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Pontes
Gramma Editora
Supervisão Editorial: Gisele Moreira
Coordenação Editorial: Juliana Sobreira Catalão
Revisão do arquivo: Juliana Skawara
Copidesque: Magda Carlos
Capa: Paulo Vermelho
Foto da capa: Cristina Zarur
Diagramação: Leonardo Paulino Santos
Acompanhamento Gráfico: Evelyn Costa
Catalogação na fonte
Maria Helena Ferreira Xavier da Silva – CRB-7 5688
Gramma Editora
Rua da Quitanda, nº 67, sala 301
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Prefácio 1
GERMINAÇÃO – Introdução 3
O início do processo 8
Uso da linha teórico-prática e metodologia utilizada 15
VEGA - A Cannabis 31
O contato com as mães e crianças 32
Relatos de casos 40
Sofia, Margarete e Marcos 40
Clárian, Cidinha e Fabio 41
Gilberto Castro 47
História da Cannabis 85
Referências 169
Prefácio
todas as partes, conflitos de estratégias e até nos objetivos que não fica-
vam claros para ninguém. Como estratégia principal estabelecemos a
necessidade do convívio direto como forma de aparar as arestas e apro-
ximar as pessoas, estabeleceu-se então reuniões semanais que além de
proporcionar o convívio que aproximou as pessoas consolidou-se em
várias iniciativas de sucesso como parcerias com universidades, centros
de pesquisa, participação em eventos.
Pedro Zarur
GERMINAÇÃO – Introdução
formar e ampliar sua sabedoria sobre o tema. Assumo aqui a clara in-
tenção de desconstruir o instituído através do pensamento moderno
reinante que prevaleceu, inclusive em mim, até começar a me embre-
nhar no estilo de vida cannábico. Nesse texto mergulharemos nos de-
talhes e entenderemos a contextualização histórica da Cannabis e suas
consequências psicossociais, até mesmo nas estruturas educacionais e
científicas, produzindo versões e mitos sobre a planta. Aqui será expos-
to e descrito, da forma mais sensível e rica possível, toda a complexi-
dade da Cannabis por meio de suas interrelações, transpasses, versos,
frases, ideias, construções tangenciais, congruências e engendramen-
tos. O relato de toda minha vivência descrita em tempo real junto às
transformações psicossociais pelas quais passei e que foram ocorrendo
à medida que eu acompanhava os inúmeros modos de existência de
todos os atores envolvidos nos recortes e cenas em que estive, numa
dualidade instantânea e co-temporal de observador e também ator, ati-
vista, professor, debatedor e escritor. Assim, optei pela narrativa etno-
gráfica, emocional e em história imediata.
Em uma coincidência extremamente feliz, que me deu mais cer-
teza de estar no caminho certo da pesquisa, o assunto maconha medici-
nal ganhou corpo e mais espaço depois que um documentário chamado
“Ilegal” foi lançado em outubro de 2014. Esse filme relata a dificuldade
de um casal de Brasília para conseguir importar extratos de maconha
sem haver na legislação nada que falasse sobre o tema. Nele é possível
ver o drama das famílias que, usando a internet, buscavam informações
sobre as doenças dos filhos e davam sempre com a cara na maconha. A
confluência dos movimentos desse documentário, a busca de familiares
sobre novos tratamentos para doenças sem remédio dos seus filhos, o
movimento dos cultivadores e ativistas da causa da descriminalização,
as dificuldades burocráticas junto aos órgãos reguladores governamen-
tais e as brechas legais que possibilitam a produção de peças jurídicas
embasadoras do direito à vida e à saúde e o apoio de um grupo de mé-
dicos estudiosos que enfrentam a políticas dos conselhos fizeram todo
o engajamento junto ao tema criar um volume de representatividade
que culmina, até o presente momento, na liberação de autorização ju-
8 Lauro R. Pontes
dicial para ao plantio individual de três famílias com crianças, cuja ma-
conha é o principal remédio.
O início do processo
Comecei a tentar o contato com o grupo que na reportagem foi
denominado como “Rede Compromisso”, grupo de cultivadores casei-
ros que passou a doar uma parte de sua produção de consumo próprio
para servir de matéria-prima para confecção do extrato medicinal. É,
por meio dos engendramentos psicossociais que a partir desse grupo se
constrói uma consistência social ativista que posteriormente culmina-
rá com a fundação da ABRACannabis, entidade criada para promover
o apoio às pesquisas e ao cultivo individual e coletivo. Após achar o
jornalista e explicar meus anseios a ele, fiz contato por e-mail com o
advogado que fora entrevistado. Ele aceitou me receber para conver-
sarmos e, assim, comecei a jornada que se materializa nessa escrita. Foi
um caminho tortuoso, mas em sua maior parte grato de surpresas. O
início, passado o frio na barriga depois dos primeiros encontros com
os membros da Rede Compromisso, foi de grande aprendizado em mi-
nhas relações pessoais. Recebi apoio de quem não esperava, de pessoas
que eu julgava não aceitar nem falar sobre o tema, como as gerações
mais antigas da minha família e outros conhecidos, que foram, de fato,
deixando de manter contato comigo pelo preconceito enraizado e en-
durecido. Uma dessas pessoas, por radicalismo olfativo, por conta do
“ódio” ao cheiro da planta, excluiu-me das redes sociais e dela eu nunca
mais ouvi falar. Isso aconteceu mesmo depois de eu ter tido a paciência
para mostrar que com tecnologia o cheiro pode ser suprimido ou que
existem outras maneiras de se ingerir maconha sem ser com fumaça.
Meu caminho, no entanto, estava decidido e foi fortalecido pela
boa recepção do meu orientador e, posteriormente, da banca de qua-
lificação. Tudo foi motivado, também, por aquele momento síncrono,
em que o assunto estava tomando o corpo social e simbólico, diante da
gravidade do estado de saúde das pessoas que podiam se beneficiar do
uso da planta como remédio. As informações não paravam de chegar
sobre o uso da Cannabis em outros países, as pesquisas avançando e o
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 9
8
LATOUR, BRUNO. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994.
20 Lauro R. Pontes
9
Estado de necessidade é uma causa especial de exclusão de ilicitude, ou seja, uma causa que retira o
caráter antijurídico de um fato tipificado como crime. No Brasil, está previsto no artigo 23-I do Código
Penal e exemplificado no artigo 24 do referido código.Também se tornou o nome de um documentário
produzido pela APEPI, sobre a luta das mães e pais poderem fazer seu auto cultivo do remédio.
10
MORAES, Marcia. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau, 2010.
11
MORAES, Marcia. PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau, 2010.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 21
12
VIÉGAS, M N.; TSALLIS, A. C. O Encontro do Pesquisador com seu Campo de Pesquisa: de Janelas
a Versões. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei, ago/dez 2011.
22 Lauro R. Pontes
13
DESPRET, Vinciane. Ces émotions qui nous fabriquent: ethnopsychologie des émotions. Paris: Les
Empêcheurs de Penser en Ronde/ Le Seuil, 2001.
14
VIÉGAS, M N.; TSALLIS, A. C. O Encontro do Pesquisador com seu Campo de Pesquisa: de Janelas
a Versões. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei, ago/dez 2011.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 23
LATOUR, Bruno. Reensenblar lo social: uma introducción a la teoria del actor-red. Buenos Aires:
18
Manantial, 2005.
VEGA - A Cannabis
embora para outro estado, viver outro relacionamento. Assim, ela o en-
controu com a resistência baixa, muito mal cuidado, com sinusite, magro
e debilitado. Poucos dias depois, ele desenvolveu uma febre pela manhã
e, à noite, entrou em coma, vítima de um vírus que ocasionou uma en-
cefalite, deixando ele em coma por quarenta dias e o fazendo acordar
surdo-mudo e sem os movimentos. Ao fazer um exame para avaliar o
nível de audição, ele foi anestesiado e ministraram a medicação errada.
Em vez de cinco gotas do medicamento infantil, deram a ele cinco mili-
litros do medicamento para adultos. Por isso, ele ficou mais uma semana
em coma e, como sequela, restou a epilepsia refratária de difícil controle.
Nenhuma medicação até hoje funciona para crises que são graves e que
o fizeram perder vários dentes, ter cortes e pontos por cair durante as
crises. Por muito tempo, sua tia-avó procurou alternativas, pensou até
em procurar um índio para encontrar uma planta que pudesse ajudar.
Passando noites à procura na internet, em todas as pesquisas, ela chegava
à maconha. Muito receosa, mas vendo Samuka morrendo aos poucos, ela
entrou em contato com o um grupo que fornecia o óleo em São Paulo.
Nas primeiras gotas, ele teve uma grande melhora, que, obviamente, não
era a cura, mas que proporcionou, aos pouquinhos, um grande alívio, em
conjunto com as terapias de recuperação dos movimentos e cognição.
Ela foi convidada a assistir ao nosso curso em parceira com a associa-
ção CULTIVE!, e ganhou de uma pessoa algumas sementes e clones.
Aprendeu a plantar e cuidar das plantas. Ela me narrou essa história com
emoção aflorada e disse: “hoje tenho guarda definitiva e um processo de
adoção. Não sei quanto tempo mais vou viver, mas viverei por ele”.
A luta das mães acaba por dar a elas uma nova esperança e uma
sensação de estar fazendo parte de algo grandioso, gerando orgulho
e um sentimento de realização de algo maior. O casal brasileiro que
recebeu, pela primeira vez na história, o direito de plantar maconha
no território nacional, criou um precedente para que outros con-
sigam o mesmo direito. Todos os envolvidos acabam passando por
mudanças paradigmáticas internas profundas. Acompanhei as narra-
tivas desses familiares, em sua maioria as mães, que se autoapelida-
ram de “Mãeconhas”.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 39
Relatos de casos
Escolhi, em meio a tantos casos que pude acompanhar, três his-
tórias que considero simbólicas, pois foram escritas com palavras dos
próprios que vivem a situação da dificuldade de saúde. São os dois
casos de famílias que conseguiram receber o habeas corpus que permite
o autocultivo do remédio de seus filhos: a da Margarete, do Rio de Ja-
neiro e o da Cidinha, de São Paulo, além do relato do Gilberto Castro,
portador de esclerose múltipla e usuário medicinal de São Paulo. A
transcrição é integral e a fala está contornada para dar ciência de que a
escrita é das pessoas que gentilmente me relataram o caso e autoriza-
ram sua publicação no texto.
Hoje, minha filha Sofia tem 8 anos, mas, com apenas um mês de
idade, ela teve a primeira crise convulsiva. Foi quando se iniciou para
mim um dos maiores sofrimentos da minha vida, que era dar drogas
para aquele bebê tão pequenininho, tão delicado, tão lindo.
Eram drogas e mais drogas, todas lícitas, de tarjas preta, verme-
lha, amarela, de todas as cores. Em algumas épocas, a Sofia tomava cin-
co anticonvulsivantes de uma só vez. Um dos efeitos mais brandos des-
ses medicamentos era a perda de campo visual, sem volta, irreversível.
As drogas eram tão fortes que a médica dela dizia que se ela
mesma tomasse a metade daquela dosagem, dormiria três dias sem
parar. Ela nos explicava que o uso de drogas é questão de custo-be-
nefício. Sofia, no entanto, além de dopada, continuava a ter o mesmo
número de crises convulsivas. Logo, minha filha tinha apenas o custo
que, diga-se de passagem, era muito alto.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 41
Gilberto Castro
lado esquerdo é todo comprometido, meu lado direito também: joelhos, tornoze-
los, ombros...Só o cotovelo ainda está bacana. E as costas também doem. Eu
não vivo tomando Tylenol, ando de bicicleta para cima e para baixo, faço meu
Pilates para lidar melhor com as dores e conheço pessoas assim, amigos que ti-
veram pólio igual a mim e as pessoas que vivem de remédio. Elas ficam trocando
experiências de uso desses medicamentos, e, às vezes, surgem falas do tipo: ‘ah,
eu já estou no Tramal’. Nunca tomei Tramal na minha vida. A maconha é meu
remédio, sem efeitos colaterais das alopatias”.
Nossa conversa seguiu e entendi ali que existe um mercado do
óleo, que é feito, muitas vezes, com prensado, ao qual, em casos de
emergência ou de angústia, muitas mães e pacientes acabam recor-
rendo. Com ele, aprendi também sobre a estrutura básica da planta,
como a flor produz as resinas que contêm os princípios ativos, por
exemplo. Passei, então, a entender melhor os métodos de extração.
Dei-me conta, além do mais, do tamanho do universo da maconha e
de seus detalhes, que só podem ser vistos de perto. Conheci o trico-
ma, “o segredo da planta”: uma espécie de gota paralisada no tempo,
com textura de resina, que é a morada do THC e do CBD, como na
figura a seguir: à esquerda, a flor inteira, e à direita, um zoom em
microscópio ótico numa parte da flor.
A flor da maconha à esquerda e um zoom ótico de 100x à direita, mostrando a estrutura dos “pelinhos”, que, na
verdade, são os chamados tricomas, fonte dos princípios ativos da planta.
58 Lauro R. Pontes
Maio verde
O Rio de Janeiro abriga o primeiro evento do calendário na-
cional do “Maio Verde”, que celebrou a Marcha da Maconha em várias
cidades pelo país. Na véspera do dia programado da marcha, acon-
teceu a audiência pública na ALERJ sobre maconha. A “comissão do
cumpra-se!” promoveu o debate sobre prisões de cultivadores de ma-
conha. Advogados, ativistas e artistas que já foram presos por porte ou
plantio junto aos vereadores simpáticos à legalização debateram com
os delegados que trabalham com o tema diretamente em delegacias
especializadas. Um dos delegados, numa fala surpreendente, disse que
para a polícia o mais importante não é prender. Ele reconheceu que a
polícia não quer prender o usuário. No entanto, por conta da letra da
lei — um dos pontos é a modificação do texto da lei que não separa
consumidor-produtor do traficante —, ela fica sempre numa situação
complicada, em função das articulações com os mandatos de busca e
apreensão expedidos por juízes e prisões em flagrante (o “cumpra-se”
do nome da comissão). Um vereador atentou para o fato de que tradi-
cionalmente a repressão às drogas ocorre sobre as camadas mais pobres
da população, mas que a figura do cultivo caseiro estava levando ao
cárcere a classe média também. Um dos ativistas que cito no texto, na
parte das entrevistas, o advogado Ricardo, sugeriu que a ALERJ instau-
rasse as audiências de custódia que obrigam o estado a atender com um
juiz qualquer preso em até 24h.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 63
A Marcha da Maconha
A Marcha da Maconha é uma manifestação pública, organizada
anualmente em diversos locais do mundo. O propósito é dar voz aos
movimentos favoráveis a mudanças nas leis que proíbem e criminali-
zam a maconha, propondo a legalização da Cannabis, a regulamentação
de comércio e uso, tanto recreativo quanto medicinal e industrial. As
Marchas ocorrem mundialmente a partir do primeiro final de semana
do mês de maio, inclusive no Brasil. Além da marcha em si, ocorrem
reuniões, caminhadas, encontros, concertos, festivais, mesas de deba-
tes, entre outros eventos. A primeira marcha ocorreu em 1994. Em
66 Lauro R. Pontes
A Marcha foi encabeçada pelas mães e pais das crianças que usam o extrato
rico em CBD.
19
Todas as fotos foram cedidas gentilmente pela Revista “SemSemente”, a primeira revista brasileira
sobre a cultura canábica.
68 Lauro R. Pontes
Chamaram a atenção pessoas que não são usuárias e nem tem pa-
rentes doentes, mas que apoiam a descriminalização por consciência.
O Dia da Panelada
Uma semana depois da marcha, numa segunda-feira, fui avisado
que no sábado, na casa de um dos membros, aconteceria a produção do
extrato. Cheguei minutos antes do combinado. Pedro me recebeu da
forma carismática e carinhosa de sempre.
Tudo é feito de forma artesanal e caseira, com o máximo de
assepsia possível. Existem técnicas variadas para extrair os compo-
nentes ativos da planta. A utilizada por eles consiste em colocar as
flores da maconha em um saco de tela microfina, que atua como uma
peneira de mícrons de tamanho. Junto das flores, coloca-se gelo seco
(que é CO2 em estado sólido) e sacode-se mecanicamente esse saco
dentro de um recipiente estéril. Eles usavam como recipiente uma
caixa térmica grande. A ação do gelo seco sobre as flores faz congelar
e quebrar as resinas existentes na flor. Essas resinas são os compo-
nentes ativos da planta que passam por essa tela microfina e formam
um pó fino que se chama kfir (pronuncia-se quifír). Esse pó é, então,
dissolvido em um óleo de base — pode ser glicerina, óleo de coco,
hemp oil, que é o azeite comestível das sementes de maconha, óleo de
gergelim. Na verdade, qualquer óleo comestível pode ser usado, pois
os componentes são lipossolúveis. Existe um equipamento de cozinha
importado chamado Magic Butter, que é uma manteigueira elétrica. Ela
cozinha o pó e o óleo por 8 horas numa temperatura não muito alta e
controlada. Ao final desse processo, o líquido homogêneo, mas com
partículas em suspensão, é envasado em vidros esterilizados de cor
âmbar, semelhantes aos usados em tinturas médicas ou homeopatia.
O grande problema aqui é o controle de produção. Como a maconha
é ainda proibida, mesmo para pesquisas no Brasil, não se tem ao certo
o controle das quantidades dos componentes de acordo com a cepa
70 Lauro R. Pontes
seco que sai do estado sólido para o gasoso sem deixar resquício no
processo. Assim, o produto final do ato de fechar e sacudir esses sacos,
um dentro do outro, sai pelo fundo da peneira mais fina: um fino pó
resinado, que é misturado num veículo, um óleo que pode ser de coco,
de abacate e, se for possível, o óleo comestível de maconha, chamado
de hemp-oil. É um “azeite” feito das sementes da maconha, como um
óleo de gergelim ou linhaça, importado e rico em ômegas, é usado na
culinária do exterior e não tem efeito psicoativo. Por uma questão de
similitude e origem comum, é bioquimicamente ideal.
Interessante, também, notar a conversa sobre qual matéria-pri-
ma seria usada, a mistura e a proporção dos tipos de plantas e seus
efeitos em função da necessidade de quem pede. Todos eles conhecem
muito dos tipos e dos efeitos da cada planta, que tem cada uma a sua
denominação. Uma das propostas da reunião foi catalogar as espécies
e suas propriedades. Há um trabalho quase búdico de ficar raspando e
varrendo esse pó, colhendo-o para um recipiente para ser misturado ao
óleo. O procedimento consiste, então, em colocar o óleo, que no caso
foram quinhentos mililitros de hemp-oil com cerca de vinte cinco mili-
litros do pó resinado, dentro de um equipamento próprio, como uma
máquina de fazer manteiga e deixá-lo por cerca de quatro horas baten-
do e cozinhando. Ao final, esterilizam-se os vidros âmbar, semelhantes
aos utilizados em homeopatia, e os preenchem com essa mistura, agora
bem homogênea, guardando em lugar seco e arejado. Nesse meio ter-
mo, alguns membros foram indo embora e chegaram outros, na mesma
amizade e parceria percebida no coletivo cultural, na véspera da marcha
do Rio. Despedi-me de todos, agradecendo em especial ao Pedro, e fui
embora, marcado por mais essa experiência tão específica.
20
Graham Harman define o conceito de caixa-preta como qualquer actante tão firmemente estabele-
cido que nós podemos desconsiderar seu interior (“We are able to take its interior for granted”). As
propriedades internas de uma caixa-preta não contam, na medida em que estivermos preocupados
somente com seu input e output (HARMAN, 2009).
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 79
Découverte, 2012.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 81
supor que não existem mediações, que tudo é dado e não precisa ser
questionado nem pensado. É o estado permanente da caixa-preta.
Em minha prática de pesquisa notei que, quanto mais rígida é a forma
de pensar do indivíduo, quanto mais preso em dogmas e verdades
absolutas individuais, mais é difícil convidá-lo à reflexão do contra-
ditório, tamanho o sucesso da demonização folclórica da maconha.
Os caminhos de uma conexão ou rede deixam rastro, sinais
por onde a trajetória se compôs. É a avenida de mão dupla que re-
laciona o ser-em-si com o ser-enquanto-outro. Identifiquei nesse
termo o resumo desse trabalho. Essa relação dos seres não só “entre”
e “com”, mas todo o range de preposições essenciais (a, ante, após,
até, com, contra, de, desde, em, entre, para, per, perante, por, sem,
sob, sobre) junto ao ser produz a literação do que vivi em palavras
que se façam entender. Identifiquei-me durante a pesquisa, quase o
tempo todo em que estive em contato com o campo, no lugar que
fosse. Os fatos vividos e minha percepção deles, junto à narrativa
do diário de campo multiplataforma me dava a sensação de estar
escrevendo a realidade enquanto ela acontecia, num reflexo de ten-
tar perceber de forma mais verossímil possível as encenações e as
atuações presentes.
Os modos de existência é um projeto aberto, contínuo e cola-
borativo que Latour lançou em parceria com outros pesquisadores e
de forma multidisciplinar. Aqui quis expor apenas a minha pequena
interpretação face ao assunto e dar um pequeno exemplo perante a
grandiosidade do tema. Reitero que, a partir daqui, o texto possui
poucas citações a autores. Porém, a TAR foi a matriz básica teórica
e prática que procurei sentir o que vivia, o solo onde plantei toda
minha vivência e interpretação sobre a temática.
Essa texto foi escrito sob a égide da história imediata, narrada
em tempo real, no afã de ser preciso e minucioso nas narrativas das
vivências e surpresas, sempre sob o olhar da TAR. Mesmo quando
não é referenciada diretamente como citação do texto, ela esteve
presente, ajudando-me a construir o entendimento sobre o assunto
tão rico e complexo).
82 Lauro R. Pontes
12000 A.C.
A propagação da Cannabis em todo o mundo
As primeiras plantas de Cannabis foram domesticadas em torno
12000 A.C. nas estepes da Ásia Central, em regiões nas quais estão
86 Lauro R. Pontes
2700 A.C.
O uso médico precoce de Cannabis
A Cannabis foi supostamente descrita pela primeira vez em um
contexto médico pelo imperador chinês mítico Shen-Nung, em 2.700
A.C., para tratar beri-beri, constipação, fraqueza feminina, gota, ma-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 87
500 A.C.
Primeira documentação do consumo de Cannabis como
substância psicoativa
A cultura Gushi, um grupo nômade indo-europeu de pessoas cau-
casianas, cultivava Cannabis para fins farmacêuticos e psicoativos ou fins
divinatórios. A recente escavação junto aos túmulos Yanghai, no deser-
to de Gobi, perto de Turpan (Xinjiang, China) revelou o túmulo de
2500 anos de um xamã cujos apetrechos continham tetrahidrocanabinol
(THC). A descoberta é a documentação mais antiga de Cannabis como
um agente farmacologicamente ativo. Os dados sugerem que foi culti-
vada, em vez de simplesmente recolhida a partir de plantas silvestres.
450 A.C. - 420 A.C.
Tribos citam o uso da Cannabis
O historiador grego Heródoto descreve o uso da Cannabis entre
as tribos nômades que habitualmente percorriam o norte da Grécia e
Ásia Menor. Vasos descobertos em uma sepultura em 2013 continham
vestígios de ópio e maconha.
70 D.C.
O consumo de Cannabis médica na Grécia antiga
O médico grego Dioscorides registra Cannabis em sua farmaco-
peia. Aparentemente, a planta foi usada extensivamente na medicina
grega e romana nessa época. A folha da Cannabis foi comumente pres-
crita como uma cura para hemorragias nasais, e suas sementes foram
usadas para tratar tênias, dor de ouvido e inflamações.
1000 – 1100 D.C.
O consumo de Cannabis em Al-Andalus
Devido à proibição contida no livro sagrado islâmico sobre o
uso do álcool, a Cannabis tem sido a droga recreativa preferida dos
povos islâmicos. Sendo considerada pura e natural, a planta é pas-
sível de ser usada pelos muçulmanos. Com a islamização do norte
da África, a planta se espalha rapidamente e alcança outros povos
africanos não muçulmanos do restante do continente.
Nos séculos X e XI, fumar maconha em um cachimbo era
normal em Al-Andalus, partes da Península Ibérica regidas por mu-
çulmanos, árabes e norte-africanos. Esses cachimbos foram desco-
bertos em Zaragoza e Córdoba, antes de o tabaco ser conhecido na
Europa. Cientistas árabes estavam vários séculos à frente dos euro-
peus em seu conhecimento sobre o poder curativo da Cannabis.
1378
Primeira proibição de haxixe
Emir Soudom Sheikhouni de Joneima, atual Egito, ordenou
que todas as plantas de Cannabis em seu território fossem destruí-
das em uma tentativa de acabar com seu uso entre as classes mais
pobres. Qualquer um pego comendo Cannabis teria seus dentes ar-
rancados. No entanto, quinze anos após o decreto de Emir, o uso de
Cannabis aumentou na população.
1464
Primeiro relato do uso da Cannabis como
tratamento para a epilepsia
Embora a maconha já tivesse seu uso estabelecido no Oriente
Médio, um dos primeiros relatos de casos da planta para tratamento
de epilepsia data de 1464 e tem autoria de Ibnal-Badri. Em Bagdá,
ele se referiu a um tratamento proveitoso que fazia uso do haxixe,
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 91
1659
Proibição de curta duração da Cannabis na Índia
A Cannabis forma até hoje uma parte importante da medicina
tradicional Hindu, a Ayurveda, e também é usada para fins religiosos.
No entanto, em 1659, Aurangzeb, imperador da Índia, proibiu o culti-
vo de “bhang” em todo o seu reino, porque ele a considerou um vício. A
proibição não durou, já que era impossível de ser aplicada. A comissão
Hindu sobre drogas, em 1894, chamou a Cannabis de “penicilina da
medicina ayurvédica”.
1800
Napoleão proíbe Cannabis no Egito
Após a invasão do Egito em 1800, Napoleão Bonaparte proibiu
seus soldados de fumar ou beber os extratos da planta por causa do
medo de que a Cannabis provocasse perda de espírito de luta. Foi im-
posta uma pena de prisão de três meses àquele que fizesse esses usos
da planta. Ao mesmo tempo, uma equipe de expedição científica trou-
xe Cannabis para a França, onde foi investigada por suas propriedades
capazes de aliviar a dor e por seus efeitos sedativos. Tornou-se, assim,
mais amplamente aceito na medicina ocidental.
1808
Maconha trazida ao Brasil por meio dos escravos africanos
Durante o período colonial, a maconha foi trazida para o Brasil
através dos escravos africanos. Posteriormente, disseminou-se entre os
indígenas e depois entre os brancos. A planta teve seu cultivo estimu-
lado pela coroa real e até mesmo a rainha Carlota Joaquina tinha o
costume de consumir chá de maconha no Brasil.
1830
Cannabis proibida no Rio de Janeiro
Embora as grandes navegações só tenham acontecido por conta
da Cannabis, visto que suas cordas e velas eram feitas da fibra do cânha-
mo, bem como o óleo que iluminava as noites. Sabe-se que a Canna-
bis, historicamente, foi introduzida no Brasil pelos africanos, durante
o período de escravatura. Os nomes dados à maconha indicam isso,
já que todos têm origem linguística africana: fumo d’angola, Gongo,
Cagonha, Marigonga, Maruamba, Diamba, Liamba, Riamba e Pango.
Este advém do nome hindu Bhang, que se torna Pang na língua árabe e
se converte em Pango nas línguas africanas.
De toda forma, a planta esteve desde o início associada à po-
pulação de origem africana, sendo que a ampliação de seu uso atinge
também aqueles de origem europeia, considerada por autores como
Rodrigues Dória como: “uma vingança da raça dominada contra o
dominador”.
Os cultos afro-brasileiros sempre utilizaram a Cannabis. Já no
século XVIII, os relatos sobre os calundus — reunião de negros ao som
de tambores — indicavam a presença da planta, que era inalada pe-
los participantes, deixando-os “absortos e fora de si”. Até a década de
1930 do século XX, quando são legalizados os Candomblés e Xangôs,
a Cannabis era constantemente apreendida nos terreiros junto com os
objetos de culto. A Cannabis é considerada planta Exu, sendo relacio-
nada a essa divindade.
Em 1830, a legislação do município do Rio de Janeiro punia o
uso do “pito de pango”, como era conhecida a Cannabis, com pena de
94 Lauro R. Pontes
multa de 5 mil réis ou dois dias de detenção. Essa foi nossa primeira lei
a respeito da planta.
Nas décadas de 1920 e 1930 deste século, são produzidos os pri-
meiros trabalhos científicos brasileiros acerca do hábito de fumar ma-
conha. Apesar de seus autores serem em sua quase totalidade médicos
preocupados em justificar a proibição da planta, estes tinham um olhar
etnográfico sensível, descrevendo com minúcias os rituais do “clube de
diambistas”, nome dado à associação de indivíduos com o intuito de
fumar Diamba. Os diambistas eram, preferencialmente, membros dos
estratos mais baixos da população brasileira, em especial pescadores
que se reuniam para fumar a erva cantando loas a ela. São dessa épo-
ca os famosos versos: “Diamba, sarabamba, quando fumo diamba, fico
com as pernas bambas. Fica sinhô? dizô, dizô”. Termos utilizados pelos
diambistas como “fino”, “morra” e “marica” entre outros são até hoje
parte da gíria própria dos usuários.
A distribuição geográfica do consumo da Cannabis na época in-
cluía Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Maranhão e Bahia. Daí, pouco a
pouco o hábito se espalha e a partir da década de 1960, com a contra-
cultura, passa a atingir outros estratos sociais. Atualmente, seu uso é
amplamente disseminado entre as camadas médias urbanas.
Cannabis foi proibida no Brasil em 1830, quando o conselho mu-
nicipal do Rio de Janeiro proibiu a venda ou utilização de pito de pango
(Cannabis fumada em uma espécie de cano). Transgressores eram pas-
síveis de uma multa de 20 mil réis — cerca de US$ 40 à época — e
podiam ser condenados a três dias de prisão. Outros conselhos munici-
pais emitiram leis semelhantes: Caxias (1846), Santos (1870), e Cam-
pinas (1876). Em 1886, em São Luís do Maranhão, proibiu-se a venda
e a exposição pública de fumo de Cannabis. Escravos que violassem a
lei podiam ser punidos com até quatro dias de prisão. Não está claro se
essas leis foram realmente aplicadas.
Também os povos do Novo Mundo não ficaram imunes à Cannabis.
Hoje em dia no Brasil, os Mura, os Sateré-Mawé e os Guajajaras fazem
uso tradicional da erva. Os Guajajaras têm a planta em alta estima e sua
presença na mitologia do grupo atesta à antiguidade de seu uso, que re-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 95
1839
Disseminação de uso médico na Europa e os EUA
Um dos primeiros médicos ocidentais a ter interesse no uso me-
dicinal da Cannabis foi William O’Shaughnessy, professor na Faculdade
de Medicina de Calcutá, na Índia. Ele a receitou para pacientes que
sofriam de raiva, reumatismo, epilepsia e tétano. Além disso, relatou
que a tintura de cânhamo — uma solução de Cannabis em álcool, admi-
nistrado por via oral — era um analgésico eficaz, chamando-o de “um
remédio anticonvulsivo do maior valor”. Isso significa que desde 1839
já se sabe das propriedades anticonvulsivantes da maconha. O’Shaugh-
nessy retornou à Inglaterra em 1842 e recomendou que farmacêuticos
a receitassem. Os médicos na Europa e nos Estados Unidos começaram
a prescrevê-lo para uma variedade de condições físicas.
Livro sobre o clube Hachichins por um dos seus fundadores Théophile Gautier.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 97
1844
Clube Hachichins
Soldados que retornam do Egito levaram consigo a Cannabis
para a França. Daí em diante, ocorreram importações regulares da
planta. Logo em seguida, já era possível comprá-la em qualquer far-
mácia. Artistas e escritores, incluindo Dr. Jacques-Joseph Moreau,
Théophile Gautier, Charles Baudelaire, Victor Hugo, Honoré de
Balzac, Gérard de Nerval, Eugène Delacroix e Alexandre Dumas,
criaram um clube para explorar a Cannabis e aumentar a criativi-
dade. O clube se reuniu regularmente entre 1844 e 1849 no Hôtel
Lauzun, em Paris.
Ilustração do livro Sob a bandeira alemã em toda a África do oeste para o leste (colocar o título do livro em
itálico) pelo explorador alemão Hermann Wissmann.
1850 - 1876
Bena Riamba: Irmãos de cânhamo
Por volta de 1850, um grupo de usuários de Cannabis, chamado
Bena Riamba (Irmãos de cânhamo), começou um culto religioso entre
pessoas nativas no leste do Congo. A religião era baseada na riamba e
a palavra Bashilange era usada para fazer referência à Cannabis, que se
98 Lauro R. Pontes
1857
Uso tradicional de Cannabis na África
O uso cultural de Cannabis foi generalizado em toda a África.
O explorador David Livingstone observou, em 1857, que “essa erva
daninha perniciosa é amplamente utilizada em todas as tribos do in-
terior” (que seria mais ou menos onde é a Zâmbia hoje). A palavra
maconha, inclusive, vem de Ma Konia, Mãe Divina, numa língua da
costa ocidental africana.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 99
1868 - 1894
Egito tenta proibir o haxixe
O cultivo, o uso e a importação de haxixe foram proibidos pela
primeira vez em 1868, quando o sultão da Turquia governava o Egito.
As proibições sobre o cultivo de Cannabis e de sua utilização vigoraram
entre 1879 e 1884. No entanto, os funcionários aduaneiros foram au-
torizados a vender haxixe no exterior para pagar informantes e agentes
responsáveis pelas prisões. Isso apenas resultou em mais haxixe sendo
importado, uma vez que os importadores originais eram os próprios
agentes. Ainda assim o governo tentou proibir o haxixe novamente,
reeditando a medida entre 1891 e 1894. De novo, teve pouco efeito
sobre o uso, pois era o produto barato e facilmente cultivado ou con-
trabandeado e ainda era permitido para não egípcios. Por isso essas leis
nunca foram eficazes.
1869
Cidade do México proíbe a maconha
No México, a venda de maconha foi proibida na Cidade do Mé-
xico (1869), Oaxaca (1882), Estado do México (1891), e Querétaro
100 Lauro R. Pontes
(1896). Nunca ficou claro, no entanto, até que ponto as leis foram
efetivamente aplicadas e respeitadas. A maconha estava ligada às teorias
racistas de eugenismo, à loucura, e a outras patologias que desviaram
da norma eurocêntrica. Essas teorias, felizmente, foram, posterior-
mente, desacreditadas. Na década de 1890, pesquisadores e médicos
mexicanos, como José Olvera, Carlos Viesca y Lobatón e Máximo Sil-
va, sugerem que a Cannabis tinha a capacidade de fabricar “delírio ma-
níaco”, “múltiplas personalidades”, e “um impulso terrível e cego que
leva a assassinato” em indivíduos da classe trabalhadora e mestiços.
1870
África do Sul proíbe Cannabis para os trabalhadores
contratados da Índia
Uma lei de 1870 proibiu o uso e posse de Cannabis para imi-
grantes indianos, principalmente devido à percepção de que o regime
branco foi ameaçado pelo consumo de dagga, como era conhecida a
Cannabis. A lei não funcionou, pois não afetou um padrão cultural tão
bem estabelecido. Além disso, a lei mencionava as vendas para os india-
nos, mas não o cultivo feito por eles de suas próprias plantas. Assim,
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 101
1876
Salões de haxixe nos EUA
A partir da década de 1860 até o início de 1900, várias feiras
mundiais tinham exposições turcas sobre haxixe. Durante a exposição
de 1876 na Filadélfia, os frequentadores experimentaram e fumaram
102 Lauro R. Pontes
1889
Cannabis usada como tratamento para a dependência ao ópio
Nesse ano, um dos artigos que constituíram a revista The Lancet,
uma das maiores revistas médicas do mundo, pertencia ao PhD. E.A.
Birche descreveu a aplicação da Cannabis como forma de tratamento
para a dependência ao ópio. A planta funcionou como antiemético e re-
duziu o desejo ao ópio. Nos anos seguintes, a maconha estabeleceu-se
como medicamento nos EUA e no continente europeu.
1890
Grécia proíbe Cannabis
Cultivo, importação e uso de Cannabis foi proibido na Grécia em
1890. O haxixe foi considerado uma “ameaça iminente para a socieda-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 103
1890 - 1912
Cannabis nas prateleiras das lojas em todo o mundo
“Quando pura e administrada com cuidado, a Cannabis é um
dos medicamentos mais valiosos que possuímos”, escreveu o médico
britânico John Russell Reynolds, em 1890, no The Lancet. Ele ainda
prescreveu na forma de uma tintura natural para a sua mais ilustre
paciente, a Rainha Victoria.
104 Lauro R. Pontes
1892
Cannabis proibição no Egito reconsiderada
Em 1892, a proibição da Cannabis no Egito foi reconsiderada.
O diretor-geral de costumes britânicos, no Egito, observou que a
proibição tinha incentivado lugares ilícitos de fumantes, proliferan-
do contrabando e corrupção. Ele defendeu a aplicação de políticas
de controle e restrição como as usadas na Índia, outra colônia bri-
tânica que, com sucesso, controlou o uso excessivo e autorizava o
consumo moderado. Ele ressaltou que as licenças e impostos dessas
medidas na Índia estavam arrecadando boas receitas, por meio dos
impostos pagos, enquanto o consumo tinha diminuído: “Tem sido
abundantemente comprovado que o uso de haxixe não pode ser su-
primido pela legislação, mas pode ser controlado por um sistema de
licenças que podem ser mantidos sob controle até uma certa exten-
são proporcional”, disse ele.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 105
1894 - 1895
Relatório da Comissão de Drogas da Índia
Este importante relatório de sete volumes concluiu que a Can-
nabis “não produz efeitos prejudiciais sobre a mente”; não leva “para
o crime e a violência”; e que “o uso moderado não produz pratica-
mente nenhum efeito nocivo”. Ele sugeriu o licenciamento comum
do cultivo e tributação sobre as vendas. Nas suas recomendações
mais importantes, o relatório da comissão concluiu que “não é ne-
cessária nem conveniente a proibição do cultivo da Cannabis, de sua
fabricação, venda ou uso, seja de forma recreativa ou medicinal”.
De acordo com o relatório, “proibir ou restringir o uso de uma erva
como a Cannabis só causaria sofrimento e irritação generalizada.»
As suas conclusões foram amplamente ignoradas pela comunidade
internacional nos anos seguintes.
106 Lauro R. Pontes
1905
Maconha como possível tratamento para “asmas e catarros” e
“roncaduras e flatos”
Nessa época, passou a rondar o Brasil a ideia de que a Cannabis
poderia ter fins medicinais, como já ocorria na Europa, e poderia tra-
tar doenças como “asmas e catarros” e “roncaduras e flatos”.
Hamilton Wright, Estados Unidos Opium. Comissário que coordenou os aspectos internacionais da política de c
ontrole de drogas dos Estados Unidos e colaborou para a elaboração de legislação de drogas domésticas. Era um
dos delegados na Conferência Internacional do Ópio 1912.
1911 - 1912
Conferência Internacional do Ópio
Na Conferência do Ópio, em Haia, a delegação italiana, preo-
cupada com o contrabando de haxixe em suas colônias no norte da
África, levantou a questão da Cannabis. Muitos delegados ficaram per-
plexos com a colocação da planta nas discussões.
Produtos farmacêuticos baseados em Cannabis eram frequentes
no início do século XX e não havia nenhuma definição científica cla-
ra da substância. Nem sequer os delegados tinham instruções de seus
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 107
1912
Califórnia bane a Cannabis
Antes da tentativa de proibição federal nos EUA em conjunto
com o esforço antidrogas dos anos de 1930, alguns estados já tinham
proibido o uso não medicinal da Cannabis, incluído Califórnia (1913),
108 Lauro R. Pontes
1913
Ganja proibido na Jamaica
Após a ratificação da Convenção de Haia de 1912, o governo da
Jamaica decidiu proibir a Cannabis, que havia sido introduzida na ilha
pelos trabalhadores indianos contratados que chegaram após a aboli-
ção da escravatura, em 1838. A proibição foi colocada em prática pela
“Ganja Law” de 1913, fomentada pelo Conselho das Igrejas Evangéli-
cas, engajado contra o “cultivo e importação” de Cannabis. Apesar des-
tas medidas, a disseminação do uso da erva fez ocorrer a construção
de uma legislação mais severa a partir de 1924. Foi criada, portanto, a
“Lei das Drogas Perigosas”, que incluiu o aumento de multas e prisão
na primeira condenação.
1913
Califórnia proíbe a maconha
Antes que o governo federal dos EUA tentasse harmonizar a
repressão às drogas na década de 1930, alguns estados já haviam de-
cretado proibições contra o uso não medicinal da maconha, incluindo
Califórnia (1913), Texas (1919), Louisiana (1924) e Nova York (1927).
Em 1937, 46 dos então 48 estados do país haviam proibido a substân-
cia. A passagem da Lei do Imposto Marijuana naquele ano assegurando
a proibição seria implementada em nível nacional.
Uma assembleia, um encontro social bastante comum no Nordeste do Brasil até a década de
1940 em que diamba (Cannabis) foi consumido.
1915
Cannabis demonizada no Brasil
O consumo de Cannabis foi desaprovado pela elite branca no Bra-
sil. Rodrigues Dória, um psiquiatra, professor de Medicina Pública e
ex-governador do estado de Sergipe, em um artigo para o Segundo
Congresso Científico Pan-Americano, em Washington DC, no ano de
1915, descreveu “o vício pernicioso e degenerativo” de fumar Cannabis
como uma “vingança dos derrotados”; a vingança dos negros “selva-
gens” contra os brancos “civilizados” que os haviam escravizado. No
Nordeste do Brasil, o consumo de Cannabis era uma forma popular de
socialização em círculos de fumadores, conhecidos como assembleias.
A planta também foi usada nas práticas religiosas africanas: umbanda
110 Lauro R. Pontes
Homem que fuma kif, uma mistura de tabaco picado e Cannabis, num Sebsi,
um tubo com um pequeno barro ou tigela de cobre.
1917
Cannabis permitida em Marrocos
Por volta de 1890, o sultão Mulay Hassan autorizou o cultivo de
Cannabis em cinco Douars (aldeias) nas áreas tribais de Ketama, Beni
Seddat e Beni Khaled. Estas áreas ainda são o coração do cultivo de
Cannabis hoje, apesar da proibição do seu cultivo em 1956, quando o
país se tornou independente. Campos de Cannabis bem conservadas es-
tão por toda a parte em terraços e encostas, mesmo ao longo das prin-
cipais estradas. Moradores locais afirmam que eles estão autorizados a
cultivar Cannabis devido a um dahir (decreto) emitido em 1935 pelas
autoridades do protetorado espanhol de Marrocos do Norte (1912-
1956), com base em um documento anterior, de 1917.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 111
1923
África do Sul pede a inclusão do Cannabis na Convenção
A Liga das Nações assumiu a supervisão da Convenção de
Haia de 1912, através do comitê consultivo sobre tráfico de ópio e
outras drogas perigosas. A África do Sul, que já tinha proclamado
uma proibição nacional sobre o cultivo, a venda, a posse e o uso de
Cannabis, escreveu uma carta ao comitê consultivo em novembro
de 1923 dizendo que, a partir de sua perspectiva, a Cannabis seria a
mais importante de todas as drogas que causam dependência, mas
ela não havia sido incluída na lista da convenção. A comissão pediu
aos governos para obter informações sobre a produção, a utilização
e o comércio da Cannabis em uma carta circular em novembro de
1924, no mesmo mês em que a Segunda Conferência sobre o ópio
foi convocada.
1924 - 1925
Segunda Conferência do Ópio, em Genebra
Entre novembro de 1924 e fevereiro de 1925, foram realizadas
duas conferências em Genebra simultaneamente, e dois tratados sepa-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 113
1925
Convenção Internacional do Ópio
A mando do Egito e sem a devida consideração de elementos técni-
cos relevantes que comprovassem as colocações para apoiar a necessidade
de controle, a Conferência decidiu formalmente que “cânhamo indiano”
era tão viciante e tão perigoso quanto o ópio e deveria ser tratado como
tal. A Cannabis foi colocada sob um regime de controle internacional na
114 Lauro R. Pontes
Bundesarchiv
Koks Emil, vendendo drogas na rua, Berlin 1929.
1928 - 1930
Países europeus fora da lei Cannabis
Na sequência da aprovação da Convenção Internacional do Ópio
de 1925, os países europeus gradualmente proibiram a posse de Can-
nabis e muitas vezes a sua utilização. Exemplos disso são a alteração
feita no Dangerous Drugs Act do Reino Unido de 1928 ou a Lei do Ópio
holandesa revista em 1928, seguida da Lei do Ópio alemã de 1929.
Essas leis excederam as obrigações previstas na Convenção, apesar da
ausência de problemas relacionados com o consumo de Cannabis nesses
países. As proibições foram emitidas em níveis nacionais, com base em
evidências questionáveis, e produziram controles mais rigorosos em
níveis internacionais.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 115
1934
Cannabis na Liga das Nações
A Cannabis não atraía interesse significativo após a Convenção
de Genebra de 1925. Na década de 1930, no entanto, o comitê con-
sultivo sobre tráfico de ópio e outras drogas perigosas começaram
a prestar cada vez mais atenção à Cannabis, sob a pressão do Egito,
dos EUA e do Canadá. Em 1934, um relatório foi entregue, esti-
mando que houvesse nada menos que 200 milhões de consumidores
de Cannabis em todo o mundo, embora não estivesse claro como
esse número foi alcançado. A delegação egípcia exigiu “a proibição
mundial da planta Cannabis”, mas outras delegações questionaram
as declarações mal fundamentadas. Por conseguinte, a questão foi
remetida para um subcomitê.
1936
Reefer Madness
Reefer Madness é um filme de propaganda americano que gira em
torno de eventos melodramáticos, ocorridos quando os alunos do en-
sino médio são atraídos por traficantes para tentar vender maconha.
Isso resulta em homicídio, suicídio, tentativa de estupro, alucinações
116 Lauro R. Pontes
1937
Marijuana Tax Act
O ato fiscal da maconha, aprovado pelo Congresso dos Esta-
dos Unidos em agosto de 1937, proibiu a Cannabis no país. Diante
da Lei, a planta permaneceu legalizada, mas os importadores, os
vendedores, os distribuidores e qualquer manipulação da droga es-
tavam sujeitos ao pagamento de um imposto. As disposições da lei,
no entanto, não foram projetadas para aumentar a receita, ou sequer
para regular o uso da maconha, mas sim para fornecer os mecanis-
mos legais com o objetivo de fazer cumprir a proibição de qualquer
uso da maconha no país.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 117
1937
Primeira condenação por maconha nos EUA
Samuel R. Caldwell foi a primeira pessoa condenada por vender
Cannabis sob o ato fiscal da maconha. Os agentes de repressão às drogas
o prenderam com 3 libras de Cannabis em seu apartamento, em Den-
ver, Colorado. Ele foi condenado a quatro anos de trabalhos forçados,
além de uma multa de US$ 1.000. O chefe da divisão de narcóticos do
FBI na época, Harry Anslinger, veio a Denver para assistir ao julgamen-
to. Caldwell foi preso na idade de 58 e solto aos 60. Ele morreu um
ano após a sua libertação. 76 anos mais tarde, Colorado foi o primeiro
estado dos EUA a permitir um mercado de Cannabis regular.
O artigo de Leopoldo Salazar Viniegra (esquerda) e Salazar em Criminalia em que ele questionou
a existência de uma psicose maconha e argumentou que o álcool desempenhou um papel muito mais importante
no aparecimento de problemas de psicose e sociais.
118 Lauro R. Pontes
1938
O Mito Maconha
O psiquiatra mexicano Leopoldo Salazar Viniegra publicou El
mito de la marihuana (O Mito da Maconha), questionando a relação da
planta com a loucura, a violência e o crime. Devido à proibição em
1920 da Cannabis no México, 80% dos violadores da lei de drogas eram
usuários de maconha. Salazar defendeu uma revogação da proibição
da Cannabis para minar o tráfico ilícito e focar os mais graves proble-
mas, que envolviam álcool e opiáceos. Salazar passou a ser inimigo do
Bureau federal para narcóticos FBN, representado pela figura do seu
diretor Anslinger, que foi contra a opinião do médico no México. Ele
se demitiu em 1940 do cargo de chefe de Serviço de Narcóticos Fede-
ral do México, depois de uma campanha em que foi descrito como um
louco e “propagandista da maconha”.
1944
Comitê La Guardia relatório sobre Cannabis
O relatório do Comitê La Guardia foi o primeiro estudo aprofun-
dado sobre os efeitos da maconha nos Estados Unidos. Os relatórios
contradisseram sistematicamente as alegações de que o consumo de
Cannabis resulta em demência, deterioração da saúde física e mental,
incentivo de comportamento criminal, e também de que a planta seja
fisicamente viciante e uma porta de entrada para outras drogas mais
perigosas. O relatório foi preparado pelo NewYork Academy of Medicine,
em nome de uma comissão sobre Cannabis criada pelo prefeito de Nova
York, Fiorello LaGuardia, em 1939. O relatório enfureceu Harry Ans-
linger, que o condenou como não científico.
Dr Eelco N. van Kleffens representante permanente dos Países Baixos para as Nações Unidas, assina o documento
protocolo relacionado com os acordos e convenções sobre estupefacientes concluídos em 1912, 1925, 1931 e
1936 como chefe Johan de Noue da Seção de protocolo e de ligação da ONU observa (11 de dezembro de 1946).
1946
Comissão de Entorpecentes
O Conselho Econômico e Social da recém-criada Organização
das Nações Unidas estabelece a Comissão de Estupefacientes (CND,
em inglês) como o principal órgão de decisão política para assuntos
120 Lauro R. Pontes
ONU Foto / MB
Dois dos delegados para a sétima sessão da Comissão dos Estupefacientes troca de pontos de vista antes de uma
reunião: Saleh A. Mahmoud (à esquerda), do Egito; e Harry J. Anslinger, dos Estados Unidos. Anslinger desempe-
nhou um papel de liderança na CND trabalhando em um tratado “single”.
1948 - 1958
Rumo à Convenção Única de 1961
Em 1948, o Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC)
aprovou uma resolução do CND redigida pelos EUA para elaborar uma
nova convenção e substituir todos os tratados existentes da Convenção
de 1912, de Haia em diante. Entre 1950 e 1958, três projetos foram
apresentados. Havia duas abordagens, as duas afirmavam que a Canna-
bis recreativa precisava ser rigorosamente desestimulada. A primeira
opção foi a de que a droga em questão não tinha nenhuma utilidade
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 121
médica legítima e que não poderia ser tratada como outras “substân-
cias menos perigosas”. Com a exceção de pequenas quantidades para
fins científicos, a produção de Cannabis seria proibida por completo. A
segunda opção reconhecia que a planta tinha fins médicos legítimos e
que deveria ser produzida exclusivamente por um monopólio estatal
para fins médicos e científicos.
1955
Cannabis condenados
A Comissão das Nações Unidas sobre Estupefacientes declarou
que a Cannabis não tinha nenhum valor medicinal com base em um
relatório elaborado por Pablo Osvaldo Wolff, que não possuía nenhum
fundamento científico. Ele foi deliberadamente mal produzido e não
recebeu o endosso da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em
1949, Wolff escreveu um panfleto, com prefácio de Anslinger, referin-
do-se à Cannabis como “demônio do extermínio, que agora irá atacar o
nosso país”. O surpreendente relatório de Wolff continua a ser a base
para a classificação de Cannabis da ONU até hoje.
122 Lauro R. Pontes
1961
Índia resiste à inclusão de folhas de Cannabis e sementes
O terceiro projeto da Convenção Única de 1958 incluiu uma
seção especial no âmbito da “proibição da Cannabis”. A oposição, en-
tretanto, impediu a adoção na Conferência de Plenipotenciários, que
negociou o projeto em Nova Iorque. A Índia se opôs à proibição do uso
tradicional do bhang, a bebida produzida a partir da maconha e que
tem um teor psicoativo baixo, descrito pelo delegado indiano como
uma “bebida levemente inebriante”, que era “muito menos prejudicial
do que o álcool”. Como resultado, folhas e sementes foram omitidos da
definição de Cannabis, que só se refere à “floração ou frutificação dos to-
pos da planta”. Como tal, o uso tradicional de bhang poderia continuar.
1961
Cannabis oficialmente colocada na lista de
medicamentos “perigosos”
A Cannabis foi incluída no Anexo IV da Convenção Única de 1961
sobre Entorpecentes, considerada como um elemento dos “mais peri-
gosos, excepcionalmente viciante e produtor de efeitos nocivos graves”.
Os signatários foram chamados a “proibir a produção, a fabricação, a im-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 123
1963
Elementos psicoativos da Cannabis descobertos
Raphael Mechoulam e seus parceiros de pesquisa da Universi-
dade Hebraica de Jerusalém descobriram a estrutura do canabidiol
(CBD). No ano seguinte, eles isolaram o delta-9-tetrahidrocanabinol
(THC), estabelecendo a sua estrutura e síntese.
Mr. Soekardjo Wirjopranoto da Indonésia. A assinatura do Acto Final da Convenção Única sobre Entorpecentes.
124 Lauro R. Pontes
1964
Convenção Única de 1961 entra em forçar
O número necessário de 40 ratificações da Convenção Única de
1961 foi alcançado em dezembro de 1964. O período de teste de 25
anos de Cannabis terminou, portanto, em 1989. As disposições espe-
ciais sobre a planta estão incluídas na Convenção Única de 1961 (artigo
28 sobre o controle de Cannabis e 49 sobre seu uso tradicional).
1966 - 1967
Cannabis e 1960
Devido à crescente popularidade e à utilização cada vez mais
generalizada da Cannabis, particularmente na sua estreita associação
com os movimentos contra-culturais emergentes, a planta tornou-se
o foco das atividades de repressão às drogas em muitos países ociden-
tais na década de 1960. Prisões por delitos de drogas atingiram níveis
sem precedentes. Impulsionada em grande parte pelo crescimento
das prisões por porte simples para consumo próprio, resultando em
penas de até 10 anos.
Nos EUA, as infrações aumentaram 94,3% entre 1966 e 1967,
ano em que a Convenção foi ratificada em Washington.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 125
Robert Kennedy Jr., filho de 16 anos de idade do falecido Robert Kennedy, deixa corte em Barnstable,
Massachusetts, após uma audiência sob a acusação de posse de maconha em agosto de 1970.
1969 - 1977
Crescentes apreensões de Cannabis provocam debate
O grande número de consumidores de Cannabis, composto
predominantemente por jovens que receberam multas e até penas de
prisão, fomentou a produção de debates políticos consideráveis, bem
como inquéritos públicos e comissões para examinar o uso de drogas e
recomendar mudanças na lei. Alguns deles foram: o relatório do Rei-
no Unido produzido pelo Comitê Consultivo sobre Dependência de
Drogas, o Relatório Wootton de 1969, a Comissão holandesa de Baan de
1970, a Comissão Hulsman de 1971, a Comissão Nacional dos EUA so-
126 Lauro R. Pontes
1970 - 1972
Relatório da Comissão Shafer
O Congresso dos EUA aprovou a Lei de Substâncias Contro-
ladas em 1970, rotulando a Cannabis, mas reconheceu que não sabia
o suficiente sobre ela. A Comissão Nacional sobre o uso da maconha
criada por Nixon (mais conhecida como a Comissão Shafer) reco-
mendou, no seu relatório de 1972, que o uso da maconha não deve
ser um crime sob lei estadual ou federal. Nixon não gostou e reagiu
fortemente. Em uma conversa gravada um dia antes de o relatório ser
divulgado, Nixon disse: “Nós precisamos, e eu uso a palavra ‘guerra
total’, em todas as frentes... Temos que atacar em todas as frentes”.
Ele anulou a investigação da Comissão e a maconha ficou condenada
ao seu estatuto ilegal atual.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 127
1971
Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas
Uma década após a Convenção Única, o princípio ativo funda-
mental da Cannabis, delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) ou dronabinol,
foi incluído na Convenção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópicas —
um tratado internacional de controle, que visa discorrer sobre substân-
cias psicoativas que não tinham sido incluídas na Convenção Única de
1961, muitas delas produzidas pela indústria farmacêutica.
17 de julho de 1971
Nixon declara “guerra às drogas”
Motivado por vício entre soldados dos EUA no Vietnã, o presi-
dente Nixon chamou o abuso de drogas de “inimigo público número
um”. Gravações, feitas no salão oval da casa branca entre 1971 e 1972,
revelaram a desinformação e o preconceito que estavam por trás da
proibição da maconha. Embora a Comissão Shafer ainda estivesse vi-
gente para o uso de maconha, Nixon comentou com seu assessor Bob
Haldeman: “Você sabe, é engraçado, cada um dos bastardos que estão
apoiando a legalização da maconha é judeu. Por que será que isso é o
assunto com os judeus, Bob? Qual é o problema com eles? Acho que é
porque a maioria deles são psiquiatras”.
Senegal Sinais. Protocolo de 1961. Convenção Única sobre Entorpecentes (ONU Foto / Yutaka Nagata).
128 Lauro R. Pontes
25 de março de 1972
Convenção Única de 1961 alterada
O protocolo que altera a Convenção Única sobre Entorpecen-
tes foi assinado e deveria entrar em vigor em 1975. Ao invés de fazer
mudanças dramáticas na Convenção Única, o Protocolo de disposições
reforçou as medidas de aplicação da lei e também fez uma maior pro-
visão para tratamento, reabilitação e medidas de prevenção. O artigo
36 foi alterado e introduziu a opção de alternativas às sanções penais:
“as partes poderão prever, quer como uma alternativa à condenação
ou pena, quer como complemento à condenação ou punição, que tais
abusadores de drogas devem ser submetidos a medidas de tratamento,
educação, pós-tratamento, reabilitação e reintegração social”.
Coffeeshop Mellow Yellow: na verdade, uma casa de chá, no momento em que foi fundada, em 1972. Foi uma das
primeiras lojas em Amsterdã que vendiam Cannabis abertamente (Foto: Maio de 1978).
1973 - 1980
Modificações e tolerâncias nos EUA e na Holanda
Um número de estados dos EUA (Oregon, Alasca e Califórnia)
descriminalizou o porte pessoal de Cannabis. Oregon foi o primeiro
estado a descriminalizar a posse de pequenas quantidades da erva. Se-
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 129
Koos Zwart, o filho de Dutch, ministro da saúde pública, transmitido os preços por grama de diferentes
variedades de Cannabis. Isso ocorreu em seu programa semanal “Beursberichten” (notícias de ações),
transmitido por uma rádio nacional — VARA —, pertencente ao Dutch.
1976
A ascensão do café
A Holanda descriminalizou a Cannabis através da introdução de uma
política de não execução por violações envolvendo a posse ou a venda de
até 30 gramas da planta. A nova Lei do Ópio fazia distinção entre drogas
que envolviam riscos inaceitáveis — drogas pesadas, como a heroína — e
produtos de Cannabis — drogas leves. Ao longo dos anos, um sistema dos
chamados coffeeshops, que permitem aos usuários comprar a erva e consu-
mi-la, foi autorizado sob determinadas condições.
130 Lauro R. Pontes
2 de agosto de 1977
Presidente Carter apoia descriminalização
Em agosto de 1977, o presidente Jimmy Carter, em uma men-
sagem ao Congresso, assumiu as recomendações do relatório Shafer,
renegado pelo seu antecessor Nixon: “sanções contra a posse de uma
droga não devem ser mais prejudiciais para um indivíduo do que o uso
da droga em si. Isso é muito claro nas leis contra a posse de maconha
em particular para uso pessoal”. Carter apoiou a legislação a fim de
eliminar todas as penas criminais federais para a posse de até uma onça
(28 gramas) de maconha, deixando que os estados adotassem leis indi-
viduais sobre o uso de Cannabis.
1981
Periódico indica efeito benéfico do CBD
para controle de crises convulsivas
O grupo do Prof. Dr. Elisaldo Carlini, da UNIFESP, publica um pe-
riódico científico internacional bastante estimado. O estudo que constava
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 131
1982 - 1988
“Basta dizer não” – a guerra às drogas
Depois de algum amolecimento em Carter, o pêndulo oscilou de
volta ao proibicionismo de Reagan e sua proclamada “guerra às drogas”.
Os resultados nos níveis de encarceramento nos EUA foram recordes
e, também, a nível internacional, do aumento do financiamento para
programas de erradicação das drogas, resultando em crescentes abusos
dos direitos humanos.
Em 1988, a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilí-
cito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas foi aprovada, o que
reforçou significativamente a obrigação dos países de aplicar sanções
penais para a produção ilícita, a posse e o tráfico de drogas.
O comentário à Convenção de 1988 em relação ao seu artigo 3 é
bastante claro sobre a questão da não criminalização de uso: “...como
em 1961 e 1971, o parágrafo 2 não exige que o consumo de drogas,
como tal, deve ser estabelecido como uma ofensa punível”.
Hamid Ghodse (à esquerda), presidente da JIFE por nada menos que 11 vezes, e repórteres de briefing em Viena.
132 Lauro R. Pontes
1992 - 2013
JIFE continua a obstruir reforma
A Junta Internacional de Controle de Narcóticos (INCB), apoiada
por vários países, agiu como defensora do status quo, em vez de facili-
tadora da mudança. Muitas vezes, ela nomeou e envergonhou os países
mais tolerantes, que reivindicavam a maconha medicinal, em seus rela-
tórios anuais. Além disso, alegava que os esforços para a descriminaliza-
ção estavam enviando os “sinais errados” sobre a nocividade da Cannabis.
A ação de ARSEC marcou o início precoce do movimento Cannabis Clube Social, na Espanha. A falta de reação legal
nos últimos anos fez com que associações buscassem alguma estabilidade institucional e legal para os cultivos da planta.
1994
A ruptura catalã: primeiro cultivo de Cannabis coletivo
No ano de 1997, em Barcelona, membros da Asociación Ramón
Santos de Estudos Sobre el Cannabis (ARSEC) plantaram duas plantas de
Cannabis por pessoa para consumo pessoal, como parte de uma empresa
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 133
1995
A projeção da OMS sobre as implicações para a saúde do
consumo de Cannabis
O relatório foi lançado em agosto de 1995, concluindo que: “nos
padrões existentes de uso, a Cannabis representa um problema muito
menos grave de saúde pública do que é atualmente o álcool e o tabaco
nas sociedades ocidentais”. Alguns funcionários da OMS se posiciona-
ram veementemente contra o relatório. Num comunicado de impren-
sa, a OMS defendeu sua decisão de excluir a conclusão comparativa
do relatório final, dizendo que não tinha sido “nenhuma tentativa de
esconder qualquer informação” e que “a decisão de não incluir essa
comparação no relatório final foi baseada em julgamento científico e
não tinha nada a ver com a pressão política”.
Ativistas oferecem cigarros de maconha a policiais em protesto nacional que tinha como objetivo a
manutenção da política pública para Cannabis holandesa.
134 Lauro R. Pontes
1995
Regulação da Cannabis holandesa.
Em 1995, um novo governo decidiu regulamentar a prestação de
Cannabis aos coffeeshops. A nova política foi preparada, mas foi cortada
pela raiz após a intervenção do presidente da França, Jacques Chirac.
Como resultado, as políticas nacionais de droga na Europa tiveram de
aderir ao menor denominador comum no seio da União Europeia. Isso
significa que os países puderam obstruir as reformas mais liberais nas
políticas da maconha, com base nas convenções de controle de drogas
restritivas da ONU, incorporados à legislação europeia.
1996
Movimento Pró-Maconha Medicinal
Em 1996, os eleitores da Califórnia aprovaram a Proposição 215,
a Lei de uso compassivo, dispensando, assim, o uso médico da Cannabis
de sanções penais. Foi essa proposição que iniciou uma nova onda de
deserções maciças da legislação anterior até a enorme gama de estados
americanos que já permite o uso medicinal.
1998
UNGASS sobre o problema mundial das drogas
A sessão da ONU, em Assembleia Geral Extraordinária sobre o
Problema Mundial das Drogas (UNGASS 1998), realizada entre 08 e 10
de junho, em Nova York, não trouxe nenhuma surpresa. A comissão de
drogas adotou uma estratégia global para reduzir a oferta e a demanda
de drogas ilícitas até 2008. Contudo, no geral, foi uma oportunidade
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 135
A ONG “Crescer na maior”, de Portugal, entrega kits com preservativos, seringas, etc. para viciados em
heroína. Eles retornam e permitem o diálogo, tratando aqueles que estão adoecidos e testando outros para obter
informações sobre as doenças.
2001
Portugal descriminaliza todas as drogas, incluindo Cannabis
Portugal tomou as medidas mais radicais para descriminalizar to-
das as drogas, e passou a tratar a dependência como caso de saúde em
vez de como problema criminal. Os resultados são de que a situação das
drogas em Portugal melhorou significativamente em várias áreas-chave.
Mais notavelmente, infecções por HIV e mortes relacionadas com drogas
diminuíram, enquanto o aumento do uso, temido por alguns, não se con-
cretizou. Portugal acertou no sentido de uma abordagem sobre drogas
centrada na saúde, bem como nas mudanças de políticas sociais de saúde
mais amplas, que são responsáveis pelas melhorias observadas.
2002
Cannabis Social Clubs na Espanha
A ascensão de Clubes Sociais de Cannabis (CSC), na Espanha,
permitiu que milhares de pessoas pudessem produzir legalmente
136 Lauro R. Pontes
2006
Relatório Mundial de Drogas sobre a Cannabis
Em 2006, o Relatório Mundial sobre Drogas tinha um tópico
especial sobre a Cannabis, que levantava a questão fundamental em re-
lação a planta hoje: “o mundo não foi capaz de chegar a um acordo so-
bre a Cannabis. Em alguns países, o consumo de Cannabis e seu tráfico
são levados muito a sério, enquanto, em outros, eles são praticamente
ignorados. Essa incongruência mina a credibilidade do sistema inter-
nacional. O tempo para resolver a ambivalência global sobre o tema
está muito atrasado. Ou a diferença entre a letra e o espírito da Con-
venção única, de modo manifesto com Cannabis, precisa ser superado,
ou partes da Convenção precisam ser discutidas para a redefinição do
estatuto da Cannabis”.
2007
Lançamento do livro Maconha, Cérebro e Saúde
Os neurocientistas Renato Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro
lançaram um livro que, somado aos esforços de pesquisadores bra-
sileiros, principalmente os que são relacionados ao CEBRIDE, teve
o propósito de divulgar informações sobre o sistema endocanabi-
nóide e suas capacidades medicinais. A obra gerou grande impacto
tanto no meio acadêmico quanto no que tange o público em geral.
Sua primeira edição foi completamente esgotada. Além disso, o li-
vro serviu de roteiro para o filme Cortina de Fumaça, de Rodrigo
Mac Niven.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 137
11 março de 2009
ONU recicla promessas irrealistas
A reunião de alto nível das Nações Unidas em Viena conclui, após
2 anos, a longa revisão do progresso do sistema de controle de drogas
global. Apesar dos apelos de outras agências da ONU e da sociedade
civil internacional, pedindo ao CND para afirmar seu apoio às medi-
das de redução de danos e de reequilíbrio do sistema de controle de
drogas, no sentido de uma abordagem de saúde pública e dos direitos
humanos, a nova Declaração Política e Plano de Acção simplesmente
reafirma os compromissos do UNGASS 1998. Eles repetem promessas
ilusórias para uma sociedade “livre do abuso de drogas” e definem ou-
tra data-limite, de 10 anos, para eliminar ou reduzir significativamente
o cultivo ilícito de papoula, da coca e da planta de Cannabis.
2010
Estreia o documentário “Cortina de Fumaça”
O filme “Cortina de Fumaça”, de Rodrigo Mac Niven, chega aos
festivais de cinema no Brasil e no restante do mundo. O documentário
gerou grande impacto político, trazendo ao grande público brasileiro,
pela primeira vez, uma discussão aprofundada e inovadora sobre o uso
da Cannabis medicinal e sobre os problemas criados a partir de sua proi-
bição. A obra cinematográfica conta com depoimentos do ex-presidente
138 Lauro R. Pontes
2011
Marcha da Maconha é liberada no Brasil
A Marcha da Maconha é um movimento muito importante para a
discussão sobre políticas públicas que regem o uso da Cannabis no Brasil.
O assunto sobre o uso medicinal da planta sempre foi discutido pela Mar-
cha. Isso o levou à pauta do programa televisivo “Fantástico”, em 2011,
no qual, pela primeira vez, uma pesquisa de opinião pública televisionada
obteve maioria de votos favoráveis à regulamentação da maconha no país.
6 de novembro de 2012
Os dominós começam a cair
Os eleitores no estado de Washington e no estado de Colorado
aprovaram iniciativas estabelecendo mercados legalmente tributados
e regulados para a produção, venda e uso de Cannabis. Isso violou a
convenção de 1961 e colocou os EUA em uma posição desconfortável
e insustentável como um dos defensores chave das convenções inter-
nacionais sobre drogas. Nesse mesmo ano, Charlotte Figi, de 5 anos de
idade, portadora da síndrome de Dravet, tem suas crises convulsivas
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 139
tratadas a partir do uso do óleo CBD. Sua história foi bastante divulga-
da pela imprensa dos EUA e teve repercussão na internet.
10 de dezembro de 2013
Alguém tem que ser o primeiro
O Uruguai tornou-se o primeiro país no mundo a regular legal-
mente o mercado de Cannabis, da semente à venda no varejo. Por isso,
foi imediatamente denunciado pelo International Narcotics Control Board
(INCB). O país pediu um debate aberto e honesto sobre a política de
controle de drogas internacional.
Além disso, nessa mesma época, no Brasil, foi realizadoo pri-
meiro Congresso Internacional de Drogas, Lei, Saúde e Sociedade.
O evento foi organizado por uma parceria entre a UnB, o Conselho
Federal de Psicologia, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre
Psicoativos, a Associação Brasileira de Estudos de Psicoativos, a Rede
Pense Livre e a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde.
O episódio reuniu diversos oradores vindos de países como Argenti-
na, Canadá, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Portugal e Uruguai.
O evento, reconhecido por ser o maior congresso sobre inovação de
política de drogas concretizado na América Latina, ocorreu no Museu
Nacional da República.
140 Lauro R. Pontes
1º de janeiro de 2014
Colorado implementa regulação da Cannabis
O Colorado torna-se o primeiro estado nos EUA a permitir as
vendas legais de Cannabis, bem como o uso e posse de até uma onça
(28 gramas) da planta a qualquer pessoa acima de 21 para qualquer
finalidade.
4 de novembro de 2014
Mais três estados nos EUA aprovaram a
regulamentação de Cannabis
No Alaska, Oregon e Washington DC, os eleitores aprovaram
medidas de legalização da Cannabis. 58% dos americanos diz que o uso
de maconha deve ser legal nos EUA. Quando o Instituto Gallup de
pesquisas abordou pela primeira vez a questão, em 1969, 12% dos
norte-americanos pensavam uso da maconha deveria ser legal.
31 de março de 2015
Jamaica descriminaliza Cannabis
A Lei de Drogas Perigosas ficou no passado. A posse de até 2
onças (56 gramas) ou menos de maconha não é mais um delito pelo
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 141
A major Monika Herrmann, em Berlin, posta a petição do projeto piloto para regulamentação da Cannabis na
Alemanha, no dia 26 de junho de 2015, dia internacional de combate ao abuso de drogas. Esse pedido foi rejei-
tado pelo instituto de farmácia federal alemão.
26 de junho de 2015
Regularização de Cannabis na Europa?
Enquanto a reforma da política de Cannabis nos EUA está mu-
dando rápido, a Europa parece estar ficando para trás. Em países eu-
ropeus, os governos nacionais não parecem se mexer para a mudança
de cenário. No nível local, no entanto, o desconforto com o regime de
Cannabis atual dá origem a novas ideias. Em vários países da Europa,
as autoridades locais e regionais estão olhando para regularização, seja
devido à pressão advinda dos movimentos de base — em particular a
Cannabis Social Clubs (CSCs) — ou por conta do envolvimento de gru-
pos criminosos e da desordem pública.
142 Lauro R. Pontes
20 de outubro de 2015
Canadá no caminho para a regulamentação da Cannabis
Carregando uma tocha para a regulamentação da Cannabis,
o Partido Liberal do Canadá ganhou com maioria absoluta no par-
lamento do país. Ele provavelmente vai realizar uma promessa de
campanha de fazer do Canadá o próximo país a permitir a maconha
para uso recreativo. “Quando os canadenses podem esperar que você
legalize a Cannabis agora que você está eleito?”, um repórter pergun-
tou ao primeiro-ministro eleito Justin Trudeau. “Nós vamos começar
a fazer isso imediatamente”, disse ele. Uma forte maioria, de 68 por
cento no Canadá, concorda com o plano para regularizar a Cannabis,
e metade deles acha que os usuários devem ser capazes de plantar
suas próprias ervas em casa.
2016
O consumo de Cannabis hoje
A Cannabis é a substância ilícita mais consumida no mundo. De
acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas de 2015, em nível mun-
dial, 181,8 milhões de pessoas com idades entre 15 e 64 anos relataram
o uso da planta em 2013.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 143
Aspectos fisiológicos
A maconha pode ser cruzada botanicamente entre si, gerando
hibridizações com a intenção de desenvolver plantas com qualidades
específicas. A mais usada pelas crianças, a Harletsu, é uma espécie mis-
ta dos cruzamentos de duas outras espécies, produzindo uma com alto
nível de CBD. O site www.leafly.com possui um enorme banco de
dados desses híbridos. Ela é dioica, ou seja, possui versões macho e a
fêmea, botanicamente falando. O gênero Cannabis possui três subes-
pécies: sativa, indica e ruderalis. O princípio ativo dessa planta é lipos-
solúvel, ou seja, dilui e se vincula quimicamente a oleaginosos. Por
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 149
isso, seu chá, como o de outras plantas, quase não possui efeito, visto
que ela não é solúvel em água. O principal responsável pelos efeitos
da planta é o tetrahidrocanabinol, o famoso THC. Existe, também, o
Canabidiol ou CBD, que dentro das variações híbridas apresenta níveis
altos, e é o principal agente contra as crises epiléticas. Existem outros
componentes menos famosos que ainda precisam ser pesquisados mais
a fundo, como o THC-A (a forma nativa do THC, que só se transfor-
ma em THC quando recebe calor num processo chamado descarbo-
xilação), CBD-A, CBN, CBG, THC-V e outros. Infelizmente, e mais
uma vez, não posso me aprofundar no estudo de cada um deles, pois
isso daria material para outras teses e em outras áreas do conhecimen-
to. É importante, entretanto, ressaltar que estamos num momento de
mergulho em pesquisas, nas quais a maconha foi descriminalizada e os
resultados preliminares são altamente promissores sobre os efeitos na
saúde. Já se descobriu, por exemplo, que o THC-V é um elemento que
ajuda o metabolismo do açúcar, reduzindo o apetite, contrariando a
máxima do usuário que após o uso sente uma fome enorme, a chamada
“larica”. Híbridos estão sendo cruzados para se criar uma cepa rica em
THC-V e usar como remédio capaz de tratar diabetes e pacientes com
obesidade e problemas glandulares.
Em 1988, descobriu-se que possuímos receptores para o THC
em nosso corpo. Isso mesmo: somos preparados para receber maco-
nha. O que fez os cientistas analisarem e concluirem que se temos
receptores, então produzimos uma espécie de endocanabinóide. Em
1994, a Anandamida foi descoberta e, com ela, o mecanismo de ação
do princípio ativo da Cannabis no nosso corpo. A anandamida, palavra
que vem do sânscrito Ananda e que significa felicidade ou êxtase, é um
neurotransmissor autônomo presente no nosso cérebro, que funciona
agindo como analgésico e reequilibrador em momentos de estresse do
organismo. Ela atua em relação aos endocorticóides que produzimos
para suportar as situações de estresse. O THC presente na maconha
tem a estrutura química semelhante à Anandamida e encaixa perfei-
tamente no neuroreceptor, desencadeando a gama de efeitos psicoa-
tivos esperados que a planta fornece. Cabe aqui uma ressalva: toda a
150 Lauro R. Pontes
Aspectos legais
23
Advogado. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Prof. de Direito Civil e do Consu-
midor na Pós-Graduação da Escola Paulista da Magistratura, na Escola Superior da Advocacia e na
Escola Paulista de Direito. Professor e Coordenador da Pós-Graduação em Direito Civil, Negocial e
Imobiliário da Rede de Ensino LFG.
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 157
seus. Ele citou o exemplo da pena por homicídio, que visa preservar o
direito à vida, tornando crime tirar a vida de outra pessoa. Mencionou
ainda o crime de furto ou roubo, que visa proteger o direito ao patrimô-
nio e propriedade individual e privada. A lei antidrogas tem o mesmo
princípio, proteger a saúde. A subversão lógica está aí, visto que atem-
poralmente a maconha sempre foi uma planta medicinal. Proibir a ma-
conha por uma lei que visa proteger a saúde é negar o acesso ao remédio
a quem precisa. Logo, a luta e a defesa que se faz por meio do ativismo
é para se ter direito à saúde e à pesquisa, para se conseguir aprofundar
tecnicamente o conhecimento sobre a planta. O paradoxo é que essa luta
pela saúde esbarra na lei que defende a saúde.
O Brasil é um Estado democrático de direito. Isso significa que o
próprio Estado é submisso às leis que determina. Na monarquia, o rei
não se submete às leis que inventa. No Estado de direito a premissa é a
preservação da ordem jurídica e o controle do abuso de poder por partes
do Estado, nas figuras de seus representantes. Assim, o povo e o governo
são regidos pela mesma ordem jurídica, ou seja, a lei é para todos. As
exceções a essa regra teórica é a questão da vontade da maioria. Henry
Thoreau (1849), em seu famoso livro, “Desobediência civil”, fala sobre a
maioria se sobrepujar em relação à minoria. Para ele, o desejo da maioria
da sociedade não se justifica por ser mais certo, justo ou calmo para que
uma minoria legitime sua vontade. Ele diz que é por uma questão de
força física que a maioria se sobrepõe à minoria. É um enorme risco so-
cial que uma maioria oprima ou se manifeste escrevendo leis injustas que
desrespeitem interesses minoritários. Por essa razão, existe o direito de
desobedecer, que é quase um fundamento jurídico no Brasil. O direito de
discordar não consiste em baderna. Podemos usar como exemplo o direi-
to à greve de trabalhadores contra práticas injustas ou defasagem salarial.
Durante meu trajeto no campo, fiz cursos sobre o cultivo, histó-
ria e direito sobre a maconha. A seguir, uma adaptação textual da apre-
sentação do advogado Emilio Figueiredo sobre os aspectos jurídicos do
cultivo doméstico de Cannabis para fins terapêuticos.
A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 da ONU pre-
vê que “o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para
158 Lauro R. Pontes
seja refém de uma ação estatal de cuidado com a saúde que não é su-
ficiente para atender às suas necessidades. Cultivar em casa a Cannabis
medicinal é o novo paradigma da saúde pública no Brasil e no mundo.
Um caso emblemático é o da Justiça Federal do Pará, que rejeitou uma
denúncia de tráfico internacional de drogas por importação de semen-
tes em um caso de um marido que admitiu ter importado as sementes
para tratar o câncer da esposa. Na decisão, o magistrado reconhece “a
finalidade altruísta e humanitária que moveu o denunciado ao adquirir
as sementes no Reino Unido, qual seja, para o exclusivo fim medicinal,
em face à grave moléstia que foi sua esposa acometida”.
Devo, também, registrar aqui a decisão inédita e histórica que ocor-
reu no dia 17 de novembro de 2016. A 14ª Vara Federal do Rio de Janei-
ro concedeu um Habeas Corpus, um salvo-conduto, a Margarete Brito,
mãe de uma criança que tem convulsões provocadas por uma síndrome
genética que afeta seu desenvolvimento. O Documento a protege, assim
como seu marido, Marcos, de uma eventual ação policial contra a família.
A decisão foi realizada e já tramita o processo que pede autorização de
plantio da Cannabis de forma definitiva. Existe, portanto, desde o dia 17
de novembro de 2016, uma autorização legal para que a maconha seja
cultivada no país. Segue o texto da decisão que merece o destaque aqui.
“Trata-se de pedido de HABEAS CORPUS PREVENTIVO impetrado por
Vanildo José da Costa Júnior, em favor de Margarete Santos de Brito e Marcos
Lins Langenbach contra o Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro,
na pessoa do delegado Carlos Augusto Leba e/ou a Polícia Militar do Estado
do Rio de Janeiro, na pessoa do CMT Geral,Wolney Dias Ferreira. O presente
writ tem por finalidade evitar o irreparável prejuízo aos pacientes quanto ao
constrangimento ilegal e eventual ameaça sofrida por seu direito de cultivar o
vegetal Cannabis Sativa, para uso específico no tratamento de sua filha Sofia.
Para instrução do pedido, encontra-se acostado aos autos toda a documentação
referente ao processo que tramita na 14ªVara Federal do Rio de Janeiro, processo
n° 0085473-23.2016.4.02.5101, em que pleiteiam a permissão do plantio
de substância ilícita (fls. 57/75). À fl. 282, foram juntados laudos médicos
prescrevendo a mencionada planta no tratamento da menor, com comprovada
eficácia. A vasta prova acostada aos autos revela que a criança Sofia necessita do
Maconha terapêutica – controvérsias, versos e vivências 161
uso frequente da planta Cannabis Sativa para aliviar seu sofrimento e ajudar
na cura da doença que lhe é acometida. Em outros países, como nos Estados Uni-
dos, já adotaram o uso da maconha para combater determinadas doenças e dores.
Estudos recentes já revelaram que o uso planta com acompanhamento médico
apresenta propriedades medicinais que podem ajudar a combater doenças entre
as quais a da criança que se pretende proteger. Os pacientes ingressaram com
processo na 14ª Vara Federal objetivando a permissão do plantio da Cannabis
Sativa para fins medicinais. A presente medida se faz necessária para garantir a
qualidade de vida da criança conforme estudos e documentos juntados. O artigo
28 da Lei 11.343/2006 não autoriza a prisão em flagrante considerando que
o preceito secundário da norma não prevê penas privativas de liberdade. Entre-
tanto, o receio dos pacientes em eventual apreensão de quantidade expressiva e
possível capitulação em sede policial de delito mais gravoso autoriza a concessão
da presente medida. Desta forma, concedo o SALVO-CONDUTO em favor de
Margarete Santos de Brito e Marcos Lins Langenbach, a fim de que as auto-
ridades encarregadas, Polícia Civil e/ou Polícia Militar, sejam impedidas de
proceder a prisão em flagrante dos pacientes pela produção artesanal de Can-
nabis Sativa para fins medicinais, bem como fiquem impedidas de apreenderem
os vegetais mencionados até decisão definitiva que tramita no processo número
0085473-23.2016.4.02.5101 da 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Dê-se
ciência ao Ministério Público da presente decisão.”
Depois dessa decisão, que abre um precedente, até o fim da es-
crita desse livro, mais alguns salvo-condutos foram conseguidos. As
outras duas famílias que conseguiram esse direito residem uma no Rio
de Janeiro e outra em São Paulo. Entidades coletivas, como a ABRA-
Cannabis, A cultive! de São Paulo, e a ABRACE, da Paraíba, estavam
em vias de pedir o Habeas Corpus para fazer um cultivo coletivo, que
pode padronizar as plantas e, assim, permitir um controle mais ade-
quado da produção do remédio.
Encerro esse tópico sobre questões legais com algumas frases que
servem bem para exprimir o que se vive hoje sobre a legalidade:
“Acredito que um indivíduo que viola uma lei que a sua consciência
lhe diz que é injusta, [...] está na realidade a exprimir um grande respeito
pela Lei.” (Martin Luther King Jr)
162 Lauro R. Pontes