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CÍRCULO PSICANALÍTICO DE MINAS GERAIS

Se nos aproximamos tão perto da metapsicologia freudiana, é


porque podemos encontrar nela o rastro de uma elaboração
que reflete um pensamento ético.
(Lacan, 1959-69/1997, p. 51)

O estatuto da psicanálise é ético?


Cláudio T. T. Bernardes

Do ponto de vista do discurso lógico, o uso do conceito ética pode ocasionar


alguma inadequação quando proferido, dada a multiplicidade de sentidos e
fundamentações teóricas que esta palavra possui. No campo da psicanálise, Lacan
esclarece que este conceito não se refere à moralidade de nossas ações, mas a um
retorno ao norteamento de cada ação. Logo, afirma que se há uma ética da
psicanálise [...] é na medida em que, de alguma maneira, a análise fornece algo que
se coloca como medida de nossa ação (Lacan, 1959-69/1997, p. 364, grifo nosso).
O autor aponta assim, para o âmago do trabalho psicanalítico, pois o que a análise
nos fornece como medida de nossas ações não é outra coisa, que a instância do
inconsciente.

Diante disso, podemos nos perguntar em que medida a essência da prática


psicanalítica pode ser compreendida com uma ética. Afinal, qual a especificidade
deste conceito no âmbito da teoria proposta por Freud? Interessa-nos, pois,
compreender quais as implicações desta aproximação entre ética e o desvelamento do
inconsciente, e suas decorrências no trabalho psicanalítico. Para tanto, seguiremos os
passos de Lacan, retornando à metapsicologia freudiana, munidos do desejo de
apresentar alguns pontos que nos possibilitem entender a ética e sua convergência
com a cena inconsciente.

No lugar de uma ontologia, a alteridade.

A subjetividade na teoria psicanalítica não se encontra articulada pela noção de


centralidade do sujeito ou de sua consciência, o que seria trivial no âmbito da filosofia
ocidental. Para a psicanálise, a subjetividade passa pela noção de uma exterioridade
que é imemorial, anterior e atuante na constituição mesma do sujeito. Dito de outro
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modo, o advento do sujeito somente se dá pela inserção do falasser em um


ordenamento social que lhe antecede. Esta perspectiva aponta para algo que escapa
à primazia do sujeito da consciência e do idealismo em seus discursos e
representações. Do ponto de vista psicanalítico, não há sujeito sem a anterioridade de
uma alteridade radical, evocada na pluralidade do conceito outro, em detrimento de
uma pretensa centralidade do ego, de tal modo que Lacan afirma, no seminário 3, a
psicanálise definitivamente não é uma egologia (1955-55/1985, p. 276).

Com efeito, porquanto a reflexão filosófica se ocupa de maneira impar da tarefa


de compreender o sujeito, haveremos de considerar uma atenção a muitos “outros” no
pensamento psicanalítico: o outro da relação especular-imaginária; ou aquele outro
experimentado; o outro que fala de meu lugar, com um aparente outro em mim e que
se diferencia de um outro que é meu semelhante; o grande outro absoluto; ou ainda o
outro da linguagem... Vemos tais figuras intrincadas numa teoria sobre a constituição
da subjetividade de tal modo que, se por um lado, a psicanálise não se pretende como
uma filosofia, por outro lado, ela é comandada por uma visada que é historicamente
definida pela elaboração da noção de sujeito. E ela coloca esta noção de uma maneira
totalmente nova, como afirma Lacan no contexto do seminário 11 (1964/1985, p. 78).

Neste sentido, somos convocados a pensar a experiência humana fora dos


limites da ontologia – e de seu discurso totalizante sobre o ser - para nos abrir a um
extimus operante, presentificado no inconsciente. Com efeito, do ponto de vista
psicanalítico, as relações entre o indivíduo e a alteridade (seja ela o meio, o outro, ou
um objeto) se dão na perspectiva de uma determinação inconsciente. Lacan explicita
esta relação ao demonstrar que o inconsciente freudiano é, ele próprio, uma outra
cena, um lugar terceiro cujo estatuto não é ôntico, e sim ético (cf. p. 40). Resta-nos,
contudo, a questão que procuraremos esclarecer, a saber, qual a abrangência desta
afirmação e como haveremos de compreendê-la?

A ética e o estatuto do inconsciente

Ainda no âmbito do seminário 11, Lacan justifica seus esforços para uma
atualização do conceito de inconsciente, tendo em vista o panorama de uma viragem
linguística no cenário do pensamento contemporâneo, no qual o autor se situa. Para
Lacan, a linguística enquanto ciência em formação distinta de qualquer outra
psicossociologia, é o que garante acesso e objetivação à noção de inconsciente (p.
26).
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Esta demanda se deve, por um lado, pelo fato de que se o inconsciente não se
configura dentro dos limites da ontologia, é preciso encontrar alguma forma de tornar o
conceito palatável à compreensão. Por outro lado, seria uma traição buscar uma
totalidade de sentido para aquilo que é da ordem do indizível, de uma não-tradução.
Nesta perspectiva, Lacan nos recorda que o próprio Freud esbarra em uma dificuldade
ao tratar do inacessível da cena inconsciente, quando em A interpretação dos sonhos,
designou de umbigo do sonho, o ponto em que ele mergulha naquilo que
desconhecemos (Freud, 1900/2006, p. 557).

Em seguida, partindo por uma perspectiva de causa e efeito, Lacan demonstra


que os efeitos advindos do inconsciente não logram causa concreta, senão por meio
de uma hiância. Esclarece, porém, que não se trata de tomar o inconsciente como
uma negação (como um não conceito), mas como o próprio in-conceitual. Deste modo,
afirma que ontologicamente, então, o inconsciente é o evasivo (Lacan, 1964/1985, p.
39). Em vista de tal perspectiva, Lacan procura salvaguardar a originalidade do
conceito de inconsciente, esclarecendo que este não é de modo algum o inconsciente
romântico, da criação imaginante, nem é o lugar das divindades da noite (p. 29).

Estamos diante de uma tarefa difícil, que deve garantir uma abordagem que se
sustente enquanto discurso formal, em um contexto no qual somente o que a razão
explicita é que serve de guisa para uma reflexão não ficcional. Todavia, Lacan nutre
essa perspectiva de que o campo do inconsciente é pré-ontológico, uma vez que ele
não é ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado (p. 37). Frente, pois, ao indizível
da cena inconsciente, do qual nada conhecemos senão lampejos, sintomas e efeitos,
a solução lacaniana - apontar para a ética como estatuto do inconsciente - não é de
algum modo, algo trivial. Para compreendê-la, resta-nos desvendar o que Lacan
entende por ética.

A Ética em Lacan

Vamos, pois, recorrer ao seminário 7, A ética da Psicanálise, onde Lacan


observa que em qualquer tempo, e sobre a égide de qualquer discurso filosófico ou
religioso, os indivíduos enquanto seres de desejo, estão sujeitos a noções morais que
engendram e desencadeiam sentimentos de ambivalência e de oposição. Não se trata,
contudo, do peso das leis exteriores, mas de um conflito que parte do inconsciente.
Para Lacan, a instância moral é aquilo que dá para a atividade estruturada no
simbólico, o peso do real (p.30). O autor aponta que, de acordo com a perspectiva
freudiana, o cerne de tal instância está na dualidade entre o princípio do prazer e o
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princípio da realidade. Interessa-nos explicitar, portanto, que ao designar uma


instância moral, Lacan não se refere a este ou aquele código de conduta, mas aos
primeiros indícios de um dualismo moral na constituição do sujeito psíquico.
Trata-se, noutros termos, de um discurso sobre as origens do ordenamento ético na
constituição do sujeito, e aqui os conceitos de ética e moral se coincidem.

Para elaborar sua argumentação, Lacan recorre a um conjunto de textos


freudianos, nomeadamente ao Projeto para uma Psicologia Científica
(1950[1895]/1990), ao capítulo VII de A interpretação dos Sonhos (1900/2006) e ao O
Mal-estar na Civilização (1930[1929]/1996). Vale destacar que, para o autor, a
abordagem freudiana nestes escritos nos permite ir mais longe do que nunca se foi
naquilo que é o essencial da questão ética, do verdadeiro sentido dessa palavra,
empregada por nós sempre de uma maneira tão inconsiderada (Lacan, 1965/11985,
p.50).

Assim em sua releitura da metapsicologia freudiana, Lacan frisa que princípio


do prazer é, via de regra, um princípio de inércia, que visa garantir o equilíbrio daquele
funcionamento primitivo do organismo. Em seguida, faz a seguinte distinção: ao início,
enquanto o princípio de prazer aponta para o que ocorre ao interno do organismo, o
princípio de realidade aponta para a exterioridade, para o mundo que nutre o
organismo com as chaves de sua sobrevivência (p. 62).

No entanto, as percepções deste mundo exterior somente produzem algum


efeito estruturante no organismo à medida em que os mecanismos internos – dentre
os quais, o princípio de inércia – intervém, resultando nos primeiros trilhamentos
(Banhugens) que marcam o aparelho psíquico (cf. p. 66). A partir deste instante, o que
está em jogo não é apenas o processo de homeostase interna do organismo, mas
uma estruturação do psiquismo, tendo de um lado a força constante das pulsões, e de
outro, as marcadas trazidas pelas apreensões da realidade. Neste cenário, Lacan
recorda a relação íntima de satisfação e plenitude que o falasser estabelece com o
Nebemensh, uma experiência que culmina por imputar ao psiquismo em construção,
algo que permanece coeso como coisa – das Ding (p. 67).

Por conseguinte, de um ponto de vista lógico acerca da constituição do sujeito,


das Ding é aquilo que se apresenta não apenas como falta, mas como evidência do
contato com uma alteridade – o Nebemensh. Objeto nunca perdido, mas que demanda
seu reencontro, de acordo com Lacan das Ding é uma realidade que comanda, e que
ordena (p. 70) sem, contudo, regular uma trajetória específica para que sua lei invisível
– e não simbolizada - seja cumprida. O imperativo que das Ding estabelece se
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apresenta ao nível da experiência inconsciente como aquilo que desde logo constitui a
lei (p. 70). Com efeito, para o autor, o que encontraremos em qualquer princípio moral
mais elementar, a exemplo da proibição do incesto, se situaria também aí, no nível da
relação pré-discursiva entre o sujeito e das Ding. Assim como no proibitivo do incesto,
em se tratando de Ding o desejo é algo que não poderá ser satisfeito, neste último
caso, sob pena de que se finde aquilo que impulsiona o sujeito desejante.

Em tal perspectiva, a estruturação ética do inconsciente nos coloca em uma


ótica da não totalidade. Ser sujeito é sujeitar-se de algum modo ao que é da ordem do
indizível, de uma cena outra, na qual a extimidade opera. Na medida em que o sujeito
se compreende assim, a ética que lhe cabe não é a de um ideal, mas uma própria
responsabilidade sobre seu desejo, tendo em vista como este o afeta.

Conclusões

O conceito inconsciente na psicanálise é estruturalmente ético na medida em


que na experiência subjetiva, há sempre algo a mais do que possa ser racionalmente
representado, mas que deve não pode ser desconsiderado. Com efeito, esta
experiência não se encerra nos domínios da ontologia, pois há sempre algo que não é
abarcado pela linguagem, que lhe escapa ou que permanece como vazio, como falta.
Neste contexto, admite-se que psicanálise se configura como uma ética da não
totalidade. Afinal, não seria essa uma mensagem possível que a ideia de castração
nos apresenta, a de que o sujeito não pode ser todo, e que sua realidade é de
incompletude?

Do ponto de vista lógico formal, convém à Lacan afirmar o estatuto ético do


inconsciente, afim de garantir-lhe essa não representatividade, seu caráter de não-
realizado. Por conseguinte, o próprio estatuto da psicanálise seria de fato ético, já que
nenhuma análise prescinde da ideia de inconsciente. Assim, o lugar do analista não é
o do saber da ontologia, mas o de uma ética do respeito à alteridade, o que dá
passagem ao ato analítico. Neste contexto, as certezas caem por terra, abre-se
espaço para a singularidade do desejo, que em si não é nem bom, nem mal, mas que
convoca o sujeito desejante à responsabilidade.

Por fim, nos importa salientar que a maneira como Lacan, partindo da
metapsicologia freudiana, compreende a ética está em consonância com uma questão
emblemática para a filosofia atual. Pois, de fato, uma certa filosofia hodierna busca
uma saída do pensamento da totalidade, para pensar a relação entre sujeito e o
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indizível da alteridade. Por conseguinte, a psicanalise nos propõe consideramos a


relação com o outro, não apenas no sentido de uma apreensão alienante, mas salienta
a necessidade da separação eu-outro, para que o sujeito possa advir. Trata-se, de um
posicionamento ético que se comporta como uma ótica, um novo modo de enxergar a
experiência humana. Por meio dela, não é preciso pensar o homem em função do ser
ou não ser, mas sim em sua significância de signo, na anterioridade de sua essência.

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1990). Projeto para uma psicologia científica. In: FREUD, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1950[1895])
____. (1996). O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930 [1929])
____. (2006). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)
Lacan, J. (1985). O Seminário. Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho
original publicado em 1955-1956)
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Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)
____. (1997). O Seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Trabalho original publicado em 1959-1960)

Artigos
VORSATZ, Ingrid. O estatuto ético do inconsciente e a presença do analista. Cad.
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CAMPOS, Sônia Cury da Silva. A imagem corporal e a constituição do eu. Reverso, Belo
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NAVES, José Otávio de Vasconcellos; FERES-CARNEIRO, Terezinha. O eu na obra de Freud
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