e educadores musicais, pesquisadores
saúde são genéricos e revelam negros, engajados, os quais descrevem e
enormes carências. Quanto maior a
cidade, mais visível se tornam essas materializam em seus trabalhos uma
mazelas. Mas essas chagas estão em
toda parte. (Santos, 2008, p. 105). ciência que se antepara em um Brasil que é
por vezes “invisível”. A produção destes
Por isso, por vezes os objetos de jovens educadores musicais que está para
diversas pesquisas em música acabam por além dos problemas cotidianos perpassa
alcançar problemas ‘genéricos’, não diferentes dimensões tais como a
abarcando diferentes sobreposições das invisibilidade, o desenraizamento e a
práticas musicais ali presentes. Diante provisoriedade presente não só nos lares

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que ali persistem, mas nas políticas Aqui nos sulearãov os projetos
públicas geridas nas diferentes regiões do sociais que têm a sua gênese e manutenção
país, denunciando um modelo que torna a por meio do protagonismo dos sujeitos
pobreza um modelo espacial: sociais que vivem nestas periferias
urbanas, como verificamos:
A cidade em si, como relação social e
como materialidade, torna-se
criadora de pobreza, tanto pelo É necessário destacar que esses
modelo socioeconômico, de que é projetos sociais aqui descritos são
suporte, como por sua estrutura geridos e retroalimentados pelos
física, que faz dos habitantes das próprios protagonistas, moradores
periferias (e dos cortiços) pessoas das comunidades, que
mais pobres. A pobreza não é apenas desencadearam não só a criação, mas
o fato do modelo socioeconômico a gestão e manu-tenção dos espaços.
vigente, mas, também, do modelo Diferem assim de outros projetos
espacial. (Santos, 2008, p. 10). sociais de cunho governamental,
criados de “fora para dentro”, os
quais por muitas vezes possuem
Estas produções dilatam não só a cunho eleitoreiro e são mantidos por
organizações estrangeiras. (Brasil,
nossa compreensão sobre a complexidade 2019, p. 129).
interposta a essas periferias, como também
denunciam que as resoluções dos Esta composição de outras maneiras

problemas descritos anteriormente estão de oportunizar bens educacionais é por

mais à frente das ações policiais nas vezes paradoxal. O Brasil que bateu

comunidades e das ações judiciais que recordevi na produção de grãos com 253,7

visam endurecer o tratamento para crimes milhões de toneladas em meio à pandemia

violentos e o narcotráfico. As minorias não no ano de 2020 é o mesmo que não

hegemônicas, que nestas comunidades consegue saciar a fome de muitas de suas

habitam, protagonizam uma outra crianças. Milhares de alunos da rede

construção do conhecimento, outras formas pública em todo o território nacional,

de fazer e ensinar música. Tais maneiras de principalmente nas periferias urbanas,

ensinar música estão repletas de saberes conseguem se alimentar apenas na escola,

ancestrais que valorizam e primam por passando fome durante o período de férias.

aspectos tais como identidade, Um relatóriovii da Fundação Abrinq, que

pertencimento e outras musicalidades. Por retrata o cenário da Infância e

vezes, esses aspectos são intangíveis e Adolescência no Brasil no ano de 2019,

inalcançáveis para quem é indiferente à apontou que 47,8% das crianças brasileiras

tessitura social que tinge esse ‘modelo vivem na pobreza. Esta realidade que

espacial’ como nos trouxe Santos (2008). apresenta diferentes entretons, onde se

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entrelaçam a violência policial e a fome, daquele lugar um mundo mais humanizado


revela ainda outros elementos presentes como é descrito abaixo:
nesse cotidiano:
As singularidades encontradas nesse
contexto referentes à privação e
A submissão a um transporte público dificuldades permitem visualizar um
precário e a ausência de serviços pouco dos valores comumente
básicos demonstram um quadro da encontrados ali. Para viverem em
violência rotineira. Porém, a primeira lugares onde serviços básicos são tão
violência a qual os jovens que ausentes, alguns vínculos como
habitam nessas áreas são expostos, é amizade, confiança e esperança são
o local em que eles vivem, não pela fortalecidos todos os dias. Alguns
falta de segurança ou de recursos pais necessitam deixar seus filhos
mínimos, mas por viverem em um com o vizinho, pelo acesso ruim e
lugar onde nem mesmo veículos distante a mercados e farmácias.
automóveis podem transitar, onde Muitas vezes é o vizinho que socorre
ambulâncias não podem entrar quando há casos de emergência.
porque o estreitamento de suas ruas Como mensurar o nível de respeito e
muitas vezes não permite. (Brasil, dependência que essas pessoas têm
2019, p. 19). entre si? (Brasil, 2019, p. 19).

Assim, algumas dessas comunidades Desta forma, muitos desses


acabam por ter a visita do Estado brasileiro moradores acabam por reproduzir um
apenas por meio da força policial. Onde modelo altero, não só no que tange aos
não há escolas, serviços básicos de saúde e cuidados emergenciais, como também
lazer, os moradores se organizam para replicam outros projetos sociais em suas
proporcionar um pouco de humanidade comunidades, estimulam e alavancam as
contra o abandono e o descaso. Muitas gerações vindouras por meio de um
destas periferias em distintas regiões do arquétipo pedagógico “outsider”:
país se organizam e, por iniciativa própria,
gestam espaços escolares, aperfeiçoam O contexto social encontrado nas
periferias legitima um ambiente de
professores, buscam meios de angariar educação singular, alimentado por
merenda para as suas crianças, conduzidas relatos e vivências únicas,
produzindo um ambiente educacional
pela crença de que a educação será pedra que gera novas metodologias
educacionais e divulga exemplos de
angular da transformação social. superação e crescimento. Esses
Muitas comunidades brasileiras são exemplos constroem um fio condutor
de saberes, que estimulam uns aos
conhecidas pela maneira que “se fala”, outros e agregam mudanças para
aqueles que se dispõem a uma vida
pelos seus “sotaques”, mas que não é só na de crescimento e libertação coletiva.
alocução, é no trato com o outro, na (Brasil, 2019, p. 19).

proteção entre os seus residentes, fazendo

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Esse ‘lugar do saber’ que também é roteiro do noticiário policial


espetacularizado. Na falta de
lugar de proteção e encontro é mais do que conhecimento profundo sobre o
tudo um sítio de pertencimento para estes assunto, apela-se ao modelo raso de
representação, já impresso na
sujeitos sociais: memória coletiva.

Ainda assim, os atores locais buscam Por isso, é premente alargar as


formas de conexão de modo a
continuarem a jogar o jogo da vida
temáticas da pesquisa em música,
emergencial. Essas variadas formas buscando perceber algumas práticas
cambiantes de colaboração “atuam
tanto de forma reativa como proativa musicais por vezes invisibilizadas e
em relação a decisões de instâncias
marginalizadas. Um olhar mais amplo
de governo, continuadamente
posicionando e reposicionando as pode levar a obter diferentes
localidades no sistema urbano como
sítios de pertencimento comunitário”. entrecruzamentos do saber musical
(Bartholo et al., 2014, p. 34). interposto nestas localidades, como
esclarece Meirelles e Athayde (2014, p.
Aqui são nossos protagonistas os
22):
educadores musicais, esses que são os
senhores de seus destinos e se E sempre foi sobretudo o espaço
disponibilizam de forma desnuda para onde se produziu o que de mais
original se criou culturalmente nesta
cuidar de maneira irmanada do futuro dos cidade: o samba, a escola de samba, o
bloco de carnaval, a capoeira, o
demais que ali coexistem. Por isso, é pagode de fundo de quintal, o pagode
preciso propormos um outro olhar para de clube. Mas onde se faz outro tipo
de música (como o funk), onde se
estes mundos existenciais, um olhar para escrevem livros, onde se compõem
versos belíssimos ainda não
além do noticiário, para além do saber raso
musicados, onde se montam peças de
do aspecto geográfico como nos chama teatro, onde se praticam todas as
modalidades esportivas, descobrindo-
atenção Meirelles e Athayde (2014, p. se novos significados para a capoeira,
135): misto de dança, esporte e luta
ritualizada.

Em trânsito pela imensa rede de


Estes lugares que gestam outras
favelas nacionais, um observador
atento encontrará mais operários, maneiras de aprender e ensinar música
comerciantes, guardas noturnos,
office boys, diaristas, motoristas, acabam por permitir a manutenção de uma
cabeleireiras, auxiliares de escritório outridade pedagógica, como descreve
e costureiras do que bandidos
profissionais. São estes últimos, no Brasil (2019, p. 41):
entanto, que servem como referências
icônicas das comunidades. A
reprodução obsessiva desse Diante dessa preferência dos jovens
estereótipo se deve, sobretudo, ao pela prática musical, cresce ainda
mais a nossa responsabilidade não só

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Santos, E. S. G., & Brasil, A. (2021). Educação musical e projetos sociais: discutindo a relação entre música, pertencimento e demandas sociais em dois países...

como professores de música, mas, simplesmente para trás. (Brasil, 2019,


sobretudo, como educadores de p. 127).
pessoas humanas que, como
mostrado anteriormente, precisam de
acolhimento, dedicação e respeito Essa postura de retornar às suas
pelas suas histórias trazidas, gerando comunidades e retribuir aquilo que
também a demanda de nosso
estímulo pelo exemplo. Muitos de transformou as suas vidas, nos descreve
nós nos tornamos educadores
conquistados por alguém que nos um outro modelo educacional, uma
convenceu com o seu exemplo, nos circularidade que transpassa o ensino,
impactou com doação própria.
alcançando afeição. O filósofo francês Paul
Essa “conquista” reverbera em Ricoeur nos esclarece que no percurso do
muitas comunidades em virtude de muitos reconhecimento de si é necessário
jovens que tiveram seu processo conhecer o outro, e vice-versa (Ricoeur,
educacional compelido pelos seus mestres 2007). Mas, o caminho para o
e retornaram para reproduzir o modelo reconhecimento de si demanda amalgamar
pedagógico que lhes doou não só à música, o respeito, a alteridade e, por fim, a
doou esperança e uma perspectiva para igualdade. São esses valores que celebram
uma sociedade mais justa. Esse processo os vínculos em muitas destas comunidades
dialógico dos jovens com suas em distintas regiões do Brasil, em que a
comunidades, com o cuidado que eles doação gera uma obrigação. Mas
dispensam aos seus lugares de compreender esta “obrigação” exige um
re(existência), traz à lume histórias que nos reconhecimento legítimo, o qual não
aproximam do paradigma da dádiva, permite nada em troca, é dialético,
conceito este extraído do estudo de Mauss recíproco, convalido e imaculado. Por isso,
(1974). Este lugar fundamentado pelo Ricoeur (2006, p. 74) nos alerta que o
outro, como temos notado até aqui, denota reconhecimento de si ou do outro apresenta
uma visão de mundo que está para além da três baluartes indissociáveis: “o
reverberação de notas musicais, diz mais reconhecimento mútuo, o reconhecimento
acerca de uma outra postura: como identidade e o reconhecimento de si
mesmo”.
Essa doação de tempo, e até abrindo
Estas construções sociais que
mão de alguma ajuda de custo,
decorre de uma visão de mundo que matizam fraternidades e a vida cotidiana
se preocupa com o próximo, de uma
postura altruísta, para além da nos enlaça novamente a Ricoeur em sua
música. Talvez isso se deva ao obra Essai sur le don. O teórico, por meio
encontro de si mesmo, pela
oportunidade que teve de vislumbrar da sua simbiose com o filósofo Marcel
um caminho no qual muitos ficaram

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Santos, E. S. G., & Brasil, A. (2021). Educação musical e projetos sociais: discutindo a relação entre música, pertencimento e demandas sociais em dois países...

Mauss, nos situa neste ensaio sobre as educadores musicais por uma educação
relações que nos regem, dizendo: “Nós nos que acredita que é possível recuperar o
damos ao dar, e se nos damos é porque nos “irrecuperável”.
devemos, nós e nosso bem, aos outros”
(Ricoeur, 2006, p. 255). Essa crença Referências
descrita pelo autor é ilustrada pelo criador
Athayde, C. (2011). Dez anos fazendo do
da Central Única das Favelas (Cufa)viii em nosso jeito. Rio de Janeiro. Ed. Daijo.
um relato acerca de si e dos que formaram
Bartholo, R. et al. (2014). Tecido urbano,
a base da organização: dinâmicas e periferias. In Barbosa, J. L., &
Silva, M. B. (Orgs.). Oeste Carioca (pp.
A maioria dos participantes nesse 30-44). Rio de Janeiro: Observatório de
primeiro momento pertencia ao hip Favelas.
hop, era em geral formada pela nata
dos rejeitados, o que era grave se Bossé, M. L. (2004). As questões de
levarmos em consideração que na identidade em geografia cultural – algumas
época o próprio hip hop já era a concepções contemporâneas. In Corrêa, R.
imagem da rejeição e os que
L., & Rosendahl (Orgs.). Paisagens, textos
formavam a base da CUFA eram os
excluídos do berço da exclusão, mas e identidade (pp. 221-232). Rio de Janeiro:
era esse o desafio que começava a ser Editora UERJ.
desenhado, recuperar os
irrecuperáveis. (Athayde, 2011, p. Brasil, A. (2014). Batucando aqui vou
34). trabalhando ali. Os usos da aprendizagem
musical em um projeto social em Salvador
– Bahia (Dissertação de Mestrado).
Por isso, é necessário que se pense
Universidade Federal da Bahia, Salvador.
uma educação musical engajada na
Brasil, A. (2019). Música e periferia: o
conscientização dos sujeitos, na
sonho e o real em um mundo negro
mobilização da sociedade civil para chamado Bahia. Curitiba: APPRIS.
compelir o Estado a fomentar políticas
Brasil. (1988). Constituição da República
públicas. Esse engajamento pode levar Federativa do Brasil. Brasília.
também a conceber modelos pedagógicos
Davis, A. (2016). Mulheres, Classe e Raça.
que perpetrem a cultura e a educação como Tradução de Heci Regina Candiani. São
Paulo, Boitempo.
uma porta para a mudança da realidade, de
forma que a mídia e os meios de Gohn, M. G. M. (2000). 500 anos de lutas
sociais no brasil: movimentos sociais, ongs
comunicação tenham oportunidade de
e terceiro setor. Revista Mediações, 5(1),
noticiar não mais sobre um menino negro 11-40. https://doi.org/10.5433/2176-
6665.2000v5n1p11
atingido por uma bala perdida, mas que
possam anunciar a sensibilização do Gohn, M. G. M. (2003). História dos
Movimentos e Lutas Sociais. A construção
Estado brasileiro, da sociedade, de nós

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1991 pelo físico brasileiro Marcio D’Olne Campos,
sendo publicado no texto “A Arte de sulear-se”. Em
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Santos, M. (2008). A urbanização passam-fome-nas-ferias/. Acesso em: 15 fev. 2021.
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viii A CUFA é uma organização brasileira que tem
Santos, E. S. G. (2014). Educação musical mais de 20 anos. Nasceu da união de jovens negros
que buscavam um espaço para cuidar de si e dos
em projetos sociais: os saberes docentes outros, expressando suas dores, a vontade de
em ação (Dissertação de Mestrado). permanecer vivos e seus sonhos.
Universidade Federal da Bahia, Salvador. Internacionalmente conhecida tem entre os seus
criadores nomes como o produtor e ativista social
Celso Athayde e o rapper MV Bill.

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Santos, E. S. G., & Brasil, A. (2021). Educação musical e projetos sociais: discutindo a relação entre música, pertencimento e demandas sociais em dois países...

Informações do Artigo / Article Information

Recebido em : 19/06/2021
Aprovado em: 25/08/2021
Publicado em: 30/09/2021

Received on June 19th, 2021


Accepted on August 25th, 2021
Published on September, 30th, 2021

Contribuições no Artigo: A autora Elisama da Silva


Gonçalves Santos propôs o objeto do artigo. Atuou na
escrita, análise dos dados e na revisão do conteúdo. O
autor Anderson Brasil colaborou na escrita, revisão do
conteúdo, e todos os autores aprovaram a versão final
publicada.

Author Contributions: The author Elisama da Silva


Gonçalves Santos proposed the object of the article. She
acted in the writing, data analysis and content review. The
author Anderson Brasil collaborated in the writing, content
review, and all authors approved the final published
version.

Conflitos de Interesse: Os autores declararam não haver


nenhum conflito de interesse referente a este artigo.

Conflict of Interest: None reported.

Avaliação do artigo

Artigo avaliado por pares.

Article Peer Review

Double review.

Agência de Fomento

Não tem.

Funding

No funding.

Como citar este artigo / How to cite this article

APA
Santos, E. S. G., & Brasil, A. (2021). Educação musical e
projetos sociais: discutindo a relação entre música,
pertencimento e demandas sociais em dois países. Rev.
Bras. Educ. Camp., 6, e12479.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12479

ABNT
SANTOS, E. S. G.; BRASIL, A. Educação musical e
projetos sociais: discutindo a relação entre música,
pertencimento e demandas sociais em dois países. Rev.
Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 6, e12479, 2021.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12479

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