1) A arquitetura desempenha um papel público ao construir a paisagem da vida social urbana, como ruas, praças e edifícios que compõem a cidade.
2) Muitos espaços construídos, como bens de uso comum e patrimônio histórico, pertencem à sociedade como um todo.
3) Tradicionalmente, a arquitetura atendeu mais às elites e ao Estado do que ao povo em geral.
1) A arquitetura desempenha um papel público ao construir a paisagem da vida social urbana, como ruas, praças e edifícios que compõem a cidade.
2) Muitos espaços construídos, como bens de uso comum e patrimônio histórico, pertencem à sociedade como um todo.
3) Tradicionalmente, a arquitetura atendeu mais às elites e ao Estado do que ao povo em geral.
1) A arquitetura desempenha um papel público ao construir a paisagem da vida social urbana, como ruas, praças e edifícios que compõem a cidade.
2) Muitos espaços construídos, como bens de uso comum e patrimônio histórico, pertencem à sociedade como um todo.
3) Tradicionalmente, a arquitetura atendeu mais às elites e ao Estado do que ao povo em geral.
parte das atividades humanas, necessita de seus motivos, de suas metas e balizamentos; uma sociedade organizada é capaz de produzir é imprescindível. Portanto, a construção do espaço edificado é, forçosamente, um produto e estabelecer e validar alguns deles é o que social. Mais que isso: o espaço edificado não me proponho a fazer aqui, discutindo funções apenas é conformado como também conforma públicas da arquitetura. Peço ao leitor o indulto a sociedade em que vivemos, pois a História pela pretensão talvez desmesurada da tentativa não se escreve fora do espaço e não há sociedade de abarcar tema tão amplo em espaço tão a-espacial. O espaço, ele mesmo, é social [1]. reduzido, ficando a ressalva da inevitável neces- Esta interdependência forçosa entre espaço sidade de omissão de assuntos correlatos – da construído e sociedade suscita a indagação qual sou consciente. acerca da natureza de propriedade do primeiro O espaço edificado constitui, por sua própria dentro da segunda: quais os limites entre espaço natureza, objeto cultural. Seria difícil ao indi- construído público e privado, tratados como víduo construir sem o aporte histórico-cultural bens? de técnicas construtivas. Tratando-se do espaço A Economia define a existência de bens públi- construído segundo as tecnologias hoje difun- cos como uma falha de mercado onde o Estado didas – tijolo, madeira aplainada, aço, cimento, deve naturalmente atuar: areia etc –, o aporte de insumos que somente
mínimo denominador comum 3 monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura
pregressa, a ser interpretada de acordo com os Os bens públicos são aqueles cujo consumo/ valores a elas contemporâneos. uso é indivisível ou ‘não-rival’. Em outras Se estes aspectos essenciais do espaço palavras, o seu consumo por parte de um construído emprestam-lhe um caráter indivíduo ou de um grupo social não prejudica eminentemente público, cabe perguntar o consumo do mesmo bem pelos demais do papel desempenhado pela profissão do integrantes da sociedade. Ou seja, todos se arquiteto na produção desse espaço. Afinal, se beneficiam da produção de bens públicos 70% da produção de moradia no País está fora mesmo que, eventualmente, alguns mais do do mercado formal [4], o arquiteto-projetista que outros. São exemplos de bens públicos: de edifícios talvez seja responsável por uma bens tangíveis como as ruas ou a iluminação parcela quantitativamente pouco significativa pública; e bens intangíveis como justiça, do espaço construído da sociedade de nosso segurança pública e defesa nacional. país. Convido o leitor a debruçar-se sobre o Outra característica importante é o princípio mapa de qualquer das grandes metrópoles da ‘não exclusão’, no consumo destes bens. brasileiras, delimitando as áreas e pontos de De fato, em geral, é difícil ou mesmo impos- interesse da cultura arquitetônica local: os sível, impedir que um determinado indivíduo edifícios e casas que são publicados em revistas, usufrua de um bem público [2]. que estão em nossas exposições, que recebem prêmios de nossos institutos. Mesmo em termos Estritamente, esta definição de bem público planimétricos, a porcentagem constatada será não define o espaço construído como coisa seguramente bastante inferior aos 30% restantes pública. Ao contrário, os imóveis são os bens da estatística acima. privados quase que por antonomásia. Há, Isso não é novidade. Em 1946, Oscar Nie- entretanto, aspectos do espaço construído meyer já dizia que: que, acredito, são bens públicos – no sentido econômico. São eles tanto a paisagem da vida (...) se examinamos nossa atividade profis- social como o registro histórico-cultural da sional objetivamente, constatamos que sociedade. ela se limita exclusivamente à solução do Como paisagem da vida social, temos problema arquitetural de edifícios isolados, como construções mais óbvias as ruas, praças, públicos, ou de casas de burgueses. Em suma: calçadas, parques e outros elementos urbanos: as construções que, logicamente, deverão são espaços construídos de domínio público ser eliminadas de um ‘plano diretor’ exato e claramente definido. Afinal, pagamos aos definitivo que englobe sem distinção a todos nossos municípios impostos investidos em sua os problemas arquiteturais de nossas cidades construção e manutenção. São os chamados e de nosso país. [5] bens de uso comum do povo [3]. Ainda como paisagem da vida social urbana, Na verdade, atender somente às elites das 15 temos o conjunto de edificações de propriedade sociedades e ao Estado é talvez uma das ca- pública e privada que compõem as nossas racterísticas primordiais da profissão: a antiga cidades juntamente àqueles bens de uso comum função social do arquiteto era produzir edifícios do povo. Tenham sido elas construídas sob a de poder e gosto para pessoas de poder e gosto [6]. égide de regulamentações urbanísticas ou a sua Garry Stevens define este valor de gosto em revelia, as edificações constituem a imagem da jogo na dinâmica da profissão como capital cidade, definem seus referenciais, adensam ou simbólico. Apoiado no referencial teórico esgarçam o tecido urbano e seus fluxos de pes- de Pierre Bourdieu, o arquiteto australiano soas e veículos, dentre tantas outras interações afirma que não estão em foco aqui os objetos de ordem coletiva. produzidos – as edificações, projetos etc. A sobreposição e convivência temporal – mas a perpetuação de um sistema onde a destes cenários construídos compõem classe dominante mantém fechado o espaço parte da memória das culturas das sociedades, social e transmite poder e privilégio através refletindo, criando e ratificando seus valores das gerações erigindo barreiras simbólicas em como coisas autônomas que estes espaços torno de si mesma [7]. Para este autor, a sobre- construídos são. Para as gerações futuras, esse posição de paradigmas dentro do campo da patrimônio é registro de sua própria história arquitetura, historicamente, trata-se apenas
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do jogo endógeno de substituição de um valor seus clientes e muito menos para o povo. As de capital simbólico de uma geração ascen- obras arquitetônicas nesse sentido são instru- dente frente à geração anterior. Sua finalidade mentalizadas de modo a viabilizar a ascensão essencial mantém-se a mesma: perpetuar o social do arquiteto dentro de seu campo de sistema de divisão de classes através de uma batalha: o campo arquitetônico. estrutura simbólica de gosto. Os sucessivos Não pretendo com esta constatação pro- movimentos arquitetônicos teriam sempre na mover qualquer tipo de ataque à brilhante essência de seu discurso a negação de valores geração de arquitetos modernos – dentro do de uma geração em prol dos valores da geração Brasil, talvez os mais relevantes até hoje. Afinal, seguinte, legitimando a autonomia do campo ao diferentes gerações usaram de expedientes mesmo tempo em que se cria um novo conjunto similares ou até bastante menos nobres para de valores simbólicos. Assim, por exemplo, ascender a determinado status cultural. Veja-se, por exemplo, os artifícios de ironia e cinismo a história do Movimento Moderno é pre- ocultando a simples ausência de programa cisamente a história das tentativas afinal conceitual em diversos setores da crítica vitoriosas da vanguarda de desvalorizar arquitetônica desde os anos de 1970 até hoje. completamente o capital ‘beaux-arts’ em favor Ao contrário, a autonomia conseguida pelo do seu próprio capital [8]. campo arquitetônico durante o Movimento Moderno hoje é legítima. Afinal, Sabemos que, de fato, o desejo (frustrado) de atender diretamente a toda a sociedade, tendo nenhuma área do campo cultural restrito todas as classes por clientes, foi inculcado na (tais como a escultura, a poesia, a pintura, a cultura arquitetônica pelas vanguardas moder- música) está tão amarrada a outros campos nas do início do século XX, a partir da ação do sociais e é, portanto, menos autônoma. A Deutsche Werkbund [9], bem como das vanguar- tremenda tensão que isso cria no interior da das artístico-revolucionárias russas e sua ampla arquitetura manifesta-se em uma variada influência em figuras de proa da arquitetura sintomatologia: a teoria arquitetônica nunca européia, como Walter Gropius, Mies van der se recuperou da perda das [supostas] certezas Rohe [10] e Le Corbusier [11]. do modernismo; os arquitetos preocupam-se Mais que substituir os valores simbólicos com a sua perda de influência na indústria anteriores, os arquitetos modernos tinham da construção; o sistema educacional parece diante de si o dever de manter a autonomia inadequado; as associações profissionais estão do campo arquitetônico. Ou seja: a tarefa de destroçadas e sem rumo. [14] preservar íntegra a prerrogativa exclusiva do arquiteto em produzir edifícios de poder e gosto Feitas estas ressalvas com respeito ao caráter para pessoas de poder e gosto [12]. Para Stevens, elitista da arquitetura ocidental – e não apenas 16 brasileira, como afirmou Niemeyer –, pergunta- os modernistas conseguiram evitar qualquer mo-nos se o caminho rumo ao estabelecimento ameaça à sua autonomia intelectual pelo de um ethos arquitetônico inclusivo está no simples expediente de ignorar aqueles para sistemático atendimento, pelos arquitetos, das quem afirmavam estar projetando. demandas de camadas menos favorecidas de seu povo. Niemeyer nos responde: São célebres as anedotas acerca das incon- veniências tecnológicas da impermeabilização Sempre recusei este equívoco, essa idéia da Villa Savoye (Le Corbusier, 1929) [13], e em medíocre dos que insistem numa arquitetura como elas foram solenemente ignoradas por ‘mais simples, mais ligada ao povo’. (...) Para seu autor durante um bom tempo. É notório mim, essa idéia da simplicidade arquitetural é também como a afluência de um grande pura demagogia, discriminação inaceitável e, número de turistas-arquitetos tornou impos- às vezes, uma timidez que só a falta de talento sível o uso privativo das casas Farnsworth (Mies pode explicar [15]. van der Rohe, 1946) e Falling Water (Frank Lloyd Wright, 1936). Ao fim e ao cabo, os arquitetos Oscar e outros membros do Partido Comu- modernos – tanto quanto os de outras gerações nista, como o próprio Vilanova Artigas [16], – projetavam para outros arquitetos, não para entrincheiraram-se no marxismo clássico por
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detrás de uma fé pré-keynesiana na inexorabili- sua execução. O resultado plástico é de uma dade da revolução proletária com o colapso do aparente desordem “vernacular” [20]. capitalismo – o que explica o teor da passagem No Brasil, ao menos no campo arquitetônico, anti-assistencialista de Niemeyer acima. Para talvez a voz mais ouvida tenha sido a de Sérgio eles, a revolução não se faz com a arquitetura, Ferro, em seu célebre O canteiro e o desenho. mas na luta e na militância política [17]. Ou seja: Para Ferro, ao separar a capacidade de pensar a arquitetura pouco teria a ver com política. construção da capacidade de fazer a construção, E a resposta da maioria dos arquitetos para o desenho (entendido como projeto) é instru- este impasse tem sido o dar de ombros. Desde mento de alienação a serviço do Capital. a queda do construtivismo russo no regime de Stalin, e mesmo desde Brasília, ficou bastante Assim, para a obra, o desenho não é repre- claro que a arquitetura per se não mudará a sentação de um objeto de uso. Representa, sociedade. E foi o próprio Corbusier quem, ou melhor, impõe sincretismo ao trabalho paradoxalmente, nos afirmou que a revolução parcelado que deixa esfarelado para preservar pode ser evitada. As tentativas assistencialistas sua missão unificadora [21]. de construção de modelos de habitação popular em substituição aos tugúrios e favelas têm O que estas respostas têm em comum é a sempre esbarrado no problema do aspecto negação da ordem vigente para a proposição plástico massificado, do distanciamento dos de outra. Embora Alexander e Kroll tenham centros urbanos, da baixa qualidade dos mate- pautado suas práticas por estes “sistemas riais construtivos, do subdimensionamento dos alternativos” ao longo de quarenta anos, eles cômodos, além dos problemas de ordem social nunca superaram esta condição marginal, não gerados pela imposição da solução às comuni- chegaram a formar uma “escola” baseada em dades [18]. suas práticas. Já Ferro abandonou a arquitetura Mas como dar de ombros para esta exclusão, e passou a dedicar-se à pintura, tendo exercido diante do caráter público inerente à arquitetura influência indireta nos movimentos de mutirão exposto no início deste texto? E não é a própria dos anos 80, baseados em suas formulações, arquitetura de Oscar um poderoso instrumento e liderados por ex-alunos seus [22]. E embora político habilmente aproveitado por gover- a prática seja efetiva para massas organizadas nantes para reforçar a estrutura simbólica do como o Movimento Nacional de Luta pela poder – desde Pampulha até suas últimas obras? Moradia, a premissa de dedicação das horas Buscar um ethos inclusivo para a atividade do vagas dos operários à construção diletante de arquiteto pode ter outro sentido que a ação sua própria casa segue sendo um paradoxo [23]. assistencialista ou a construção de monumen- Negando o projeto, o desígnio [24], o instru- tos públicos. O espaço construído, conforme mento social cuja elaboração está ao alcance vimos, comunga em sua essência com a socie- de poucos, estes arquitetos abriram a guarda dade que nele habita. Mas que ethos inclusivo da autonomia de campo da arquitetura. Por 17 seria este? abdicar desta característica de distinção social, As saídas elaboradas pelos arquitetos a deixando-a aberta à participação dos usuários, partir da década de 1960 estiveram, em sua suas propostas naturalmente seriam vistas maioria, ligadas à eliminação da lógica clássica no máximo como um objeto de curiosidade de projeto e construção. Pode-se citar como pela maior parte dos integrantes do campo exemplos as obras de Christopher Alexander arquitetônico. Os alunos de elite das escolas de [19], primeiro com a tentativa de geração da arquitetura - o lugar onde as ondas de renova- forma via raciocínio matemático, e depois com ção tomam corpo – não abririam mão do capital a criação de um método baseado em padrões simbólico que já possuíam. espaciais racionalmente catalogados e selecio- O relativo fracasso das tentativas de supe- nados intuitivamente pelo arquiteto a partir de ração do paradigma clássico moderno de uma integração pessoal com os clientes e com autonomia do objeto arquitetônico, como cons- o lugar. O edifício, nesse processo é construído truto íntegro, suscita nossa próxima questão: é sem projeto. Há ainda a obra de Lucien Kroll, possível abrir mão desta função de comando do feita de modo participativo com os usuários, arquiteto, dessa força designadora, na definição permitindo-lhes atuar como designers na etapa e construção do espaço social? de projeto e alterar as obras à vontade após a Voltemos com mais atenção aos aspectos
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públicos do espaço construído. É neles e no dade material, uma determinada saúde plástica exame de suas relações dialéticas com o homem que o torne identificável e compreensível como que estão as chaves do argumento. instrumento de diálogo. Esta possibilidade de O espaço urbano, por onde passam as ruas, diálogo, per se, abre o campo semântico da obra parques, praças, como bens de uso comum do tornando-a processo político. Não se trata aqui povo, definem em sua essência a noção que apenas de uma platônica autonomia formal [27]. desenvolvemos de espaço da coletividade. É Trata-se de coerência entre forma e possibili- nessa construção de nosso cotidiano particular dades materiais do momento e da situação. Sem que encontramo-nos com nossos vizinhos, que esta coerência, esta integridade própria da coisa fazemos nossas refeições e compramos nossos em si [28], a construção fará sentido para menos bens de consumo. pessoas. É na relação de comunicação com os bens Assume-se, com isso, que há valores de uso comum do povo que as edificações concretos próprios de cada situação, que podem particulares se tornam coisa pública. Ao mesmo ser transferidos para a construção de nosso tempo, para além dos desejos individuais de ambiente. Este, como objeto que tem existência seus construtores, os edifícios são destinados própria, dialoga com a própria sociedade que a existir por um longo tempo, constituindo o criou em cada momento futuro. O grau de forçosamente parte da paisagem de vida de efetividade da arquitetura, nesse sentido, estaria gerações futuras. diretamente ligado à abrangência de sua univer- Estas duas relações de alteridade para com salidade, de sua capacidade de comunicar, de a vontade particular daqueles que constroem fazer sentido para um número maior de pessoas. ensejam a responsabilidade do indivíduo É essa capacidade que distingue, por exemplo, para com a coisa pública. Elas, a uma vez, uma construção universal como o anexo da individualizam o domínio público e publicizam National Gallery (I.M. Pei, Washington, 1968). o domínio privado. A arquitetura, vista sob este São inúmeros os esforços teóricos de identificar ponto de vista, está na construção desta fina uma estrutura lingüística comum à arquitetura membrana entre o espaço fechado e o aberto, ocidental: Norberg-Schulz, Charles Moore, entre o momento atual e o seguinte. Como nos Herman Hertzberger e outros assentaram uma lembra Niemeyer, com uma clareza de pensa sólida fundação nesse sentido. Acredito que a mento lapidar: arquitetura de Oscar Niemeyer (na fase de 1957 a 1989), Álvaro Siza, Louis Kahn e I.M. Pei, por para nós, o ‘espaço arquitetural’ é a própria exemplo, são exemplos lapidares de síntese arquitetura e para realizá-la nele interferimos a partir desse tipo de princípio atemporal. O interna e externamente, integrando-a na caráter clássico desse tipo de arquitetura não paisagem e nos seus interiores, como duas vem ao acaso. Como já foi dito, o Movimento coisas que nascem juntas e harmoniosamente Moderno não mudou o habitus elitizante da ar- 18 se completam [25]. quitetura, que a torna nossa atividade propícia à construção de monumentos: É a arquitetura portanto tentativa de cons trução do espaço social, de estabelecimento de Raro é o edifício não projetado por um diálogo entre as múltiplas vontades individuais arquiteto que represente os valores supremos e entre tempos diferentes. de uma civilização. Isto tem sido verdade para templos, palácios, bibliotecas e prefeituras na A compreensão do outro é o que torna o existir Grécia, em Roma e na Europa do período da possível, o ensimesmado torna sua própria Renascença; e, mais recentemente, para mu- existência uma tarefa árdua [26]. seus, universidades, edifícios governamentais e sedes de corporações. O projeto dos grandes Esta tarefa de compreensão do outro co- edifícios monumentais de projeção é o loca-nos a premissa do estabelecimento de único domínio da arquitetura, seu mercado uma linguagem comum. E é na construção da natural. Nenhuma outra profissão foi capaz potencialidade do objeto concreto como mate- de concorrer efetivamente neste mercado, seja rialização desse campo de diálogo que reside a no passado ou seja nos dias de hoje [29]. labuta daquele que constrói. O espaço concreto deve ter então uma integri Entretanto, se há esta cultura ocidental a
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que todo bom artefato acaba prestando contas, relação aos próprios arquitetos projetistas. há também, neste artefato, a incorporação de Portanto, criar um ethos inclusivo para a códigos sociais locais aos quais o arquiteto- atividade do arquiteto passa por criar um ethos cidadão local é capaz de atender. Ocorre aí a inclusivo dentro do próprio campo arquite ruptura entre o campo arquitetônico e o campo tônico, diversificando-o [33]. É preciso que as social-comunitário em que ele se insere. escolas de arquitetura, a história e os meios de Para que o arquiteto construa, no espaço comunicação especializados passem a tratar da público, a ligação entre o mundo privado e diversidade de possibilidades profissionais do o público; entre o tempo presente e outros arquiteto não como alternativas de trajetórias tempos; entre cultura local e cultura global, de mercado, mas também como estratégias é necessário que ele seja efetivamente parte simbolicamente válidas e não-excludentes daquela polis. Mas como isso é possível, num entre si. país onde apenas 24,9% da população possui Não proponho, com isso, a desagregação da formação mínima de nível médio? [30] arquitetura ou sua segmentação em especiali- À primeira vista, a proliferação dos cursos dades. Ao contrário: ampliando a gama de quali de arquitetura no país, aliada a políticas ficações simbolicamente relevantes no campo públicas que garantam o acesso de membros profissional do arquiteto, abre-se o diálogo em de uma maior gama de classes sociais pode condições de igualdade entre campos de saber. representar uma solução. Afinal, ao aumen- Tomemos o exemplo dos meios de comunica- tar-se a diversidade social do elitizado curso ção: no quadro de estreitamento de visão atual, de arquitetura, aumenta-se a capilaridade do raro é o artigo sobre arquitetura nos anais de campo arquitetônico dentro do tecido social, encontros de urbanismo, e mais rara ainda é a enriquecendo as possibilidades culturais do discussão de planejamento urbano em periódi- primeiro e melhorando a qualidade da arquite- cos de arquitetura. A construção do espaço tura socialmente relevante do segundo. social, com toda a carga de integridade material A verdade, porém, é que mesmo em países que ele deve possuir, é o denominador comum a onde o nível educacional é alto ocorre o todas as disciplinas ligadas à arquitetura. problema da elitização dos bens de capital Acredito que, em lugar de reduzir a auto- simbólico, conforme nos atesta Stevens [31]. nomia do campo, esta diversidade disciplinar Surpreendentemente, a quantidade de “humanística” amplia as suas fronteiras. E se, arquitetos formados no mercado não interfere nas escolas de arquitetura, o ateliê de projeto na quantidade de arquitetos de elite que a é o local de transmissão do habitus elitista da sociedade consegue suportar. Em estudo de construção de edifícios [34], que se criem ateliês séries históricas, Stevens demonstra que a razão ligados também às outras atividades. É preciso entre a população e o número de arquitetos de que se abra ao estudante a possibilidade de reali elite – ou gênios - manteve-se aproximadamente zação pessoal e profissional através da arquite- constante nos últimos quinhentos anos [32]. tura fora do já saturado campo da produção de 19 Esses arquitetos projetam os monumentos de objetos de gosto para pessoas de gosto. sua geração. Diversificando a matriz do campo Ocorre que o campo arquitetônico simples- arquitetônico, ele se tornará naturalmente mente exclui de seus valores simbólicos outras mais permeável ao diálogo social participativo atividades que não projetar monumentos ou, o e não assistencialista. O arquiteto que se sente que é mais recorrente, projetar edifícios de uso cidadão – e não excluído – no próprio campo cotidiano com a lógica e os valores de monu- arquitetônico terá possibilidades maiores de mentos. Mais que isso, o arquiteto que não se difundir uma cultura de cidadania no campo dedica ao projeto de edifícios é considerado social que ele freqüenta. Terá, portanto, maiores profissional de segunda categoria. Excluem- possibilidades de criar objetos mais íntegros se assim aqueles que se especializaram em por dialogarem mais com a sociedade em que conforto ambiental, gestão de projetos, gestão se inserem. Serão espaços construídos que pública, planejamento urbano, execução de ob- promoverão o diálogo entre o bem comum e o ras, patrimônio histórico etc. Com o tempo, pelo bem privado de modo mais efetivo. menos em campos mais estabelecidos como o É na aceitação da diversidade e no diálogo planejamento urbano e o patrimônio histórico, que exercitamos esta espécie de humanismo a recíproca tornou-se também verdadeira com lato sensu [35]. Não saberemos criar bons
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espaços públicos se não soubermos, antes de materialmente íntegros e efetivamente públicos. mais nada, constituir grupos coesos, abertos ao Afinal, a profissão do arquiteto, ela mesma, ao diálogo, dentro de nosso próprio campo. Para ser não excludente, transforma-se num bem isso, é necessário ampliar os canais de comuni- público. cação internos, estabelecendo debates próprios da cultura arquitetônica. Rompendo-se o A propriedade urbana cumpre sua função hermetismo dos valores de cada especialidade social quando atende às exigências funda- rumo a valores compartilhados por toda a co- mentais de ordenação da cidade (...). (BRASIL. munidade arquitetônica, esta tende a aproximar Constituição da República Federativa do sua linguagem à da sociedade: a arquitetura Brasil, 05 out.1988. Art. 183, § 2º.) n passa a ser socialmente relevante. No caso brasileiro, especificamente, é preciso referências bibliográficas ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio que aprendamos a analisar e extrair valores Império e Rodrigo Lefèvre, de artigas aos mutirões. São de nossa realidade mais próxima para criar Paulo: Editora 34, 2002. 255p. este sentido de cultura. É necessário romper CURTIS, William J. R. Le Corbusier: ideas and forms. London/ New York: Phaidon, 2003. 240p. a estratégia pela qual se tenta afirmação no FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. São Paulo: Projeto/IAB- meio arquitetônico pela novidade conceitual SP, s/d [1979]. 112p. GIAMBIAGI. Teoria das finanças públicas. In ______ . Finanças e/ou formal, usando-a para atacar a prática e o públicas. 2ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p.23-67 pensamento locais. Darcy Ribeiro, em 1978, já MALLARD, Maria Lúcia.(org.) Cinco textos sobre arquitetura. Belo Horizonte: UFMG, 2005. 237p. nos alertava para este vício comum: MARTINS, Bruno. Tipografia popular: potências do ilegível na experiência do cotidiano. 2005. 100p. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Universidade Federal Lamentavelmente, em todos os campos, a de Minas Gerais – FAFICH, Belo Horizonte. maioria dos jovens especialistas se forma MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. ignorando solenemente os esforços de 28ed. São Paulo: Malheiros, 2003. 792p. MINISTÉRIO DAS CIDADES. A desigualdade urbana. In: autoconhecimento realizados no Brasil. Cadernos MCidades: política nacional de desenvolvimento Exilados espiritualmente em seu próprio país, urbano. n.1, p.43-52, nov. 2004. NIEMEYER, Oscar. Arquitetura como arte espacial. In CO- filiam-se prontamente às escolas de moda RONA, Eduardo. Oscar niemeyer: uma lição de arquitetura no estrangeiro, passando a papaguear sua – apontamentos de uma aula que perdura há 60 anos. São Paulo: FUPAM, 2001. 131p. linguagem, a assumir suas poses, a penar suas ______ . As curvas do tempo: memórias. Rio de Janeiro: Revan, angústias e a encarnar suas preocupações. 1998. 294p. ______ . Ce qui manque à notre architecture. In: LE CORBUS- Quando amadurecem como pesquisadores, IER, OEuvre Complete (1938-1946). Zurich: Les Editions convertem-se em verdadeiros “cavalos de d´Architecture, 1946. p.90 santo” do sábio francês ou inglês do dia. [36]. RIBEIRO, Darcy. UnB: invenção e descaminho. Rio de Janeiro: Avenir, 1978. 139p. SANTOS, Milton. Sociedade e espaço: a formação social como Ao longo dos últimos quarenta anos, a crítica teoria e método. In ______. Espaço e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979.p.9-27. incondicional da geração atual vem destruindo SOBREIRA, Fabiano José Arcádio. A lógica da diversidade: 20 as tentativas de formação cultural feitas pelas complexidade e dinâmica de assentamentos espontâneos. 2003. 262p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Urbano) gerações anteriores, num círculo vicioso estéril. – Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Tome-se como exemplo a recente retomada dos STEVENS, Garry. O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Trad. Lenise Barbosa. Brasília: valores da Arquitetura Moderna Brasileira. Se, UnB, 2003. 272p. por um lado, esta pesquisa parte do saudável preceito de entender os valores de nossa notas sociedade, por outro lado é preciso que não se 1. SANTOS, 1979. p.10. 2. GIAMBIAGI, 2000. p.24 percam as conquistas e descobertas das gera- 3. MEIRELLES, 2003. p.491. ções das décadas de 1980 e 1990: o estudo dos 4. MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2004. p.47 5. si nous examinons notre activité professionnelle d´une valores clássicos e atemporais da arquitetura, a façon plus objective, nous constatons, qu´elle se limite criação da noção de significado arquitetônico, a exclusivement à la solution du problème architectural d´édifices isolés, publiques, ou de maisons de bourgeois, preocupação ambiental premente, dentre tantos bref: des constructions qui, logiquement, devraient être avanços. eliminées d´un ‘plan directeur’ exact et définitif englobant sans distinction tous les probl`emes architecturaux de nos É preciso criar uma polis arquitetônica, de- villes et de notre pays. In: NIEMEYER, 1946. p.90. finindo uma arquitetura lato sensu sem perder 6. STEVENS, 2003. p.244. de vista os valores próprios de cada disciplina, 7. STEVENS, 2003. p.84. 8. STEVENS, 2003. p.91. para que saibamos contribuir para a formação 9. Cf. FRAMPTON, Kenneth. The Deutsche Werkbund. In de nossas cidades como espaços construídos Modern Architecture: a critical history. 3ed. London/New York: Thames and Hudson, 1992. p.109-115.
mínimo denominador comum 3 monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura
10. Esses dois participantes do Werkbund. 30. Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de 11. O capítulo Livrar-se de todo o espírito acadêmico de Préci- Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra sions ilustra bem esta nova mentalidade. in LE CORBUS- de Domicílios 2004. IER, Precisões sobre um estado presente da arquitetura e 31. Cf. STEVENS, 2003. p.106. do urbanismo. Trad. Carlos Eugênio de Moura. São Paulo: 32. Cf. STEVENS, 2003. p.170. Cosac & Naify, 2004. p.35-45 33. Neste ponto, Stevens aponta que a diversificação do 12. William Curtis ainda nos diz: “While Le Corbusier was campo continua mantendo o não-projetista em condição preaching the virtues of mass-production dwellings and secundária no campo alternativo escolhido – como the vision of a transformed modern city, he was supporting patrimônio histórico, por exemplo. Entretanto, no Brasil, himself with a practice based largely upon the construction onde estas outras atividades dificilmente constituem of private houses, artist’s studios and villas for the well-to- um campo autônomo, o mesmo não aconteceria. Cf. do. In the France of the 20’s, agencies for large scale urban STEVENS, 2003. p.251. reform were lacking. Even the small-scale Pessac experi- 34. Cf. STEVENS, 2003. p.223-224. ment perhaps showed that Le Corbusier’s aesthetics were 35. Refiro-me aqui ao iluminado texto de Carlos Antônio more suited to ‘cultured people’ (as Rasmussen put it) than Brandão:, para quem: “Talvez o nosso maior desafio, to workers: that the architect’s universal values were more hoje, seja o de inventar um novo homem. Esse também classbound than he might have hoped. In the 1920s ‘Esprit foi o desafio fundamental dos humanistas no início Nouveau’ was to become the cultural property of upper do Renascimento. Antes de mais nada, eles tiveram de middle-class bohemia more than any other social group.” elaborar um “projeto” dos modelos de ser humano e de In: CURTIS, 2003. p.71. cidade, contrapostos aos homens e às cidades existentes, 13. “Alguns dias depois que a família Savoie [sic] havia se com seus valores, hábitos e modos de pensar e viver. Esse mudado para sua famosa casa, a cobertura da sala de estar projeto recebeu o nome de Humanismo e a humanidade começou a apresentar vazamentos. Eles ficaram muito que ele descreve não existiu plenamente naquela época, aborrecidos e imediatamente chamaram Le Corbusier. nem antes nem depois.(...) Reflexão e ação fecundavam-se Quando este chegou, foi imediatamente levado para reciprocamente: verba e res permanecem tensionando-se, inspecionar os danos e sugerir uma solução. Ele ficou, por mas unidas, e o pensamento se traduz num artefato, num alguns segundos, observando fixamente a água. Finalmente, artefazer, numa ação destinada a melhorar o mundo ao virou-se para os Savoie [sic] e pediu uma folha de papel em redor.”BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Humanismo latu branco. Entregou-a a Le Corbusier. Corbu a colocou em uma sensu. In MALLARD. 2005. p.22-61. mesa próxima, dobrou-a cuidadosamente e fez um barco de 36. RIBEIRO, 1978. p.90. papel. Caminhou até o centro da sala, inclinou-se e pôs o barco danilo matoso macedo dentro d´água, disse au revoir e foi embora.”ANTONIADES, Formado em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1997), Mestre A.C. citado por STEVENS, 2003. p.102. em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 2002), Especialista em 14. STEVENS, 2003. p.113 Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP, 2004). Foi 15. NIEMEYER, 1998. p.270 professor de projeto arquitetônico na Escola de Arquitetura 16. Para um desenvolvimento deste tema: da UFMG (2003) e no Curso de Arquitetura e Urbanismo do Na obra de Niemeyer, cf. PEREIRA, Miguel Alves. UniCEUB - Brasília (2003-2005). É Arquiteto da Câmara dos Arquitetura, texto e contexto: o discurso de Oscar Niemeyer. Deputados desde 2004. Participa de concursos nacionais e Brasília: UnB, 1997. p. 148-153 e 163-171. internacionais, tendo recebido premiações em diversos deles. Na obra de Artigas, cf. ARANTES, 2002. p.39-48 e p.91-106 Possui escritório próprio desde 1996. 17. Cf. NIEMEYER, 1998. P.259. 18. “Em termos práticos, podemos destacar quatro tipos Contato: correio@danilo.arq.br de postura que têm sido aplicados aos assentamentos www.danilo.arq.br espontâneos: remoção, relocação, compartilhamento e melhoria in loco. (...) A relocação (...), deslocando a população de baixa renda para conjuntos habitacionais construídos em massa nas periferias das grandes cidades, (...) é vista como ineficaz e anti-econômica (...), pois além de exigir uma grande concentração de recursos, a serem aplicados em curto espaço de tempo, exige também transformações abruptas no modo 21 de vida e nos padrões de moradia. Conseqüentemente, boa parte dos moradores relocados acaba cedendo às pressões da especulação imobiliária, desfazendo-se do imóvel e ocupando novamente os assentamentos informais das áreas centrais, alimentando um ciclo vicioso.” In SOBREIRA, 2003. p.22. 19. Alguns de seus trabalhos mais recentes estão disponíveis na internet em <http://www.patternlanguage.com/> . Acesso em 08fev.2006. 20. Seus trabalhos estão disponíveis na internet em <http:// homeusers.brutele.be/kroll/> . Acesso em 08fev.2006. 21. FERRO, s/d., p.16. 22. Cf. ARANTES, 2002. p.163. 23. Cf. ARANTES, 2002. p.213. 24. Cf. ARTIGAS, João Batista Vilanova. O desenho. In ______ . Caminhos da Arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 1999. p.71. 25. NIEMEYER, 2001. p.36. 26. MARTINS, 2005. p.31. 27. Cf. KAPP, Silke. Por que teoria crítica da arquitetura? Uma explicação e uma aporia. In MALLARD, 2005. p.158. 28. Refiro-me aqui ao conceito de coisa em si desenvolvido por Heidegger em HEIDEGGER, Martin. The Thing. in Poetry, Language, Thought. New York: Perennial Library. 1971, p. 165-183. 29. GUTMAN, Robert. Citado por STEVENS, 2003. p.103.
monumentalidade x cotidiano: a função pública da arquitetura 3 mínimo denominador comum