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Água Parada
Wastwater
de Simon Stephens
Personagens
Harry
Frieda
Lisa
Mark
Sian
Jonathan
Alain
Dalisay
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UM
25 de junho, 21h.
Uma estufa numa área adjacente a um grande jardim de uma casa de fazenda reformada na
periferia de Sipson, Middlesex. Noite.
Ele fica um tempo olhando em volta. Está chovendo pesado. Ele observa.
HARRY Oi.
FRIEDA To há um tempão procurando você. Você ta aqui fora esse tempo todo?
HARRY É.
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FRIEDA Se o seu avião sai meia noite e vinte, você tem que chegar no aeroporto às dez e
meia.
HARRY Eu sei.
FRIEDA Se você quisesse eu podia levar você. Não quero que você se atrase.
HARRY É.
HARRY Não, eu fiquei embaixo dos galhos. Incrível como os galhos seguram a chuva.
Fiquei olhando como se eu tivesse assistindo uma coisa na televisão. Eu pulei a
cerca e entrei aqui quando apertou.
HARRY Não.
HARRY Não, obrigado. Eu to legal. Só queria que você parasse de se preocupar comigo.
Você conseguiu dormir?
FRIEDA Um pouco.
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HARRY Mesmo?
FRIEDA Não.
HARRY Você comeu sua janta? Deixei um pouco de carne pra você.
FRIEDA Eu vi, obrigada. Eu vou comer depois que você for embora.
HARRY Vai nada. Você tem que comer alguma coisa, Frieda. Isso é uma besteira. Você ta
se acabando.
HARRY To pensando na Sheila. Ela ficou muito aliviada com o cancelamento da pista.
HARRY Aposto como você também ficou decepcionada. Aposto como você tava querendo
se mudar, não tava?
HARRY Assim que eles conseguirem o dinheiro vão começar logo a planejar de novo. Daí
você vai poder se mudar.
FRIEDA Eu tenho o seu endereço. Quando eu achar tudo que você esqueceu de levar, eu
mando pra você.
HARRY Obrigado.
Seu cartão?
Ele ri um pouco.
Não ria.
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Ele recebe uma mensagem no seu celular. Ele o pega. Olha para ele. Digita
alguma coisa rapidamente. Guarda.
HARRY É.
HARRY O quê?
HARRY Ta?
Ele se curva. Toca a ferida dela. Ele tem um pacote de lenços absorventes no
bolso. Pega um, passa sobre o ferimento. Ela geme.
HARRY Ta doendo?
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HARRY Não acredito que você não tenha visto. Como pode?
HARRY Limpe isso direito depois que eu for embora. Ponha um curativo. Pode
infeccionar.
FRIEDA A gente tem que ser meio selvagem pra sobreviver a vocês.
HARRY É, mas eu acho que posso escolher um melhor. Horácio. Bartolomeu. Isnar. Então.
Isnar é um nome incrível.
FRIEDA Norman.
HARRY Norman?
HARRY Não. Eu acho que não vou escolher Norman, não, Frieda. Seria ridículo.
FRIEDA É.
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Um tempo.
FRIEDA Não faço a menor ideia. Acho que as outras pessoas é que devem saber isso.
FRIEDA E a gente nunca via ele. Ele trabalhava no estrangeiro, a maior parte do tempo
naquela época. Eu me lembro bem do cabelo dele. Era todo cheio de pontas. De
um tom de castanho horrível. Ele tinha uns olhos duros como pedra. Depois que
ele morreu minha mãe confessou que ela gostava muito mais dele do que da
gente.
Ele olha para ela. Recebe uma mensagem em seu celular. Pega o aparelho. Olha
para ele. Digita qualquer coisa rapidamente. Guarda o telefone.
FRIEDA O quê?
FRIEDA Não.
HARRY É bom você não estar mentindo. Eu sempre saco quando alguém ta mentindo pra
mim.
HARRY Do jeito que ela tratou você. As coisas que ela fez com você.
HARRY E é isso que uma pessoa faz quando está com medo? É esse tipo de atitude que se
deve ter?
FRIEDA Como assim? Como é que você pode esquecer de calçar as meias? Eu disse pra
você. Deixei um par do lado de fora. Eu lavei elas pra você.
FRIEDA Não precisa pedir desculpas, só quero é você pare de fazer isso.
Ele recebe uma mensagem em seu celular. Pega o aparelho. Olha para ele.
Digita qualquer coisa rapidamente. Guarda o telefone.
HARRY Bom, isso é uma coisa com que você não vai ter mais que se preocupar daqui pra
frente, né?
HARRY Não. Eu disse pra ela não ir. Eu nem gosto tanto dela assim.
FRIEDA Harry.
Ele recebe uma mensagem em seu celular. Pega o aparelho. Olha para ele.
Digita qualquer coisa rapidamente.
Guarda isso.
HARRY Desculpe.
HARRY É.
FRIEDA Eu queria saber que tanto você escreve nessa coisa aí.
FRIEDA Uma hora que você não estiver olhando eu posso pegar ele. Quando você estiver
distraído pegando as últimas coisas, eu roubo seu telefone e depois que você tiver
ido embora, vasculho suas mensagens enviadas.
FRIEDA Você realmente acredita que isso poderia me impedir? Você não entende nada de
computador.
Será que vai ter um computador lá no instituto?
FRIEDA Eu tava olhando no mapa. Do outro lado da margem do rio, no sul da cidade
Vancouver, tem um lugar chamado Surrey. Eu ri tanto. Você vai viajar milhares
que quilômetros pra acabar num lugar do lado de Surrey. Bastava você pegar a
estrada aqui.
Eu acho que vou me embora, sabia?
FRIEDA Pra algum lugar que tenha montanhas. Montanhas de verdade, não só morrinhos.
Montanhas com neve.
FRIEDA É mesmo?
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HARRY Eu botei no correio. Ninguém mais escreve carta. Eu não podia mais ficar aqui. Ia
acabar doente.
Um tempo.
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HARRY Há cem anos existiam vinte milhões de olmos na Inglaterra. Agora, só umas
poucas centenas.
FRIEDA Antigamente, nos fundos da fazenda tinha uma avenida ladeada de olmos.
HARRY A gente ta vivendo no meio de uma idade do gelo, você sabia disso?
HARRY Durante a maior parte da história, o nosso planeta tem sido insuportavelmente
quente.
FRIEDA Sei.
HARRY Há momentos curtos que duram cerca de dez ou vinte milhões de anos que ele se
torna insuportavelmente frio. Isso aconteceu há mais ou menos meio milhão de
anos. Foi aí que começou o período Pleistoceno.
HARRY Cale a boca, Frieda, isso é uma coisa importante. Há doze mil anos atrás o gelo
começou a derreter. Isso foi o início de uma era interglacial. Quando o gelo
derreteu, a vida despertou. Esses períodos quentes acontecem uma vez ou outra. O
gelo derrete, mas não completamente. Ainda hoje em dia tem gelo, não tem? Tem
centenas de geleiras no mundo. Na Nova Zelândia. Na Ásia. Na América do Sul.
Esses períodos quentes duram entre dez e quinze mil anos. A gente só tem um ou
dois mil anos de degelo pela frente. Talvez bem menos. O congelamento começa
de uma hora pra outra. A gente ta vivendo num momento ínfimo da história do
planeta. E que vai acabar. Eu gosto de pensar nisso.
Tudo por culpa do Charlie Cooper.
FRIEDA Verdade?
FRIEDA Não.
HARRY O homo sapiens é um caçador-coletor. Foi pra isso que eles foram
anatomicamente construídos. Quando você começa a plantar, você começa a
produzir mais comida pra mais gente. Então, ao invés de se reproduzir de acordo
com a sua fonte de comida, você começa a produzir comida pra alimentar uma
população inteira. Isso muda tudo prá pior. Você começa a esgotar os recursos
naturais. Você desvia o suprimento de água. Polui a atmosfera. Cria hierarquias
sociais que nunca existiram antes. Você começa a alimentar a população que tem
mais força física e econômica até o ponto que essas pessoas ficam supernutridas e
obesas. E deixa o resto do povo morrendo à míngua. Isso não acontece quando
você caça bisão e colhe amoras. Nenhuma das grandes catástrofes humanas teria
acontecido se a gente não tivesse começado a plantar.
HARRY Eu espero que eles construam a porra da pista. A gente precisa de uma pista. A
gente precisa se mover.
HARRY Oh, todo mundo fica puto com isso ou fica incomodado e começa a ligar pras
rádios, ou a postar protestos na internet. Mas se você diz pra alguém que ele vai
passar o resto da vida no mesmo lugar, sem direito a viagem de férias ou nada do
tipo, você vai ver o horror em seus olhos. Essa é própria noção do inferno. Há
milhares de anos atrás a gente fez um erro terrível. E a gente tem vivido apoiado
nesse erro. E vai ser assim pra sempre. A gente nunca vai conseguir mudar.
HARRY O quê?
HARRY Ta nada.
HARRY Eu não posso ficar aqui – você sabe disso, não sabe?
HARRY Não tem nada a ver com você, então não começa a sentir auto piedade por minha
causa.
FRIEDA Não to sentindo nenhuma autopiedade. Nunca senti. Eu sou a pessoa com menos
autopiedade do mundo.
HARRY Uma vez eu pus fogo nele. Eu atravessei o campo e pus fogo naquele celeiro. Não
se preocupe. Isso foi antes de eu vir pra sua casa. Anos antes. Você deve ter
ouvido falar, não ouviu? Eles devem ter colocado na minha ficha.
HARRY Aposto que sim, e você ta mentindo pra ser legal. Eu não acredito que tenham
deixado eu ir prum lugar tão perto. Às vezes eu acho que eles fizeram de
propósito.
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Teve uma época quando eu tinha uns doze anos, que eu achava que os jornais
estavam sempre adiantados. Era como se as notícias que eu lia eram de coisas que
iam acontecer no dia seguinte. Daí inventei que eu tinha lido uma manchete
dizendo que eu tinha morrido queimado num incêndio, então eu achei que eu
devia ser honesto com a notícia, porque eu não achava certo mentir pras notícias,
e que o que eu tinha que fazer é por fogo em alguma coisa. Ficar olhando o fogo
um tempo. Depois queimar lá dentro. A polícia chegou. Bombeiros vieram apagar
o incêndio. Foi um puta problema em que eu me meti.
Fico imaginando o que eu faço se isso começar a acontecer quando eu chegar no
Canadá. Cheguei à conclusão que o melhor é não acreditar em tudo que eu leio no
jornal.
Ta ficando tarde. Melhor eu ir.
HARRY Diga.
FRIEDA É uma coisa meio boba. Dá pra você ir lá na casa, desligar as luzes da sala, voltar
pra cá e ficar comigo um pouco, antes de você ir embora. Só um pouco.
Ele sai.
HARRY volta.
Um tempo.
HARRY Eu sei. É horrível, né? Tem quatro calças minhas que tão fedendo assim. É que eu
tenho tomado muito café. Minha bexiga ta sempre cheia e às vezes acaba vazando
um pouco.
HARRY Eu sei.
FRIEDA Não acredito que não mandei você ao médico. Por que você não foi a um médico?
FRIEDA Quando vocês vão embora sempre dizem que vão voltar pra me visitar e nenhum
de vocês nunca veio, a não ser a Sian.
Não me diga que você vai vir, porque não vai.
Você tem que ficar sabendo que eu não tenho raiva disso, então nem pense nisso.
É uma coisa que acontece quando você cria.
Eu nunca sinto raiva de nenhum de vocês.
FRIEDA Na verdade, eu não sinto não. Eu me irrito. Mas não tenho raiva. Eu nunca sinto
raiva porque não me reconheço em nenhum de vocês. É por isso que os pais
sentem raiva. Das coisas que eles reconhecem deles em seus filhos. Eles adoram
as características que seus filhos compartilham com seus cônjuges.
FRIEDA Sim. E eles odeiam as características que eles herdaram de si mesmos. Eu nunca
senti isso.
FRIEDA E logo quando você veio morar comigo, eu fui levar você à escola e você não
queria se largar de mim, você se agarrou na porta do carro e não queria soltar de
jeito nenhum.
Eu achava que eu tava fazendo a coisa certa. Eu odiei aquilo. Só queria que você
se soltasse.
Eu não vou pedir a você pra mudar de ideia mais uma vez, mas não ache que não
é porque eu não queira, porque é isso que cada mínima parte do meu corpo ta
querendo.
Comprei isso pra você.
São mil libras em dólares canadenses. Me faça o favor de abrir uma conta assim
que você chegar lá. Posso confiar?
HARRY Pode.
FRIEDA Eu espero.
HARRY Obrigado.
FRIEDA É só o que eu tenho, Harry. Não é um poço sem fundo, meu amor.
HARRY Eu sei.
HARRY Não.
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HARRY Ta bem.
FRIEDA Não cometa nenhum crime. Não tome muita droga nem encha muito a cara, nem
nada do tipo. Você tem potencial pra conseguir o que você quiser. Não desperdice
isso. Vai ter épocas que você vai se lembrar de mim e você vai pensar, que puta
velha. Todo mundo sempre acaba pensando isso dos pais. Normalmente quando
se chega aos vinte e oito anos. Mas tente se lembrar também que eu te amo, que
eu te amei e que vou continuar te amando. E eu espero que um dia você me
perdoe por tudo que eu fiz de errado, eu sei que foi muita coisa, mas tentei fazer o
melhor. De verdade.
FRIEDA É.
FRIEDA Eu sei.
HARRY To meio chocado, tenho que admitir. Eu nunca usei a palavra ‘puta’ na sua frente.
HARRY O quê?
FRIEDA Tem coisas que você vai ter feito, ou que você vai fazer, que vão viver com você
pra sempre. E você não vai poder mudar. Você vai querer poder. Vai tentar. Mas
não vai conseguir.
FRIEDA Ta.
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HARRY Não quero me atrasar. Me faz um favor e fica aqui fora. Não vem pra dentro da
casa comigo. A gente diz adeus aqui e eu saio e fecho a porta. Vou ficar com
minhas chaves porque eu sei que isso vai fazer você se sentir melhor.
HARRY Vou ligar pra você depois que eu tiver feito o check-in.
FRIEDA Ta.
HARRY E vou ligar pra você amanhã também. Vou achar uma hora legal por causa do
fuso horário.
FRIEDA Não se preocupe com isso. Me ligue assim que você chegar lá.
DOIS
23 de junho, 21h.
LISA Eu tinha trinta e dois anos quando conheci ele. Conheço ele só há dez anos. Mas a
impressão que eu tenho é que nesses dez anos eu passei com ele todo tempo que
estive acordada e que eu não estive trabalhando. Sei lá, é como se ele fizesse parte
do meu metabolismo. É a mesma coisa que me perguntar como é meu cabelo.
LISA Bem. Pode ser. Pode ser. Pode ser. Na verdade não. Não. Como foi o trabalho?
Tempo.
MARK Tem uns que conseguem, sabe. Desenhar. Eles gostam de desenhar. Eles pintam.
Fazem coisas. Não sei se conseguem reimaginar o mundo. Acho que pra eles é
muito difícil se expressar. E quando conseguem, na idade deles, bom, pra ser
honesto deve dar um pouco de medo. Eles são muito novos. Eles se dão melhor
tentando fazer com precisão desenho de frutas, de latas de comida, essas coisas.
Fique calma.
MARK Vi.
LISA É.
MARK Ta a fim?
LISA É.
MARK Agora?
LISA É.
MARK O quê?
MARK Quem será que vai querer se hospedar num hotel tão bonito assim e tão perto de
um aeroporto? Você acha que as pessoas vêm a negócios? Será que é pra gente
muito rica que têm que trocar de voo quando ta indo pra Austrália, talvez?
MARK Eu gosto do jeito que a televisão recebe você quando você entra no quarto. Toda
vez que eu entro num hotel assim eu levo um susto. Fico imaginando se errassem
meu nome. Por um segundo você ia achar que tinha entrado no quarto errado.
MARK Dá pra ver a TV do chuveiro. Eles arrumam de um jeito que você consegue ver a
televisão de qualquer canto do quarto. Talvez as pessoas que venham pra cá se
sintam tão sós que precisam da televisão pra lembrar a elas que tem um mundo lá
fora, e que tem coisas acontecendo, e que elas não estão, você sabe, sozinhas.
LISA E elas sempre ficam com o canal de notícias ligado. Se você assiste por algum
tempo eles começam a repetir as mesmas histórias, mas cada vez que eles repetem
é como se tivessem contando pela primeira vez e você começa a achar que está
ficando meio louco.
LISA Não, a gente se conheceu num grupo. Acho que já falei isso pra você.
MARK Não.
LISA Ela era meu mentor. Um dia ele disse que queria parar de ser meu mentor porque
ele tava ficando apaixonado por mim. O que é o máximo da falta de
profissionalismo. Na verdade é uma séria violação do código de conduta, o que é
um puta ridículo, daí a gente resolver encarar. Ele tem os dedos mais bonitos do
mundo. São lindos.
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LISA Acho que não muita coisa. Ele costuma ficar calado.
MARK Shhh
LISA O quê?
LISA Quanto?
LISA Você sabe qual é coisa mais sensual que uma pessoa pode fazer com a outra?
Não. Não precisa responder. Eu lhe digo. É segurar o olhar. Manter o olho no
olho. Fazer isso, sem piscar. Sem desviar. Quanto tempo você acha que é capaz de
ficar me olhando nos olhos?
MARK Horas.
Um avião pousa perto de sua janela. Ouve-se o barulho, apesar das janelas
serem à prova de ruído. Isto os interrompe.
LISA Um avião.
MARK É.
MARK Quem?
MARK Clare.
MARK Na escola. A gente se conhece desde quando a gente tinha quatro anos.
LISA Hah.
MARK O quê?
LISA É surpreendente conhecer alguém que tenha conhecido seu parceiro há tanto
tempo assim.
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MARK Mas a gente não começou a sair juntos quando a gente tinha quatro anos.
LISA Não.
LISA Quem sabe. Pode ser legal. A gente podia beber champanhe.
MARK Champanhe?
Ele abre a garrafa e serve dois copos que estão numa bandeja sobre o minibar.
Dá um copo a ela. Eles bebem.
MARK Na Rússia, eu li uma vez, que quando um médico morre, eles abrem uma garrafa
de champanhe pra comemorar a morte. Eu gosto da ideia.
LISA Porque isso deixaria a coisa ainda mais estranha do que já está.
LISA Notícias?
MARK É um intercâmbio, o Conselho Britânico paga pra você trocar de lugar com um
professor na América. Hoje eu soube que fui aprovado. Eu vou pro colégio de
Arte e Design de Minneapolis.
MARK Setembro.
MARK Não, ela vai ficar aqui. Ela tem o trabalho dela.
Eu ainda to meio assustado com tudo. Pra ser sincero eu já tinha esquecido que
tinha feito a inscrição. O diretor do colégio é que me ligou. Levei um tempo pra
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entender do que ele tava falando. Eu achava que ele tava falando com o professor
errado. Esses últimos dias têm sido um pouco confusos.
LISA É.
Venha aqui.
Ele o faz.
Ele o faz
MARK Zangado?
Ela para.
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LISA O grupo que eu frequentava, o grupo onde eu conheci o Andrew, não era para
alcoólatras. Era pra gente viciada em droga. Quando eu tinha a tua idade eu
tomava heroína. Fumei durante uns dois anos, depois injetei durante uns seis
meses. Se você quiser ir embora agora, eu não vou me importar.
LISA Eu comecei a fumar pra me ajudar a dormir. O negócio é que no meu trabalho
todo mundo fuma demais e bebe demais, e toma café e coca-cola demais e eu
entrei tanto nessa que não conseguia mais dormir de noite. Eu falei isso prum
colega meu e ele me perguntou se eu já tinha experimentado fumar heroína pra
me ajudar a apagar. Pensando nele agora, ele era um cara bem esquisito.
MARK Não.
LISA Eu adoro. Faz você se sentir tão feliz. Faz você ficar relaxado. Depois de um
tempo eu comecei a tomar muito. Depois de uns meses parei de pegar no trabalho.
Foi fácil arranjar um contato com um traficante que não sujasse a minha barra, daí
eu comecei a pegar com ele. Não vou dizer o nome dele, me desculpe. O
problema é que o teu nível de tolerância vai aumentando e você precisa cada vez
de mais pra conseguir ter a mesma sensação das primeiras vezes. Então você pode
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LISA Disse.
LISA Ele ficou meio com medo no início, mas eu tranquilizei ele. Eu trabalho com
proteção infantil. Não trabalho com narcóticos. Sabia?
MARK Certo.
Outro avião passa pela janela. Ela faz uma pausa para olhar para lá. Volta a
olhar para dentro.
LISA Ele me perguntou se o que eu ganhava era o bastante e eu disse que não. Então ele
disse, ‘Bom, tem um jeito, se você quiser, que pode te ajudar a ganhar mais
dinheiro.’ Eu perguntei a ele como e ele disse, ‘Bom, eu acho você bonita.’ Eu
pensei, sim, e daí, meu velho, onde é que você quer chegar, e ele me perguntou se
‘eu já tinha pensado em atuar?’ Eu disse não, e ele disse, ‘Bem, eu tava a fim de
fazer um filme com você, você não gostaria?’ Bom, aí eu fiquei pensando. Eu
nunca tinha feito nenhum filme antes, fiquei toda entusiasmada e eu disse, ‘Que
tipo de filme é esse?’ Ele olhou pra mim. Tipo. Ele deu um sorrisinho safado e
disse. ‘É um filme pornô.’ Ele perguntou o que eu achava. Eu perguntei a ele o
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que eu ia ter que fazer e ele disse, ‘Bom, o que você acha?’ E você me conhece.
Você sabe como eu sou. Então eu decidi dizer tudo bem. Mas com algumas
condições. ‘Tem umas coisas que eu não topo fazer’, eu disse, ‘Eu não faço sexo
anal, não transo com bicho, nem com criança, tudo bem pra você?’ Ele disse que
sim. E a gente fez. Sabe, eu gostava dele e ainda gosto. Eu ainda gosto dele sim.
Não vejo ele faz tempo, mas seu eu o visse de novo não teria nada a dizer contra
ele. Sei que pode soar estranho, mas acho que no fundo ele é uma boa pessoa. Ele
sempre foi muito limpo e sempre muito cuidadoso pra não me machucar de
verdade. A gente foi prum hotel perto do aeroporto de Stansted. Em Essex. Eu, ele
e um amigo dele, Jason. E tava óbvio que o Jason tinha sido escolhido porque era
bonito e bacana, e quando eu tava indo pra esse hotel, no carro, eu pensei, não, eu
não me importo, com ele eu não me importo. E tinha uma amiga dele, Michelle,
que era linda. Um pouco mais nova do que eu. E meio burra. Mas ela é legal. Ele
disse, ‘Você vai ter que fingir que ta chegando em casa e encontra o Jason
comendo a Michelle, e Michelle é sua filha e o que acontece é que você gosta.
Você gosta da transa, entende? E você resolve participar.’ O que pra mim, tudo
bem, porque na vida real a Michelle não é minha filha. A gente ta só, você sabe,
fingindo. E no fundo é meio estranho porque a gente tem que fingir que esse
quarto de hotel é minha casa, pra história poder funcionar. Mas você sabe? Eu
nunca tinha feito sexo com uma mulher. A gente começou a rir. Eu me senti
muito esquisita. E Jason foi muito gentil, e mesmo que de vez em quando eu
desse uma travada, no fim foi legal. Foi limpo. Eles me pagavam quinhentas
libras por filme. O que pra mim, na época era muito dinheiro. Depois de um
tempo você fica meio imune. Acho que você assimila, essa é a palavra. Uma vez
ele amarrou meus pulsos aos meus tornozelos, me colocou na mala do carro, me
levou pra floresta de Epping, e quando a gente chegou lá e ele filmou um outro
homem, não o Jason, dessa vez era um oriental chamado David, abrindo a mala
do carro, me tirando de lá, e tinha uns outros sete homens se masturbando e eu
tinha que chupar o pau deles enquanto eles se masturbavam, e eles tinham que
gozar o mais que pudessem no meu cabelo, na minha cara, onde eles quisessem.
Esse foi o único filme em que eu chorei um pouco e ele adorou e eu decidi parar
depois disso.
Silêncio.
Você ta bem?
Ta na internet. A gente pode achar se você quiser. Você quer que eu ache pra
você?
MARK Não.
LISA Pode ser engraçado. Já foi visto mais de 24.000 vezes. Média de 78 por cento de
aprovação.
LISA Bom, quando você assiste um filme você tem que dizer se você gostou ou não, e
78 por cento das pessoas que assistiram acharam o filme bom, e 22 por cento
acharam ruim. Você pode ler os comentários.
MARK Não.
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MARK Não.
MARK Não.
LISA De verdade?
LISA Não diriam muita coisa. Iriam me demitir. Eu ficaria um tempo presa.
MARK Presa?
MARK Eu to um pouco –
Ele o faz.
Você não precisa dizer nada. A gente pode ficar sentada aqui um tempo.
Ela pega a mão dele. Brinca com ela um pouco. Cheira-a. Compara em forma e
tamanho com as suas mãos. Depois fica segurando-a.
MARK Ela acha que eu estou em casa. Ela foi passar o fim de semana fora, na casa da
mãe dela. Eu disse pra ela que tinha que trabalhar. O que é verdade. Eu tenho que
trabalhar.
MARK Isso.
LISA A gente costumava acampar em Água Parada, quando eu era criança. É o lago
mais fundo do país. É rodeado por penhascos e montanhas, por isso está sempre
na sombra. A água é completamente parada. Meu pai me dizia que a imobilidade
era uma mentira. ‘Parece que ta parada, Lisa, mas você não imagina quantos
corpos estão escondidos lá embaixo.’ Sempre que me lembro do meu pai é lá. Ele
de shorts. Cozinhando ovo naquele fogãozinho a gás.
Como é o seu pai?
Ele olha para ela durante um tempo antes de responder. Ele está meio
desorientado.
MARK O quê?
LISA Você toma uma decisão. Ela fica com você. É como se as consequências
penetrassem nos seus ossos. To sendo meio louca?
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MARK Não.
LISA Só pensei. Se a gente for fazer isso tem umas coisas que eu queria que você
soubesse. Em nome da honestidade.
MARK Não.
MARK Mesmo?
MARK Faz somente seis meses que eu voltei a trabalhar. Fiquei quase quatro anos
parado. Há quatro anos e meio o melhor aluno que tive na vida morreu num
acidente de carro. Era um menino chamado Gavin Berkshire. Ele era incrível. Ele
e um amigo encheram a cara pegaram o carro e se enfiaram numa parede. Ele
morreu. O amigo não, o que pra mim sempre pareceu meio injusto. Depois disso
ficou difícil trabalhar. Só há pouco tempo é que eu recomecei. Meu trabalho ficou
muito figurativo. Eu pinto pessoas. É muito estranho.
MARK Não.
Um tempo.
Pausa.
LISA Minha irmã tem dois filhos. Eles têm nove e sete anos. Ela não deixa eu ver eles.
Um tempo.
Nunca fiz sexo com o Andrew. Acho que é porque me lembra dessa época. Isso
foi há doze anos, mas ainda assim. Eu gosto de dormir com ele. A gente se abraça
muito. A gente se dá as mãos. A gente se aninha. Não é que eu não goste de sexo.
Só prefiro é não associar sexo com ele. Será que isso é uma coisa estúpida?
MARK Não.
MARK Eu também.
LISA Porque não te culpo se você achar que o momento tenha passado.
MARK Não.
LISA Acho que eu gostaria de vendar seus olhos também, Mark. Posso fazer isso?
Acho que vou amarrar você a uma cadeira, vendar seus olhos e amarrar suas mãos
pra você não poder tocar em mim, mesmo que eu queira muito. E você não vai
poder me ver.
Foi esse tipo de coisa que eu andei pensando o dia inteiro. Você acha chocante?
LISA Uma outra coisa que eu andei pensando, uma coisa que eu queria fazer hoje era,
eu queria que você batesse em mim. O que você acha?
MARK olha para ela. Ele tenta dizer alguma coisa, mas não consegue.
LISA Você acha que consegue? Tem gente que consegue e tem gente que acha muito
difícil.
Você acha que consegue, ou seria meio complicado?
LISA Não tenha medo. Eu não queria assustar você. Não tem nada a ver com me
machucar ou me odiar, nada disso, Mark. Não precisa entrar em pânico. É
justamente o oposto.
Se eu quiser que você pare eu te digo pra parar. A gente pode inventar uma
palavra. Uma vez, quando fiz isso antes, a palavra era ‘água’. Se eu disser a
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palavra ‘água’ você tem que parar. Te prometo que se eu ficar com medo ou
desconfortável, eu digo a palavra ‘água’ e você para. Quer experimentar, o que
você acha?
MARK Não.
LISA A gente pode filmar com seu celular. Pode ser engraçado. O que você acha?
MARK Não.
LISA Você pode fazer o upload amanhã. De noite. Quando você tiver chegado em casa.
Depois da Clare ter ido pra cama.
MARK Para. Eu não vou machucar você. Eu não vou bater em você. Pelo Amor de Deus!
LISA Vai chegar uma hora, quando você estiver mais velho que você vai sacar.
MARK É macio.
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Ela segura a mão dele sobre seu rosto. Ela beija a mão dele, na parte de cima de
seu punho.
MARK Mesmo?
Ele a estuda.
MARK Um lance meio estúpido. Nem doeu nem nada. Pra falar a verdade, foi meio
constrangedor. Ele ficou todo vermelho. A coisa foi até meio tosca. Foi no
corredor. Ele até foi demitido depois, o que pra mim foi um exagero.
MARK Ele deu uma cantada na Clare. Ele convidou ela pra sair e tomar uma bebida. A
gente estava na quinta série, a coisa não era séria, mas de qualquer jeito, ele fez o
convite, ele disse, quando você quiser falar comigo você pode me ligar, e eu
fiquei puto. A gente discutiu no corredor. Ele me deu um tapa, assim. Que nem
um tapa de menina.
Eu não devia ter dito nada pra ele. Foi uma besteira ele ter sido despedido.
Desde pequeno eu sempre quis caminhar através do deserto. De um grande. Que
nem o Sahara. Ou Gobi. Ou o da Patagônia. Sem água. Sem comida, nem nada.
Só pra sentir como é.
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LISA É.
Eles se olham.
Você ta bem?
LISA Estou.
Espera aqui.
Ele espera.
Ela vai para a janela. Ela a abre. Ela se vira para ele.
MARK Acredito.
LISA A gente devia se casar. A gente podia fazer isso ilegalmente. Eu seria bígama.
LISA Você podia me levar pra Minneapolis. A gente pode visitar o Prince. A gente
pode ir ao Shopping da América.
MARK Aonde?
Enquanto ela falava ela ligou a televisão. É a BBC notícias 24h. Ela abaixa o
volume e fica lendo as legendas. Enquanto fala se despe um pouco. Talvez
tirando o cardigan e os sapatos.
MARK É, podia.
LISA Fazer compras. Comprar roupas, um pro outro. São nove e meia, já devia estar
escurecendo. Você viu o céu?
MARK Vi.
MARK É.
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MARK fica olhando ela fazer isso, tira seus sapatos e suas meias.
LISA Todo mundo vai ficar dentro de lindos quartos. Com sabão líquido com perfume
de almíscar e boas águas minerais. E toalhas macias.
MARK É.
LISA O quê?
To falando sério. O zíper, por favor.
Obrigada.
Nunca me chame de Lise. As pessoas no meu trabalho me chamam de Lise o
tempo todo. Eu detesto.
MARK Não.
MARK Eu não to chorando. Por que você acha que eu to chorando? Por que eu estaria
chorando?
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LISA “O céu é quem sabe que não precisamos ter vergonha de nossas lágrimas, pois
elas são a chuva sobre a poeira da terra que cega nossos corações duros.”
MARK O quê?
LISA Nada.
Ela liga o rádio. Toca uma música pop animada, bem comercial.
Ela se vira e olha para ele antes de voltar para a cama. Ele se dirige para a
cama.
De repente um blecaute.
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TRÊS
23 de junho, 21h.
Há uma escrivaninha grande com uma prancheta e uma caneta sobre ela, duas cadeiras, um
balde.
Nenhuma resposta.
JONATHAN Não.
SIAN Não.
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Obrigado por ter vindo. São nove horas ainda. Você chegou cedo. Você não se
molhou, molhou?
JONATHAN Não.
SIAN Aposto como você ficou com um puta medo na hora que o Alain te ligou?
O que aconteceu com o seu nariz?
Pausa.
JONATHAN Eu caí.
SIAN Caiu?
JONATHAN Eu era professor. Uma vez eu escorreguei e caí nas escadas da escola onde eu
dava aula. O chão tava molhado. Pra falar a verdade, foi meio constrangedor.
SIAN Você não parece nada bem. Ta meio pálido. Um tom meio ‘Oh, meu Deus, que
porra que eu to fazendo aqui’ de pálido.
Não ta?
Eu to certa, não to?
SIAN Que engraçado, né? Sabe que eu não me importo. Isso nunca me incomodou.
JONATHAN O quê?
JONATHAN Matemática.
JONATHAN Numa escola particular. Parei de dar aulas depois de dez anos. Quero dizer, parei
de dar aulas em escola. Agora eu dou aula na faculdade.
JONATHAN O quê?
JONATHAN O quê?
SIAN O quê?
SIAN Foi um avião, Jonathan, o que mais poderia ser? Você ta muito assustado, não ta?
Como vai sua esposa?
JONATHAN Olha, eu to aqui, não to? Trouxe o dinheiro, não trouxe? Você não precisa –
Fiz o negócio com o Stephen Cochrane.
SIAN Eu li os três.
SIAN É.
SIAN Ele achou isso meio, como é mesmo a palavra? Uma porra um pouco frustrante,
no mínimo. Acho que foi essa a palavra que ele usou.
Ela sorri.
SIAN Qual foi a pior coisa que você fez? Até hoje?
JONATHAN Quando eu era professor eu bati num aluno meu. Forte. No rosto.
SIAN Zombou?
JONATHAN Ele insinuou que eu tava tendo um relacionamento com uma das meninas da sexta
série. Ele colocou um cartaz no quadro de avisos da biblioteca anunciando isso.
JONATHAN Claro que não. Que tipo de pessoa você acha que eu sou?
Uma pausa.
SIAN Quando eu tinha doze anos eu afoguei um cachorro. Nos fundos da casa, onde
meus primeiros pais adotivos moravam. Bem na saída de Stoke. Eles tinham uma
casa com um terreno grande e um lago nos fundos. Servia mais como um
playground feio e abandonado. Eu disse lago, mas na verdade era um, o quê? Um
tanque? Meu primeiro pai adotivo tinha um irmão que se chamava Clive, que
morava em Swansea. Ele era um escroto. Ele vinha visitar a gente. Ele tinha um
cachorro, aquilo nem era um cachorro, era um monte peludo de bosta. Ele me
ameaçava com o cachorro. Ela caiu no sono. Eu levei o cachorro prum passeio.
Bati bem atrás do crânio dele com um tijolo que meu primeiro pai adotivo
guardava na garagem, porque um dia ele ia construir seu puxadinho. Ele ficou
tonto. Tropeçou nas pernas de um jeito engraçado. Bambeou. Eu arrastei ele pela
corrente até o tanque. Empurrei ele pro fundo. Fiquei segurando a cabeça dele
debaixo d’água. Ele não reagiu durante um tempo. Depois sim. As pernas ficaram
duras. Ele se debateu todo.
Foi difícil explicar por que eu tava com a saia toda molhada. Vou te contar, hem.
Há quanto tempo você tem cabelo branco?
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Não vai me dizer que começou quando o Alain ligou pra você. Ou foi? Aposto
que foi, não foi?
Eu gosto do seu relógio. Onde você arranjou?
SIAN Eu sabia que você ia dizer isso. Será que você não consegue dizer nada que não
seja estupidamente previsível? Posso te pedir uma coisa? Daria pra você parar por
uma porra de um segundo de mexer os dedos? Por favor?
Você gosta dos meus pés?
Você é desses homens que gostam de pés de mulheres?
Nós encontramos ela.
JONATHAN O quê?
SIAN Você me ouviu muito bem, caralho, não finja que não. Porra. O Alain ta com ela
agora. Ele ta com ela desde terça-feira.
JONATHAN O quê?
SIAN ‘Minhas. Minhas. Minhas. Minhas. Minhas – ’ que porra é essa que você ta
falando? Que merda que ta acontecendo com essa tua língua?
SIAN Você ta querendo dizer que não ta mais, o quê? Não ta mais interessado no
negócio? É isso que você ta querendo sugerir?
Você realmente acha que você tem esse tipo de opção?
É isso o que eu devo entender pelo que você ta dizendo?
Ela pega a prancheta, a caneta e começa a ler os papéis que estão nela.
JONATHAN O quê?
JONATHAN Um teste?
JONATHAN O quê?
JONATHAN Seguro?
Ela pega um par de algemas de seu bolso. Ela envolve o punho com uma das
algemas e usa como um soco-inglês.
SIAN Sempre ‘porque’ com você, não é? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Isso é
algum indício de inteligência? Sinal de um espírito curioso? É isso que você ta
querendo passar? Porque se for, meu velho, eu vou te dizer uma coisa hem, que
puta coisa mais feia.
Você tem alguma ideia do quanto imprevisível nós somos?
Obrigada,
Por quanto tempo você vem tentando? Sete anos. Quanto você gastou em
tratamentos? Cinquenta e uma mil e oitocentas libras. Quantas agências você
consultou? Oito. Qual foi sempre a principal causa de rejeição? Qual foi a
principal causa de rejeição? Porra, Jonathan, essa é uma pergunta muito séria e eu
espero uma resposta ou então eu enfio essa algema nas costas da sua mão.
Você acha que eu não faria isso?
JONATHAN Durante uns anos minha mulher esteve muito mal. Em 2005 ela passou uns meses
num hospital por causa de uma doença que foi consequência de um tipo de
exaustão.
SIAN Ela é da ilha de Cebu, no norte das Filipinas. Ela está cansada porque ta viajando
há duas semanas e meia. Ela achou o voo meio assustador. Ela quase não fala
inglês. Ela é mestiça. Nunca conheceu o pai, mas a gente suspeita que seja
europeu.
Você espera que eu acredite que você tenha entrado em contato com o Stephen,
que você mandou aqueles emails, que alugou um quarto na beira de estrada em
Derby pra poder fazer aqueles telefonemas e foi encontrar com ele num bar na
Floresta de Epping se não tivesse a fim de fazer esse negócio?
Mude você as circunstâncias.
SIAN Ligue pra sua esposa. ‘Adivinhe querida, tenho uma surpresa pra você!’
SIAN Terminal 5 do aeroporto de Heathrow. Uma hora dessa ela já deve ter
desembarcado, já passou pelo controle de passaporte. Ou ta esperando pra passar
pela entrevista da imigração. Numa daquelas cabines espelhadas, em que as
pessoas ficam sempre tentando ver quem ta do outro lado do espelho. Ela vai
passar fácil, pois foi muito bem preparada. Deve chegar aqui daqui a uma meia
hora. Ou daqui a uma hora. Ou daqui a três horas. Ou daqui a quatro dias.
Depende.
JONATHAN De quê?
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JONATHAN O quê?
JONATHAN No telefone, parecia que o Alain, ele parecia que sabia muita coisa a meu respeito.
SIAN Se você não queria fechar o negócio, por que você sacou o dinheiro?
SIAN Vai nos ajudar a nos decidir se vamos ou não fechar o negócio.
Ele o faz.
Obrigada.
Pare de chorar. Você ta me atrapalhando.
Ela pega a prancheta e a caneta de novo. Ela leva um tempo até encontrar a
primeira pergunta.
Eu acho a melodia muito bonita ainda que seja estranha. Acho a orquestração
dolorosa. Me emociona que ele tenha escrito pensando exclusivamente nos
instrumentos disponíveis no campo onde ele estava preso..
Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.
JONATHAN Uma vez eu fui pra Seattle. Não sei se é Seattle ou Inverness. Passei uma semana
em Inverness. Não sei a latitude certa, ou – acho que Seattle.
Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.
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SIAN Que momento você acha é o mais incômodo em viagens aéreas – decolagem, voo,
ou aterrissagem?
JONATHAN O voo. Não gosto da turbulência. Antes não me incomodava. Agora acho horrível.
Quando o avião dá aquelas caídas assim. Por que você ta me perguntando isso,
que perguntas mais estranhas.
Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Encontra a próxima questão.
Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Olha para ele.
SIAN Japonês?
JONATHAN Não.
SIAN É claro que não, porra. Então por que você me contou que teve uma namorada
japonesa sem eu ter jamais expressado qualquer interesse pela porra do lugar de
origem de sua ex-namorada?
SIAN Qual foi o último filme da série Guerra Nas Estrelas você assistiu no cinema?
Qual foi o último filme da série Guerra Nas Estrelas você assistiu no cinema?
SIAN Qual foi o último filme da série Guerra Nas Estrelas você assistiu no cinema?
JONATHAN O Império Contra-ataca. Não to entendendo por que você ta querendo saber essas
coisas.
Ela escreve alguma coisa. Ela tica duas colunas. Olha para ele.
JONATHAN Hã. Porra. Foi assistir a final do campeonato de 1972. Arsenal e Leeds. O Arsenal
perdeu. Meu pai convidou uns amigos pra virem assistir. Eles ficaram muito
bêbados. Essas perguntas são imbecis.
Não vejo nenhum sentido em responder essas perguntas. Me admiro que a única
coisa que você queira de mim seja o meu dinheiro.
SIAN Levando em conta que isso aqui é uma transação estritamente de negócio.
SIAN Não é.
Se alguém descobrir o que você está prestes a fazer, Jonathan, você vai passar um
bom tempo na cadeia.
SIAN Você ta contente que a gente descolou uma menina pra você?
Você queria uma menina, não queria?
Meninas são ótimas. São muito fiéis. Eu sou muito fiel à Frieda. Ainda ligo todas
as noites pra ela. O que você acha disso?
Há quanto tempo você está casado?
Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.
Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.
Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.
JONATHAN Eu tinha acabado de fazer meu curso de pedagogia. Ela ainda tava estudando.
Tava fazendo faculdade de história alemã.
JONATHAN A vista era magnífica. Perguntei a ela sobre o lago na fronteira da Áustria com a
Alemanha. Eu não tinha certeza de que lago era aquele. Eu perguntei em alemão.
Levei um susto quando vi que ela era inglesa. Ela pediu pra eu pagar um café pra
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ela, porque ela tava sem dinheiro nenhum. Quando a gente chegou no restaurante
ela mudou de ideia. Ela pediu uma cerveja. Eles têm cerveja de barril nesses trens
de lá, a gente ficou impressionada.
SIAN Desculpe, eu sempre faço isso na frente das pessoas. Ler a mensagem no meio de
uma conversa. É uma puta falta de educação, não é? É que o que você tava
dizendo tava tão chato.
É o Alain. Eles passaram. Tão a caminho.
Ela escreve alguma coisa. Tica duas colunas. Encontra a próxima pergunta.
SIAN Eles passaram pela alfândega. Passaram direto pela imigração. Nem entrevistaram
ela. Ta tudo certo. Devem chegar daqui uns quinze minutos. Eles não têm
bagagem, nada. Ele deve pegar um taxi. Vai ser bem rápido.
JONATHAN Quando eu tinha três anos eu caí numa poça de areia movediça. Eu lembro, eu
lembro, eu lembro.
Um tempo.
Lembro que minha mãe teve que me agarrar pelos cabelos. A gente tava em –
acho que a gente tava em Morecamb Bay. Eu me lembro da sensação dos dedos
dela agarrando os meus cabelos. Lembro de como a expressão dela era séria. Ela
não entrou em pânico. Ela ficou calma.
A mãe dela sabe que ela está aqui?
Ela vendeu ela pra você? Você comprou ou você pegou ela?
SIAN sorri.
JONATHAN Ele trabalhava com distribuição. Ele foi o diretor de distribuição de atacado numa
empresa. A firma ficava em Warrington, perto de Manchester,
JONATHAN Não.
JONATHAN Sobre... ?
JONATHAN A gente contou pra ele que a gente ia adotar uma criança estrangeira.
A gente quase não vê ele.
JONATHAN No presente momento eu não estou morando na minha casa. Tem um quarto na
casa onde a minha esposa ta morando. A gente vai usar ele pra colocar ela.
JONATHAN Não.
SIAN Bom, ta mais do que na hora de começar então. Melhor começar a pegar a escada,
Jonathan! Uma demão ou duas de tinta. Uns posters nas paredes. Tem que
comprar um som. Meninas gostam de música.
Ela vai pra qual escola?
JONATHAN Eu falei com o pessoal da escola onde eu dava aula. Disse pra eles que e a gente
tava pensando em adotar. Eles me disseram que podiam arranjar uma vaga pra ela
lá.
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SIAN Você ainda vai ter que pagar um plano de saúde decente. Me desculpe, mas não se
pode mais confiar no Sistema de Saúde Público como antigamente.
JONATHAN O Stephen me passou o nome de três médicos que moram meio perto da gente.
SIAN Por hora acho que é conveniente conseguir alguma diamorfina pra ela. Pegue um
lote, não é melhor? O que acha?
SIAN Por que eu quero cair morta aqui se sair daquela porra não deve ser pior que o
inferno.
Você precisa ter muito cuidado com a dieta dela. Ela vai precisar de um
suprimento regular de carboidrato. Ela come arroz como se fosse uma draga.
Você deve ficar atento a isso. Durante um tempo ela só pode beber água. Nada de
suco, ta entendendo? Ela também deve comer bastante verdura.
JONATHAN Acho que era isso mesmo que a gente tava pensando.
SIAN Hah.
SIAN Posso te fazer uma pergunta que eu sempre quis fazer, mas nunca faço?
Por que, antes de mais nada, uma pessoa quer criar uma porra de uma criança?
Esse mundo.
Eu estive em cada lugar, por causa do meu trabalho, que você não ia acreditar que
existe.
Tem lugares na Costa do Marfim. Na República Democrática do Congo. Port-au-
Prince, no Haiti. Quirguistão. As favelas das grandes cidades da América Latina.
Eu gosto de ir dar uma olhada.
Ela desliga.
O dinheiro ta aonde?
Ela ri.
SIAN Adivinhei.
Espera aqui.
Ela sai.
Ele espera. Ele não sabe se pode ou não se sentar. Ele tira a mão de sobre a mesa
com cuidado. Flexiona os dedos. Olha para sua mão como se ela pertencesse a
alguém totalmente diferente. Por um instante ele parece estar completamente fora
de seu próprio corpo.
Ela volta. Ela carrega uma sacola grande. Coloca a sacola sobre a mesa.
Ela a abre.
Ela volta. Ela segura uma arma. Ela aponta para a cabeça de JONATHAN.
JONATHAN O quê? Não. Não. Não. Por favor. Por favor não. Por favor não.
SIAN Merda.
Ela volta a apontar a arma para ele. Ele tenta histericamente segurar o choro.
Ele aperta seus olhos. Ela sorri. Ela baixa a arma. Coloca-a sobre a mesa. Põe
as mãos no bolso.
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Enganei você.
Isso sempre funciona.
Você devia ver sua cara. Que figura!
A gente não ta tão pulverizado quanto as pessoas gostariam que a gente estivesse.
A gente ta conectada. Todos nós. Justamente quando a gente acha que não pode
ser é que a gente percebe que a gente é. Isso é horrível.
Esse é o passaporte dela.
Os papéis dela.
Dalisay Bituin. Consegue falar?
SIAN Bituin.
JONATHAN Bituin.
SIAN Isso.
JONATHAN Onde?
SIAN Aqui. Ela ta aqui. Ela ta muito cansada. O Alain ta tirando ela do taxi.
Ela lê cuidadosamente as notas que fez nos papeis na prancheta. Ela organiza
enquanto lê.
JONATHAN O quê? eu –
Um homem com trinta e tantos anos, ALAIN, entra. Ele traz uma menina filipina
de nove anos, DALISAY BITUIN. Ele está segurando a mão dela.
SIAN Oui.
ALAIN Il a payé?
ALAIN Bon.
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ALAIN vai até a prancheta. Ele lê. Termina de comer seu doughnut. Tira os olhos
da prancheta.
SIAN Ok.
JONATHAN Olá.
Dalisay? É isso? É um, ham, é um nome muito bonito. Meu nome é Jonathan.
Você ta cansada? Pelo menos parece. Meu Deus. Você veio de muito longe, não
veio? Eu vou. Eu vou. Deve ser tudo estranho pra você. A gente vai pegar o –
Você pode dormir um pouco no carro se quiser. Não é problema nenhum. Eu vou
colocar uma música. Vou ligar o aquecedor. Você pode dar um cochilo.
Gostei do seu vestido. É muito bonito.
SIAN sai. JONATHAN fica meio surpreso com a saída dela. Leva um tempo até
ele perceber que está sozinho com DALISAY.
JONATHAN Eu não sei, ham, não sei o que dizer pra você.
DALISAY olha para ele. Ela esfrega seus olhos. Ele se aproxima dela.
Instintivamente ela dá um passo para trás. Ele para.
De repente um blecaute.