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O Direito Primitivo Ibérico e as Provas Ordálicas Medievais

Conference Paper · June 2012

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José Domingues
Lusíada University
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O Direito Primitivo Ibérico e as Provas Ordálicas Medievais
José Domingues
Faculdade de Direito da Universidade Lusíada – Porto

Resumo – O elemento primitivo teve o seu papel na formação do Direito português.


Neste artigo fica gizada uma possível relação entre as provas de ordálios dos povos pri-
mitivos que habitaram a Península Ibérica, antes do domínio romano, e os ordálios
consignados nas fontes medievais escritas. Os de maior impacto no quotidiano jurí-
dico da Idade Média portuguesa terão sido o ferro em brasa e o combate judiciário.

Palavras chave – Direito Celta, Ordálios, Juízos de Deus, Direito Medieval.

Sumário: I. INTRODUÇÃO; II. FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS; III. PROVAS


ORDÁLICAS; 1. Ferro Candente; 2. Combate Judiciário; IV. CONCLUSÃO.

Abstract – The primitive element played a role in the formation of Portuguese Law. In
this paper is traced a possible relationship between ordeal evidences of primitive peo-
ple who inhabited the Iberian Peninsula before the Roman dominion and the ordeals
consigned in the medieval written sources. The ones that had the greatest impact in
the juridical daily life of the Portuguese Middle Ages shall have been the branding
iron and the judicial combat

Key words – Celtic Law, Ordeals, Judgments of God, Medieval Law.

Summary: I. INTRODUCTION II. FORMATION OF PORTUGUESE LAW III. ORDEALS; 1.


Branding Iron; 2. Judicial Combat; IV. CONCLUSION.

I. INTRODUÇÃO

Cumpre deixar aqui consignado o meu mais sincero agradecimento a toda a organi-
zação do VI Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta pela honra que me deram em
participar neste evento, que já se assume como mais um “estigma” cultural do muni-
vi congresso transfronteiriço de cultura celta de ponte da barca

cípio da Ponte da Barca e de toda a região do norte de Portugal e Galiza. A todos agra-
deço a hospitalidade e a oportunidade de partilha de conhecimento que me foi pro-
porcionada durante os dois dias em que decorreu o encontro. Uma palavra especial de
estima e elevada consideração à Prof.ª Fátima Lobo – a minha professora de Filosofia
no ensino secundário, ora colega na Universidade Lusíada do Porto – que, como mem-
bro dessa organização, simpaticamente me dirigiu o convite expresso.
Não podia recusar!
Mas para quem faz dos textos escritos a imprescindível matéria prima da sua inves-
tigação, a liça não se apresentava favorável – para aquela época não há Direito escrito.
Posta de parte qualquer ajuda documental coetânea, iniciei a minha exposição (em
formato PPP) colocando, à audiência, duas questões preliminares: em primeiro saber
se nessa época existia Direito e, em caso afirmativo, apurar se existiria um Direito
celta na Península Ibérica. A primeira questão não coloca entrave a qualquer jurista.
Decididamente, o Direito existe nas mais remotas comunidades humanas. Sendo que,
os monumentos jurídicos mais arcaicos da humanidade remontam a cerca de 4000
anos atrás, v. g., o Código de Ur-Nammu (2040 a.C.), o Código de Lipit-Ishtar (1934-1924 a.C.) e
o Código de Hamurabi (1792-1750 a.C.) e, além desta prova documental comparativa, lá diz
o velho aforismo latino:

• ubi homo, ibi societas (onde está o homem, haverá uma sociedade);
• ubi societas, ibi ius (onde há uma sociedade, haverá um Direito).

Já a segunda questão não se apresenta de resposta tão fácil. O mais plausível é


que não se possa falar num Direito celta geral, porque o que existiria na realidade era
um conjunto disperso de usos, práticas e costumes, reiterados por um longo período
de tempo e aceites pelos membros de cada uma das tribos locais – característico de
um Estado-tribal. No entanto, apesar das amplas diferenças existentes entre os vários
povos celtas, não devem ser consideradas despiciendas determinadas características
comuns que destilam do seu mundo jurídico.
Aliada a este natureza consuetudinária, o Direito peninsular pré-romano goza de
uma tónica eminentemente sagrada. As normas jurídicas confundem-se com as nor-
mas religiosas e a figura do juiz personifica-se na do próprio sacerdote. Esta fusão e
complementaridade entre ambas as ordens (jurídica e religiosa) vai-se revelar, parti-

  “No antigo direito celta, o poder jurídico pertencia à classe sacerdotal, os druidas; uma de suas doutri-
nas principais era a proibição absoluta de confiar a tradição, jurídica ou religiosa, à escrita. A interdição druídica da escrita não
desapareceu senão pela cristianização que se efetuou na Irlanda do século VI ao século VII da nossa era; a tradição
jurídica foi então objeto de redações, mas estas não sobreviveram; não são conhecidas senão por cópias posteriores,
muitas vezes influenciadas pelo direito canônico. Os comentários e as glosas que acompanham abundantemente
as cópias testemunham geralmente uma má compreensão da língua” – assevera John GILISSEN, Introdução Histórica
ao Direito, 5.ª edição, Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros, Fundação Calouste Gulbenkian,
2008, p. 161.
  Cf. nota 1, onde ficou registado que o poder jurídico estava entregue aos sacerdotes ou druidas.

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cularmente, no âmbito do processo judicial. Não raro, entre as comunidades primiti-


vas, recorria-se às divindades para apurar a verdade sobre determinado litígio jurídico
– são os chamados ordálios ou juízos de Deus.
A cultura jurídica ocidental pautou-se por uma progressiva secularização do
Direito, mas o mesmo se não pode afirmar de determinados sistemas orientais – v. g., o
muçulmano – que ainda continuam a apoiar o conteúdo dos seus critérios normativos
num substrato religioso.

II. FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS.

A génese e formação do Direito português assenta num lastro de múltiplos factores


ou elementos externos, v. g., romano, canónico, visigótico e castelhano-leonês. Para
além destas influências assíduas e bastante estudadas, é importante ressalvar a con-
tribuição de um elemento primitivo ou celtibérico, em época anterior à dominação
romana. Não restam dúvidas de que alguns institutos jurídicos, que se vieram a afir-
mam durante o período medieval, estiveram latentes ao longo de vários séculos e reve-
lam um acentuado cariz pré-romano ou indo-europeu. Apesar do vigor incisivo e cáus-
tico daqueles elementos, sobretudo o derivado do génio jurídico romano, o substrato
primitivo não desapareceu completamente.
No entanto, a prática da transmissão oral do conhecimento, imanente a esses
povos que povoaram a Península, leva a uma carestia total de textos jurídicos escritos
coevos e de compilações legislativas formais. Por isso, tentar embrenhar-se no Direito
primitivo ou celtibérico é um desafio extremamente árduo e de elevado risco – sobre-
tudo, para alguém como eu, que nunca recuou para além do século XII português e,
por isso, desconhece esse lapso de tempo milenar.
Identificar e definir as instituições jurídicas legadas pelo passado celta em
Portugal, à lupa do estalão científico hodierno, requer um conhecimento sério desse
passado com mais de dois mil anos de existência, através do estudo dos testemunhos,
linguísticos arqueológicos e epigráficos e do palmilhar das obras dos escritores da anti-
guidade, v. g., os historiadores e geógrafos latinos e grego. Sem embargo, para sepa-
rar o trigo do joio e apurar o que pertenceria ao elemento celta – pelo dito método das
sobrevivências – torna-se indispensável perscrutar os textos jurídicos elementares pos-
teriores, comparar os resultados com outros sistemas normativos onde se manteve e
foi possível a reconstrução escrita do Direito celta (v. g., o irlandês) e nunca deixar de
recorrer, sempre que possível e aconselhável, às novas e mais seguras tecnologias do
conhecimento científico.
Estando qualquer destes mecanismos fora do meu alcance e do propósito da comu-
nicação apresentada ao VI Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta (realizado na

  Cf. John GILISSEN, Introdução Histórica ao Direito, pp. 715-716.

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Ponte da Barca, nos dias 15 e 16 de Junho de 2012), limitei-me a abordar alguns aspectos
relacionados com a matéria dos ordálios, que se terá mantido viva na consciência jurí-
dico-arcaica das populações ibéricas, vindo posteriormente a manifestar-se de forma
pertinaz nos escritos do período medieval. Entre os ordálios praticados entre os povos
celtas, que se mantiveram até ao período medieval português, destaquei apenas dois
para este breve estudo: a prova do ferro em brasa e o duelo.
Antes de entrar propriamente na matéria dos juízos de Deus, não posso deixar de
chamar à colação as duas lacónicas referências, em matéria jurídica, há muito tempo
alforriadas da Geografia da Ibéria de Estrabão para a História do Direito Português. Na pri-
meira, como possível existência de um Direito escrito – Leis tartésicas – Estrabão afirma
que os povos do sul da Península possuíam leis escritas em verso, com seis mil anos de antiguidade. Apesar
de ser duvidosa a tradução de seis mil anos, que também pode ser seis mil versos, a afirma-
ção será clara quanto à existência de um Direito legislado. Numa segunda passagem
– a propósito da aplicação de penas capitais aos crimes mais graves – regista que, entre
os povos do Ocidente peninsular, “os condenados à morte são lançados do alto dos rochedos e os
parricidas são apedrejados diante das fronteiras”.
A propósito do suplício por despenhamento de rochedos perdurou ténue indício
até às Ordenações Afonsinas – uma das primeiras colectâneas oficiais de Direito, finalizada
a 28 de Julho de 1446, na vila de Arruda (c. Arruda dos Vinhos). A propósito do meirinho
das cadeias e seu ofício, ficou consignado nessa compilação de meados do século XV:

“Item Ha daver dos homeens que mandam degolar ou enforcar ou morrer por Justiça do
monte moor huma carceragem por cada huum que assy for justiçado”

Os criminosos condenados a morrer por justiça de monte mor, segundo o Elucidário de


Viterbo, eram precipitados de um rochedo ou despenhadeiro. O que quer dizer que em
Portugal, no século XV, ainda se aplicava este tipo de sanção capital, plausivelmente,
como legado dos ancestrais povos celtas que habitaram o ocidente peninsular.

  “la ordalía fue un recurso legal enormemente extendido desde la protohistoria hasta la Edad Media” – Francisco Javier
FERNÁNDEZ NIETO, “Religión, derecho y ordalía en el mundo celtibérico: la federación de San Pedro Manrique y
el ritual de las Móndidas”, Palaeohispanica: Revista sobre lenguas y culturas de la Hispania Antigua 5, Institución «Fernando
el católico», Zaragoza, 2005, p. 606.
  Existem, no entanto, outras provas ordálicas oriundas de povos primitivos e que se manifestaram na
Idade Média portuguesa, v. g., o juramento “enquanto meio probatório, de carácter religioso sucessivamente adaptado às crenças
de cada povo, (…) foi conhecido e praticado desde a antiguidade”, assevera Teresa MORAIS, “Dos Meios de Prova no Direito
Medieval Português – Notas para a História do Juramento Probatório”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ven-
tura, vol. I, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2003, p. 402.
  Nuno J. Espinosa Gomes da SILVA, História do Direito Português – Fontes de Direito, Fundação Calouste Gul-
benkian, Lisboa, 2011, p. 60, nota 3.
  Idem, p. 61, nota 1.
  Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V, Real Imprensa da Universidade, Coimbra, 1792 (fac-simile da Funda-
ção Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984/1998) [= Ordenações Afonsinas], Liv. I, Tít. 12, p. 81.
  Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram
e que hoje regularmente se ignoram: obra indispensável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que
entre nós se conservam / Publicado em Beneficio da Litheratura Portugueza Por Fr. Joaquim de Santa Rosa Viterbo,
vol. II, p. 341 (edição crítica por Mário Fiuza, Livraria Civilização Editora, Porto, 1993).

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III. PROVAS ORDÁLICAS.

As provas processuais de ordálio são, talvez, um dos legados jurídicos mais credível
que conhecemos dos povos primitivos. Também designadas juízos de Deus, assen-
tam na crença arreigada numa divindade omnipresente e omnisciente que intercede-
ria a favor do suspeito inocente, em última instância, originando um milagre judicial.
Através dos rituais sancionados, em público, a divindade é invocada para se pronun-
ciar sobre a culpabilidade ou inculpabilidade de alguém que se assume inocente. No
fundo, traduz-se numa instrumentalização da justiça divina ao serviço do processo
judicial humano.
Trata-se de provas irracionais, arraigadas numa forte crença religiosa, que se
podem dividir em práticas unilaterais (v. g., a do ferro em brasa) ou bilaterais (v. g., a do
combate judiciário).
A partir do século XII, sobretudo, o processo de racionalização da justiça vai insur-
gir-se contra estes rudes procedimentos ordálicos. Marques dos Santos destaca o con-
tributo decisivo da ciência romano-canónica e da própria Igreja na lide contra estas
formas irracionais de obtenção da prova, desde a voz crítica de Agobardo – bispo de
Lyon (816-840) e autor do Liber contra iudicum Dei –, à insurgência dos papas do século
XII, Alexandre III e Celestino III, contra o duelo ou combate judiciário e “finalmente o
importantíssimo cânon 18 saído do IV Concílio de Latrão, proibiu os clérigos de benzer e consagrar objetos
utilizados nesses ritos e de neles participar (nomeadamente os ordálios de água a ferver, de água fria e de
ferro em brasa)”10.
A profundeza das suas raízes até ao mundo pré-romano é algo que, cada vez mais,
se torna visível – aspando as palavras de Vera-Cruz, “a existência de juízos de deus entre os
povos pré-romanos é também uma questão pacífica, hoje claramente comprovada com base em vários tes-
temunhos revelados pela intensificação e progresso das investigações sobre este período”11. Nas linhas
à frente segue-se algo do muito pouco que me foi possível averiguar a propósito das
provas do ferro em brasa e do combate judicial.

1. Ferro Candente.

Os ordálios do fogo e a sua dimensão jurídica estão documentados um pouco por


todo mundo antigo12, inclusive entre os celtas da irlanda e Gales, afirmando Fernández
Nieto que na Hispania as “ordalías por el fuego pueden rastrearse en la fiesta céltica del 1 de mayo”.

10  José Eduardo Marques dos SANTOS, O Processo Penal Português: no período medieval, Edições Ecopy, Prometeu
53, Lisboa, 2012, pp. 137-138.
11  Eduardo VERA-CRUZ, As Origens do Direito Português – a Tese Germanista de Teófilo Braga, Associação Aca-
démica da Faculdade de Direito, Lisboa, 1996, p. 288.
12  Na Antígona (c. 496-406 a. C) de Sófocles ficou referência expressa ao ordálio do ferro candente, quando os
guardas, para demonstrar que diziam verdade, “já nos dispúnhamos a tomar nas mãos o ferro em brasa” – Sófocles, Antígone,
eBooks Brasil, p. 20, em http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.pdf (consultado no dia 7 de Setembro
de 2012).
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Este autor põe em evidência a origem indo-europeia da prova de ordálio pelo fogo,
nas suas múltiplas variantes, como cerimónias judiciais sagradas de averiguação da
verdade13.

O uso judicial do ferro candente na Idade Média portuguesa surge ligada a cri-
mes, v. g. de roubo e homicídio, nos monumentos jurídicos foralengos dos concelhos
medievos – tanto nos foros extensos ou costumes como nos foros estritos ou forais. Os
chamados foros ou costumes municipais consistem em compilações, mais ou menos
organizadas, dos costumes locais enraizados num determinado município. Os forais,
como Direito pactuado, surgem da outorga de um documento, por parte do rei ou de
um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disci-
plinam as relações dos povoadores, entre si, e destes com a entidade outorgante (v. g.,
liberdades e garantias de pessoas e bens dos povoadores, impostos e tributos, compo-
sição e multas devidas por delitos, imunidades colectivas, serviço militar, encargos e
privilégios dos cavaleiros vilãos, aproveitamento de terrenos comuns, ónus e forma
das provas judiciais, citações, arrestos, fianças, etc.).
Nos forais da família de Salamanca a prova do ferro em brasa, em alternativa à
lide judiciária, surge associada ao delito de furto. No foral de Freixo (1152) o acusado
de furto, que fosse provado por lide ou ferro candente, seria obrigado a pagar 60 soldos
ao queixoso e as novenas para el-rei – “Per totum furtum qui fuerit arrancado per lide uel per ferro
duplet ei cum LX solidos a rancuroso et nouenas a palacio”14. O mesmo normativo se manteve nos
forais de Urros (1182)15 e Santa Cruz (1215)16.
A prova do ferro candente surge também consignada no foral outorgado por D.
Afonso Henriques a Melgaço (21 de Julho de 1183), mas para crimes de homicídio, – “Si
homicida cognitus fuerit et de concilio ei concessum fuerit et nudum ferrum portauerit nichil pariat”17. O
protótipo deste foral raiano, a pedido dos seus próprios moradores, foi o da vila pró-
xima de Ribadavia (Espanha).
A prova do ferro em brasa surge em itens dos foros extensos do concelho da Guarda,
a par e par com a lide judicial. A submissão à prova do ferro, em alternativa à lide, é
prerrogativa do querelante, quando o acusado não tinha casa na vila:

I. No caso de contestação da propriedade do senhorio das terras concedidas em


préstamo: (i) com outorgamento do senhorio, o sublevado devolva a herdade e

13  Francisco Javier FERNÁNDEZ NIETO, “Religión, derecho y ordalía en el mundo celtibérico: la federación
de San Pedro Manrique y el ritual de las Móndidas”, Palaeohispanica: Revista sobre lenguas y culturas de la Hispania Antigua
5, Institución «Fernando el católico», Zaragoza, 2005, pp. 605-608.
14  Portugaliae Monumenta Historica: a saeculo octavo post Christum usque ad quintumdecimum – Leges et Consuetudines,
Lisboa, 1863-1866, vol. I, fasc. III, p. 380.
15  Portugaliae Monumenta Historica, vol. I, fasc. III, p. 425: “Per totum furtum qui arran<ca>do fuerit per lide uel per ferro
duplet ei cum LXª solidos al rancuroso et nouenas a palacio”.
16  Portugaliae Monumenta Historica, vol. I, fasc. IV, p. 603: “Per totum furtum qui fuerit arrancado per lide uel per ferro
duplet ei cum LX solidos al rancuroso et nouias a palacio”.
17  José MARQUES, Os Forais de Melgaço, Câmara Municipal de Melgaço, 2003, p. 61.

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pague 100 soldos; (ii) sem esse outorgamento, tendo o sublevado casa na vila, jure
e responda a repto, mas se for vencido devolva-a e pague os 100 soldos; (iii) caso o
rebelado não tenha casa na vila, o dono da herdade pode optar entre a prova do
ferro ou a lide; (iv) morrendo o dono da herdade ou o acusado o ônus da lide trans-
mitir-se-ia aos respectivos filhos ou herdeiros.
II. Aquele que insultar mouro ou moura convertidos ao cristianismo, negando-
lhe a carta outorgada pelo seu senhorio: (i) se tiver casa na vila, entre a lidar judi-
cialmente; (ii) se não tiver casa na vila, “prenda o ferro ou lide”, conforme quiser o
dono da dita carta.
III. Em caso de apelido, todo o gado ferido – supõe-se que por falta de zelo – tinha
que ser pago aos seus legítimos proprietários, a não ser que os acusados se salvas-
sem pela lide ou pelo ferro, prova a escolher pelo dono do gado.
IV. Aquele que prender em rede pomba de pombal entre a aferro ou a lide, con-
forme quiser o dono da ave18.

Não temos, apesar de tudo, qualquer descrição do ritual solene em Portugal. Esta
lacuna tem sido colmatada através do recurso aos Fueros de Castela, nomeadamente ao
Foro de Cuenca, qualificado como a “suma de instituciones forales”. Segundo este monu-
mento jurídico, o ferro usado deveria ter dois dedos de largura e um palmo de compri-
mento. Era aquecido pelo juiz e um sacerdote até ficar em brasa, ninguém se podendo
aproximar, por uma questão de garantia de imparcialidade e evitar qualquer tipo de
dolo. O suspeito que se submetia à prova era examinado, lavava e enxaguava a mão
perante todo o público presente. Depois, pegava no ferro em brasa e tinha que cami-
nhar com ele nove pés, depositando-o devagar no chão, ao passo que o sacerdote o
abençoava. Em seguida, o juiz aplicava-lhe um curativo à base de cera, linho ou
estopa, envolto com um pano. Volvidos três dias, o estado da mão era examinado pelo
juiz para o veredicto final. Em característico Latim medieval, rezam assim as leis 45 e
46 do capítulo 11 do referido Foro de Cuenca:

“xlv
De factura ferri.
Ferrum ad iusticiam faciendam habeat quatuor pedes aliquantulum altos, quatenus illa, que fuerit
purganda, manum subtus mittere possit; et habeat in longitudine palmum, et in amplo duos digi-
tos. Illa que ferrum tollere debuerit, ferat illud spacio nouem pedum, et suauiter in terra ponatur; set
tamen prius benedicatur a sacerdote.
xlvi
De calefactione ferri.
Iudex et sacerdos calefaciant ferrum, et interim nullus accedat ad ignem, ne forte aliquod maleficium

18  Collecção de Ineditos de Historia Portugueza, Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo V, Lisboa, 1824, pp. 399-455.

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faciat. Illa que ferrum tollere debuerit, prius scrutetur, ne aliquod maleficium teneat, deinde coram
omnibus lauet manus suas, et tersis manibus tollat ferrum. Postquam ferrum tulerit, statim iudex
cooperiat manum eius cum cera, et super ceram ponat stupam uel linum; postea ligetur optime cum
panno. Quo facto ducat eam iudex in domum suam, et post tres dies inspiciat manum eius; et si manus
fuerit conbusta, ipsa conburaturm uel sustineat penam hic iudicatam. Ila sola mulier capiat ferrum,
que probata fuerit mediatrix, uel cum quinque uiris fornicasse; alia mulier que de furto, uel homicidio,
uel incendio fuerit suspecta, iuret, uel det pugnatorem, sicut forum est”.19

Apesar do desaparecimento precoce, os factos relacionados com a prova ordálica do


ferro caldo em Portugal – segundo o testemunho caído da pena de el-rei D. Duarte para
o Leal Conselheiro – devem ter persistido na memória colectiva, plausivelmente subleva-
dos, até ao século XV20.

2. Combate Judiciário.

Na origem do duelo judicial, no seio das culturas indo-europeias, estão peculiares


conjunturas sociais e materiais21. A manifestação hispana do combate singzular no
âmago dos povos celtibéricos, como procedimento judicial oriundo do acervo indo-
europeu, está bem patenteada noutro estudo de Fernández Nieto. Este académico,
apoia-se no relato legado por Tito Lívio sobre um munus gladiatório (206 a. C.) organi-
zado em Cartagena por Sipião Africano. Segundo este fidedigno testemunho escrito
da Antiguidade, em simultâneo com o ritual romano dos jogos, realizaram-se vários
combates judiciários para dirimir os litígios entre os habitantes autóctones – maior
sensação terá causado o combate entre Corbis e Orsua, que, mediante um combate
até à morte, resolveram a sucessão ao trono da sua tribo22. Para além de algumas
características coevas (que, curiosamente, também se manifestam nos textos jurídi-
cos medievais) deste arcaico instrumento de justiça, alia ao testemunho de Tito Lívio
outros relatos de fontes clássicas da conquista romana da Península e a prova cerâmica
do vaso ibérico de S. Miguel de Liria – que “probaría el acomodo de una usanza jurídica céltica en
el solar ibérico”23.

19  Fuero de Cuenca, em http://www.uclm.es/area/dromano/CR/fuero1.htm (consultado no dia 6 de Setembro


de 2012)
20  Nuno Espinosa Gomes da SILVA, “Uma referência de D. Duarte ao «ferro caldo», no leal conselheiro”, I.ª
Jornadas de História do Direito Hispânico, actas 12 - 13 - 14 de Janeiro de 2004: Homenagem ao académico de mérito prof.
doutor José Manuel Pérez-Prendes, catedrático da Universidade Complutense / coord. Por José Manuel Pérez-
Prendes y Muñoz de Arraco, 2004, pp. 195-202.
21  José Miguel PIQUER MARÍ, Consideraciones sociales y materiales del duelo judicial en Roma: sus
posibles antecedentes indo-europeos”, Revista Genereal de Derecho Romano, Editorial Iustel, n.º 14, 2010, em http://
www.iustel.com/v2/revistas/detalle_revista.asp?id=11&numero=14 (consultado no dia 12 de Setembro de 2012).
22  O duelo entre Corbus e Orsua já é referenciado por Juan Antonio ALEJANDRE GARCIA, Temas de Historia del
Derecho: Derecho Primitivo y Romanización Jurídica, Sevilla, 1977, p. 23.
23  Francisco Javier FERNÁNDEZ NIETO, “Una institución jurídica del mundo celtibérico”, Estudios de
Arqueología Ibérica y Romana: Homenaje a Enrique Pla Ballester, Deputación de Valencia – Servicio de Investigación
Prehistórica, 1992, pp. 381-384.

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Os registos iconográficos de combates individuais, a pé ou a cavalo, abundam


entre os povos celtibéricos, v. g., os vasos de guerreiros de Numancia e o pomo da adaga
da necrópole de Las Ruedas (Valladolid). Mas a finalidade inerente está longe de uma
interpretação unívoca e de consensualidade entre autores. Manuel Alberro dedica um
trabalho aos combates singulares dos heróis-guerreiros como forma de prestígio e reco-
nhecimento social e, sobretudo, de augúrio para o desfecho de importantes batalhas
na sociedade céltico-irlandesa24.

O duelo medieval, em território português, continuou a pautar-se por manifesta-


ções diversas. Umbilicalmente ligado à vindicta privada – a primordial forma de solução
de conflitos humanos, sobretudo, combatida e reprimida durante a Baixa Idade Média
– acabará por assumir as seguintes formas:

(i)“Umas vezes, aparece-nos como forma regular e perfeitamente legal de exercer


uma vindicta contra o autor de um delito, com o qual se combate, para dele a
vítima ou alguém da sua família tirar desforra.
(ii) Outras vezes, surge-nos como uma forma de vindicta ainda, mas já sujeita por
um crescente sentimento do interesse público a certas formalidades limitado-
ras, tais como a necessidade de um desafio regular feito perante certas autori-
dades e com a intervenção de juízes e testemunhas.
(iii) Outras vezes ainda, é o duelo (…) simples meio de prova em juízo, destinado a
evidenciar a inocência ou a culpa de certos réus, mediante a invocação clara e
terminante do testemunho da divindade; neste caso, crê-se, a decisão provi-
dencial do combate na ordem dos factos protegerá os inocentes e oprimidos e
confundirá os culpados e os perjuros.
(iv) E ainda outras vezes, por último, é o duelo um simples meio de atestar solene-
mente, com honra e cavalheirismo, a firmeza da convicção com que é acusado
ou defendido um cavaleiro sobre o qual recaíu o labéu de traição e aleivosia
contra o rei e a pátria”25.

Como ordálio ou meio de prova integrado num processo regular, manifesta-se,

24  Manuel ALBERRO, “El combate individual en los Celtibéros y los pueblos celtas de la antigua irlanda”,
Hispania Antiqua, n.º 29, Universidad de Valladolid, 2005, pp. 237-255.
25  Luís Cabral de MONCADA, “O duelo na vida do direito”, Estudos de História do Direito, Universidade de Coim-
bra, Coimbra, 1948, vol. 1, p. 132.

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vi congresso transfronteiriço de cultura celta de ponte da barca

paradigmaticamente, nos forais de Freixo (1152)26, Urros (1182)27 e Santa Cruz (1215)28 e
nos Costumes de Riba-Côa. V. g., nos Foros da Guarda ficou consignado que a lide tinha
lugar na devesa e uma multa de 1 maravedi para os que passassem o sinal posto pelos
alcaides ou fiéis – “Todo ome que a lidar ouuer lide en a deuessa. E quen passar o sinal que posseren os
alcaydes ou os fiees peyte I marauidi. E quen torto ouue depoys que nos iuramos que o aiudemos ao dereyto
filhar”29. No ocaso dos tempos medievos, em Portugal, a derradeira manifestação do
duelo ficou adstrita à instituição monárquica30.

IV. CONCLUSÃO.

O tema dos ordálios merece, com certeza, mais tempo e dedicação, que, neste momento,
me não sobejam. Por isso, respondendo ao apelo que me foi feito pela organização do
VI Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta, apenas fica gizada uma plausível liga-
ção de alguns ordálios mediévicos ao mundo jurídico celta. Embora ténues, existem
restos indiciários que estes arcaicos meios de prova conseguiram superar o efeito cáus-
tico dos autores e dos livros do Ius commune que, desde o século XII, se alastrou por toda
a Europa. A documentação encontra-se disseminada pelos arquivos e a bibliografia já
não se pode dizer que seja, propriamente, escassa31.

26  Portugaliae Monumenta Historica, vol. I, fasc. III, p. 380: “Ad quem demandarem que homine matou a traicion lide et si
caer pectet mil m.º et si non habuerit de que los peche faciant de illum iusticiam quomodo de aleiuoso e de traidor, et sup (sic) exeat de fresno
pro aleuoso et de suo termino et deribemle las casas. Et per istam uocem uicinum ad uicinum det directum et non ad iudicem. Et qui istam
uocem demandauerint primum iuret cum III parentes los magis circa qui in tota la uila fuerint qui lo non demanda por outra malquerencia
mais que matador en firidorfoi de seo parente onde morreo, et si parentes non habuerit cum III uicinos. Et si istum non iurar non respondeat
illi”.
27  Portugaliae Monumenta Historica, vol. I, fasc. III, p. 425: “Ad quem demandarem que homine matou a traicion lide et si
caer pectet mil morabitinos. Et si non habuerit de que los peite faciat de illo iusticia quomodo de aleyuoso et de traidor. Si los pectare exeat de
orrios pro aleiue et de suo termino deribem suas casas et per ista uocem uicinum ad uicinum det directum et non ad iudicem. Et qui istam
uocem demandauerit primum iuret cum III parentes los magis circa qui in tota la uila fuerit que lo non demanda per outra malquerensa mais
que matador e feridor fui de seu parente unde morisse. Et si parentes non habuerit cum III uicinos Et si isto non iurar non respondeat illi”.
28  Portugaliae Monumenta Historica, vol. I, fasc. IV, p. 603: “A quem demandarem que omem matou a traysom lide et si caer
pectet mille morabitinos: et si non habuerit de que los pecte, faciant de illo iusticiam comodo de aleiuoso et de traditor: Si los pectare exeat de
sancta cruce pro aleiue, et de suo termino, et deribem suas casas: et per istam uocem uicinum ad uicinum det directum et non ad iudicem: Et
qui istam uocem demandauerit primum intret cum III parentes los magis circa qui in toto la uila fuerint qui lo non demanda per outra mal-
querencia maes que matador et feridor fui de suo parente unde morui: Et si parentes non habuerit cum III uicinos: Et si istum non iurar non
respondeat illi”.
29  Collecção de Ineditos de Historia Portugueza, Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo V, Lisboa, 1824, pp.
399-455.
30  Ordenações Afonsinas, Liv. I, Tít. 64. Cf. MONCADA, “O duelo na vida do direito”. A propósito da relação
com o juramento, cf. Paulo MERÊA, “Juramento e Duelo nos Foros Municipais”, História e Direito – Escritos Dispersos,
Boletim da Faculdade de direito de Coimbra, Coimbra, 1967, pp. 135-150.
31  Cf. a bibliografia indicada por VERA-CRUZ, As Origens do Direito Português, pp. 284-304, sobretudo, a nota
588. Vide também Manuel TORRES AGUILAR, “Naturaleza jurídico-penal y procesal del desafío y riepto en León y
Castilla en la Edad Media”, Anuario de Historia del Derecho Español, n.º 10, 1933, pp. 16-173. Alfonso OTERO VA-
RELA, “El Riepto de los Fueros Municipales”, Anuario de Historia del Derecho Español, n.º 29, 1959, pp. 153-174. Javier
ALVARADO PLANAS, “Ordalías y Derecho en la España Visigoda”, De la Antiguedad al Medievo. Siglos IV a VIII, III
congresso de estúdios medievales de la Fundación C. Sánchez-Albornoz, Madrid, 1993, pp. 507-617; idem, El proble-
ma del germanismo en el Derecho español. Siglos V-XI, Marcial Pons, Madrid, 1997.

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