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Algumas funções

públicas
da Arquitetura
danilo matoso macedo

danilo matoso macedo

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A atividade do arquiteto, como a maior


parte das atividades humanas, necessita de
seus motivos, de suas metas e balizamentos;
uma sociedade organizada é capaz de produzir
é imprescindível. Portanto, a construção do
espaço edificado é, forçosamente, um produto
e estabelecer e validar alguns deles é o que social. Mais que isso: o espaço edificado não
me proponho a fazer aqui, discutindo funções apenas é conformado como também conforma
públicas da arquitetura. Peço ao leitor o indulto a sociedade em que vivemos, pois a História
pela pretensão talvez desmesurada da tentativa não se escreve fora do espaço e não há sociedade
de abarcar tema tão amplo em espaço tão a-espacial. O espaço, ele mesmo, é social [1].
reduzido, ficando a ressalva da inevitável neces- Esta interdependência forçosa entre espaço
sidade de omissão de assuntos correlatos – da construído e sociedade suscita a indagação
qual sou consciente. acerca da natureza de propriedade do primeiro
O espaço edificado constitui, por sua própria dentro da segunda: quais os limites entre espaço
natureza, objeto cultural. Seria difícil ao indi- construído público e privado, tratados como
víduo construir sem o aporte histórico-cultural bens?
de técnicas construtivas. Tratando-se do espaço A Economia define a existência de bens públi-
construído segundo as tecnologias hoje difun- cos como uma falha de mercado onde o Estado
didas – tijolo, madeira aplainada, aço, cimento, deve naturalmente atuar:
areia etc –, o aporte de insumos que somente

mínimo denominador comum 3 monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura


pregressa, a ser interpretada de acordo com os
Os bens públicos são aqueles cujo consumo/ valores a elas contemporâneos.
uso é indivisível ou ‘não-rival’. Em outras Se estes aspectos essenciais do e­spaço
palavras, o seu consumo por parte de um construído emprestam-lhe um caráter
i­ndivíduo ou de um grupo social não prejudica e­minentemente público, cabe perguntar
o consumo do mesmo bem pelos demais do papel desempenhado pela profissão do
integrantes da sociedade. Ou seja, todos se arquiteto na produção desse espaço. Afinal, se
beneficiam da produção de bens públicos 70% da produção de moradia no País está fora
mesmo que, eventualmente, alguns mais do do mercado formal [4], o arquiteto-projetista
que outros. São exemplos de bens públicos: de edifícios talvez seja responsável por uma
bens tangíveis como as ruas ou a iluminação parcela quantitativamente pouco significativa
pública; e bens intangíveis como justiça, do espaço construído da sociedade de nosso
segurança pública e defesa nacional. país. Convido o leitor a debruçar-se sobre o
Outra característica importante é o princípio mapa de qualquer das grandes metrópoles
da ‘não exclusão’, no consumo destes bens. brasileiras, delimitando as áreas e pontos de
De fato, em geral, é difícil ou mesmo impos- interesse da cultura arquitetônica local: os
sível, impedir que um determinado indivíduo edifícios e casas que são publicados em revistas,
usufrua de um bem público [2]. que estão em nossas exposições, que recebem
prêmios de nossos institutos. Mesmo em termos
Estritamente, esta definição de bem público planimétricos, a porcentagem constatada será
não define o espaço construído como coisa seguramente bastante inferior aos 30% restantes
pública. Ao contrário, os imóveis são os bens da estatística acima.
privados quase que por antonomásia. Há, Isso não é novidade. Em 1946, Oscar Nie-
entretanto, aspectos do espaço construído meyer já dizia que:
que, acredito, são bens públicos – no sentido
econômico. São eles tanto a paisagem da vida (...) se examinamos nossa atividade profis-
social como o registro histórico-cultural da sional objetivamente, constatamos que
sociedade. ela se limita exclusivamente à solução do
Como paisagem da vida social, temos problema arquitetural de edifícios isolados,
como construções mais óbvias as ruas, praças, públicos, ou de casas de burgueses. Em suma:
calçadas, parques e outros elementos urbanos: as construções que, logicamente, deverão
são espaços construídos de domínio público ser eliminadas de um ‘plano diretor’ exato e
claramente definido. Afinal, pagamos aos definitivo que englobe sem distinção a todos
nossos municípios impostos investidos em sua os problemas arquiteturais de nossas cidades
construção e manutenção. São os chamados e de nosso país. [5]
bens de uso comum do povo [3].
Ainda como paisagem da vida social urbana, Na verdade, atender somente às elites das 15
temos o conjunto de edificações de propriedade sociedades e ao Estado é talvez uma das c­­a-
pública e privada que compõem as nossas racterísticas primordiais da profissão: a antiga
cidades juntamente àqueles bens de uso comum função social do arquiteto era produzir edifícios
do povo. Tenham sido elas construídas sob a de poder e gosto para pessoas de poder e gosto [6].
égide de regulamentações urbanísticas ou a sua Garry Stevens define este valor de gosto em
revelia, as edificações constituem a imagem da jogo na dinâmica da profissão como capital
cidade, definem seus referenciais, adensam ou s­imbólico. Apoiado no referencial teórico
esgarçam o tecido urbano e seus fluxos de pes- de Pierre Bourdieu, o arquiteto australiano
soas e veículos, dentre tantas outras interações afirma que não estão em foco aqui os objetos
de ordem coletiva. produzidos – as edificações, projetos etc.
A sobreposição e convivência temporal – mas a perpetuação de um sistema onde a
destes cenários construídos compõem classe dominante mantém fechado o espaço
parte da memória das culturas das sociedades, social e transmite poder e privilégio através
refletind­o, criando e ratificando seus valores das gerações erigindo barreiras simbólicas em
como coisas autônomas que estes espaços torno de si mesma [7]. Para este autor, a sobre-
construídos são. Para as gerações futuras, esse posição de paradigmas dentro do campo da
patrimônio é registro de sua própria história arquitetura, historicamente, trata-se apenas

monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura 3 mínimo denominador comum


do jogo endógeno de substituição de um valor seus clientes e muito menos para o povo. As
de capital simbólico de uma geração ascen- obras arquitetônicas nesse sentido são instru-
dente frente à geração anterior. Sua finalidade mentalizadas de modo a viabilizar a ascensão
essencial m­antém-se a mesma: perpetuar o social do arquiteto dentro de seu campo de
sistema de divisão de classes através de uma batalha: o campo arquitetônico.
estrutura simbólica de gosto. Os sucessivos Não pretendo com esta constatação pro-
movimentos arquitetônicos teriam sempre na mover qualquer tipo de ataque à brilhante
essência de seu discurso a negação de valores geração de arquitetos modernos – dentro do
de uma g­eração em prol dos valores da geração Brasil, talvez os mais relevantes até hoje. Afinal,
seguinte, legitimando a autonomia do campo ao diferentes gerações usaram de expedientes
mesmo tempo em que se cria um novo conjunto similares ou até bastante menos nobres para
de valores simbólicos. Assim, por exemplo, ascender a determinado status cultural. Veja-se,
por exemplo, os artifícios de ironia e cinismo
a história do Movimento Moderno é pre- ocultando a simples ausência de programa
cisamente a história das tentativas afinal conceitual em diversos setores da crítica
vitoriosas da vanguarda de desvalorizar arquitetônica desde os anos de 1970 até hoje.
completamente o capital ‘beaux-arts’ em favor Ao contrário, a autonomia conseguida pelo
do seu próprio capital [8]. campo arquitetônico durante o Movimento
Moderno hoje é legítima. Afinal,
Sabemos que, de fato, o desejo (frustrado) de
atender diretamente a toda a sociedade, tendo nenhuma área do campo cultural restrito
todas as classes por clientes, foi inculcado na (tais como a escultura, a poesia, a pintura, a
cultura arquitetônica pelas vanguardas moder- música) está tão amarrada a outros campos
nas do início do século XX, a partir da ação do sociais e é, portanto, menos autônoma. A
Deutsche Werkbund [9], bem como das vanguar- tremenda tensão que isso cria no interior da
das artístico-revolucionárias russas e sua ampla arquitetura manifesta-se em uma variada
influência em figuras de proa da arquitetura sintomatologia: a teoria arquitetônica nunca
européia, como Walter Gropius, Mies van der se recuperou da perda das [supostas] certezas
Rohe [10] e Le Corbusier [11]. do modernismo; os arquitetos preocupam-se
Mais que substituir os valores simbólicos com a sua perda de influência na indústria
a­nteriores, os arquitetos modernos tinham da construção; o sistema educacional parece
diante de si o dever de manter a autonomia inadequado; as associações profissionais estão
do campo arquitetônico. Ou seja: a tarefa de destroçadas e sem rumo. [14]
preservar íntegra a prerrogativa exclusiva do
arquiteto em produzir edifícios de poder e gosto Feitas estas ressalvas com respeito ao caráter
para pessoas de poder e gosto [12]. Para Stevens, elitista da arquitetura ocidental – e não apenas
16 brasileira, como afirmou Niemeyer –, pergunta-
os modernistas conseguiram evitar qualquer mo-nos se o caminho rumo ao estabelecimento
ameaça à sua autonomia intelectual pelo de um ethos arquitetônico inclusivo está no
simples expediente de ignorar aqueles para sistemático atendimento, pelos arquitetos, das
quem afirmavam estar projetando. demandas de camadas menos favorecidas de
seu povo. Niemeyer nos responde:
São célebres as anedotas acerca das incon-
veniências tecnológicas da impermeabilização Sempre recusei este equívoco, essa idéia
da Villa Savoye (Le Corbusier, 1929) [13], e em medíocre dos que insistem numa arquitetura
como elas foram solenemente ignoradas por ‘mais simples, mais ligada ao povo’. (...) Para
seu autor durante um bom tempo. É notório mim, essa idéia da simplicidade arquitetural é
t­ambém como a afluência de um grande pura demagogia, discriminação inaceitável e,
n­úmero de turistas-arquitetos tornou impos- às vezes, uma timidez que só a falta de talento
sível o uso privativo das casas Farnsworth (Mies pode explicar [15].
van der Rohe, 1946) e Falling Water (Frank Lloyd
Wright, 1936). Ao fim e ao cabo, os a­rquitetos Oscar e outros membros do Partido Comu-
modernos – tanto quanto os de o­utras gerações nista, como o próprio Vilanova Artigas [16],
– projetavam para outros a­rquitetos, não para entrincheiraram-se no marxismo clássico por

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detrás de uma fé pré-keynesiana na inexorabili- sua execução. O resultado plástico é de uma
dade da revolução proletária com o colapso do aparente desordem “vernacular” [20].
capitalismo – o que explica o teor da passagem No Brasil, ao menos no campo arquitetônico,
anti-assistencialista de Niemeyer acima. Para talvez a voz mais ouvida tenha sido a de Sérgio
eles, a revolução não se faz com a arquitetura, Ferro, em seu célebre O canteiro e o desenho.
mas na luta e na militância política [17]. Ou seja: Para Ferro, ao separar a capacidade de pensar a
arquitetura pouco teria a ver com política. construção da capacidade de fazer a construção,
E a resposta da maioria dos arquitetos para o desenho (entendido como projeto) é instru-
este impasse tem sido o dar de ombros. Desde mento de alienação a serviço do Capital.
a queda do construtivismo russo no regime de
Stalin, e mesmo desde Brasília, ficou bastante Assim, para a obra, o desenho não é repre-
claro que a arquitetura per se não mudará a sentação de um objeto de uso. Representa,
sociedade. E foi o próprio Corbusier quem, ou melhor, impõe sincretismo ao trabalho
paradoxalmente, nos afirmou que a revolução parcelado que deixa esfarelado para preservar
pode ser evitada. As tentativas assistencialistas sua missão unificadora [21].
de construção de modelos de habitação popular
em substituição aos tugúrios e favelas têm O que estas respostas têm em comum é a
sempre esbarrado no problema do aspecto negação da ordem vigente para a proposição
plástico massificado, do distanciamento dos de outra. Embora Alexander e Kroll tenham
centros urbanos, da baixa qualidade dos mate- pautado suas práticas por estes “sistemas
riais construtivos, do subdimensionamento dos alternativos” ao longo de quarenta anos, eles
cômodos, além dos problemas de ordem social nunca superaram esta condição marginal, não
gerados pela imposição da solução às comuni- chegaram a formar uma “escola” baseada em
dades [18]. suas práticas. Já Ferro abandonou a arquitetura
Mas como dar de ombros para esta exclusão, e passou a dedicar-se à pintura, tendo exercido
diante do caráter público inerente à arquitetura influência indireta nos movimentos de mutirão
exposto no início deste texto? E não é a própria dos anos 80, baseados em suas formulações,
arquitetura de Oscar um poderoso instrumento e liderados por ex-alunos seus [22]. E embora
político habilmente aproveitado por gover- a prática seja efetiva para massas organizadas
nantes para reforçar a estrutura simbólica do como o Movimento Nacional de Luta pela
poder – desde Pampulha até suas últimas obras? Moradia, a premissa de dedicação das horas
Buscar um ethos inclusivo para a atividade do vagas dos operários à construção diletante de
arquiteto pode ter outro sentido que a ação sua própria casa segue sendo um paradoxo [23].
a­ssistencialista ou a construção de monumen- Negando o projeto, o desígnio [24], o instru-
tos públicos. O espaço construído, conforme mento social cuja elaboração está ao alcance
vimos, comunga em sua essência com a socie- de poucos, estes arquitetos abriram a guarda
dade que nele habita. Mas que ethos inclusivo da autonomia de campo da arquitetura. Por 17
seria este? abdicar desta característica de distinção social,
As saídas elaboradas pelos arquitetos a deixando-a aberta à participação dos usuários,
partir da década de 1960 estiveram, em sua suas propostas naturalmente seriam vistas
maioria, ligadas à eliminação da lógica clássica no máximo como um objeto de curiosidade
de projeto e construção. Pode-se citar como pela maior parte dos integrantes do campo
exemplos as obras de Christopher Alexander arquitetônico. Os alunos de elite das escolas de
[19], primeiro com a tentativa de geração da arquitetura - o lugar onde as ondas de renova-
forma via raciocínio matemático, e depois com ção tomam corpo – não abririam mão do capital
a criação de um método baseado em padrões simbólico que já possuíam.
espaciais racionalmente catalogados e selecio- O relativo fracasso das tentativas de supe-
nados intuitivamente pelo arquiteto a partir de ração do paradigma clássico moderno de
uma integração pessoal com os clientes e com autonomia do objeto arquitetônico, como cons-
o lugar. O edifício, nesse processo é construído truto íntegro, suscita nossa próxima questão: é
sem projeto. Há ainda a obra de Lucien Kroll, possível abrir mão desta função de comando do
feita de modo participativo com os usuários, arquiteto, dessa força designadora, na definição
permitindo-lhes atuar como designers na etapa e construção do espaço social?
de projeto e alterar as obras à vontade após a Voltemos com mais atenção aos aspectos

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públicos do espaço construído. É neles e no dade material, uma determinada saúde plástica
exame de suas relações dialéticas com o homem que o torne identificável e compreensível como
que estão as chaves do argumento. instrumento de diálogo. Esta possibilidade de
O espaço urbano, por onde passam as ruas, diálogo, per se, abre o campo semântico da obra
parques, praças, como bens de uso comum do tornando-a processo político. Não se trata aqui
povo, definem em sua essência a noção que apenas de uma platônica autonomia formal [27].
desenvolvemos de espaço da coletividade. É Trata-se de coerência entre forma e possibili-
nessa construção de nosso cotidiano particular dades materiais do momento e da situação. Sem
que encontramo-nos com nossos vizinhos, que esta coerência, esta integridade própria da coisa
fazemos nossas refeições e compramos nossos em si [28], a construção fará sentido para menos
bens de consumo. pessoas.
É na relação de comunicação com os bens Assume-se, com isso, que há valores
de uso comum do povo que as edificações c­oncretos próprios de cada situação, que p­odem
particulares se tornam coisa pública. Ao mesmo ser transferidos para a construção de nosso
tempo, para além dos desejos individuais de ambiente. Este, como objeto que tem existência
seus construtores, os edifícios são destinados própria, dialoga com a própria sociedade que
a existir por um longo tempo, constituindo o criou em cada momento futuro. O grau de
forçosamente parte da paisagem de vida de efetividade da arquitetura, nesse sentido, estaria
gerações futuras. diretamente ligado à abrangência de sua univer-
Estas duas relações de alteridade para com salidade, de sua capacidade de comunicar, de
a vontade particular daqueles que constroem fazer sentido para um número maior de pessoas.
ensejam a responsabilidade do indivíduo É essa capacidade que distingue, por exemplo,
para com a coisa pública. Elas, a uma vez, uma construção universal como o anexo da
individua­lizam o domínio público e publicizam National Gallery (I.M. Pei, Washington, 1968).
o domínio privado. A arquitetura, vista sob este São inúmeros os esforços teóricos de identificar
ponto de vista, está na construção desta fina uma estrutura lingüística comum à arquitetura
membrana entre o espaço fechado e o aberto, ocidental: Norberg-Schulz, Charles Moore,
entre o momento atual e o seguinte. Como nos Herman Hertzberger e outros assentaram uma
lembra Niemeyer, com uma clareza de pensa­ sólida fundação nesse sentido. Acredito que a
mento lapidar: arquitetura de Oscar Niemeyer (na fase de 1957
a 1989), Álvaro Siza, Louis Kahn e I.M. Pei, por
para nós, o ‘espaço arquitetural’ é a própria exemplo, são exemplos lapidares de síntese
arquitetura e para realizá-la nele interferimos a partir desse tipo de princípio atemporal. O
interna e externamente, integrando-a na caráter clássico desse tipo de arquitetura não
paisagem e nos seus interiores, como duas vem ao acaso. Como já foi dito, o Movimento
coisas que nascem juntas e harmoniosamente Moderno não mudou o habitus elitizante da ar-
18 se completam [25]. quitetura, que a torna nossa atividade propícia à
construção de monumentos:
É a arquitetura portanto tentativa de cons­
trução do espaço social, de estabelecimento de Raro é o edifício não projetado por um
diálogo entre as múltiplas vontades individuais arquiteto que represente os valores supremos
e entre tempos diferentes. de uma civilização. Isto tem sido verdade para
templos, palácios, bibliotecas e prefeituras na
A compreensão do outro é o que torna o existir Grécia, em Roma e na Europa do período da
possível, o ensimesmado torna sua própria Renascença; e, mais recentemente, para mu-
existência uma tarefa árdua [26]. seus, universidades, edifícios governamentais
e sedes de corporações. O projeto dos grandes
Esta tarefa de compreensão do outro co- edifícios monumentais de projeção é o
loca-nos a premissa do estabelecimento de único domínio da arquitetura, seu mercado
uma linguagem comum. E é na construção da natural. Nenhuma outra profissão foi capaz
potencialidade do objeto concreto como mate- de concorrer efetivamente neste mercado, seja
rialização desse campo de diálogo que reside a no passado ou seja nos dias de hoje [29].
labuta daquele que constrói.
O espaço concreto deve ter então uma integri­ Entretanto, se há esta cultura ocidental a

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que todo bom artefato acaba prestando contas, relação aos próprios arquitetos projetistas.
há também, neste artefato, a incorporação de Portanto, criar um ethos inclusivo para a
códigos sociais locais aos quais o arquiteto- atividade do arquiteto passa por criar um ethos
cidadão local é capaz de atender. Ocorre aí a inclusivo dentro do próprio campo arquite­
ruptura entre o campo arquitetônico e o campo tônico, diversificando-o [33]. É preciso que as
social-comunitário em que ele se insere. escolas de arquitetura, a história e os meios de
Para que o arquiteto construa, no espaço comunicação especializados passem a tratar da
público, a ligação entre o mundo privado e diversidade de possibilidades profissionais do
o público; entre o tempo presente e outros arquiteto não como alternativas de trajetórias
tempos; entre cultura local e cultura global, de mercado, mas também como estratégias
é necessário que ele seja efetivamente parte simbolicamente válidas e não-excludentes
daquela polis. Mas como isso é possível, num entre si.
país onde apenas 24,9% da população possui Não proponho, com isso, a desagregação da
formação mínima de nível médio? [30] arquitetura ou sua segmentação em especiali-
À primeira vista, a proliferação dos cursos dades. Ao contrário: ampliando a gama de quali­
de arquitetura no país, aliada a políticas ficações simbolicamente relevantes no campo
públicas que garantam o acesso de membros profissional do arquiteto, abre-se o diálogo em
de uma maior gama de classes sociais pode condições de igualdade entre c­ampos de saber.
representar uma solução. Afinal, ao aumen- Tomemos o exemplo dos meios de comunica-
tar-se a diversidade social do elitizado curso ção: no quadro de estreitamento de visão atual,
de arquitetura, aumenta-se a capilaridade do raro é o artigo sobre arquitetura nos anais de
campo arquitetônico dentro do tecido social, encontros de urbanismo, e mais rara ainda é a
enriquecendo as possibilidades culturais do discussão de planejamento urbano em periódi-
primeiro e melhorando a qualidade da arquite- cos de arquitetura. A construção do espaço
tura socialmente relevante do segundo. social, com toda a carga de integridade material
A verdade, porém, é que mesmo em países que ele deve possuir, é o denominador comum a
onde o nível educacional é alto ocorre o todas as disciplinas ligadas à arquitetura.
pro­blema da elitização dos bens de capital Acredito que, em lugar de reduzir a auto-
simbólico, conforme nos atesta Stevens [31]. nomia do campo, esta diversidade disciplinar
Surpreendentemente, a quantidade de “humanística” amplia as suas fronteiras. E se,
a­rquitetos formados no mercado não interfere nas escolas de arquitetura, o ateliê de projeto
na quantidade de arquitetos de elite que a é o local de transmissão do habitus elitista da
sociedade consegue suportar. Em estudo de construção de edifícios [34], que se criem ateliês
séries históricas, Stevens demonstra que a razão ligados também às outras atividades. É preciso
entre a população e o número de arquitetos de que se abra ao estudante a possibilidade de reali­
elite – ou gênios - manteve-se aproximadamente zação pessoal e profissional através da arquite-
constante nos últimos quinhentos anos [32]. tura fora do já saturado campo da produção de 19
Esses arquitetos projetam os monumentos de objetos de gosto para pessoas de gosto.
sua geração. Diversificando a matriz do campo
Ocorre que o campo arquitetônico simples- a­rquitetônico, ele se tornará naturalmente
mente exclui de seus valores simbólicos outras mais permeável ao diálogo social participativo
atividades que não projetar monumentos ou, o e não assistencialista. O arquiteto que se sente
que é mais recorrente, projetar edifícios de uso cidadão – e não excluído – no próprio campo
cotidiano com a lógica e os valores de monu- arquitetônico terá possibilidades maiores de
mentos. Mais que isso, o arquiteto que não se difundir uma cultura de cidadania no campo
dedica ao projeto de edifícios é considerado social que ele freqüenta. Terá, portanto, maiores
profissional de segunda categoria. Excluem- possibilidades de criar objetos mais íntegros
se assim aqueles que se especializaram em por dialogarem mais com a sociedade em que
conforto ambiental, gestão de projetos, gestão se inserem. Serão espaços construídos que
pública, planejamento urbano, execução de ob- promoverão o diálogo entre o bem comum e o
ras, patrimônio histórico etc. Com o tempo, pelo bem privado de modo mais efetivo.
menos em campos mais estabelecidos como o É na aceitação da diversidade e no diálogo
planejamento urbano e o patrimônio histórico, que exercitamos esta espécie de humanismo
a recíproca tornou-se também verdadeira com lato sensu [35]. Não saberemos criar bons

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espaços públicos se não soubermos, antes de materialmente íntegros e efetivamente públicos.
mais nada, constituir grupos coesos, abertos ao Afinal, a profissão do arquiteto, ela mesma, ao
diálogo, dentro de nosso próprio campo. Para ser não excludente, transforma-se num bem
isso, é necessário ampliar os canais de comuni- público.
cação internos, estabelecendo debates próprios
da cultura arquitetônica. Rompendo-se o A propriedade urbana cumpre sua função
hermetismo dos valores de cada especialidade social quando atende às exigências funda-
rumo a valores compartilhados por toda a co- mentais de ordenação da cidade (...). (BRASIL.
munidade arquitetônica, esta tende a aproximar Constituição da República Federativa do
sua linguagem à da sociedade: a arquitetura Brasil, 05 out.1988. Art. 183, § 2º.) n
passa a ser socialmente relevante.
No caso brasileiro, especificamente, é preciso referências bibliográficas
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que aprendamos a analisar e extrair valores
Império e Rodrigo Lefèvre, de artigas aos mutirões. São
de nossa realidade mais próxima para criar Paulo: Editora 34, 2002. 255p.
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nos alertava para este vício comum: MARTINS, Bruno. Tipografia popular: potências do ilegível
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valores da Arquitetura Moderna Brasileira. Se,
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por um lado, esta pesquisa parte do saudável
preceito de entender os valores de nossa notas
sociedade, por outro lado é preciso que não se 1. SANTOS, 1979. p.10.
2. GIAMBIAGI, 2000. p.24
percam as conquistas e descobertas das gera- 3. MEIRELLES, 2003. p.491.
ções das décadas de 1980 e 1990: o estudo dos 4. MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2004. p.47
5. si nous examinons notre activité professionnelle d´une
valores clássicos e atemporais da arquitetura, a façon plus objective, nous constatons, qu´elle se limite
criação da noção de significado arquitetônico, a exclusivement à la solution du problème architectural
d´édifices isolés, publiques, ou de maisons de bourgeois,
preocupação ambiental premente, dentre tantos bref: des constructions qui, logiquement, devraient être
avanços. eliminées d´un ‘plan directeur’ exact et définitif englobant
sans distinction tous les probl`emes architecturaux de nos
É preciso criar uma polis arquitetônica, de-
villes et de notre pays. In: NIEMEYER, 1946. p.90.
finindo uma arquitetura lato sensu sem perder 6. STEVENS, 2003. p.244.
de vista os valores próprios de cada disciplina, 7. STEVENS, 2003. p.84.
8. STEVENS, 2003. p.91.
para que saibamos contribuir para a formação 9. Cf. FRAMPTON, Kenneth. The Deutsche Werkbund. In
de nossas cidades como espaços construídos Modern Architecture: a critical history. 3ed. London/New
York: Thames and Hudson, 1992. p.109-115.

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10. Esses dois participantes do Werkbund. 30. Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de
11. O capítulo Livrar-se de todo o espírito acadêmico de Préci- Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra
sions ilustra bem esta nova mentalidade. in LE CORBUS- de Domicílios 2004.
IER, Precisões sobre um estado presente da arquitetura e 31. Cf. STEVENS, 2003. p.106.
do urbanismo. Trad. Carlos Eugênio de Moura. São Paulo: 32. Cf. STEVENS, 2003. p.170.
Cosac & Naify, 2004. p.35-45 33. Neste ponto, Stevens aponta que a diversificação do
12. William Curtis ainda nos diz: “While Le Corbusier was campo continua mantendo o não-projetista em condição
preaching the virtues of mass-production dwellings and secundária no campo alternativo escolhido – como
the vision of a transformed modern city, he was supporting patrimônio histórico, por exemplo. Entretanto, no Brasil,
himself with a practice based largely upon the construction onde estas outras atividades dificilmente constituem
of private houses, artist’s studios and villas for the well-to- um campo autônomo, o mesmo não aconteceria. Cf.
do. In the France of the 20’s, agencies for large scale urban STEVENS, 2003. p.251.
reform were lacking. Even the small-scale Pessac experi- 34. Cf. STEVENS, 2003. p.223-224.
ment perhaps showed that Le Corbusier’s aesthetics were 35. Refiro-me aqui ao iluminado texto de Carlos Antônio
more suited to ‘cultured people’ (as Rasmussen put it) than Brandão:, para quem: “Talvez o nosso maior desafio,
to workers: that the architect’s universal values were more hoje, seja o de inventar um novo homem. Esse também
classbound than he might have hoped. In the 1920s ‘Esprit foi o desafio fundamental dos humanistas no início
Nouveau’ was to become the cultural property of upper do Renascimento. Antes de mais nada, eles tiveram de
middle-class bohemia more than any other social group.” elaborar um “projeto” dos modelos de ser humano e de
In: CURTIS, 2003. p.71. cidade, contrapostos aos homens e às cidades existentes,
13. “Alguns dias depois que a família Savoie [sic] havia se com seus valores, hábitos e modos de pensar e viver. Esse
mudado para sua famosa casa, a cobertura da sala de estar projeto recebeu o nome de Humanismo e a humanidade
começou a apresentar vazamentos. Eles ficaram muito que ele descreve não existiu plenamente naquela época,
aborrecidos e imediatamente chamaram Le Corbusier. nem antes nem depois.(...) Reflexão e ação fecundavam-se
Quando este chegou, foi imediatamente levado para reciprocamente: verba e res permanecem tensionando-se,
inspecionar os danos e sugerir uma solução. Ele ficou, por mas unidas, e o pensamento se traduz num artefato, num
alguns segundos, observando fixamente a água. Finalmente, artefazer, numa ação destinada a melhorar o mundo ao
virou-se para os Savoie [sic] e pediu uma folha de papel em redor.”BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Humanismo latu
branco. Entregou-a a Le Corbusier. Corbu a colocou em uma sensu. In MALLARD. 2005. p.22-61.
mesa próxima, dobrou-a cuidadosamente e fez um barco de 36. RIBEIRO, 1978. p.90.
papel.
Caminhou até o centro da sala, inclinou-se e pôs o barco danilo matoso macedo
dentro d´água, disse au revoir e foi embora.”ANTONIADES, Formado em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1997), Mestre
A.C. citado por STEVENS, 2003. p.102. em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 2002), Especialista em
14. STEVENS, 2003. p.113 Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP, 2004). Foi
15. NIEMEYER, 1998. p.270 professor de projeto arquitetônico na Escola de Arquitetura
16. Para um desenvolvimento deste tema: da UFMG (2003) e no Curso de Arquitetura e Urbanismo do
Na obra de Niemeyer, cf. PEREIRA, Miguel Alves. UniCEUB - Brasília (2003-2005). É Arquiteto da Câmara dos
Arquitetura, texto e contexto: o discurso de Oscar Niemeyer. Deputados desde 2004. Participa de concursos nacionais e
Brasília: UnB, 1997. p. 148-153 e 163-171. internacionais, tendo recebido premiações em diversos deles.
Na obra de Artigas, cf. ARANTES, 2002. p.39-48 e p.91-106 Possui escritório próprio desde 1996.
17. Cf. NIEMEYER, 1998. P.259.
18. “Em termos práticos, podemos destacar quatro tipos Contato: correio@danilo.arq.br
de postura que têm sido aplicados aos assentamentos www.danilo.arq.br
espontâneos: remoção, relocação, compartilhamento e
melhoria in loco.
(...)
A relocação (...), deslocando a população de baixa renda
para conjuntos habitacionais construídos em massa nas
periferias das grandes cidades, (...) é vista como ineficaz
e anti-econômica (...), pois além de exigir uma grande
concentração de recursos, a serem aplicados em curto espaço
de tempo, exige também transformações abruptas no modo 21
de vida e nos padrões de moradia. Conseqüentemente, boa
parte dos moradores relocados acaba cedendo às pressões
da especulação imobiliária, desfazendo-se do imóvel e
ocupando novamente os assentamentos informais das áreas
centrais, alimentando um ciclo vicioso.” In SOBREIRA,
2003. p.22.
19. Alguns de seus trabalhos mais recentes estão disponíveis
na internet em <http://www.patternlanguage.com/> .
Acesso em 08fev.2006.
20. Seus trabalhos estão disponíveis na internet em <http://
homeusers.brutele.be/kroll/> . Acesso em 08fev.2006.
21. FERRO, s/d., p.16.
22. Cf. ARANTES, 2002. p.163.
23. Cf. ARANTES, 2002. p.213.
24. Cf. ARTIGAS, João Batista Vilanova. O desenho. In ______ .
Caminhos da Arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 1999.
p.71.
25. NIEMEYER, 2001. p.36.
26. MARTINS, 2005. p.31.
27. Cf. KAPP, Silke. Por que teoria crítica da arquitetura? Uma
explicação e uma aporia. In MALLARD, 2005. p.158.
28. Refiro-me aqui ao conceito de coisa em si desenvolvido
por Heidegger em HEIDEGGER, Martin. The Thing. in
Poetry, Language, Thought. New York: Perennial Library.
1971, p. 165-183.
29. GUTMAN, Robert. Citado por STEVENS, 2003. p.103.

monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura 3 mínimo denominador comum

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