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Água Parada
Wastwater

de Simon Stephens

tradução Alexandre Tenório


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Personagens

Harry
Frieda

Lisa
Mark

Sian
Jonathan
Alain
Dalisay
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UM

25 de junho, 21h.

Uma estufa numa área adjacente a um grande jardim de uma casa de fazenda reformada na
periferia de Sipson, Middlesex. Noite.

HARRY tem vinte e dois anos

Ele fica um tempo olhando em volta. Está chovendo pesado. Ele observa.

A chuva para. Ele cantarola para si mesmo a abertura da ‘Habanera’ da


‘Carmem’, de Bizet.

FRIEDA entra. Ele tem sessenta e tantos anos.

FRIEDA Harry? Harry, meu amor?

HARRY Oi.

FRIEDA O que você ta fazendo aqui fora, meu amor?

HARRY Desculpe. Eu tava dando uma olhada na vista.

FRIEDA To há um tempão procurando você. Você ta aqui fora esse tempo todo?

HARRY To. Desculpe. Eu não sabia que você tava me procurando.

FRIEDA Tudo bem. Eu te chamei.

HARRY Eu não ouvi. Você devia ta a quilômetros de distância.

FRIEDA Isso não seria nada estranho, meu amor.

HARRY sorri para ela.

FRIEDA São nove horas.

HARRY É.
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FRIEDA Se o seu avião sai meia noite e vinte, você tem que chegar no aeroporto às dez e
meia.

HARRY Eu sei.

FRIEDA Que horas é o ônibus?

HARRY Tem um antes das dez. Ainda tenho muito tempo.

FRIEDA Se você quisesse eu podia levar você. Não quero que você se atrase.

HARRY Eu não vou me atrasar.

FRIEDA Você sabe como eles são.

HARRY Vai dar certo. Para de se preocupar.

FRIEDA Eu sei. Desculpe.


A chuva parou.

HARRY É.

FRIEDA Ta tudo molhado.


Ainda ta claro, pela hora que já é.
Você não se molhou?

HARRY Não, eu fiquei embaixo dos galhos. Incrível como os galhos seguram a chuva.
Fiquei olhando como se eu tivesse assistindo uma coisa na televisão. Eu pulei a
cerca e entrei aqui quando apertou.

FRIEDA Você não ta com frio?

HARRY Não.

FRIEDA Quer que eu pegue um casaco pra você?

HARRY Não, obrigado. Eu to legal. Só queria que você parasse de se preocupar comigo.
Você conseguiu dormir?

FRIEDA Um pouco.
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HARRY Mesmo?

FRIEDA Não.

HARRY Você comeu sua janta? Deixei um pouco de carne pra você.

FRIEDA Eu vi, obrigada. Eu vou comer depois que você for embora.

HARRY Vai nada. Você tem que comer alguma coisa, Frieda. Isso é uma besteira. Você ta
se acabando.

Ela olha para ele.

FRIEDA Aí vem um.

Um avião passa. O barulho é tremendo. Não combina com a beleza do jardim.


Eles esperam o avião passar.

HARRY O céu ta completamente limpo agora.

FRIEDA É, está sim.

HARRY Nenhuma turbulência.

FRIEDA Meio chato assim.

HARRY Você devia ter visto eles antes.

FRIEDA Eu vi alguns da janela da cozinha.

HARRY Um deles deve ter caído quase uns cinquenta metros.

FRIEDA Eu adoro quando isso acontece.


O quê? Por que você ta rindo?

HARRY To pensando na Sheila. Ela ficou muito aliviada com o cancelamento da pista.

FRIEDA Ela está nas nuvens.


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HARRY Aposto como você também ficou decepcionada. Aposto como você tava querendo
se mudar, não tava?

FRIEDA Não. Um pouco, eu fiquei.

HARRY Eu tinha gostado. A ideia de arrasar o bairro inteiro.

FRIEDA É. Eu também tinha meio que gostado.

HARRY É só uma questão de dinheiro, não de ideologia, você sabe.

FRIEDA Eu disse isso pra Sheila.

HARRY Assim que eles conseguirem o dinheiro vão começar logo a planejar de novo. Daí
você vai poder se mudar.

Ela sorri para ele.

FRIEDA Você já ta com tudo arrumado?

HARRY Claro que to.

FRIEDA Eu tenho o seu endereço. Quando eu achar tudo que você esqueceu de levar, eu
mando pra você.

HARRY Obrigado.

FRIEDA Pegou seu passaporte?

HARRY Ta na minha bolsa.

FRIEDA E seu telefone?

Ele se vira para olhar para ela. Um pouco irritado.

Seu cartão?

Ele ri um pouco.

Não ria.
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Ele recebe uma mensagem no seu celular. Ele o pega. Olha para ele. Digita
alguma coisa rapidamente. Guarda.

HARRY Você ta sendo chata.

FRIEDA Não to não. To sendo mãe.

HARRY É.

FRIEDA É um hábito que eu aprendi a exercitar.

Ele olha para ela. Sorri.

HARRY A lua apareceu.

Ela toca a parte de trás de seu tornozelo.

FRIEDA Olha só.

HARRY O quê?

FRIEDA To sangrando um pouco.

HARRY Ta?

FRIEDA Cortei minha perna.

HARRY Como você fez isso?

FRIEDA Pulando a cerca pra chegar aqui.

HARRY Venha aqui.

Ele se curva. Toca a ferida dela. Ele tem um pacote de lenços absorventes no
bolso. Pega um, passa sobre o ferimento. Ela geme.

FRIEDA O que você ta fazendo?

HARRY Ta doendo?
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FRIEDA Claro que não ta doendo. Foi só um arranhão.

HARRY Não acredito que você não tenha visto. Como pode?

FRIEDA Eu sei. Desculpe.

HARRY Limpe isso direito depois que eu for embora. Ponha um curativo. Pode
infeccionar.

FRIEDA Não seja histérico. Francamente. Depois eu é que sou a chata.


Uma coisa que você não sabe, Harry é que eu tenho sangue selvagem.

HARRY Isso não é verdade.

FRIEDA É sim, e você sabe.

HARRY Que nada, você é mais mole que geleia.

FRIEDA A gente tem que ser meio selvagem pra sobreviver a vocês.

Ele olha para ela. E deixa de olhá-la.

HARRY Talvez eu mude de nome quando chegar lá.

FRIEDA Não seja estúpido. Harry é um nome lindo.

HARRY É, mas eu acho que posso escolher um melhor. Horácio. Bartolomeu. Isnar. Então.
Isnar é um nome incrível.

FRIEDA Norman.

HARRY Norman?

FRIEDA Era o nome do meu pai.

HARRY Não. Eu acho que não vou escolher Norman, não, Frieda. Seria ridículo.

FRIEDA É.
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Um tempo.

HARRY Como é que ele era? Seu pai?

FRIEDA Como ele era?

HARRY Você se parecia mais com ele ou com sua mãe?

FRIEDA Não faço a menor ideia. Acho que as outras pessoas é que devem saber isso.

HARRY Eu queria ter conhecido, sua mãe.

FRIEDA Ela era uma mulher muito estranha.

HARRY Que nem você, então.

FRIEDA E a gente nunca via ele. Ele trabalhava no estrangeiro, a maior parte do tempo
naquela época. Eu me lembro bem do cabelo dele. Era todo cheio de pontas. De
um tom de castanho horrível. Ele tinha uns olhos duros como pedra. Depois que
ele morreu minha mãe confessou que ela gostava muito mais dele do que da
gente.

Ele olha para ela. Recebe uma mensagem em seu celular. Pega o aparelho. Olha
para ele. Digita qualquer coisa rapidamente. Guarda o telefone.

HARRY Posso te perguntar uma coisa?

FRIEDA O quê?

HARRY Você sabe alguma coisa da Sian?

FRIEDA Não.

HARRY Não tem tido contato com ela?

FRIEDA Não, meu amor, não tenho.

HARRY É melhor mesmo não ter, Frieda.

FRIEDA Eu não tenho, meu amor.


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HARRY É bom você não estar mentindo. Eu sempre saco quando alguém ta mentindo pra
mim.

FRIEDA Por favor, não.

HARRY Do jeito que ela tratou você. As coisas que ela fez com você.

FRIEDA Ela só estava com medo.

HARRY E é isso que uma pessoa faz quando está com medo? É esse tipo de atitude que se
deve ter?

FRIEDA Às vezes sim, meu amor.


Ela odiava isso aqui. Odiava a escuridão. E o silêncio. E de tanto verde. Acho que
ela foi muito infeliz enquanto esteve aqui, é uma pena. Mas de todos vocês, ela foi
a única. Você não, não é, Harry?

HARRY Nem vou responder.

Mais um avião sobrevoa. Mais uma vez eles ficam olhando.

FRIEDA Cadê suas meias, Harry?

HARRY Eu esqueci de calçar.

FRIEDA Como assim? Como é que você pode esquecer de calçar as meias? Eu disse pra
você. Deixei um par do lado de fora. Eu lavei elas pra você.

HARRY Eu coloquei todas dentro da mala. Desculpe.

FRIEDA Não precisa pedir desculpas, só quero é você pare de fazer isso.

Ele recebe uma mensagem em seu celular. Pega o aparelho. Olha para ele.
Digita qualquer coisa rapidamente. Guarda o telefone.

HARRY Bom, isso é uma coisa com que você não vai ter mais que se preocupar daqui pra
frente, né?

FRIEDA Você falou com a Laura?


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HARRY Hoje de manhã.

FRIEDA Como ela está?

HARRY Ta meio triste. Ficou chorando. Foi meio um saco.

FRIEDA Ela vai lá ver você?

HARRY Não. Eu disse pra ela não ir. Eu nem gosto tanto dela assim.

FRIEDA Harry.

Ele recebe uma mensagem em seu celular. Pega o aparelho. Olha para ele.
Digita qualquer coisa rapidamente.

Guarda isso.

HARRY Desculpe.

Ele guarda o telefone.

FRIEDA Pelo amor de Deus, isso parece um vício.

HARRY É.

FRIEDA Eu queria saber que tanto você escreve nessa coisa aí.

HARRY Você nunca vai saber. Xereta.

FRIEDA Uma hora que você não estiver olhando eu posso pegar ele. Quando você estiver
distraído pegando as últimas coisas, eu roubo seu telefone e depois que você tiver
ido embora, vasculho suas mensagens enviadas.

HARRY Bem que você podia fazer isso.

FRIEDA Eu sei. Depois eu vou investigar seu histórico na internet.

HARRY Eu sempre apago.


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FRIEDA Você realmente acredita que isso poderia me impedir? Você não entende nada de
computador.
Será que vai ter um computador lá no instituto?

HARRY Acho que sim, Frieda.

FRIEDA Você vai ter acesso a ele?


Vou te mandar um e-mail.

HARRY É bom mesmo.

FRIEDA Eu tava olhando no mapa. Do outro lado da margem do rio, no sul da cidade
Vancouver, tem um lugar chamado Surrey. Eu ri tanto. Você vai viajar milhares
que quilômetros pra acabar num lugar do lado de Surrey. Bastava você pegar a
estrada aqui.
Eu acho que vou me embora, sabia?

HARRY Pra onde?

FRIEDA Pra algum lugar que tenha montanhas. Montanhas de verdade, não só morrinhos.
Montanhas com neve.

HARRY Deixa de ser ridícula. Você nunca faria isso.

FRIEDA Ou eu posso ir com você.

HARRY Você iria?

FRIEDA Eu poderia me especializar em orcas. Poderia fazer um registro de observação de


orcas. Seria uma coisa fácil pra eu fazer.
Não vá.
Não acredito que eu tenha dito isso em voz alta. Me ignore. Eu to sendo uma
boba. Eu não queria dizer isso. De verdade. Com vocês, normalmente eu fico feliz
quando vocês vão embora. Com você é completamente diferente.

HARRY Posso te confessar uma coisa, Frieda?


Eu me sinto culpado pelo Gavin.

FRIEDA É mesmo?
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HARRY O tempo todo. Especialmente esse ano que passou.

FRIEDA Isso não é necessariamente uma coisa ruim, meu amor.

HARRY Me faz mal. Eu me sinto horrível pra dizer a verdade.

FRIEDA Foi um acidente.

HARRY É. Não foi bem assim.

FRIEDA Vocês sofreram um acidente.

HARRY Eu devia ter impedido ele de pegar o carro, Frieda.

FRIEDA É, você devia ter feito isso, mas não fez.

HARRY Tudo por aqui me faz sentir tanta vergonha.


Ontem de noite eu escrevi uma carta enorme pra mãe dele. Demorei horas. Eu
disse assim, “Querida e imbecil mãe do Gavin. Você é uma vaca gorda e
ignorante e eu odeio você, e se o Gavin estivesse vivo, ele diria exatamente o
mesmo, sua piranha escrota. Mas ele não está.” E continua assim nesse mesmo
estilo, por páginas e mais páginas.

FRIEDA O que você fez com ela?

HARRY Eu botei no correio. Ninguém mais escreve carta. Eu não podia mais ficar aqui. Ia
acabar doente.

FRIEDA Não ia não.

HARRY Ia acabar maluco.

FRIEDA Não seja bobo.


Você podia ir no ano que vem. O instituto não vai se acabar. Eles podem manter o
emprego pra você. Você podia escrever pra eles. Peça pra eles.

Ele olha para ela.

Um tempo.
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HARRY Eu gosto dos olmos.

FRIEDA Agora eles são raros por aqui.

HARRY Há cem anos existiam vinte milhões de olmos na Inglaterra. Agora, só umas
poucas centenas.

FRIEDA Antigamente, nos fundos da fazenda tinha uma avenida ladeada de olmos.

HARRY A gente ta vivendo no meio de uma idade do gelo, você sabia disso?

FRIEDA Confesso que não, Harry.

HARRY Durante a maior parte da história, o nosso planeta tem sido insuportavelmente
quente.

FRIEDA Sei.

HARRY Há momentos curtos que duram cerca de dez ou vinte milhões de anos que ele se
torna insuportavelmente frio. Isso aconteceu há mais ou menos meio milhão de
anos. Foi aí que começou o período Pleistoceno.

FRIEDA Período Plastocênino?

HARRY Cale a boca, Frieda, isso é uma coisa importante. Há doze mil anos atrás o gelo
começou a derreter. Isso foi o início de uma era interglacial. Quando o gelo
derreteu, a vida despertou. Esses períodos quentes acontecem uma vez ou outra. O
gelo derrete, mas não completamente. Ainda hoje em dia tem gelo, não tem? Tem
centenas de geleiras no mundo. Na Nova Zelândia. Na Ásia. Na América do Sul.
Esses períodos quentes duram entre dez e quinze mil anos. A gente só tem um ou
dois mil anos de degelo pela frente. Talvez bem menos. O congelamento começa
de uma hora pra outra. A gente ta vivendo num momento ínfimo da história do
planeta. E que vai acabar. Eu gosto de pensar nisso.
Tudo por culpa do Charlie Cooper.

FRIEDA Verdade?

HARRY A culpa não é só dele. Dos fazendeiros, em geral. Todos.

FRIEDA Sei. Não só dos criadores de ovelhas orgânicas.


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HARRY A gente não devia ter virado fazendeiro.

FRIEDA Não.

HARRY O homo sapiens é um caçador-coletor. Foi pra isso que eles foram
anatomicamente construídos. Quando você começa a plantar, você começa a
produzir mais comida pra mais gente. Então, ao invés de se reproduzir de acordo
com a sua fonte de comida, você começa a produzir comida pra alimentar uma
população inteira. Isso muda tudo prá pior. Você começa a esgotar os recursos
naturais. Você desvia o suprimento de água. Polui a atmosfera. Cria hierarquias
sociais que nunca existiram antes. Você começa a alimentar a população que tem
mais força física e econômica até o ponto que essas pessoas ficam supernutridas e
obesas. E deixa o resto do povo morrendo à míngua. Isso não acontece quando
você caça bisão e colhe amoras. Nenhuma das grandes catástrofes humanas teria
acontecido se a gente não tivesse começado a plantar.

FRIEDA Nem as coisas boas, tampouco, Harry.

HARRY Eu espero que eles construam a porra da pista. A gente precisa de uma pista. A
gente precisa se mover.

FRIEDA Você precisa.

HARRY Todo mundo precisa.

FRIEDA É, mas você especialmente.

HARRY É como se a gente tivesse voltado a ser nômade.

FRIEDA É como se você tivesse.

HARRY Oh, todo mundo fica puto com isso ou fica incomodado e começa a ligar pras
rádios, ou a postar protestos na internet. Mas se você diz pra alguém que ele vai
passar o resto da vida no mesmo lugar, sem direito a viagem de férias ou nada do
tipo, você vai ver o horror em seus olhos. Essa é própria noção do inferno. Há
milhares de anos atrás a gente fez um erro terrível. E a gente tem vivido apoiado
nesse erro. E vai ser assim pra sempre. A gente nunca vai conseguir mudar.

FRIEDA Eu adoro isso.


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HARRY O quê?

FRIEDA Ficar sentada aqui vendo você falar.

HARRY Frieda, você por acaso ta ouvindo o que eu to dizendo?

FRIEDA Claro que estou.

HARRY Ta nada.

FRIEDA Estou sim. Você sabe.

HARRY Eu não posso ficar aqui – você sabe disso, não sabe?

FRIEDA É. Não. Eu não tenho ideia.

HARRY Não tem nada a ver com você, então não começa a sentir auto piedade por minha
causa.

FRIEDA Não to sentindo nenhuma autopiedade. Nunca senti. Eu sou a pessoa com menos
autopiedade do mundo.

HARRY Você gosta daquele celeiro?

FRIEDA Se eu gosto do quê?

HARRY Daquele celeiro, você gosta dele?

FRIEDA É um celeiro, Harry.

HARRY Uma vez eu pus fogo nele. Eu atravessei o campo e pus fogo naquele celeiro. Não
se preocupe. Isso foi antes de eu vir pra sua casa. Anos antes. Você deve ter
ouvido falar, não ouviu? Eles devem ter colocado na minha ficha.

FRIEDA Eu não me lembro.

HARRY Aposto que sim, e você ta mentindo pra ser legal. Eu não acredito que tenham
deixado eu ir prum lugar tão perto. Às vezes eu acho que eles fizeram de
propósito.
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Teve uma época quando eu tinha uns doze anos, que eu achava que os jornais
estavam sempre adiantados. Era como se as notícias que eu lia eram de coisas que
iam acontecer no dia seguinte. Daí inventei que eu tinha lido uma manchete
dizendo que eu tinha morrido queimado num incêndio, então eu achei que eu
devia ser honesto com a notícia, porque eu não achava certo mentir pras notícias,
e que o que eu tinha que fazer é por fogo em alguma coisa. Ficar olhando o fogo
um tempo. Depois queimar lá dentro. A polícia chegou. Bombeiros vieram apagar
o incêndio. Foi um puta problema em que eu me meti.
Fico imaginando o que eu faço se isso começar a acontecer quando eu chegar no
Canadá. Cheguei à conclusão que o melhor é não acreditar em tudo que eu leio no
jornal.
Ta ficando tarde. Melhor eu ir.

FRIEDA Você me faria um favor?

HARRY Diga.

FRIEDA É uma coisa meio boba. Dá pra você ir lá na casa, desligar as luzes da sala, voltar
pra cá e ficar comigo um pouco, antes de você ir embora. Só um pouco.

HARRY São nove e vinte. O ônibus sai daqui a meia hora.

Ele sai.

Ela fica esperando sozinha.

As luzes da casa se apagam. O palco escurece.

HARRY volta.

Um tempo.

HARRY Que bonito.

Ele fica um tempo contando estrelas.

Tomara que a Sian não apareça mais.

FRIEDA Ela não vai.


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Posso te dizer uma coisa, Harry?

HARRY Claro que pode.

FRIEDA Você ta com um cheiro estranho.

HARRY Eu sei. É horrível, né? Tem quatro calças minhas que tão fedendo assim. É que eu
tenho tomado muito café. Minha bexiga ta sempre cheia e às vezes acaba vazando
um pouco.

FRIEDA Oh, pelo amor de Deus, você deve ir ao médico.

HARRY Eu sei.

FRIEDA Não acredito que não mandei você ao médico. Por que você não foi a um médico?

HARRY Eu tenho pavor de médicos.

FRIEDA Que besteira. Você ta chorando?

Ele não tem nenhum vestígio de choro.

HARRY Um pouco, sim.


Vou sair daqui a dez minutos.

FRIEDA Quando vocês vão embora sempre dizem que vão voltar pra me visitar e nenhum
de vocês nunca veio, a não ser a Sian.
Não me diga que você vai vir, porque não vai.
Você tem que ficar sabendo que eu não tenho raiva disso, então nem pense nisso.
É uma coisa que acontece quando você cria.
Eu nunca sinto raiva de nenhum de vocês.

HARRY Você sente sim, porra.

FRIEDA Na verdade, eu não sinto não. Eu me irrito. Mas não tenho raiva. Eu nunca sinto
raiva porque não me reconheço em nenhum de vocês. É por isso que os pais
sentem raiva. Das coisas que eles reconhecem deles em seus filhos. Eles adoram
as características que seus filhos compartilham com seus cônjuges.

HARRY Nem todos.


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FRIEDA Sim. E eles odeiam as características que eles herdaram de si mesmos. Eu nunca
senti isso.

HARRY Você ficou irritada comigo um montão de vezes.


Você lembra o que te deixava mais irritada?

FRIEDA Suas pirraças. Você era terrível quando fazia pirraça.

HARRY Eu ainda sou.

FRIEDA E logo quando você veio morar comigo, eu fui levar você à escola e você não
queria se largar de mim, você se agarrou na porta do carro e não queria soltar de
jeito nenhum.
Eu achava que eu tava fazendo a coisa certa. Eu odiei aquilo. Só queria que você
se soltasse.
Eu não vou pedir a você pra mudar de ideia mais uma vez, mas não ache que não
é porque eu não queira, porque é isso que cada mínima parte do meu corpo ta
querendo.
Comprei isso pra você.

Ela pega um envelope de dentro do seu casaco e dá a ele.

São mil libras em dólares canadenses. Me faça o favor de abrir uma conta assim
que você chegar lá. Posso confiar?

HARRY Pode.

FRIEDA Eu espero.

HARRY Obrigado.

FRIEDA É só o que eu tenho, Harry. Não é um poço sem fundo, meu amor.

HARRY Eu sei.

FRIEDA É tudo que eu tenho.


Não morra. Promete?

HARRY Não.
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FRIEDA Eu digo nunca. Nunca morra.

HARRY Ta bem.

FRIEDA Não cometa nenhum crime. Não tome muita droga nem encha muito a cara, nem
nada do tipo. Você tem potencial pra conseguir o que você quiser. Não desperdice
isso. Vai ter épocas que você vai se lembrar de mim e você vai pensar, que puta
velha. Todo mundo sempre acaba pensando isso dos pais. Normalmente quando
se chega aos vinte e oito anos. Mas tente se lembrar também que eu te amo, que
eu te amei e que vou continuar te amando. E eu espero que um dia você me
perdoe por tudo que eu fiz de errado, eu sei que foi muita coisa, mas tentei fazer o
melhor. De verdade.

HARRY Cale a boca.

FRIEDA É.

HARRY Você ta ficando estranha.

FRIEDA Eu sei.

HARRY To meio chocado, tenho que admitir. Eu nunca usei a palavra ‘puta’ na sua frente.

Mais um avião passa. Eles olham.

FRIEDA E nunca tenha ódio de si mesmo.

HARRY O quê?

FRIEDA Tem coisas que você vai ter feito, ou que você vai fazer, que vão viver com você
pra sempre. E você não vai poder mudar. Você vai querer poder. Vai tentar. Mas
não vai conseguir.

HARRY Eu vou agora.

FRIEDA Ta.
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HARRY Não quero me atrasar. Me faz um favor e fica aqui fora. Não vem pra dentro da
casa comigo. A gente diz adeus aqui e eu saio e fecho a porta. Vou ficar com
minhas chaves porque eu sei que isso vai fazer você se sentir melhor.

FRIEDA Olha, tem certeza que não quer uma carona?


Tudo bem. Não vou insistir.

HARRY Vou ligar pra você depois que eu tiver feito o check-in.

FRIEDA Ta.

HARRY E vou ligar pra você amanhã também. Vou achar uma hora legal por causa do
fuso horário.

FRIEDA Não se preocupe com isso. Me ligue assim que você chegar lá.

HARRY Posso te dar um abraço?

FRIEDA Claro que pode. Você é tão bobo. Venha aqui.

Ele dá um passo em direção a ela. Ela abre os braços. De repente um blecaute.


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DOIS

23 de junho, 21h.

Um quarto no Hotel Crowne Plaza, aeroporto de Heathrow

Um quarto bonito e moderno.

Com uma cama grande.

Há uma grande tela de TV de plasma. Um monitor de computador grande. Um rádio digital.

Uma janela grande coberta por cortinas bonitas.

Está chovendo pesado lá fora. A chuva para.

MARK, trinta anos. LISA, quarenta e cinco.

MARK Como é que ele é?

LISA Eu nunca sei como responder isso.

MARK Por que não?

LISA Eu tinha trinta e dois anos quando conheci ele. Conheço ele só há dez anos. Mas a
impressão que eu tenho é que nesses dez anos eu passei com ele todo tempo que
estive acordada e que eu não estive trabalhando. Sei lá, é como se ele fizesse parte
do meu metabolismo. É a mesma coisa que me perguntar como é meu cabelo.

MARK Você ta nervosa?

LISA To com um pouco de medo.

MARK Não precisa ter.

LISA Isso é uma coisa que a gente não pode evitar.

MARK Suas mãos estão suadas.

LISA Eu sei. Desculpe.


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MARK Você quer tomar um banho, sei lá?

LISA Bem. Pode ser. Pode ser. Pode ser. Na verdade não. Não. Como foi o trabalho?

MARK Eu tava meio distraído.

LISA Pelo quê?

MARK Por estar vindo. Por você.

LISA Legal. Como estavam seus alunos?

MARK Na verdade eu não quero falar do meu trabalho.

LISA Não. Por favor.

Tempo.

MARK O mesmo de sempre. Indolentes. Emburrados. Ricos.

LISA Não tem nenhum que seja legal?

MARK Ainda não sei. É cedo demais pra dizer.

LISA Como assim?

MARK Tem uns que conseguem, sabe. Desenhar. Eles gostam de desenhar. Eles pintam.
Fazem coisas. Não sei se conseguem reimaginar o mundo. Acho que pra eles é
muito difícil se expressar. E quando conseguem, na idade deles, bom, pra ser
honesto deve dar um pouco de medo. Eles são muito novos. Eles se dão melhor
tentando fazer com precisão desenho de frutas, de latas de comida, essas coisas.
Fique calma.

LISA Eu estou calma.

MARK Não parece.

LISA Eu estou sim. Você viu o tamanho do chuveiro? No banheiro?


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MARK Vi.

LISA Eu nunca tinha visto um chuveiro daquele tamanho.

MARK Você parece que ta com medo dele.

LISA Não to com medo. Eu to é surpresa.

MARK A gente podia tomar um banho.

LISA É.

MARK Ta a fim?

LISA É.

MARK Agora?

LISA Daqui a pouco.

MARK Dá pra ver o aeroporto.

LISA É.

MARK É bonito, eu acho. As pessoas normalmente não gostam de aeroportos. Eu gosto.


Parou de chover. Está claro ainda.
Eu gosto de hotéis.

LISA Gosta? Eu sempre me sinto meio...

MARK O quê?

LISA Esse aqui é lindo.

MARK Quem você acha que se hospeda aqui?

LISA Não faço a menor ideia.


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MARK Quem será que vai querer se hospedar num hotel tão bonito assim e tão perto de
um aeroporto? Você acha que as pessoas vêm a negócios? Será que é pra gente
muito rica que têm que trocar de voo quando ta indo pra Austrália, talvez?

LISA Eu não sei.

MARK Eu gosto do jeito que a televisão recebe você quando você entra no quarto. Toda
vez que eu entro num hotel assim eu levo um susto. Fico imaginando se errassem
meu nome. Por um segundo você ia achar que tinha entrado no quarto errado.

LISA Ou que tinha se transformado numa outra pessoa.

MARK Dá pra ver a TV do chuveiro. Eles arrumam de um jeito que você consegue ver a
televisão de qualquer canto do quarto. Talvez as pessoas que venham pra cá se
sintam tão sós que precisam da televisão pra lembrar a elas que tem um mundo lá
fora, e que tem coisas acontecendo, e que elas não estão, você sabe, sozinhas.

LISA E elas sempre ficam com o canal de notícias ligado. Se você assiste por algum
tempo eles começam a repetir as mesmas histórias, mas cada vez que eles repetem
é como se tivessem contando pela primeira vez e você começa a achar que está
ficando meio louco.

Um tempo. Ele olha para ela.

MARK O que que ele faz?


Seu marido?

LISA Trabalho social.

MARK Foi assim que você conheceu ele?

LISA Não, a gente se conheceu num grupo. Acho que já falei isso pra você.

MARK Não.

LISA Ela era meu mentor. Um dia ele disse que queria parar de ser meu mentor porque
ele tava ficando apaixonado por mim. O que é o máximo da falta de
profissionalismo. Na verdade é uma séria violação do código de conduta, o que é
um puta ridículo, daí a gente resolver encarar. Ele tem os dedos mais bonitos do
mundo. São lindos.
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MARK O que ele diria se soubesse que a gente está aqui?

LISA Acho que não muita coisa. Ele costuma ficar calado.

MARK Shhh

LISA O que foi?

MARK Você ta ouvindo isso?

LISA O quê?

MARK No quarto ao lado.

LISA O que que é que tem?

MARK Dá pra ouvir umas pessoas falando.

LISA O que elas estão dizendo?

MARK Não sei.

LISA Que língua estão falando?

MARK Francês, eu acho. Parece francês.

LISA Você gosta do meu vestido?

MARK Acho incrível.

LISA To usando ele pra você.


Que bonito.

MARK O que é bonito?

LISA O seu sorriso.

MARK Você tem ideia do quanto eu acho você sensual?


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LISA Quanto?

MARK Pra caralho.

LISA Você sabe qual é coisa mais sensual que uma pessoa pode fazer com a outra?
Não. Não precisa responder. Eu lhe digo. É segurar o olhar. Manter o olho no
olho. Fazer isso, sem piscar. Sem desviar. Quanto tempo você acha que é capaz de
ficar me olhando nos olhos?

MARK Horas.

LISA Eu aposto que não consegue.

MARK Eu aposto que sim.

Um avião pousa perto de sua janela. Ouve-se o barulho, apesar das janelas
serem à prova de ruído. Isto os interrompe.

LISA Um avião.

MARK É.

LISA Como ela se chama?

MARK Quem?

LISA Quem, você acha?

MARK Clare.

LISA Onde você conheceu ela?

MARK Na escola. A gente se conhece desde quando a gente tinha quatro anos.

LISA Hah.

MARK O quê?

LISA É surpreendente conhecer alguém que tenha conhecido seu parceiro há tanto
tempo assim.
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MARK Mas a gente não começou a sair juntos quando a gente tinha quatro anos.

LISA Não.

MARK Teria sido meio estranho.


A gente chegou exatamente no mesmo dia. A gente meio que ficava gravitando
um em volta do outro. Eu achava que ela sabia onde ficavam as coisas e eu ia
atrás dela pra tudo que é lugar. Só anos depois é que eu descobri que ela fazia a
mesma coisa comigo.
Você quer beber alguma coisa?

LISA Quem sabe. Pode ser legal. A gente podia beber champanhe.

MARK Champanhe?

LISA Eu gosto de champanhe.

MARK Deixe eu ver.

Ele vai para o minibar. Ele pega meia garrafa de champanhe.

Ei. Olha. Achei.

Ele abre a garrafa e serve dois copos que estão numa bandeja sobre o minibar.
Dá um copo a ela. Eles bebem.

LISA Que ótimo. Obrigada.

MARK Na Rússia, eu li uma vez, que quando um médico morre, eles abrem uma garrafa
de champanhe pra comemorar a morte. Eu gosto da ideia.

LISA Você não ta pra morrer não, ta?

MARK Não. Que idiotice.

LISA Porque isso deixaria a coisa ainda mais estranha do que já está.

MARK Você acha que tem alguma coisa estranha?


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LISA Eu acho sim.

MARK Você quer... ?

LISA Ainda não.

MARK Porque eu quero, eu acho.

LISA Eu sei. Dá pra ver. A gente tem tempo. Seu bobo.

Ele olha para ela. Sorri.

Ele se afasta um pouco dela.

MARK Recebi umas notícias hoje no trabalho

LISA Notícias?

MARK Há seis meses eu me inscrevi num programa de intercâmbio.

LISA O que é isso?

MARK É um intercâmbio, o Conselho Britânico paga pra você trocar de lugar com um
professor na América. Hoje eu soube que fui aprovado. Eu vou pro colégio de
Arte e Design de Minneapolis.

LISA Meu Deus. Quando?

MARK Setembro.

LISA Por quanto tempo?

MARK Por um ano.

LISA A Clare vai também.

MARK Não, ela vai ficar aqui. Ela tem o trabalho dela.
Eu ainda to meio assustado com tudo. Pra ser sincero eu já tinha esquecido que
tinha feito a inscrição. O diretor do colégio é que me ligou. Levei um tempo pra
30

entender do que ele tava falando. Eu achava que ele tava falando com o professor
errado. Esses últimos dias têm sido um pouco confusos.

LISA É.

Ela olha para ele. Ela deixa seu copo.

Venha aqui.

Ele o faz.

Deixe eu ver suas mãos.

Ele o faz

MARK O que você ta fazendo?

LISA Estou lendo suas mãos.

MARK Por quê?

LISA Quero saber seu futuro.

MARK Você acredita nisso?

Ela olha para ele.

LISA Se eu te disser uma coisa, você vai ficar zangado?

MARK Zangado?

LISA Você já viu isso?

Ela mostra a ele uma área na parte de dentro de seu braço.

MARK O que é isso?

Ela canta baixinho a ‘Habanera’ da ‘Carmem’, de Bizet. Ela canta lindamente.

Ela para.
31

Ela olha para ele.

LISA O grupo que eu frequentava, o grupo onde eu conheci o Andrew, não era para
alcoólatras. Era pra gente viciada em droga. Quando eu tinha a tua idade eu
tomava heroína. Fumei durante uns dois anos, depois injetei durante uns seis
meses. Se você quiser ir embora agora, eu não vou me importar.

MARK Por que eu iria embora?

LISA Tem gente que tem nojo.

MARK Não eu.

LISA As pessoas têm medo. Você ouve coisas, né?

MARK Que tipo de coisas?

LISA Eu comecei a fumar pra me ajudar a dormir. O negócio é que no meu trabalho
todo mundo fuma demais e bebe demais, e toma café e coca-cola demais e eu
entrei tanto nessa que não conseguia mais dormir de noite. Eu falei isso prum
colega meu e ele me perguntou se eu já tinha experimentado fumar heroína pra
me ajudar a apagar. Pensando nele agora, ele era um cara bem esquisito.

MARK Devia ser mesmo.

LISA Onde eu trabalho é muito fácil de se conseguir.

MARK Imagino que sim.

LISA Você já experimentou?

MARK Não.

LISA Eu adoro. Faz você se sentir tão feliz. Faz você ficar relaxado. Depois de um
tempo eu comecei a tomar muito. Depois de uns meses parei de pegar no trabalho.
Foi fácil arranjar um contato com um traficante que não sujasse a minha barra, daí
eu comecei a pegar com ele. Não vou dizer o nome dele, me desculpe. O
problema é que o teu nível de tolerância vai aumentando e você precisa cada vez
de mais pra conseguir ter a mesma sensação das primeiras vezes. Então você pode
32

chegar a gastar muito dinheiro. E isso começou a virar um pequeno problema. Um


dia o cara que me vendia a heroína perguntou onde eu arranjava tanto dinheiro.
Eu disse pra ele que eu trabalhava e conseguia um pouco com meus pais. Ele me
perguntou o que eu fazia. Eu disse pra ele que eu era oficial da polícia.

MARK Você disse isso?

LISA Disse.

MARK Por quê?

LISA Bom, porque eu sou.

MARK Você podia ter mentido.

LISA Por quê?

MARK Não foi meio constrangedor?

LISA Pra quem?

MARK Pra você. Pra ele. Como ele reagiu?

LISA Ele ficou meio com medo no início, mas eu tranquilizei ele. Eu trabalho com
proteção infantil. Não trabalho com narcóticos. Sabia?

MARK Certo.

Outro avião passa pela janela. Ela faz uma pausa para olhar para lá. Volta a
olhar para dentro.

LISA Ele me perguntou se o que eu ganhava era o bastante e eu disse que não. Então ele
disse, ‘Bom, tem um jeito, se você quiser, que pode te ajudar a ganhar mais
dinheiro.’ Eu perguntei a ele como e ele disse, ‘Bom, eu acho você bonita.’ Eu
pensei, sim, e daí, meu velho, onde é que você quer chegar, e ele me perguntou se
‘eu já tinha pensado em atuar?’ Eu disse não, e ele disse, ‘Bem, eu tava a fim de
fazer um filme com você, você não gostaria?’ Bom, aí eu fiquei pensando. Eu
nunca tinha feito nenhum filme antes, fiquei toda entusiasmada e eu disse, ‘Que
tipo de filme é esse?’ Ele olhou pra mim. Tipo. Ele deu um sorrisinho safado e
disse. ‘É um filme pornô.’ Ele perguntou o que eu achava. Eu perguntei a ele o
33

que eu ia ter que fazer e ele disse, ‘Bom, o que você acha?’ E você me conhece.
Você sabe como eu sou. Então eu decidi dizer tudo bem. Mas com algumas
condições. ‘Tem umas coisas que eu não topo fazer’, eu disse, ‘Eu não faço sexo
anal, não transo com bicho, nem com criança, tudo bem pra você?’ Ele disse que
sim. E a gente fez. Sabe, eu gostava dele e ainda gosto. Eu ainda gosto dele sim.
Não vejo ele faz tempo, mas seu eu o visse de novo não teria nada a dizer contra
ele. Sei que pode soar estranho, mas acho que no fundo ele é uma boa pessoa. Ele
sempre foi muito limpo e sempre muito cuidadoso pra não me machucar de
verdade. A gente foi prum hotel perto do aeroporto de Stansted. Em Essex. Eu, ele
e um amigo dele, Jason. E tava óbvio que o Jason tinha sido escolhido porque era
bonito e bacana, e quando eu tava indo pra esse hotel, no carro, eu pensei, não, eu
não me importo, com ele eu não me importo. E tinha uma amiga dele, Michelle,
que era linda. Um pouco mais nova do que eu. E meio burra. Mas ela é legal. Ele
disse, ‘Você vai ter que fingir que ta chegando em casa e encontra o Jason
comendo a Michelle, e Michelle é sua filha e o que acontece é que você gosta.
Você gosta da transa, entende? E você resolve participar.’ O que pra mim, tudo
bem, porque na vida real a Michelle não é minha filha. A gente ta só, você sabe,
fingindo. E no fundo é meio estranho porque a gente tem que fingir que esse
quarto de hotel é minha casa, pra história poder funcionar. Mas você sabe? Eu
nunca tinha feito sexo com uma mulher. A gente começou a rir. Eu me senti
muito esquisita. E Jason foi muito gentil, e mesmo que de vez em quando eu
desse uma travada, no fim foi legal. Foi limpo. Eles me pagavam quinhentas
libras por filme. O que pra mim, na época era muito dinheiro. Depois de um
tempo você fica meio imune. Acho que você assimila, essa é a palavra. Uma vez
ele amarrou meus pulsos aos meus tornozelos, me colocou na mala do carro, me
levou pra floresta de Epping, e quando a gente chegou lá e ele filmou um outro
homem, não o Jason, dessa vez era um oriental chamado David, abrindo a mala
do carro, me tirando de lá, e tinha uns outros sete homens se masturbando e eu
tinha que chupar o pau deles enquanto eles se masturbavam, e eles tinham que
gozar o mais que pudessem no meu cabelo, na minha cara, onde eles quisessem.
Esse foi o único filme em que eu chorei um pouco e ele adorou e eu decidi parar
depois disso.

Silêncio.

Você ta bem?

Ele concorda com a cabeça.

Isso foi uma surpresa pra você?


34

MARK Um pouco sim.

LISA Eu achei que você precisava saber.


Você tem eczema?

MARK concorda com a cabeça.

LISA Pare de coçar. Vai piorar.

Ele concorda com a cabeça.

Ta na internet. A gente pode achar se você quiser. Você quer que eu ache pra
você?

MARK Não.

LISA A gente pode ver.

MARK Eu não quero que você.

LISA Pode ser engraçado. Já foi visto mais de 24.000 vezes. Média de 78 por cento de
aprovação.

MARK O que isso significa?

LISA Bom, quando você assiste um filme você tem que dizer se você gostou ou não, e
78 por cento das pessoas que assistiram acharam o filme bom, e 22 por cento
acharam ruim. Você pode ler os comentários.

MARK O que dizem?

LISA Você sabe.

MARK O que dizem sobre você?

LISA Eu preferia não falar sobre isso, se você não se importa.


Você ta sentindo nojo?

MARK Não.
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LISA Você quer ir embora?

MARK Não.

LISA Acho que você deve ir. Vai ser melhor.

MARK Não.

LISA Eu sinceramente não ficaria chateada se você fosse embora.

MARK Eu não quero ir.

LISA Não ficaria triste, Não se preocupe com meus sentimentos.

MARK Eu não estou.

LISA De verdade?

MARK Por quanto tempo você fez isso?

LISA Honestamente não me lembro.

MARK O que o Andrew acha?

LISA Eu nunca contei pra ele.

MARK Você nunca contou pra ninguém?


O que eles diriam no teu trabalho, se descobrissem?

LISA Não diriam muita coisa. Iriam me demitir. Eu ficaria um tempo presa.

MARK Presa?

LISA Por ofensa a minha posição como oficial de polícia.

MARK Eu to um pouco –

LISA Eu sei. Desculpe. Você quer se sentar?


36

Ele o faz.

Ela se senta ao lado dele.

Você não precisa dizer nada. A gente pode ficar sentada aqui um tempo.

Ela pega a mão dele. Brinca com ela um pouco. Cheira-a. Compara em forma e
tamanho com as suas mãos. Depois fica segurando-a.

Onde ela pensa que você está? Clare?

MARK Ela acha que eu estou em casa. Ela foi passar o fim de semana fora, na casa da
mãe dela. Eu disse pra ela que tinha que trabalhar. O que é verdade. Eu tenho que
trabalhar.

LISA Onde a mãe dela mora?

MARK Perto de Lancaster.

LISA Na região dos lagos.

MARK Isso.

LISA A gente costumava acampar em Água Parada, quando eu era criança. É o lago
mais fundo do país. É rodeado por penhascos e montanhas, por isso está sempre
na sombra. A água é completamente parada. Meu pai me dizia que a imobilidade
era uma mentira. ‘Parece que ta parada, Lisa, mas você não imagina quantos
corpos estão escondidos lá embaixo.’ Sempre que me lembro do meu pai é lá. Ele
de shorts. Cozinhando ovo naquele fogãozinho a gás.
Como é o seu pai?

Ele olha para ela durante um tempo antes de responder. Ele está meio
desorientado.

LISA É engraçado, não é?

MARK O quê?

LISA Você toma uma decisão. Ela fica com você. É como se as consequências
penetrassem nos seus ossos. To sendo meio louca?
37

MARK Não.

LISA Só pensei. Se a gente for fazer isso tem umas coisas que eu queria que você
soubesse. Em nome da honestidade.

MARK concorda com a cabeça.

LISA Sabe o que eu queria?

MARK Não.

LISA Queria ver sua arte.

MARK Mesmo?

LISA Não. Na verdade. Na verdade não. Como é?

MARK Faz somente seis meses que eu voltei a trabalhar. Fiquei quase quatro anos
parado. Há quatro anos e meio o melhor aluno que tive na vida morreu num
acidente de carro. Era um menino chamado Gavin Berkshire. Ele era incrível. Ele
e um amigo encheram a cara pegaram o carro e se enfiaram numa parede. Ele
morreu. O amigo não, o que pra mim sempre pareceu meio injusto. Depois disso
ficou difícil trabalhar. Só há pouco tempo é que eu recomecei. Meu trabalho ficou
muito figurativo. Eu pinto pessoas. É muito estranho.

LISA É. Você já me pintou?

MARK Não.

LISA Não gostaria?

MARK Acho que não.


Não sou bom o bastante. Pra viver como artista profissional. A verdade tem que
ser dita. Eu nunca vou ser um artista. Isso é uma coisa difícil de se admitir.

Um tempo.

LISA Você acha que vai ter filhos com a Clare?


38

MARK Talvez. Algum dia.

LISA Você daria um bom pai.

MARK Você nunca quis ter filhos?

Ela balança a cabeça negativamente.

Pausa.

LISA Minha irmã tem dois filhos. Eles têm nove e sete anos. Ela não deixa eu ver eles.

Um tempo.

Nunca fiz sexo com o Andrew. Acho que é porque me lembra dessa época. Isso
foi há doze anos, mas ainda assim. Eu gosto de dormir com ele. A gente se abraça
muito. A gente se dá as mãos. A gente se aninha. Não é que eu não goste de sexo.
Só prefiro é não associar sexo com ele. Será que isso é uma coisa estúpida?

MARK Não.

LISA Porque eu gosto. Eu gosto de sexo.

MARK Eu também.

LISA E eu to muito a fim de fazer sexo com você.

MARK Bom, isso é legal.

LISA Tem certeza que você ainda ta no clima?

MARK Acho que sim.

LISA Porque não te culpo se você achar que o momento tenha passado.

MARK Não.

LISA Que bom.


Se eu fizer sexo com você, acho que vou querer ficar de vestido, o que você acha?
39

MARK Pode ser – pode ser legal.

LISA Acho que eu gostaria de vendar seus olhos também, Mark. Posso fazer isso?

Ele concorda com a cabeça.

Acho que vou amarrar você a uma cadeira, vendar seus olhos e amarrar suas mãos
pra você não poder tocar em mim, mesmo que eu queira muito. E você não vai
poder me ver.

Ele concorda com a cabeça.

Foi esse tipo de coisa que eu andei pensando o dia inteiro. Você acha chocante?

MARK Não, é bom. Eu gosto.

LISA Uma outra coisa que eu andei pensando, uma coisa que eu queria fazer hoje era,
eu queria que você batesse em mim. O que você acha?

MARK Bater em você?

LISA concorda com a cabeça.

MARK olha para ela. Ele tenta dizer alguma coisa, mas não consegue.

LISA Você acha que consegue? Tem gente que consegue e tem gente que acha muito
difícil.
Você acha que consegue, ou seria meio complicado?

MARK olha para ela. Ele não diz nada.

LISA Eu assustei você? Tudo bem. Eu entendo.

MARK olha para ela. Ele não diz nada.

LISA Não tenha medo. Eu não queria assustar você. Não tem nada a ver com me
machucar ou me odiar, nada disso, Mark. Não precisa entrar em pânico. É
justamente o oposto.
Se eu quiser que você pare eu te digo pra parar. A gente pode inventar uma
palavra. Uma vez, quando fiz isso antes, a palavra era ‘água’. Se eu disser a
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palavra ‘água’ você tem que parar. Te prometo que se eu ficar com medo ou
desconfortável, eu digo a palavra ‘água’ e você para. Quer experimentar, o que
você acha?

MARK Não.

LISA A gente pode filmar com seu celular. Pode ser engraçado. O que você acha?

MARK Não.

LISA Você pode fazer o upload amanhã. De noite. Quando você tiver chegado em casa.
Depois da Clare ter ido pra cama.

MARK Para. Eu não vou machucar você. Eu não vou bater em você. Pelo Amor de Deus!

LISA Quantos anos você tem?

MARK Trinta. Você sabe.

LISA Então é por isso.

MARK O quê? Por isso o quê?

LISA Vai chegar uma hora, quando você estiver mais velho que você vai sacar.

MARK O que você ta falando?

LISA Se você tivesse visto as coisas que eu vejo quando eu to trabalhando. Ou se


tivesse conhecido as pessoas que eu conheço. As coisas que elas fazem! Por sinal
acontece a mesma coisa com elas, as decisões que elas tomam vivem nos ossos
delas.

MARK Não sei do que você ta falando.

LISA Não. Desculpe. To sendo estranha. Toque o meu rosto.

Ele vai até ela. Ele toca o rosto dela.

MARK É macio.
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Ela segura a mão dele sobre seu rosto. Ela beija a mão dele, na parte de cima de
seu punho.

LISA Suas mãos cheiram bem.

MARK Mesmo?

LISA Tem cheiro de cobre. Como se você tivesse segurado moedas.


Por favor, por favor, por favor. Eu quero. Por favor.

Ele a estuda.

MARK Eu nunca bati em ninguém.

LISA Nunca ninguém bateu em você?

MARK De verdade não.

LISA Como assim, ‘de verdade não’?

MARK Uma vez um professor me deu um tapa. Isso conta?

LISA Não sei. Talvez. Por que ele bateu em você?

MARK Um lance meio estúpido. Nem doeu nem nada. Pra falar a verdade, foi meio
constrangedor. Ele ficou todo vermelho. A coisa foi até meio tosca. Foi no
corredor. Ele até foi demitido depois, o que pra mim foi um exagero.

LISA Por que ele bateu em você?

MARK Ele deu uma cantada na Clare. Ele convidou ela pra sair e tomar uma bebida. A
gente estava na quinta série, a coisa não era séria, mas de qualquer jeito, ele fez o
convite, ele disse, quando você quiser falar comigo você pode me ligar, e eu
fiquei puto. A gente discutiu no corredor. Ele me deu um tapa, assim. Que nem
um tapa de menina.
Eu não devia ter dito nada pra ele. Foi uma besteira ele ter sido despedido.
Desde pequeno eu sempre quis caminhar através do deserto. De um grande. Que
nem o Sahara. Ou Gobi. Ou o da Patagônia. Sem água. Sem comida, nem nada.
Só pra sentir como é.
42

LISA É.

Ele bate no rosto dela.

Ele se olham. Ele bate nela mais uma vez.

Ela suspira. Segura a respiração.

Eles se olham.

Ele bate nela mais uma vez.

Ela coloca a mão no rosto.

Você ta bem?

MARK Acho que sim. E você?

LISA Estou.
Espera aqui.

Ela vai para o banheiro.

Ele espera.

Enquanto está no banheiro ela liga o chuveiro.

Depois de um tempo ela volta a entrar no quarto.

Ela vai para a janela. Ela a abre. Ela se vira para ele.

LISA Você acredita em gente boa e gente má?

MARK Acredito.

LISA Eu também. Completamente. Você é o quê?

MARK Eu sou uma pessoa boa.

LISA Você é. Você é uma das melhores pessoas do planeta. Eu também.


43

MARK Eu sei. Eu tava pensando enquanto você tava no banheiro.

LISA A gente devia se casar. A gente podia fazer isso ilegalmente. Eu seria bígama.

MARK Podia sim.

LISA Você podia me levar pra Minneapolis. A gente pode visitar o Prince. A gente
pode ir ao Shopping da América.

MARK Aonde?

LISA Tem um shopping center, perto de Minneapolis chamado Shopping da América. É


o maior shopping do mundo. Milhares de turistas japoneses voam pra
Minneapolis só pra ir lá. Eles vão direto do aeroporto pro shopping e depois de
volta pro Japão. A gente podia ir lá.

Enquanto ela falava ela ligou a televisão. É a BBC notícias 24h. Ela abaixa o
volume e fica lendo as legendas. Enquanto fala se despe um pouco. Talvez
tirando o cardigan e os sapatos.

MARK É, podia.

LISA Fazer compras. Comprar roupas, um pro outro. São nove e meia, já devia estar
escurecendo. Você viu o céu?

MARK Vi.

LISA Você já viu um céu dessa cor antes?

MARK Acho que não.

LISA Será que era pro céu ficar dessa cor?

MARK Eu não sei.

LISA A gente tá melhor aqui dentro.

MARK É.
44

LISA Melhor aqui dentro.


No futuro o mundo inteiro vai ser assim, você sabia?

MARK Assim como?

Ela vai para o computador, liga e se conecta.

MARK fica olhando ela fazer isso, tira seus sapatos e suas meias.

Ela acha um site de pornografia. Começa a reproduzir um vídeo pornô. Deve


ficar claro que não é ela no filme. Os atores podem ser negros ou alemães, por
exemplo.

LISA Todo mundo vai ficar dentro de lindos quartos. Com sabão líquido com perfume
de almíscar e boas águas minerais. E toalhas macias.

MARK É.

Ela se senta na cama, de costas para ele.

LISA O quê?
To falando sério. O zíper, por favor.

Ele abre o zíper nas costas do vestido dela.

Obrigada.
Nunca me chame de Lise. As pessoas no meu trabalho me chamam de Lise o
tempo todo. Eu detesto.

MARK Tudo bem. Nunca te chamei assim. Nem vou chamar.

LISA Você ta chorando?

MARK Não.

LISA Você pode chorar, sabia? Tudo bem.

MARK Eu não to chorando. Por que você acha que eu to chorando? Por que eu estaria
chorando?
45

LISA “O céu é quem sabe que não precisamos ter vergonha de nossas lágrimas, pois
elas são a chuva sobre a poeira da terra que cega nossos corações duros.”

MARK O quê?

LISA Nada.

Ela liga o rádio. Toca uma música pop animada, bem comercial.

Ela se vira e olha para ele antes de voltar para a cama. Ele se dirige para a
cama.

De repente um blecaute.
46

TRÊS

23 de junho, 21h.

Um galpão vazio na periferia do aeroporto de Heathrow.

Há uma escrivaninha grande com uma prancheta e uma caneta sobre ela, duas cadeiras, um
balde.

SIAN tem vinte e cinco anos. JONATHAN tem cinquenta e tantos.

Lá fora está chovendo pesado. A chuva para.

SIAN Você gosta do meu vestido?

Nenhuma resposta.

Você sabe que flores são essas?

JONATHAN Parecem rosas.

SIAN São gardênias.

JONATHAN A cor é bonita, Sian.

SIAN Acha que combina com meus olhos?

JONATHAN Eu. Hã. Acho que sim.

SIAN Vou lhe dizer uma coisa. Você ta errado.


Você sabe por quê?

JONATHAN Não.

SIAN Meus olhos são de cores diferentes. Um azul e um verde.

JONATHAN Daqui não dá pra reparar.

SIAN Não.
47

Obrigado por ter vindo. São nove horas ainda. Você chegou cedo. Você não se
molhou, molhou?

JONATHAN Não.

SIAN A chuva parou?

JONATHAN Ainda há pouco.

SIAN Aposto como você ficou com um puta medo na hora que o Alain te ligou?
O que aconteceu com o seu nariz?

JONATHAN Meu nariz?

SIAN Ta quebrado. O que foi que aconteceu?

Pausa.

JONATHAN Eu caí.

SIAN Caiu?

JONATHAN Eu era professor. Uma vez eu escorreguei e caí nas escadas da escola onde eu
dava aula. O chão tava molhado. Pra falar a verdade, foi meio constrangedor.

SIAN Aposto que foi, porra.

JONATHAN Como você conseguiu meu telefone?

SIAN Como você acha?

JONATHAN Não sei. Por isso eu to perguntando.

SIAN O Alain conhece o Stephen Cochrane.


Então.
A ficha caiu.
Você não quer se sentar?

JONATHAN Não. Eu to bem.


48

SIAN Você não parece nada bem. Ta meio pálido. Um tom meio ‘Oh, meu Deus, que
porra que eu to fazendo aqui’ de pálido.
Não ta?
Eu to certa, não to?

JONATHAN To meio com frio.

SIAN Assim de repente?

JONATHAN Ta muito frio aqui.

SIAN Que engraçado, né? Sabe que eu não me importo. Isso nunca me incomodou.

JONATHAN Não tem aquecimento aqui.

SIAN Por que teria?

JONATHAN E não tem luz natural. Acho meio opressivo.


Acho que agora eu quero me sentar.

Ela sorri para ele.

SIAN Você dava aula de quê?

JONATHAN O quê?

SIAN Quando você dava aula.

JONATHAN Matemática.

SIAN Escola pública ou particular?

JONATHAN Numa escola particular. Parei de dar aulas depois de dez anos. Quero dizer, parei
de dar aulas em escola. Agora eu dou aula na faculdade.

SIAN Posso te dizer uma coisa?

JONATHAN O quê?

SIAN Honestamente, eu to cagando.


49

Onde está o dinheiro?

JONATHAN No meu carro.

SIAN Bom menino. É seguro lá?

JONATHAN Você acha que pode não ser?

SIAN Engraçado, não é?

JONATHAN O quê?

SIAN As coisas que a gente faz!

Um avião pousa ali perto.

JONATHAN O que é isso?

SIAN O quê?

JONATHAN Esse barulho.

SIAN Foi um avião, Jonathan, o que mais poderia ser? Você ta muito assustado, não ta?
Como vai sua esposa?

JONATHAN Por favor, não.

SIAN Não o quê?

JONATHAN Olha, eu to aqui, não to? Trouxe o dinheiro, não trouxe? Você não precisa –
Fiz o negócio com o Stephen Cochrane.

SIAN Ele falou.

JONATHAN Nós trocamos três e-mails.

SIAN Eu li os três.

JONATHAN A gente se falou uma vez por telefone.


50

SIAN De um quarto de hotel na beira da estrada em Derby. Bacana.

JONATHAN A gente se encontrou uma vez.

SIAN É.

JONATHAN Nós mudamos de ideia.

SIAN Ele achou isso meio, como é mesmo a palavra? Uma porra um pouco frustrante,
no mínimo. Acho que foi essa a palavra que ele usou.

JONATHAN Eu não fiz nada de errado.

Ela sorri.

SIAN Como você acha que essas poças apareceram?

JONATHAN Não tenho a menor ideia.

SIAN Do que você acha que elas são feitas?

JONATHAN Água. Sei lá. Óleo.

SIAN Você acha?

JONATHAN Não sei.

SIAN Você ta com muito medo?


Parece que ta. Sabe o que ia acontecer com você, no caso de você ser pego?

JONATHAN Que história é essa?

SIAN Qual foi a pior coisa que você fez? Até hoje?

JONATHAN Eu nunca fiz nada.

SIAN Acha que não?

Um tempo. Ele pensa.


51

JONATHAN Quando eu era professor eu bati num aluno meu. Forte. No rosto.

SIAN Por quê?

JONATHAN Ele zombou de mim.

SIAN Zombou?

JONATHAN Ele insinuou que eu tava tendo um relacionamento com uma das meninas da sexta
série. Ele colocou um cartaz no quadro de avisos da biblioteca anunciando isso.

SIAN E você estava?

JONATHAN Claro que não. Que tipo de pessoa você acha que eu sou?

SIAN Eu não faço a menor ideia, Jonathan, me diz você.

Uma pausa.

Você sabe qual foi a pior coisa que eu já fiz?

JONATHAN Nem imagino.

SIAN Quando eu tinha doze anos eu afoguei um cachorro. Nos fundos da casa, onde
meus primeiros pais adotivos moravam. Bem na saída de Stoke. Eles tinham uma
casa com um terreno grande e um lago nos fundos. Servia mais como um
playground feio e abandonado. Eu disse lago, mas na verdade era um, o quê? Um
tanque? Meu primeiro pai adotivo tinha um irmão que se chamava Clive, que
morava em Swansea. Ele era um escroto. Ele vinha visitar a gente. Ele tinha um
cachorro, aquilo nem era um cachorro, era um monte peludo de bosta. Ele me
ameaçava com o cachorro. Ela caiu no sono. Eu levei o cachorro prum passeio.
Bati bem atrás do crânio dele com um tijolo que meu primeiro pai adotivo
guardava na garagem, porque um dia ele ia construir seu puxadinho. Ele ficou
tonto. Tropeçou nas pernas de um jeito engraçado. Bambeou. Eu arrastei ele pela
corrente até o tanque. Empurrei ele pro fundo. Fiquei segurando a cabeça dele
debaixo d’água. Ele não reagiu durante um tempo. Depois sim. As pernas ficaram
duras. Ele se debateu todo.
Foi difícil explicar por que eu tava com a saia toda molhada. Vou te contar, hem.
Há quanto tempo você tem cabelo branco?
52

Não vai me dizer que começou quando o Alain ligou pra você. Ou foi? Aposto
que foi, não foi?
Eu gosto do seu relógio. Onde você arranjou?

JONATHAN Era do meu pai.

SIAN Eu sabia que você ia dizer isso. Será que você não consegue dizer nada que não
seja estupidamente previsível? Posso te pedir uma coisa? Daria pra você parar por
uma porra de um segundo de mexer os dedos? Por favor?
Você gosta dos meus pés?
Você é desses homens que gostam de pés de mulheres?
Nós encontramos ela.

JONATHAN O quê?

SIAN Você me ouviu muito bem, caralho, não finja que não. Porra. O Alain ta com ela
agora. Ele ta com ela desde terça-feira.

JONATHAN Posso ir embora, por favor?

SIAN O que você acha?


É estranho, não é? Você se conecta por um servidor público no aeroporto Charles
de Gaulle, mesmo tendo sido prevenido por todo mundo que a informação que
você tava passando podia ta sendo hackeada. E você nem por um segundo pensou
no que isso podia dar.
Depois você entra num site que você sabe que é perfeitamente seguro. Você
verifica a média de acessos. Dois milhões e meio de acessos nas últimas vinte e
quatro horas. É popular. E muito direto. Recebe mais acessos que a sessão de
esportes do Guardian, Puta merda, você checou isso! E uma foto te leva pra outro
site. E nesse site tem um anúncio que te leva prum terceiro site. E quanto mais
você vai indo, menos, o quê? Profissionais? É. Mas por menos profissionais que
esses outros sites pareçam, você continua. Porque ninguém sabe. Você tem
absoluta certeza. Ninguém sabe. Ninguém sabe.
Quer saber de uma coisa, Jonathan?
Todo mundo sabe.
Ela é mais velha do que você pediu ao Stephen.

JONATHAN Eu quero voltar pra casa, por favor.

SIAN Ela tem nove anos.


53

Um avião pousa ali perto.

É absurdamente alto. Não é?

JONATHAN O quê?

SIAN O teto aqui.

JONATHAN Minhas. Minhas. Minhas. Minhas. Minhas. Minhas circunstâncias mudaram


depois que conversei com o Stephen.

SIAN ‘Minhas. Minhas. Minhas. Minhas. Minhas – ’ que porra é essa que você ta
falando? Que merda que ta acontecendo com essa tua língua?

JONATHAN Minhas circunstâncias mudaram depois que conversei com o Stephen.

SIAN Você ta querendo dizer que não ta mais, o quê? Não ta mais interessado no
negócio? É isso que você ta querendo sugerir?
Você realmente acha que você tem esse tipo de opção?
É isso o que eu devo entender pelo que você ta dizendo?

JONATHAN Eu não fiz nada.

Ela sorri para ele.

Ela pega a prancheta, a caneta e começa a ler os papéis que estão nela.

SIAN Preciso fazer umas perguntas.

JONATHAN O quê?

SIAN São tipo um teste.

JONATHAN Um teste?

SIAN Um teste de personalidade.

JONATHAN Acho que não to entendo.


54

SIAN Preciso saber sobre sua personalidade.

JONATHAN Por quê?

SIAN Essa é boa.

JONATHAN O quê?

SIAN Você já ta me dando indícios certeiros sobre a natureza da sua personalidade.


Você não é muito seguro, por exemplo.

JONATHAN Seguro?

SIAN Você é? Falta segurança em você.

JONATHAN To me sentindo enjoado.

SIAN Tem um balde aí.


Coloque sua mão aqui.

Ela pega um par de algemas de seu bolso. Ela envolve o punho com uma das
algemas e usa como um soco-inglês.

Ela aponta para uma área bem específica sobre a mesa.

JONATHAN Por quê?

SIAN Sempre ‘porque’ com você, não é? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Isso é
algum indício de inteligência? Sinal de um espírito curioso? É isso que você ta
querendo passar? Porque se for, meu velho, eu vou te dizer uma coisa hem, que
puta coisa mais feia.
Você tem alguma ideia do quanto imprevisível nós somos?

Ele coloca sua mão exatamente onde ela mandou.

Obrigada,

JONATHAN Eu não quero mais fazer isso.

SIAN Sabe, eu acho que quer sim.


55

Por quanto tempo você vem tentando? Sete anos. Quanto você gastou em
tratamentos? Cinquenta e uma mil e oitocentas libras. Quantas agências você
consultou? Oito. Qual foi sempre a principal causa de rejeição? Qual foi a
principal causa de rejeição? Porra, Jonathan, essa é uma pergunta muito séria e eu
espero uma resposta ou então eu enfio essa algema nas costas da sua mão.
Você acha que eu não faria isso?

JONATHAN Nós fomos rejeitados por questões de saúde.

SIAN Por quê?

JONATHAN Durante uns anos minha mulher esteve muito mal. Em 2005 ela passou uns meses
num hospital por causa de uma doença que foi consequência de um tipo de
exaustão.

SIAN Ela é da ilha de Cebu, no norte das Filipinas. Ela está cansada porque ta viajando
há duas semanas e meia. Ela achou o voo meio assustador. Ela quase não fala
inglês. Ela é mestiça. Nunca conheceu o pai, mas a gente suspeita que seja
europeu.
Você espera que eu acredite que você tenha entrado em contato com o Stephen,
que você mandou aqueles emails, que alugou um quarto na beira de estrada em
Derby pra poder fazer aqueles telefonemas e foi encontrar com ele num bar na
Floresta de Epping se não tivesse a fim de fazer esse negócio?
Mude você as circunstâncias.

JONATHAN O que você quer dizer?

SIAN Ligue pra sua esposa. ‘Adivinhe querida, tenho uma surpresa pra você!’

JONATHAN Aonde ela está?

SIAN Terminal 5 do aeroporto de Heathrow. Uma hora dessa ela já deve ter
desembarcado, já passou pelo controle de passaporte. Ou ta esperando pra passar
pela entrevista da imigração. Numa daquelas cabines espelhadas, em que as
pessoas ficam sempre tentando ver quem ta do outro lado do espelho. Ela vai
passar fácil, pois foi muito bem preparada. Deve chegar aqui daqui a uma meia
hora. Ou daqui a uma hora. Ou daqui a três horas. Ou daqui a quatro dias.
Depende.

JONATHAN De quê?
56

SIAN Do que você acha, porra?

Ela deixa a prancheta.

Às vezes é complicado a gente ser casada, não é?

JONATHAN O quê?

SIAN Eu já fui casada.


Casei quando tinha dezoito anos. Casei com um cara chamado Ian. Ele era quinze
anos mais velho do que eu. Ele era pintor. Pintava paisagens. Ele era muito bom.
Tinha um olho incrível pros detalhes e pras cores. Vendia as pinturas em leilões.
Ele era cheio da grana.
Era filho de um amigo da minha segunda mãe adotiva. Ela se chama Frieda. Ela
mora aqui perto. Ela é de uma cidadezinha chamada Sipson, fica ao norte da
rodovia. Ela é uma pessoa linda. Ela parece que tem minha idade, o que é muito
estranho. Morei com ela até quando casei com o Ian. Ela é linda. Depois quando
ele começou a ficar meio – digamos assim, ‘ausente’? – Quando ele começou a
ficar ‘ausente’, eu fui morar com ela de novo.
Tinha açudes e parques lá perto por onde eu costumava andar. Eles estão pra
destruir a cidade inteira pra construir uma terceira pista. Você acredita?
Eu me divorciei do Ian quando tava com vinte e três. Considero esse um dos meus
vários erros. Meu casamento. Agora eu entendo como pode ser difícil.
Sossegue com essa mão.
Se você não queria fechar o negócio por que você veio se encontrar comigo?

Ele olha para ela um tempo antes de responder.

JONATHAN No telefone, parecia que o Alain, ele parecia que sabia muita coisa a meu respeito.

SIAN A gente sabe sim.

JONATHAN Eu fiquei meio nervoso.

SIAN Se você não queria fechar o negócio, por que você sacou o dinheiro?

JONATHAN Eu tava com medo.

SIAN Eu não acredito em você.


57

Às 11:22 da manhã você foi na agência de Islington do Banco Cooperativa, na


esquina da Penton com a rua de cima e sacou um montante de £31.000 em
espécie. Que tinha sido reservado por Charlotte Granger. Ela é a segunda gerente
da agência. Ela não trabalha nos caixas. Quem quiser falar com Charlotte Granger
tem que marcar uma porra de um horário. Você ligou pra agência às 9:30 da
manhã, marcou o horário, reservou o dinheiro e depois que fez o saque você foi às
compras. Você subiu a rua de cima, comprou o segundo álbum do Arctic
Monkeys, uma escolha que francamente eu considero bizarra, você também
comprou um par de luvas sem dedos pra andar de bicicleta na Halfords da rua
Liverpool. Depois você entrou no Prêt-a-Manger, comprou um sanduíche quente e
uma garrafa de água mineral sem gás, comeu seu lanche no metrô ou enquanto ia
da loja até a estação de Angel e foi pro seu escritório onde permaneceu por cinco
horas. Você saiu às seis. Comprou uma garrafa de um vinho neo zelandês de
merda na Oddbins no caminho até a estação de metrô de Holbourn e desceu às
seis e quarenta e três na estação de Archway. Ficou em casa uma hora. E eu não
tenho ideia do que você fez nesse tempo. Além de checar seus emails e assistir
quinze minutos de notícias no site da BBC. Você deve ter saído de casa às oito
pra não chegar aqui atrasado. O que eu to querendo provar, Jonathan é que esse
não é o tipo de comportamento de um homem nervoso. Será? E aí, é? Não é não,
é? Não, claro que não.
Esse é o comportamento de um homem calmo. É comportamento de uma
consciência tranquila. É um comportamento decisivo.
Você mijou nas calças?
Eu senti um cheiro estranho.
Me diz que você não quer fechar o negócio.
Me diz que você não quer fechar o negócio.

JONATHAN O que vai acontecer se eu –

SIAN Use sua imaginação


Me diz que você não quer fechar o negócio.
Vou contar de cinco até um e você tem até o um pra dizer que não quer fechar o
negócio.
Cinco. Quatro. Três. Dois. Um.
Então.
Eu tenho umas perguntas a lhe fazer. É muito importante que você responda
rápido. E que responda com honestidade. A rapidez, a clareza e a sinceridade de
suas respostas vão ter um peso decisivo no que vai acontecer depois. Você ta
entendendo?

JONATHAN Não tenho muita certeza.

SIAN Vai nos ajudar a nos decidir se vamos ou não fechar o negócio.

JONATHAN O que vai acontecer se minhas respostas forem erradas?


58

Repentinamente ela bate com o punho envolvido na algema na mesa, perto da


mão dele.

Ele instintivamente tira a mão.

SIAN Uuh. Essa foi perto. Coloque sua mão de volta.

Ele o faz.

Obrigada.
Pare de chorar. Você ta me atrapalhando.

Ela pega a prancheta e a caneta de novo. Ela leva um tempo até encontrar a
primeira pergunta.

Qual é sua música preferida, e por quê?

Ele olha um instante para ela.

JONATHAN Essa é a primeira pergunta?


Desculpe, essa é a primeira pergunta?

SIAN Rapidez. Precisão. Honestidade. Caralho.

Perplexo, ele leva um tempo para pensar numa resposta.

JONATHAN ‘O quarteto pelo fim do tempo’ do Messiaen.

Ela escreve qualquer coisa. Ela tica duas colunas.

Ela espera ele responder à segunda parte da pergunta.

Eu acho a melodia muito bonita ainda que seja estranha. Acho a orquestração
dolorosa. Me emociona que ele tenha escrito pensando exclusivamente nos
instrumentos disponíveis no campo onde ele estava preso..

Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.

SIAN Pra qual lugar mais ao norte você já viajou?

JONATHAN Uma vez eu fui pra Seattle. Não sei se é Seattle ou Inverness. Passei uma semana
em Inverness. Não sei a latitude certa, ou – acho que Seattle.

Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.
59

SIAN Que momento você acha é o mais incômodo em viagens aéreas – decolagem, voo,
ou aterrissagem?

JONATHAN O voo. Não gosto da turbulência. Antes não me incomodava. Agora acho horrível.
Quando o avião dá aquelas caídas assim. Por que você ta me perguntando isso,
que perguntas mais estranhas.

Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Encontra a próxima questão.

SIAN Que línguas você fala?

JONATHAN Eu realmente não, hã. Eu fiz um curso de italiano. De conversação em italiano.


Consigo entender francês, lendo pelo menos sim. Uma ou outra palavra em
alemão. Uma ou outra em japonês.

Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Olha para ele.

SIAN Japonês?

JONATHAN Eu tive uma namorada japonesa.

SIAN E eu perguntei isso? Eu perguntei isso a você? Eu te perguntei se você já teve ou


não alguma namorada japonesa?

JONATHAN Não.

SIAN É claro que não, porra. Então por que você me contou que teve uma namorada
japonesa sem eu ter jamais expressado qualquer interesse pela porra do lugar de
origem de sua ex-namorada?

JONATHAN Tava tentando explicar porque eu sei um pouco de japonês.

SIAN Será que só as minhas perguntas já não são suficientes?

JONATHAN Não é isso.

SIAN Eu lhe dei permissão pra se esquivar por tangentes sinuosas?

JONATHAN Não. Por favor.

Ela escreve algo mais. Encontra a próxima pergunta.

SIAN Qual foi o último filme da série Guerra Nas Estrelas você assistiu no cinema?
Qual foi o último filme da série Guerra Nas Estrelas você assistiu no cinema?

JONATHAN Isso é uma pergunta?


60

SIAN Qual foi o último filme da série Guerra Nas Estrelas você assistiu no cinema?

JONATHAN O Império Contra-ataca. Não to entendendo por que você ta querendo saber essas
coisas.

Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Olha para ele.

SIAN Qual a lembrança esportiva mais antiga que você tem?

JONATHAN Hã. Porra. Foi assistir a final do campeonato de 1972. Arsenal e Leeds. O Arsenal
perdeu. Meu pai convidou uns amigos pra virem assistir. Eles ficaram muito
bêbados. Essas perguntas são imbecis.

Ela olha para ele.

Elas são. Imbecis. Inúteis. São perguntas imbecis e inúteis.

Ela olha para ele.

Não vejo nenhum sentido em responder essas perguntas. Me admiro que a única
coisa que você queira de mim seja o meu dinheiro.

SIAN Isso ajuda?

JONATHAN O que que ajuda?

SIAN Levando em conta que isso aqui é uma transação estritamente de negócio.

JONATHAN Uma transação estritamente de negócio.

SIAN Não é.
Se alguém descobrir o que você está prestes a fazer, Jonathan, você vai passar um
bom tempo na cadeia.

JONATHAN Ninguém vai descobrir.

SIAN Você ta contente que a gente descolou uma menina pra você?
Você queria uma menina, não queria?
Meninas são ótimas. São muito fiéis. Eu sou muito fiel à Frieda. Ainda ligo todas
as noites pra ela. O que você acha disso?
Há quanto tempo você está casado?

JONATHAN Essa é mais uma pergunta?


Treze anos.
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Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.

SIAN Quantos anos você tinha quando se casou?

JONATHAN Vinte e nove.

Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.

SIAN Quantos anos a Fiona tinha?

JONATHAN Vinte e nove.

Ela escreve algo mais longo desta vez.

SIAN Isso é bom. Conta a seu favor.

JONATHAN Por quê?

Ela encontra a próxima pergunta.

SIAN Onde você conheceu sua esposa?

JONATHAN Num trem.

Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.

SIAN Que descaramento. O trem tava indo pra onde?

JONATHAN Pra Munique.


Vindo de Salzburg, na Áustria.

SIAN cai na gargalhada.

JONATHAN O que há de engraçado? Por que você ta rindo?

SIAN Vocês metiam entre um túnel e outro?


Desculpe.

JONATHAN Eu tinha acabado de fazer meu curso de pedagogia. Ela ainda tava estudando.
Tava fazendo faculdade de história alemã.

SIAN Que lindo.

JONATHAN A vista era magnífica. Perguntei a ela sobre o lago na fronteira da Áustria com a
Alemanha. Eu não tinha certeza de que lago era aquele. Eu perguntei em alemão.
Levei um susto quando vi que ela era inglesa. Ela pediu pra eu pagar um café pra
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ela, porque ela tava sem dinheiro nenhum. Quando a gente chegou no restaurante
ela mudou de ideia. Ela pediu uma cerveja. Eles têm cerveja de barril nesses trens
de lá, a gente ficou impressionada.

SIAN recebe uma mensagem. Pega seu celular. Lê a mensagem.

SIAN Desculpe, eu sempre faço isso na frente das pessoas. Ler a mensagem no meio de
uma conversa. É uma puta falta de educação, não é? É que o que você tava
dizendo tava tão chato.
É o Alain. Eles passaram. Tão a caminho.

Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.

Qual sua mais lembrança mais antiga?

Ele olha para ela durante um tempo.

JONATHAN Quando você disse ‘eles passaram’...

SIAN Eles passaram pela alfândega. Passaram direto pela imigração. Nem entrevistaram
ela. Ta tudo certo. Devem chegar daqui uns quinze minutos. Eles não têm
bagagem, nada. Ele deve pegar um taxi. Vai ser bem rápido.

JONATHAN leva um tempo para registrar as implicações dessa declaração dela.

JONATHAN Quando eu tinha três anos eu caí numa poça de areia movediça. Eu lembro, eu
lembro, eu lembro.

Um tempo.

Lembro que minha mãe teve que me agarrar pelos cabelos. A gente tava em –
acho que a gente tava em Morecamb Bay. Eu me lembro da sensação dos dedos
dela agarrando os meus cabelos. Lembro de como a expressão dela era séria. Ela
não entrou em pânico. Ela ficou calma.
A mãe dela sabe que ela está aqui?
Ela vendeu ela pra você? Você comprou ou você pegou ela?

SIAN sorri.

SIAN Qual o trabalho que seu pai faz?

JONATHAN Ele trabalhava com distribuição. Ele foi o diretor de distribuição de atacado numa
empresa. A firma ficava em Warrington, perto de Manchester,

SIAN Ele ainda ta vivo?


63

JONATHAN Não.

SIAN Quando ele morreu?

JONATHAN Quando eu tinha vinte anos.

SIAN E sua mãe?

JONATHAN Ela morreu há dois anos.

SIAN E os pais de sua mãe?

JONATHAN O pai da minha mãe ainda ta vivo. Ele mora na Itália.

SIAN O que você disse pra ele?

JONATHAN Sobre... ?

SIAN De onde sua filha apareceu?

JONATHAN A gente contou pra ele que a gente ia adotar uma criança estrangeira.
A gente quase não vê ele.

SIAN Foi isso que você disse pra todo mundo?


Todas as suas memórias são memórias de natureza, você reparou isso?
Acho que isso acontece com muita gente.
Eu me lembro da natureza.
Eu odeio. Natureza. Morro de medo. Eu odeio a escuridão. Odeio o silêncio.
Ela vai ter seu próprio quarto?

JONATHAN No presente momento eu não estou morando na minha casa. Tem um quarto na
casa onde a minha esposa ta morando. A gente vai usar ele pra colocar ela.

SIAN Já fez a decoração?

JONATHAN Não.

SIAN Bom, ta mais do que na hora de começar então. Melhor começar a pegar a escada,
Jonathan! Uma demão ou duas de tinta. Uns posters nas paredes. Tem que
comprar um som. Meninas gostam de música.
Ela vai pra qual escola?

JONATHAN Eu falei com o pessoal da escola onde eu dava aula. Disse pra eles que e a gente
tava pensando em adotar. Eles me disseram que podiam arranjar uma vaga pra ela
lá.
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SIAN Você ainda vai ter que pagar um plano de saúde decente. Me desculpe, mas não se
pode mais confiar no Sistema de Saúde Público como antigamente.

JONATHAN O Stephen me passou o nome de três médicos que moram meio perto da gente.

SIAN Por hora acho que é conveniente conseguir alguma diamorfina pra ela. Pegue um
lote, não é melhor? O que acha?

JONATHAN Isso não deve ser problema.

SIAN Por que eu quero cair morta aqui se sair daquela porra não deve ser pior que o
inferno.
Você precisa ter muito cuidado com a dieta dela. Ela vai precisar de um
suprimento regular de carboidrato. Ela come arroz como se fosse uma draga.
Você deve ficar atento a isso. Durante um tempo ela só pode beber água. Nada de
suco, ta entendendo? Ela também deve comer bastante verdura.

JONATHAN Acho que era isso mesmo que a gente tava pensando.

SIAN Aposto que sim.


E deve levar um tempo até ela se acostumar a andar. Ela não ta muito acostumada
a mover as pernas.

JONATHAN Você já fez isso antes?

SIAN Hah.

JONATHAN Você já fez isso antes nesse país?

SIAN Posso te fazer uma pergunta que eu sempre quis fazer, mas nunca faço?
Por que, antes de mais nada, uma pessoa quer criar uma porra de uma criança?
Esse mundo.
Eu estive em cada lugar, por causa do meu trabalho, que você não ia acreditar que
existe.
Tem lugares na Costa do Marfim. Na República Democrática do Congo. Port-au-
Prince, no Haiti. Quirguistão. As favelas das grandes cidades da América Latina.
Eu gosto de ir dar uma olhada.

O telefone dela toca. Ela atende.

Oui. Oui. Si. Bien. Bientôt.

Ela desliga.

Cadê as chaves do seu carro?


65

Ele olha para ela. Passa a chaves para ela.

O dinheiro ta aonde?

JONATHAN e SIAN (juntos) Numa bolsa na mala do carro.

Ela ri.

SIAN Adivinhei.
Espera aqui.

Ela sai.

Ele espera. Ele não sabe se pode ou não se sentar. Ele tira a mão de sobre a mesa
com cuidado. Flexiona os dedos. Olha para sua mão como se ela pertencesse a
alguém totalmente diferente. Por um instante ele parece estar completamente fora
de seu próprio corpo.

Ela volta. Ela carrega uma sacola grande. Coloca a sacola sobre a mesa.

Ela a abre.

Ela tira vários maços de dinheiro. Eles estão embrulhados e etiquetados em


envelopes de banco.

Ela conta. Ela não diz nada.

Depois de um tempo ela olha para ele.

Ela sai novamente. Leva a sacola com ela.

Ela volta. Ela segura uma arma. Ela aponta para a cabeça de JONATHAN.

JONATHAN O quê? Não. Não. Não. Por favor. Por favor não. Por favor não.

Ela tenta puxar o gatilho. Está emperrado.

SIAN Merda.

Ela olha para a arma. Ela mexe nela.

Pronto. Acho que consertei.

Ela volta a apontar a arma para ele. Ele tenta histericamente segurar o choro.
Ele aperta seus olhos. Ela sorri. Ela baixa a arma. Coloca-a sobre a mesa. Põe
as mãos no bolso.
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Enganei você.
Isso sempre funciona.
Você devia ver sua cara. Que figura!
A gente não ta tão pulverizado quanto as pessoas gostariam que a gente estivesse.
A gente ta conectada. Todos nós. Justamente quando a gente acha que não pode
ser é que a gente percebe que a gente é. Isso é horrível.
Esse é o passaporte dela.
Os papéis dela.
Dalisay Bituin. Consegue falar?

JONATHAN Dalisay. Bitunin.

SIAN Bituin.

JONATHAN Bituin.

SIAN Isso.

JONATHAN Dalisay Bituin.

SIAN Quer dizer ‘a pureza das estrelas’. Ela ta aqui.

JONATHAN Onde?

SIAN Aqui. Ela ta aqui. Ela ta muito cansada. O Alain ta tirando ela do taxi.

Ela lê cuidadosamente as notas que fez nos papeis na prancheta. Ela organiza
enquanto lê.

JONATHAN O quê? eu –

Um homem com trinta e tantos anos, ALAIN, entra. Ele traz uma menina filipina
de nove anos, DALISAY BITUIN. Ele está segurando a mão dela.

Ele está comendo um doghnut.

ALAIN C’est lui?

SIAN Oui.

ALAIN Il a payé?

SIAN Bien Sûr. Je le mis dans Le cofre-fort.

ALAIN Bon.
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Ele solta a mão de DALISAY. Ela fica parada lá.

ALAIN vai até a prancheta. Ele lê. Termina de comer seu doughnut. Tira os olhos
da prancheta.

SIAN Pode dizer olá pra ela se você quiser.

ALAIN Il attend. Le taxi.

SIAN Ok.

ALAIN sai. Ele joga o papel do doughnut no chão.

SIAN pega a prancheta e continua a organizar suas anotações. JONATHAN se


aproxima de DALISAY.

Ele tenta tocar nela, mas ela se afasta.

JONATHAN Olá.
Dalisay? É isso? É um, ham, é um nome muito bonito. Meu nome é Jonathan.
Você ta cansada? Pelo menos parece. Meu Deus. Você veio de muito longe, não
veio? Eu vou. Eu vou. Deve ser tudo estranho pra você. A gente vai pegar o –
Você pode dormir um pouco no carro se quiser. Não é problema nenhum. Eu vou
colocar uma música. Vou ligar o aquecedor. Você pode dar um cochilo.
Gostei do seu vestido. É muito bonito.

SIAN sai. JONATHAN fica meio surpreso com a saída dela. Leva um tempo até
ele perceber que está sozinho com DALISAY.

JONATHAN Eu não sei, ham, não sei o que dizer pra você.

DALISAY olha para ele. Ela esfrega seus olhos. Ele se aproxima dela.
Instintivamente ela dá um passo para trás. Ele para.

Os dois não se tocam.

De repente um blecaute.

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