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© Lauro R.

Pontes

Conselho editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo


Tadeu Monteiro, Gisele Cittadino, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar
de Castro Rocha, Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel
Mendes de Almeida, Mirian Goldenberg e Silene de Moraes Freire.

Gramma Editora
Supervisão Editorial: Gisele Moreira
Coordenação Editorial: Juliana Sobreira Catalão
Revisão do arquivo: Juliana Skawara
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Capa: Paulo Vermelho
Foto da capa: Cristina Zarur
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Acompanhamento Gráfico: Evelyn Costa

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A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
À Ísis e Miguel: vocês são meu ar, meu mundo,
meu coração, minha vida.
À Eliana, minha mãe, o meu reconhecimento por tudo o que
você fez, faz e fará, que jamais caberia em palavras.
Sem você eu não teria chegado até aqui.
AGRADECIMENTOS

Nos quatro anos vividos para a construção desse trabalho, foram


inúmeras pessoas que perpassaram o caminho da minha escrita. Agra-
deço em primeiro lugar a estes, que não serão citados nominalmente
aqui, mas que contribuíram de alguma maneira para a realização dele.
Em uma ordem cronológica, agradeço novamente a minha que-
rida professora e amiga Solange Souto, por me ensinar no ano de 2009
que para ser professor eu tinha que fazer mestrado e doutorado, pron-
to, Sol, finalmente acabei a missão!
Ao meu orientador e amigo Ronald Arendt, que com toda sua
amplitude de pensamento abraçou minhas ideias e o tema desse traba-
lho me dando a liberdade que precisava para desenvolver a pesquisa.
Mais uma vez, não tenho palavras para descrever tamanha gratidão pelo
acolhimento, carinho e paciência. Sua calma e paciência serão sempre
uma inspiração no meu caminhar.
Aos colegas do programa de pós, pela troca intelectual e papo de
alto nível nas reuniões de grupo.
À Cris, por ter me dado o presente mais lindo que recebi duran-
te toda essa jornada: o Nosso Miguel!
À minha família: ao meu irmão Rodrigo, à Tatá, aos meus tios
Ramon e Zé Ricardo, à Regina, e Milton (in memoriam).
Em especial à minha tia Maria, pelas sempre boas energias posi-
tivas e otimismo.
Meus amigos, todos, numa feliz e longa lista, por todas as trocas
e vivências, nesses transformadores durante todo o tempo de pesquisa.
VIII Lauro R. Pontes

À Ruth, pelo trabalho nos bastidores, sempre facilitando minha


vida desde o início da pesquisa.
Aos amigos Beto Ferreira e Gleicy Souza, pelo apoio nas trans-
crições e por estarem no meu lado desde o início até o fim de todo
o processo.
À Cristina Zarur pela linda foto da capa.
A todas as pessoas das associações: REDE Compromisso,
APEPI, CULTIVE!, REFORMA e em especial aos amigos formados
na ABRACannabis, o epicentro de toda a vivência dessa narrativa.
Grandes pessoas!
Ao Pedro Zarur, Ricardo Nemer, Emilio Figueiredo, Henrique
Neves, Virginia Carvalho, Margarete Brito, Eduardo Faveret e aos ou-
tros caminhantes próximos que foram tão fundamentais, muito obri-
gado pela acolhida e oportunidade de estar com vocês. Esse trabalho
não existiria sem vocês!
Por último e não menos importante, as mães, pais e cuidadores
das crianças que pude seguir durante a pesquisa. Obrigado por me
mostrar a face do amor mais puro em meio a tantas dificuldades.
Sumário

Prefácio 1

GERMINAÇÃO – Introdução 3
O início do processo 8
Uso da linha teórico-prática e metodologia utilizada 15

VEGA - A Cannabis 31
O contato com as mães e crianças 32
Relatos de casos 40
Sofia, Margarete e Marcos 40
Clárian, Cidinha e Fabio 41
Gilberto Castro 47

FLORAÇÃO – A vida no campo – tecendo as


interações e observando as controvérsias 51
Maio verde 62
A Marcha da Maconha 65
A Marcha da Maconha de 2015 66
O Dia da Panelada 69
A boa contaminação – experiência contaminada promissora 74

MANICURA - Versos e vivências costuradas


com maconha 77
X Lauro R. Pontes

História da Cannabis 85

A maconha: desconstruindo mitos e propagando


informação 145
As múltiplas facetas sociais da planta 147
Aspectos fisiológicos 148
Mas afinal, a maconha é boa para quê? 154
Aspectos legais 156

CURA – Finalizando 163

Referências 169
Prefácio

Resistência solidária, talvez seja esse o termo que melhor expri-


me o trabalho corajoso no qual tive a honra de colaborar junto com
várias pessoas abnegadas que pegaram sua indignação com uma política
de drogas, que serve como cortina de fundo para segregação e perse-
guição das camadas mais vulneráveis da população, e através de um ato
consciente de desobediência civil se prontificou a disseminar conhe-
cimento sobre uma planta proscrita que se provou um medicamento
espetacular, além de suas qualidades sociais e industriais.
Esse trabalho documenta e analisa todo o processo que começou
com uma rede de cultivadores domésticos que produzindo óleos me-
dicinais e doando para pacientes que não tem condição de importá-lo e
que rapidamente evoluiu para uma associação mais abrangente envol-
vendo além profissionais das mais diversas áreas de conhecimento para
formar uma associação multidisciplinar onde tive o prazer de conhecer
meu amigo Lauro, que de espectador acadêmico se tornou um impor-
tante membro ativo, engajado com o trabalho desenvolvido.
Trabalhar mudanças na sociedade, principalmente mudar con-
ceitos que foram construídos por uma vida toda é o grande desafio
de associação heterogênea onde juntamos pacientes que por uma vida
toda foram educados a encarar a questão do uso de psicoativos através
de um viés moral condenatório ao uso, cultivadores ativistas que veem
com naturalidade o consumo dessas substâncias e profissionais das
áreas de saúde e demais colaboradores preocupados com as políticas de
drogas no Brasil. Foram muitas as dificuldades iniciais, desconfiança de
2 Lauro R. Pontes

todas as partes, conflitos de estratégias e até nos objetivos que não fica-
vam claros para ninguém. Como estratégia principal estabelecemos a
necessidade do convívio direto como forma de aparar as arestas e apro-
ximar as pessoas, estabeleceu-se então reuniões semanais que além de
proporcionar o convívio que aproximou as pessoas consolidou-se em
várias iniciativas de sucesso como parcerias com universidades, centros
de pesquisa, participação em eventos.

Pedro Zarur
GERMINAÇÃO – Introdução

“Meus versos são como semente


Que nasce arriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obras da criação”
Patativa do Assaré

Germinação é o início, é o processo de crescimento de uma planta


a partir de um corpo em estado de vida latente. Ela se define como a
emergência da existência, o desenvolvimento das estruturas essenciais,
manifestando a sua capacidade para dar origem ao ser vivo sob condi-
ções ambientais favoráveis. É com essa definição que eu quero iniciar
as primeiras linhas deste trabalho.
Nesse primeiro momento, gostaria de colocar que esse livro ver-
sa sobre Maconha em seus contornos, cores e interações. A Cannabis,
nome científico mais conhecido do mundo, tem uma enormidade de
nomes e apelidos carinhosos, outros pejorativos, construídos ao longo
dos anos de seu contato com a humanidade. A referência ao nome será
livre ao longo desse texto. Uma planta com múltiplas faces, com múl-
tiplos significados em múltiplas culturas, jamais teria apenas um nome.
Seu nome, aliás, é uma forma de construção da identidade, positiva ou
negativamente. Botanicamente, a maconha é um vegetal natural que
nasce de sementes como qualquer outro e que foi domesticado (culti-
vado), como os outros vegetais, pelo homem na mesma época em que
4 Lauro R. Pontes

a humanidade foi deixando de ser nômade. Chamada de Cannabis sativa,


cânhamo, maconha e tantos outros nomes, é uma planta que, segundo
as leis humanas, é proibida de existir. No entanto, pelo interesse dos
próprios humanos, nela persistem e insistem.
Esse é, portanto, um trabalho de observação, experiências
individuais, coletivas e muito aprendizado desconstrutivo de para-
digmas e construtivo de novos olhares, muito mais enriquecidos de
conhecimento e saber multidisciplinar. Foram três anos e meio numa
relação muito afetivamente próxima, muitas vezes, com a fronteira
fluida e flexível. É sobre como ela se constitui em todas as instâncias,
sobre a sua permeabilidade no exercício de sua prática do existir em
conjunto com os humanos. É também sobre como ela é percebida,
sentida e entendida e sobre como essas interações se dão e são cons-
tituídas, sempre com a visão da prática experiencial. De todo modo,
esse texto escrito foi com base em meu olhar, em minha vivência,
desde o meu primeiro contato com o tema até os resultados tem-
poralizados, sempre em uma narrativa de história vivida de forma
imediata. Esse texto será melhor lido se, ao mesmo tempo, se fizer
um exercício de se pôr no lugar do outro.
Minha narrativa começa ao fim da minha pesquisa de mestra-
do. Diante da decisão de emendar uma pesquisa na outra, percorri
caminhos que tecem conexões entre minhas experiências, a prática
acadêmica e a materialidade versada no contato direto. Ao começar
a escrever o tema, que apresentei no projeto para o doutorado, me
deparei com uma percepção que não havia tido antes sobre meu modo
de ver o mundo e as coisas nele contidas. Meu olhar básico possui
uma inquietude em forma de pergunta: há outra maneira, diferente e/
ou melhor, de se fazer isso ou aquilo? Essa forma questionadora havia
ficado evidente na dissertação sobre a prática do ato de burlar dentro
da tecnologia da informação, mas só no momento em que eu resolvi
abandonar a continuidade do tema que me dei conta disso.
Em agosto de 2014, percebi que falar sobre a deepweb1, talvez o
maior símbolo do fazer diferente em termos tecnológicos, exigiria um
1
Refere ao conteúdo da Internet que não faz parte da internet pesquisável por mecanismo de busca.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 5

grau de envolvimento que me faria desrespeitar valores éticos pessoais


intransponíveis. Assim, saí em busca de outro tema, outros enactments2
que me encantassem — considero escrever um encantamento —, po-
tencializando a paixão necessária para defender um ponto de vista ou
argumento, no caso, o uso medicinal da maconha, e para conseguir
dar visibilidade acadêmico-social ao produto final do trabalho. Assim,
comecei a pensar em seguir outra linha de pesquisa. Um dia, lendo
notícias online, cliquei em uma matéria em um jornal sobre um grupo
multidisciplinar que fazia uma produção de extratos à base de maco-
nha plantada domesticamente e de forma secreta para ser usado como
remédio para crianças com crises convulsivas. A cada parágrafo lido da
reportagem, ia crescendo em mim a certeza de que havia encontrado
um caminho: a temática da maconha sendo vista como remédio, em
especial atenuando significativamente quadros de crises epiléticas em
crianças, seu cultivo, extração e produção à margem da legalidade e o
mais importante: os resultados fantásticos de recuperação dessas crian-
ças e de outros pacientes com outras enfermidades.
O tema era muito caro, pois além de conter um ato de bur-
la perante o instituído em termos legais, sempre fui apaixonado por
psicofarmacologia, estudando por conta própria o efeito das drogas
exógenas no organismo humano, tanto do ponto de vista bioquímico
quanto nas afetações sociais que elas promovem. Além disso, fiz uma
pós-graduação em hipnose clínica, cursos em terapias naturais e tenho
formação em terapia ortomolecular, que me possibilitaram entender
melhor o funcionamento bioquímico do cérebro.
Minha narrativa não é linear, pois senti a necessidade de produzir
um texto desmistificador, que esclarece processos históricos sobre a
prática. Segui muito de perto desde o primeiro contato, vivenciando
parte do processo que, no momento em que me aproximei, estava
construindo o próprio corpo e estrutura institucional. Acompanhei as
propostas e as pessoas por trás das propostas. Assim como na disserta-
ção do mestrado, a narrativa segue visceral, porém muito mais emo-
2
LAW, John; URRY, John. Enacting the social. 2003. Disponível em: <http://www.lancs.ac.uk/fass/
sociology/papers/law-urry-enacting-the-social.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2009.
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cional. Na dissertação, fui ao encontro do meu passado, resignificando,


novamente e mais um pouco, minhas relações parentais, entendendo
as construções num encontro entre o meu passado e o meu presente.
Nesse texto, fui ao futuro por meio de meus medos, olhando para
meus filhos, numa espécie de sem graçeza existencial, pois era o que
eu sentia ao seguir as crianças que inspiram cuidados especiais e suas
mães e pais, resignados e abnegados, que sabem transformar a dificul-
dade em amor. Eu, como observador, era esbofeteado com um soco
inglês no queixo dos meus entendimentos pelas lições de superação e
redenção que acompanhei nas histórias que escutei e nas observações
que pude fazer. Aqui não cabem defesas sobre certo ou errado, sobre
melhor ou pior, sobre a tortuosidade das direções. É tudo apenas um
grande olhar. Um olhar pacífico e atento, descritivo e apaixonado. O
olhar de quem já esteve dentro, fora, entre, através e além de. Esse
olhar se traduz em palavras, produzindo esse trabalho. Toda escrita é
de certa forma autobiográfica, já que nos implicamos de corpo e alma
na elaboração do trabalho. Ele passa a ser parte constante do nosso
tempo, da nossa fisiologia. Estar com um trabalho a ser construído
dentro de um tempo limitado por prazos me causa a sensação de que
esse livro é uma parte do meu ser posta em palavras. Só assim consegui
caminhar para desenvolvê-la, só assim, afetando-me profundamente
e quebrando paradigmas da minha própria existência, pude ter forças
para escrever. Tantos foram os pensamentos, associações, experiências
que a priori não pareciam estar relacionadas com a construção do texto
vivo, pulsátil, híbrido em minha própria realidade e percepção. Esse
é o resultado das ideias de um psicólogo clínico que quis, dez anos
depois de formado, voltar para a academia, passando por toda con-
formação textual e metafórica na função mecânica da palavra até as
sincronicidades dos contatos e encontros experimentados na jornada.
Os desdobramentos psicossociais e os relatos dos participantes
constituem a base estrutural desse trabalho. Já saliento aqui que todos
os citados autorizaram o uso do seu nome e narrativa. Para quem não
é envolvido no assunto sobre a maconha de alguma forma, tenho a
pretensão de que, ao final da leitura desse livro, terei ajudado a trans-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 7

formar e ampliar sua sabedoria sobre o tema. Assumo aqui a clara in-
tenção de desconstruir o instituído através do pensamento moderno
reinante que prevaleceu, inclusive em mim, até começar a me embre-
nhar no estilo de vida cannábico. Nesse texto mergulharemos nos de-
talhes e entenderemos a contextualização histórica da Cannabis e suas
consequências psicossociais, até mesmo nas estruturas educacionais e
científicas, produzindo versões e mitos sobre a planta. Aqui será expos-
to e descrito, da forma mais sensível e rica possível, toda a complexi-
dade da Cannabis por meio de suas interrelações, transpasses, versos,
frases, ideias, construções tangenciais, congruências e engendramen-
tos. O relato de toda minha vivência descrita em tempo real junto às
transformações psicossociais pelas quais passei e que foram ocorrendo
à medida que eu acompanhava os inúmeros modos de existência de
todos os atores envolvidos nos recortes e cenas em que estive, numa
dualidade instantânea e co-temporal de observador e também ator, ati-
vista, professor, debatedor e escritor. Assim, optei pela narrativa etno-
gráfica, emocional e em história imediata.
Em uma coincidência extremamente feliz, que me deu mais cer-
teza de estar no caminho certo da pesquisa, o assunto maconha medici-
nal ganhou corpo e mais espaço depois que um documentário chamado
“Ilegal” foi lançado em outubro de 2014. Esse filme relata a dificuldade
de um casal de Brasília para conseguir importar extratos de maconha
sem haver na legislação nada que falasse sobre o tema. Nele é possível
ver o drama das famílias que, usando a internet, buscavam informações
sobre as doenças dos filhos e davam sempre com a cara na maconha. A
confluência dos movimentos desse documentário, a busca de familiares
sobre novos tratamentos para doenças sem remédio dos seus filhos, o
movimento dos cultivadores e ativistas da causa da descriminalização,
as dificuldades burocráticas junto aos órgãos reguladores governamen-
tais e as brechas legais que possibilitam a produção de peças jurídicas
embasadoras do direito à vida e à saúde e o apoio de um grupo de mé-
dicos estudiosos que enfrentam a políticas dos conselhos fizeram todo
o engajamento junto ao tema criar um volume de representatividade
que culmina, até o presente momento, na liberação de autorização ju-
8 Lauro R. Pontes

dicial para ao plantio individual de três famílias com crianças, cuja ma-
conha é o principal remédio.

O início do processo
Comecei a tentar o contato com o grupo que na reportagem foi
denominado como “Rede Compromisso”, grupo de cultivadores casei-
ros que passou a doar uma parte de sua produção de consumo próprio
para servir de matéria-prima para confecção do extrato medicinal. É,
por meio dos engendramentos psicossociais que a partir desse grupo se
constrói uma consistência social ativista que posteriormente culmina-
rá com a fundação da ABRACannabis, entidade criada para promover
o apoio às pesquisas e ao cultivo individual e coletivo. Após achar o
jornalista e explicar meus anseios a ele, fiz contato por e-mail com o
advogado que fora entrevistado. Ele aceitou me receber para conver-
sarmos e, assim, comecei a jornada que se materializa nessa escrita. Foi
um caminho tortuoso, mas em sua maior parte grato de surpresas. O
início, passado o frio na barriga depois dos primeiros encontros com
os membros da Rede Compromisso, foi de grande aprendizado em mi-
nhas relações pessoais. Recebi apoio de quem não esperava, de pessoas
que eu julgava não aceitar nem falar sobre o tema, como as gerações
mais antigas da minha família e outros conhecidos, que foram, de fato,
deixando de manter contato comigo pelo preconceito enraizado e en-
durecido. Uma dessas pessoas, por radicalismo olfativo, por conta do
“ódio” ao cheiro da planta, excluiu-me das redes sociais e dela eu nunca
mais ouvi falar. Isso aconteceu mesmo depois de eu ter tido a paciência
para mostrar que com tecnologia o cheiro pode ser suprimido ou que
existem outras maneiras de se ingerir maconha sem ser com fumaça.
Meu caminho, no entanto, estava decidido e foi fortalecido pela
boa recepção do meu orientador e, posteriormente, da banca de qua-
lificação. Tudo foi motivado, também, por aquele momento síncrono,
em que o assunto estava tomando o corpo social e simbólico, diante da
gravidade do estado de saúde das pessoas que podiam se beneficiar do
uso da planta como remédio. As informações não paravam de chegar
sobre o uso da Cannabis em outros países, as pesquisas avançando e o
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 9

número de doenças tratáveis com a maconha, resgatando o sentido que


ela sempre teve diante da humanidade, algo que poderá ser visto no
capítulo sobre a linha do tempo da maconha.
O grupo Rede Compromisso surgiu da iniciativa em conjunto
de um médico pesquisador que buscava tratamentos para problemas
cujo os medicamentos existentes já não surtiam efeitos e de plantado-
res individuais, conhecidos como growers, que cultivam, com técnicas
botânicas, para seu próprio consumo uma maconha com qualidade
e livre das contaminações e deteriorações da maconha vendida pelo
tráfico. Eles não participam, portanto, da cadeia de problemáticas de
eventos associados à chamada guerra às drogas. Os growers se reuniram
e criaram essa rede com a proposta de atender uma enorme demanda
de pacientes acometidos com doenças graves, que têm na maconha
a fonte da medicina que pode atenuar várias doenças e seus vários
sintomas. As enfermidades que têm o foco direto da atuação da Rede
são as que causam dores crônicas, as doenças degenerativas de todos
os tipos e origens e quadros de epilepsia, em especial, nesse caso, em
crianças e jovens, não excluindo pacientes adultos, que são medicados
por anos com remédios alopáticos paliativos. Embora a maconha te-
nha descobertas até agora mais de quatrocentas substâncias e dessas,
mais de sessenta canabinoides em sua composição3, os dois principais
compostos são o tetrahidrocanabinol, conhecido como THC e o cana-
bidiol, da sigla CBD. Cada uma delas tem um modo de atuar no corpo
e agem sempre em conjunto, em proporções de quantidades diferen-
tes. Esse assunto será esmiuçado nesse texto na parte que fala sobre a
maconha como um todo.
Com a técnica trazida por esse médico e com a doação de parte
da colheita dos cultivadores, é feito um extrato oleaginoso da ma-
conha por meio de cepas botânicas ricas em CBD. O CBD atua di-
minuindo consideravelmente e, em outros casos, cessando completa-
mente as crises convulsivas, independente da doença que cause essas
crises, que muitas vezes chegam à casa das dezenas de vezes por dia.
As propriedades medicinais da planta, no entanto, não provocam os
3
Informação disponível em: http://brasilescola.uol.com.br/drogas/maconha.htm
10 Lauro R. Pontes

efeitos colaterais que os remédios alopáticos causam no restante do


cérebro. Sem o efeito colateral de depressão do sistema nervoso cen-
tral, causado pelo medicamento alopático por exemplo, o cérebro
pode fisiologicamente voltar a se desenvolver de forma mais plena.
Assim, há uma melhora imediata das comorbidades e consequente au-
mento na qualidade de vida dos enfermos.
Uma das problemáticas permeadas aqui decorre do fato de que
todo esse processo é ilegal. No Brasil, plantar maconha ainda é crime,
mesmo que seja apenas para o fim medicinal. Entretanto, os resultados
práticos, a rapidez na melhora das crises, principalmente e justamente
nas crianças, somados a toda gama restante de doenças que podem
ser melhoradas ou atenuadas em seus sintomas através da ingestão do
extrato, motivam o grupo a se manter mesmo na clandestinidade. Mo-
vimentos paralelos que tentam demarcar mudanças na legislação e lu-
tam em eventos sociais coletivos, como nas marchas da maconha pelo
país ou em audiências públicas no Congresso Nacional, defendendo os
growers que são denunciados e presos, enquadrados como traficantes
de drogas, são situações presentes em todo o processo e constituem
boa parte da narrativa desse livro. O grupo é multidisciplinar em suas
formações, mas único em sua ideia original: luta para dar conta da de-
manda dos pacientes pelos extratos da planta e pela descriminalização
do plantio individual e coletivo no país, acreditando que vale a pena
questionar e mudar as leis para ajudar na saúde dos pacientes.
A cada reunião dos grupos de que eu participava, tinha mais
certeza de estarmos no caminho certo e de que esse trabalho pode-
ria fazer alguma diferença prática no sentido de esclarecer e elucidar
com informações o assunto maconha perante os leigos. Além disso,
constituir-me como pesquisador num projeto de esclarecimento in-
formacional recheado com as premissas esperadas pela orientação do
trabalho com a vibração da TAR4, tornou-se um desafio interessante.
4
A Teoria Ator-Rede (TAR) é uma corrente da pesquisa em teoria social que se originou na área de
estudos de ciência, tecnologia e sociedade na década de 1980. Seus principais autores são Bruno La-
tour, John Law dentre outros. Ela procura desfazer a dicotomia entre o social e o natural e entre atores
humanos e não humanos.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 11

Isso porque a forma múltipla de entender as relações que a TAR possui


é, em minha opinião, a melhor fonte de referencial teórico e acadêmi-
co capaz de permitir repensar o paradigma das drogas e suas tentativas
de controle, consumo e articulações psicossociais que se produzem
dentro desse contexto. O argumento científico, via pesquisas sobre a
química dos componentes, a descoberta de sistemas endocanabinóides
inerentes ao organismo humano acerca do uso medicinal, partindo de
uma droga que possui toda uma simbologia recreacional subentendida
e com várias preconceituações construídas sobre manobras políticas de
controle e propaganda, é, em reflexão conceitual, um atravessamento
não moderno diante de uma prática constituída ultra limitante de se
entender a maconha apenas como droga.
O que legitima minha fala aqui são os efeitos práticos do uso para
a diminuição das crises convulsivas das crianças (o que por si só já deve-
ria encerrar discussão dicotômica sobre certo ou errado e permitir, no
mínimo, pesquisas bio-químico-fisio-farmacológicas) como também
o grito pela liberdade da autotutela como meio de garantir direitos
fundamentais à saúde. Entendendo por autotutela o conceito jurídico
“da autopreservação, inerente a todas as formas vivas, e as aplicações
do Direito Natural, nome dado ao conjunto de costumes utilizados
por uma sociedade e aplicados coercitivamente pela estrutura moral
daquela mesma sociedade”5. Logo,
“O exercício da Autotutela é um corolário dos di-
reitos e garantias fundamentais da Constituição da
República, para que mesmo através da Autotutela
se possa garantir a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie-
dade, conforme definidas no art. 5º e seguintes da
CRFB. Aplicar a Autotutela na defesa dos direitos
fundamentais explicitados na Constituição da Repú-
blica não se constitui ato ilícito, pois a lei não pode
declarar ilícito aquilo que a Constituição da Repú-
blica declara como direito.”
5
PINHEIRO, Marcio Alves; SILVA, Geórgia Carvalho; MENDES, Auliete de Paula. A Autotutela como
meio legal de defesa de direitos. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 03 Jul. 2010. Disponível
em: https://investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/processocivil/165074.
12 Lauro R. Pontes

Apesar de agnóstico em minhas crenças, tenho uma fé inabalável


na liberdade individual e no respeito coletivo a essa individualidade.
Assim, minha razão fundamental e motivadora, a razão do meu tra-
balho, é a liberdade. É fundamental que cada um possa exercer o seu
direito de escolha, munido de toda informação possível sobre o tema,
sobre o usar ou não a maconha para o que quer que seja. A partir desse
princípio, utilizado como argumento jurídico nos pedidos de habeas
corpus, acompanhar o tecer desse processo da luta pela modificação das
leis instituídas, tendo como argumento crianças com saúde fragilizada
e acompanhar como ocorrem os , por exemplo: como argumen-
tos jurídicos nos pedidos de habeas corpus são pensados a favorecer o
pedido mediante conceitos científicos e em outras ações legais sobre
o uso, porte ou plantio da maconha, em conjunto com os argumentos
biológicos, fisiológicos, farmacológicos e medicinais da planta integral
e toda a historicidade com seus caminhos já trilhados até hoje e com
o potencial sobre o porvir, é que contextualizo minha fala, sobre esses
terrenos de conhecimento e da prática do devir maconha.
A proposta é jogar tintas fortes no emaranhado do tema. A ma-
conha está presente entrelaçando-se conosco desde o início de nossa
civilização e possui controvérsias ancestrais, dos primeiros registros de
uso na Ásia Central há dez mil anos até a contemporaneidade. Ela se
conecta como um actante superativo numa rede de instâncias múlti-
plas. Esse trabalho é composto por toda a descrição do que acompanhei
e todos os processos com os quais tive contato. Isso engloba seguir as
mães em suas lutas diárias, no que tange as dificuldades de uma crian-
ça que requer cuidados diferenciados; acompanhar seus engajamentos
junto às dificuldades que a burocracia coloca para conseguir autoriza-
ção legal para importação dos extratos; observar a necessidade de re-
presentatividade junto à sociedade no enfrentamento dos preconceitos
com o remédio de maconha dado aos filhos; observar os resultados, as
preocupações e as problemáticas dinâmicas do dia a dia, as interfaces
de entendimento, buscando uma forma de falar isso para a academia.
Tudo que eu vivenciei para conseguir produzir o olhar e a narrativa,
minhas participações como ouvinte ou atuante, as conduções, os des-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 13

dobramentos possíveis, as controvérsias que regem o campo e meu


posicionamento e as expectativas junto a cenários futuros possíveis.
Deixo aqui, além de tudo, a reflexão da impotência perante a grandio-
sidade do tema e o tempo curto para o aprofundamento da pesquisa. A
quantidade de material a que tive acesso ao longo da pesquisa foi uma
das maiores dificuldades que encontrei, não pela escassez e sim pelo
excesso. Já na finalização, descobri mais dois livros ótimos que não
consegui usar aqui por conta do prazo. A maconha possui uma temáti-
ca multidisciplinar que em lugares do saber dos quais menos se espera
há uma produção de material de estudo. A angústia pelo medo de não
dar conta sobre um tema tão rico versus conseguir compilar tudo que
arrecadei de conteúdo, tanto experiencial quanto teórico para fazer
esses três anos da minha vida multiperceptiva, multimídia, multiviven-
cial caberem num texto a ser chamado de livro foi, até agora, o maior
desafio da minha vida.
O final do livro foi escrito no ritmo pulsante da história imediata
e vivida em tempo real até o ultimo dia da entrega do texto final, tem
a intenção de expandir o objetivo inicial e proporcionar ao leitor sentir
e transmitir o que a maconha é numa zona de conhecimento geral com
suas múltiplas conexões. É promover reflexões e ajudar na quebra de
paradigmas usando a informação como ferramenta de cisão e também
como lugar focal no que acontece nas inter-relações estabelecidas e
suas construções coletivas. Olhei com mais proximidade e sentimentos
as crianças e seus familiares, e os adultos que também se beneficiam
dos seus efeitos. Pude notar a luta contra o preconceito travada contra,
muitas vezes, os próprios parentes e amigos próximos, pelo direito à
saúde e ao bem-estar, encarando o preconceito e o desfazendo, exibin-
do os resultados, transformando a falta de conhecimento latente sobre
o tema em esperança de dias melhores. Acredito ter produzido minha
legitimidade como pesquisador por falar de um lugar “de dentro”. Pude
sentir uma multiplicidade de sentimentos que, por mais que escreves-
se, não conseguiria traduzir em palavras. Mesmo que a academia me
permitisse a entrega de uma tese multimídia, com texto, um documen-
tário e entrevistas em vídeo, roteiro para uma peça de teatro ou filme,
14 Lauro R. Pontes

exposição de trabalhos artísticos com a temática, mesmo que eu usasse


todas as formas de expressão existentes em que eu pudesse expressar a
minha experiência e vivência, ainda assim faltaria algo. Recorro aqui ao
expediente das fotos para dar algo a mais do que a forma apenas textual
e reúno, nos anexos, documentações e recortes pertinentes à ideia de
totalidade de entendimento possível.
Para isso, a escrita está segmentada em pedaços que se conectam.
Dividi o livro nas etapas do nascimento e desenvolvimento da planta
até o momento de sua colheita. A introdução começa na germinação
da semente, quando ela sai da potência latente para a atitude de vida.
Coloco logo depois da introdução, ainda na germinação, todo um ca-
pítulo sobre a maconha ao longo do tempo. É necessário começar com
uma contextualização histórica. Na metade da pesquisa percebi o grau
de complexidade sociopolítico na qual a maconha estava inserida. Senti
uma dificuldade grande para entender e contextualizar tantos abismos
informacionais e uma das conclusões que cheguei é a enorme a distân-
cia perceptiva, prática e inteligível entre o mundo dos maconheiros e
o dos não maconheiros. A ponte entre esses dois mundos que precisava
ser construída através de uma estrutura de informação. Enquanto isso,
um dos advogados mais atuantes na luta antiproibicionista me apresen-
tou um site com uma linha do tempo, contando a história da maconha
ao longo de sua existência, junto à humanidade. Decidi fazer uma tra-
dução linear desse site e colocá-lo como “porta de entrada” para o leigo
entender toda contextualização desde o início dos tempos. Considero
que a melhor visão sobre algo é o olhar mais amplo, que apanha os de-
talhes e as experiências individuais sem se afastar do registro cotidiano
que ao passar temporalmente vira história. A contextualização desse
capítulo dará ao leitor a visão do historiador, a narrativa registrada dos
fatos e versões escritas e registradas ao longo dos milhares de anos de
interação homem-Cannabis.
Após a introdução e a linha do tempo, a planta entra no esta-
do vegetativo, conhecido como Vega. Nesse estado, ela se desenvolve,
cresce, cria seu corpo, fortalece-se. Aqui está o capítulo que fala so-
bre o referencial teórico-prático, no qual vou discorrer a parte mais
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 15

acadêmica do livro. Nele utilizo a Teoria Ator-Rede, como base para


pensar toda a parte prática do trabalho. Toda minha narrativa é feita
sob o canvas da TAR, como foi no mestrado, passando pelos conceitos
teóricos e referendando colocações da pesquisa teórica e de campo.
Coloco, logo depois do referencial teórico-prático, o meu passeio pe-
las entrevistas e o mergulho nos contatos diretos com os personagens
que compuseram esse texto: os ativistas, as mães e os pacientes, as
contrapartidas e as relações contextualizadas. A próxima etapa é a da
floração. Nessa fase, toda a capacidade medicinal da planta se desen-
volve, abrindo as flores, que carregam todos os princípios ativos da
planta. Nesse capítulo, discorro sobre toda minha experiência vívida
no campo como pesquisador participativo e efetivo. A parte seguinte
é a Manicura, que é a colheita das flores, em que a planta dá a vida para
ajudar ou alegrar o ser humano. É um capítulo sobre as controvérsias
que a maconha tece ao longo do tempo. Também aqui está o capítulo
que fala sobre as propriedades da planta em todas suas potenciali-
dades históricas, medicinais e industriais. Além disso, exponho aqui
sociopolíticos, técnicos e seus engendramentos sociais, passando pelas
explicações biológicas, fisiológicas e médicas dos efeitos da maconha
e suas implicações atuais no mundo, tendo a narrativa construída em
história em tempo real. A maconha é uma planta de ciclo único, por-
tanto, ao ser colhida, ela seca e morre. Aqui vou narrar as entrevistas
e contatos diretos com os personagens: os ativistas, os pacientes, as
contrapartidas e as relações contextualizadas. Finalmente vem a cura,
o final do ciclo. Nele, a planta é colocada num processo semelhante à
maturação. Sem luz direta e num lugar bem ventilado, ela amadurece
para ficar pronta para ser consumida e/ou utilizada para fabricação
dos insumos. Esse é o capítulo final. Esse texto contém boa parte do
meu tempo de vivência e foi feito com dor e amor, como tudo que é
bem feito na vida.

Uso da linha teórico-prática e metodologia utilizada


Aos olhos de quem está acostumado com a forma acadêmica
convencional, esse texto e sua estrutura narrativa causam um enor-
16 Lauro R. Pontes

me estranhamento. A teoria base que sustenta essa forma e método é


relativamente nova e oferece um novo olhar, uma nova reflexão sobre
os processos psicossociais que constituem nossa existência. É nesse
capítulo que irei referenciar teoricamente minha escrita. Aqui estão
contidas as premissas acadêmicas que sustentam o resto do texto,
que, por opção consciente, está escrito de forma direta, com poucas
citações diretas, porém completamente influenciado e contaminado
pela Teoria Ator Rede.
A Teoria Ator-Rede (Actor-Network Theory, TAR ou ANT) se inicia
pelo trabalho desenvolvido por um grupo multidisciplinar de antropó-
logos, sociólogos e engenheiros franceses e ingleses associados, dentre
os quais Bruno Latour, Michel Callon e John Law e muitos outros.
Apesar da Teoria Ator-Rede ser considerada um método, “ela na prática
alcançou o estatuto de uma teoria, quer pelas ambições do seu método
(abolição do pensamento dualístico) quer pela sua reconceitualização
sistemática de práticas de pesquisa, que envolvem uma nomenclatura
extensa e original”. É preciso entender as relações dos humanos e das
coisas como uma rede e “seguir as coisas através das redes em que elas
se transportam e descrevê-las em seus enredos”6. O personagem prin-
cipal é o Ator e “Ator é tudo que movimenta, deixa traço, produz efei-
to, referindo-se a pessoas, lugares, coisas, animais, objetos, máquinas,
etc., tudo que é humano e não humano”7.
Cada um desses atores possui seus lugares e expressões de diver-
sos e distintos pontos, criando amarras pontuais, como nós nessa rede
totalmente interconectada e perpassada que se conecta às outras redes,
formando outras maiores e sub-redes menores e pontuais, sempre com
acesso ao resto da rede, estruturando uma mega nuvem fluida de cone-
xões. Michael Callon diz que na Teoria Ator-Rede, a noção de rede re-
fere-se a fluxos, circulações, alianças, movimentos, em vez de remeter
a uma entidade fixa. Assim, ocorrem conexões em pequenos grupos
como em cada núcleo familiar ou de trabalho e grandes conexões mui-
to mais complexas (bairros, vizinhança e sociedades em geral).
6
LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. São Paulo: Edusc, 2004.
7
LATOUR, Bruno. A esperança de pandora. São Paulo: Edusc, 2001.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 17

“Valendo-se da denominação de actante para designar


tanto humanos quanto não humanos, a ANT objetiva
abandonar a ideia de substância para destacar a ideia de
agência, ação. Com isso, coloca-se em foco o fato de
que os actantes acontecem na medida em que habitam
o mundo, que se vinculam aos demais elementos des-
se mundo. Ou ainda, eles são mais autônomos quan-
to mais conectados estão. Em outras palavras, quanto
mais vínculos se estabelecem, mais sua existência pode
ser vista no mundo, e, assim, pode ser acompanhada
em seus efeitos por aquele que quer investigá-los.”
(Tsallis, 2009, p. 8).
Devemos entender sociedade com essa noção de redes huma-
nas e não humanas conectadas entre si. O estabelecimento delas leva
ao desenvolvimento das relações presentes entre o homem e o meio.
Dessa maneira, o primeiro contato com a Teoria Ator-Rede para
quem nunca ouviu falar causa estranhamento. É necessário se abster
das relações de causa e efeito pontuais e expandir o olhar, tentando
ir além do dicotômico, percebendo as nuances e complexidade das
interações psicossociais.
“Uma rede de atores é simultaneamente um ator,
cuja atividade consiste em fazer alianças com novos
elementos, e uma rede, capaz de redefinir e transfor-
mar seus componentes” (Callon, 1986, p. 93, apud
Moraes, 2004, p.323).
Observar a sociedade e suas interrelações sobre essa ótica é des-
construir o pensamento dicotômico. Numa das orientações para escrita
da tese, a frase “maconha é planta”, comumente dita pelos ativistas,
foi desconstruída. Nas palavras do meu orientador: “não convence a
afirmação de que a maconha é planta. Se você usa a Teoria Ator-Rede
como referência, não dá para utilizar a Natureza e Cultura como ar-
gumentos. O que interessa é como ela se conecta com uma rede de
instâncias que fazem/produzem sentido. O que faz fazer (e o que im-
pede que este fazer se faça)”. Então, com essa diretriz de construção,
a ideia de um não humano como a maconha disparando uma série de
ações, com suas múltiplas facetas e engendramentos com os humanos e
18 Lauro R. Pontes

outros não humanos, no filtro aplicado ao olhar da prática e dentro da


proposta da teoria. O texto versa a maconha não como a maconha em
si, apenas como a planta que é, mas como todas as relações, símbolos,
significados, afetos, controvérsias produzidas com, através e todas as
outras proposições que couberam no recorte de campo. Dessa forma,
consigo propiciar uma melhor percepção daquilo que pesquisei e segui
desde agosto de 2014, quando tive primeiro contato com o tema, até
fevereiro de 2017, quando acabei a escrita.
Para Latour, em uma visão fundamental sobre a TAR, não há dis-
tinção entre Natureza e Sociedade. Essa visão se contrapõe ao princí-
pio moderno de polos separados e opostos – de um lado natureza (o
discurso simplório de que maconha é, apenas, uma planta), que é tão
rica em objetividade quanto é simplória, e de outro uma sociedade
colocada acolá, subjetiva e estanque. Ele também se desfaz de qualquer
discurso que verse sobre pureza e assimetria, afirmando que natureza
e sociedade não estão jamais separadas por diferenças de qualquer tipo.
O que fica mais claro em todo seu trabalho desde o início é que, para se
valer da ciência, devemos entender o que compõe o fazer ciência. Os
sujeitos e coisas que acontecem e são pelo meio, pelas interações. Fazer
ciência é transitar entre natureza e sociedade, não delimitando frontei-
ras entre elas, o que não nega a existência individual de ambas, porém
ambas não existem isoladamente, somente em instâncias que fazem
sentido entre si. A natureza e a sociedade se performam pelo conjunto
de práticas de mediação entre atores humanos e não humanos.
“O conhecimento, portanto, é corporificado em várias
formas materiais. Mas de onde ele vem? A resposta da
teoria ator-rede é que ele é o produto final de muito
trabalho, no qual elementos heterogêneos – tubos de
ensaio, reagentes, organismos, mãos habilidosas, mi-
croscópios eletrônicos, monitores de radiação, outros
cientistas, artigos, terminais de computador, e tudo o
mais – os quais gostariam de ir-se embora por suas
próprias contas, são justapostos numa rede que su-
pera suas resistências. Em resumo, o conhecimento
é uma questão material, mas é também uma questão
de organizar e ordenar esses materiais. Este então é
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 19

o diagnóstico da ciência, na visão ator-rede: um pro-


cesso de «engenharia heterogênea» no qual, elementos
do social, do técnico, do conceitual, e do textual são
justapostos e então convertidos (ou «traduzidos») para
um conjunto de produtos científicos, igualmente hete-
rogêneos”. (Law, 1992, p.3).
Um trabalho científico que use a TAR como referencial teórico
deve procurar acompanhar o processo do qual o tema se constitui na
sua tradução da produção dos eventos, pela construção do saber cien-
tífico e suas heterogeneidades com a sociedade. Para Latour (1994,
p.138)8, “os modernos não estavam enganados ao quererem não huma-
nos objetivos e sociedades livres. Apenas estava errada sua certeza de
que essa produção exigia a distinção absoluta e a repressão contínua do
trabalho de mediação”. A rede que se forma a partir dessas traduções,
conexões e mediações não se estabiliza se definindo. Há sempre o des-
dobramento dos objetos instáveis ou não encaixáveis. Os chamados
híbridos são humanos e não humanos com mobilidade e conexão entre
si em contínua-ação, produzindo inúmeras realidades possíveis ou o
que mais tarde Latour, elaborando de outra forma, vai traduzir como
os modos de existência. Os híbridos se aprimoram à medida que fazem
tais conexões com outros elementos, tornando-se mais autônomos.
As formas como estabeleci os contatos, as conexões com o que já
havia sido instituído, as alianças que fui formando para ir me aproximan-
do dos grupos, principalmente no início do trabalho, produzindo novos
híbridos utilizáveis por mim, todas foram pensadas na prática, na lida
do dia a dia, pelo viés da TAR. É, aliás, muito interessante fazer uso da
Teoria Ator-Rede de uma forma que para mim soou diferente e que eu,
arrogantemente, chamei de PAR – a Prática Ator-Rede, que é o registro
linear e temporal da experiência, do estar em foco e fora dele, desper-
to, praticando as conexões e as sentindo como parte de mim mesmo e
desse grande todo em interação. A PAR também é uma ótima alusão
metafórica à necessidade de estar em contato. Estar em PAR significa
estar a par, em contato, em experiência, ao menos com o outro. Estar

8
LATOUR, BRUNO. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.
20 Lauro R. Pontes

a par, em contato, em experiência, produzindo a troca entre os pon-


tos, que podem ser humanos e não humanos, não importa, e fazendo as
conexões que, pela dinâmica dos acontecimentos, vão se desenrolando.
Dessa forma, esse referencial mostra como estabeleci as alianças, como
reconheci os antagonistas e como todo o desenrolar da história relatada
em tempo real foi construída até o último minuto antes da necessária
entrega do texto final. Como já estava familiarizado com a linguagem e
a forma-rede que compõe e faz fazer, transformei a TAR em PAR para
colocar não só em cena, mas em total evidência, a necessidade de tudo
se conformou até a necessária entrega do texto final. O protagonismo da
maconha medicinal, em função da urgência, do estado de necessidade9
das pessoas que encontram na maconha o seu melhor remédio.
Moraes (2010, p.26)10 relata o caminho percorrido no campo de
pesquisa como sendo desde o início “tomada pelo problema de como
intervir num certo cenário levando em conta o referencial do outro”.
Senti essa necessidade desde o primeiro contato com os grupos que
segui. A vontade daqueles que plantam tanto para consumo próprio
quanto para também contribuir cooperativamente para o remédio ser
produzido; a percepção da dor e da inimaginável sensação de ser pai
ou mãe e ver seu filho convulsionando, sempre próximo à fronteira
da vida, sabendo da condição crônica que os acompanhará pela cami-
nhada da existência de ambos; a sensação de impotência dos cientistas
pesquisadores, diante da proibição do cultivo, que não permite sair da
clandestinidade; e poder fazer algo que não só diz respeito a si mesmo,
como também interrompe a cadeia de eventos ligados à comercializa-
ção ilegal do tráfico. Ainda citando Moraes (2010, p. 42)11, coloca:
“Trata-se de afirmar a pesquisa como uma prática per-
formativa que se faz com o outro e não sobre o outro. A
expressão ‘PesquisarCOM’ tem a dimensão de um verbo

9
Estado de necessidade é uma causa especial de exclusão de ilicitude, ou seja, uma causa que retira o
caráter antijurídico de um fato tipificado como crime. No Brasil, está previsto no artigo 23-I do Código
Penal e exemplificado no artigo 24 do referido código.Também se tornou o nome de um documentário
produzido pela APEPI, sobre a luta das mães e pais poderem fazer seu auto cultivo do remédio.
10
MORAES, Marcia. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau, 2010.
11
MORAES, Marcia. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau, 2010.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 21

mais do que de um substantivo. Indica que para saber-


mos o que é cegar é preciso acompanharmos este pro-
cesso em ação, se fazendo, na prática cotidiana daquelas
pessoas que o vivenciam. O pesquisar com o outro im-
plica uma concepção de pesquisa que é engajada, situada.
Pesquisar é engajar-se no jogo da política ontológica.”
Ao entrar em contato com o grupo, logo no início da pesquisa,
percebi que seria impossível não me engajar, não ser um nativo no
campo. Uma postura ideológica e identitária deveriam existir, não por-
que o grupo exigisse, mas por mim, para que eu sentisse a completu-
de, a afetação máxima possível em meu ser. Senti-me compelido a ser
parte daquilo, por mensurar o tamanho do processo/projeto/evento/
momento que estava me dispondo a pesquisar. Encontrar, a priori mo-
dernamente, a possibilidade de uma planta proibida e criminalizada ser
a fonte de um remédio para uma doença grave é algo grandioso. Tive
que, nesse sentido, fazer um grande esforço para aceitar que, apesar de
todo peso temático associado descrito anteriormente, precisava man-
ter o olhar acadêmico e usar conceitos equilibrantes para pensar as
contradições, entender que a minha visão sobre o tema não era a única
e produzir olhares que dessem espaço a outros ângulos possíveis. Para
isso, usei o que Tsallis & Viegas (2011, p. 301)12 em seu texto escrevem
ao pensar o que Viciane Despret, filósofa e psicóloga, autora do grupo
da TAR, propõem no seu conceito de versões:
“Uma versão se conta, se propõe, entra em acordo ou
desacordo com outras; ela pode transformar, ela pode
traduzir, ela pode ser negociada – tornar às vezes ne-
gociável o inegociável. Ela se cultiva no mundo, faz o
mundo existir e se transforma na relação com o mun-
do. As versões se inscrevem no tempo de uma história,
que elas prolongam, transformam, retornam ou arti-
culam; elas se inscrevem também num espaço de uma
cartografia de nossos saberes: os lugares podem ser os
mais diversos: o laboratório, as instituições médicas, as
terras distantes dos antropólogos, a política, as insti-

12
VIÉGAS, M N.; TSALLIS, A. C. O Encontro do Pesquisador com seu Campo de Pesquisa: de Janelas
a Versões. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei, ago/dez 2011.
22 Lauro R. Pontes

tuições da cultura, os coletivos que são estudados pela


sociologia”. Tsallis & Viegas (2011)
Nesse prisma, o que eu produzisse como saber pela prática viven-
cial devia ser tomado como uma das visões possíveis a partir e ao final
de um olhar de apropriação pessoal. A realidade, seus objetos pulsantes,
devem reconhecer a coexistência de outros tantos ainda que contraditó-
rios ou controversos. Não por isso, saberes e versões deixam de ser ou
se tornam válidos, mas sua compreensão acontece no reconhecimento
da existência da produção de múltiplas realidades possíveis, oriundas das
práticas e vivências que se localizam dentro do que pode ser compreen-
dido e acompanhado no desenrolar da linha do tempo da maconha. É
perceptível a significância dela de acordo com a temporalidade vigente.
Reconhecer isso me trouxe paz, dentro de um momento de crise de
criação, em função da quantidade de material coletado no campo e a sen-
sação de infinitude, pois cheguei à fronteira do campo como descrição de
um modus vivendi múltiplo, como em conjuntos matemáticos que contêm
subconjuntos dentro de conjuntos maiores, porém, cada um com a com-
plexidade de um universo inteiro em si.
Para Despret (2001, p. 44)13, a versão de algo é mais fluida e
exibe facilmente os engendramentos presentes no processo. A visão
de algo é limitante e definidora, faz com que o recheio que deve ser
cremoso se torne endurecido. Impõe verdade, uma instância ontológi-
ca falsa ou limitada do que se é ou estar. A noção de versão possibilita
construir um olhar a partir do ocorrido, novo de certa forma. Nada
é preexistente aos perpasses que se vivencia naquilo que constitui o
conteúdo da versão. Assim, a pluralidade de possibilidades de modos
pode coexistir numa mesma realidade. É possível haver a realidade e as
construções (versões) dessa. Ainda em Viegas & Tsalis (2011, p. 300)14:
A autora propõe que os saberes produzidos na prática
científica sejam entendidos como versões e isso signi-

13
DESPRET, Vinciane. Ces émotions qui nous fabriquent: ethnopsychologie des émotions. Paris: Les
Empêcheurs de Penser en Ronde/ Le Seuil, 2001.
14
VIÉGAS, M N.; TSALLIS, A. C. O Encontro do Pesquisador com seu Campo de Pesquisa: de Janelas
a Versões. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei, ago/dez 2011.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 23

fica que o saber dos cientistas acerca dos fenômenos


da realidade e seus objetos de estudo coexistem com
outros tantos sob o regime do acordo, da contradição e
da controvérsia. Consequentemente, os saberes como
versões não perdem o seu caráter de conhecimento vá-
lido, mas podem ser entendidos como possibilidades,
como construções sobre a realidade (produtores de
realidades), como práticas que, dependendo da tradi-
ção da qual são herdeiras, serão mais ou menos privile-
giadas em determinada época.
Traçando um paralelo com o processo de construção de um
fato/objeto proposta por Latour em seu livro “A esperança de Pan-
dora”, onde o autor analisa as diferenças de construção do discurso
científico com os objetos da ciência, tendo como parâmetro a realidade
desses estudos e sua relação os fatos sociais. Latour analisa o processo
de construção de um fato/objeto produzido pela ciência e defende a
tese de uma natureza socialmente construída dos fatos científicos. Ao
compreender de forma mais ampla essas produções dos fatos cienti-
ficos, a esperança reside em perceber que não há um conflito entre a
ontologia e a epistemologia. No caso da maconha ocorre uma inversão
e os fatos científicos construídos à época da promulgação da proibi-
ção da maconha foram, não só ignorados, mas também postos de lado
e contraditos sem nenhum argumento técnico. O ponto de vista que
prevaleceu sobre o assunto se valeu apenas da força política dos órgãos
de fiscalização e controle, que tinham forte lobby junto às instâncias
decididoras da ONU. A construção política, então, foi sobreposta ao
pensamento e produção científica da época, visto que os estudos sobre
os efeitos da maconha foram ignorados e desconsiderados sem nenhum
argumento contrário que não fosse a vontade dos representantes.
Não me parece que os cientistas possuíssem, portanto, o conheci-
mento da necessidade das articulações políticas para que seus trabalhos
fossem levados em consideração e que, a maconha assim, não fosse co-
locada no mesmo saco que o ópio e a cocaína. Talvez eles acreditassem
demais na letra fria do texto científico como verdade incontestável. Eles
acreditaram que a pesquisa embasada pelos dados quantitativos e a ex-
24 Lauro R. Pontes

periência prática deles eram suficientes para satisfazer a demanda teó-


rica das políticas. Não foi. Olhando para o ocorrido, percebe-se a força
política não aliada à ciência e a passividade ou impossibilidade reativa
das combinações entre as grandes corporações e o poder vigente à épo-
ca, que não se diferem em nada do que vivemos hoje. Paralelamente,
o encadeamento das ações legais dos advogados atuantes juridicamente
na causa antiproibicionista em conjunto com as mães das crianças que
usam o óleo de maconha junto poder público fez com que fosse per-
mitido o habeas corpus que, pela primeira vez na história do Brasil, dá o
direito à família de cultivar maconha em casa, garantindo que a polícia
não poderá agir contra isso. Duas semanas depois, outra família recebeu
a mesma prerrogativa. Além disso, a farmacêutica do grupo conseguiu a
autorização junto à UFRJ para a captação de recursos com o objetivo de
comprar os gabaritos e, assim, medir a quantidade dos princípios ativos
da maconha nos óleos que as crianças consomem. Como existia um
habeas corpus, ela pôde fazer a extração do óleo dentro do laboratório de
farmácia da UFRJ. Dessa forma, também pela primeira vez, a maconha
entrou na universidade pela porta da frente. Não se faz ciência sem
política. Nas reuniões da ABRACannabis, muitas vezes escutei a frase:
“você domestica a planta e a planta te domestica”. Essa fala me remeteu
à outra, que já tinha ouvido nas reuniões sobre a TAR que frequentei no
programa de pós-graduação, o que me levou à colocação de Latour em
seu livro “A esperança de Pandora”: “...Veremos como Pasteur fez seus
micróbios enquanto os micróbios faziam seu Pasteur.”15.
No capítulo em que narro a vivência no campo, discorro sobre
como me tornei ativo e participativo como membro da associação e no
apoio possível às mães. Fui deveras surpreendido por visões diferen-
tes das instituídas como convencionais sobre o uso da maconha numa
imensa gama de situações que foram mudando e moldando minha ma-
neira de pensar. Felizmente essa contaminação toda é promissora, re-
ferenciando (Despret, 2001, apud Moraes, 2010)16, temos:
15
LATOUR, BRUNO. A esperança de pandora. São Paulo: Edusc, 2001.
16
MORAES, Marcia. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau,
2010.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 25

“O mal-entendido promissor é aquele que produz no-


vas versões disto que o outro pode fazer existir. O mal-
-entendido promissor, em outros termos, é uma pro-
posição que, da maneira pela qual ela se propõe, cria a
ocasião para uma nova versão possível do acontecimen-
to” (Despret, 2001, p. 328).
As múltiplas faces que a maconha possui gritam em cada um dos
cenários e interlocutores e suas percepções individuais. Dentro do gru-
po de mães e pais das crianças, por exemplo, existem aqueles que dese-
jam apenas a função-remédio da planta. Acaba havendo um choque de
percepção com os outros, o que, muitas vezes, provocou situações cons-
tragendoras. Percebi uma mágoa dos growers com esse discurso, uma vez
que eles se sentem explorados por quem pensa assim, pois na hora de
recorrer para ter o remédio que eles fazem doando parte de suas pró-
prias plantações esses pais buscam ajuda e depois criticam outro uso que
não seja o medicinal. Outros, que nunca haviam fumado, acabaram por
descobrir na maconha outra função medicinal, que é a de auxiliar no
alívio da dureza da realidade do dia a dia da doença de sua criança e seus
desdobramentos, encontrando na maconha um substituto para o álcool
e ansiolíticos alopáticos utilizados como formas de alívio da tensão co-
tidiana. Nas áreas de conhecimento, há profissionais com o mesmo dis-
curso proibicionista, mas por conta de interesses materiais, por suas pa-
recerias com a indústria farmacêutica, que visa isolar os componentes e
patenteá-los, como remédios alopáticos, reproduzindo o discurso lega-
lista e cientificista moderno. Os pesquisadores mais sérios, que visam à
saúde e ao saber, afirmam com muita clareza a necessidade do chamado
efeito-comitiva, que é a integralidade da planta no preparo do remédio.
Ou seja, a maconha, quando tem seus componentes isolados, não pro-
duz o mesmo efeito. É necessário o uso da planta de forma integral para
produzir o extrato. O que vai fazer diferença nas quantidades é o tipo
da planta utilizado. Existem mais de mil e novecentos tipos diferentes
de maconhas, cada uma com sua dosagem dos componentes em propor-
ções diferentes, produzindo efeitos diferentes de acordo com a dose.
Isso significa que há um vasto universo a ser pesquisado e entendido. À
26 Lauro R. Pontes

medida que a descriminalização, liberação, comércio e pesquisa, nessa


ordem, crescem no mundo, novidades vão surgindo.
Os saberes adquiridos por mim produziam desdobramentos e
conflitavam com o que eu via e ouvia no “mundo lá fora”. Mesmo o
meio acadêmico, tão rico de conteúdo, é paupérrimo quando o assun-
to é a maconha. Apesar do cuidado em saber do teor da minha pesqui-
sa, a fala no meio universitário repete o conhecimento popular, tra-
zendo os mitos construídos pelos factoides, produzidos para manter
a maconha no ostracismo preconceituoso. Escutei de pessoas cátedras
muito queridas perguntas inocentes, ainda que réplicas dos discursos
instaurados, como: “maconha não causa esquizofrenia ou psicose?” ou
“maconha não queima os neurônios?”. Essas frases advêm das versões
inventadas a partir da proibição política e da propaganda inventada no
século XX. São entendimentos maldosos que se fixaram no imaginá-
rio popular e, também, no acadêmico. Não que existam verdades. Eu
estaria, assim, incorrendo no erro moderno de definição. No entanto,
tento tomar como versão a que faça mais sentido, que seja mais prag-
mática, embasada e estudada multidisciplinarmente, mesmo sabendo
que o saber desmistificado acerca dos eventos-maconha, na realidade,
seu estudo temático aprofundado sempre vai existir em contato com
outros, gerando contradição e controvérsia. Geralmente, vai haver al-
guém usando o conhecimento adquirido para pensar de outra forma
e vai haver, em contrapartida, quem não queira mudar seu ponto de
vista, por razões pessoais. Assim, há uma multiplicidade produtiva de
realidades, as quais resultam dos eventos práticos, oriundos dos sabe-
res instituídos, que entendo que vão sendo lapidados através do ritual
de desmistificação das construções anteriores.
Proponho aqui, portanto, justamente a mudança da versão insti-
tuída sobre a maconha para uma nova versão, rica em informação mul-
tidisciplinar. Concluo que, para isso, é necessária a junção de saberes de
áreas de saúde, botânica, histórica, humanas e das ciências exatas para a
quebra do grande paradigma sobre a maconha. A planta é mais um ha-
bitante desse planeta que interage e age na relação conosco, humanos,
produzindo múltiplos engendramentos. O conteúdo desse livro é um
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 27

recorte de alguns engendramentos vividos e sentidos. O que motivou


a escrita dela, além do respeito ao direito de escolha individual, foi um
mix de sentimentos e emoções ao ver as crianças, tão fragilizadas pelas
doenças, melhorarem e evoluírem em seu desenvolvimento. Também
as reações emotivas dos pais em redenção e incredulidade perante aos
efeitos do extrato de maconha.
Ao elaborar o sentir, continuo em Despret (2001)17 e as emo-
ções, desconstruindo a definição platônica, que perdura por séculos,
de que a razão está na cabeça e as emoções estão no corpo, de que a
razão domina a emoção ou de que a emoção é mais feminina e a razão,
mais masculina, Despret vai além. Para ela, tanto a emoção quanto a
razão são da ordem do social, do cultural, não está aqui ou acolá, mas
vem e nos afeta de fora para dentro. As emoções se distribuem não
como uma coisa interna ao ser, contudo circulam entre e através de.
Elas são instâncias que circulam, somos infectados por emoções, como
uma doença, a nossa revelia. Como essas emoções nos afetam? Essa
perspectiva deve ser sempre individual, para respeitar o sentir como
referencial na construção do ser. Sentimos em nós e sentimos com o
outro. Meu envolvimento com os grupos dos quais passei a participar
foi, ainda é e continuará sendo muito profundo, visto que esse trabalho
me transformou num ativista da causa. Meus filhos e minha projeção
medrosa da saúde deles quando eu via uma criança doente, colocar-me
no lugar dos pais e mães que tem sua vida modificada profundamente
no momento em que os primeiros sintomas aparecem, pensar que es-
ses sintomas não têm data nem momento certo geram em mim uma
enorme angústia perante o futuro. Não me entendam mal. Isso se des-
dobrou em mim como força, tornou-me alguém que está disposto a
continuar a oferecer apoio psicológico às mães e aos pais em reuniões
mensais. Sou parte de todo o movimento, desse trem que partiu há
séculos e que peguei no meio do percurso. Está intrínseco ao meu ser,
ao meu modo de existir, como tudo que nos vai compondo, costurando
no lençol da vida todos os retalhos vividos, de agosto de 2013 até agora
DESPRET, Vinciane. Ces émotions qui nous fabriquent: ethnopsychologie des émotions. Paris: Les
17

Empêcheurs de Penser en Ronde/ Le Seuil, 2001.


28 Lauro R. Pontes

e em diante, o fundo desses retalhos foi se tornando verde. Ajo por


mim, pelo outro, pela causa, pelo meu julgamento sobre o que é certo
e meu desejo de fazer o que acho certo, ajo em busca de coerência. A
maconha me performou enquanto eu performei a maconha, junto aos
grupos e perante as pessoas que não tinham nenhum conhecimento
além do empurrado-forçado pela “mitologia doméstica” que a socieda-
de desenhou ao longo dos anos.
No campo, em contato com as mães, isso fica muito claro. A
dor e o medo das doenças vão surgindo à medida que sintomas vão
aparecendo. Nas crises convulsivas, o início é a ansiedade pelo fim. A
doença da criança vai desenhando na alma das mães e pais sem se preo-
cupar com a forma. Os planos das famílias vão dando lugar ao senso do
possível. Ao mesmo tempo, cada pequena vitória, cada coisa que para
quem não vive a realidade deles é corriqueiro ou pouco expressivo,
ganha um vulto de dimensões grandiosas. A maconha, em quase todos
os quadros, traz alívio e uma esperança enorme, desconstruindo tudo
o que se sentia ou se pensava sobre a planta. Convido à reflexão diante
do seguinte cenário: descobrir que seu filho ou filha tem um quadro
crônico, sem cura prevista, e que sua vida deve ser toda adaptada para
viver esse novo modo, passando anos, às vezes décadas, na manutenção
e contenção de sintomas super agressivos. Ao experimentar um novo
remédio, um bom pedaço dessa realidade muda, abrindo novas pers-
pectivas, trazendo novas esperanças.
As emoções provocadas por essas experiências não existem em
si. Elas são sempre contextualizadas na prática, nos exercícios de tê-
-las. Não são emoções descontextualizadas. Traduzir emoções em pa-
lavras é quase tão difícil quanto tentar explicar a origem do universo.
A contextualização e o desenrolar muitas vezes não traduzem o que foi
vivido. Como em um jogo de futebol que o placar não condiz com o
que aconteceu durante a partida. Vários elementos compõem a situa-
ção que desenha o placar distorcido. É o resultado de um conjunto de
fatores que se construíram, somando todos os eventos como torcida,
juiz, pressão do estádio, regras e posição no campeonato, relação entre
os jogadores fora do campo, situações de treino, pagamentos em dia,
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 29

premiações por resultados e um sem número de agentes de influência


que produzem o placar. Espera-se que o jogador mais veterano tenha
mais controle emocional que um jovem recém-subido das categorias
de base, embora o contrário possa acontecer. Nada pode ser previsto
com a certeza que os modernos fantasiam ter. Toda emoção é decor-
rente do quadro instituído.
Seguir os atores me fez saber, portanto, de que maneira a minha
pesquisa poderia ser viabilizada. Fez-me perceber qual o melhor cami-
nho para trabalhar, conhecendo as minúcias, indo ao encontro do coti-
diano, que está bem relatado na parte do contato com os pais e mães.
Todas as etapas do processo estão bem vividas, respaldadas e detalha-
das. Produzi esse texto com a intenção de ajudar a legitimar aquilo que
nunca deveria ter deixado de ser legítimo: a liberdade de poder usar a
maconha da forma que se deseja.
A maconha, como não humano, é a produtora das instâncias não
sociais que constituem o social em que ela está inserida18. Seu papel
como atriz mudou muito ao longo dos anos, ora como protagonista da
saúde e bem-estar, ora marginalizada como algo daninho. Essa forma-
-tema se desdobra para a própria noção de indivíduo ou coisa: a maco-
nha é constituída pelo local, pelo temporal, pela técnica, pelo urbano,
pelo rural, pelo ocidente, pelo oriente e por todas as suas diferenças,
pelos coletivos por onde ela passa e perpassa. Ela é romantizada por
amantes de seus efeitos, instituída pelo hábito social que ela ocupa.
A maconha está sendo psicologizada por essas linhas academicistas, é
múltipla nas emoções possíveis associadas a ela, torna-se símbolo de
um país, de um modo cultural inteiro de existir, é sagrada em algumas
religiões e demonizada em outras. Ela possui maconhices, falas, gestos,
símbolos e filosofias que só o movimento cannábico possui.

LATOUR, Bruno. Reensenblar lo social: uma introducción a la teoria del actor-red. Buenos Aires:
18

Manantial, 2005.
VEGA - A Cannabis

And no one show us to the land


And no one knows the wheres or whys
But something stares and something tries
And starts to climb towards the light
(Echoes - Pink Floyd)

O período vegetativo ou Vega é a fase em que a maconha so-


mente cresce, sem dar os frutos, ou melhor, flores. Nessa altura do
cultivo, a maconha se desenvolverá e crescerá para florescer bem
na próxima etapa. Importante nessa fase é o fotoperíodo, ou seja,
a luz. Trago a narrativa do contato com as mães e todo o arcabouço
principal desse texto. É a parte em que relato o que colhi como ex-
periências mais marcantes na trajetória da construção do livro.
O campo foi, para mim, muito forte e mexeu profundamente
comigo. Potencializou-me, cativou-me e transformou-me. À me-
dida que fui descobrindo os outros efeitos medicinais e seus usos,
foi se fortalecendo essa certeza e minha postura foi sendo moldada.
Nesse meio termo, descobri que iria ser pai novamente. O contato
com a dor daqueles pais de crianças tão pequenas junto com minha
experiência de já ser pai de uma adolescente saudável e o incomen-
surável momento de uma gravidez me causaram momentos mar-
cantes e motivadores junto ao contato afetivo que o campo havia
se transformado.
32 Lauro R. Pontes

O contato com as mães e crianças

“Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontra-


res o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.”
E. J. Couture
A reportagem que me aproximou do tema tocou-me pela burla
presente no desafio das instituições e sua legalidade. O fato determi-
nante, no entanto, foi descobrir ali o uso para produção de um re-
médio capaz de atenuar uma terrível doença, que quando ocorre em
crianças é ainda mais chocante e parece nos doer mais na compaixão e
na projeção afetiva que fazemos.
Após o contato inicial com os membros da Rede Compromisso,
eu consegui, através deles, conhecer algumas mães durante a fundação
da AMA+ME. A primeira criança que vi foi o Pedrinho. Sua mãe relata
o seu caso assim:
“Ao nascer, ele sofreu de hipertensão pulmonar que lesionou seu cérebro,
mas os problemas só foram aparecer aos três anos de idade. Ele começou a sofrer
as crises epiléticas severas, que o fizeram regredir bastante em tudo que ele já ti-
nha aprendido em toda sua vida. Foram administrados vários neurolépticos que
não surtiam efeitos nas convulsões. Até que um desses medicamentos desencadeou
uma alergia medicamentosa chamada de ‘síndrome de Stevens-Johnson’, que o
fez entrar em mal convulsivo e o deixou com sequelas graves. Por conta disso, ele
ficou em coma induzido por três meses em uma UTI no Rio de Janeiro. Quando
despertou do coma, ele estava muito debilitado, perdeu a capacidade da fala e
de andar e assim ele foi para casa. Eu vivia amargurada achando que o destino
dele seria para sempre aquele martírio, até que tive conhecimento do extrato da
maconha, que um grupo de ativistas estava fabricando. Então, eu procurei e en-
trei em contato com essa rede e eles me cederam o óleo da maconha. Foi como se
meu Pedro estivesse bebendo vida! Pedro melhorou muito a fala, aprendeu mais
palavras e começou a interagir com toda a família e também voltou a andar e
se alimentar bastante, pois o efeito colateral bom da maconha é abrir o apetite
e as convulsões DESAPARECERAM. Já faz mais de 2 anos que ele não tem con-
vulsão nenhuma. Assim, sei que a vida dele pode ser prolongada e também voltei
a dormir tranquila sem o medo de antes. Estamos muito felizes!”
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 33

Não é que a maconha seja mágica, mas ao administrá-la, podem-


-se diminuir os anticonvulsivantes que desligam também outras áreas
do cérebro. Assim, é como se a criança religasse seu desenvolvimento
físico e cognitivo. Como já foi dito, sabe-se, por meio de estudos pre-
liminares, que a maconha atua na constituição dos tecidos cerebrais.
Nesse mesmo evento conheci outras mães e conversei com elas.
Percebi, nesse primeiro contato, como a realidade delas é muito mais
dura do que a já difícil tarefa de cuidar de um filho sem os compro-
metimentos que as enfermidades causam. É importante frisar aqui que
a convulsão, crise convulsiva ou crise epilética pode ser resultado de
quadros infecciosos, problemas associados ao período de gestação, ao
momento do parto ou como comorbidade e sintomas associados a sín-
dromes genéticas raras. Ainda quero levar em consideração, para essa
reflexão, a especificidade de cada organismo. Mesmo crianças com
diagnósticos idênticos possuem um espectro de comprometimento
muito amplo para generalizá-las. Desse modo, caímos no que já foi
dito aqui: a necessidade de se encontrar a cepa específica da maconha
e sua dosagem para cada criança. Isso só é possível de ser realizado por
meio de pesquisas muito aprofundadas. Para aprofundá-las, é necessá-
rio descriminalizar o uso da planta.
Durante as reuniões semanais da ABRACannabis, pude me apro-
ximar da associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Me-
dicinal (APEPI) por meio dos seus diretores, um casal cuja a filha é
portadora da síndrome genética CDLK5. Através deles, pude acompa-
nhar outros pais e mães com filhos que tinham crises convulsivas como
sintoma dos problemas de saúde e para os quais a maconha despontava
como uma esperança de diminuição das crises, da melhora e da recupe-
ração parcial da parte cognitiva da criança. Passei a seguir essas mães,
além de participar da organização da ABRACannabis. Coloquei-me à
disposição, junto ao grupo da APEPI, para fazer um trabalho coletivo
com essas mães, numa espécie de grupo de apoio psicológico, que aca-
bou gerando algumas reuniões temáticas mensais no ano de 2016. Fo-
ram momentos marcantes para mim como pesquisador, pois pude ver
de perto as dificuldades encontradas por esses pais e mães lidando com
34 Lauro R. Pontes

toda a dificuldade de desenvolvimento dos filhos e tendo que manter


a vida ao mesmo tempo. Projetava em, simultaneamente, minha pró-
pria vida, medo e angústia por passar por uma outra gravidez e ser pai
novamente. Tocar a própria vida era algo a que todos, sem exceção,
pareciam já estar adequados e resignados. As dificuldades na logística
e no cotidiano eram muito parecidas. As singularidades determinavam
a especificidade de cada núcleo familiar. Havia pais que contavam com
a ajuda da família para cuidar da criança, outros se desdobravam para
poder pagar cuidadores, profissionais de saúde de atenção especial,
tudo visando melhorar o desenvolvimento. Quase todas as famílias as-
sociadas à APEPI tinham como referência clínica o Instituto Estadual
do Cérebro, que possui uma equipe de neuropediatras que receitam a
maconha como remédio. Nas reuniões que coordenei, recebi relatos
dolorosos e inspiradores de pessoas abnegadas, de um amor encantado,
que tocam suas vidas se equilibrando com essa realidade dificultada.
Um dos relatos que me marcou foi o de um casal que, nas palavras de-
les: “se furar um pneu, o dia se desmonta”, fazendo referência à falta de
tempo total para sair de uma rotina extenuante de trabalho, cuidado e
tratamento da criança. Toda sua agenda é amarrada com um compro-
misso atrás do outro, revezando e encaixando os horários com a agenda
do parceiro. Outros optaram pela mãe parar de trabalhar para cuidar
da criança. Isso numa narrativa simplória de pessoas que possuíam um
poder aquisitivo médio. Há relatos de dificuldades maiores, como os
de mães que foram abandonadas pelos pais das crianças, cujas famílias
não dão nenhum suporte. A tecnologia da informação, por meio do uso
de redes sociais por celular acabou virando um lugar de desabafo en-
tre as mães com relatos sobre o estado dos filhos quando internam no
hospital. Ser internado é recorrente nessas enfermidades dos casos das
crianças. Muitas vezes, uma simples gripe pode levar uma delas direto
ao CTI. Os relatos são sempre recheados de emoção, com um espírito
de esperança e sentimento de se estar indo para mais uma batalha. Elas
ficam uma na torcida da outra, mandando desejos de melhora, muitas
vezes religiosos e vibram muito quando elas têm alta. Cada etapa vai
sendo mostrada, com fotos e vídeos inclusive.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 35

Ainda há mães pobres e invisíveis, que têm filhos com problemas


da mesma ordem, mas sequer têm diagnóstico fechado, por não terem
acesso aos exames ou a um atendimento decente no sistema de saúde.
Um caso atendido pela Rede Compromisso me serviu de exemplo.
Uma avó que cuida da neta, moradora de uma das regiões mais pobres
da cidade, relata que só na rua dela tem mais, pelo menos, três casos
de crianças com crises convulsivas que nem sequer estão no rol das es-
tatísticas da saúde. São pessoas invisíveis à sociedade, que têm doenças
invisíveis ao sistema de saúde público insensível.
Mesmo as famílias com um pouco mais de poder aquisitivo re-
latam ter que vender bens para poder comprar o óleo importado. Um
tratamento pode chegar a quinze mil reais por mês. Isso deveria ser
custeado pelo SUS, que não o faz, num roteiro surrealista. A impor-
tação, além de burocrática, é caríssima. A ANVISA permite importar,
mas não permite o plantio e pesquisa no território nacional. Não há
resposta para dar quando se pergunta o porquê de algo poder ser im-
portado, mas não pode ser produzido. Recorrer à justiça também não
adianta, porque, mesmo como mandados de segurança, mesmo com
ordem de prisão de secretário, não se consegue a liberação de forma
alguma. Raros são os casos em que se conseguiu. Mesmo assim, é um
caminho árduo e de muita frustração para quem tem a existência já di-
ficultada. Esse é o motivo principal por que a ABRACannabis luta pelo
direito ao cultivo individual e coletivo.
Não bastando toda a dificuldade que essas famílias passam e o
preconceito geral que elas experimentam do olhar ignorante perante
o problema dos filhos, eles ainda são desrespeitados por quem deveria
acolhê-los com olhar mais tenro. Infelizmente, ainda poucos são os
médicos que se interessam em se informar sobre o uso da maconha
como remédio para crise epilética. Quase toda família tem um relato
de um atendimento no qual, no momento em que se questiona o uso
da maconha, o médico se coloca na posição oposta à do seu juramento
sobre o cuidar do enfermo, chegando a ameaçar a família, dizendo que
se os pais insistissem em maconha, eles parariam de atender a criança,
por exemplo. Outros dizem que o uso medicinal é mentira. Dizem que
36 Lauro R. Pontes

é apenas interesse dos maconheiros, que querem a liberação e que são


contra, usando como argumento todo o arcabouço já dito aqui sobre
os mitos ensinados. Isso significa que a desinformação e o preconceito
são presentes, também, em quem deveria dar todo o apoio e fazer uso
de todos os recursos existentes quando o que existe não funciona. A
própria sociedade em geral, ao ouvir a palavra maconha, já se recusa
a debater. Existem nas próprias famílias pessoas que se afastaram por
conta do uso do extrato de maconha pelas crianças.
Todas as ONGs do país que fazem o papel da Rede Compromisso,
mas que cobram mensalidade para fornecer o óleo, não mudam a nar-
rativa comum a todas as mães. Os áudios que ouvi, relatando as doen-
ças e o grau de melhora com o uso do óleo do extrato de maconha, são
impressionantes. As crianças, em sua maioria, estão na fronteira entre
a vida e a morte. O óleo, nas palavras de uma mãe da Paraíba: “ressus-
citou meu filho, permitindo a ele fazer coisas que nunca fez na vidinha
dele...”. Nas narrativas das histórias, mudam os personagens e os tecni-
cismos das doenças, mas o restante é muito semelhante: quando o óleo
é dado à criança, ela floresce, renasce num sopro de esperança e tem
aumentada sua qualidade de vida. Isso é feito na clandestinidade, com
óleos feitos de forma muito artesanal, sem controle farmacológico al-
gum e que, mesmo assim, surtem efeito enorme. Podemos vislumbrar,
a partir disso, como seria se a maconha pudesse ser pesquisada sem os
interesses comerciais atrapalhando. O futuro, daqui para frente, pode
ser brilhante ou obscuro. Tudo fica à mercê da caneta da lei.
Em janeiro de 2017, a Associação ABRACE, que faz e distribui,
com a ajuda de uma mensalidade, o óleo da maconha chamado “Es-
perança”, lançou na web uma rádio online, com relatos de familiares
sobre o efeito do óleo nas suas crianças. Eles resumem o sentimento e a
emoção que me tocou e motivou a escrever. É emocionante ouvi-los. A
dor e o grito que apelam pelos filhos dessas mães que lutam para cuidar
de crianças necessitadas de uma saída para diminuir seus sofrimentos
é a mosca na sopa da política proibicionista. Essa mesma associação
foi a primeira a conseguir autorização judicial para produzir o óleo de
forma coletiva, como associação.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 37

No final de 2016, quando o assunto tomou a grande mídia, por


conta de um trabalho de intensa divulgação e a obtenção dos habeas cor-
pus que permitiam o cultivo, a sociedade, em pequena proporção, pas-
sou a admitir que a maconha pudesse ser usada como remédio. Admitia,
no entanto, apenas para isso, sem nenhuma vinculação à liberação ou à
descriminalização. Há inclusive alguns pais de outras associações pelo
país que defendem isso: afastar a pesquisa científica da figura do uso não
medicinal. Desconsiderando a estrutura fitoterápica da planta, o efeito
comitiva e mantendo o preconceito instituído. Por outro lado, também
colhi relatos de pessoas que romperam seus paradigmas, informando-se
e entendendo o lugar da maconha na história e mudando seus conceitos
e valores, saindo de críticas ao ativismo pela causa. Junto aos religiosos
mais conservadores também há um movimento de aceitação do desen-
volvimento do remédio, mas sem acatar o uso não medicinal.
Há casos em que a criança foi desenganada, com expectativa de
vida reduzida ou a morte muito próxima como único caminho inevi-
tável. — “Não há uma mãe que não pensou em dar fim à própria vida
perante o desespero...” — foi uma das frases que ouvi nas oficinas de pais
de que participei. Ter ido ministrar o curso de história e cultivo em São
Paulo me permitiu ouvir uma das histórias mais bonitas e inspiradoras
desse trabalho. Uma senhora, que passou a cuidar do sobrinho-neto, que
hoje tem dez anos, requerendo a guarda dele. Samuel ou Samuka, apeli-
do carinhoso pelo qual ele é chamado, e sua mãe de amor Cleuza cons-
truíram uma relação de confiança e afeto que enchia os olhos de quem
os conhecia ali, naquele grande teatro onde foi ministrado o curso. Seu
olhar era de quem parece já ter sofrido muito, pela doença e pela carên-
cia que foi atenuada pela forma tão doce com a qual sua mãe o tratava.
Em uma conversa rápida, ela me contou que teve uma irmã viciada em
cocaína e presa, grávida de dois meses. Quando a filha dessa irmã nasceu,
ela a trouxe para casa até que ela saísse da prisão. Ela acabou morrendo
na cadeia quando a menina tinha três anos, então sua irmã a criou.
Essa sobrinha é a mãe do Samuel, a quem nunca se aproximou
afetivamente, a quem nunca foi vinculada. O pai o abandonou e próximo
de ele completar dois anos, a mãe, que já não era próxima, surtou e foi
38 Lauro R. Pontes

embora para outro estado, viver outro relacionamento. Assim, ela o en-
controu com a resistência baixa, muito mal cuidado, com sinusite, magro
e debilitado. Poucos dias depois, ele desenvolveu uma febre pela manhã
e, à noite, entrou em coma, vítima de um vírus que ocasionou uma en-
cefalite, deixando ele em coma por quarenta dias e o fazendo acordar
surdo-mudo e sem os movimentos. Ao fazer um exame para avaliar o
nível de audição, ele foi anestesiado e ministraram a medicação errada.
Em vez de cinco gotas do medicamento infantil, deram a ele cinco mili-
litros do medicamento para adultos. Por isso, ele ficou mais uma semana
em coma e, como sequela, restou a epilepsia refratária de difícil controle.
Nenhuma medicação até hoje funciona para crises que são graves e que
o fizeram perder vários dentes, ter cortes e pontos por cair durante as
crises. Por muito tempo, sua tia-avó procurou alternativas, pensou até
em procurar um índio para encontrar uma planta que pudesse ajudar.
Passando noites à procura na internet, em todas as pesquisas, ela chegava
à maconha. Muito receosa, mas vendo Samuka morrendo aos poucos, ela
entrou em contato com o um grupo que fornecia o óleo em São Paulo.
Nas primeiras gotas, ele teve uma grande melhora, que, obviamente, não
era a cura, mas que proporcionou, aos pouquinhos, um grande alívio, em
conjunto com as terapias de recuperação dos movimentos e cognição.
Ela foi convidada a assistir ao nosso curso em parceira com a associa-
ção CULTIVE!, e ganhou de uma pessoa algumas sementes e clones.
Aprendeu a plantar e cuidar das plantas. Ela me narrou essa história com
emoção aflorada e disse: “hoje tenho guarda definitiva e um processo de
adoção. Não sei quanto tempo mais vou viver, mas viverei por ele”.
A luta das mães acaba por dar a elas uma nova esperança e uma
sensação de estar fazendo parte de algo grandioso, gerando orgulho
e um sentimento de realização de algo maior. O casal brasileiro que
recebeu, pela primeira vez na história, o direito de plantar maconha
no território nacional, criou um precedente para que outros con-
sigam o mesmo direito. Todos os envolvidos acabam passando por
mudanças paradigmáticas internas profundas. Acompanhei as narra-
tivas desses familiares, em sua maioria as mães, que se autoapelida-
ram de “Mãeconhas”.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 39

Em julho de 2016, eu fui convidado pela Margarete Brito, pre-


sidente da APEPI, para participar de um grupo de apoio às mães e pais
das crianças com doenças graves. Essas reuniões ocorreriam no prédio
dela ou em algum outro lugar a partir de agosto. No primeiro mês, ela
me pediu para ceder a entrada de uma terapeuta que estaria presente
e trabalharia nessa reunião. Nosso contato foi muito interessante para
perceber e captar todo o aspecto emocional associado às questões e à
vivência experimental especial desses pais e mães com as crianças.
É quase óbvio que essas pessoas não possuem um espaço de de-
sabafo. Praticamente, nenhuma tem tempo nem sequer para poder
fazer terapia ou se autocuidar, nas palavras de uma das mães. Não se
pode fazer absolutamente nada fora de uma agenda extremamente
rígida e planejada, senão tudo desanda. Esse tipo de vida é muito es-
tressante e muito difícil de ser levada. Ter um filho ou uma filha com
algum tipo de doença, da qual não se tem ideia do prognóstico, é tor-
nar tudo muito mais difícil e doloroso. Finalmente, em se tratando da
narrativa de cada casal ou de cada mãe que estava lá, eram praticamen-
te as mesmas dificuldades. Falavam de como foi difícil a adaptação, de
como não se esperava que aquilo pudesse acontecer daquele jeito e
do quanto a doença foi uma surpresa. Porque tudo depende de como
a criança reage de acordo com os remédios. Relatavam sobre como é
doloroso ver o próprio filho ou a própria filha sofrendo daquele jeito.
A sensação de impotência que talvez seja, de todas as sensações, a mais
repetida na narrativa desses pais, no sentido de assistirem aos filhos
daquele jeito. Para mim, que estava ali como observador, doía muito
e me fazia, de certa forma, mal pensar que eu tinha um bebê recém-
-nascido e que, por enquanto, não tinha passado por aquilo. Isso me
dava tranquilidade e, ao mesmo tempo, um medo danado de aconte-
cer alguma coisa com ele no futuro, visto que em algumas pessoas, as
doenças se desenvolvem a partir dos três, quatro anos de idade. Exis-
tem relatos de crianças que até completarem essa idade viviam nor-
malmente, sem nenhum tipo de problema. A partir daí começou um
desencadear de crises e uma perda de desenvolvimento cognitivo. As
doenças acabam aparecendo e a tentativa de diagnóstico, ou de algum
40 Lauro R. Pontes

entendimento do que está ocorrendo, vai se fazendo. Então, todo o


sacrifício e desespero são incutidos nas famílias. Tudo isso piora muito
no caso das famílias menos assistidas. Há famílias que têm recursos fi-
nanceiros, o que torna a vida menos dificultosa, mas não significa que
a torne fácil. Ainda há, entretanto, aquelas famílias que, além de tudo,
não têm recursos e vivem com essas crianças.

Relatos de casos
Escolhi, em meio a tantos casos que pude acompanhar, três his-
tórias que considero simbólicas, pois foram escritas com palavras dos
próprios que vivem a situação da dificuldade de saúde. São os dois
casos de famílias que conseguiram receber o habeas corpus que permite
o autocultivo do remédio de seus filhos: a da Margarete, do Rio de Ja-
neiro e o da Cidinha, de São Paulo, além do relato do Gilberto Castro,
portador de esclerose múltipla e usuário medicinal de São Paulo. A
transcrição é integral e a fala está contornada para dar ciência de que a
escrita é das pessoas que gentilmente me relataram o caso e autoriza-
ram sua publicação no texto.

Sofia, Margarete e Marcos

Hoje, minha filha Sofia tem 8 anos, mas, com apenas um mês de
idade, ela teve a primeira crise convulsiva. Foi quando se iniciou para
mim um dos maiores sofrimentos da minha vida, que era dar drogas
para aquele bebê tão pequenininho, tão delicado, tão lindo.
Eram drogas e mais drogas, todas lícitas, de tarjas preta, verme-
lha, amarela, de todas as cores. Em algumas épocas, a Sofia tomava cin-
co anticonvulsivantes de uma só vez. Um dos efeitos mais brandos des-
ses medicamentos era a perda de campo visual, sem volta, irreversível.
As drogas eram tão fortes que a médica dela dizia que se ela
mesma tomasse a metade daquela dosagem, dormiria três dias sem
parar. Ela nos explicava que o uso de drogas é questão de custo-be-
nefício. Sofia, no entanto, além de dopada, continuava a ter o mesmo
número de crises convulsivas. Logo, minha filha tinha apenas o custo
que, diga-se de passagem, era muito alto.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 41

Eu e o pai dela nunca caímos na zona de conforto. Acho impos-


sível que alguém em situação semelhante fique indiferente.
No final de 2013, pelas redes sociais, descobrimos que maco-
nha também poderia ser remédio. Não pensamos duas vezes, parece
piada, mas traficamos. Fomos para as ruas junto com dezenas de ou-
tras famílias, gritamos e conseguimos regulamentar o acesso à maco-
nha para uso medicinal no Brasil, mas somente através de produtos
importados. É preciso avançar mais!
Hoje, junto com o extrato de maconha, Sofia toma apenas um
anticonvulsivante em dose muito baixa. Ela está ótima, menos do-
pada, sorri mais, está presente, com menos hipotonia e quase sem
crises. Enquanto a maioria das famílias está preocupada com a escolha
de universidades nas quais seus filhos poderão estudar ou com quan-
tas línguas eles irão aprender, nós só queremos que nossos filhos não
tenham convulsões, que eles possam sorrir, olhar e comer. E nisso não
pode haver polêmica.
Com a repercussão do uso medicinal da maconha, recebi e re-
cebo inúmeras mensagens de pessoas em estado extremamente vulne-
rável, que precisam da maconha para amenizar seus sofrimentos. Isso
me faz mais forte para continuar lutando, além de ressignificar Sofia na
minha vida. Isso significa dizer que tudo se explica quando uma situa-
ção que parece ser um problema se torna uma ferramenta de solução
para centenas de outras pessoas. É quase um prêmio para mim.

Clárian, Cidinha e Fabio


Clárian Felício de Carvalho, nascida no dia 8 de maio de 2003,
apresentou sua primeira crise convulsiva aos cinco meses e meio de
idade. Eu nunca tinha visto uma convulsão antes. Foi uma crise severa,
levando-a a um mal súbito com parada respiratória. Foi traumatizante.
Começamos a viver um dia de cada vez. Foi uma crise atrás da
outra, internações frequentes com status epiléticos e paradas respirató-
rias. Passamos a viver num hospital. Ouvíamos de médicos que minha
filha não andaria e nem falaria. Sentimo-nos na escuridão, sem ter um
diagnóstico ou a esperança de uma possível cura.
42 Lauro R. Pontes

Seu diagnóstico só foi concluído em dezembro de 2013, pela


UNICAMP, quando ela tinha dez anos. Foi indicado que minha filha
tinha síndrome de Dravet, uma mutação genética no gene SCN1A. A
doença consiste em uma forma severa de epilepsia, caracterizada por
convulsões contínuas e de difícil controle, com mais de uma hora de
duração. Os vários tipos de crises levam ao status epilético com imi-
nente risco de morte súbita. A síndrome de Dravet se caracteriza como
severa nem sempre pela quantidade de crises, mas pela intensidade das
crises, podendo ser fatal. A maioria das crianças com a mesma síndro-
me não chegam à adolescência. A Cannabis está mudando essa realidade.
Clárian teve grandes atrasos cognitivos e motores, com grande es-
forço para começar a falar e andar. Durante esse período, ela foi tratada
com coquetéis de anticonvulsivantes como Gardenal, Trilepital, Depa-
kene, Valpakene, Keppra, Frisium, Topiramato e outros. Sempre tentá-
vamos substituir um pelo outro ou sempre aumentávamos a dose, o que
mudava sua personalidade e fazia com que ela se comportasse como se
não estivesse presente, com um olhar sem contato com o ambiente.
Os efeitos colaterais dos anticonvulsivantes são horríveis. Eles
causam irritabilidade, sonolência, deixam-na sem capacidade de fa-
lar e entender, provocam flacidez muscular e geram refluxo gastroe-
sofágico. Fazendo tratamento com medicamento contínuo por dois
anos: apneia no sono, intoxicações e outros graves efeitos colaterais
resultaram em onze pneumonias, duas atelectasias, nódulos na ti-
reoide — tratados, até hoje, com o hormônio Levoid — e inúmeras
paradas respiratórias. Quase a perdemos várias vezes. Clárian ficava
doente o tempo todo. Foram inúmeras internações prolongadas que
nos separavam da família. Meu outro filho só nos via aos finais de
semana, dentro de um quarto de hospital.
Criança com síndrome de Dravet não transpira. Eu tinha, por-
tanto, que andar sempre com uma garrafa de água para molhar seu
pescoço, cabeça, braços e nuca, a fim de evitar uma crise generali-
zada, pois, como não tinha o equilíbrio da temperatura do corpo, a
ausência da sudorese também desencadeava as convulsões.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 43

O Trilepital desencadeava mais crises generalizadas, o De-


pakene deixou a minha filha sem andar por quase um mês. Ela
apenas se arrastava. Devido a uma intoxicação no fígado e rins, que
resultou em comprometimento renal com risco de evolução, ela
precisou de outro tratamento com uso contínuo de antibiótico por
um ano. Tivemos de mudar as drogas muitas vezes, até chegarmos a
uma combinação de quatro anticonvulsivantes: Keppra, Gardenal,
Frisium e Topiramato, que, após oito anos de tentativas frustradas,
reduziram um pouco as crises. Esses medicamentos, no entanto,
deixavam-na dopada e seu desenvolvimento ficava estacionado.
Além disso, havia o risco de reações adversas, que podem abar-
car cegueira, distúrbio de personalidade, falta de concentração,
confusão mental, problema cognitivo, agressividade, autoagressão,
alteração na marcha, embotamento das emoções e depressão res-
piratória, complicações renais, falta de interação social, falta de
equilíbrio, ausência de sudorese, entre outras.
Tenho buscado incansavelmente, por dez anos, uma solu-
ção para tirar minha filha do risco de morte, tentando obter
alguma qualidade de vida para ela e um alívio para nossa família
que sofre junto.
Em meados de 2013, numa das buscas por alguma luz, quan-
do eu não aguentava mais ver a epilepsia roubar a infância de minha
filha, assisti a uma matéria sobre Charlotte Figi. Ela era uma meni-
na do Estado do Colorado, nos Estados Unidos, que na época tinha
seis anos de idade e a mesma síndrome de minha filha. Charlotte
Figi estava sendo tratada com a Cannabis medicinal. A reportagem
mostrava o antes e o depois do estado da menina. Os resultados
eram surpreendentes.
Foi como uma luz cheia de esperança para mim, pois eu me
deparava com o primeiro caso de melhoria incrível da síndrome
de Dravet. Antes, a maioria dos casos levava ao óbito. Minha vida,
desde o nascimento de Clárian, era cercada pelo medo de minha
filha morrer.
44 Lauro R. Pontes

Empenhei-me na busca desse óleo de Cannabis medicinal. Entrei


em contato com Realm of Caring, Fundação dos Stanley Brother’s, os
americanos responsáveis pela produção do óleo que estava salvando a
Charlotte. Depois, entrei em contato com Revivid, outra empresa ame-
ricana que hoje tem fornecido óleo de Cannabis para crianças no Brasil.
Fui ao IV Simpósio de Cannabis Medicinal CEBRID UNIFESP com o Dr.
Elisaldo Carlini, em São Paulo. Entrei, também, em contato com Dra.
Tisha Siler — médica pediatra da Califórnia que administra o óleo de
Cannabis em crianças. Busquei informações com Dr. Franjo Grotenher-
mann — médico alemão estudioso em Cannabis —, com a GW Pharm
— laboratório que fabrica epidolex —, com a ANVISA, solicitando o
direito ao cultivo, com CREMESP, com Dr. Drauzio Varella, com o SE-
NAD, com o senador Cristovão Buarque, com a Fundação Daya e Mama
Cultiva. Fui até o Chile com o apoio do Cesec e participei da oficina de
extração do óleo de Cannabis. Contatei advogados, neurocientistas do
Brasil — como o Renato Filev e o Renato Malcher —, ativistas, fárma-
cos, neurologistas — como Dr. Eduardo Faveret e Dra. Maria Teresa
Chamma. Levei minha filha ao Rio de Janeiro para participar de uma
pesquisa de célula-tronco com minicérebro para síndrome de Dravet no
Hospital D’or com Fabrício Pamplona e Steve Rhens. Meu marido par-
ticipou de cinco audiências públicas no Senado da SUG8 para falar sobre
a Cannabis Medicinal. Enfim, bati em todas as portas que pude encontrar
após inúmeras buscas por um alívio.
Comecei a ler várias matérias e artigos sobre o cannabidiol, bus-
quei muitas literaturas sobre o assunto e consegui importar ilegalmen-
te uma seringa de óleo de Cannabis, rico em CBD, em abril de 2014,
produzido pela empresa norte-americana Hempmeds. O resultado que
obtivemos foi maravilhoso. O que antes era impossível aconteceu: Clá-
rian passou os primeiros dezessete dias sem nenhuma crise. No entanto,
quando soube que, pelo peso e idade de minha filha, eu teria que usar
três seringas por mês para mantê-la sem crises, com o custo de quinhen-
tos dólares cada uma, descobri que seria impossível manter a saúde e a
qualidade de vida de minha filha, devido a minha realidade financeira.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 45

Eu não dispunha de US$ 1.500 por mês para manter a Clárian


sem crises convulsivas.
Foi nessa época, após terminar o óleo de Cannabis rico em CBD
importado dos Estados Unidos, quando minha filha voltar a convul-
sionar, que, felizmente, conheci a “Rede”, um grupo filantrópico se-
creto, que faz a doação do óleo de Cannabis para a minha filha. O óleo
é produzido artesanalmente pela Rede, a partir das flores da Cannabis
da cepa Harletsu e THCA, na qual há maior concentração de diferen-
tes cannabinóides, o que faz com que ocorra o chamado “efeito comi-
tiva” - ação em vários sistemas do organismo. Ele é produzido com a
cepa mais indicada de Cannabis, a HarleTsu, que é uma variedade da
planta com maior teor de Cannabidiol e com THCA. Clárian usa o
óleo artesanal há dois anos e um mês, sempre doado, sem atrasos nas
entregas e na quantidade suficiente para seu peso e crescimento. As
mudanças aconteceram como um milagre, fazendo a minha filha se
conectar com o mundo e melhorando a vida da família inteira. Cada
detalhe era um motivo de celebração pela vida de minha filha. Obti-
vemos os resultados extraordinários relatados a seguir:
- Redução em 80% a 90% das crises: passou de dezesseis crises
convulsivas a uma ou duas por mês;
- Nenhum efeito colateral, a não ser sono e choro na fase de
adaptação ao remédio;
- Transpiração pela primeira vez, aos onze anos de idade, após
três meses de uso do CBD;
- Melhoria incrível de sua cognição (de acordo com o relatório
da psicóloga que a acompanha há 7 anos). Hoje, minha filha conversa
normalmente;
- Melhora no equilíbrio. Hoje, ela sobe escadas sozinha e con-
segue correr sem ser interrompida por um tombo no primeiro passo;
- Capacidade de pular, o que antes era impossível. Ela obteve
melhora dos tônus musculares;
- Ausência de apneia do sono. Hoje, ela dorme profundamente
durante a noite;
46 Lauro R. Pontes

- Maior foco na escola;


- Melhora no comportamento autista proporcionado pela sín-
drome (autoagressão, agressividade conosco e outras pessoas, pouca
interação social, comportamento repetitivo);
- Construção de frases dentro do contexto da realidade do que
se passa;
- Melhora na marcha;
- Interação com os colegas da escola;
- Início de alfabetização na escola, o que antes era impossível;
- Capacidade de montar um quebra-cabeça de até sessenta
peças.
Todas essas melhoras foram percebidas pela psicóloga que a
acompanha há 6 anos, pela professora e diretora da escola. Consegui-
mos diminuir quase 50% das doses dos medicamentos convencionais.
Eu só queria ter conhecido essa planta há onze anos. Isso
poderia ter evitado sequelas que minha filha irá carregar por toda
uma vida.
Sr. Juiz, eu, como mãe, peço a sua ajuda para que minha filha
possa ter uma vida digna e ser feliz, pois a forma mais cruel e desu-
mana de se tratar o ser humano é com o preconceito, a intolerância e
a rotulação das pessoas.
Eu tive duas opções: mudar-me para outro país para salvar a
minha filha com a cepa correta da maconha ou usar ilegalmente no
Brasil. Por questões financeiras, aquela seria impossível. Restou-me,
portanto, optar por manter a minha filha viva ilegalmente, o que já
era melhor do que perdê-la legalmente.
Depois de onze anos de incansáveis buscas por um alívio,
encontrei-o. Por isso, só quero ter o direito de escolher o melhor
tratamento para minha filha, com a cepa correta da Cannabis e com
o autocultivo.
Maria Aparecida Felício de Carvalho (mãe da paciente Clárian
Felício de Carvalho, portadora de Síndrome de Dravet, paciente de
Cannabis Medicinal feito artesanalmente no Brasil.).
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 47

Gilberto Castro

Meu nome é Gilberto. Tenho 40 anos e esclerose múltipla com-


provada em 1999 (EMRR) cid g35.
Antes da doença, eu não era maconheiro convicto. Já tinha fu-
mado um ou outro, mas eu gostava mesmo de whisky, cerveja e chur-
rasco. Após o primeiro surto, em 1999, que me deixou muito mal e
por muito tempo, uma vez que não procurei logo ajuda médica, tive
as sensações insuportáveis dessa doença. Mesmo que a enfermidade
seja controlada, fica-se ainda muito mal e por muito tempo. Demo-
raram alguns anos até que eu conseguisse ficar razoavelmente acos-
tumado com as limitações de coordenação e de sensibilidade que me
foram impostas.
Neste meio tempo, em todas as visitas ao médico, relatava para
ele todos os sintomas, até que um dia um deles olhou para mim de
uma forma diferente, inclinou-se e disse em voz baixa: “fumar um
baseadinho vai te ajudar”.
Depois disso, comecei a fumar direto! Assim, houve a trans-
formação. Ficou muito mais fácil aguentar os efeitos e as sensa-
ções da doença, que eram a dormência completa no corpo, mo-
vimentos estranhos e dessincronizados, formigamentos, tonturas
e sensações de pressão em lugares aleatórios pelo corpo, calor e
frio. Quando eu fumava, a dormência não alterava muito, mas mi-
nha pressão arterial foi amenizada, as mudanças de temperatura,
alteradas, as tonturas pararam e os formigamentos ficavam mais
suportáveis. A vida ficou colorida de novo e, apesar de estar sem
trabalhar por não conseguir mexer no mouse, comecei a dar aulas
de computação gráfica.
Foi aí que comecei a melhorar. Depois de um bom tempo, sem
nenhum outro surto, voltei a trabalhar e estabilizar minha vida, na
medida do possível. Permaneci sem surtos. Seis anos depois, eu e a
medicina achamos até que eu tinha me livrado da doença. Por conta
disso, fiz uma tatuagem, devido a uma promessa feita a mim mesmo
no hospital.
48 Lauro R. Pontes

Eu morava em São Paulo, mas pelo stress, correria e baixa quali-


dade de vida, resolvi, junto com minha ex-esposa, migrar para o Mato
Grosso do Sul, onde foi bem gostoso de viver.
No entanto, assim que que cheguei, após aproximadamente um
ano sem a maconha, infelizmente, em 2009, tive outro surto. Isso acon-
teceu porque eu não conhecia bem a região e não sabia onde encontrar
a planta. Como eu já tinha conhecimento suficiente da minha condição,
corri para a farmácia e me automediquei com cortisona. Depois disso,
fui para o médico. Esse surto não gerou muitas sequelas, pois me tratei
rápido. Acabei conseguindo o esquema de um beck por ali e tudo se es-
tabilizou. A única sequela que tive foi uma soma a um problema que eu
já tinha, uma moderada perda de movimentos da minha perna direita.
Tive mais um tempo de paz. Em 2011, mudei-me novamente
para outra cidade, maior e com mais infraestrutura. Novamente, fiquei
sem a maconha. Até então, eu ainda não tinha ligado os fatos.
Como um relógio, depois de mais ou menos sete meses sem a
erva, em agosto, houve outro surto. Mediquei-me rapidamente mais
uma vez e fui ao médico, que nesse momento me receitou um remédio
que só podia ser adquirido por meio do Estado. Infelizmente, as lesões
físicas, nessa ocasião, foram maiores. Fiquei quase sem andar e me sen-
tia muito mal com todas as fortes sensações da doença, que são todas
as que eu sentia anteriormente: mais espasmos, dores, choques insu-
portáveis, tontura, visão dupla e turva, e uma lista gigante de sintomas
diferentes e horríveis.
Nesse surto, já com mais experiência, depois de medicado, fui
o mais rápido que pude atrás da Cannabis. Agora, a diferença de estar
com e sem a planta é gigantesca. A Cannabis faz parar completamente
os espasmos e os choques, principalmente um que sinto no pescoço,
que se assemelha a uma machadada. Considero que esses dois sinto-
mas são os piores. Com a Cannabis, eles somem como mágica. Parece
que nunca existiram. Eu posso dormir bem, e todas as outras sen-
sações, que não somem, são bastante aliviadas, o que torna a minha
vida social muito fácil.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 49

Parece que Cannabis foi feita para esclerose múltipla. É impres-


sionante! No primeiro trago, a alegria e a paz voltam. Esse último
surto está ruim de superar, mesmo agora que já se passaram alguns
anos, mas vou seguindo, uma vez que estou andando e trabalhando.
Ninguém comenta nada sobre isso, mas existem estudos que vão
além do que temos divulgado em nossas mídias. Já confirmei a confia-
bilidade deles com um amigo neurocientista. Alguns desses estudos,
por exemplo, estão no site http://www.cannabismd.net/. Na parte
dedicada à esclerose múltipla, há várias pesquisas. Uma delas compro-
va que a Cannabis ajuda a diminuir a frequência e a intensidade dos sur-
tos da esclerose múltipla do tipo recorrente remitente, o mesmo do
qual eu sofro. Só existem provas de benefícios dessa planta, que nunca
matou ninguém. O que posso dizer? Legaliza, por favor e logo! Agra-
deço a todos que vivem e trabalham comigo, aos amigos do Growroom,
que foram e estão sendo muito companheiros nessa época difícil.
FLORAÇÃO – A vida no campo – tecendo as interações e
observando as controvérsias

“Quando entrar setembro


E a boa nova andar nos campos”
Sol de primavera – Beto Guedes

A flora ou floração é o período em que a planta abrirá suas flores.


Tudo aquilo da força que foi potencializada na Vega agora fluirá para
o crescimento da flor. Conhecida, também, por Bud ou camarão, é a
flor que contém as substâncias que produzem efeitos medicinais. Aqui
a planta vai para um ciclo de luz e outro de escuridão. Nessa etapa do
texto, floresce também toda a experiência por mim vivida. É nessa fase
que as emoções serão traduzidas em palavras, numa tentativa de conse-
guir passar o turbilhão de vivências, sentimentos e transformações que
vivi durante essa pesquisa.
Os primeiros encontros e a aproximação com o grupo Rede Com-
promisso foram lentos e graduais, algo esperado, tendo em vista as ques-
tões de segurança e exposição dos membros. Depois de ir ao encontro
do Emilio em seu escritório e com minhas credenciais a negociação não
foi difícil para me embrenhar no grupo. A internet, com as redes sociais
facilitou também ele me conhecerem e confiar. Ficou muito óbvio que
eles me pesquisaram antes de abrir seus encontros à minha presença. Aos
poucos, aprendendo a controlar meu ímpeto pessoal de fazer apartes em
conversas alheias, fui conquistando a confiança deles pelo caminho pos-
sível que era começar a fazer parte do trabalho. O discurso de todos é
52 Lauro R. Pontes

uníssono: todo mundo deveria plantar para se conseguir o acesso gratuito


e universal, pois basta plantar para ter. Realmente, tendo podido acom-
panhar todo o processo com vários plantadores, tudo parecia ser mui-
to simples mesmo. A questão é que há uma relação direta com o tráfico
de drogas. Eles alegam que plantar faz com que não seja mais necessário
comprar dos traficantes, com isso não se participa da cadeia de eventos
que compõe o tráfico. Além disso, a qualidade e o tipo de maconha po-
dem ser controlados, sendo que na maconha oriunda do tráfico isso não
é possível e a qualidade é baixa porque há uma enorme distância entre a
produção e o consumo. Para cada enfermidade há um tipo de maconha di-
ferente. Plantando uma mãe pode descobrir qual a cepa que tem o melhor
efeito na enfermidade do seu filho. A maconha de um doente de dor crô-
nica não é a mesma de uma criança com convulsão de difícil controle. O
plantio também é visto como um ato de resistência legal, e é prerrogativa
para se obter o salvo- conduto de licença para plantar legalmente. Percebi
o tamanho do universo que estava me propondo a conhecer e, logo em
seguida, que eu teria que mergulhar na experiência de viver o ativismo.
Após alguns almoços combinei de visitar a casa do Ricardo em sua casa
na região litorânea fluminense. Conversamos por algumas horas e ali foi
meu primeiro mergulho na história de alguém envolvido na causa descri-
minalização, segue o meu relato da nossa conversa de um dia inteiro.Todo
relato descrito aqui foi autorizado por ele.
“Assombração só aparece para quem tem medo!”. Com essa frase,
Ricardo definia para mim que sua grande defesa era o ataque. Não temer,
enfrentar, responder a tudo sempre com a postura libertária de igualda-
de e de justiça para todos. Uma história de vida que resume bem o que
esse livro tenta transpor em palavras. Algumas coincidências em nossos
caminhos facilitaram a conversa. Ele veio de família pobre, era morador
de comunidades humildes do Rio e conheceu os múltiplos lados da vida
carioca. Seus caminhos foram percorridos à sua maneira até que ele se
tornasse o advogado ativo e combativo pela legalização do cultivo indi-
vidual da Cannabis. Sempre com muita firmeza, Ricardo me contou sua
história de vida e como a maconha foi se tornando para ele o remédio
capaz de proporcioná-lo a capacidade de se acalmar e de tocar, assim, sua
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 53

vida, ainda de forma agitada e enérgica, o que é perceptível em sua fala.


Sua origem era muito humilde e ele foi “criado pelas ruas”. O advoga-
do percebeu nas vivências, quando ainda não tinha sequer concluído o
Ensino Fundamental, que conhecimento é poder. O evento disparador
de mudança em sua vida foi um assalto, com trocas de tiro, que quase o
matou. Daí em diante, ele cursou o supletivo e, depois, trabalhou para
se sustentar enquanto frequentava a Faculdade de Direito. Hoje, Ricardo
é advogado antiproibicionista e membro fundador da REFORMA, um
corpo jurídico que tem vários advogados, que atuam na defesa gratuita
de plantadores e usuários nos quais o Estado exerceu seu poder da letra
da lei, em muitos estados do país. Deparei-me com a narrativa sobre o
preconceito racial associado à figura do usuário. Ele viu a segregação que
o policial aprende, no ciclo vicioso da pobreza e exclusão social, sendo
executada várias vezes. “Os primeiros a serem revistados são sempre os
negros. Ser negro é ser suspeito para a polícia”. Essa realidade é real-
mente norma não escrita no procedimento da polícia. Em outras duas
entrevistas com dois amigos que são da polícia militar do Rio, foi-me
confirmada essa orientação, com a justificativa “de que é assim porque é
só olhar para as estatísticas e ver que o perfil do criminoso ou o trafican-
te padrão é negro ou pardo” nas palavras de um dos policiais, que, por
razões óbvias, pediu para que eu não o identificasse. A imprensa reforça
isso fazendo distinções linguísticas claras quando um traficante de uma
região pobre é pego ou quando um traficante da zona sul, branco e de
classe média é preso. Isso fica notório no exemplo de duas manchetes de
um mesmo veículo de comunicação na internet, exibidas a seguir:
54 Lauro R. Pontes

Esses dois policiais também narraram que, ao abordar um usuá-


rio de maconha em flagrante, é seguido o protocolo. No entanto, mui-
tas vezes alguns delegados ficam irritados com a prisão de usuário,
pois isso apenas exige esforços e não significa nenhuma mudança. Esses
delegados consideram, portanto, que têm coisas mais importantes para
tratar. Outros fazem o oposto: discriminam e fazem todos os trâmites
para mandar, muitas vezes, um jovem que estava fumando um cigarro
de maconha para as nossas já superlotadas cadeias, colocando, assim,
esse jovem com tipos indistintos de criminosos. Felizmente, isso mu-
dou com a vitória do próprio Ricardo e de outros advogados que con-
seguiram formalizar o pedido de habeas corpus.
A narrativa do Ricardo seguiu riquíssima em histórias vividas por
ele ao longo da vida. Foi bastante proveitoso ter conversado por tantas
horas com ele. Suas experiências não só com a maconha, mas também
com a forma social com a qual os mais pobres são tratados pelo estado,
com a corrupção da polícia, com o mercado negro de armas, que é
o principal lucrador da manutenção da proibição, geraram nele uma
enorme revolta e foram as responsáveis pela sua postura atuante na
luta antiproibicionista. “É uma guerra em que o traficante entra com o
lucro; a polícia com o lucro; e a sociedade, com os corpos” - disse ele.
Dessa forma, ele se aproximou do movimento, estudando as
técnicas de plantio e engajando-se através do sitegrowroom. Ele narra
que o assunto da página na internet sempre foi sobre cultivo, mas as
perseguições atingiam os growers e se fez necessária uma ação de assis-
tência jurídica, que ele e outros advogados criaram. Nessa conversa,
entendi a origem do grupo Rede compromisso como algo que fluiu
entre os growers, que ao saberem da necessidade do remédio, perce-
beram que, além de ajudar, essa era uma forma original de ativismo e
conscientização, que hoje virou a bandeira da ABRACannabis. É justa-
mente no growroom que tudo teve origem, em que todos se conhece-
ram e passaram a trocar ideias e conhecimentos. O pai do Ricardo, que
sofria com o câncer, foi um dos primeiros a ser medicado com o óleo
para atenuar os sintomas da doença e ter um pouco mais de qualidade
de vida. Depois desse dia, todo passado na casa do Ricardo, consegui
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 55

entender os aspectos sociais que a rede também possuía. Eles se re-


uniam não só para produzir o óleo, mas também por conta de uma
forte amizade e companheirismo. Durante toda a pesquisa, as relações
e desentendimentos aconteciam. Alguns eram surpreendentes, mas a
maior parte eram de questões ideológicas sobre a postura do grupo
em relação ao que ocorria em outros cenários. A cada evento ocorrido
que merecia um debate no grupo, as discordâncias apareciam e eram
resolvidas conversando ou quando não havia consenso por votação. Às
vezes o clima ficava mais exaltado, a ponto de algumas vezes acontece-
rem discussões mais acaloradas e até rompimentos, mas como regra,
a máxima entre eles era sempre a mesma: “nós brigamos, discutimos
e quase chegamos a nos agredir fisicamente, mas depois fumamos um
e fica tudo em paz”, nas palavras do Ricardo, o Brave — seu apelido
junto ao grupo. A maconha tem uma espécie de arquétipo de apaziguar
os ânimos e num grupo multidisciplinar tão heterogêneo como esse,
observei um bom tato social de ambas as partes para tentar retornar a
harmonia nas relações depois de desentendimentos mais sérios.
A conversa com o Ricardo ampliou muito minha percepção so-
bre o tema. Passei a entender o tamanho da complexidade do assun-
to. Ele me orientou a fazer contato com o Pedro, outro grower, que
mora na região da grande Tijuca e que, em sua casa, faz a produção do
óleo medicinal. Pedi para conversar com ele e, se possível, ver uma
produção. Primeiramente, ele me recebeu para uma conversa de apro-
ximação em sua casa, de forma semelhante ao Ricardo, algo que era
esperado por mim, dado o tema e a necessidade de preservar sua se-
gurança. Ele me contou que tudo começou de forma muito artesanal e
amadora: engarrafar a erva, coá-la em pano, tudo muito experimental.
A aproximação com os outros cultivadores se deu nas conversas no
fórum do growroom, quando eles começaram a falar sobre o óleo arte-
sanal e um dos participantes citou o caso de uma menina que sofria de
epilepsia e que estava muito mal. Antes, eles se reuniam para festejar,
trocar experiências e fumar juntos. Nesse momento, isso continuava
existindo, mas um novo evento ficou para sempre marcado. Eles com-
binaram de fazer a primeira “panelada” na casa do Pedro: “fizemos dois
56 Lauro R. Pontes

vidros do óleo bem concentrado e mandamos para o Paraná, para essa


menina, que infelizmente veio a falecer depois”. Concomitante a isso,
começou-se a criar o discurso da Cannabis medicinal. Surgiu, então, a
história da Repense, que é uma campanha de comunicação, iniciada em
março de 2014, criada para incentivar o debate e a reflexão sobre o uso
medicinal de maconha no Brasil e do Ilegal, curta-metragem que, junto
com seu lançamento, iniciou a campanha. Então, eu mesmo concluí:
“todo mundo deve fazer uma coisa. Há pessoas aqui que plantam muito
bem. Devemos trabalhar juntos. Vamos montar uma rede”.
Daí em diante, eu, dois médicos e Emilio tivemos alguns encon-
tros em sua casa. Por meio de trocas de mensagens com outros culti-
vadores e da convivência, as arestas foram lapidadas. Um desses médi-
cos, que pediu para que seu nome não fosse divulgado, viajava muito
e estava estudando profundamente a questão medicinal da maconha.
Orientava, assim, as técnicas que aprendia nos cursos sobre o tema dos
quais participava em suas viagens internacionais. Ele, sozinho, custeou
os equipamentos mais adequados para aumentar a eficácia da extração
e a qualidade do produto final. Um item essencial, por exemplo, é
uma manteigueira elétrica utilizada coma finalidade de fazer extratos
oleosos. Ela cozinha o Kfir, que é a maconha extraída das flores, com
gelo seco e com o óleo veículo do extrato por doze horas e, ao final, o
remédio está pronto. Esse médico também ensinou técnicas de esteri-
lização dos materiais de uso. Os caminhos das vidas foram se cruzando
e, nesse ínterim, ele reencontrou uma amiga de faculdade, cuja filha
sofre com crises convulsivas. Isso o levou para as reuniões técnicas no
Instituto Estadual do Cérebro. Em paralelo a essa situação, a procura
pelo extrato aumentou. Ele percebeu que a Rede não conseguia dar
conta da demanda. Pelo fato de o remédio ser de uso contínuo, teria
de haver uma produção contínua. O grupo, portanto, vê a necessidade
de criar uma associação para lutar pelo direito ao cultivo. Pedro fala
também sobre a confusão entre vício e necessidade.
“Quem cultiva precisa da coisa, precisa da erva a um ponto de se dedicar
a estudar e cultivar. Isso não é vício. É uma necessidade. Eu, por exemplo, sempre
fingi que meu fumo era recreativo, mas, de fato, eu preciso. Tenho artrose, meu
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 57

lado esquerdo é todo comprometido, meu lado direito também: joelhos, tornoze-
los, ombros...Só o cotovelo ainda está bacana. E as costas também doem. Eu
não vivo tomando Tylenol, ando de bicicleta para cima e para baixo, faço meu
Pilates para lidar melhor com as dores e conheço pessoas assim, amigos que ti-
veram pólio igual a mim e as pessoas que vivem de remédio. Elas ficam trocando
experiências de uso desses medicamentos, e, às vezes, surgem falas do tipo: ‘ah,
eu já estou no Tramal’. Nunca tomei Tramal na minha vida. A maconha é meu
remédio, sem efeitos colaterais das alopatias”.
Nossa conversa seguiu e entendi ali que existe um mercado do
óleo, que é feito, muitas vezes, com prensado, ao qual, em casos de
emergência ou de angústia, muitas mães e pacientes acabam recor-
rendo. Com ele, aprendi também sobre a estrutura básica da planta,
como a flor produz as resinas que contêm os princípios ativos, por
exemplo. Passei, então, a entender melhor os métodos de extração.
Dei-me conta, além do mais, do tamanho do universo da maconha e
de seus detalhes, que só podem ser vistos de perto. Conheci o trico-
ma, “o segredo da planta”: uma espécie de gota paralisada no tempo,
com textura de resina, que é a morada do THC e do CBD, como na
figura a seguir: à esquerda, a flor inteira, e à direita, um zoom em
microscópio ótico numa parte da flor.

A flor da maconha à esquerda e um zoom ótico de 100x à direita, mostrando a estrutura dos “pelinhos”, que, na
verdade, são os chamados tricomas, fonte dos princípios ativos da planta.
58 Lauro R. Pontes

Aprendi, também, nessa conversa que cada pessoa vai encon-


trar sua dose e sua espécie de planta. A Harletsu, que é mais aceita
para o controle das crises convulsivas, às vezes não funciona para uma
determinada criança que pode se adaptar melhor a outra espécie das
mais de mil e novecentas que estão, até então, catalogadas. O assunto
sobre as amenidades e experiências dele com a planta estendeu mais
um pouco, até que me dei por satisfeito e fui embora. Aquela foi a pri-
meira de muitas visitas à casa do Pedro, pois em 2016 nossas reuniões
passaram a ser realizadas lá.
Em dezembro de 2014, foi marcado um evento da fundação
da AMA-ME, Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medi-
cinal, uma associação multidisciplinar, que tem apoio da Universi-
dade Candido Mendes, composta por vários membros do CEBRID,
pessoas que participaram do filme “Ilegal” e o grupo da Rede Com-
promisso. Fui convidado e compareci. Assinei como fundador. Lá,
conheci a Naiara e o Pedrinho. Esse foi meu primeiro contato real
com crianças afetadas por uma doença que tem convulsão como sin-
toma. Alguns pontos de conflito com a visão da Rede Compromisso
apareceram já no dia da fundação: a discussão sobre o isolamento
dos componentes da planta, a forma de aproximação com a política
em Brasília do casal protagonista do filme ilegal e outras discordân-
cias. A postura de sempre promulgar o cultivo individual e coletivo
do grupo entrou em conflito.
Depois do evento, aconteceu algo surpreendente. O grupo Rede
compromisso, capitaneado pelo incansável Ricardo, “legalizou” no jar-
dim de inverno envidraçado, cheio de plantas e aberto para o céu, que
existe no último andar do prédio onde estava acontecendo a reunião
de fundação. Vale ressaltar que, na gíria entre os maconheiros, falar “le-
galizar” significa fumar no lugar em que se está, no momento que for
burlando as regras. É o ato de começar a fumar, de acender o baseado.
Pareceu-me uma forma de protesto contra os rumos que a fundação da
AMA+ME estava tomando.
Afastei-me um pouco do grupo por conta das festas de fim de
ano e férias de janeiro. Ao retomar o contato, recebi outro convite.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 59

Como na fundação da associação houve uma cisão ideológica, a Rede


Compromisso e outros pais conseguiram reunir um grupo grande para
a fundação da ABRACannabis. Num domingo à tarde, eu voltei de via-
gem e fui direto para o Museu de Astronomia de São Cristóvão parti-
cipar dessa outra fundação, mais uma vez, como membro fundador. O
grupo aqui era outro, composto por alguns novos pesquisadores e toda
a Rede Compromisso, numa proposta de lutar para obter autorização
para o plantio coletivo, com isso constando na ata de fundação e no
estatuto da nova associação.
O grande diferencial era o de que a presidência da ABRACan-
nabis foi ocupada por uma mãe de criança com convulsão crítica, dei-
xando claro o movimento de união pela causa da descriminalização
do cultivo individual e coletivo. A partir dessa data, houve um perío-
do de calmaria no grupo, até que os membros mais ativos consegui-
ram alugar uma sala na Cinelândia, bem no coração do centro do Rio
de Janeiro. Novamente, fui avisado da primeira reunião. A sala estava
completamente vazia, com um ar- condicionado central defeituoso,
mas havia sido materializada a instituição ABRACannabis. Combinou-
-se que seriam realizadas reuniões toda semana, alternando os dias de
terça e quarta-feira, sempre à noite, às 18h30min.
Já na primeira reunião dita oficial, com ata e pauta de trabalho,
houve uma grande divergência entre duas mães: a presidente e outra
se estranharam por razões as quais não consegui entender ou elaborar.
O clima não ficou bom. Algumas semanas depois, a presidente renun-
ciou ao cargo e foi eleito, por aclamação, o Pedro, que já era quem
estava na organização administrativa da associação. Ele, que é enge-
nheiro elétrico e grower, conseguiu estabelecer uma rotina de grupos
de trabalho e responsabilidades.
A rotina das reuniões era sempre a mesma: marcada para as
18h30min, começava com a chamada das questões a serem discutidas
feita pelo Pedro. Depois de tudo deliberado, começava a parte sociore-
creacional da reunião, na qual quem era grower apresentava sua erva,
sempre num diálogo que, para mim, parecia outra língua, sobre as téc-
nicas de cultivo. Assim, comecei a entender os tipos e as técnicas de
60 Lauro R. Pontes

plantio, em conversas de muito conhecimento técnico sobre o cultivo.


As plantas tinham cheiros e qualidades muito diferentes das maconhas
que têm sua origem no tráfico. A diferença é gritante. Alguns falam
que da planta, cultivada, colhida e tratada, não parece sequer cheiro de
maconha, mas aquele, na verdade, é seu verdadeiro odor.
As reuniões se mantiveram por todo o ano de 2016, até que a
sala teve de ser entregue ao proprietário. Passamos, então, a nos reu-
nir na casa do Pedro, na Tijuca. O esquema continuava o mesmo, mas
agora a reunião passou a ter um caráter mais intimista. Eu procurava
chegar sempre mais cedo, para conversar e estar presente numa es-
pécie de reunião de bastidores. Muitas discussões ocorreram, o que
é comum num grupo tão heterogêneo, mas esses encontros fizeram
muitos projetos andarem. Tal qual o site do Growroom, que fez brotar a
semente que geraria a Rede Compromisso e posteriormente a ABRA-
Cannabis, as reuniões germinaram projetos importantes como a FAR-
MAcannabis e ratificou parcerias com a FIOCRUZ, a UFRJ, o Instituto
Estadual do Cérebro e a Farmanguinhos, que ganharam corpo e vulto
a partir desses momentos nas noites semanais. Afloraram, também, as
diferenças, as dificuldades e as limitações da atuação. Os pontos de vis-
ta discrepantes, os valores pessoais e morais, os conflitos sobre a ética
junto à planta, a ratificação prática de que nem a ABRACannabis e nem
a Rede Compromisso venderiam o óleo — assunto firmado nos seus
estatutos — criavam zonas interpretativas sobre outras associações e
pessoas que comercializavam o óleo, mesmo que como associações,
com direito, inclusive, a cobrança de mensalidades.
As reuniões eram por um aplicativo de comunicação via celular
e a pauta era, também, discutida e publicada ali. Um belo fruto que
surgiu das reuniões foi o curso de cultivo para as mães, pais e pacien-
tes. Da ideia de ensinar a plantar, criamos um curso com módulos que
abordavam todos os aspectos sobre a maconha. Eu fui convidado para
contar a história da maconha. Dela, fiz uma apresentação que visava
desmistificar a planta. Houve dois cursos, ministrados em finais de se-
mana de junho e julho de 2016. Eu sempre iniciava as aulas, que co-
meçavam às nove da manhã de sábado e iam até o fim da tarde. Depois
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 61

da minha parte, os dois doutores em antropologia, que escreveram


suas teses sobre maconha também falavam de suas experiências e dos
aspectos sociais e culturais da planta. Em seguida, Emílio e Ricardo
explicavam os aspectos jurídicos. Após o almoço, era mostrado todo
o aspecto biológico e botânico da planta, seguido, enfim, das técnicas
de cultivo. Formamos duas turmas cheias no Rio de Janeiro e conse-
guimos um feedback muito positivo dos participantes. Em dezembro
de 2016, fomos até São Paulo, para além da fundação da associação
coirmã Cultive!, ministrar o mesmo curso, que foi dado em dois dias
— sábado e domingo —, no teatro Sergio Cardoso.

As crianças com crises convulsivas têm seu sofrimento atenua-


do com o uso do um extrato feito de maconha. Pela proibição da ma-
conha, esse óleo é feito ainda de forma clandestina. Só é permitido
atualmente a importação. A matéria-prima e a tecnologia para pro-
dução do óleo artesanal advêm dos plantadores que sempre cultiva-
ram para eles mesmos, e detêm a expertise da produção desse óleo.
Eles já vivem na clandestinidade pois a maconha é também proibida
para uso recreacional. Os pais das crianças precisam da ajuda dos
plantadores que não têm autorização. O uso recreativo é inclusive
criticado por alguns pais, que precisam da ajuda de quem sempre
plantou na clandestinidade.

Essa controvérsia também aparece na questão da criação das as-


sociações, na primeira fundação que fui, no ato da fundação, já aconte-
ceu uma enorme discordância entre os membros pois um grupo queria
que o foco fosse apenas e tão somente na maconha medicinal. A alega-
ção dele é que pode-se fazer com a maconha o que se fez com o ópio e a
morfina: produzir uma droga controlada sem com isso descriminalizar
sua fonte de matéria-prima. O problema é que com a maconha não há
produção química. A planta tem o seu melhor funcionamento quando
usada de forma integral a partir do seu extrato completo de todos seus
componentes, sem isolá-los ou produzi-los quimicamente de forma
artificial. Há uma busca por aliados para a promoção do saber cientí-
62 Lauro R. Pontes

fico e também nas questões jurídicas. A pesquisa e o desenvolvimento


de remédios acessíveis se tornará muito mais fácil quando a proibição
acabar, o que favorece, e muito, o uso recreacional que não poderá
mais ser considerado crime. E não estou aqui entrando no mérito da
legalização ou regulamentação, que são outras instâncias que possuem
outros desdobramentos. Os objetivos das associações são distintos em
um primeiro momento. Mas o avanço de cada lado ajuda o outro. A in-
congruência da proibição, independente do uso recreacional ou medi-
cinal, fica cada vez mais evidente e insustentável, diante da necessidade
de se promover a pesquisa nacional.

Maio verde
O Rio de Janeiro abriga o primeiro evento do calendário na-
cional do “Maio Verde”, que celebrou a Marcha da Maconha em várias
cidades pelo país. Na véspera do dia programado da marcha, acon-
teceu a audiência pública na ALERJ sobre maconha. A “comissão do
cumpra-se!” promoveu o debate sobre prisões de cultivadores de ma-
conha. Advogados, ativistas e artistas que já foram presos por porte ou
plantio junto aos vereadores simpáticos à legalização debateram com
os delegados que trabalham com o tema diretamente em delegacias
especializadas. Um dos delegados, numa fala surpreendente, disse que
para a polícia o mais importante não é prender. Ele reconheceu que a
polícia não quer prender o usuário. No entanto, por conta da letra da
lei — um dos pontos é a modificação do texto da lei que não separa
consumidor-produtor do traficante —, ela fica sempre numa situação
complicada, em função das articulações com os mandatos de busca e
apreensão expedidos por juízes e prisões em flagrante (o “cumpra-se”
do nome da comissão). Um vereador atentou para o fato de que tradi-
cionalmente a repressão às drogas ocorre sobre as camadas mais pobres
da população, mas que a figura do cultivo caseiro estava levando ao
cárcere a classe média também. Um dos ativistas que cito no texto, na
parte das entrevistas, o advogado Ricardo, sugeriu que a ALERJ instau-
rasse as audiências de custódia que obrigam o estado a atender com um
juiz qualquer preso em até 24h.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 63

Após o debate, o grupo mais ativo politicamente se dirigiu a


um coletivo cultural para ajudar a preparar as faixas de protesto para
a marcha. Fui convidado a acompanhá-los. O lugar fica em Santa Te-
resa, que é um bairro bem boêmio e alternativo do Rio de Janeiro.
Era um terreno íngreme que abrigava o que parecia ser uma entidade
coletiva alternativa. Esse espaço é todo feito à mão, como uma oca
indígena feita com as fibras de bambu, integrado perfeitamente ao
verde que há em volta. Do lado de dentro, percebi que estava no
quartel-general da organização da Marcha da Maconha com os prin-
cipais ativistas da causa pintando cartazes e faixas, muitas pessoas
que eu não conhecia até então e que já estão nessa batalha há muito
tempo. Conheci ativistas conectados apenas à causa da liberação, sem
vínculos com a “Rede Compromisso”, embora os membros da Rede
sempre fossem totalmente ativos pela liberação. Obviamente, todos
fumavam muito e, inclusive, usavam equipamentos para vaporização.
Foi a primeira vez que vi esses equipamentos aqui no Rio. Era o mes-
mo instrumento que vi nos coffeshops de Amsterdam. Ele promove
a ingestão da maconha sem a combustão do fumo, o que faz toda a
diferença em termos de saúde, pois não leva o calor dessa combus-
tão para o pulmão e nem os outros gases que surgem em função da
queima, como no tabaco.
Todos estavam trabalhando felizes em clima de confraterniza-
ção. Após o término dos trabalhos, tudo foi arrumado e iniciou-se
uma “social”, na qual o álcool era mero expectador. Vi alguns barris de
cinco litros de cerveja, que não durariam dez minutos para um grupo
de cerca de vinte cinco pessoas, ficarem quentes e estarem pela meta-
de mais de quatro horas depois de abertos. A droga recreativa ali era a
maconha, que brotava das bolsas e bolsos de alguns dos participantes,
toda plantada domesticamente por cada um deles e que era coletivi-
zada sem nenhum tipo de posse ou limitação. Existia toda uma estru-
tura de sustentabilidade e de trocas coletivas de arte. Foi uma noite
muito interessante para perceber que existe todo um lado cultural e
emocional ambientado em forma de cultura alternativa. As pessoas
traziam falas, ideias e conceitos muito interessantes. Pude observar ali
64 Lauro R. Pontes

duas situações em uma. A primeira que me chamou atenção foi a de


como é uma reunião de amigos onde a principal droga ingerida não é
o álcool. Percebi o comportamento social das pessoas presentes muito
mais tranquilo, fluido, como se cada um ali estivesse com a guarda
abaixada, sendo existencialmente cada um em sua plenitude social,
num nível de leveza comportamental bem diferente do álcool. Ao
contrário do estereótipo, todos estavam em pé, conversando o tempo
todo, sem ninguém chapado a ponto de sentar ou dormir. A música
era baixa, bem som ambiente, numa altura ótima para se conversar. O
“jantar” foi nesse meio termo: pizzas feitas ali mesmo, numa cozinha
ao lado do espaço principal. Em um momento, alguém se lembrou
de levar um cigarro de maconha para os cozinheiros e lá outras con-
versas aconteciam durante o preparo das pizzas. O clima de respeito,
cuidado e harmonia era uma constante, mesmo quando, mais tarde,
chegaram outras pessoas, tudo fluía muito bem.
Observei que a maconha, como ferramenta de relacionamento
social, funciona de forma muito parecida com o uso do álcool em
bares, no que tange à desinibição social. Como conteúdo individual,
entretanto, o comportamento é bem mais brando do que a excitação
que o álcool provoca. É algo mais coletivo e parece que as pessoas
ficam mais afetuosas, conectadas ao outro e ao todo, muito mais tran-
quilas e leves, sem agressividade ou verborragia. No lugar da língua
enrolada para falar, um pouco mais de lentidão ao formar as frases e,
ocasionalmente, algum esquecimento do fluxo das ideias. Cabe aqui
o comentário de que o álcool e a maconha não são excludentes. Em
vários momentos, nos quais era possível, a interação dos dois acon-
tecia. O que percebi é que o consumo de um diminuiu o do outro,
assim como se combinam os efeitos, chegando meio que um ponto de
equilíbrio entre a excitação do álcool e a tranquilidade da maconha.
Claro que falo aqui de consumo médio, social e moderado. Nenhum
excesso traz boas experiências. Toda droga recreacional deve ser con-
sumida com moderação.
Pude conhecer e conversar com uma mulher que trabalha em
um dispensário de maconha na Califórnia. Keila é uma brasileira, que
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 65

morava e trabalhava em Miami, como tantos outros que moram por


lá. Com um filho americano para cuidar, recebeu a proposta de geren-
ciar um dispensário que tinha ótimos growers, mas que faltava alguém
para administrar. Ela conseguiu fazer o dispensário crescer e começou
a viver disso, mudando-se para San Jose, na Califórnia. Hoje, vive
uma vida confortável por lá. Continuei mantendo o diálogo com Keila
online. Ela é muito simpática e acolhedora, e credenciou-me a visitar
suas instalações na Califórnia.
Interessante é saber que lá os problemas são outros: pelas leis
federais americanas, atualmente, maconha é proibida. Cada estado,
porém, pode legislar sobre o tema. A Califórnia foi o primeiro es-
tado americano a aprovar o uso medicinal da maconha, num pro-
cesso que começou em 1996, com a chamada Proposição 215, a lei
que reconhece a existência legal dos dispensários e o direito de cada
município a regulamentar a distribuição de maconha medicinal aos
pacientes. Com isso, cada cidade da Califórnia pode ter sua legislação
específica, mais ou menos liberal. Keila vive em San Adreas, próximo
de San Francisco. Seu dispensário já teve buscas e apreensões fede-
rais. Como ela mesma diz: “eles tentam nos enterrar, mas esquecem
de que somos sementes”. Seu estabelecimento recebeu autorização
e ampliação do prazo para a expansão da loja e fábrica de derivados
da maconha. Até dezembro de 2015, sua expansão estaria pronta e
fabricaria tudo por conta própria.

A Marcha da Maconha
A Marcha da Maconha é uma manifestação pública, organizada
anualmente em diversos locais do mundo. O propósito é dar voz aos
movimentos favoráveis a mudanças nas leis que proíbem e criminali-
zam a maconha, propondo a legalização da Cannabis, a regulamentação
de comércio e uso, tanto recreativo quanto medicinal e industrial. As
Marchas ocorrem mundialmente a partir do primeiro final de semana
do mês de maio, inclusive no Brasil. Além da marcha em si, ocorrem
reuniões, caminhadas, encontros, concertos, festivais, mesas de deba-
tes, entre outros eventos. A primeira marcha ocorreu em 1994. Em
66 Lauro R. Pontes

2015, mais de quinhentas cidades do mundo todo fizeram marchas


nessa época do ano. No Brasil, a primeira ocorreu no Rio de Janeiro
em 2002. Houve a tentativa de fazer o evento em doze capitais no ano
de 2008, mas falhou devido às decisões judiciais que proibiam a mar-
cha, alegando apologia ao uso de drogas até formação de quadrilha.
A marcha deveria ocorrer em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curi-
tiba, Fortaleza, João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São
Paulo. Nesse ano, houve muitas confusões, conflitos com a polícia e
prisões. Em 2009 e 2010, a Marcha da Maconha ocorreu pacificamen-
te e sem maiores problemas em várias cidades, como Rio de Janeiro,
São Paulo e Belo Horizonte. Em 2011, porém, a justiça voltou a proi-
bir a Marcha da Maconha em São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba,
embora ela tenha ocorrido em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife,
Vitória, Niterói e algumas outras cidades. Em 15 de junho de 2011,
entretanto, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade,
pela legitimidade da manifestação por meio da Ação Direta de Incons-
titucionalidade 4.274, entendendo que ela não faz apologia ao uso da
droga e considerando que sua proibição é uma ameaça à liberdade de
expressão, garantida pela Constituição. Desde 2012, a Marcha entrou
definitivamente para o calendário de algumas cidades brasileiras, mas
sempre com algum tipo de confusão local em função da forma com
a qual o poder público de cada cidade agia, mesmo com a decisão do
STF sobre a legalidade da manifestação. Consegui acompanhar duas
marchas aqui no Rio.

A Marcha da Maconha de 2015


Cheguei à marcha quando ela já estava no meio do caminho
em direção ao Arpoador, acompanhada o tempo inteiro pela polícia.
Um carro de som dava o tom e músicos tocavam seus instrumentos
acompanhados do grito de guerra e de algumas músicas. A partici-
pação de políticos é muito comum. Alguns integrantes criticam essa
participação sinalizando o cunho eleitoreiro. O fato é que a represen-
tatividade do ativismo pela liberação ainda é muito pouco significati-
va junto ao legislativo.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 67

A tropa de choque estava lá desde o início. Os policiais já co-


nhecidos de outras manifestações estavam fardados, prontos para o
conflito físico, o que causou apreensão nos manifestantes. No entanto,
nenhum incidente que mereça ser pontuado ocorreu19.
A escolta policial liberou apenas uma faixa da pista para o carro
de som e para a marcha, mas a maior parte dos manifestantes acabou
marchando pela calçada ou ciclovia.

A Marcha foi encabeçada pelas mães e pais das crianças que usam o extrato
rico em CBD.
19
Todas as fotos foram cedidas gentilmente pela Revista “SemSemente”, a primeira revista brasileira
sobre a cultura canábica.
68 Lauro R. Pontes

Chamaram a atenção pessoas que não são usuárias e nem tem pa-
rentes doentes, mas que apoiam a descriminalização por consciência.

A inevitável comparação com o Uruguai também esteve presente.


Pontos polêmicos embarcaram na manifestação. A legalização do abor-
to, o ativismo LGBT e feminista e os defensores de liberação de outras
drogas pegaram carona, dando apoio e fazendo suas reivindicações. Era
curioso ver os usuários fumando ao lado de policiais que nada faziam.
Ao final da marcha, quem não dispersou foi para o Parque do
Arpoador para uma grande confraternização totalmente legalize. Isso
quer dizer que, durante algum tempo, fumou-se ao ar livre mesmo
com a polícia nas cercanias. Fiquei um tempo coletando as impressões
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 69

do grupo Rede, que estava lá em peso. A maioria considerou a marcha


desse ano fraca, criticaram o fato de ser sábado, de ter uma pista só, de
ter faltado engajamento. Outros viam beleza e pediam paciência para
as próximas marchas, com o realismo necessário para se entender o
que representa o processo da legalização no Brasil.

O Dia da Panelada
Uma semana depois da marcha, numa segunda-feira, fui avisado
que no sábado, na casa de um dos membros, aconteceria a produção do
extrato. Cheguei minutos antes do combinado. Pedro me recebeu da
forma carismática e carinhosa de sempre.
Tudo é feito de forma artesanal e caseira, com o máximo de
assepsia possível. Existem técnicas variadas para extrair os compo-
nentes ativos da planta. A utilizada por eles consiste em colocar as
flores da maconha em um saco de tela microfina, que atua como uma
peneira de mícrons de tamanho. Junto das flores, coloca-se gelo seco
(que é CO2 em estado sólido) e sacode-se mecanicamente esse saco
dentro de um recipiente estéril. Eles usavam como recipiente uma
caixa térmica grande. A ação do gelo seco sobre as flores faz congelar
e quebrar as resinas existentes na flor. Essas resinas são os compo-
nentes ativos da planta que passam por essa tela microfina e formam
um pó fino que se chama kfir (pronuncia-se quifír). Esse pó é, então,
dissolvido em um óleo de base — pode ser glicerina, óleo de coco,
hemp oil, que é o azeite comestível das sementes de maconha, óleo de
gergelim. Na verdade, qualquer óleo comestível pode ser usado, pois
os componentes são lipossolúveis. Existe um equipamento de cozinha
importado chamado Magic Butter, que é uma manteigueira elétrica. Ela
cozinha o pó e o óleo por 8 horas numa temperatura não muito alta e
controlada. Ao final desse processo, o líquido homogêneo, mas com
partículas em suspensão, é envasado em vidros esterilizados de cor
âmbar, semelhantes aos usados em tinturas médicas ou homeopatia.
O grande problema aqui é o controle de produção. Como a maconha
é ainda proibida, mesmo para pesquisas no Brasil, não se tem ao certo
o controle das quantidades dos componentes de acordo com a cepa
70 Lauro R. Pontes

da planta utilizada. Em função dos cruzamentos genéticos, existem


mais de mil e novecentos tipos diferentes de maconha, segundo o site
Leafly*. As variações dos tipos se dão basicamente sobre seus compo-
nentes ativos, seus aromas e sabores.
Todo o saber praticado, portanto, na fabricação dos remédios
vem dos estudos pessoais dos growers (em sua maioria, pessoas que es-
tão há muitos anos plantando maconha) e da prática sobre o efeito de
cada planta. Por exemplo, a espécie mais usada para fazer o óleo é a
“Harletsu”, que é um cruzamento das espécies Arlequina com Tsunami
e que possui um alto índice de CBD em sua composição — componen-
te mais importante para o controle das crises convulsivas.
O dia da produção é um grande evento para os growers. Eles se
reúnem na casa de alguém (no caso foi na do Pedro, como disse ante-
riormente) e cada um traz sua parte de produção e os equipamentos
necessários para a fabricação. As flores já estão devidamente secas e
curadas, no ponto certo de extração e uso. Elas possuem apelidos, são
conhecidas como camarões ou Buds. Cada bud é separado o máximo
possível do resto da planta. Eles a chamam de matéria vegetal, no pro-
cesso de manicura, que consiste em cortar, com a tesoura, tudo que
há na planta e que não é a flor ou o caule, que a sustenta. Na hora da
produção, os buds são arrancados desse caule. Todos plantam a mesma
espécie, pois o objetivo há nove meses, quando elas foram germina-
das, era justamente fazer o remédio para distribuir para quem precisa.
Cheguei na hora combinada e o uso recreacional já estava a todo vapor
literalmente, pois estava disponível o equipamento mais interessante,
o qual eu só havia visto em coffeshops de Amsterdam: o vaporizador
elétrico. Um equipamento que apenas vaporiza a flor triturada para
que se inale a fumaça branca, levíssima, fria e rica nos componentes.
Esse método é o mais eficaz para se conseguir sentir o efeito ime-
diato e não prejudicar a saúde, pois não há processo de combustão,
consequentemente, não há ingestão de CO2, que existe na maconha
fumada como cigarro de tabaco. O clima é de festa no melhor sentido.
Todos pareciam muito felizes de estarem se reunindo, fumando juntos
e fazendo o remédio. Apenas três pessoas participavam colocando a
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 71

mão na massa. Pedro me explicou que é para evitar contaminação.


Todos usavam máscaras e luvas cirúrgicas e limpavam todos os utensí-
lios e o local, uma mesa com tampo de vidro transparente e liso, com
álcool 70º. A produção é rápida. A agitação mecânica dos sacos de
tecido dura o “tempo do braço” de quem sacode. Passa-se, então, para
quem está disponível para sacudir até se considerar que já está bom,
que todos os componentes já foram extraídos. Sobra algo muito pare-
cido com maconha já triturada para fumo, mas sem os componentes
que dão o efeito psicoativo.
O produto que está dentro da caixa térmica é juntado e colocado
dentro da manteigueira elétrica. É adicionado a ela o óleo de base. De-
pois, é só esperar oito horas de cozimento lento e o óleo estará pronto
para o consumo.
Durante a feitura e depois de longas conversas, que misturavam
brincadeiras entre pessoas íntimas e amigas, e assuntos sérios, como a
relação com outros grupos, e articulações político-sociais, foi-se re-
cheando o grupo. Nessa reunião senti que uma forte amizade e, acima
disso, uma identidade de grupo, com apelidos e histórias, nascia. O
mundo chamado por eles de careta é composto por aqueles que não
fumam, mesmo que não tenham nada contra.
Aos poucos começaram a chegar outros membros, que foram
trazendo material para o preparo e claro, o ingrediente básico. De
repente, percebi que a proposta era também fazer uma reunião para
debater os rumos da Rede diante da dificuldade cada vez maior de
atender aos pedidos com a produção limitada em função da proibi-
ção do cultivo.
Capitaneada pelo Pedro e pelo Emílio, a conversa girou em tor-
no de uma mudança significativa nos rumos da Rede. A proposta agora
é que as mães recebam orientação para que elas mesmas plantem e co-
lham a base para a produção do remédio. O grupo da Rede daria todo
o suporte técnico para que isso ocorresse. Determinou-se, também,
uma reunião com as mães que queiram criar um lugar próprio alugado
em nome delas com o fim exclusivo de plantar e colher o remédio para
cada criança. Cada uma teria um espaço dentro desse imóvel, onde elas
72 Lauro R. Pontes

teriam as suas plantas em conjunto com toda a documentação médica


e o histórico das doenças das crianças. A ideia era trazer as mães mais
para perto da produção dos extratos. Eu levantei a ideia do paralelo
com as mães da “Plaza de mayo” e o Emílio acrescentou o paralelo com
as mães de maio brasileiras. O Mães de Maio é um movimento for-
mado por dezessete mães de mortos e desaparecidos nos confrontos
que ficaram conhecidos como «crimes de maio», ocorridos em 2006.
De acordo com entidades de direitos humanos, como o Tortura Nunca
Mais, os crimes foram uma resposta de grupos de extermínio — com
a participação de PMs — aos ataques da facção criminosa Primeiro
Comando da Capital (PCC). Os crimes resultaram na morte de qua-
renta e três agentes públicos. Em represália, ao menos quatrocentas
e noventa e três pessoas foram assassinadas, sendo que a maioria das
vítimas era de jovens negros, moradores das periferias.
Esse grupo trabalha, inclusive, com a perspectiva de dar corpo e
representação aos “desaparecidos da democracia”. Pessoas que, como
no regime militar, também desapareceram, mas já sob o pano da de-
mocracia, desde o fim da ditadura.
Essas mães, com a representatividade do materno, lutam por
seus filhos, seja contra uma doença severa, seja contra o estado violen-
to. A ideia é a produção ser vinculada totalmente ao processo de fazer
o extrato. Todos os caminhos levariam a uma colheita coletiva da planta
de cada criança. Nesse dia, um evento de apoio aconteceria e chamaria
assim a atenção da população, com o objetivo de tentar conscientizar
e mobilizar a sociedade e as entidades públicas. As ponderações foram
diversas. Em uma delas, foi levantada a questão do que tinha aconte-
cido com o Ricardo, um dos membros mais ativos e combatentes do
grupo. Na véspera da Marcha da Maconha de São Paulo, a maior mar-
cha do Brasil a qual vários membros do grupo costumam ir, a polícia
da cidade de Maricá, região dos lagos do Rio, por meio de denúncia
anônima, invadiu, com mandado de busca e apreensão, a casa dele.
Na casa só estavam sua esposa e sua sogra. Ricardo havia ido para São
Paulo, justamente a fim de participar da marcha. A “tropa de choque”
do grupo e outros articuladores começaram a agir e Ricardo voltou de
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 73

São Paulo no momento em que soube do ocorrido. Tudo terminou não


com sua prisão, mas com o recolhimento de todas as suas plantas e seus
remédios. Tudo que foi apreendido não foi devolvido.
Isso deixou todos do grupo apreensivos, em especial os que são
casados, pois esses espelharam uma possível situação em que suas es-
posas pudessem passar pelo que a esposa do Ricardo passou. Algumas
falas das próprias esposas já sinalizam um aumento do temor por ter
as plantas em casa. Assim, a decisão do grupo em ensinar as mães a
plantar atende a duas demandas enormes: a possibilidade de atender
todos que precisam, visto que esses podem aprender a plantar seu
próprio remédio, com todo o suporte técnico da rede, que ensina,
fornece as mudas e dá a planta certa para cada caso; e diminui o risco
da exposição do plantador, que pode reduzir sua quantidade para seu
consumo pessoal.
Outra coisa que foi notável nas vezes em que estive no grupo
é a lucidez jurídico-político-social. A ideia de que não se pode mais
abrir para ninguém entrar, uma vez que a produção já não está dando
conta da demanda. A condição de jamais cobrar, para não caracterizar
comércio e não possuir equipamentos que remetam a linha de produ-
ção de uma boca de fumo. Depois de todas as ponderações, o assunto
foi ficando restrito a conversas paralelas e Pedro começou a arrumar o
lugar para que a produção começasse. Um aparelho de limpeza a vapor
foi trazido para esterilizar os objetos que seriam usados na produção.
Os dois growers presentes, que começaram a retirar as flores dos ga-
lhos, também se valeram de luvas descartáveis e toucas de cabelo. Vi
que em uma sacola havia até jaleco e avental, mas não foram usados.
Talvez pelo método escolhido dessa vez. Existem várias formas de se
produzir a matéria-prima do extrato (falarei dos métodos que exis-
tem no capítulo dedicado às explicações sobre a maconha em si). O
método utilizado foi o do gelo seco: um conjunto de sacolas próprias
para extração, feitas de lona, com fundo feito de uma fina tela-peneira,
colocadas umas dentro das outras, vão triturando os cristais ricos em
CBD presentes nas flores da planta, que é de uma linhagem específica,
rica nesse componente. Os cristais congelam pelo contato com o gelo
74 Lauro R. Pontes

seco que sai do estado sólido para o gasoso sem deixar resquício no
processo. Assim, o produto final do ato de fechar e sacudir esses sacos,
um dentro do outro, sai pelo fundo da peneira mais fina: um fino pó
resinado, que é misturado num veículo, um óleo que pode ser de coco,
de abacate e, se for possível, o óleo comestível de maconha, chamado
de hemp-oil. É um “azeite” feito das sementes da maconha, como um
óleo de gergelim ou linhaça, importado e rico em ômegas, é usado na
culinária do exterior e não tem efeito psicoativo. Por uma questão de
similitude e origem comum, é bioquimicamente ideal.
Interessante, também, notar a conversa sobre qual matéria-pri-
ma seria usada, a mistura e a proporção dos tipos de plantas e seus
efeitos em função da necessidade de quem pede. Todos eles conhecem
muito dos tipos e dos efeitos da cada planta, que tem cada uma a sua
denominação. Uma das propostas da reunião foi catalogar as espécies
e suas propriedades. Há um trabalho quase búdico de ficar raspando e
varrendo esse pó, colhendo-o para um recipiente para ser misturado ao
óleo. O procedimento consiste, então, em colocar o óleo, que no caso
foram quinhentos mililitros de hemp-oil com cerca de vinte cinco mili-
litros do pó resinado, dentro de um equipamento próprio, como uma
máquina de fazer manteiga e deixá-lo por cerca de quatro horas baten-
do e cozinhando. Ao final, esterilizam-se os vidros âmbar, semelhantes
aos utilizados em homeopatia, e os preenchem com essa mistura, agora
bem homogênea, guardando em lugar seco e arejado. Nesse meio ter-
mo, alguns membros foram indo embora e chegaram outros, na mesma
amizade e parceria percebida no coletivo cultural, na véspera da marcha
do Rio. Despedi-me de todos, agradecendo em especial ao Pedro, e fui
embora, marcado por mais essa experiência tão específica.

A boa contaminação – experiência contaminada promissora


Para entender a organização do grupo: logo no início, quando
o Emilio me recebeu para me conhecer e assim ter confiança para me
apresentar aos demais membros do grupo, eu percebi que eles faziam
uso direto das redes de comunicação por tecnologia da informação.
Eles acumulam, portanto, esses saberes e trocam experiências há mui-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 75

tos e muitos anos num fórum de discussão na internet, no qual tudo


começou. Foi nesse espaço online que, na verdade, eles se conheceram
e estabeleceram as amizades. Esse grupo deu origem ao que eu fre-
quento, o qual se reúne para produzir remédios e entregá-los para as
pessoas pertencentes às classes menos privilegiadas.
Imagine que, em nossa sociedade, uma atriz muito famosa, mui-
to querida por todos, que tenha muita empatia do público, descubra
que tem câncer de mama. Ela, então, se trata com o óleo da Cannabis e
passa a ser o rosto de uma associação que defende a descriminalização
e a permissão do autocultivo. Foi o que ocorreu no Chile e, por isso, o
país está mais avançado nesse sentido, através de projetos próprios e de
duas instituições lá capitaneadas pela atriz Ana María Gazmuri, famosa
por trabalhos televisivos. Ela acabou se tornando o símbolo da luta da
descriminalização da maconha naquele país. São duas as associações:
uma chamada mama cultiva, que faz uma associação das mães que se
reúnem para cultivar e produzir para dar a seus filhos; e a outra asso-
ciação, a Fundação Daia, que chegou a receber autorização da Justiça
para plantar seis mil pés de maconha para produzir pesquisa.
A rede, então, dá-se através da amizade desses primeiros culti-
vadores, que se estabelece, como ponto de conexão, com uma rede
das mães de crianças com necessidades especiais, que acabam sendo as
primeiras consumidoras do óleo produzido pela Rede. Logo, percebe-
-se a necessidade da criação de associações a fim de que se fomente a
tentativa de uma liberação para que haja o plantio aqui no Brasil. Com
essa premissa, fundamos a ABRACannabis. Eu ajudei a montar seu site,
www.abracannabis.org.br e escrevemos a seguinte definição:
“A ABRACannabis é uma associação formada por equipe multi e trans-
disciplinar com atuação nas áreas científica, farmacêutica, médica, jurídica,
artística e humanas (psicologia, antropologia, sociologia, filosofia, etc.) que tem
como foco promover a inclusão social e o respeito aos direitos humanos, princi-
palmente dos pacientes que utilizam a cannabis medicinal, através do apoio à
pesquisa científica e educação, na representação social, nas políticas públicas e
consultas promovidas pelas agências regulatórias, além de todo o apoio jurídico
aos pesquisadores e pacientes.
76 Lauro R. Pontes

A ABRACannabis defende o direito ao cultivo individual e coletivo que


cada pessoa tem de promover sua própria saúde e autocuidado.
Nossa entidade é frequentemente procurada por mães e pais de pacien-
tes pediátricos com epilepsias refratárias que, a despeito da ineficácia e efeitos
colaterais diversos dos medicamentos tradicionais e grande sofrimento, não con-
seguem encontrar alternativas de tratamento e também por pacientes portadores
de dor crônica, independente da patologia associada, doenças neurodegenerati-
vas (esclerose múltipla, síndrome de Huntington, etc.) e também por médicos que
buscam informações sobre o uso da cannabis como medicina”.
MANICURA - Versos e vivências costuradas com maconha

“Eu sou Jeová teu Deus, eis que te


dou toda a planta que há sobre a terra,
e que dá semente nela mesma, para que
fazeis bom uso dela.” – Gênesis.

A manicura ou manicure é a etapa final do plantio. Essa é a fase


de corte da flor já desenvolvida e cheia de tricomas. É o estágio de
colheita da maconha, por assim dizer. Aqui faço um apanhado geral,
acompanhando as controvérsias da maconha através do tempo.
Desde 1800, quando Napoleão proibiu a Cannabis no Egito por
considerar que ela retirava dos soldados o espírito de luta, a maconha
gradativamente foi sendo posta em uma caixa-preta cada vez mais her-
mética. Toda a mistificação sobre a planta, os interesses econômicos
e políticos tinham o objetivo de construir apenas um entendimento
sem nenhum senso crítico ou científico: a ideia de que maconha faz
mal. Utilizando de todas as prerrogativas já conhecidas de propaganda,
muitos conceitos negativos foram sendo associados a ela: violência, ho-
micídio, comportamento imoral, tendência a suicídio, relacionamento
inter-racial, doenças mentais. Todo o saber ancestral ou pesquisas eram
ignorados face à construção dos mitos aqui já citados. Isso ocorreu em
vários países do mundo, cada um com sua motivação, mas com esse ini-
migo comum até 1963, quando um pesquisador israelense conseguiu
isolar um dos princípios ativos da maconha e, assim, abrir a caixa-preta
em que ela foi posta, abrindo caminho para pesquisas científicas. Até
78 Lauro R. Pontes

hoje, no entanto, esse processo é defasado. Por conta da proibição ain-


da presente na maioria dos países, a maconha não pode ser pesquisada
a fundo, nem produzida em larga escala.
Estudos sobre a maconha eram sempre ignorados, desde 1894,
quando o Relatório da Comissão de Drogas da Índia foi publicado. De-
pois, com as pesquisas do psiquiatra mexicano Leopoldo Salazar, em
1938, e o relatório do comitê LaGuardia, em 1944, preparado pela
Academia de Medicina de Nova York, por um pedido da Comissão so-
bre maconha do prefeito de Nova York Fiorello LaGuardia (Nova York
foi o lugar onde existiam mais salões de fumo de haxixe nos EUA).
Nenhum desses estudos foi considerado para se definir a proibição,
apenas as ideias construídas com as propagandas. Assim, mantinha-se
a caixa-preta bem fechada e aumentava-se o abismo entre cada tra-
balho científico publicado e as reuniões políticas criminalizadoras, se
aproveitando do tempo necessário para se fixar o que a propaganda
enganosa ensinava como verdade. A insustentabilidade da fala científica
que a ser desconsiderada perde força política em face ao que já estava
sendo internalizado pelas pessoas, em cada realidade, sob cada forma
particular de ser de cada lugar no mundo, onde a proibição foi sendo
imposta. Como exemplo, há no Brasil a associação à figura do “escravo
preguiçoso e sem alma” ou nos EUA, a figura do “mexicano violento”.
Formas em que a maconha foi utilizada como ferramenta de constru-
ção de preconceito com etnias.
Aqui também houve o mesmo processo de “encaixapreteamento”20
da maconha. Ela foi proibida no Brasil por decreto em 1932. Os pro-
fissionais de saúde foram contra a proibição, pois a maioria dos medi-
camentos era fabricada com algum composto da maconha. Em 1941,
foi instituída uma comissão científica para analisar os usos da maconha
no país. A conclusão desse estudo foi de que o uso da erva no Vale do
São Francisco, que era algo muito comum, não prejudicava os consu-

20
Graham Harman define o conceito de caixa-preta como qualquer actante tão firmemente estabele-
cido que nós podemos desconsiderar seu interior (“We are able to take its interior for granted”). As
propriedades internas de uma caixa-preta não contam, na medida em que estivermos preocupados
somente com seu input e output (HARMAN, 2009).
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 79

midores frequentes. A comissão recomendou que o Brasil devesse se


posicionar contra a proibição e a criminalização do usuário. Nada foi
feito com esse trabalho. Em 1958, o Ministério da Saúde promoveu um
amplo debate político. Seu primeiro exemplar foi dedicado à maconha,
intitulado “Cannabis Brasileira”. Também em 1958 o Serviço Nacional
de Educação Sanitária publicou um compêndio chamado “MACONHA
- coletânea de trabalhos brasileiros” um livro de 385 páginas com todos
os trabalhos escritos sobre o tema até então. Organizado pelo pre-
sidente da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes Dr.
Décio Parreiras e também por outros médicos, esse livro é raro, tive a
felicidade de ganhá-lo de presente de um velho amigo já no fim dessa
escrita, é rico em pareceres e opiniões técnicas de várias instituições e
profissionais. A comissão concluiu que a produção científica não ratifi-
cava falar em dependência ou em toxicomania de maconha — termo
utilizado na época —, mas, no máximo, em hábito. Como no caso
do México e dos EUA, as autoridades brasileiras ignoraram completa-
mente o relatório da comissão.

Livro raro brasileiro de 1958 sobre maconha.

A delegação brasileira que participou da Convenção Única so-


bre Entorpecentes da ONU, dois anos depois, em 1961, reafirmou os
80 Lauro R. Pontes

perigos alarmistas sobre a planta e exigiu restrições equivalentes às do


ópio. Mais uma vez, a ciência perdeu para a política.
Para a redefinição mais completa dos Modernos, é necessária
a multiplicidade de conceitos, o pareamento das redes com escopos
múltiplos, agregando peso no que circula nelas. Já vimos que na
produção das ciências nem tudo é científico. No direito nem tudo é
jurídico, preso à letra da lei, a interpretação tem mais peso do que
o escrito em si. Aliás, no caso da maconha e suas questões legais,
foi através das interpretações dos termos jurídicos e da letra das
leis que versam sobre a política de drogas do país que os advogados
antiproibicionistas escrevem suas peças jurídicas para conseguir o
histórico Habeas Corpus, abrindo precedente para os outros e per-
mitindo a algumas mães e pais o plantio de maconha em casa, mes-
mo existindo lei federal que proíba tal ação. Cada fluxo possui uma
trajetória própria, com os seus próprios hiatos, forças atuantes e
trajetos, fluindo de forma única no interior das redes e subredes.
Dessa forma, deve-se “continuar a seguir a multiplicidade indefinida
de redes, mas qualificando as maneiras, cada vez distintas, que eles
têm de se estender”21.
A princípio, eu tinha a pretensão de mapear a rede-maconha,
mas percebi que suas sub-redes e cruzamentos tornam o assunto qua-
se infinito. Essa foi uma das maiores dificuldades para a produção de
minha pesquisa: saber quando parar de vivenciar o campo. Escreven-
do em tempo real e com a anuência do próprio Latour, que no seu
artigo de 2006 nos diz: “uma boa tese é uma tese feita”, acabei limi-
tando a minha para fazer aparecer melhor as interações sociais que
me saltaram aos olhos e que foram os versos e vivências do título,
visto que o tamanho do assunto não comportaria apenas um trabalho.
É a prerrogativa moderníssima utilizada pelas intenções escu-
sas na manutenção da maconha como instância proibida e denotada
como entidade do mal. Não se questiona, nem se oferece reflexão
ou mediação. O problema (no caso proposital) do moderno é fazer
LATOUR, Bruno. Rechercher sur les modes d’existence. Une anthropologie des modernes. Paris: La
21

Découverte, 2012.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 81

supor que não existem mediações, que tudo é dado e não precisa ser
questionado nem pensado. É o estado permanente da caixa-preta.
Em minha prática de pesquisa notei que, quanto mais rígida é a forma
de pensar do indivíduo, quanto mais preso em dogmas e verdades
absolutas individuais, mais é difícil convidá-lo à reflexão do contra-
ditório, tamanho o sucesso da demonização folclórica da maconha.
Os caminhos de uma conexão ou rede deixam rastro, sinais
por onde a trajetória se compôs. É a avenida de mão dupla que re-
laciona o ser-em-si com o ser-enquanto-outro. Identifiquei nesse
termo o resumo desse trabalho. Essa relação dos seres não só “entre”
e “com”, mas todo o range de preposições essenciais (a, ante, após,
até, com, contra, de, desde, em, entre, para, per, perante, por, sem,
sob, sobre) junto ao ser produz a literação do que vivi em palavras
que se façam entender. Identifiquei-me durante a pesquisa, quase o
tempo todo em que estive em contato com o campo, no lugar que
fosse. Os fatos vividos e minha percepção deles, junto à narrativa
do diário de campo multiplataforma me dava a sensação de estar
escrevendo a realidade enquanto ela acontecia, num reflexo de ten-
tar perceber de forma mais verossímil possível as encenações e as
atuações presentes.
Os modos de existência é um projeto aberto, contínuo e cola-
borativo que Latour lançou em parceria com outros pesquisadores e
de forma multidisciplinar. Aqui quis expor apenas a minha pequena
interpretação face ao assunto e dar um pequeno exemplo perante a
grandiosidade do tema. Reitero que, a partir daqui, o texto possui
poucas citações a autores. Porém, a TAR foi a matriz básica teórica
e prática que procurei sentir o que vivia, o solo onde plantei toda
minha vivência e interpretação sobre a temática.
Essa texto foi escrito sob a égide da história imediata, narrada
em tempo real, no afã de ser preciso e minucioso nas narrativas das
vivências e surpresas, sempre sob o olhar da TAR. Mesmo quando
não é referenciada diretamente como citação do texto, ela esteve
presente, ajudando-me a construir o entendimento sobre o assunto
tão rico e complexo).
82 Lauro R. Pontes

Quero jogar luz no entendimento que, em função das articula-


ções políticas que a maconha foi passando ao longo da história, quase
ninguém tem acesso hoje. Mesmo pessoas academicamente desenvol-
vidas ainda repetem mitos e boatos construídos para afastar as pessoas
dos benefícios que a planta pode fornecer. Iluminar o pensamento com
informação para fazer crescer um novo olhar e uma nova compreensão
sobre a planta. Essa parte da escrita é bem didática, diretiva e tem a
pretensão de que, ao final dela, o leitor saberá tudo que precisa saber
sobre a maconha em teoria.
Uma das conclusões que cheguei é a de que existe um profundo
abismo informacional entre o mundo da maconha e daqueles que não
conhecem ou que tiveram apenas a experiência de experimentar algu-
ma vez na vida. Percebi isso ao conversar com pessoas dos meus múlti-
plos círculos de relacionamento. Possuo pontos de contato em grupos
sociais muito variados. É parte intensa da minha pessoa sempre falar, sa-
ber e estar em contato com assuntos variados, específicos ou não. Ape-
sar de estar num ambiente de ciências humanas em meio à academia,
sempre estive também próximo às ciências exatas — sendo técnico em
mecânica formado em nível de 2º grau e consultor de informática — e
também à área de saúde — como terapeuta natural —, além das artes
— sendo músico desde a adolescência. Durante a escrita, me deparei
com situações e cenas muito peculiares e ricas em surpresas.
Pude notar, por exemplo, que, mesmo em ambientes com pes-
soas extremamente instruídas e cultas, como na própria academia, o
assunto maconha ainda é um tabu. Esse tabu é constituído pelo mes-
mo estruturante de quem tem preconceitos enraizados ou no mundo
não acadêmico: a pura falta de informação sobre o tema. Isso ocorre
pela distância de acesso que o assunto maconha possui. Há, portanto,
uma enorme distância entre o conhecimento geral, comum a todos, e
o que se vive na cultura cannábica. Ao fazer contato social com todos
esses grupos, notei que o discurso é parecido: são vários mitos e cli-
chês sobre a maconha que todos possuem. O que difere é a forma de
reagir à questão. Na academia ou em conversas com pessoas de baixa
resistência a algo novo ou a mudanças, o misto de surpresa e desinfor-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 83

mação honesta surge como indagação a questões como em um diálogo


com professores universitários: “mas, Lauro, a maconha não causa psi-
cose?”, “a maconha não é a porta de entrada para outras drogas mais
pesadas?”. Um esclarecimento textual, citando um ou dois artigos, faz
o interlocutor refletir sobre o assunto e mudar sua forma de pensar.
Já em conversas fora da academia, com pessoas mais resistentes a
mudanças dos próprios paradigmas em seus valores pessoais, encontrei
uma dificuldade enorme em abordar o tema, pouquíssimo espaço para
diálogo e preconceitos extremamente enraizados e engessados. A única
flexibilização, nesses casos, é a de aceitar as pesquisas para a extração
de substâncias isoladas e a produção de remédios comerciais — que,
conforme será explicado, não funciona a contento, pois maconha é um
fitoterápico por definição —, não admitindo qualquer outra utilização
da planta. Mesmo com argumentos técnicos lógicos, cartesianos mo-
derníssimos não há uma flexibilização do pensamento dominante.
Por isso, fui jogando sementes de informação em todos os gru-
pos dos quais faço parte ou tangencio. Propositalmente, puxando o
assunto, mostrando links e reportagens falando do tema, sendo chato
— de propósito ou não. Fazia isso, muitas vezes, tanto como exercício
social para colher essas impressões que escrevi anteriormente quanto
numa tentativa honesta e pura de coração em ouvir o contraponto, o
diferente, o pensamento opositor.
Gostaria de relatar aqui uma cena que ocorreu em meados de
2016: em novembro de 2015, tornei-me cervejeiro caseiro. A cer-
veja artesanal é um mundo enorme, cheio de especificidades. Nos
meus estudos, descobri que a maconha é prima botânica do lúpulo,
ingrediente essencial na fabricação de qualquer cerveja. Entrei para
vários grupos de discussão online via mensageiro móvel (WhatsApp,
Telegram, etc.) a fim de trocar experiências e aprender mais. Existem
cervejas com os mais variados ingredientes: frutas cítricas, vermelhas,
especiarias, temperos, madeiras. É possível fazer cerveja com muitas
coisas. Em abril de 2016, resolvi que tentaria fazer uma cerveja que
levasse maconha como ingrediente. Consegui uma quantidade peque-
na e acrescentei como ingrediente de sabor e aroma na cerveja. O re-
84 Lauro R. Pontes

sultado foi excelente, recebendo elogios de um sommelier de cerveja


que provou e aprovou.
Resolvi, então, postar o resultado nesses grupos, como experiên-
cia, para observar as respostas dos participantes. O resultado foi muito
interessante: a surpresa foi comum a todos. A maioria demonstrou mui-
ta curiosidade sobre o método que usei e sobre o resultado, se era ine-
briante ou não. Alguns mencionaram suas experiências tentando fazer,
outros se empolgaram para produzir também. O restante simplesmente
abominou a ideia por conta de ser algo proibido e alguns afirmaram que
isso era droga — vale ressaltar mais uma vez que essas pessoas partici-
pam de grupos de cervejas especiais, que possuem, no mínimo, 3,5%
de álcool em sua composição —, carregando todos os preconceitos da
desinformação. Nesses grupos há pessoas das mais variadas formações e
idades. Fui expulso de um dos grupos. No outro, bloqueado por um po-
licial do Sul do Brasil, que tinha como hobby colecionar armas e caçar,
mesmo que eu o tenha convidado ao diálogo franco. O ponto para ele
era que a maconha é proibida e deve continuar sendo. Por quê? Porque
ele acha que sim. Porque foi assim que ele aprendeu que deveria ser.
Em outro grupo, aconteceu um debate de mais de dois mil comentários
sobre o tópico e, no final, ficou proibido escrever sobre qualquer coisa
ilícita, mesmo que ali existissem pessoas que vendiam suas cervejas sem
registro no Ministério da Agricultura e Pecuária, o que é ilegal. Por
outro lado, muitas pessoas desses grupos me contataram em conversas
privadas para conversar sobre. Numa dessas conversas, foi possível in-
dicar um tratamento para o familiar de um desses, que tinha câncer e
sentia dores terríveis. Foi com essa vivência que concluí uma das signi-
ficações que a maconha possui. Ela é a Geni das plantas.
História da Cannabis

Esta linha do tempo descreve toda a trajetória da maconha desde


sua domesticação até a história do controle internacional. Ela indica
como a Cannabis foi incluída no sistema atual de controle de drogas
da ONU e as deserções posteriores por parte dos países e estados que
romperam com os tratados internacionais. Todas as imagens foram re-
tiradas do site: http://cannabishistory.tni.org/index.htm e seu con-
teúdo traduzido e adaptado para o texto.

Mapa da expansão geográfica e histórica da Cannabis pelos continentes.

12000 A.C.
A propagação da Cannabis em todo o mundo
As primeiras plantas de Cannabis foram domesticadas em torno
12000 A.C. nas estepes da Ásia Central, em regiões nas quais estão
86 Lauro R. Pontes

situadas agora a Mongólia e o sul da Sibéria. A planta está entre as mais


antigas cultivadas pela humanidade. Durante os tempos pré-moder-
nos, ela foi amplamente utilizada para fins espirituais e de medicina.
A ideia de que a Cannabis é uma droga proibida e perigosa é, portanto,
uma construção muito recente. O fato de a planta ser ilegal é uma
“anomalia histórica”, segundo muitos pesquisadores do tema.
O que comprova o caso de ingestão mais antigo registrado são as
fezes fossilizadas, que contêm vestígios de Cannabis. Este cropólito foi
achado na Ásia Central e data de 10 mil anos.
Existem, também, provas de que houve uso cultural da Cannabis
há 6.500 anos na mais antiga cultura registrada do período neolítico
da China, a Yang Chao. As fibras da planta serviam para confecção de
roupas, redes de pesca e caça, cordas e tudo mais que a tecnologia da
época permitia. Suas sementes eram usadas para a alimentação, em
forma de farinha e outras, a depender dos preparos.

O Imperador Shen Nung.

2700 A.C.
O uso médico precoce de Cannabis
A Cannabis foi supostamente descrita pela primeira vez em um
contexto médico pelo imperador chinês mítico Shen-Nung, em 2.700
A.C., para tratar beri-beri, constipação, fraqueza feminina, gota, ma-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 87

lária, reumatismo e distração. No entanto, a farmacopeia a que estu-


diosos muitas vezes atribuem a autoria a Shen foi escrito no primeiro
século D.C. por um autor cujo nome se perdeu no tempo.
Para os Assírios, a maconha era conhecida pelo nome de Kunubu
ou Kunnapu, que deu origem ao latim Cannabis. A planta era cultivada
pela monarquia, que a distribuía para população diariamente, junto
com um litro e meio de cerveja. Esse exemplo ilustra claramente seu
uso recreativo, festivo. As propriedades medicinais da planta são des-
critas em escrita cuneiforme num dos livros mais antigos da humani-
dade, que fazia parte da Biblioteca de Assubarnipal há dois mil e sete-
centos anos. Esse livro está conservado, e é parte do acervo do British
Museum, em Londres.

2000 A.C. - 1400 A.C.


Cannabis na Índia
A Cannabis tem uma longa história na Índia, descrita em len-
das e na religião hindu. De fato, diz-se que a planta teve origem
quando Shiva — uma das personalidades de Deus na tríade dessa
religião —, chegando a um banquete preparado por sua esposa Par-
vati, saliva ao ver tantas delícias e de sua saliva surge a planta aben-
çoada. Na literatura indiana, no quarto livro sagrado hindu Atharva
Veda, existe a primeira referência à bebida “bhang”, cuja preparação
incluía a resina da planta misturada com manteiga, leite e açúcar.
Essas referências podem ter sido compiladas tão cedo quanto 2000-
1400 A.C.
De acordo com os Vedas, a Cannabis foi uma das cinco plantas
sagradas, e um anjo da guarda vivia em suas folhas. Para eles, a plan-
ta é uma fonte de felicidade, doadora de alegria, libertadora, que foi
compassivamente dada aos seres humanos para ajudar a atingir o prazer
e perder o medo. O Bhang era usado para “libertar da aflição” e para
“alívio da ansiedade”.
Os investigadores encontraram setecentos e oitenta e nove gra-
mas de Cannabis seca enterrados ao lado do que eles acreditam que
tenha sido um xamã da cultura Gushi.
88 Lauro R. Pontes

500 A.C.
Primeira documentação do consumo de Cannabis como
substância psicoativa
A cultura Gushi, um grupo nômade indo-europeu de pessoas cau-
casianas, cultivava Cannabis para fins farmacêuticos e psicoativos ou fins
divinatórios. A recente escavação junto aos túmulos Yanghai, no deser-
to de Gobi, perto de Turpan (Xinjiang, China) revelou o túmulo de
2500 anos de um xamã cujos apetrechos continham tetrahidrocanabinol
(THC). A descoberta é a documentação mais antiga de Cannabis como
um agente farmacologicamente ativo. Os dados sugerem que foi culti-
vada, em vez de simplesmente recolhida a partir de plantas silvestres.
450 A.C. - 420 A.C.
Tribos citam o uso da Cannabis
O historiador grego Heródoto descreve o uso da Cannabis entre
as tribos nômades que habitualmente percorriam o norte da Grécia e
Ásia Menor. Vasos descobertos em uma sepultura em 2013 continham
vestígios de ópio e maconha.

Página sobre a Cannabis.


Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 89

70 D.C.
O consumo de Cannabis médica na Grécia antiga
O médico grego Dioscorides registra Cannabis em sua farmaco-
peia. Aparentemente, a planta foi usada extensivamente na medicina
grega e romana nessa época. A folha da Cannabis foi comumente pres-
crita como uma cura para hemorragias nasais, e suas sementes foram
usadas para tratar tênias, dor de ouvido e inflamações.
1000 – 1100 D.C.
O consumo de Cannabis em Al-Andalus
Devido à proibição contida no livro sagrado islâmico sobre o
uso do álcool, a Cannabis tem sido a droga recreativa preferida dos
povos islâmicos. Sendo considerada pura e natural, a planta é pas-
sível de ser usada pelos muçulmanos. Com a islamização do norte
da África, a planta se espalha rapidamente e alcança outros povos
africanos não muçulmanos do restante do continente.
Nos séculos X e XI, fumar maconha em um cachimbo era
normal em Al-Andalus, partes da Península Ibérica regidas por mu-
çulmanos, árabes e norte-africanos. Esses cachimbos foram desco-
bertos em Zaragoza e Córdoba, antes de o tabaco ser conhecido na
Europa. Cientistas árabes estavam vários séculos à frente dos euro-
peus em seu conhecimento sobre o poder curativo da Cannabis.

Página do livro de Ibne al-Baitar, médico e botânico andaluz, séc. XIII.


90 Lauro R. Pontes

1378
Primeira proibição de haxixe
Emir Soudom Sheikhouni de Joneima, atual Egito, ordenou
que todas as plantas de Cannabis em seu território fossem destruí-
das em uma tentativa de acabar com seu uso entre as classes mais
pobres. Qualquer um pego comendo Cannabis teria seus dentes ar-
rancados. No entanto, quinze anos após o decreto de Emir, o uso de
Cannabis aumentou na população.

A hipótese de Du Toit difusão de Cannabis na África, no Du Toit, BM (1975). “Dagga:


A História e Ambiente Etnográfico da Cannabis Sativa na África Austral.”

1464
Primeiro relato do uso da Cannabis como
tratamento para a epilepsia
Embora a maconha já tivesse seu uso estabelecido no Oriente
Médio, um dos primeiros relatos de casos da planta para tratamento
de epilepsia data de 1464 e tem autoria de Ibnal-Badri. Em Bagdá,
ele se referiu a um tratamento proveitoso que fazia uso do haxixe,
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 91

aplicado por um poeta, para controle das crises epiléticas do filho do


camareiro do Califa.
1500
Cannabis na África
A Cannabis foi, provavelmente, levada da Índia para a África por
comerciantes árabes através de centros de comércio na costa leste,
como Zanzibar e Moçambique. A planta subiu a bacia do rio Zambeze
e para baixo do rio Congo para a costa oeste da África Austral, de onde
viajou para o Brasil. Em Angola, os governantes coloniais portugueses
introduziram uma das primeiras proibições de Cannabis; seu uso pelos
escravos foi considerado crime.

Senhor Shiva moagem Cannabis.


92 Lauro R. Pontes

1659
Proibição de curta duração da Cannabis na Índia
A Cannabis forma até hoje uma parte importante da medicina
tradicional Hindu, a Ayurveda, e também é usada para fins religiosos.
No entanto, em 1659, Aurangzeb, imperador da Índia, proibiu o culti-
vo de “bhang” em todo o seu reino, porque ele a considerou um vício. A
proibição não durou, já que era impossível de ser aplicada. A comissão
Hindu sobre drogas, em 1894, chamou a Cannabis de “penicilina da
medicina ayurvédica”.

1800
Napoleão proíbe Cannabis no Egito
Após a invasão do Egito em 1800, Napoleão Bonaparte proibiu
seus soldados de fumar ou beber os extratos da planta por causa do
medo de que a Cannabis provocasse perda de espírito de luta. Foi im-
posta uma pena de prisão de três meses àquele que fizesse esses usos
da planta. Ao mesmo tempo, uma equipe de expedição científica trou-
xe Cannabis para a França, onde foi investigada por suas propriedades
capazes de aliviar a dor e por seus efeitos sedativos. Tornou-se, assim,
mais amplamente aceito na medicina ocidental.

Escravos no quilombo e maconha (Cannabis).


Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 93

1808
Maconha trazida ao Brasil por meio dos escravos africanos
Durante o período colonial, a maconha foi trazida para o Brasil
através dos escravos africanos. Posteriormente, disseminou-se entre os
indígenas e depois entre os brancos. A planta teve seu cultivo estimu-
lado pela coroa real e até mesmo a rainha Carlota Joaquina tinha o
costume de consumir chá de maconha no Brasil.

1830
Cannabis proibida no Rio de Janeiro
Embora as grandes navegações só tenham acontecido por conta
da Cannabis, visto que suas cordas e velas eram feitas da fibra do cânha-
mo, bem como o óleo que iluminava as noites. Sabe-se que a Canna-
bis, historicamente, foi introduzida no Brasil pelos africanos, durante
o período de escravatura. Os nomes dados à maconha indicam isso,
já que todos têm origem linguística africana: fumo d’angola, Gongo,
Cagonha, Marigonga, Maruamba, Diamba, Liamba, Riamba e Pango.
Este advém do nome hindu Bhang, que se torna Pang na língua árabe e
se converte em Pango nas línguas africanas.
De toda forma, a planta esteve desde o início associada à po-
pulação de origem africana, sendo que a ampliação de seu uso atinge
também aqueles de origem europeia, considerada por autores como
Rodrigues Dória como: “uma vingança da raça dominada contra o
dominador”.
Os cultos afro-brasileiros sempre utilizaram a Cannabis. Já no
século XVIII, os relatos sobre os calundus — reunião de negros ao som
de tambores — indicavam a presença da planta, que era inalada pe-
los participantes, deixando-os “absortos e fora de si”. Até a década de
1930 do século XX, quando são legalizados os Candomblés e Xangôs,
a Cannabis era constantemente apreendida nos terreiros junto com os
objetos de culto. A Cannabis é considerada planta Exu, sendo relacio-
nada a essa divindade.
Em 1830, a legislação do município do Rio de Janeiro punia o
uso do “pito de pango”, como era conhecida a Cannabis, com pena de
94 Lauro R. Pontes

multa de 5 mil réis ou dois dias de detenção. Essa foi nossa primeira lei
a respeito da planta.
Nas décadas de 1920 e 1930 deste século, são produzidos os pri-
meiros trabalhos científicos brasileiros acerca do hábito de fumar ma-
conha. Apesar de seus autores serem em sua quase totalidade médicos
preocupados em justificar a proibição da planta, estes tinham um olhar
etnográfico sensível, descrevendo com minúcias os rituais do “clube de
diambistas”, nome dado à associação de indivíduos com o intuito de
fumar Diamba. Os diambistas eram, preferencialmente, membros dos
estratos mais baixos da população brasileira, em especial pescadores
que se reuniam para fumar a erva cantando loas a ela. São dessa épo-
ca os famosos versos: “Diamba, sarabamba, quando fumo diamba, fico
com as pernas bambas. Fica sinhô? dizô, dizô”. Termos utilizados pelos
diambistas como “fino”, “morra” e “marica” entre outros são até hoje
parte da gíria própria dos usuários.
A distribuição geográfica do consumo da Cannabis na época in-
cluía Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Maranhão e Bahia. Daí, pouco a
pouco o hábito se espalha e a partir da década de 1960, com a contra-
cultura, passa a atingir outros estratos sociais. Atualmente, seu uso é
amplamente disseminado entre as camadas médias urbanas.
Cannabis foi proibida no Brasil em 1830, quando o conselho mu-
nicipal do Rio de Janeiro proibiu a venda ou utilização de pito de pango
(Cannabis fumada em uma espécie de cano). Transgressores eram pas-
síveis de uma multa de 20 mil réis — cerca de US$ 40 à época — e
podiam ser condenados a três dias de prisão. Outros conselhos munici-
pais emitiram leis semelhantes: Caxias (1846), Santos (1870), e Cam-
pinas (1876). Em 1886, em São Luís do Maranhão, proibiu-se a venda
e a exposição pública de fumo de Cannabis. Escravos que violassem a
lei podiam ser punidos com até quatro dias de prisão. Não está claro se
essas leis foram realmente aplicadas.
Também os povos do Novo Mundo não ficaram imunes à Cannabis.
Hoje em dia no Brasil, os Mura, os Sateré-Mawé e os Guajajaras fazem
uso tradicional da erva. Os Guajajaras têm a planta em alta estima e sua
presença na mitologia do grupo atesta à antiguidade de seu uso, que re-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 95

meteria à segunda metade do século XVII. A planta é consumida no con-


texto xamânico, junto com o tabaco, para propiciar o transporte místico
do pajé e a divinação. No contexto profano, a erva é inalada em grupo
antes de trabalhos pesados nos mutirões para dar disposição — indicando
que a chamada síndrome amotivacional, associada à Cannabis possa ser
um fenômeno antes cultural do que uma decorrência dos seus princípios
ativos. Os dados jamaicanos parecem confirmar essa tese, uma vez que
nesse país a Cannabis é amplamente fumada por trabalhadores rurais como
estimulante antes de trabalhos pesados e extenuantes.
Outros nativos das Américas também usam a Cannabis, entre os
quais estão os índios Cuna do Panamá, que já possuíam escrita antes da
chegada dos europeus; os índios Cora do México, e outros. Segundo uma
comunicação pessoal do arqueólogo chileno Manuel Arroyo, foram en-
contradas pinturas rupestres naquele país, próximas à fronteira com a Ar-
gentina, feitas com tintas cujos pigmentos indicavam a presença de THC
e que foram datadas em 12.000 anos. Isso sugere não só uma presença
pré-colombiana da planta no continente, mas também um uso mágico-re-
ligioso da mesma, aventando a hipótese de uma inspiração cannábica para
uma determinada tradição artística indígena.

William Brooke O’Shaughnessy.


96 Lauro R. Pontes

1839
Disseminação de uso médico na Europa e os EUA
Um dos primeiros médicos ocidentais a ter interesse no uso me-
dicinal da Cannabis foi William O’Shaughnessy, professor na Faculdade
de Medicina de Calcutá, na Índia. Ele a receitou para pacientes que
sofriam de raiva, reumatismo, epilepsia e tétano. Além disso, relatou
que a tintura de cânhamo — uma solução de Cannabis em álcool, admi-
nistrado por via oral — era um analgésico eficaz, chamando-o de “um
remédio anticonvulsivo do maior valor”. Isso significa que desde 1839
já se sabe das propriedades anticonvulsivantes da maconha. O’Shaugh-
nessy retornou à Inglaterra em 1842 e recomendou que farmacêuticos
a receitassem. Os médicos na Europa e nos Estados Unidos começaram
a prescrevê-lo para uma variedade de condições físicas.

Livro sobre o clube Hachichins por um dos seus fundadores Théophile Gautier.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 97

1844
Clube Hachichins
Soldados que retornam do Egito levaram consigo a Cannabis
para a França. Daí em diante, ocorreram importações regulares da
planta. Logo em seguida, já era possível comprá-la em qualquer far-
mácia. Artistas e escritores, incluindo Dr. Jacques-Joseph Moreau,
Théophile Gautier, Charles Baudelaire, Victor Hugo, Honoré de
Balzac, Gérard de Nerval, Eugène Delacroix e Alexandre Dumas,
criaram um clube para explorar a Cannabis e aumentar a criativi-
dade. O clube se reuniu regularmente entre 1844 e 1849 no Hôtel
Lauzun, em Paris.

Ilustração do livro Sob a bandeira alemã em toda a África do oeste para o leste (colocar o título do livro em
itálico) pelo explorador alemão Hermann Wissmann.

1850 - 1876
Bena Riamba: Irmãos de cânhamo
Por volta de 1850, um grupo de usuários de Cannabis, chamado
Bena Riamba (Irmãos de cânhamo), começou um culto religioso entre
pessoas nativas no leste do Congo. A religião era baseada na riamba e
a palavra Bashilange era usada para fazer referência à Cannabis, que se
98 Lauro R. Pontes

tornou o símbolo da paz, camaradagem, magia e proteção. A plan-


ta modificou os hábitos dos moradores. Depois de um tempo, eles
chamavam um ao outro de amigo e cumprimentavam um ao outro
com a palavra Moyo, que significa “vida” e “saúde”. Ao fim do dia, an-
tes de o sol se pôr, os membros da tribo se reuniam em uma grande
roda no centro da aldeia para fumar em grandes cachimbos. Antes de
passar ao próximo, eles se olhavam nos olhos e diziam: “Paz, irmão
da Riamba”. Até hoje são encontrados remanescentes dessa tribo na
costa sul de Moçambique.

1857
Uso tradicional de Cannabis na África
O uso cultural de Cannabis foi generalizado em toda a África.
O explorador David Livingstone observou, em 1857, que “essa erva
daninha perniciosa é amplamente utilizada em todas as tribos do in-
terior” (que seria mais ou menos onde é a Zâmbia hoje). A palavra
maconha, inclusive, vem de Ma Konia, Mãe Divina, numa língua da
costa ocidental africana.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 99

Fumantes de narguilé em um café em Constantinopla de 1890.

1868 - 1894
Egito tenta proibir o haxixe
O cultivo, o uso e a importação de haxixe foram proibidos pela
primeira vez em 1868, quando o sultão da Turquia governava o Egito.
As proibições sobre o cultivo de Cannabis e de sua utilização vigoraram
entre 1879 e 1884. No entanto, os funcionários aduaneiros foram au-
torizados a vender haxixe no exterior para pagar informantes e agentes
responsáveis pelas prisões. Isso apenas resultou em mais haxixe sendo
importado, uma vez que os importadores originais eram os próprios
agentes. Ainda assim o governo tentou proibir o haxixe novamente,
reeditando a medida entre 1891 e 1894. De novo, teve pouco efeito
sobre o uso, pois era o produto barato e facilmente cultivado ou con-
trabandeado e ainda era permitido para não egípcios. Por isso essas leis
nunca foram eficazes.

1869
Cidade do México proíbe a maconha
No México, a venda de maconha foi proibida na Cidade do Mé-
xico (1869), Oaxaca (1882), Estado do México (1891), e Querétaro
100 Lauro R. Pontes

(1896). Nunca ficou claro, no entanto, até que ponto as leis foram
efetivamente aplicadas e respeitadas. A maconha estava ligada às teorias
racistas de eugenismo, à loucura, e a outras patologias que desviaram
da norma eurocêntrica. Essas teorias, felizmente, foram, posterior-
mente, desacreditadas. Na década de 1890, pesquisadores e médicos
mexicanos, como José Olvera, Carlos Viesca y Lobatón e Máximo Sil-
va, sugerem que a Cannabis tinha a capacidade de fabricar “delírio ma-
níaco”, “múltiplas personalidades”, e “um impulso terrível e cego que
leva a assassinato” em indivíduos da classe trabalhadora e mestiços.

A cópia do coletor / Imagens Património.


Grupo de coolies indianos, África do Sul.

1870
África do Sul proíbe Cannabis para os trabalhadores
contratados da Índia
Uma lei de 1870 proibiu o uso e posse de Cannabis para imi-
grantes indianos, principalmente devido à percepção de que o regime
branco foi ameaçado pelo consumo de dagga, como era conhecida a
Cannabis. A lei não funcionou, pois não afetou um padrão cultural tão
bem estabelecido. Além disso, a lei mencionava as vendas para os india-
nos, mas não o cultivo feito por eles de suas próprias plantas. Assim,
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 101

a Cannabis continuou a ser usada para o prazer e para fins medicinais e


religiosos por africanos rurais. A proibição nacional sobre o cultivo, a
venda, posse e uso de Cannabis foi proclamada em junho de 1922.

Hash, Marijuana e Hemp Museum (Barcelona / Amsterdam).


Frank Leslie histórico Register da Exposição Estados Unidos Centennial.

1876
Salões de haxixe nos EUA
A partir da década de 1860 até o início de 1900, várias feiras
mundiais tinham exposições turcas sobre haxixe. Durante a exposição
de 1876 na Filadélfia, os frequentadores experimentaram e fumaram
102 Lauro R. Pontes

haxixe turco, que era extremamente popular, de modo a “melhorar”


a sua experiência. Em 1883, salões para se fumar haxixe foram legal-
mente abertos em cada grande cidade americana, incluindo NovaYork,
Boston, Filadélfia, Chicago, St. Louis e Nova Orleans. Mais de 500
salões de haxixe foram somente em Nova York.

Cena do filme «Rebetiko» de 1984.


Rebetes (músicos de Rebetiko) Hábito de fumar o narguilé (no “pipe”).

1889
Cannabis usada como tratamento para a dependência ao ópio
Nesse ano, um dos artigos que constituíram a revista The Lancet,
uma das maiores revistas médicas do mundo, pertencia ao PhD. E.A.
Birche descreveu a aplicação da Cannabis como forma de tratamento
para a dependência ao ópio. A planta funcionou como antiemético e re-
duziu o desejo ao ópio. Nos anos seguintes, a maconha estabeleceu-se
como medicamento nos EUA e no continente europeu.

1890
Grécia proíbe Cannabis
Cultivo, importação e uso de Cannabis foi proibido na Grécia em
1890. O haxixe foi considerado uma “ameaça iminente para a socieda-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 103

de”, particularmente entre a juventude pobre e rebelde urbana conhe-


cida como manges que se reuniram em tekedes, cafés na área do porto
de Pireu e centro de Atenas, onde músicos populares tocavam rebetiko
(tipo de música popular da Grécia, conhecido como blues grego), com
letras que faziam referência a Cannabis. Apesar da proibição, o haxixe
continuou sendo largamente usado e a Grécia se tornou um grande
exportador de haxixe para a Turquia e Egito nos anos de 1920.

Herb Museum, California.


Cannabis foi receitado para a perda de apetite, incapacidade de dormir, dores de cabeça
da enxaqueca, dor, espasmos involuntários e tosse excessiva.

1890 - 1912
Cannabis nas prateleiras das lojas em todo o mundo
“Quando pura e administrada com cuidado, a Cannabis é um
dos medicamentos mais valiosos que possuímos”, escreveu o médico
britânico John Russell Reynolds, em 1890, no The Lancet. Ele ainda
prescreveu na forma de uma tintura natural para a sua mais ilustre
paciente, a Rainha Victoria.
104 Lauro R. Pontes

Em meados da década de 1890, a maioria das grandes empresas


boticárias tinham desenvolvido preparações farmacêuticas da planta.
A sua utilização terapêutica foi bem respeitada e plenamente estabe-
lecida. A maconha estava disponível de forma legal em quase todos os
países no final do século XIX.

Da coleção do Dr. Paula Sanders, Rice University.

1892
Cannabis proibição no Egito reconsiderada
Em 1892, a proibição da Cannabis no Egito foi reconsiderada.
O diretor-geral de costumes britânicos, no Egito, observou que a
proibição tinha incentivado lugares ilícitos de fumantes, proliferan-
do contrabando e corrupção. Ele defendeu a aplicação de políticas
de controle e restrição como as usadas na Índia, outra colônia bri-
tânica que, com sucesso, controlou o uso excessivo e autorizava o
consumo moderado. Ele ressaltou que as licenças e impostos dessas
medidas na Índia estavam arrecadando boas receitas, por meio dos
impostos pagos, enquanto o consumo tinha diminuído: “Tem sido
abundantemente comprovado que o uso de haxixe não pode ser su-
primido pela legislação, mas pode ser controlado por um sistema de
licenças que podem ser mantidos sob controle até uma certa exten-
são proporcional”, disse ele.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 105

Imagem do indiano Relatório de cânhamo, Drogas.


Maconha Drinkars.

1894 - 1895
Relatório da Comissão de Drogas da Índia
Este importante relatório de sete volumes concluiu que a Can-
nabis “não produz efeitos prejudiciais sobre a mente”; não leva “para
o crime e a violência”; e que “o uso moderado não produz pratica-
mente nenhum efeito nocivo”. Ele sugeriu o licenciamento comum
do cultivo e tributação sobre as vendas. Nas suas recomendações
mais importantes, o relatório da comissão concluiu que “não é ne-
cessária nem conveniente a proibição do cultivo da Cannabis, de sua
fabricação, venda ou uso, seja de forma recreativa ou medicinal”.
De acordo com o relatório, “proibir ou restringir o uso de uma erva
como a Cannabis só causaria sofrimento e irritação generalizada.»
As suas conclusões foram amplamente ignoradas pela comunidade
internacional nos anos seguintes.
106 Lauro R. Pontes

1905
Maconha como possível tratamento para “asmas e catarros” e
“roncaduras e flatos”
Nessa época, passou a rondar o Brasil a ideia de que a Cannabis
poderia ter fins medicinais, como já ocorria na Europa, e poderia tra-
tar doenças como “asmas e catarros” e “roncaduras e flatos”.

Hamilton Wright, Estados Unidos Opium. Comissário que coordenou os aspectos internacionais da política de c
ontrole de drogas dos Estados Unidos e colaborou para a elaboração de legislação de drogas domésticas. Era um
dos delegados na Conferência Internacional do Ópio 1912.

1911 - 1912
Conferência Internacional do Ópio
Na Conferência do Ópio, em Haia, a delegação italiana, preo-
cupada com o contrabando de haxixe em suas colônias no norte da
África, levantou a questão da Cannabis. Muitos delegados ficaram per-
plexos com a colocação da planta nas discussões.
Produtos farmacêuticos baseados em Cannabis eram frequentes
no início do século XX e não havia nenhuma definição científica cla-
ra da substância. Nem sequer os delegados tinham instruções de seus
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 107

governos para lidar com a substância. Os Estados Unidos apoiaram a


Itália e conseguiram, portanto, adicionar uma resolução à Convenção:
“A Conferência considera que é desejável estudar a questão do cânha-
mo indiano do ponto estatístico e científico, com o objetivo de regular
seus abusos, se a necessidade de tal modificação for percebida, pela
legislação internacional ou por um acordo internacional”.

1912
Califórnia bane a Cannabis
Antes da tentativa de proibição federal nos EUA em conjunto
com o esforço antidrogas dos anos de 1930, alguns estados já tinham
proibido o uso não medicinal da Cannabis, incluído Califórnia (1913),
108 Lauro R. Pontes

Texas (1919), Louisiana (1924) e Nova York (1927). Em 1937, os qua-


renta e oito estados tornaram a Cannabis proibida, através do Marijuana
tax act, que assegurava a proibição em toda a nação.

1913
Ganja proibido na Jamaica
Após a ratificação da Convenção de Haia de 1912, o governo da
Jamaica decidiu proibir a Cannabis, que havia sido introduzida na ilha
pelos trabalhadores indianos contratados que chegaram após a aboli-
ção da escravatura, em 1838. A proibição foi colocada em prática pela
“Ganja Law” de 1913, fomentada pelo Conselho das Igrejas Evangéli-
cas, engajado contra o “cultivo e importação” de Cannabis. Apesar des-
tas medidas, a disseminação do uso da erva fez ocorrer a construção
de uma legislação mais severa a partir de 1924. Foi criada, portanto, a
“Lei das Drogas Perigosas”, que incluiu o aumento de multas e prisão
na primeira condenação.

Projeto jornal Wyoming


Um artigo publicado no Líder Estado Cheyenne em 1913 revela as atitudes racistas e
propaganda em torno do uso e efeitos da maconha na época.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 109

1913
Califórnia proíbe a maconha
Antes que o governo federal dos EUA tentasse harmonizar a
repressão às drogas na década de 1930, alguns estados já haviam de-
cretado proibições contra o uso não medicinal da maconha, incluindo
Califórnia (1913), Texas (1919), Louisiana (1924) e Nova York (1927).
Em 1937, 46 dos então 48 estados do país haviam proibido a substân-
cia. A passagem da Lei do Imposto Marijuana naquele ano assegurando
a proibição seria implementada em nível nacional.

Uma assembleia, um encontro social bastante comum no Nordeste do Brasil até a década de
1940 em que diamba (Cannabis) foi consumido.

1915
Cannabis demonizada no Brasil
O consumo de Cannabis foi desaprovado pela elite branca no Bra-
sil. Rodrigues Dória, um psiquiatra, professor de Medicina Pública e
ex-governador do estado de Sergipe, em um artigo para o Segundo
Congresso Científico Pan-Americano, em Washington DC, no ano de
1915, descreveu “o vício pernicioso e degenerativo” de fumar Cannabis
como uma “vingança dos derrotados”; a vingança dos negros “selva-
gens” contra os brancos “civilizados” que os haviam escravizado. No
Nordeste do Brasil, o consumo de Cannabis era uma forma popular de
socialização em círculos de fumadores, conhecidos como assembleias.
A planta também foi usada nas práticas religiosas africanas: umbanda
110 Lauro R. Pontes

e candomblé. Em 1934, o primeiro congresso afro-brasileiro, ocorrido


em Recife, identificou a Cannabis como parte integrante do patrimônio
cultural de tradição e medicina popular afro-brasileira.

Homem que fuma kif, uma mistura de tabaco picado e Cannabis, num Sebsi,
um tubo com um pequeno barro ou tigela de cobre.

1917
Cannabis permitida em Marrocos
Por volta de 1890, o sultão Mulay Hassan autorizou o cultivo de
Cannabis em cinco Douars (aldeias) nas áreas tribais de Ketama, Beni
Seddat e Beni Khaled. Estas áreas ainda são o coração do cultivo de
Cannabis hoje, apesar da proibição do seu cultivo em 1956, quando o
país se tornou independente. Campos de Cannabis bem conservadas es-
tão por toda a parte em terraços e encostas, mesmo ao longo das prin-
cipais estradas. Moradores locais afirmam que eles estão autorizados a
cultivar Cannabis devido a um dahir (decreto) emitido em 1935 pelas
autoridades do protetorado espanhol de Marrocos do Norte (1912-
1956), com base em um documento anterior, de 1917.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 111

28 de outubro de 1919 - 5 de dezembro de 1933


Proibição do álcool nos Estados Unidos
A emenda 18, promulgada pela lei Volstead, que proibiu a venda
de álcool nos EUA, foi aprovada em 1919 e durou quatorze anos, até
ser revogada em 1933. Em uma semana da sua promulgação, pequenos
alambiques portáteis estavam à venda em todo o país. O resultado foi
uma indústria ilegal de bebidas alcoólicas que fez uma média de US$ 3
bilhões por ano em receitas sem pagar impostos. A proibição falhou por-
que pelo menos metade da população adulta queria continuar a beber e
o policiamento estava cheio de contradições, preconceitos e corrupção.

Liga das Nações Photo Archives


Primeira Assembleia da Liga das Nações, em Genebra, em novembro de 1920.
112 Lauro R. Pontes

1923
África do Sul pede a inclusão do Cannabis na Convenção
A Liga das Nações assumiu a supervisão da Convenção de
Haia de 1912, através do comitê consultivo sobre tráfico de ópio e
outras drogas perigosas. A África do Sul, que já tinha proclamado
uma proibição nacional sobre o cultivo, a venda, a posse e o uso de
Cannabis, escreveu uma carta ao comitê consultivo em novembro
de 1923 dizendo que, a partir de sua perspectiva, a Cannabis seria a
mais importante de todas as drogas que causam dependência, mas
ela não havia sido incluída na lista da convenção. A comissão pediu
aos governos para obter informações sobre a produção, a utilização
e o comércio da Cannabis em uma carta circular em novembro de
1924, no mesmo mês em que a Segunda Conferência sobre o ópio
foi convocada.

UNOG Biblioteca, Liga das Nações Arquivos


Segunda Conferência do Ópio, em Genebra (Suíça), 1924-1925.

1924 - 1925
Segunda Conferência do Ópio, em Genebra
Entre novembro de 1924 e fevereiro de 1925, foram realizadas
duas conferências em Genebra simultaneamente, e dois tratados sepa-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 113

rados foram acertados. A segunda Convenção de Genebra e a Conven-


ção Internacional de ópio de 1925 procuraram impor controles globais
em uma ampla gama de drogas, incluindo pela primeira vez a Cannabis,
referindo-se a ela como “cânhamo indiano”. Mohamed El Guindy, o
delegado do Egito, garantiu a inclusão da droga nas deliberações e se
esforçou para trazê-la para as análises da convenção. Ele afirmou que
a Cannabis era “pelo menos tão prejudicial como o ópio, se não mais”.
O apoio veio da Turquia, da Grécia, da África do Sul e do Brasil, países
que tinham experiência com a proibição da Cannabis, embora apenas
limitada ou sem nenhum sucesso.

UNOG Biblioteca, Liga das Nações Arquivos.


Segunda Conferência do Ópio, em Genebra (Suíça), 1924-1925.

1925
Convenção Internacional do Ópio
A mando do Egito e sem a devida consideração de elementos técni-
cos relevantes que comprovassem as colocações para apoiar a necessidade
de controle, a Conferência decidiu formalmente que “cânhamo indiano”
era tão viciante e tão perigoso quanto o ópio e deveria ser tratado como
tal. A Cannabis foi colocada sob um regime de controle internacional na
114 Lauro R. Pontes

Convenção Internacional do Ópio de 1925. Isso incluiu a proibição de


exportação de Cannabis para países onde era ilegal e a exigência de um
certificado de importação para os países que permitiam a sua utilização.
O novo regime de controle não proibia a produção ou o comércio inter-
no da planta e não impunha medidas para reduzir o consumo doméstico.
A Convenção entrou em vigor em 25 de setembro de 1928.

Bundesarchiv
Koks Emil, vendendo drogas na rua, Berlin 1929.

1928 - 1930
Países europeus fora da lei Cannabis
Na sequência da aprovação da Convenção Internacional do Ópio
de 1925, os países europeus gradualmente proibiram a posse de Can-
nabis e muitas vezes a sua utilização. Exemplos disso são a alteração
feita no Dangerous Drugs Act do Reino Unido de 1928 ou a Lei do Ópio
holandesa revista em 1928, seguida da Lei do Ópio alemã de 1929.
Essas leis excederam as obrigações previstas na Convenção, apesar da
ausência de problemas relacionados com o consumo de Cannabis nesses
países. As proibições foram emitidas em níveis nacionais, com base em
evidências questionáveis, e produziram controles mais rigorosos em
níveis internacionais.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 115

UNOG Biblioteca, Liga das Nações Arquivos.


Comitê Consultivo para a Tráfico de Ópio de 1938.

1934
Cannabis na Liga das Nações
A Cannabis não atraía interesse significativo após a Convenção
de Genebra de 1925. Na década de 1930, no entanto, o comitê con-
sultivo sobre tráfico de ópio e outras drogas perigosas começaram
a prestar cada vez mais atenção à Cannabis, sob a pressão do Egito,
dos EUA e do Canadá. Em 1934, um relatório foi entregue, esti-
mando que houvesse nada menos que 200 milhões de consumidores
de Cannabis em todo o mundo, embora não estivesse claro como
esse número foi alcançado. A delegação egípcia exigiu “a proibição
mundial da planta Cannabis”, mas outras delegações questionaram
as declarações mal fundamentadas. Por conseguinte, a questão foi
remetida para um subcomitê.

1936
Reefer Madness
Reefer Madness é um filme de propaganda americano que gira em
torno de eventos melodramáticos, ocorridos quando os alunos do en-
sino médio são atraídos por traficantes para tentar vender maconha.
Isso resulta em homicídio, suicídio, tentativa de estupro, alucinações
116 Lauro R. Pontes

e loucura. Originalmente financiado por um grupo cristão de título


“Diga aos seus filhos”, o longa foi concebido como um conto moral para
ser mostrado aos pais a fim de ensiná-los sobre os perigos da Cannabis.
No entanto, logo após o filme ser rodado, foi comprado pelo produtor
Dwain Esper, que iria reeditá-lo para a distribuição em cinemas. A obra
cinematográfica foi “redescoberta” no início de 1970 e ganhou vida nova
como um clássico Cult de humor.

Lei do Imposto Marijuana de 1937. Sobreposição em selos fiscais.

1937
Marijuana Tax Act
O ato fiscal da maconha, aprovado pelo Congresso dos Esta-
dos Unidos em agosto de 1937, proibiu a Cannabis no país. Diante
da Lei, a planta permaneceu legalizada, mas os importadores, os
vendedores, os distribuidores e qualquer manipulação da droga es-
tavam sujeitos ao pagamento de um imposto. As disposições da lei,
no entanto, não foram projetadas para aumentar a receita, ou sequer
para regular o uso da maconha, mas sim para fornecer os mecanis-
mos legais com o objetivo de fazer cumprir a proibição de qualquer
uso da maconha no país.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 117

1937
Primeira condenação por maconha nos EUA
Samuel R. Caldwell foi a primeira pessoa condenada por vender
Cannabis sob o ato fiscal da maconha. Os agentes de repressão às drogas
o prenderam com 3 libras de Cannabis em seu apartamento, em Den-
ver, Colorado. Ele foi condenado a quatro anos de trabalhos forçados,
além de uma multa de US$ 1.000. O chefe da divisão de narcóticos do
FBI na época, Harry Anslinger, veio a Denver para assistir ao julgamen-
to. Caldwell foi preso na idade de 58 e solto aos 60. Ele morreu um
ano após a sua libertação. 76 anos mais tarde, Colorado foi o primeiro
estado dos EUA a permitir um mercado de Cannabis regular.

O artigo de Leopoldo Salazar Viniegra (esquerda) e Salazar em Criminalia em que ele questionou
a existência de uma psicose maconha e argumentou que o álcool desempenhou um papel muito mais importante
no aparecimento de problemas de psicose e sociais.
118 Lauro R. Pontes

1938
O Mito Maconha
O psiquiatra mexicano Leopoldo Salazar Viniegra publicou El
mito de la marihuana (O Mito da Maconha), questionando a relação da
planta com a loucura, a violência e o crime. Devido à proibição em
1920 da Cannabis no México, 80% dos violadores da lei de drogas eram
usuários de maconha. Salazar defendeu uma revogação da proibição
da Cannabis para minar o tráfico ilícito e focar os mais graves proble-
mas, que envolviam álcool e opiáceos. Salazar passou a ser inimigo do
Bureau federal para narcóticos FBN, representado pela figura do seu
diretor Anslinger, que foi contra a opinião do médico no México. Ele
se demitiu em 1940 do cargo de chefe de Serviço de Narcóticos Fede-
ral do México, depois de uma campanha em que foi descrito como um
louco e “propagandista da maconha”.

Fred Palumbo, World Telegram equipe Fotógrafo – Biblioteca do Congresso.


New York World-Telegram & coleção de Sun.
Prefeito de Nova York Fiorello LaGuardia.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 119

1944
Comitê La Guardia relatório sobre Cannabis
O relatório do Comitê La Guardia foi o primeiro estudo aprofun-
dado sobre os efeitos da maconha nos Estados Unidos. Os relatórios
contradisseram sistematicamente as alegações de que o consumo de
Cannabis resulta em demência, deterioração da saúde física e mental,
incentivo de comportamento criminal, e também de que a planta seja
fisicamente viciante e uma porta de entrada para outras drogas mais
perigosas. O relatório foi preparado pelo NewYork Academy of Medicine,
em nome de uma comissão sobre Cannabis criada pelo prefeito de Nova
York, Fiorello LaGuardia, em 1939. O relatório enfureceu Harry Ans-
linger, que o condenou como não científico.

Dr Eelco N. van Kleffens representante permanente dos Países Baixos para as Nações Unidas, assina o documento
protocolo relacionado com os acordos e convenções sobre estupefacientes concluídos em 1912, 1925, 1931 e
1936 como chefe Johan de Noue da Seção de protocolo e de ligação da ONU observa (11 de dezembro de 1946).

1946
Comissão de Entorpecentes
O Conselho Econômico e Social da recém-criada Organização
das Nações Unidas estabelece a Comissão de Estupefacientes (CND,
em inglês) como o principal órgão de decisão política para assuntos
120 Lauro R. Pontes

relacionados às drogas, substituindo o Comitê Consultivo da Liga das


Nações. Durante sua primeira reunião em 1946, houve debates abertos
sobre o uso da Cannabis, com pareceres médicos dos EUA (o Relatório
La Guardia) e do México. O parecer mexicano refutava quaisquer danos
significativos relacionados com a saúde e confirmava a não influência da
Cannabis no comportamento criminoso. Além disso, havia o delegado da
Índia, que afirmava o uso da “ganja” (nome dado a Cannabis) e do “bhang”
(bebida à base de Cannabis), com moderação, pelo povo indiano.

ONU Foto / MB
Dois dos delegados para a sétima sessão da Comissão dos Estupefacientes troca de pontos de vista antes de uma
reunião: Saleh A. Mahmoud (à esquerda), do Egito; e Harry J. Anslinger, dos Estados Unidos. Anslinger desempe-
nhou um papel de liderança na CND trabalhando em um tratado “single”.

1948 - 1958
Rumo à Convenção Única de 1961
Em 1948, o Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC)
aprovou uma resolução do CND redigida pelos EUA para elaborar uma
nova convenção e substituir todos os tratados existentes da Convenção
de 1912, de Haia em diante. Entre 1950 e 1958, três projetos foram
apresentados. Havia duas abordagens, as duas afirmavam que a Canna-
bis recreativa precisava ser rigorosamente desestimulada. A primeira
opção foi a de que a droga em questão não tinha nenhuma utilidade
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 121

médica legítima e que não poderia ser tratada como outras “substân-
cias menos perigosas”. Com a exceção de pequenas quantidades para
fins científicos, a produção de Cannabis seria proibida por completo. A
segunda opção reconhecia que a planta tinha fins médicos legítimos e
que deveria ser produzida exclusivamente por um monopólio estatal
para fins médicos e científicos.

1955
Cannabis condenados
A Comissão das Nações Unidas sobre Estupefacientes declarou
que a Cannabis não tinha nenhum valor medicinal com base em um
relatório elaborado por Pablo Osvaldo Wolff, que não possuía nenhum
fundamento científico. Ele foi deliberadamente mal produzido e não
recebeu o endosso da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em
1949, Wolff escreveu um panfleto, com prefácio de Anslinger, referin-
do-se à Cannabis como “demônio do extermínio, que agora irá atacar o
nosso país”. O surpreendente relatório de Wolff continua a ser a base
para a classificação de Cannabis da ONU até hoje.
122 Lauro R. Pontes

Tom Maisey / Flickr


Uma loja de cânhamo em Jaisalmer, Rajasthan

1961
Índia resiste à inclusão de folhas de Cannabis e sementes
O terceiro projeto da Convenção Única de 1958 incluiu uma
seção especial no âmbito da “proibição da Cannabis”. A oposição, en-
tretanto, impediu a adoção na Conferência de Plenipotenciários, que
negociou o projeto em Nova Iorque. A Índia se opôs à proibição do uso
tradicional do bhang, a bebida produzida a partir da maconha e que
tem um teor psicoativo baixo, descrito pelo delegado indiano como
uma “bebida levemente inebriante”, que era “muito menos prejudicial
do que o álcool”. Como resultado, folhas e sementes foram omitidos da
definição de Cannabis, que só se refere à “floração ou frutificação dos to-
pos da planta”. Como tal, o uso tradicional de bhang poderia continuar.

1961
Cannabis oficialmente colocada na lista de
medicamentos “perigosos”
A Cannabis foi incluída no Anexo IV da Convenção Única de 1961
sobre Entorpecentes, considerada como um elemento dos “mais peri-
gosos, excepcionalmente viciante e produtor de efeitos nocivos graves”.
Os signatários foram chamados a “proibir a produção, a fabricação, a im-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 123

portação e a exportação, o comércio, a posse ou a utilização” a planta, “à


exceção dos montantes que possam ser necessários para a investigação
médica e científica única”. O Artigo 49 requeria a abolição do uso tradi-
cional de Cannabis logo que possível com um atraso máximo de 25 anos.

O químico Dr. Raphael Mechoulam e a pesquisa avançada sobre Cannabis em Israel.

1963
Elementos psicoativos da Cannabis descobertos
Raphael Mechoulam e seus parceiros de pesquisa da Universi-
dade Hebraica de Jerusalém descobriram a estrutura do canabidiol
(CBD). No ano seguinte, eles isolaram o delta-9-tetrahidrocanabinol
(THC), estabelecendo a sua estrutura e síntese.

Mr. Soekardjo Wirjopranoto da Indonésia. A assinatura do Acto Final da Convenção Única sobre Entorpecentes.
124 Lauro R. Pontes

1964
Convenção Única de 1961 entra em forçar
O número necessário de 40 ratificações da Convenção Única de
1961 foi alcançado em dezembro de 1964. O período de teste de 25
anos de Cannabis terminou, portanto, em 1989. As disposições espe-
ciais sobre a planta estão incluídas na Convenção Única de 1961 (artigo
28 sobre o controle de Cannabis e 49 sobre seu uso tradicional).

1966 - 1967
Cannabis e 1960
Devido à crescente popularidade e à utilização cada vez mais
generalizada da Cannabis, particularmente na sua estreita associação
com os movimentos contra-culturais emergentes, a planta tornou-se
o foco das atividades de repressão às drogas em muitos países ociden-
tais na década de 1960. Prisões por delitos de drogas atingiram níveis
sem precedentes. Impulsionada em grande parte pelo crescimento
das prisões por porte simples para consumo próprio, resultando em
penas de até 10 anos.
Nos EUA, as infrações aumentaram 94,3% entre 1966 e 1967,
ano em que a Convenção foi ratificada em Washington.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 125

Robert Kennedy Jr., filho de 16 anos de idade do falecido Robert Kennedy, deixa corte em Barnstable,
Massachusetts, após uma audiência sob a acusação de posse de maconha em agosto de 1970.

1969 - 1977
Crescentes apreensões de Cannabis provocam debate
O grande número de consumidores de Cannabis, composto
predominantemente por jovens que receberam multas e até penas de
prisão, fomentou a produção de debates políticos consideráveis, bem
como inquéritos públicos e comissões para examinar o uso de drogas e
recomendar mudanças na lei. Alguns deles foram: o relatório do Rei-
no Unido produzido pelo Comitê Consultivo sobre Dependência de
Drogas, o Relatório Wootton de 1969, a Comissão holandesa de Baan de
1970, a Comissão Hulsman de 1971, a Comissão Nacional dos EUA so-
126 Lauro R. Pontes

bre Maconha e Abuso de Drogas, também conhecida como a Comissão


Shafer de 1972; no Canadá, a Comissão de Inquérito sobre a Utilização
Não Medicinal de Medicamentos, também conhecida como a Comis-
são Le Dain de 1973 e a Comissão Especial do Senado da Austrália sobre
Bem-Estar Social de 1977.

Presidente Nixon, um dos membros da Comissão Nacional de Maconha e Abuso de Drogas


(mais conhecida como a Comissão Shafer). O governador Raymond Shafer, da Pensilvânia,
e presidente da Comissão está de pé à direita de Nixon.

1970 - 1972
Relatório da Comissão Shafer
O Congresso dos EUA aprovou a Lei de Substâncias Contro-
ladas em 1970, rotulando a Cannabis, mas reconheceu que não sabia
o suficiente sobre ela. A Comissão Nacional sobre o uso da maconha
criada por Nixon (mais conhecida como a Comissão Shafer) reco-
mendou, no seu relatório de 1972, que o uso da maconha não deve
ser um crime sob lei estadual ou federal. Nixon não gostou e reagiu
fortemente. Em uma conversa gravada um dia antes de o relatório ser
divulgado, Nixon disse: “Nós precisamos, e eu uso a palavra ‘guerra
total’, em todas as frentes... Temos que atacar em todas as frentes”.
Ele anulou a investigação da Comissão e a maconha ficou condenada
ao seu estatuto ilegal atual.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 127

1971
Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas
Uma década após a Convenção Única, o princípio ativo funda-
mental da Cannabis, delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) ou dronabinol,
foi incluído na Convenção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópicas —
um tratado internacional de controle, que visa discorrer sobre substân-
cias psicoativas que não tinham sido incluídas na Convenção Única de
1961, muitas delas produzidas pela indústria farmacêutica.

17 de julho de 1971
Nixon declara “guerra às drogas”
Motivado por vício entre soldados dos EUA no Vietnã, o presi-
dente Nixon chamou o abuso de drogas de “inimigo público número
um”. Gravações, feitas no salão oval da casa branca entre 1971 e 1972,
revelaram a desinformação e o preconceito que estavam por trás da
proibição da maconha. Embora a Comissão Shafer ainda estivesse vi-
gente para o uso de maconha, Nixon comentou com seu assessor Bob
Haldeman: “Você sabe, é engraçado, cada um dos bastardos que estão
apoiando a legalização da maconha é judeu. Por que será que isso é o
assunto com os judeus, Bob? Qual é o problema com eles? Acho que é
porque a maioria deles são psiquiatras”.

Senegal Sinais. Protocolo de 1961. Convenção Única sobre Entorpecentes (ONU Foto / Yutaka Nagata).
128 Lauro R. Pontes

25 de março de 1972
Convenção Única de 1961 alterada
O protocolo que altera a Convenção Única sobre Entorpecen-
tes foi assinado e deveria entrar em vigor em 1975. Ao invés de fazer
mudanças dramáticas na Convenção Única, o Protocolo de disposições
reforçou as medidas de aplicação da lei e também fez uma maior pro-
visão para tratamento, reabilitação e medidas de prevenção. O artigo
36 foi alterado e introduziu a opção de alternativas às sanções penais:
“as partes poderão prever, quer como uma alternativa à condenação
ou pena, quer como complemento à condenação ou punição, que tais
abusadores de drogas devem ser submetidos a medidas de tratamento,
educação, pós-tratamento, reabilitação e reintegração social”.

Coffeeshop Mellow Yellow: na verdade, uma casa de chá, no momento em que foi fundada, em 1972. Foi uma das
primeiras lojas em Amsterdã que vendiam Cannabis abertamente (Foto: Maio de 1978).

1973 - 1980
Modificações e tolerâncias nos EUA e na Holanda
Um número de estados dos EUA (Oregon, Alasca e Califórnia)
descriminalizou o porte pessoal de Cannabis. Oregon foi o primeiro
estado a descriminalizar a posse de pequenas quantidades da erva. Se-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 129

gundo as recomendações da Comissão Shafer, o porte de até uma onça


(28,3 gramas) de maconha no Oregon tornou-se uma violação, não
um crime, punível apenas com uma multa de US$ 500 a $ 1000. A
Califórnia seguiu, em 1975, tornando a posse sob uma onça para uso
sem fins medicinais punível com uma multa de US$ 100. A Holanda
chegou mais perto de legalização, mas não o fez por medo de violar a
Convenção de 1961. O consumo foi, portanto, descriminalizado en-
quanto a produção manteve-se ilegal.

Koos Zwart, o filho de Dutch, ministro da saúde pública, transmitido os preços por grama de diferentes
variedades de Cannabis. Isso ocorreu em seu programa semanal “Beursberichten” (notícias de ações),
transmitido por uma rádio nacional — VARA —, pertencente ao Dutch.

1976
A ascensão do café
A Holanda descriminalizou a Cannabis através da introdução de uma
política de não execução por violações envolvendo a posse ou a venda de
até 30 gramas da planta. A nova Lei do Ópio fazia distinção entre drogas
que envolviam riscos inaceitáveis — drogas pesadas, como a heroína — e
produtos de Cannabis — drogas leves. Ao longo dos anos, um sistema dos
chamados coffeeshops, que permitem aos usuários comprar a erva e consu-
mi-la, foi autorizado sob determinadas condições.
130 Lauro R. Pontes

2 de agosto de 1977
Presidente Carter apoia descriminalização
Em agosto de 1977, o presidente Jimmy Carter, em uma men-
sagem ao Congresso, assumiu as recomendações do relatório Shafer,
renegado pelo seu antecessor Nixon: “sanções contra a posse de uma
droga não devem ser mais prejudiciais para um indivíduo do que o uso
da droga em si. Isso é muito claro nas leis contra a posse de maconha
em particular para uso pessoal”. Carter apoiou a legislação a fim de
eliminar todas as penas criminais federais para a posse de até uma onça
(28 gramas) de maconha, deixando que os estados adotassem leis indi-
viduais sobre o uso de Cannabis.

1981
Periódico indica efeito benéfico do CBD
para controle de crises convulsivas
O grupo do Prof. Dr. Elisaldo Carlini, da UNIFESP, publica um pe-
riódico científico internacional bastante estimado. O estudo que constava
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 131

nele tratava de incluir uma pequena amostra de oito pacientes e descrevia


o efeito benéfico que o CBD surtia no controle de crises convulsivas.

1982 - 1988
“Basta dizer não” – a guerra às drogas
Depois de algum amolecimento em Carter, o pêndulo oscilou de
volta ao proibicionismo de Reagan e sua proclamada “guerra às drogas”.
Os resultados nos níveis de encarceramento nos EUA foram recordes
e, também, a nível internacional, do aumento do financiamento para
programas de erradicação das drogas, resultando em crescentes abusos
dos direitos humanos.
Em 1988, a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilí-
cito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas foi aprovada, o que
reforçou significativamente a obrigação dos países de aplicar sanções
penais para a produção ilícita, a posse e o tráfico de drogas.
O comentário à Convenção de 1988 em relação ao seu artigo 3 é
bastante claro sobre a questão da não criminalização de uso: “...como
em 1961 e 1971, o parágrafo 2 não exige que o consumo de drogas,
como tal, deve ser estabelecido como uma ofensa punível”.

Hamid Ghodse (à esquerda), presidente da JIFE por nada menos que 11 vezes, e repórteres de briefing em Viena.
132 Lauro R. Pontes

1992 - 2013
JIFE continua a obstruir reforma
A Junta Internacional de Controle de Narcóticos (INCB), apoiada
por vários países, agiu como defensora do status quo, em vez de facili-
tadora da mudança. Muitas vezes, ela nomeou e envergonhou os países
mais tolerantes, que reivindicavam a maconha medicinal, em seus rela-
tórios anuais. Além disso, alegava que os esforços para a descriminaliza-
ção estavam enviando os “sinais errados” sobre a nocividade da Cannabis.

A ação de ARSEC marcou o início precoce do movimento Cannabis Clube Social, na Espanha. A falta de reação legal
nos últimos anos fez com que associações buscassem alguma estabilidade institucional e legal para os cultivos da planta.

1994
A ruptura catalã: primeiro cultivo de Cannabis coletivo
No ano de 1997, em Barcelona, membros da Asociación Ramón
Santos de Estudos Sobre el Cannabis (ARSEC) plantaram duas plantas de
Cannabis por pessoa para consumo pessoal, como parte de uma empresa
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 133

sem fins lucrativos e autossuficiente. ARSEC questionou ao Ministério


Público se seria considerado crime cultivar Cannabis para uso próprio
por um grupo de usuários adultos. A resposta foi que, em princípio,
esse não era um comportamento criminoso. O experimento de cultivo
recebeu, então, atenção da mídia e acabou sendo confiscado. O tribu-
nal provincial absolveu os envolvidos, embora eles tenham, posterior-
mente, sido condenados pelo Supremo Tribunal de Justiça do país.

1995
A projeção da OMS sobre as implicações para a saúde do
consumo de Cannabis
O relatório foi lançado em agosto de 1995, concluindo que: “nos
padrões existentes de uso, a Cannabis representa um problema muito
menos grave de saúde pública do que é atualmente o álcool e o tabaco
nas sociedades ocidentais”. Alguns funcionários da OMS se posiciona-
ram veementemente contra o relatório. Num comunicado de impren-
sa, a OMS defendeu sua decisão de excluir a conclusão comparativa
do relatório final, dizendo que não tinha sido “nenhuma tentativa de
esconder qualquer informação” e que “a decisão de não incluir essa
comparação no relatório final foi baseada em julgamento científico e
não tinha nada a ver com a pressão política”.

Ativistas oferecem cigarros de maconha a policiais em protesto nacional que tinha como objetivo a
manutenção da política pública para Cannabis holandesa.
134 Lauro R. Pontes

1995
Regulação da Cannabis holandesa.
Em 1995, um novo governo decidiu regulamentar a prestação de
Cannabis aos coffeeshops. A nova política foi preparada, mas foi cortada
pela raiz após a intervenção do presidente da França, Jacques Chirac.
Como resultado, as políticas nacionais de droga na Europa tiveram de
aderir ao menor denominador comum no seio da União Europeia. Isso
significa que os países puderam obstruir as reformas mais liberais nas
políticas da maconha, com base nas convenções de controle de drogas
restritivas da ONU, incorporados à legislação europeia.

1996
Movimento Pró-Maconha Medicinal
Em 1996, os eleitores da Califórnia aprovaram a Proposição 215,
a Lei de uso compassivo, dispensando, assim, o uso médico da Cannabis
de sanções penais. Foi essa proposição que iniciou uma nova onda de
deserções maciças da legislação anterior até a enorme gama de estados
americanos que já permite o uso medicinal.

1998
UNGASS sobre o problema mundial das drogas
A sessão da ONU, em Assembleia Geral Extraordinária sobre o
Problema Mundial das Drogas (UNGASS 1998), realizada entre 08 e 10
de junho, em Nova York, não trouxe nenhuma surpresa. A comissão de
drogas adotou uma estratégia global para reduzir a oferta e a demanda
de drogas ilícitas até 2008. Contudo, no geral, foi uma oportunidade
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 135

perdida, sem avaliação das políticas de drogas existentes. O anúncio do


jornal The NewYork Times dizia: “Acreditamos que a guerra global contra
as drogas está agora causando mais danos do que o próprio abuso de dro-
gas”, assinado por cerca de 500 líderes mundiais de destaque, foi em vão.

A ONG “Crescer na maior”, de Portugal, entrega kits com preservativos, seringas, etc. para viciados em
heroína. Eles retornam e permitem o diálogo, tratando aqueles que estão adoecidos e testando outros para obter
informações sobre as doenças.

2001
Portugal descriminaliza todas as drogas, incluindo Cannabis
Portugal tomou as medidas mais radicais para descriminalizar to-
das as drogas, e passou a tratar a dependência como caso de saúde em
vez de como problema criminal. Os resultados são de que a situação das
drogas em Portugal melhorou significativamente em várias áreas-chave.
Mais notavelmente, infecções por HIV e mortes relacionadas com drogas
diminuíram, enquanto o aumento do uso, temido por alguns, não se con-
cretizou. Portugal acertou no sentido de uma abordagem sobre drogas
centrada na saúde, bem como nas mudanças de políticas sociais de saúde
mais amplas, que são responsáveis pelas melhorias observadas.

2002
Cannabis Social Clubs na Espanha
A ascensão de Clubes Sociais de Cannabis (CSC), na Espanha,
permitiu que milhares de pessoas pudessem produzir legalmente
136 Lauro R. Pontes

seus próprios fornecimentos de maconha para consumo pessoal e,


assim, garantir a boa qualidade do produto. Clubes começaram a
aparecer em todo o país, devido a uma zona cinzenta na legislação
espanhola, e através de um sistema de registro legal para grupos de
usuários que coletivamente cultivam maconha. No início de 2014,
havia de 800 a 1000 clubes legalmente constituídos. Como resulta-
do, o “modelo espanhol” é agora discutido, replicado e melhorado
muito além das fronteiras da Espanha.

2006
Relatório Mundial de Drogas sobre a Cannabis
Em 2006, o Relatório Mundial sobre Drogas tinha um tópico
especial sobre a Cannabis, que levantava a questão fundamental em re-
lação a planta hoje: “o mundo não foi capaz de chegar a um acordo so-
bre a Cannabis. Em alguns países, o consumo de Cannabis e seu tráfico
são levados muito a sério, enquanto, em outros, eles são praticamente
ignorados. Essa incongruência mina a credibilidade do sistema inter-
nacional. O tempo para resolver a ambivalência global sobre o tema
está muito atrasado. Ou a diferença entre a letra e o espírito da Con-
venção única, de modo manifesto com Cannabis, precisa ser superado,
ou partes da Convenção precisam ser discutidas para a redefinição do
estatuto da Cannabis”.

2007
Lançamento do livro Maconha, Cérebro e Saúde
Os neurocientistas Renato Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro
lançaram um livro que, somado aos esforços de pesquisadores bra-
sileiros, principalmente os que são relacionados ao CEBRIDE, teve
o propósito de divulgar informações sobre o sistema endocanabi-
nóide e suas capacidades medicinais. A obra gerou grande impacto
tanto no meio acadêmico quanto no que tange o público em geral.
Sua primeira edição foi completamente esgotada. Além disso, o li-
vro serviu de roteiro para o filme Cortina de Fumaça, de Rodrigo
Mac Niven.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 137

Presidente da Bolívia, Evo Morales, discursando sobre a folha de coca na ONU.

11 março de 2009
ONU recicla promessas irrealistas
A reunião de alto nível das Nações Unidas em Viena conclui, após
2 anos, a longa revisão do progresso do sistema de controle de drogas
global. Apesar dos apelos de outras agências da ONU e da sociedade
civil internacional, pedindo ao CND para afirmar seu apoio às medi-
das de redução de danos e de reequilíbrio do sistema de controle de
drogas, no sentido de uma abordagem de saúde pública e dos direitos
humanos, a nova Declaração Política e Plano de Acção simplesmente
reafirma os compromissos do UNGASS 1998. Eles repetem promessas
ilusórias para uma sociedade “livre do abuso de drogas” e definem ou-
tra data-limite, de 10 anos, para eliminar ou reduzir significativamente
o cultivo ilícito de papoula, da coca e da planta de Cannabis.

2010
Estreia o documentário “Cortina de Fumaça”
O filme “Cortina de Fumaça”, de Rodrigo Mac Niven, chega aos
festivais de cinema no Brasil e no restante do mundo. O documentário
gerou grande impacto político, trazendo ao grande público brasileiro,
pela primeira vez, uma discussão aprofundada e inovadora sobre o uso
da Cannabis medicinal e sobre os problemas criados a partir de sua proi-
bição. A obra cinematográfica conta com depoimentos do ex-presidente
138 Lauro R. Pontes

do Brasil Fernando Henrique Cardoso; do ex-secretário nacional de jus-


tiça e diretor da SENAD, Pedro Abramovay; dos médicos Dartiu Xavier,
Elisaldo Carlini; dos neurocientistas Renato Malcher-Lopes e Sidarta
Ribeiro, autores do livro “Maconha, cérebro e saúde”. Além disso, conta
com declarações de demais juristas, antropólogos, sociólogos, historia-
dores, juízes e políticos renomados nacional e internacionalmente.

2011
Marcha da Maconha é liberada no Brasil
A Marcha da Maconha é um movimento muito importante para a
discussão sobre políticas públicas que regem o uso da Cannabis no Brasil.
O assunto sobre o uso medicinal da planta sempre foi discutido pela Mar-
cha. Isso o levou à pauta do programa televisivo “Fantástico”, em 2011,
no qual, pela primeira vez, uma pesquisa de opinião pública televisionada
obteve maioria de votos favoráveis à regulamentação da maconha no país.

6 de novembro de 2012
Os dominós começam a cair
Os eleitores no estado de Washington e no estado de Colorado
aprovaram iniciativas estabelecendo mercados legalmente tributados
e regulados para a produção, venda e uso de Cannabis. Isso violou a
convenção de 1961 e colocou os EUA em uma posição desconfortável
e insustentável como um dos defensores chave das convenções inter-
nacionais sobre drogas. Nesse mesmo ano, Charlotte Figi, de 5 anos de
idade, portadora da síndrome de Dravet, tem suas crises convulsivas
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 139

tratadas a partir do uso do óleo CBD. Sua história foi bastante divulga-
da pela imprensa dos EUA e teve repercussão na internet.

10 de dezembro de 2013
Alguém tem que ser o primeiro
O Uruguai tornou-se o primeiro país no mundo a regular legal-
mente o mercado de Cannabis, da semente à venda no varejo. Por isso,
foi imediatamente denunciado pelo International Narcotics Control Board
(INCB). O país pediu um debate aberto e honesto sobre a política de
controle de drogas internacional.
Além disso, nessa mesma época, no Brasil, foi realizadoo pri-
meiro Congresso Internacional de Drogas, Lei, Saúde e Sociedade.
O evento foi organizado por uma parceria entre a UnB, o Conselho
Federal de Psicologia, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre
Psicoativos, a Associação Brasileira de Estudos de Psicoativos, a Rede
Pense Livre e a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde.
O episódio reuniu diversos oradores vindos de países como Argenti-
na, Canadá, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Portugal e Uruguai.
O evento, reconhecido por ser o maior congresso sobre inovação de
política de drogas concretizado na América Latina, ocorreu no Museu
Nacional da República.
140 Lauro R. Pontes

1º de janeiro de 2014
Colorado implementa regulação da Cannabis
O Colorado torna-se o primeiro estado nos EUA a permitir as
vendas legais de Cannabis, bem como o uso e posse de até uma onça
(28 gramas) da planta a qualquer pessoa acima de 21 para qualquer
finalidade.

4 de novembro de 2014
Mais três estados nos EUA aprovaram a
regulamentação de Cannabis
No Alaska, Oregon e Washington DC, os eleitores aprovaram
medidas de legalização da Cannabis. 58% dos americanos diz que o uso
de maconha deve ser legal nos EUA. Quando o Instituto Gallup de
pesquisas abordou pela primeira vez a questão, em 1969, 12% dos
norte-americanos pensavam uso da maconha deveria ser legal.

31 de março de 2015
Jamaica descriminaliza Cannabis
A Lei de Drogas Perigosas ficou no passado. A posse de até 2
onças (56 gramas) ou menos de maconha não é mais um delito pelo
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 141

qual se pode ser preso, acusado, convocado a ir a um tribunal e não


vai resultar, também, em um registro criminal. No entanto, a polícia
pode emitir uma notificação a uma pessoa na posse de 2 onças ou
menos, semelhante a uma multa de trânsito. A cada família é per-
mitido o cultivo legal de até cinco plantas de Cannabis em casa. A
comunidade Rastafári passou a poder usar maconha como parte de
seu ritual religioso.

A major Monika Herrmann, em Berlin, posta a petição do projeto piloto para regulamentação da Cannabis na
Alemanha, no dia 26 de junho de 2015, dia internacional de combate ao abuso de drogas. Esse pedido foi rejei-
tado pelo instituto de farmácia federal alemão.

26 de junho de 2015
Regularização de Cannabis na Europa?
Enquanto a reforma da política de Cannabis nos EUA está mu-
dando rápido, a Europa parece estar ficando para trás. Em países eu-
ropeus, os governos nacionais não parecem se mexer para a mudança
de cenário. No nível local, no entanto, o desconforto com o regime de
Cannabis atual dá origem a novas ideias. Em vários países da Europa,
as autoridades locais e regionais estão olhando para regularização, seja
devido à pressão advinda dos movimentos de base — em particular a
Cannabis Social Clubs (CSCs) — ou por conta do envolvimento de gru-
pos criminosos e da desordem pública.
142 Lauro R. Pontes

20 de outubro de 2015
Canadá no caminho para a regulamentação da Cannabis
Carregando uma tocha para a regulamentação da Cannabis,
o Partido Liberal do Canadá ganhou com maioria absoluta no par-
lamento do país. Ele provavelmente vai realizar uma promessa de
campanha de fazer do Canadá o próximo país a permitir a maconha
para uso recreativo. “Quando os canadenses podem esperar que você
legalize a Cannabis agora que você está eleito?”, um repórter pergun-
tou ao primeiro-ministro eleito Justin Trudeau. “Nós vamos começar
a fazer isso imediatamente”, disse ele. Uma forte maioria, de 68 por
cento no Canadá, concorda com o plano para regularizar a Cannabis,
e metade deles acha que os usuários devem ser capazes de plantar
suas próprias ervas em casa.

2016
O consumo de Cannabis hoje
A Cannabis é a substância ilícita mais consumida no mundo. De
acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas de 2015, em nível mun-
dial, 181,8 milhões de pessoas com idades entre 15 e 64 anos relataram
o uso da planta em 2013.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 143

Novembro de 2016 - Última atualização


No dia da eleição que colocou Donald Trump no cargo de pró-
ximo presidente dos EUA, foi aprovada a legalização do uso recreativo
da maconha nos estados da Califórnia, de Massachusetts e de Nevada.
A autorização na Califórnia venceu com 55% dos votos. Em
Massachusetts, o “sim” obteve 53,5% como resultado. Em Nevada,
54% dos votos foram positivos. No Arizona, o quinto estado que
levava a medida às urnas, a medida foi negada com uma rejeição de
52% dos votos.
Com Califórnia, Massachusetts e Nevada, a maconha passará a
ser legal em oito estados da União. Ela já estava liberada no Alasca, no
Colorado, em Oregon, no estado de Washington e no Distrito de Co-
lumbia, onde fica a capital.
Além disso, outros quatro estados — Flórida, Arkansas, Mon-
tana e Dakota do Norte — aprovaram a legalização da maconha para
fins medicinais.
A maconha: desconstruindo mitos e propagando informação

A linha do tempo apresentada anteriormente mostra claramente


as articulações sociopolíticas pelas quais a maconha passou ao longo de
sua caminhada junto à humanidade. Foi no início do século XX que a
maconha foi colocada junto com drogas refinadas e chamada a confe-
rências mundias sobre saúde, como a de Haia, em 1911, as questões
políticas tomaram o lugar do conhecimento empírico e já científico
e ignoraram não só o relato indiano, como todos os outros trabalhos
científicos da época. Comissões sobre drogas de vários lugares do mun-
do relatavam os efeitos medicinais da maconha e eram ignorados pelos
políticos preocupados apenas em efetivar a proibição, no embrião que
daria origem a chamada “guerra as drogas”, expediente que perdura até
hoje na maior parte dos países que ainda proíbem a maconha e que nun-
ca produziu resultado algum.
Fica claro que o uso da Cannabis sempre foi motivo de discór-
dia e interesses na história da humanidade, apesar de seu uso primá-
rio sempre ter sido medicinal, tratando com sucesso uma infinidade
de enfermidades. Quando ela passou a fazer diferença na contex-
tualização socioeconômica, os governos passaram a tentar aniquilar,
sem sucesso, seu consumo, através da proibição. Com o advento da
imprensa e da propaganda, sua instância é conjecturada a factoides,
com o aval dos órgãos competentes e com a anuência ou voz silen-
ciada dos médicos da época. Assim, a planta é mitologizada com as
atribuições dadas a ela que persistem até hoje em quem não buscou
se informar sobre o assunto. Ao passo em que ela é posta à margem
146 Lauro R. Pontes

da sociedade, o grande público perde o interesse e esquece grada-


tivamente de seus usos, outrora tão importantes. Ele passa, assim,
a demonizar o usuário, pejorando sua figura, sempre em associação
com questões negativas para o desenvolvimento do ser e o que a
sociedade espera dele.
É claro que cada situação recortada sobre ela daria um estudo
aprofundado sobre o ocorrido, um banquete de interações psicosso-
ciais que infelizmente não é possível analisar aqui. Podemos, no en-
tanto, olhar a linha do tempo acima pela ótica da teoria ator rede e
construir toda a narrativa que se performou ao longo dos anos, sempre
colocando a maconha numa zona cinza, evitando sua completa com-
preensão e estudos aprofundados, carregando-a de preconceito e fac-
toides. Como já disse anteriormente, refiro-me à observação sobre as
articulações que a maconha possui e se conecta, produzindo os nós de
contato com uma rede de instâncias que denotam uma carga enorme
de preconceito e desinformação proposital.
No trajeto, senti-me como se estivesse pegando um trem
em movimento. A maconha tem sua história e trajetória, e eu me
choquei nessa expressão. O Growroom, A Rede Compromisso, A
ABRACannabis são também capturas de realidade em consonância
paralela com a história da maconha. Uma vai atuando na outra, as-
sim como as duas em mim, e todos nós, atados e atuantes em busca
do direito à pesquisa.
É necessário explicar um pouco os aspectos fisiológicos da ma-
conha. Minha intenção aqui é nobre. Quando eu comecei a estudar,
sempre fazia referência a pessoas as quais sei que sofrem de enfermida-
des que podem ser melhoradas ou atenuadas com maconha. À medida
que ia aprendendo, ia propagando a informação. Eu procurava ajudar
os que precisam e, ao mesmo tempo, criar massa crítica para mudar a
face social da maconha. Tentava fazer com que ela passasse a ser vista
como remédio e não mais sobre o estigma do “doidão”, “largado”, “cha-
pado”. Como toda escrita crítica é algo temporalizado, desejo que um
dia esse pedido seja já desnecessário.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 147

As múltiplas facetas sociais da planta


Maconha é um anagrama do seu nome mais comum e antigo:
Cânhamo. Sempre foi matéria prima para humanidade. Foi num pa-
pel feito de fibras de maconha que Gutenberg produziu as primei-
ras 135 Bíblias impressas do mundo, sendo um desses exemplares
parte do acervo da Biblioteca Nacional na Cinelândia, no centro do
Rio de Janeiro.
A maconha sempre foi uma fonte de recursos para indústria de
base e infraestrutura. Na antiguidade, os gregos e, posteriormente, os
romanos, usaram velas e cordas de cânhamo nos seus navios. Já no
século XV, cultivada em várias regiões da Europa e África, o cânha-
mo continuava a ser a base para confecção de cordas, cabos, velas e
material de vedação dos barcos, ou seja, toda estrutura das grandes
navegações, descobrimento das Américas e comércio de especiarias do
oriente foram feitos graças a tecnologia do uso da fibra do cânhamo. A
estrutura da fibra é rígida, porém é elástica, possuindo assim alta resi-
liência. Somando as matérias em cada grande navio, perfazia um total
de mais de 80 toneladas de cânhamo.
O óleo do cânhamo também é combustível e era usado como
base para acender as lamparinas que iluminavam as ruas antes de a ele-
tricidade ser dominada. A arte da pintura também contém suas princi-
pais obras pintadas em tecidos de fibra de cânhamo. A palavra Canvas,
nome que se dá à tela de pintura é uma variante da Holanda ao latim
Cannabis. O consumo tornou-se massivo a ponto de o rei D. João V,
emitir um Decreto-Real em 1656 incentivando a produção de maco-
nha como política do país para sustentar a demanda. A maconha só
perdeu seu espaço como fornecedora de matéria-prima de base quan-
do a indústria do algodão no século 19 e a petroquímica do século 20
fizeram um enorme lobby com reportagens pagas em jornais para que
sua produção fosse criminalizada.
A maconha é uma planta sagrada para vários cultos e religiões
desde a antiguidade, como visto na linha do tempo. O assunto é com-
plexo e vasto para falar de todas as vertentes religiosas da maconha.
148 Lauro R. Pontes

Cito aqui dois exemplos rápidos: o rastafarianismo, que foi fundado


na Jamaica na década de 1930 e usa a Cannabis como uma planta de
sacramento ritualístico e com propriedades benéficas ao espírito. Para
eles, a maconha é a Árvore da Vida mencionada na Bíblia, na passagem
do livro do Apocalipse: em 22:2, “... a erva é a cura das nações”. Os
membros se reúnem para discutir a vida de acordo com a perspectiva
Rastafári. Eles acreditam que o uso da maconha ajuda a aproximá-los
de Deus, a quem chamam de Jah (pronuncia-se Djá), permitindo ao
usuário acessar as verdades das coisas muito mais claramente. Embora
não seja necessário o uso de Cannabis para ser um Rastafári, alguns a
usam como parte de sua fé, e o ato de fumar é sempre dedicado à Sua
Majestade Imperial Haile Selassie I, um rei etíope. Para eles, a erva é
a chave para uma nova compreensão de si mesmo, do universo e de
Deus. É o “veículo para a consciência cósmica”.
“Eu sou Jeová teu Deus, eis que te dou toda a planta
que há sobre a terra, e que dá semente nela mesma,
para que fazeis bom uso dela.” – Gênesis.
Para a doutrina do Santo Daime, que faz uso ritualístico da aya-
huasca (bebida feita a partir do chá de plantas nativas da Amazônia),
a planta é sagrada e identificada com Santa Maria, a mãe de Jesus. O
ritual chama-se consagração e sendo a planta fumada em silêncio, ex-
clusivamente durante os rituais, sendo o cigarro passado sempre no
sentido anti-horário, isto é, da direita para a esquerda.

Aspectos fisiológicos
A maconha pode ser cruzada botanicamente entre si, gerando
hibridizações com a intenção de desenvolver plantas com qualidades
específicas. A mais usada pelas crianças, a Harletsu, é uma espécie mis-
ta dos cruzamentos de duas outras espécies, produzindo uma com alto
nível de CBD. O site www.leafly.com possui um enorme banco de
dados desses híbridos. Ela é dioica, ou seja, possui versões macho e a
fêmea, botanicamente falando. O gênero Cannabis possui três subes-
pécies: sativa, indica e ruderalis. O princípio ativo dessa planta é lipos-
solúvel, ou seja, dilui e se vincula quimicamente a oleaginosos. Por
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 149

isso, seu chá, como o de outras plantas, quase não possui efeito, visto
que ela não é solúvel em água. O principal responsável pelos efeitos
da planta é o tetrahidrocanabinol, o famoso THC. Existe, também, o
Canabidiol ou CBD, que dentro das variações híbridas apresenta níveis
altos, e é o principal agente contra as crises epiléticas. Existem outros
componentes menos famosos que ainda precisam ser pesquisados mais
a fundo, como o THC-A (a forma nativa do THC, que só se transfor-
ma em THC quando recebe calor num processo chamado descarbo-
xilação), CBD-A, CBN, CBG, THC-V e outros. Infelizmente, e mais
uma vez, não posso me aprofundar no estudo de cada um deles, pois
isso daria material para outras teses e em outras áreas do conhecimen-
to. É importante, entretanto, ressaltar que estamos num momento de
mergulho em pesquisas, nas quais a maconha foi descriminalizada e os
resultados preliminares são altamente promissores sobre os efeitos na
saúde. Já se descobriu, por exemplo, que o THC-V é um elemento que
ajuda o metabolismo do açúcar, reduzindo o apetite, contrariando a
máxima do usuário que após o uso sente uma fome enorme, a chamada
“larica”. Híbridos estão sendo cruzados para se criar uma cepa rica em
THC-V e usar como remédio capaz de tratar diabetes e pacientes com
obesidade e problemas glandulares.
Em 1988, descobriu-se que possuímos receptores para o THC
em nosso corpo. Isso mesmo: somos preparados para receber maco-
nha. O que fez os cientistas analisarem e concluirem que se temos
receptores, então produzimos uma espécie de endocanabinóide. Em
1994, a Anandamida foi descoberta e, com ela, o mecanismo de ação
do princípio ativo da Cannabis no nosso corpo. A anandamida, palavra
que vem do sânscrito Ananda e que significa felicidade ou êxtase, é um
neurotransmissor autônomo presente no nosso cérebro, que funciona
agindo como analgésico e reequilibrador em momentos de estresse do
organismo. Ela atua em relação aos endocorticóides que produzimos
para suportar as situações de estresse. O THC presente na maconha
tem a estrutura química semelhante à Anandamida e encaixa perfei-
tamente no neuroreceptor, desencadeando a gama de efeitos psicoa-
tivos esperados que a planta fornece. Cabe aqui uma ressalva: toda a
150 Lauro R. Pontes

substância que produz alteração no sistema nervoso central pode ser


considerada psicoativa. Café é psicoativo, guaraná, idem e o CBD tam-
bém. As sensações que cada substância provoca e sua quantidade é que
vão determinar a alteração comportamental e perceptiva do usuário.
Quando alguém ingere café demais, por exemplo, fica superexcitado,
fala muito, tem sudorese e taquicardia. Devemos aqui ser bem precisos
e lembrar de Paracelso, em sua célebre frase: “somente a dose correta
diferencia o veneno do remédio”. Isso vale para a maconha, para o café,
para o açúcar, até para a água. Uma curiosidade: maconha não possui
dose letal, o que praticamente todas as substâncias possuem. Não há
na história da humanidade nenhum registro de morte provocada pela
ingestão de maconha. Em seu livro “Se Liga – O livro das drogas”, Myl-
tainho Severiano da Silva faz um passeio pela letalidade e mostra que
se forem ingeridos dez litros de água de uma vez só, o risco de morte
é eminente por desequilibrar o processo metabólico em nível celular.
A maconha, portanto, é a única substância que não possui quantidade
letal. O autor relata o caso de um estagiário que ingeriu o THC sinte-
tizado em laboratório numa equivalência a cem cigarros fumados de
uma vez só. Ele ficou mais de dois dias sob o efeito, mas depois foi
voltando ao equilíbrio, sem nenhuma sequela cognitiva. Ainda assim
existe uma forma de se ter uma overdose de maconha: o consumo teria
de ser de cerca de 680 quilogramas da droga em no máximo quinze
minutos — o que seria entre vinte mil e quarenta mil cigarros conven-
cionais de maconha.
Não se sabe os efeitos da maconha estudada, plantada com con-
trole botânico, com técnica de pesquisa farmacêutica. Isso revela que
tudo que se afirma até hoje sobre os efeitos nocivos da maconha é
fundamentado em relatos de pacientes usuários de maconha não estu-
dada e possivelmente contaminada. A descriminalização pode ajudar
a acabar com essa discrepância, pois permitirá o acompanhamento da
semente até o consumo. A famosa afirmativa moderna: “maconha causa
psicose e esquizofrenia” é uma excelente amostra dos relatos reper-
cutidos por esses usuários. É necessário haver uma predisposição aos
quadros e, além disso, a maconha deve ser rica em THC. Dessa forma,
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 151

poderia acontecer como hipótese o disparo de um surto. Por outro


lado, uma espécie de maconha rica em CBD, como a que as crianças
usam para frear as convulsões, no entanto, é um remédio espetacular
para controle de pessoas que surtam. As duas faces de uma mesma
moeda que cai em pé e desconstrói a informação capenga, desmistifi-
cando o instituído.
Há de se pontuar que os efeitos da maconha não podem ser
associados apenas às substâncias presentes na planta. Além delas, são
relevantes as interações de múltiplos fatores envolvidos no processo:
o peso corporal do consumidor da planta e sua condição física, sua
idade, seu estado emocional, suas motivações e atitudes, sua perso-
nalidade, seu estado de humor e suas lembranças de experiências
passadas, seus sistemas de crenças e valores pessoais. Outros elemen-
tos que devem ser levados em consideração para os efeitos do uso da
maconha são: a solidão ou a presença de amigos no momento, a exis-
tência de uma ocasião de intimidade afetiva, a presença de música ou
de algum estimulo visual, o motivo que leva a pessoa a usar e outros
adjuntos. Até comer manga ou deixar de comê-la são fatores relevan-
tes para se dar o efeito da maconha, uma vez que se descobriu que
a manga e outras plantas possuem um composto chamado mirceno,
que auxilia na absorção da maconha através da barreira hematoen-
cefálica, o que aumenta o efeito. Deve-se considerar também que
fumar para dormir bem e fumar com amigos são situações completa-
mente diferentes, por exemplo.
Recentemente, com o advento das pesquisas sobre o fisiologismo
da maconha e sobre a atuação do THC nos neuroreceptores presentes
no cérebro, provou-se a impossibilidade de vício químico à substância
devido a certas características de sua metabolização. Assim, a maconha
é comprovadamente uma substância “não viciante”, no sentido clássi-
co da palavra. No entanto, seu vício psicológico é sabido, pois é uma
droga que altera muito a parte comportamental e emocional do indiví-
duo. Em um usuário regular, sua supressão pode causar irritabilidade,
suores, ansiedade, alterações de sono ou de apetite. Recentemente a
OMS (Organização Mundial de Saúde) realizou uma pesquisa na qual
152 Lauro R. Pontes

chegou à conclusão de que o uso recreacional da maconha traz menos


malefícios à saúde pública do que o álcool e o tabaco.
Sinto-me na obrigação de desfazer o famoso mito de que a ma-
conha é a porta de entrada das drogas. Para isso, vou fazer uso do ex-
pediente moderno das pesquisas quantitativas e conclusivas. Afinal, um
pouco de modernidade não faz mal, como já vimos na frase do Paracel-
so. O álcool é a primeira substância consumida por pessoas que poste-
riormente apresentam problemas com o uso de drogas. Esse é o resul-
tado de uma pesquisa da Texas A&M University e da University of Florida
no Journal of School Health, nos Estados Unidos, que pode ser acessada
em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/ pubmed/26645418. Os pesqui-
sadores avaliaram os padrões de uso de drogas com 2835 estudantes. A
pesquisa ainda concluiu que o consumo de álcool entre os jovens pre-
cede, na maioria das vezes, o uso de tabaco ou da maconha. Já se sabia
que essa frase não era real, que a maconha possui outras problemáticas
na juventude. O álcool ser a droga de entrada é a novidade trazida pelo
estudo que foi publicado em janeiro de 2016.
Apesar de a indústria farmacêutica explorar o potencial da plan-
ta, isolando seus componentes para construí-los de forma artificial,
produzindo alopatias a partir deles, a maconha, por ser botanicamen-
te uma planta, é uma fitoterapia que precisa ser trabalhada na sua inte-
gralidade. Sabe-se do chamado efeito comitiva, que é a ação conjunta
de todos os componentes juntos nas suas quantidades produzindo de-
terminado efeito. Os benefícios proporcionados — e não estou se-
quer entrando no mérito das enormes propriedades industriais — são
infinitamente maiores que os malefícios possíveis. Saber da existência
de uma criança que, até dezembro, era dependente de uma cadeira de
rodas e depois de três meses, vê-la correndo e indo à escola, andando
com suas próprias pernas, já é motivo para entender que nesse assun-
to não há outra versão de mundo que não seja o da descriminalização
da planta e do seu plantio.
Tornou-se impossível não tomar partido, não fazer minha es-
colha ontológica, não formar uma opinião óbvia para quem foi tão
abissalmente fundo como eu fui. Não faz nenhum sentido lógico, éti-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 153

co, dialético, existencial ou cósmico manter a proibição da existência


de uma planta que se tornou presente no planeta da mesma forma
que as outras formas de vida. Cabe à humanidade saber conviver com
ela. Não temos mais ou menos direito de existir que qualquer outra
coisa que já exista. É uma questão de respeito à existência por defi-
nição. É necessário deixar isso bem claro para etnografar a realidade
que conheci. Frustradamente, tentei ponderar, esperando ficar num
equilíbrio sem lado a escolher, sem time a torcer. Tornou-se impos-
sível, porém, entre os discursos antagônicos presentes e pertinentes
ao tema, a defesa da proibição, argumento trazido do discurso polí-
tico sobre guerra às drogas que nunca funcionou em nenhum lugar
do planeta. Fiz contato com profissionais que vivenciam o outro lado
da questão. Policiais, advogados, profissionais dos centros de atenção
psicossocial e estudiosos do tema. Todos falam em uníssono: proibi-
ção e combate ao tráfico com táticas de guerrilha não geram resul-
tado. Nunca funcionou em lugar nenhum do mundo. A redução dos
danos acontece somente através da educação e do controle da propa-
ganda, por meio de regulamentação, como no caso do nosso ilustre
vizinho, o Uruguai. O caminho para se lidar com qualquer proble-
mática de drogas é a redução de danos por meio da conscientização.
Não se trata de discutir valores morais sobre legalização, mas a cri-
minalização da maconha é um problema social sem tamanho. Colocar
numa mesma cela um usuário pego com um cigarro de maconha e
um bandido de alta periculosidade é de uma incoerência gigantes-
ca. Drogas sempre foram questão de saúde e educação públicas. Elas
nunca deveriam ser caso de polícia.
Eu comecei a captar trabalhos, artigos, livros, publicados apenas
em português, e a numerar as associações que existem sobre maconha
no Brasil. Essa tarefa, no entanto, mostrou-se impossível de ser realizada.
Simplesmente, porque não consegui chegar a um fim ou em um momen-
to que pudesse dizer que não havia encontrado mais nada. Ao contrário,
tive que parar arbitrariamente minha busca, já que não teria como dar
conta de tanta leitura. Há um número quase infinito de publicações on-
line. Em outubro de 2016, nos sites de venda de livros usados, encontrei
154 Lauro R. Pontes

quinhentos e oitenta e cinco livros, novos e usados sobre maconha. O


número de associações é, também, enorme. Elas são geralmente regio-
nais. Algumas em âmbito nacional. As páginas institucionais no Facebook
são inúmeras. O foco experiencial desse trabalho é a ABRACannabis,
objeto maior do meu campo de pesquisa. A busca textual no Google Aca-
dêmico pelas palavras marijuana, weed e maconha apresentam o seguinte
número: marijuana: 456000; weed: 1490000; maconha: 20200.

Mas afinal, a maconha é boa para quê?


Além do já sabido efeito acalmador das crises convulsivas, a
maconha virou esperança também para pacientes de Alzheimer. Pes-
quisadores da Califórnia encontraram evidências de que o THC tem
potencial para remover a proteína beta-amiloide, que forma as “placas”
no cérebro, responsáveis pela doença. Mais de trinta milhões de pes-
soas têm Alzheimer no mundo. Para Parkinson, é uma substância que
atenua ou cessa os tremores de forma incrível. Um dos vídeos que
mais viralizaram durante a escrita foi o de um paciente que parou de
usar a maconha para mostrar os efeitos devastadores do Parkinson em
seu corpo. Em seguida, ele faz uso da maconha e mostra o resultado
instantâneo. Seu tremor cessa. Isso não significa que a maconha cure
a doença, mas só o fato de diminuir o sintoma do tremor devolve ao
paciente a qualidade de vida perdida para a enfermidade.
A maconha demonizada é coisa dos séculos XIX e XX. Antes
disso, ela sempre tinha sido vista e tida como remédio. A planta é in-
tegrante da farmacopeia das medicinas indiana, chinesa e está nos ma-
nuais de homeopatia. Na maior parte da história, a maconha é atuante
junto à medicina justamente como remédio. Já em 1843, há o artigo
de um médico irlandês que descreveu o uso para tratar convulsões nos
primeiros anos de vida da criança. Convulsão é sintoma de inúmeras
doenças. Quantos morreram ou sofreram ao longo desses anos por
conta do preconceito e da proibição de pesquisas? Sem as desobediên-
cias às leis injustas, muitas vezes não se faria ciência e provavelmen-
te não descobriríamos o potencial terapêutico da maconha. O doutor
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 155

Raphael Mechoulam22, conhecido pelo seu trabalho no isolamento e


identificação do CBD e do THC, no início da década de 1960, foi a uma
delegacia de Jerusalém e saiu de lá com uma doação de cinco quilos
de haxixe, uma resina produzida pela cannabis. Pegou um ônibus para
voltar ao seu laboratório carregando a resina na mochila com forte
odor, o que gerou curiosidade dos passageiros do ônibus que estava.
Essa matéria-prima foi o material que deu origem a descoberta de sua
tese de doutorado, cuja proposta era identificar os princípios ativos da
Cannabis, o CBD e o THC.
A narrativa se baseia na observação e acompanhamento justa-
mente desse ato de burlar o instituído para se conseguir algo que não
seria possível pelos meios convencionais. O possível potencial terapêu-
tico da maconha é imenso e precisa ser respeitado e estudado. O único
caminho para isso é a descriminalização, pois nenhuma instituição de
pesquisa pode plantar, extrair e avaliar componentes da planta enquan-
to isso for considerado crime. Existem outras doenças que já têm com-
provação científica para tratamento ou alívio de sintomas com o uso
de derivados da Cannabis. A esclerose múltipla, por exemplo, pode ter
os sintomas da doença atenuados pela planta, uma vez que ela não tem
cura, e é progressiva. Ela diminui a inflamação das células e melhora o
controle motor de braços e pernas ao aliviar os espasmos musculares
causados pela doença.
Para dor, a maconha é um capítulo à parte. Ela é objeto antigo
de estudo da ciência como analgésico para dores fortes e crônicas. Os
efeitos colaterais da Cannabis, além do mais, são bem menos graves
que os da morfina, por exemplo, substância derivada do ópio. Um dos
estudos mais recentes, publicado em outubro passado no The Journal of
Pain, comparou duzentos e quinze fumantes experientes que fumavam
2,5 gramas por dia de maconha com não fumantes, entre os anos de
2004 e 2008. Todos sofriam de alguma dor crônica não relacionada ao
câncer. Ao final, os fumantes relataram menos dor, melhora no humor.
O uso da planta para esses fins é ancestral. Não houve nenhum risco
aumentado de efeitos adversos em comparação aos não fumantes.
22
É Professor de Química Medicinal na Universidade Hebraica de Jerusalém em Israel.
156 Lauro R. Pontes

Aspectos legais

“Comparada com a opinião que temos de nós mesmos, a opi-


nião pública é uma débil tirana. É o que um homem pensa
de si mesmo e eis o que determina, ou pelo menos indica, o
seu destino.” - Henry David Thoreau
A leis brasileiras precisam ser repensadas. Descriminalizar a ma-
conha é respeitar o direito individual de gerir a sua própria saúde. Não
existe no código penal o crime de autolesão, um suicida que fracassou
não vai preso. Na hipótese do usuário de maconha, ele só estaria fazen-
do “mal” a si mesmo. É contraditório punir o usuário. Já vimos que a
repressão à maconha é, no Brasil, relacionada à tentativa de extinguir
elementos da cultura africana. Até pouco tempo, falar de maconha era
considerado crime de apologia às drogas. Eu, portanto, sairia da defesa
dessa tese preso. Tudo precisa ser revisto e repensado. A maconha em
sua forma recreativa é punível pela herança cultural judaico-cristã, que
gera penas para mecanismo de prazer proibidos. A relação da maconha
com os escravos deu manutenção a uma carga de preconceito enorme.
A associação do uso com etnias é uma prática de perversidade social
incrível. Apesar disso, foi instalada, em 1783, a Real Feitoria do Li-
nho-Cânhamo no país. Os anúncios em jornais sobre as propriedades
medicinais eram comuns, mas foram rareando até o fim da segunda
década do século XX. A partir dos anos 1940 do mesmo século, sur-
gem matérias pagas apontando a maconha de maneira negativa e rica
de factoides, nos mesmos moldes do que ocorria nos EUA.
Além do desrespeito ao direito individual, o argumento da proi-
bição é o de que proibir previne. Ora, não precisa ser psicanalista para
saber que o que é proibido atrai. Numa fala do advogado André Barros23,
ativista da causa da maconha no Rio, que acompanhei num numa mani-
festação pela legalização, foi feita a reflexão do conceito de proteção e
lei. Qual a função da lei? Proteger o cidadão de algo danoso a ele ou aos

23
Advogado. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Prof. de Direito Civil e do Consu-
midor na Pós-Graduação da Escola Paulista da Magistratura, na Escola Superior da Advocacia e na
Escola Paulista de Direito. Professor e Coordenador da Pós-Graduação em Direito Civil, Negocial e
Imobiliário da Rede de Ensino LFG.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 157

seus. Ele citou o exemplo da pena por homicídio, que visa preservar o
direito à vida, tornando crime tirar a vida de outra pessoa. Mencionou
ainda o crime de furto ou roubo, que visa proteger o direito ao patrimô-
nio e propriedade individual e privada. A lei antidrogas tem o mesmo
princípio, proteger a saúde. A subversão lógica está aí, visto que atem-
poralmente a maconha sempre foi uma planta medicinal. Proibir a ma-
conha por uma lei que visa proteger a saúde é negar o acesso ao remédio
a quem precisa. Logo, a luta e a defesa que se faz por meio do ativismo
é para se ter direito à saúde e à pesquisa, para se conseguir aprofundar
tecnicamente o conhecimento sobre a planta. O paradoxo é que essa luta
pela saúde esbarra na lei que defende a saúde.
O Brasil é um Estado democrático de direito. Isso significa que o
próprio Estado é submisso às leis que determina. Na monarquia, o rei
não se submete às leis que inventa. No Estado de direito a premissa é a
preservação da ordem jurídica e o controle do abuso de poder por partes
do Estado, nas figuras de seus representantes. Assim, o povo e o governo
são regidos pela mesma ordem jurídica, ou seja, a lei é para todos. As
exceções a essa regra teórica é a questão da vontade da maioria. Henry
Thoreau (1849), em seu famoso livro, “Desobediência civil”, fala sobre a
maioria se sobrepujar em relação à minoria. Para ele, o desejo da maioria
da sociedade não se justifica por ser mais certo, justo ou calmo para que
uma minoria legitime sua vontade. Ele diz que é por uma questão de
força física que a maioria se sobrepõe à minoria. É um enorme risco so-
cial que uma maioria oprima ou se manifeste escrevendo leis injustas que
desrespeitem interesses minoritários. Por essa razão, existe o direito de
desobedecer, que é quase um fundamento jurídico no Brasil. O direito de
discordar não consiste em baderna. Podemos usar como exemplo o direi-
to à greve de trabalhadores contra práticas injustas ou defasagem salarial.
Durante meu trajeto no campo, fiz cursos sobre o cultivo, histó-
ria e direito sobre a maconha. A seguir, uma adaptação textual da apre-
sentação do advogado Emilio Figueiredo sobre os aspectos jurídicos do
cultivo doméstico de Cannabis para fins terapêuticos.
A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 da ONU pre-
vê que “o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para
158 Lauro R. Pontes

o alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas devem ser


tomadas para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais
fins”. A Convenção ainda menciona expressamente o uso medicinal da
Cannabis, afirmando que “o uso da Cannabis para fins que não sejam
médicos ou científicos deverá cessar o mais cedo possível”. Já na Lei
Brasileira sobre Drogas, encontramos o seguinte trecho: “ficam proi-
bidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plan-
tio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos
quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese
de autorização legal ou regulamentar”. A prerrogativa por que tanto
lutamos está prevista no seguinte trecho: “pode a União autorizar o
plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste
artigo exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e
prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas
supramencionadas”. O Decreto que regulamenta a Lei sobre Drogas
afirma que é competência do Ministério da Saúde “autorizar o plantio,
a cultura e a colheita dos vegetais dos quais possam ser extraídas ou
produzidas drogas, exclusivamente para fins medicinais ou científicos,
em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, ressalvadas
as hipóteses de autorização legal ou regulamentar”. Contudo, a ANVI-
SA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, subordinada ao Ministé-
rio da Saúde, não autoriza o cultivo de Cannabis para fins medicinais
por enquadrar tal vegetal na lista de plantas que podem originar subs-
tâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, de modo que “não poderão
ser objeto de prescrição e manipulação de medicamentos alopáticos
e homeopáticos”. Assim, a Convenção Internacional reconhece que o
uso médico da Cannabis continua indispensável para o alívio da dor e
do sofrimento. A Lei sobre Drogas prevê que a União Federal pode
autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais considerados
proibidos. O decreto dispõe que é competência do Ministério da Saú-
de autorizar, e a ANVISA não tem procedimentos para autorizar por
considerar a Cannabis absolutamente proscrita.
O fato de a ANVISA não regulamentar a autorização para fins
medicinais da Cannabis, indo contra o tratado internacional e a lei vi-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 159

gente, não pode ser considerada empecilho para realização do cultivo


pessoal para fins medicinais. Devemos ainda considerar que a ANVISA
apenas tem competência para regulamentar a produção e a circulação
de produtos que sejam destinados à dispensação, que é o “ato do far-
macêutico de orientação e fornecimento ao usuário de medicamentos,
insumos farmacêuticos e correlatos, a título remunerado ou não”. A
saúde, sendo um direito fundamental reconhecido pela Constituição
Federal e o indivíduo, detentor de sua autonomia, não pode ser impe-
dido de cultivar algo dentro de sua casa que sirva para incrementar a
sua saúde e não causa qualquer tipo de dano a terceiros. O cultivo de
Cannabis proibido é aquele que ofenda a saúde pública, considerando
a finalidade da norma penal. Contudo, no caso do cultivo pessoal para
fins medicinais, a saúde individual é contemplada de maneira concreta.
Logo, essa situação não pode ser criminalizada por uma omissão na
regulamentação por parte do poder público. Não deve haver restrições
ao cultivo doméstico para fins medicinais, como ser aceito apenas algu-
mas moléstias. Tal cerceamento vai contra a definição de saúde adotada
pela Organização Mundial da Saúde: “a saúde é um estado de completo
bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de
doença ou de enfermidade”. Portanto, se o cultivo doméstico de Can-
nabis é um incremento no bem-estar físico, mental e social, ele é um
cultivo para fins medicinais.
O mesmo raciocínio vale para quem cultiva para atender à saúde
de um ente querido, como a mãe que cultiva para cuidar do filho, ou o
filho que cultiva o remédio para melhorar a saúde do pai. Em ambos os
casos, mesmo visando atender terceiros, não há o intuito ou dolo (o es-
pecial fim de agir) de lesar a saúde de quem recebe a Cannabis para fins
medicinais, de modo que a saúde pública é fortalecida com tal prática.
O cultivo doméstico de Cannabis não pode ser alvo de regulamentação
restritiva da ANVISA, pois ela não é competente para violar o lar das
pessoas e dizer o que pode e o que não pode ser cultivado por aqueles
que apenas querem fomentar a própria saúde. Não reconhecer o di-
reito ao cultivo medicinal doméstico é criminalizar quem está apenas
buscando cuidar da própria saúde e, ainda, é determinar que o cidadão
160 Lauro R. Pontes

seja refém de uma ação estatal de cuidado com a saúde que não é su-
ficiente para atender às suas necessidades. Cultivar em casa a Cannabis
medicinal é o novo paradigma da saúde pública no Brasil e no mundo.
Um caso emblemático é o da Justiça Federal do Pará, que rejeitou uma
denúncia de tráfico internacional de drogas por importação de semen-
tes em um caso de um marido que admitiu ter importado as sementes
para tratar o câncer da esposa. Na decisão, o magistrado reconhece “a
finalidade altruísta e humanitária que moveu o denunciado ao adquirir
as sementes no Reino Unido, qual seja, para o exclusivo fim medicinal,
em face à grave moléstia que foi sua esposa acometida”.
Devo, também, registrar aqui a decisão inédita e histórica que ocor-
reu no dia 17 de novembro de 2016. A 14ª Vara Federal do Rio de Janei-
ro concedeu um Habeas Corpus, um salvo-conduto, a Margarete Brito,
mãe de uma criança que tem convulsões provocadas por uma síndrome
genética que afeta seu desenvolvimento. O Documento a protege, assim
como seu marido, Marcos, de uma eventual ação policial contra a família.
A decisão foi realizada e já tramita o processo que pede autorização de
plantio da Cannabis de forma definitiva. Existe, portanto, desde o dia 17
de novembro de 2016, uma autorização legal para que a maconha seja
cultivada no país. Segue o texto da decisão que merece o destaque aqui.
“Trata-se de pedido de HABEAS CORPUS PREVENTIVO impetrado por
Vanildo José da Costa Júnior, em favor de Margarete Santos de Brito e Marcos
Lins Langenbach contra o Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro,
na pessoa do delegado Carlos Augusto Leba e/ou a Polícia Militar do Estado
do Rio de Janeiro, na pessoa do CMT Geral,Wolney Dias Ferreira. O presente
writ tem por finalidade evitar o irreparável prejuízo aos pacientes quanto ao
constrangimento ilegal e eventual ameaça sofrida por seu direito de cultivar o
vegetal Cannabis Sativa, para uso específico no tratamento de sua filha Sofia.
Para instrução do pedido, encontra-se acostado aos autos toda a documentação
referente ao processo que tramita na 14ªVara Federal do Rio de Janeiro, processo
n° 0085473-23.2016.4.02.5101, em que pleiteiam a permissão do plantio
de substância ilícita (fls. 57/75). À fl. 282, foram juntados laudos médicos
prescrevendo a mencionada planta no tratamento da menor, com comprovada
eficácia. A vasta prova acostada aos autos revela que a criança Sofia necessita do
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 161

uso frequente da planta Cannabis Sativa para aliviar seu sofrimento e ajudar
na cura da doença que lhe é acometida. Em outros países, como nos Estados Uni-
dos, já adotaram o uso da maconha para combater determinadas doenças e dores.
Estudos recentes já revelaram que o uso planta com acompanhamento médico
apresenta propriedades medicinais que podem ajudar a combater doenças entre
as quais a da criança que se pretende proteger. Os pacientes ingressaram com
processo na 14ª Vara Federal objetivando a permissão do plantio da Cannabis
Sativa para fins medicinais. A presente medida se faz necessária para garantir a
qualidade de vida da criança conforme estudos e documentos juntados. O artigo
28 da Lei 11.343/2006 não autoriza a prisão em flagrante considerando que
o preceito secundário da norma não prevê penas privativas de liberdade. Entre-
tanto, o receio dos pacientes em eventual apreensão de quantidade expressiva e
possível capitulação em sede policial de delito mais gravoso autoriza a concessão
da presente medida. Desta forma, concedo o SALVO-CONDUTO em favor de
Margarete Santos de Brito e Marcos Lins Langenbach, a fim de que as auto-
ridades encarregadas, Polícia Civil e/ou Polícia Militar, sejam impedidas de
proceder a prisão em flagrante dos pacientes pela produção artesanal de Can-
nabis Sativa para fins medicinais, bem como fiquem impedidas de apreenderem
os vegetais mencionados até decisão definitiva que tramita no processo número
0085473-23.2016.4.02.5101 da 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Dê-se
ciência ao Ministério Público da presente decisão.”
Depois dessa decisão, que abre um precedente, até o fim da es-
crita desse livro, mais alguns salvo-condutos foram conseguidos. As
outras duas famílias que conseguiram esse direito residem uma no Rio
de Janeiro e outra em São Paulo. Entidades coletivas, como a ABRA-
Cannabis, A cultive! de São Paulo, e a ABRACE, da Paraíba, estavam
em vias de pedir o Habeas Corpus para fazer um cultivo coletivo, que
pode padronizar as plantas e, assim, permitir um controle mais ade-
quado da produção do remédio.
Encerro esse tópico sobre questões legais com algumas frases que
servem bem para exprimir o que se vive hoje sobre a legalidade:
“Acredito que um indivíduo que viola uma lei que a sua consciência
lhe diz que é injusta, [...] está na realidade a exprimir um grande respeito
pela Lei.” (Martin Luther King Jr)
162 Lauro R. Pontes

“Tal como é dever de todos os homens obedecer a leis justas, tam-


bém é dever de todos os homens desobedecer a leis injustas.” (Martin
Luther King Jr)
“A lei nunca tornará os homens livres; cabe aos homens fazer leis
livres. São os amantes da lei e da ordem que respeitam a lei quando o go-
verno a viola.” (Henry David Thoreau)
“Uma lei injusta é em si uma espécie de violência. A prisão pela sua
desobediência é o mais ainda.” (Mahatma Gandhi)
“A liberdade legítima é um espaço de ação de acordo com a nossa
vontade, dentro dos limites traçados a nossa volta pelos iguais direitos dos
outros. Não digo ‘dentro dos limites da lei’, porque a lei muitas vezes não
é mais do que a vontade de um tirano, o que será sempre desde que viole
direitos individuais.” (Thomas Jefferson)
“Não há forma de governar homens inocentes. O único poder que
o governo tem é o de deter criminosos. Bem, quando não há criminosos
suficientes, este os cria. Este decreta tantas coisas como crime que se tor-
na impossível aos homens viver sem violar leis.” (Ayn Rand)
“Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignoran-
do o direito.” (Georges Ripert)
“Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito,
quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o
céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.” (Immanuel Kant)
“Get Up Stand Up, Stand Up forYour RIGHTS!” (Bob Marley)
CURA – Finalizando

“Eu já ultrapassei a barreira do som,


Fiz o que pude às vezes fora do tom,
mas a semente que eu ajudei a plantar já nasceu!
Além, depois dos velhos preconceitos morais
Dos calabouços, bruxas e temporais
Onde o passado transcendeu há um reinado de paz!”
Raul Seixas

A cura é a última etapa do processo da produção da maconha.


Depois de colhida, ela é colocada para secar e curar, fazendo as trans-
formações químicas dos seus componentes. Ao final, ela está pronta
para ser usada da forma que convier.
Como já escrevi, minha relação como campo foi muito além da
que seria a de um mero observador. Participei ativamente e até hoje, es-
crevendo essas linhas, estou envolvido com a luta para que a descrimina-
lização ocorra. Impossível seria não provar dos sabores além dos saberes
num campo tão fértil de recursos em ambos os sentidos. É uma equação
simples. Os ativistas, quase todos, são cultivadores também. Sempre
plantaram sua própria erva, para seu consumo, saindo do mercado ne-
gro e consumindo algo com qualidade e procedência, além de poder
escolher o tipo e o efeito. Sempre fui uma pessoa ansiosa e sempre tive
uma dificuldade imensa para dormir. Sou daquele tipo que, ao encostar
a cabeça no travesseiro, desperta num turbilhão de pensamentos. Levo
em média cinquenta minutos para pegar no sono, às vezes mais.
164 Lauro R. Pontes

Como diria o ditado: “quando em Roma, faça como os romanos”.


Numa das primeiras reuniões a que fui convidado, fumar era algo tão
normal quanto beber um copo d’água. Num misto de ficar sem jeito
e com muita curiosidade sobre a qualidade, o cigarro rotativo chegou
a minha mão. Foi como se, na verdade, eu nunca tivesse fumado tama-
nha a diferença de sabor e efeito. O cheiro, a textura, o gosto residual,
tudo era diferente do prensado ao qual sempre tive acesso. Naquela
noite, já em casa, dormi de forma espetacular, um sono bom, nem leve
nem pesado, mas revigorante. E o melhor: nenhuma ressaca ou efeito
colateral. Isso me ajudou, sem dúvida, na interação e no entendimento
de como é o modus operandi da vida do usuário. Todos ali, de alguma
forma, fazem o uso para se sentir melhor. Quase todos têm alguma
questão de ordem comportamental ou fisiológica em que a maconha
ajuda, atenuando os sintomas ou regulando, como nos mecanismos de
ansiedade aguda. Poderíamos então concluir que o uso da maconha
na forma recreacional é, portanto, uma busca por uma sensação de
bem-estar e prazer. Segundo a organização mundial da saúde (OMS), a
definição de saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental
e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Ora, se o
usuário recreacional está buscando bem-estar físico e mental, ele está,
sob essa ótica, promovendo a própria saúde. Assim podemos pensar,
num cenário possível, que todo uso intenciona ser medicinal, promo-
vedor de estado de saúde, por definição. Como também foi dito, a di-
ferença entre o veneno e o remédio é a dose. Os efeitos em mim foram
benéficos, vivo menos ansioso e durmo melhor, desacelero o pensa-
mento, existo de forma mais tranquila. Sinto-me uma pessoa melhor,
em maior consonância com o meu redor. Mantendo o senso crítico
apurado, entretanto, devo salientar que a maconha tem um efeito cola-
teral que pode auxiliar quem precisa, como em casos de quimioterapia
e distúrbios alimentares, mas é muito ruim para quem já é acima do
peso ou tem tendência a engordar, por contada famosa larica. A larica é
o nome dado à sensação de fome quase sempre presente do meio para
o final da “onda” da maconha. Por definição, ela é uma fome muito
intensa e altamente sensorial. O funcionamento fisiológico da larica já
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 165

foi desvendado em uma pesquisa da escola de medicina de Yale, publi-


cada na revista Nature. Os pesquisadores descobriram que, sob a ação
da maconha, os neurônios que normalmente “desligam” a fome ao sen-
tir saciedade, passam a estimular ainda mais a voracidade do usuário,
enganando o sistema de alimentação do cérebro. Por outro lado, ainda
precisamos avançar em pesquisas, pois um estudo recente sobre outro
componente ativo presente na maconha, o THC-V, ou tetrahidrocana-
bivarina, tem potencial de aceleração do metabolismo, diminuição do
apetite e ajuda a regular o açúcar no sangue. Há muito o que se conhe-
cer e pesquisar. O prognóstico futuro é promissor para várias doenças.
Ainda vai levar algum tempo até que a maconha seja desmistifica-
da. Existe um descompasso de temporalidade entre a existência huma-
na e os acontecimentos e mudanças sociais. Quando achamos absurdo
haver ainda hoje preconceitos raciais, culturais, religiosos e discussões
sobre temas espinhosos sociais como aborto e uso de drogas, não po-
demos deixar de levar em consideração que o “tempo social” é muito
diferente do tempo humano. Se considerarmos cem anos um tempo
de vida humano possível, embora difícil de atingir, podemos perceber
que é muito pouco quando pensado para mudanças sociais profundas.
No século XIII, a Inquisição religiosa matou milhares de pessoas. Hoje,
mais de setecentos anos depois, ainda se mata em nome da religião.
O tempo social é outro. Gerações endurecidas em conceitos e valores
precisam ser ultrapassadas para que as novas venham a ampliar as mu-
danças nesses temas dissonantes. Mesmo o álcool, droga tão popular
no mundo todo, é proibido em países dos Emirados Árabes e lá há
tráfico de álcool e de outras drogas. Burlar regras que ferem a vontade
individual ou coletiva é parte constituinte do processo de estabeleci-
mento de mudanças em leis ou costumes que precisam ser mudados.
Como último evento de minha narrativa, escolhi o mais simbó-
lico, do ponto de vista da luta e da seriedade do projeto: o dia em que
a maconha entrou pela porta da frente da universidade pública. Com
o Habeas Corpus da Cidinha, mãe paulista que também conseguiu ter
seu direito respeitado, e com o projeto de pesquisa da professora dou-
tora Virginia Carvalho, no dia 21 de janeiro de 2017, fomos até o la-
166 Lauro R. Pontes

boratório de farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no


campus da Ilha do Fundão, com mais de duzentos e setenta gramas
de maconha da espécie Cindy99 colhida, participar da extração por
gelo seco do kfir e do cozimento na manteigueira para a fabricação do
óleo. Tudo foi devidamente filmado e feito dentro dos princípios e das
técnicas farmacêuticas. A atividade começou pela manhã e a professora
recolheu amostras para análises e registro. Foi uma bela aula prática, na
qual as pessoas da Cultive! puderam aprender sobre a confecção para
produzir em São Paulo. A presença da ilustre motivadora também deve
ser registrada, já que Clariam nos brindou com sua presença, acompa-
nhando todo o processo da confecção do seu remédio.
Considerando as controvérsias do uso da maconha do ponto de
vista social, há uma grande variedade de respostas em função dos no-
vos e resgatados saberes sobre ela (numa espécie de redescoberta do
contato possível e não daninho) e também um certo consenso sobre a
necessidade de se pesquisar mais já que a prática do uso demostra re-
sultados incríveis. A pesquisa esbarra na proibição do cultivo, pois não
há pesquisa sem produção. Para produzir, é necessária a descriminali-
zação do plantio. O que atende aos pedidos dos usuários medicinais e
também atende aos usuários recreativos. Através da ilegalidade (o plan-
tio e produção escondidos) ou da legalidade burocrática (a importação
do extrato a preços proibitivos para grande parte da população), vai
se produzindo um corpo sustentador do argumento pró-legalização. A
sociedade vai sendo posta numa posição incômoda, visto que a impor-
tação sendo liberada mediante a requisição sendo legal, não faz sentido
não permitir que organismos de pesquisa na saúde nacionais não pos-
sam fazer sua própria produção para pesquisa e desenvolvimento do
extrato, que por ser fitoterápico já possui tecnologia pronta para a ex-
tração e não possui outra matéria prima que não seja a própria planta.
Assim, a razão e o significado do uso da maconha imputada como
uma falha ou fraqueza, seja física ou moral, psicológica ou cultural,
política ou social, fica em um nível ultrapassado pois a maconha se des-
loca desse lugar crítico e finalmente pode ser retirada da proximidade
de outras drogas que tem outras histórias e outros efeitos. É necessário
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 167

que se saia do arcabouço arcaico de que o uso da maconha é resposta a


crises ou a algum tipo de necessidade individual ou ainda do conceito
de que ela é usada por falta de saúde, afeto, cultura, religião, escola,
informação, dinheiro, família, trabalho, razão, consciência, liberdade.
Todos esses motivos são até possíveis e cada rede que se estabelece
entre o ser e a maconha pode se desdobrar em um desses viezes. O uso
da maconha como drogas ilícita não deve mais ser visto como defeito
ou falha psicológica, perda de referência simbólica ou desvio moral, de
informação errônea, alienação ou falha de regras sociais.
Em outra reflexão que por si só daria um outro tabalho inteiro,
não se deve produzir a assimetria sobre o consumo lícito ou não. Pois
a licitude passa por muito mais instâncias que simplesmente o fator
saúde ou moralidade. A questão maior que exige mais reflexão está
no uso que é feito. A substância em si não carrega o poder do dano. O
motivo do uso e a quantidade ingerida são os fatores que provocam os
conceitos e constroem as opiniões formadas sobre o tema.
Ao se questionar o uso ou não de uma determinada substância,
não se produz saberes com a devida profundidade do tema. É mais
adequado fazer perguntas mais pragmáticas, questões mais próximas
dos modos sobre como o uso se dá. O que ocorre? Que tipo de expe-
riências têm os que usam as substâncias?
Ainda há muito a se pesquisar sobre os componentes da maco-
nha. Existem mais de quatrocentos e oitenta e três componentes orgâ-
nicos na planta e, atualmente, há cento e onze canabinóides conheci-
dos, mas há certamente mais a ser descoberto. Cada canabinóide pode
fornecer diferentes níveis de benefício medicinal. Já se sabe, também,
que cada canabinóide funciona melhor quando eles são combinados
entre si. É o chamado “efeito entourage” e é por isso que há tentativa de
isolar o componente CBD. As políticas públicas são, entretanto, defi-
cientes. Os pacientes mais beneficiados com o uso merecem o acesso
seguro a toda a planta. Se você vive em um único estado, continue a
lutar até que todos os canabinóides sejam gratuitos!
Vivemos sobre versões dos fatos e situações que vão ocorrendo.
Sempre acabamos por escolher a versão que mais se encaixa em nosso
168 Lauro R. Pontes

gabarito de valores. O olhar sobre o passado, nos desenhos históri-


cos, ajuda-nos a ter mais certezas pessoais que sustentam e validam
essa construção de valores sobre uma determinada questão. O nível
de complexidade desses assuntos é sempre muito alto, cabendo a cada
um de nós desatarmos os nós, atarmo-nos em nós, pelos nós da rede
que se estabelece, e extrair desse evento espaço temporal nossa com-
preensão e defesa de ponto de vista ou tese. Portanto, na profundidade
em que consegui mergulhar no tema, foi possível perceber como as
conexões que a maconha vem estabelecendo, construindo cenários e
mudando sua posição de atriz no encenamento. Como uma nova que-
bra de paradigmas, sendo vista novamente como remédio, ajudando a
dar qualidade de vida às crianças e aos adultos que se beneficiam dela
e tecendo novas redes de significado psicossocial alinhavadas que se
formarão na dinâmica das construções dos eventos significativos que a
maconha pode gerar na nossa sociedade. Também ter a reflexão posi-
tiva de que a luta pelo direito individual e irrevogável da liberdade de
escolha deve ser sempre respeitado. A maconha é uma espécie de cava-
lo vegetal (dentro do simbólico sobre a importância do cavalo para o
desenvolvimento humano), um elemento que ajuda o ser humano com
seus recursos desde os tempos ancestrais e que não deve ficar jogada no
obtuso e infinito buraco do obscurantismo, da ignorância e do precon-
ceito. Ao contrário, ela merece o respeito e o lugar de destaque que lhe
cabe no hall da fama dos grandes recursos naturais que o planeta possui
e que contribuem para o nosso bem viver.
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APEPI – Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Me-
dicinal. Disponível em: <http://www.apepi.org>.
Maco Project. Disponível em: <http://macoproject.com>.
Este livro foi impresso em dezembro de 2018.

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